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A Criminalização do conhecimento e do uso das Plantas Medicinais no

Brasil da primeira República (1889 – 1930)

Marjorie E. dos Santos Göttert

O presente artigo se propõe a investigar o contexto da criminalização de


inúmeros indivíduos e grupos sociais que foram estereotipados e patologizados
(o curandeiro, o feiticeiro, o pajé, a parteira e muitos outros) no período do
advento da primeira república no Brasil (1889 a 1930).
Vai se deter em mostrar a sua criminalização pelo Estado da primeira
República e como essa criminalização era legitimada na sociedade. Por fim,
desenvolve-se a relação dessa criminalização com os indivíduos e grupos que
sustentavam como seus as formas de organização e os valores dos povos
negros.

1. Da história e uso das Ervas Medicinais no Brasil


O conhecimento sobre as plantas medicinais é tão antigo que, por mais
que fossem e sejam elaboradas formas escritas de registro desses saberes, a
forma mais comum até hoje é a passagem entre as gerações pela história oral,
pois se trata de conhecimentos relativos às necessidades humanas e a vida
dos povos.
No contexto do Brasil, pode-se unir conhecimentos referentes à
biodiversidade nativa a elementos e conhecimentos medicinais trazidos
posteriormente pelos povos de fora, principalmente dos africanos e dos
europeus.
No entanto, apesar de fazer parte da história dos povos, houve
determinados momentos e espaços em que esses conhecimentos
representaram ameaça para alguns e, de formas diferentes, esses saberes
foram intencionalmente desvalorizados, criminalizados ou apropriados por
alguns grupos somente.
A partir disso, queremos saber como se criminalizou as ervas medicinais
e como se legitimou essa criminalização no Brasil da primeira República.
2. Da criminalização das ervas medicinais na primeira República
Em 1890, o Código Penal institui no seu artigo 158:
Art. 158. Ministrar, ou simplesmente
prescrever, como meio curativo para uso interno ou
externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia
de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou
exercendo assim, o officio do denominado curandeiro:

Apesar da relação que existia entre o conhecimento e uso das ervas


medicinais e o curandeiro ser verdadeira (por mais que não estivesse restrito a
este ator social), o que se pretendia com essa relação não era a busca de
entender esse exercício e esse indivíduo ou grupo, mas o que se queria no
Brasil da primeira República era a criminalização e extinção ou extermínio de
todos esses saberes e práticas percebidos nos indivíduos e grupos populares.
É nesse período, que as ervas medicinais são criminalizadas através da
vinculação do seu uso a “tipos sociais” (o que veremos mais adiante) que
passam a ser estereotipados e excluídos do tipo social ideal que é criado: o do
trabalhador moralizado que tem como seus os valores do Estado.
O que foi estigmatizado como “curandeiro”, “feiticeiro” e “charlatão”
(Código Penal, 1890), na verdade fazia referência a inúmeros trabalhadores da
área da saúde, que surgiram para prover as necessidades antigas ou as novas
necessidades que vão surgindo nesse novo contexto social que é o Brasil.
No entanto, para entender esse novo contexto, vamos voltar um
pouquinho no tempo.
Apesar da criminalização do exercício dos conhecimentos populares de
saúde tenha se dado na prática, tais conhecimentos resistiram ao extermínio
ou extinção que se queria.
Logo da chegada dos portugueses, conhecimentos no âmbito da saúde
eram essenciais para a permanência desses invasores. E, sendo que se
tratava de terras com clima e biodiversidade muito diferentes das que eles
conheciam, o diálogo entre esses e os grupos étnicos nativos que se
encontravam se dava também sobre a apropriação dos saberes que os nativos
tinham (e têm) dessas terras e de tudo que isso envolve.
Do Brasil colonial Souza (1986, p. 166) afirma que “os africanos, índios e
mestiços foram os grandes curandeiros” da época. E que o que chegou ao
Brasil de conhecimento europeu da medicina popular incorporou, resignificou
ou se utilizou desses conhecimentos dos nativos e dos negros.
Mesmo na primeira República, os médicos e farmacêuticos passam a
prescrever tanto medicamentos tradicionais importados (que eram mais caros),
quanto das ervas e manipulados de ervas nativas do Brasil, cujos usos eram
aprendidos com os povos nativos e os povos negros.
Apesar disso, a partir da primeira República o discurso e as práticas em
saúde cada vez mais serão as da classe dominante, que passa a
propagandear a sua medicina e legitimar a sua repressão policial aos
praticantes da saúde não oficial através do corpo jurídico do Estado.
Em 1890, o decreto 847 de 11 de outubro vai promulgar o Código Penal
que institui em seu livro II, “dos crimes em espécie”, título III, “dos crimes contra
a tranqüilidade publica”, o capítulo III que descreve 9 artigos que criminalizam
os indivíduos e grupos que praticam conhecimentos sobre a saúde que não os
considerados oficias.
Esse capítulo se intitula “dos crimes contra a saúde pública” e começa
com o artigo a seguir:
Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos
seus ramos, a arte dentaria ou a pharmacia; praticar a
homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou
magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as
leis e regulamentos:

