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52 Guia de Estudos de Filosofia da Educação

Unidade 2

FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO

O CONCEITO DE ESSÊNCIA HUMANA

Nessa unidade vamos trabalhar com o conceito de “essência


humana” ou “natureza humana”, que por sua vez baseia-se na
filosofia dos pensadores gregos, medievais e modernos. O que
os referidos pensadores entendem por “natureza humana”? Va-
mos tentar explicar de forma simples e completa.
Na nossa vida diária, a todo momento, ouvem-se frases como as
seguintes: “as mulheres são naturalmente frágeis e sensíveis”;
“homem não chora”; “fulana é uma mãe desnaturada”; “tem
mulher que dirige carro como homem!”.
Escuta-se que os negros são indolentes por natureza, que os po-
bres são naturalmente violentos, os judeus são naturalmente
avarentos, os árabes são naturalmente comerciantes espertos.
Essas frases pressupõem preconceitos terríveis e os “naturalizam”.
Pressupõem que existe uma natureza humana, a mesma em to-
dos os tempos e lugares, uma natureza imutável, intemporal e
eterna. Pressupõem, ainda, que existe diferença entre a natureza
dos homens e mulheres, pobres e ricos, negros, índios, árabes e
judeus. Haveria, assim, uma “essência humana universal e uma
essência humana diferenciada”.

Giuseppe Penone
Sentier de Charme,
1985-1986
Instalação no
Parque do Domaine
de Kerguhennec
Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação53

Dizer que alguma coisa é natural significa dizer que essa coisa
existe necessariamente e universalmente como efeito de uma cau-
sa necessária e universal. Essa coisa seria a natureza.
Significa dizer, portanto, que tal coisa não depende da ação, da
intenção ou do ordenamento dos seres humanos, mas de nossa
predisposição natural para fazer isso ou aquilo. O caráter
intemporal, universal, sem a participação da atividade dos ho-
mens, apresenta-se da mesma forma como se apresenta a lei da
gravitação universal - é da natureza, e nenhum homem com sua
atividade consegue modificá-la. Ou, como se apresenta a nature-
za da abelha que é de produzir mel sempre da mesma maneira e
a da roseira de produzir rosas.

Essa concepção, denominada de “essência humana” ou de “na-


tureza humana”, é utilizada como argumentação no Direito, nas
religiões e crenças. Tem um caráter universal, imutável, válido
para todos os tempos e lugares e, principalmente, não depende
da ação humana. Por isso é considerada “especulativa”. Essência
humana especulativa, porque não leva em consideração que os
homens fazem história - ou se fazem, fazem sempre da forma a
seguir as predisposições que a natureza nos deu - e que produ-
zem bens materiais e espirituais no intuito de que todos os ho-
mens possam viver e sobreviver. Nessa outra concepção, o ser
humano, por meio de sua atividade laborativa, transforma tudo
o que é natural em objetos úteis. É o que denominaremos de “es-
sência humana histórica”.

Importa dizer aqui que o conceito de essência humana especu-


lativa originou-se e se desenvolveu em épocas nas quais os ho-
mens ainda não conheciam as leis da natureza e ainda não a trans-
formavam em objetos úteis para os seres humanos. Esse concei-
to de “essência humana” deve ser reorganizado, isto é, deve ser
descentralizado de sua abstração especulativa. Em outros ter-
mos, é preciso recuperar a idéia de história, de processo, de ação,
a fim de caracterizar melhor nossa visão sobre educação.

Dessa forma, é preciso distinguir o pensamento que se guia pela


especulação daquele que se guia pelas ações históricas realizadas
pelo conjunto dos homens.

