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Qual o custo da errância bíblica?

#11

Qual o custo da errância bíblica?

Depois de reavaliar minha fé cristã e podá-la durante dois anos, não consigo me livrar do que
parecem ser duas conclusões discrepantes. Uma é que a evidência a favor da ressurreição de Jesus
é impecável, mas a outra é que parece haver algumas realidades incômodas acerca da composição
da Escritura (como erros ou autores alegando escreverem em nome de outros). Nada obstante, os
autores do Novo Testamento, inclusive Jesus, parecem usar as Escrituras considerando-as palavra
por palavra da parte de Deus.

Embora seja usada para chegar a uma defesa consistente da ressurreição de Jesus, a lógica indutiva
pode também ser usada para chegar a uma defesa vigorosa de muitas das peculiaridades sobre a
Escritura mencionadas previamente.

Nesse ponto, parece que o tratamento adotado por muitos apologistas é que, uma vez firmada a
autoridade de Jesus pela ressurreição, se o argumento levantado contra a Escritura contradisser
alguma opinião expressa por Jesus nos Evangelhos, então não é possível que o argumento da
contradição tenha harmonizações possíveis para validá-lo. Mas não vejo até onde é certo afirmar
isso, uma vez que (1) não parece justo empregar a lógica indutiva para provar a ressurreição de
Jesus, e não usá-la depois nas críticas à Bíblia e (2) um argumento indutivo pode ser forte apesar
do que Jesus diz segundo registraram os Evangelhos, especialmente porque não podemos ter
certeza da precisão com que muitos dos ditos foram registrados. Além disso (3), qualquer um pode
inventar a harmonização possível de alguns versículos, mas não plausível, o que, tenho certeza, o
senhor viu de primeira mão muitas vezes.

Todavia, sustentar essas duas posições em tensão tende a ser algo corrosivo para a minha fé e, por
fim, leva a certa amargura contra Deus por permitir que os escritores bíblicos tratem levianamente
as palavras divinas e por não proporcionarem uma clareza maior que traga mais certeza acerca
daquilo que procede e não procede dele. Toda ajuda que puder dar para aliviar essa tensão será
imensamente apreciada.

Obrigado,

Joshua

A sua dúvida é uma daquelas com que luta todo cristão que crê na Bíblia e está familiarizado com
a crítica bíblica moderna. Há muito o que dizer aqui, portanto deixe-me tocar em alguns pontos
principais.

Para início de conversa, a doutrina da inerrância bíblica, conforme a aprendi e, segundo penso,
como a maioria de seus adeptos a defenderia hoje, não é deduzida indutivamente,
mas dedutivamente. Os inerrantistas admitem abertamente que ninguém, ao ler a Bíblia, de ponta
a ponta, arrolando as dificuldades encontradas ao longo do caminho, que são devidas a
inconsistências ou a erros, chegaria à conclusão, ao terminar sua leitura, de que a Bíblia é
inerrante. Tal pessoa provavelmente concluiria que a Bíblia, como quase todo livro, contém alguns
erros. No entanto, os inerrantistas têm sustentado que crer na inerrância bíblica é justificável como
dedução de outras verdades solidamente justificadas. Por exemplo, o falecido Kenneth Kantzer,
deão do seminário onde estudei, defendia a inerrância mediante os dois silogismos seguintes:

1. Tudo aquilo que Deus ensina é verdadeiro.


2. As evidências históricas, proféticas e outras mostram que Jesus é Deus.
3. Logo, tudo aquilo que Jesus ensina é verdadeiro.

4. Tudo aquilo que Jesus ensina é verdadeiro.


5. Jesus ensinou que as Escrituras são a Palavra de Deus inspirada e inerrante.
6. Logo, as Escrituras são a Palavra de Deus inspirada e inerrante.

A reivindicação aqui é que temos razão suficiente para pensar que a Bíblia, apesar de suas
dificuldades, é a Palavra de Deus inerrante e, por isso, devemos aceitá-la como tal. Como afirmou
Friedrich Schleiermacher: “Não cremos em Cristo porque cremos na Bíblia; cremos na Bíblia
porque cremos em Cristo.” Um dos melhores exemplos desse tratamento da doutrina da inerrância
bíblica é o livro Christ and the Bible [Cristo e a Bíblia] (InterVarsity, 1972), de John Wenham.