O que estava implícito em “exercer a medicina em qualquer dos seus


ramos” era a ilegalidade de todas as formas de medicina que não as
“habilitadas segundo as leis”, ou seja, a Medicina Oficial. E o exercício de
qualquer dos seus ramos incluía uma vasta gama de trabalhadores agora
ilegais: pais-de-santo, pajés, curadores, curandeiros, rezadeiras, benzedoras,
parteiras, raizeiros, ervateiros, advinhos, sangradores, e muitos outros.
O curandeirismo já era criminalizado mesmo antes do advento da
República. Nas leis do Império o artigo 264 já o caracterizava como
“contravenção” e “ato fraudulento”, além de que existiam punições referentes
aos diversos Códigos de Postura Municipais.
Entretanto, fora somente na República que as autoridades conseguiram
se resolver em torno de uma ideologia coesa que predissesse e afirmasse o
que era “lícito” e “ilícito” para as mesmas, conceituações que estariam
totalmente ligadas a ideologia cientificista da Medicina oficial.
Legalmente o que muda é que esse conjunto de leis contra tais atores
populares das práticas em saúde se torna bem mais direcionado e específico
ao curandeirismo, à feitiçaria e ao exercício ilegal da medicina (DIAS, 2010).
Mas, do que trata essa medicina e como ela é construída?
A construção do que viria a ser e como se daria a medicina no Brasil, é
formada a partir de conceitos e teorias que vinham da Europa, do que era
entendido como “científico”. E, assim, se começava a contrapor médicos
facultativos e “charlatões” (criminalizando os segundos), e discriminava-se a
medicina alopática da dos outros tipos de medicina (BOSI, 2007).
A credibilidade e necessidade do cientificismo para a classe médica, que
está se consolidando nessa sociedade, fará com que, no geral, a ampla maioria
das teorias sejam pensadas como naturais e exatas, mesmo quando teorias
aplicadas ao meio social.
A partir da análise do trabalho do Dr. Josélves Maurity Santos
“Therapetica Scientifica e Charlatanismo”, datado de 1911, podemos constatar
a imensa influência da teoria positivista. O autor se utiliza de conceitos como
“conhecimentos certos e positivos”, “critério indutivo” e “progresso humano” (p.
5) quando explica a evolução da “arte da cura”. Além de apresentar as
necessárias “fases” dessa “arte da cura” para a sua evolução baseando-se na
“lei dos três estudos” de Augusto Conte (SANTOS, 1911, p. 8 e 9).
As “Doutrinas Médicas” que acompanham a “arte da cura” estão
totalmente apoiadas a teoria evolucionista, onde “o aperfeiçoamento do homem
é o resultado... {d}a herança, {d}a adaptação e {d}a seleção natural” (SANTOS,
1911).
Sendo que, a anatomia, a histologia e a fisiologia são consideradas
“sistemas de conhecimentos certos e perfeitos e de pesquisas perfeitamente
regradas” (SANTOS, 1911, p. 5), como queria a teoria cientificista: para ser
científico não poderia haver margem de erro, logo a regra poderia ser universal
e amplamente aplicada.
Essa Medicinal Oficial e acadêmica estará baseada no racionalismo e na
observação, totalmente contrária as práticas de saúde baseadas nas tradições
culturais e de história oral e na experiência empírica (DIAS, 2010).
Deve-se perceber que esse discurso do que seria a Medicina Oficial não
vinha sozinho, a criminalização das práticas populares de saúde se consolida
concomitante está começando a surgir no Brasil a mercantilização da cura.
O discurso da elite econômica para a criminalização de pessoas que
promovessem práticas de saúde que não oficiais, e para a receita de plantas
ou manipulado de plantas que não tivessem diploma legal, era de que o uso
dessas plantas estava disseminado nas regiões desprovidas de assistência
médica e farmacêutica e, principalmente, nas zonas rurais, fato que (para tal
discurso) deveria acabar.
O que se pretendia, na verdade, e o que a história posterior a isso vai
demonstrando, é a monopolização de saberes e de exercício de trabalho no
que se referia a práticas de saúde para a consolidação de um mercado que
beneficiasse em primeira e última instância os interesses privados de alguns.
A partir do discurso oficial da medicina já se percebe uma valoração
negativa as ervas medicinais e as plantas em geral, pois um dos mais fortes
confrontos internos da medicina se deram em torno da medicina alopata
(posteriormente a Medicina Oficial) e a medicina homeopata que se baseava
em ervas e plantas e, por isso, era questionada pelos parâmetros científicos
que relacionavam essa prática as culturas populares.
As primeiras instituições de medicina e farmácia vão surgindo para
formar os primeiros médicos e farmacêuticos com diploma legal no Brasil no
final do século XIX e início do XX. A partir do que se dá início a esse grande
monopólio de saberes, onde somente a função de médico e farmacêutico
seriam aptas a estarem dentro da lei do Estado e, por isso, a exerceram a “arte
da cura”.
O monopólio da cura já estava presente em discurso desde o século
XIX, mas a sua legitimidade se daria somente na 2ª metade desse século,
“coincidindo” com a criminalização legal das práticas de saúde não oficiais.
No início do século XX, com o desenvolvimento do mercado da cura já
há uma grande disputa em tono deste (mercado), e é quando começam a
aparecer os primeiros negociantes de drogas medicinais, o que contribui ainda
mais para a criminalização das ervas e seu uso em estado natural.
O que é entendido como a “arte de curar” e as “doutrinas médicas” que
vinha sendo discutido principalmente pela classe médica da sociedade, passa
a ser gradualmente introjetado nas cidades e suas localidades, e o que existia
de conhecimentos e práticas populares amparadas no processo histórico dos
povos vai sendo banido das ruas.
O discurso ideológico e as repressões às práticas populares de saúde,
onde estavam inseridas as ervas medicinais, tinham como pano de fundo a
intenção de acabar com as práticas que se relacionavam com o universo da
feitiçaria, da magia,... (DIAS, 2010), ou seja, do universo de outras culturas, de
outros modos de vida, de outras formas de organização social, e isso se dava
para afirmação da forma dominante.
Portanto, não esqueçamos, essa criminalização tinha interesses, e
esses interesses recaíam enfaticamente sobre alguns “tipos sociais” , como
queriam as teorias cientificistas, e é o que veremos a seguir: que indivíduos ou
grupos o Estado da primeira Republica do Brasil criminalizava?