A idéia especulativa de “essência humana” significa que todas


as nossas qualidades nos foram concedidas na hora do nascimen-
to. A vida seria apenas um desenvolver do que já temos dentro de
nós. Seria uma semente que teria sido colocada em nós por Deus
ou pela natureza, ou ainda, por Deus por meio da natureza, e que
cresceria com a nossa colaboração durante os anos de nossa apren-
dizagem e de nossa vida. Essa concepção tem respaldo nos clás-
54 Guia de Estudos de Filosofia da Educação

Immanuel Kant ou sicos. Exemplifiquemos com o pensador Kant. Ele afirma que a
Emanuel Kant (Kö- natureza nos deu, ao nascermos, disposições naturais que serão
nigsberg, 22 de Abril desenvolvidas durante a nossa vida. Os clássicos que afirmam esse
de 1724 — Königs- posicionamento são considerados como idealistas ou como mate-
berg, 12 de Fevereiro rialistas. As duas correntes fixam uma realidade e não a conside-
de 1804) foi um filóso- ram em constante mudança porque não levam em conta que toda
fo alemão considera- a realidade que existe atualmente foi construída ou ordenada pelo
do como o último pensamento e pela atividade laborativa dos homens.
grande filósofo dos
princípios da Era Mo-
derna, indiscutivel- O pensamento, nessa perspectiva, considera que as idéias pro-
mente um dos seus vêm de determinadas e, especificamente, históricas atividades dos
pensadores mais in- homens. O mundo externo, o mundo ao redor de nós, é produto da
fluentes.
atividade humana; é resultado sócio-histórico, é objetivação huma-
na. O que seria a “essência humana” nessa concepção histórica?

“Essência humana”, no conceito histórico-social, é o conjunto das


relações sociais; é o conjunto das objetivações humanas; é o conjun-
to de tudo o que os homens realizaram; é o conjunto de tudo o que
a atividade dos homens produziu. Em suma, tudo o que os sujeitos
criaram, realizaram, em termos materiais ou espirituais.

Nesse posicionamento, a chamada “natureza humana” não é


uma qualidade que se possui; é, sim, uma qualidade que se adqui-
re mediante a atividade laborativa. É histórica. Expressa uma teo-
ria de reconstrução do mundo social dos homens e expressa a pró-
pria transformação dos indivíduos.

E sob o ponto de vista da educação? O que significa? Trata-se de


que os indivíduos, por meio de sua atividade, integram-se na ativi-
dade reestruturadora da sociedade e não se deixam adaptar à es-
trutura existente.

A atividade humana é atividade social e resulta em que a pró-


pria sociedade se torna produto da ação recíproca dos homens.
Assim, a “essência humana” é articulada a uma concepção prática,
concreta, do homem como produto das relações de produção, ten-
do por conseqüência um ser humano constituído como
estruturação prática em relação ao mundo.

Dessa forma, fundamenta-se a categoria “essência humana” na


atividade dos homens, nas qualidades do ser humano. Essas quali-
dades não devem ser representadas como traços essenciais, pró-
prios a cada indivíduo singular, que habitariam em cada indiví-
duo, traços homogêneos presentes em todo indivíduo e historica-
mente imutáveis. Entende-se por “ser humano” aqueles traços da
história humana que são perceptíveis porque são realizações dos
homens.

“Essência humana” não é apenas uma abstração especulativa,


mas é expressão dos traços determinantes da tendência geral do
processo histórico em seu conjunto. É o conjunto de tudo o que o
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gênero humano, por meio da atividade dos homens, criou. Tanto


as criações culturais quanto as criações materiais. Tanto as necessi-
dades do estômago quanto as da fantasia. Todas essas criações ou
objetivações são legíveis e perceptíveis no curso da história e apon-
tam para a tarefa dos homens, para a escolha que fizeram para
realizar tais objetivações.

A seguir você irá refletir um pouco mais sobre a categoria “ativi-


dade humana”. Faça a leitura do texto abaixo e as atividades no
final.

TEXTO 1: O HOMEM UNIVERSALIZA-SE POR MEIO DE SEU TRABALHO

É o trabalho que produz realidades, coisas, mercadorias, ima-


gens, palavras, metáforas, piadas, parábolas, ou então, a carteira da
sala, o tecido, a lâmpada e a bola da ginga brasileira. Tudo isso
passa a fazer parte do universo social no qual vive o indivíduo.
Também modifica o indivíduo.

Por que a atividade laborativa modifica a pessoa? Os indivíduos


se modificam na atividade humana, não só porque exteriorizam a
sua subjetividade e o seu espírito, e cristalizam a sua práxis em
realidades materiais e culturais, mas também porque essas realida-
des, produzidas pelo conjunto dos homens, repercutem sobre o
próprio indivíduo, desenvolvem-no, bloqueiam seus passos, abrem
espaços, transformam, causam discussões, animosidades, invejas
e alegrias.

