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03/01/2020 A cultura do escárnio e o triunfo da cruz: o caso Porta dos Fundos

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A cultura do escárnio e o triunfo da


cruz: o caso Porta dos Fundos

“Pois há de ser entregue aos gentios, e escarnecido, injuriado e cuspido” (Lucas


,)

“Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear,
isso também ceifará” (Gálatas ,)

Não há novidade alguma no deboche com que, sob o pretexto do humor, o


grupo Porta dos Fundos trata a fé cristã. Religião nascida, precisamente, sob
o signo do escárnio – manifesto, entre outros, no acrônimo INRI (Iesus
Nazarenus, Rex Iudaeorum), que Pilatos ordenou fosse gravado na placa
afixada ao topo da cruz –, o cristianismo tem sobrevivido a ele ao longo de
seus  mil anos de existência.

No Ocidente, o estilo contemporâneo de escárnio anticristão surge no século


 com o Iluminismo francês. Já fermentado de ideologia ateísta (daquela
sorte de ateísmo “turbulento, imperativo e sedicioso” de que falava Edmund
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Burke), reveste-se de uma agressividade ímpar na primeira metade do século


, com as campanhas de perseguição anticristã movidas por regimes e
movimentos políticos de orientação marxista-leninista, e reaparece no
começo do século  com o movimento neoateísta, tal como resumido na
fala de um de seus mais ilustres representantes, o crítico literário Christopher
Hitchens: “Penso que a religião deve ser tratada com escárnio, raiva e
desprezo, e reivindico esse direito”.

O ódio religioso (mal disfarçado de humor) que o grupo Porta dos Fundos
devota ao cristianismo é, portanto, apenas o efeito acumulado de três séculos
de propaganda e desinformação. Não há, com efeito, nada de iconoclasta,
original ou mordaz nas diatribes anticristãs de um Gregório Duvivier ou um
Fábio Porchat, que não passam de subprodutos periféricos de uma cultura
do escárnio anticristão, dignos, portanto, muito mais da nossa misericórdia
que da nossa indignação. A sua tentativa de chacota é, na verdade, um apelo
infantil por chamar a atenção; a confissão de impotência existencial em face
da única religião do mundo a ter gerado uma civilização na qual tipos física
e espiritualmente frágeis como eles podem prosperar, inclusive à custa do
escárnio antirreligioso; a revolta permitida do filho mimado contra os pais
que o paparicam, e que, ele bem o sabe, jamais lhe farão mal algum.

A tentativa de chacota é, na verdade, um apelo infantil por chamar a


atenção

O escárnio também sempre foi a arma preferida de um outro impotente


existencial crônico: Satanás. Não há outra que o anjo decaído mais tema e
respeite, pois ela mira diretamente o seu calcanhar de Aquiles: o orgulho –
pecado original e satânico por excelência. “O diabo, o espírito orgulhoso,
não tolera ser motivo de chacota” – ensinou São omas More, ajudando-
nos a compreender por que o “coisa-ruim” deseja tanto estar no controle
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dessa adaga pontiaguda, numa ânsia desesperada por ser sujeito exclusivo, e
jamais objeto, de escárnio.

Na condição de “príncipe deste mundo” – razão pela qual odeia Cristo, o


Deus encarnado, com todas as suas forças –, Satanás só consegue
compreender a lógica do poder mundano, precisamente o poder que,
tentando-o, oferece a Jesus Cristo no deserto. Fracassado, todavia, em suas
tentativas de corromper o Filho de Deus, resta-lhe apelar ao escárnio.
Quando Cristo agoniza na cruz, é ninguém menos que Satanás quem fala
pela boca dos escarnecedores: “Salva-te a ti mesmo, e desce da cruz. Salvou
os outros, e não pode salvar-se a si mesmo” (Mc ,-). E, como fizera
no deserto, Jesus volta a recusar a tentação de responder segundo a
perspectiva do poder mundano.

Quanto ao significado dessa recusa, a análise de René Girard permanece


inigualável. Baseado numa documentação antropologicamente vasta, o sábio
francês procura demonstrar que o processo por ele chamado de crise
mimética (a eleição de um bode expiatório cujo sacrifício termina por
apaziguar momentaneamente os conflitos sociais) está presente em toda a
mitologia universal, bem como na Bíblia, com presença destacada,
sobretudo, no drama da Paixão.

A tese fundamental de Girard é que, semelhantes no que diz respeito ao


conteúdo de seus relatos, a Bíblia e os mitos diferem num ponto crucial:
enquanto os segundos legitimam a violência cometida pela coletividade, a
primeira a vê como injustificável. Enquanto os mitos adotam o ponto de
vista da coletividade perseguidora, dando-lhe razão no que se refere à
culpabilidade da vítima, os Evangelhos adotam o ponto de vista da vítima,
revelando a sua inocência e denunciando a malignidade satânica do

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mecanismo acusatório. Jesus Cristo transforma-se no modelo universal de


todas as vítimas (passadas, presentes e futuras) da lógica sacrificial.