3. Das classes populares – quem se criminaliza?


A face mais cruel da lei é de que ela não funciona para todos, ela existe
para legitimar os interesses de alguns. E, no Brasil da primeira República, por
mais que as práticas de saúde parecessem se referir ao que estava escrito na
lei, o julgamento do criminoso dependia muito mais das autoridades que o
julgavam e do criminoso em si, do “tipo social” que cometia tal crime.
Então, práticas como a da Medicina Teológica, que era praticada por
padres católicos, ou seja, dentro da religião do Estado, desde que não
interferisse no espaço da Medicina Oficial, não eram consideradas tão
perturbadoras da ordem.
O que deve ficar claro é que essas práticas de forma alguma eram
toleradas, no entanto, dependendo da correlação de forças, da disputa de
poder, havia situações em que se fazia vista grossa a algumas dessas práticas.
A exemplo de fins elucidativos podemos nos utilizar do trabalho de
Tramonte (data), onde ela nos mostra que práticas que estavam relacionadas a
grupos de origem étnica européia e religião cristã, como é o caso da
benzedura, eram teoricamente mais aceitas pelos estudiosos e cientistas da
época. Contudo isso não impedia por um lado, a sua total descaracterização
enquanto ciência e, por outro, a repressão policial e julgamento jurídico por
crime na prática.
Isso demonstra que as práticas populares em saúde não eram toleradas,
como vimos anteriormente, nem mesmo antes e muito menos durante a
primeira República. Mas que essas práticas estavam disseminadas e eram
correntes, pois eram amplamente aceitas e procuradas pelas classes
populares, quando não fossem diretamente praticadas.
Além disso, sabe-se já que desde o início da relação entre os
portugueses, os nativos e os negros, o perfil social dos praticantes da saúde,
com a gradual fusão de elementos desses povos, não estava totalmente
restrito as classes populares.
Mas, e qual a visão de mundo que orientava tais práticas?
As práticas de saúde para os negros no Brasil, e também para os
nativos, consideram o corpo muito além do físico, pois o espírito e as emoções
são elementos chave que compõe o todo de um organismo muito mais
complexo do que o que a ciência positivista podia ver a olho nu.
Tal visão era um contra censo para o pensamento da Medicina Oficial,
pois espírito e emoções não podiam estar relacionados ao corpo, já que não
existiam pesquisas científicas que comprovassem isso, o que tornava tal
conhecimento inaplicável para esse pensamento dominante.
Além disso, a liberdade do corpo está no eixo central do modo de
organização negra, o que provoca um choque extremo com o modo de
organização europeu, onde o corpo está relacionado ao pecado e, por isso, é
distanciado na sua relação de conhecimento e contato com o próprio corpo e
desse corpo com os outros corpos.
Assim, a criminalização das práticas de cura vão se dar de forma muito
mais intensa quando se tratarem dos indivíduos e grupos negros. Sendo que,
os negros estarão totalmente associados ao curandeirismo e a feitiçaria, a
receita de ervas e manipulados de ervas e a uma séria ameaça ao “bem
público” e a “sociedade civilizada” ou ainda a “civilização da sociedade”.
Tramonte (data) ainda, nos demonstra em seu trabalho sobre religiões
afro-brasileiras na grande Florianópolis, que dois aspectos essenciais da
segregação racial inicial do Brasil permanecem no pós-abolição: o primeiro, da
invisibilidade dos cultos afros para a sociedade em geral, tanto nas mídias
sociais como nos eventos públicos; e o segundo, da folclorização e
descaracterização da religião afro, através das pesquisas dos intelectuais da
época, que a isolam do seu contexto.
Desconstruindo os discursos oficias desse período, partindo dos