Essa é a magia da vida. Os homens vêm ao mundo carentes.


Precisam trabalhar para viver e atender às suas necessidades e às
do gênero humano. Mas, o modo de trabalhar é tão fecundo, tão
rico, tão complexo, que eles acabam por criar o seu próprio mun-
do. Isso significa que o mundo que nós conhecemos é um mundo
que resultou da atividade coletiva e individual. É um mundo dos
objetos humanos.

Vincent van Gogh


As Botas, 1886
Óleo sobre tela
37.5 x 45.0 cm
56 Guia de Estudos de Filosofia da Educação

Nesse processo, o indivíduo desenvolve seus sentidos, os físicos


e os espirituais. Os sentidos clássicos, ver, olhar, sentir, etc., e os
outros sentidos que são a afetividade, as faculdades intelectuais,
etc. Esses desenvolvimentos dos sentidos humanos são desenvol-
vimentos resultantes do trabalho.

Podemos afirmar que, no processo do trabalho, o homem se


humaniza, se universaliza. Eu diria até que o homem é uma inven-
ção de si mesmo. Parece que estamos filosofando abstratamente!
Não é. É refletir o que acontece na realidade. À medida que vamos
trabalhando, criamos realidades que, em seu conjunto, configu-
ram um mundo de objetos humanos, feito à imagem e semelhan-
ça do homem. Não é blasfêmia afirmar que os homens são peque-
nos deuses a criar a cada dia um mundo à sua imagem e semelhan-
ça... Os homens criam o universo e este, por sua vez, possibilita
novas modificações.

Quem já conversou aberta e longamente com um operário cons-


tatou que as palavras, as metáforas, as expressões, são aquelas que
ele utiliza no trabalho ou que resultam do seu trabalho. Qual é a
conversa de um (a) professor (a)? O seu universo espiritual e cultu-
ral está profundamente arraigado nas condições de trabalho o que
demonstra a força, a elevadíssima determinação que o trabalho
tem na constituição das pessoas. Isso não implica que as pessoas se
reduzam a essa dimensão. Mas, determina sua subjetividade. O
homem, veja a mágica, é um sujeito que, por meio de sua ativida-
de, constrói objetos e produtos e estes têm muita subjetividade
dentro deles.

O trabalhar para criar objetos e o pensar como construir produ-


tos faz com que o sujeito não só pense sempre no objeto que cria
(ou), mas também faz com que o sujeito comece a moldar sua
subjetividade de acordo com o que tem que construir. Assim, a
secretária que me ajuda na limpeza da casa, às quatro horas da
tarde sai de seu trabalho e vai à sua igreja. Onde está sua subjetivi-
dade? Na minha casa que lhe dá o sustento de sua vida material ou
na casa onde se abastece com a vida espiritual? Qual é o verdadeiro
trabalho para ela? Para ela é o realizado no templo que ela ajuda a
manter limpo e enfeitado. É lá que ela faz a sua história; é lá que ela
se relaciona com as colegas; é lá que ela constrói sua vida. É lá que
ela vive e constrói sua subjetividade.

Se vocês prestarem bem atenção, percebem que a cultura


popular assim se forma e se constitui. A cultura não só se pro-
duz, mas também se reproduz nas subjetividades dos indiví-
duos. A cultura se fundamenta nas práticas sociais dos indiví-
duos.

Vamos ver isso com toda a calma. Vejam o vampiro. A lenda do


vampiro é uma lenda medieval; surge sintomaticamente no mo-
Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação57

mento em que a Europa se assusta com o fato de que a máquina se


desenvolve com toda a força para tirar o emprego dos trabalhado-
res. Não é que não tivesse havido vampiros na mente das pessoas
antes da máquina. Mas, o vampiro surge na literatura de forma
fantástica à época em que a máquina suga não só o emprego, mas
também o sangue do trabalhador empregado. Pode ser que a má-
quina seja um vampiro... A coisa não é tão simples, mas é válido
pensar nisso. O Drácula aparece no momento da história da indus-
trialização européia.