Nesse sentido, os Evangelhos funcionam como uma espécie de metamito:


participando do universo mitológico por sua estrutura básica e conteúdo,
propõem uma leitura crítica da mitologia universal, explicitando uma
verdade que os mitos se esforçam por obliterar, a saber: a coletividade está
enganada, pois a vítima é inocente. Se, portanto, a mitologia é a
objetificação, em forma narrativa, da auto-ilusão coletiva perante o bode
expiatório, as Sagradas Escrituras desfazem essa autoilusão de maneira
implacável.

Num dos capítulos mais marcantes do seu livro Eu vi Satanás cair como um
relâmpago, Girard comenta sobre o tema paulino do “triunfo da cruz”,
iluminando, à luz de sua interpretação geral do cristianismo, este trecho
difícil da Epístola aos Colossenses: “[O Cristo] apagou, em detrimento das
ordens legais, o título de dívida que existia contra nós; e o suprimiu,
pregando-o na cruz, na qual despojou os principados e as autoridades,
expondo-os em espetáculo em face do mundo, levando-os em cortejo
triunfal” (Cl ,).

O escárnio também sempre foi a arma preferida de um outro impotente


existencial crônico: Satanás

Nessa passagem, o “título de dívida” simboliza a acusação voltada contra a


vítima inocente nos mitos. Suprimindo-o, pregando-o na cruz, Cristo
promove uma inversão radical no significado da crucificação. Nas palavras de
Girard: “Antes do Cristo, a acusação satânica era sempre vitoriosa devido ao
contágio violento que aprisionava os homens nos sistemas mítico-rituais. A
crucificação reduz a mitologia à impotência ao revelar o contágio cuja
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eficácia, excessiva nos mitos, impede para sempre que as comunidades


identifiquem a verdade, ou seja, a inocência de suas vítimas. Essa acusação
aliviava temporariamente os homens de sua violência, mas ela se ‘voltava’
contra eles, pois os submetia a Satanás, ou, em outros termos, aos
principados e às potências, com seus deuses mentirosos e seus sacrifícios
sangrentos. Tomando sua inocência manifesta nos relatos da Paixão, Jesus
‘apagou’ essa dívida, ‘suprimiu-a’. Agora, é ele quem prega essa acusação na
Cruz, ou seja, revela sua falsidade. Enquanto que, habitualmente, a acusação
prega a vítima na Cruz, aqui, ao contrário, a própria acusação é pregada, e
de alguma forma exibida e denunciada como mentirosa”.

Ademais, tal como lemos na epístola, não apenas a acusação está pregada,
mas os próprios principados e potestades são oferecidos em espetáculo diante
do mundo. Em alguma medida, também eles estão pregados na cruz,
exibidos publicamente em toda a sua obscena nudez, assim como, na Divina
Comédia de Dante, é o próprio Satanás quem aparece crucificado e exposto.

A metáfora central no trecho citado da epístola é a do triunfo no sentido


romano, o desfile do líder militar vitorioso, que entra na cidade sob
aclamação pública, ostentando os seus troféus de guerra, dentre os quais os
próprios chefes inimigos acorrentados, que, antes da execução, são exibidos
como feras domadas. Um dos episódios mais famosos do tipo
(magistralmente retratado na minissérie Roma, da HBO) é o triunfo de
César após a vitória sobre o chefe gaulês Vercingetórix.

No caso da Paixão, Cristo é como o general vitorioso. A cruz, antes símbolo


de sua derrota, converte-se em símbolo de sua vitória sobre o mundo. A
força da metáfora reside, é claro, no seu caráter irônico. Tomada em sentido
literal, não poderia haver nada mais distante de uma vitória militar do que a
paradoxal vitória de Cristo, pois, em lugar de infligir violência aos outros, é
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Ele quem a sofre. Ocorre que, sofrendo-a tão definitiva e resignadamente,


termina por desmascará-la de uma vez por todas.

Como explica Girard, a ironia da metáfora é tanto mais saborosa quanto


mais nos damos conta de que é só o poder terreno que Satanás e seus
discípulos respeitam, e de que o triunfo militar ou político é o único triunfo
que entendem. A arma que os derrota lhes é, portanto, inconcebível. Justo
quando pensavam ter vencido mais uma vez, os principados e potestades
veem-se impotentes diante de uma verdade que transcende a lógica sacrificial
e a malícia humana, e contra a qual todo escárnio é impotente.

Feliz  a todos!

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