intelectuais da arte da cura como Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Oswaldo
Rodrigues Cabral, ela demonstra como a estereotipação e, posteriormente, a
criminalização das práticas alternativas de saúde tinham por raiz a
estereotipação e criminalização das práticas religiosas afro-brasileiras.
E é nesse contexto, da passagem do trabalho escravo para o trabalho
assalariado, que a forma de se pensar o trabalho e o trabalhador vai sendo
mudada. Ao que o trabalho recebia uma visão de degradante e desqualificante,
essa visão era totalmente relacionada ao trabalhador negro e escravo.
Com o advento da República e o processo de abolição da escravatura,
duas conseqüências nos são relevantes aqui. Primeiro, a visão de trabalho
passa a ser relacionada ao progresso e a civilidade e, segundo, os negros
passam a disputar as vagas de trabalho com os imigrantes europeus que estão
sendo trazidos para o Brasil.
E, para aqueles que não eram inseridos na lógica das relações de
trabalho da sociedade que se consolidava, a polícia e o hospício se fortaleciam
e se abraçavam para juntos trabalharem na sua “inclusão”.
Como demonstra Elizabeth Cancelli (data), a sociedade passa a ser
dividida entre criminosos e não criminosos, sendo os segundos trabalhadores e
os primeiros vagabundos. E, por intencionalidade, a criminalidade e os crimes
estariam totalmente associados a classe da sociedade a que pertencia o
criminoso.
Se, anteriormente, com a Escola Clássica, de tradição iluminista, o
objeto de investigação era o ato criminoso em si, com a inserção da Escola
Positivista, no final do XIX, o objeto vira o próprio criminoso e o seu
comportamento. Passa-se a criação de “tipos sociais” delinqüentes e
estigmatizados.
Essas teorias, fomentadas principalmente pela Escola Positivista e pela
Antropologia Criminal, se serviram das teorias evolucionistas para naturalizar o
social, para legitimar suas teorias de “criminoso nato”, “memória genética
criminosa” e “hereditariedade criminosa”.
A partir da idéia do desvio comportamental se queria predizer onde
estariam os indivíduos e grupos mais propensos a tal criminalidade e, assim,
partia-se para a “defesa social” de prevenção ou repressão a esses criminosos
ou grupos criminosos.
Não fica difícil perceber quem é que está sendo criminalizado: quem
eram esses indivíduos e grupos, quem eram esses vadios, a quem se negava
trabalho ou se dava as piores vagas, quem habitava os cortiços, quem era
considerada a classe perigosa.
Ao pesquisar os processos-crimes de Minas Gerais, na segunda metade
do oitocentos, Dias (2010) nos mostra como era freqüente uma averiguação do
tipo de trabalho no qual o curandeiro (o criminoso julgado) se inseria quando
não estava exercendo suas práticas em saúde.
A inserção desses indivíduos criminalizados (que eram julgados
principalmente como curandeiros e feiticeiros) a uma atividade produtiva
perante as autoridades podia amenizar a situação dos mesmos.
E ainda, como a exclusão ao trabalho assalariado ou a outra forma de
trabalho considerada produtiva o criminalizava ainda mais. Esse tipo criminoso
seria enquadrado como ocioso e acusado de “vagabundo” e “vadio”. Elementos
como “indomiciliado”, “amoral” e “perturbador da ordem” podiam constar na sua
ficha.
Isso nos mostra que, se por um lado havia uma emergente necessidade
de inserção dos trabalhadores na nova forma de produção e de trabalho que se
consolidava; por outro, havia uma grande exclusão dos indivíduos e grupos
negros, que disputavam as piores vagas de trabalho e formavam o grupo mais
criminalizado dessa sociedade e, assim, em muitos casos ficavam a margem
da sociedade do trabalho formal assalariado.