J. B. S. Chardin
Benedicite
Óleo sobre tela.

ATIVIDADES

1. Depois da leitura realizada, procure relacionar os textos abai-


xo e debater com os seus colegas:
• Texto 1: “A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e
unilaterais que um objeto só é nosso quando o temos ou quando
é imediatamente possuído, bebido. Vestido, habitado, em resu-
mo, utilizado por nós”. (Os Manuscritos – Karl Marx)
• Texto 2: Apropriar-se não é comprar. Não é ter. A melhor ma-
neira de gostar, provavelmente, não é ter. E ter é, talvez, a pior
maneira de gostar.
2. Faça uma pesquisa sobre o tema a concepção histórico-social
e relacione-o com a humanização do ser humano. Apresente oral-
mente para seus colegas.

O segundo texto, que você irá ler trata do tema “atividade


humana”. Após a leitura realize as atividades.
58 Guia de Estudos de Filosofia da Educação

TEXTO 2: A DEFORMAÇÃO CAUSADA PELO TRABALHO

A deformação do indivíduo no processo do trabalho não se res-


tringe apenas à sua constituição física. No processo de produção, o
capital conquistou o comando sobre o trabalho, sobre a força do
trabalho em funcionamento, ou seja, sobre o trabalhador. O capi-
tal personificado, ou seja, o capitalista, cuida, com razão, que o
trabalhador realize sua tarefa com zelo e com grau adequado de
intensidade. O capital transforma-se, além disso, numa relação
coercitiva que força a classe trabalhadora a trabalhar mais do que
exige o círculo limitado das suas necessidades.

O capital torna-se forte no capitalismo. Não é mais o trabalha-


dor que emprega os meios de produção - não é mais o trabalhador
que utiliza a sua enxada, a sua pá, a sua junta de bois e o seu arado,
para cultivar sua terra -, mas são os meios de produção que empre-
gam o trabalhador. Em vez de os instrumentos de trabalho serem
utilizados (consumidos) pelo trabalhador, são os meios de produ-
ção - as máquinas - que consomem o operário. Os instrumentos
do trabalho e a maquinaria - vejam bem que forte reflexão está
aqui - passam a escravizar o trabalhador.

Vejam vocês que as máquinas são instrumentos de trabalho que


foram criadas pela inteligência humana, pelo conhecimento e pela
destreza e habilidade do trabalhador. Uma vez postas no trabalho,
elas começam a dar o ritmo do trabalho dos homens, isto é, come-
çam a mandar nos trabalhadores. Elas são produtos dos homens,
produzidos à imagem e semelhança dos homens. Isso significa que
as máquinas contêm trabalho humano dentro delas, em seu “cora-
ção” e em sua “alma”. Inventam, agora, de voltar-se contra o seu
criador e de dominá-lo! Todo e qualquer instrumento de trabalho
contém trabalho pretérito, trabalho passado - também chamado
“trabalho morto”. E esse morto começa a dominar os vivos! Essa é
a alienação do trabalhador.

– O que é, então, alienação?

Daumier
A Lavadeira
Óleo sobre tela
Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação59

A alienação do trabalho é a que o trabalhador não é mais dono


de seus meios de produção, da enxada, da pá, da carroça, da terra.
Está alienado de tudo isso. Vai à fábrica revistado na entrada para
nada levar para dentro!

A alienação do produto significa que tudo o que ele e seus cole-


gas criaram com o trabalho não é deles; é de quem não trabalhou.
Vamos esclarecer melhor: o operário que ajudou a construir um
carro não é dono do fusquinha que ele produziu; o dono são os
outros que não trabalharam. Não se quer dizer aqui que o capita-
lista não trabalha. Trabalha e muito. Mas, ele não trabalhou para
fabricar a mercadoria.

A alienação geral é aquela que se expressa da seguinte maneira:


todos os bens materiais e espirituais, do estômago e da fantasia,
que o gênero humano criou por meio de sua atividade laborativa,
não são acessíveis à grande parte desse mesmo gênero humano.
Com um adendo: não faltam mercadorias, ou alimentação; tem
bastante e para todos. As lojas e os supermercados estão cheios. Só
tem uma coisa com que não se brinca: quem quiser ter os produ-
tos tem que comprá-los!