Ao ser confrontado com dificuldade bíblicas, o inerrantista tentará mostrar que os erros alegados,
afinal de contas, não são erros de fato e apresentará harmonizações plausíveis para as aparentes
inconsistências. Quando não for possível agir desse modo, ele admitirá honestamente que
desconhece a solução da dificuldade, mas, nada obstante, insistirá que há razões sobrepujantes
para considerar que o texto é acurado e que, se todos os fatos fossem conhecidos, a dificuldade
alegada desapareceria. Esse tipo de abordagem tem servido proveitosamente aos inerrantistas.
Poderiam ser dados exemplos e mais exemplos de supostos erros bíblicos identificados pelas
gerações anteriores os quais estão agora resolvidos à luz das descobertas mais recentes. Um de
meus exemplos favoritos é o caso de Sargão ii, rei assírio mencionado em Isaías 20.1. Os
primeiros críticos alegavam que a referência a Sargão era um erro, pois não havia absolutamente
nenhuma evidência de que existiu um rei assírio chamado de Sargão ii — até que, isto é,
arqueólogos escavando na região de Corsabade desenterraram o palácio de Sargão ii! Agora temos
mais informações a respeito de Sargão ii do que de qualquer outro soberano assírio da antiguidade.

Ora, a questão levantada pela sua carta é sobre qual deveria ser nossa reação se nos
convencêssemos de que há realmente erro na Bíblia. Acaso essa conclusão não causaria um tipo de
efeito reverso por toda nossa cadeia de raciocínio dedutivo, levando-nos a negar a ressurreição e a
divindade de Jesus? Parece que foi essa a conclusão de Bart Ehrman, que diz ter perdido a fé em
Cristo por descobrir um erro insignificante nos Evangelhos.

Essa conclusão é desnecessária por duas razões. Primeiro, talvez precisemos antes rever nosso
entendimento do que constitui um erro. Ninguém acha que, quando Jesus afirma que a semente de
mostrada é a menor de todas as semente (Mc 4.31), seja um erro, mesmo havendo sementes
menores que a da mostarda. Por quê? Porque Jesus não está dando uma aula de Botânica, mas está
tentando ensinar sobre o Reino de Deus, e a ilustração é incidental à lição. Os defensores da
inerrância defendem que a Bíblia tem autoridade e é inerrante em tudo o que ensina ou em tudo
que pretende afirmar. Isso dá origem à questão descomunal a respeito de que os autores da
Escritura pretendiam afirmar ou ensinar. Questões de gênero literário têm peso significativo na
nossa resposta ao assunto. Obviamente, o objetivo da poesia não é ser considerada literalmente,
por exemplo. Mas e quanto aos Evangelhos? Qual é o gênero deles? Os estudiosos chegaram ao
entendimento de que o gênero ao qual os Evangelhos se conformam mais de perto é o da biografia
da antiguidade. Isso é importante para o nosso tema, porque a biografia da Antiguidade não tem a
intenção de fornecer o relato cronológico da vida do herói do berço à sepultura. Ao contrário, a
biografia da Antiguidade relata casos particulares que servem para ilustrar as qualidades do caráter
do herói. Aquilo que seria considerado erro nas biografias modernas não será jamais contado
como erro nas biografias da Antiguidade. Para exemplificar, em certa altura da minha vida cristã
cheguei a crer que Jesus realmente purificou o templo duas vezes; uma vez perto do princípio do
seu ministério, conforme relata João, e outra perto do final do seu ministério, conforme lemos nos
evangelhos sinóticos. Mas o entendimento dos Evangelhos como biografias da Antiguidade nos
alivia de tal suposição porque o biógrafo da Antiguidade pode relatar incidentes de maneira não
cronológica. Somente um leitor antipatizante (e incompreensivo) consideraria o posicionamento
da purificação do templo no início do ministério de Jesus como um erro da parte de João.