4. Dos valores e das formas de organização – concluindo


A criminalização das ervas medicinais, na verdade serviu a
criminalização de pais-de-santo, de pajés, de curadores, de curandeiros, de
rezadeiras, de parteiras, de raizeiros, de ervateiros, de advinhos, sangradores,
ou seja, de diversos atores para quem os valores dominantes não
correspondiam aos seus, de indivíduos e grupos das classes populares que
vinham de outra estrutura de organização que não podia sustentar em nada à
que se queria introjetar.
As teorias cientificistas de eugenia não eram suficientes sem sua
aplicação real. Para poder dominar, não bastava se entender numa
superioridade racial, mas era necessário eliminar qualquer vestígio de
conhecimentos e rituais, de valores e formas de organização que não fossem
os da e para a classe dominante.
Então se houveram conhecimentos e usos das ervas medicinais que
permaneceram até hoje, isso só foi possível devido a resistência de indivíduos
e/ou grupos organizados da sociedade que sustentaram tais saberes.
O presente trabalho fez referência as ervas medicinais na história dos
povos, e mostrou que a sua criminalização se deu pela criminalização de
indivíduos e grupos sociais que estavam sendo reprimidos pela força policial do
Estado. Atentou-se para a construção do aparato judicial que objetivava a
legitimação da violência do Estado, e para a construção da Medicina Oficial no
qual ele se amparava. E, depois, apresentou-se a relação que se fez entre
esses “crimes” e os atores que correspondiam a eles, ou seja, a criminalização
acentuada à indivíduos e grupos negros, ou mestiços, e até brancos, que
exercessem saberes e práticas negras, o que estava diretamente ligado a sua
forma de organização e compreensão do seu corpo e de mundo.
Por fim, quer-se dizer que a criminalização do conhecimento e do uso de
ervas medicinais trata de uma questão de etnia e, portanto, também, de classe.
Tais práticas foram criminalizadas porque eram associadas aos povos negros e
porque esses povos, com seus saberes eram uma grave ameaça ao modo de
produção que se pretendia (capitalista de trabalho assalariado) e a lógica do
sistema que se instaurava, como Chalhoub (1990) bem expõe, do pacto de
classe, que garantia a continuidade da escravidão através da defesa do
princípio da propriedade privada.
Para concluir, do advento da República a classe dominante se vangloria
por não mais ser conivente à escravidão do Brasil colonial, pedra fundamental
do seu atraso, no entanto, não passa de hipócrita e muito argumentado
discurso da classe mesmo que continua a possuir os meios de produção dos
bens necessários a vida, uma vez que a escravidão permanece no trabalho
assalariado em que o ser humano deve necessariamente vender a sua força
(de trabalho) se quiser sobreviver nesse sistema.

“Os navios negreiros já não cruzam mais o oceano. Agora os traficantes de


escravos operam a partir do Ministério do Trabalho.” Eduardo Galeano, As
Veias Abertas da América Latina.

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