Nas condições de produção da sociedade burguesa, o processo


de trabalho tende não ao universal, mas a implicar na alienação no
sentido de subordinação do criador à criatura. O trabalhador cria
objetos, realidades, e essas realidades são organizadas de tal modo
pela propriedade privada que os indivíduos ficam subordinados a
essa mesma realidade que eles próprios criaram. Há uma canção
brasileira que diz da construção de escola, de edifício e de igreja,
mas o seu filho não entra nessa construção que o pai está realizan-
do com seu trabalho. O operário constrói o edifício de apartamen-
tos e volta à maloca... Isso não é retórica, não é sub-literatura... É o
cotidiano. O operário fabrica o caminhão ou então processa o ar-
roz e o feijão e vai se lascar na sua cozinha com carências das mais
incríveis.

Os meios de produção sugam como fermento o operário, no


sentido de uma alienação específica do trabalhador na fábrica e no
sentido geral: tanto na separação do produtor de seu produto quanto
do não acesso aos bens por parte da grande maioria do gênero
humano. A alienação não é somente econômica, é também cultu-
ral e política.

O fato de que o trabalhador vai a seu sindicato é reflexo do que


está sofrendo no processo de trabalho. Dos bens culturais ele está
praticamente numa alienação total.

O trabalhador às vezes é indivíduo, às vezes é classe; mas


sempre é a personificação da força do trabalho. O burguês é um
indivíduo que aparece na televisão, nas obras sociais e nas suas
60 Guia de Estudos de Filosofia da Educação

lutas pela diminuição de impostos e perdão da dívida. Isso é, é


indivíduo e é a personificação do capital; quando fala, fala de seus
interesses, fala do capital. Em síntese, tanto o trabalhador quanto o
capitalista são indivíduos, mas também indivíduos coletivos.

O trabalho é base para toda a vida social. Nem sempre o traba-


lho foi muito valorizado.
Fausto é o protagonis-
ta de uma popular
lenda alemã de um Na Idade Média não se trabalhava muito. Era bom viver na Ida-
pacto com o demô- de Média... Trabalhava-se o mínimo. Apenas para sobreviver. Por
nio, baseada no mé- isso havia muito feriado, procissão, festa, bênçãos e cantorias. Aí
dico, mágico e alqui- veio a burguesia com uma frase lapidar: o trabalho dignifica o ho-
mista alemão Dr. mem. Ou como se dizia na minha época: o trabalho enobrece ... o
Johannes Georg nobre!
Faust (1480-1540). O
nome Fausto tem
sido usado como base Há, também, a questão cultural na concepção do trabalho.
de diversos roman- Quem nunca ouviu dizer que nós do sul é que sustentamos o
ces de ficção, o mais povo que vive ao norte... Que o carioca não trabalha, só faz fes-
famoso deles do au- ta... E como vive o carioca, se ele não trabalha? Há um tremendo
tor Goethe, produzi- discurso sobre a preguiça do brasileiro que vocês conhecem. E a
do em duas partes, gente lê os intelectuais que queriam, à época da industrialização
tendo sido escrito e do país, fazer o povo trabalhar. Eles faziam um falso discurso in-
reescrito ao longo de
telectual que a gente lê pensando que é literatura da fina e na
quase sessenta anos.
verdade é um processo de recriação social e cultural do trabalho.
A primeira parte -
mais famosa - foi
É o Fausto, de Goethe, a sacudir o mundo através do trabalho ...
publicada em 1806 e dos outros! Até 1888 era coisa de escravo. A partir desse momen-
a segunda, em 1832 - to, todos têm que trabalhar a fim de que todos sejam dignifica-
às vésperas da mor- dos e enobrecidos pelo trabalho. Vejam o imigrante europeu:
te do autor. como trabalha e progride! É a idéia tenebrosa que passa no final
Considerado símbolo do século passado e início deste entre a elite brasileira, a de que o
cultural da moderni-
dade, Fausto é um
poema de propor-
ções épicas que rela-
ta a tragédia do Dr.
Fausto, homem das
ciências que, desilu-
dido com o conheci-
mento de seu tempo,
faz um pacto com o
demônio Mefistó-
feles, que lhe enche
com a energia satâ-
nica insufladora da
paixão pela técnica e
pelo progresso.