Podemos ampliar a questão levando em conta a proposta de que os Evangelhos deveriam ser
entendidos como se fossem representações diferentes da tradição transmitida oralmente. O
destacado erudito em Novo Testamento, Jimmy Dunn, inspirado na obra de Ken Bailey sobre a
transmissão da tradição oral nas culturas do Oriente Médio, tem criticado com agudeza o que ele
denomina de “modelo estratigráfico” dos Evangelhos, que os enxerga como compostos de
diferentes camadas sobrepostas uma à outra, no topo de uma tradição primitiva. (vide James D. G.
Dunn, Jesus Remembered [Jesus rememorado] [Grand Rapids, Mich.: William B. Eerdmans,
2003]). No modelo estratigráfico, cada minúsculo desvio de uma camada anterior suscita
especulações sobre os motivos para a mudança, levando às vezes a hipóteses bastante fantasiosas
sobre a teologia de algum redator. O que importa é que a ideia central seja transmitida, às vezes
em algumas palavras-chave e atingindo o auge da narrativa com algum dito que é repetido
literalmente. Os detalhes circundantes, porém, são fluidos e incidentais ao relato.

Talvez o exemplo mais aproximado disso em nossa cultura ocidental não oral é quando se conta
uma anedota. É importante que se preservem corretamente a estrutura e a frase de efeito no
desfecho, mas o restante é incidental. Por exemplo, faz muitos anos que ouvi a seguinte piada:

“O que disse o calvinista quando caiu no poço do elevador?”


“Sei lá”
“Ele se levantou, sacudiu a poeira e disse: ‘Uau! Estou feliz que acabou!’”

Mais recentemente, porém, outra pessoa me contou o que era obviamente a mesma piada. Só que a
narrou assim:
“Sabe o que disse o calvinista quando caiu da escada?”
“Não.”
“Uau! Estou feliz que acabou!”

Atente para as diferenças quando se conta essa piada; mas observe como a ideia central e
especialmente a frase de efeito final são as mesmas. Bem, ao se comparar muitos dos relatos
acerca de Jesus nos Evangelhos e se identificar as palavras que têm em comum, encontra-se um
padrão como esse. Há variações nos detalhes secundários, mas muito frequentemente o dito
central é quase exatamente o mesmo. E lembre-se, isso ocorre numa cultura em que não tinham
sequer o recurso das aspas! (Foram acrescentadas na tradução para indicar o discurso indireto.
Para se ter uma ideia de quão difícil pode ser determinar com precisão em que ponto o discurso
direto termina, basta ler o relato de Paulo a respeito da sua discussão com Pedro em Gálatas 2, ou
o da entrevista com Nicodemos em João 3). Portanto, os relatos dos Evangelhos não devem ser
entendidos como evoluções de alguma tradição primitiva anterior, mas como representações
diferentes de um mesmo relato oral.

Ora, se Dunn estiver certo, isso acarreta implicações imensas para a doutrina do indivíduo sobre a
inerrância bíblica, porque significa que os evangelistas não pretendiam que seus relatos fossem
considerados como boletins de ocorrências, meticulosos nos mínimos detalhes. Aquilo que nós,
numa cultura não oral consideraríamos erro, jamais seria considerado assim por eles.

Fiquei impressionado com o comentário de que você sentiu “certa amargura contra Deus por
permitir que os escritores bíblicos tratem levianamente as palavras divinas e por não
proporcionarem uma clareza maior que traga mais certeza acerca daquilo que procede e não
procede dele”. Joshua, você está impondo a Deus aquilo que acha que deve ser padrão de
inerrância, em vez de ir às Escrituras para aprender delas o que significa inerrância. Os escritores
bíblicos não estão tratando com leviandade as palavras de Deus, uma vez que Deus jamais
pretendeu que as palavras dele fossem avaliadas do modo como você sugere. Uma Bíblia que
emprega uma rica variedade de gêneros, não deveria ser tratada como um livro chato e monótono.
Precisamos nos aproximar da Palavra de Deus com humildade e aprender dela aquilo que ela
tenciona ensinar e afirmar.

Leia meu artigo “‘Men Moved by the Holy Spirit Spoke from God’ (2 Peter 1.21): A Middle
Knowledge Perspective on Biblical Inspiration,” [Homens movidos pelo Espírito Santo falaram da
parte de Deus (2Pedro 1.21): visão do conhecimento médio sobre a inspiração bíblica] neste site,
na página Scholarly Articles: Omniscience [Artigos acadêmicos: onisciência], e veja uma proposta
sobre como entender a inspiração verbal, plenária e congruente da Escritura.

