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Resenhas de Traduções 465

de Guber diz que uma mulher que mo, num trecho em que a elimi-
perde um filho “pode tudo” (44), nação não foi possível, virou
ele se refere a uma absoluta indul- “voodoo priest” (174), enquanto
gência trazida pelo sofrimento, não o cabelo tingido de acaju de Dadá
a uma nova capacidade, como em passou a exibir um sofisticado
“[she] can face up to anything” “Titian hue” (162). A maior fei-
(36). tiçaria, porém, recaiu mesmo so-
O descaso mesmo surge quan- bre o cavaquinho tocado no ter-
do a tradução explicitamente se es- reiro, que adquiriu um som
quiva de lidar com a macumba. A havaiano ao se converter em
própria palavra é traduzida por ukulele (170). Novamente a solu-
“witchcraft”, termo associado a ção estaria nas notas, mas é curio-
feitiçaria européia. À exceção do so o quanto um cuidado maior com
termo ‘terreiro’, reproduzido sem a diferença cultural soaria desca-
alteração, apenas com uma breve bido ao baixo investimento de uma
explicação do próprio Guber (“the editora no lançamento de novos
worship site” — 161), as soluções talentos estrangeiros, por mais pro-
são sempre apressadas. Lança-se missores que sejam. A mesma so-
mão até da simples eliminação de lução fica, pois, adiada para uma
um termo ‘problemático’: “Dadá lucrativa edição das obras comple-
era um pai-de-santo de confiança” tas de Patrícia Melo em inglês, no
(165) passa a “Dadá was caso de um dia ela ser canonizada.
trustworthy” (161). O mesmo ter- Luiz Felipe G. Soares

as Obras completas (que, como a


Obras completas, tomo I, de Jor- maioria dos livros com este título,
ge Luis Borges. São Paulo: Edi- estão longe de ser completas) do
tora Globo, 1999. 707 pp. escritor argentino, em quatro vo-
lumes. Esta resenha cobre o Tomo
I, onde estão reunidos os livros
produzidos pelo autor entre 1923
(quando tinha 24 anos) e 1949
De 1998 a 1999, ano de centená- (quando cumpriu 50 anos). Estão
rio do nascimento Jorge Luis fora as obras de aprendizado (que
Borges, a Editora Globo publicou o próprio Borges expurgou da edi-
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ção original, mas que vêm sendo princípios que guiaram sua com-
editadas ultimamente pela pressão plexa implementação.
conjunta dos estudiosos e do mer- Um empecilho inicial foi que
cado), a obra escrita depois dos cin- o contrato (ou seja, provavelmen-
qüenta anos (coligida nos outros te a vontade da herdeira dos direi-
três tomos) e a dispersa (reunida tos autorais) exigia que os textos
em volumes avulsos, a maioria ain- fossem apresentados sem notas e
da não disponível em português). com a mesma diagramação da edi-
Este tomo concentra, portanto, o ção argentina. O coordenador da
essencial, o mais importante que edição brasileira, fazendo talvez da
esse importantíssimo homem de necessidade uma virtude, pensa
letras legou à humanidade. que essa limitação “acabou ironi-
Trata-se, é bom dizer de iní- camente se convertendo no maior
cio, de um projeto de fôlego e que desafio: uma edição sem notas
custou longuísimas horas de tra- explicativas, deixando para o ta-
balho à equipe coordenada por Jor- lento individual de cada um dos
ge Schwartz, professor de litera- tradutores a possibilidade de fazer
tura hispano-americana da USP. da obra de Borges um texto em
É também um projeto brasilei- português digno do próprio
ro, já que em Portugal foram edi- Borges”. A verdade, contudo, é
tados também os quatro tomos, em que o leitor de Borges parece sen-
tradução lusitana. A primeira vir- tir falta de notas explicativas e isso,
tude deste projeto é que ele apre- que já se aplica ao leitor de língua
senta, pela primeira vez no Bra- espanhola, inclusive o argentino,
sil, toda a obra canônica de Borges, fica mais evidente no caso brasi-
antes repartida em várias edições leiro, onde mesmo o leitor culto
de diferentes editoras, feitas com terá problemas para penetrar no
propósitos e critérios heterogêne- mundo enciclopédico de Borges.
os. Algumas das edições antigas A melhor prova de que uma edi-
foram aproveitadas e revistas se- ção anotada de Borges é mais útil,
gundo os critérios do coordenador, inclusive para o mais hedônico dos
expostos em um longo artigo na leitores, é a excelente edição, em
revista Cult de agosto de 1999. Ali dois tomos, que Jean Pierre Bernès
Schwartz, que é de origem argen- preparou para a coleção La Pléiade
tina, expõe dificuldades e méritos da editora francesa Gallimard.
da empreitada, assim como os Traduções recentes para o inglês e
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destinadas ao grande público, Garantida a honestidade funda-