Vincent Van Gogh


Menino atando
Feixes, 1890
Óleo sobre tela
44.0 x 32.5 cm
Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação61

imigrante é que trabalha e tem organização. Julga-se uma reali-


dade sem considerar a história dos povos.

Com o advento do capitalismo, houve uma redefinição, uma


recriação da “natureza humana”. As pessoas passaram a comer se-
gundo as horas demarcadas pela instituição do trabalho; muitos
passaram a dormir de dia e trabalhar à noite; passaram a usar reló-
gios; passaram a ser mais racionais por causa da racionalidade da
máquina e das organizações. Definitivamente, a vida mudou. Os
feriados religiosos diminuíram pela metade. A vida foi organizada
de uma outra forma. As determinações “naturais” foram transfor-
madas pelas exigências do processo produtivo em larga escala: no
mundo há arsenais de mercadorias... Essa é a primeira frase de
quem se debruçou durante 16 anos nos estudos para descobrir
como funciona o capitalismo.

Por isso, há uma vasta produção de psicólogos sobre esse assun-


to. Há muita literatura, cinema, teatro, romance sobre a nova orga-
nização da vida social. Apareceram o stress e as alergias... A nova
organização do trabalho faz com que o indivíduo tenha uma “se-
gunda natureza”. Isso é, o ser humano não é mais conforme a na-
tureza humana: agora está sendo recriado. A natureza primordial
foi perdida e uma segunda natureza está se impondo nos indivídu-
os. Vejam que idéia fecunda.

O indivíduo é constituído na trama das relações sociais de tal


forma que ele é a sociedade como um todo. No indivíduo está o
particular e o geral. Não é verdade que no indivíduo esteja o
particular e na sociedade o geral. O indivíduo é um feixe de uni-
versais. A reflexão sobre o indivíduo deve apanhar sempre os
universais constitutivos do particular.

Vincent van Gogh


Menina atando
Feixes, 1889
Óleo sobre linho e cartão
43.0 x 33.0 cm
62 Guia de Estudos de Filosofia da Educação

Os sentidos humanos sempre ficaram determinados pela


apropriação privada das coisas. Assim, há uma mistura, uma
mescla, entre o possuir e o sentir. Muitos pensam que possuir é
sentir... ou, que sentir é possuir privativamente. É um desastre
fantástico da cultura e dos indivíduos! A pior forma de gostar
é ter!

Podemos fazer uma caricatura da classe média que vai para a


“Oropa, França e Baía”. Vai à torre Eiffel, à Estátua da Liberda-
de, traz uma fotografia ou manda um cartão. Ou traz um
berimbau da Bahia! Confunde a fotografia ou o objeto com o
sentimento; a propriedade com o gostar. Quando se encontra
uma pessoa viajada e a gente pergunta como foi a viagem, ela
desembrulha montes de fotografias, e, não consegue explicar
muito achando que está tudo ali... O físico (a fotografia e o
berimbau) fala em nome do sentimento. O berimbau está a di-
zer a todo mundo que o indivíduo está vindo da Bahia e que
isso basta por si! O exercício da sensibilidade perdeu-se: “A pro-
priedade privada tornou-nos tão estúpidos e unilaterais que um
objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como
capital ou quando é imediatamente possuído, bebido, vestido,
habitado, em resumo, utilizado por nós” (Os Manuscritos – Karl
Marx).

Veja o poema de “Os Manuscritos”: “o olho fez-se um olho hu-


mano quando seu objeto se tornou um objeto social, humano, vin-
do do homem para o homem”.
Tudo o que existe no mundo burguês é demarcado definitiva-
mente. A propriedade privada demarca os cheiros, as cores, a mú-
sica, os sons, os sentidos. Tudo o que existe no mundo burguês
está fortemente marcado pelo princípio da propriedade: os senti-
dos humanos, os sentidos físicos e espirituais.