Assim, quando confrontados pelo que parece ser um erro na Escritura, devemos primeiro indagar
se não estamos impondo a ela um padrão de inerrância estranho ao gênero do texto e à intenção do
seu autor. Certa vez, lembro-me de Dr. Kantzer, ao salientar que muitos dos que o nomearam [para
a cátedra] ficariam chocados se soubessem do que ele estava inclinado a permitir à Escritura sem
chamar de erro. Ele entendia que temos de nos colocar dentro do horizonte dos autores originais
antes de questionar se eles erraram.

No entanto, em segundo lugar, suponhamos que você fez tudo isso e ainda está convencido de que
a Escritura não é inerrante. Será que isso significa que a divindade e a ressurreição de Cristo
descem pelo ralo? Não, de jeito nenhum, porque a premissa mais fraca nos dois silogismos acima
será a premissa (5), em vez da premissa (2). Conforme você reconhece, temos uma defesa bastante
vigorosa a favor da ressurreição de Jesus. Essa questão não depende de modo nenhum de a Bíblia
ser inerrante. Isso ficou muito claro para mim durante meus estudos de doutorado em Munique,
com Wolfhart Pannenberg. Pannenberg havia abalado a teologia alemã ao sustentar que seria
possível fazer uma defesa histórica sólida a favor da ressurreição de Jesus. Nada obstante, ele
acreditava também que os relatos de aparições da ressurreição no Evangelho eram tão lendários
que quase não têm nenhuma essência em si mesmos! Ele não dava crédito nem mesmo ao relato
marcano da descoberta do túmulo vazio. Antes, seu argumento fundamentava-se na antiga tradição
pré-paulina sobre as aparições, em 1Coríntios 15.3-5, e na consideração de que um movimento
baseado na ressurreição de um morto teria sido impossível em Jerusalém, em face de um túmulo
contendo seu cadáver.

Os evangélicos às vezes alegam sem sinceridade que os Evangelhos são historicamente confiáveis,
mesmo quando examinados pelos cânones da pesquisa histórica comum, mas pergunto-me se eles
acreditam mesmo nisso. Éabsolutamente verdade que é possível fazer uma defesa sólida e
convincente da ressurreição de Jesus, sem nenhuma suposição da inerrância dos Evangelhos.

Por contraste, a defesa da crença de Jesus de que as Escrituras do Antigo Testamento são
inerrantes é muito mais fraca. Acho que não há dúvida de que (5) é a premissa que teria de ser
descartada, caso se abandonasse a inerrância bíblica. Nesse caso, teríamos de repensar a doutrina
da inspiração, mas não precisamos deixar de crer em Deus ou em Jesus, como fez Bart Ehrman.
Parece-me que Ehrman, como cristão, tinha um sistema teológico de crenças defeituoso. Parece
que, no centro de sua teia de crenças teológicas, estava a inerrância bíblica; e tudo mais, como as
crenças na divindade de Cristo e na sua ressurreição, dependia dela. Uma vez que o centro se foi, a
teia inteira logo desmoronou. Mas quando se pensa a esse respeito, tal tipo de estrutura é
profundamente defeituosa. No centro da nossa teia de crenças, deve existir alguma crença
essencial, como a crença de que Deus existe, com a divindade e ressurreição de Cristo em algum
ponto perto do centro. A doutrina da inspiração da Escritura estará em algum lugar mais afastado e
a da inerrância ainda mais longe na direção da periferia, como um corolário da inspiração. Caso a
inerrância se vá, a teia sentirá a reverberação dessa perda, e ajustaremos a nossa doutrina da
inspiração apropriadamente, mas a teia não desmoronará porque a crença em Deus e em Cristo e
sua ressurreição, e assim por diante, não dependem da doutrina da inerrância bíblica.

Logo, em vez de ser corrosivo à sua fé, tenho a esperança de que os estudos bíblicos se tornem
para você, assim como foi para mim, uma fonte de novidade, ânimo e encorajamento.

William Lane Craig


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biblica#ixzz3QALDrHay

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