como as recém publicadas mental desta iniciativa, como fica
Collected Fictions, Selected Poems a sua qualidade literária? Ela me
e Collected Non Fictions, pela parece ligada justamente às opções
Penguin, mostram também que editoriais. Em geral, a poesia (que
uma edição com notas, no caso de muitos consideram a parte menos
Borges, é melhor, não pior. Tan- imperecível de Borges) apresenta
to isso é certo que em alguns casos soluções mais satisfatórias, embo-
o coordenador permitiu que se vi- ra não se possa falar de nenhuma
olassem as disposições contratuais conjunção mágica entre poeta tra-
para esclarecer um ou outro ele- dutor e poeta traduzido, como
mento textual e também para cor- ocorreu, creio, com muitas das tra-
rigir erros nas citações presentes duções de poemas borgianos ao
na edição original, por falha dos inglês. Há, tanto nas traduções de
editores ou do próprio Borges. Um Glauco Mattoso e Jorge Schwartz
dos pontos positivos desta edição (Fervor de Buenos Aires) e Josely
é que, sendo dirigida por um aca- Vianna Baptista (Caderno San
dêmico, acabou sendo mais rigo- Martín) literalismo constante, que
rosa textualmente que a edição em às vezes realça e outras vezes atra-
espanhol. Contamos, portanto, palha ou torna meramente estra-
agora com uma das mais cuidadas nha a dicção poética borgiana.
edições de Borges em nível inter- Talvez o texto de tradução mais
nacional. convincente do volume seja o de
Entre os critérios utilizados está Evaristo Carriego, uma biografia
a escolha de poetas para traduzir a “menos documental que imagina-
poesia e tradutores experientes para tiva”, como diz Borges em sua
traduzir a prosa, o conjunto tendo nota introdutória. Essa biografia
passado por um minucioso proces- um tanto confusa anuncia o futuro
so de revisão, sobretudo de aspec- Borges grande prosador, mas man-
tos lingüísticos e culturais tipica- tém ainda muitos dos traços “bar-
mente argentinos. Jorge Schwarz rocos” que ele tentará combater em
diz ainda ter se inspirado parcial- seus futuros escritos. Pois essa
mente nos princípios defendidos por mescla apresenta problemas espi-
Borges em seus ensaios sobre tra- nhosos de tradução que foram re-
dução para resolver os muitos dile- solvidos acurada e elegantemente
mas enfrentados por sua equipe. por um grupo de quatro traduto-
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res: Vera Mascarenhas, Jorge problemático é o texto de Historia


Schwartz, Maria Carolina de Ara- da Eternidade, onde há lusismos sur-
ujo e Victoria Rébori. preendentes, e até de difícil compre-
Previsivelmente, é nos ensaios ensão para um brasileiro, como
e na narrativa, onde os tradutores “qualquer palavra que pronuncie po-
tiveram momentos mais conturba- derá ser invocada contra si” (p. 463);
dos – nesses dois gêneros se con- a presença da mesóclise, que dá um
centra o mais inovador de Borges e inapropriado ar purista ao texto
são os que mais exigem treino, des- borgiano e uma normalização de ter-
treza e astúcia de leitores e traduto- mos tão típicos de Borges (por exem-
res. Assim, Discussão, traduzido plo “libros de invención” traduzido
por Josely Baptista Vianna, apre- como “livros de ficção”, p. 465).
senta um texto acurado mas que faz É, definitivamente, nos con-
uso, com freqüência, de um exces- tos, onde esta edição mostra seus
sivo literalismo. A tradutora, que re- limites, que são também os limi-
alizou um trabalho atento, nunca ba- tes da tradução de ficção no Bra-
naliza a idiossincrasia verbal do au- sil. E é no diálogo onde as deci-
tor, como ocorre em traduções para sões dos tradutores são mais
outras línguas e mostra dificuldade – questionáveis, inclusive porque
embora se aproxime bastante - de che- mesmo nossos melhores escrito-
gar a um tom argumentativo ao mes- res (com a notável exceção de
mo tempo borgiano e brasileiro, tal- Nelson Rodrigues) costumam tro-
vez porque a tradição de ensaio no peçar na representação da conver-
país é relativamente pobre e também sa. Frases como “Foi a mulher que
porque não temos uma tradição de o matou” (de “Homem da Esqui-
tradução criativa de ensaio, como te- na Rosada”, p. 366), “Economi-
mos de poesia e, em parte, de fic- zou-nos uma noite e um dia” (“A
ção. Expressões como “digressão Morte e a Bússola, p. 563), “Já
pinturesca” (p. 187), “taberna de sabia eu que podia contar com o
fronteira”, “sopé dos montes” (p. senhor” (p. 579) parecem pouco
241), “lancei a sorte” (p. 248) ou verossímeis no dia-a-dia brasilei-
seleções lexicais como “gaucharia” ro.
(p. 187) “delusória” (p. 211) talvez Para além desses pequenos re-
indiquem, mais que imperícia da tra- paros, devemos saudar este primei-
dutora, uma penúria nos meios ex- ro tomo das Obras Completas
pressivos do ensaio nacional. Mais como um acontecimento impor-
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tante na importação de Borges ao gar a novas traduções que corri-


Brasil, pois reúne em um cômo- jam distrações e favoreçam outras
do volume, o principal da produ- ênfases. Porque Borges, como
ção de seus primeiros cinqüenta todos os grandes escritores mun-
anos. À medida que estes textos diais, merecem e devem ser cons-
sejam lidos e usados, suas virtu- tantemente relidos e retraduzidos
des e vícios aparecerão com mais para nosso maior benefício.
clareza e darão, certamente, lu- Walter Carlos Costa

ca” à sua tradução dos Sonetos


Sonetos Luxuriosos, de Pietro Luxuriosos, “toda época histórica
Aretino. Tradução, Introdução e precisa, a posteriori, pelo menos,
Notas de José Paulo Paes. São Paulo: de um bode expiatório que lhe pos-
Cia.das Letras, 2000, 112 pp. sa purgar as culpas e os crimes. A
Renascença italiana teve-o sob me-
dida em Pietro Aretino” (p 11).
No panorama literário italiano, Além disso, ainda observa J. P. P.
Pietro Aretino (1492-l556) parece “o fato de terem nascido sob o sig-
não ter ocupado um lugar de muito no do escândalo e, em conseqüên-
prestígio, pois não é difícil consta- cia, de ficarem marcados com o
tar que a figura desse escritor labéu da obscenidade, que os rele-
provocativo e irônico é bem dife- garia por quatro séculos ao enfer
rente da de seus contemporâneos das pequenas edições clandestinas,
Ariosto, Bembo, Sannazaro e ou- explica a escassez de informações
tros. Se por muito tempo os seus seguras acerca dos Sonetti
Sonetti Lussoriosi (1524) causaram Lussuriosi” (p 30).
escândalo e foram relegados à cen- Para melhor entender a concep-
sura, ao descaso e ao mistério por ção deste escritor de versos satíri-
seu cunho marcadamente erótico/ cos e eróticos - que os admiradores
sexual/obsceno, nos tempos atuais, chamavam de “poeta favoloso”, os
no entanto, encontram-se à dispo- opositores de “mostro infame” e
sição de qualquer um em diferen- depois da publicação dos Sonetti
tes sites da Internet. Lussuoriosi, de “poeta maledetto”-
Não por acaso, lembra José , e o por quê de tantas críticas,
Paulo Paes, na “Notícia biográfi- vale a pena transcrever as palavras

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