Os Manuscritos provavelmente estão querendo dizer que po-


derá chegar um dia em que, talvez, consigamos ver, ouvir, sentir
outros sons, outras cores, outros gestos que nunca ouvimos nem
vimos. Em outras palavras, este mundo é muito mais rico do que
parece ou do que aparece a nós. Nós estamos, no entanto, bloque-

Vincent van Gogh


A Sesta
Óleo sobre tela
Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação63

ados, incapacitados de perceber a riqueza, o caleidoscópio que é o


mundo, à medida que a propriedade é uma fortíssima determina-
ção que induz os sentidos físicos e espirituais a pensarem que o Karl Heinrich Marx
mundo é assim mesmo e nunca vai mudar. (1818 - 1883) foi funda-
dor de uma das gran-
des teorias que iria
influenciar os sécu-
ATIVIDADE los dezenove e vinte.
Intelectual alemão,
economista, sendo
1. Faça uma pesquisa sobre as condições de trabalho nas indús- considerado um dos
trias e empresas dos nos nossos dias, isso posto no contexto bra- fundadores da Socio-
logia e militante da
sileiro. Apresente para seus colegas num debate.
Primeira e Segunda
(não está faltando
algo aqui?) Internaci-
onal. É possível en-
O tema “trabalho” ou “atividade laborativa dos homens” é es- contrar a influência
clarecido com mais um texto. No entanto, antes da leitura do de Marx em várias
texto a seguir, você deverá fazer a leitura do capítulo denomina- outras áreas, tais
do “História” do livro “A Ideologia Alemã”. como: Filosofia e His-
tória. Teve participa-
ção como intelectual
e como revolucioná-
rio no movimento
operário, escrevendo
TEXTO 3: OS ATOS HISTÓRICOS o Manifesto Comu-
Friedrich Engels foi
nista.
um filósofo alemão
Os autores da obra Ideologia Alemã – Karl Marx e Engels - que junto com Karl
Marx fundou o cha-
tratam da constituição da História. Ao explicitarem os momentos
mado socialismo cien-
fundamentais da constituição da História, estão falando dos mo-
tífico ou marxismo.
mentos fundamentais da constituição da sociedade e, ao mesmo Ele foi co-autor de
tempo, dos momentos fundamentais dos indivíduos. O primeiro diversas obras com
ato histórico, dizem eles, é a produção dos meios que permitem a Marx, sendo que a
satisfação das necessidades. A produção da vida material é uma mais conhecida
Manifesto éo
Comunista.
atividade básica e deve ser cumprida cotidianamente: todo dia de- Também ajudou a
vemos recomeçar nossa vida; diuturnamente, o ser humano preci- publicar, após a mor-
sa trabalhar para comer, beber, dormir; a cada dia, nesse processo te de Marx, os dois
de comer, beber, trabalhar, a pessoa está recriando a sua “nature- últimos volumes de O
za”; cada dia está criando sua historicidade. Capital, principal obra
de seu amigo e co-
laborador. Grande
companheiro de Karl
O indivíduo se constitui na dialética das relações sociais, na tra-
Marx, escreveu livros
ma das relações com os outros homens. A personificação do capital de profunda análise
se expressa no burguês. Ele fala, reflete, expõe, argumenta, dá a social. Entre dezem-
culpa ao governo, quer isenção de impostos e das dívidas, enfim, bro de 1847 a janeiro
faz tudo isso como burguês. O operário é a personificação da força de 1848, junto com
do trabalho. As pessoas têm jeito de operário, de camponês. Há as Marx, escreve o Ma-
deformações da profissão: quem já viu um camponês andando nifesto Comunista. Sem
numa cidade e prestou atenção percebeu que ele anda diferente dúvida nenhuma, En-
do que o operário. O balanço do corpo, das pernas, o jeito de gin- gels foi um filósofo
gar as mãos e o corpo. É outra coisa. Isso tem a ver com o trabalho, como poucos: soube
com as condições de trabalho; a vida é diferente. Quem se assusta analisar a sociedade
de forma muito efici-
ente, influenciando
diversos autores mar-
xistas.
64 Guia de Estudos de Filosofia da Educação

Candido Torquato com o fato de que Portinari fez enormes as mãos dos operários e
Portinari (1903 - 1962) grandes os pés dos camponeses, esquece-se de que é assim mes-
foi um pintor brasi- mo. Quem já apertou a mão de um camponês deve ter se assusta-
leiro. Portinari pin- do com a determinação do trabalho na constituição física da
tou quase cinco mil pessoa.
obras, de pequenos
esboços a gigantes-
cos murais. Foi o pin-
tor brasileiro a alcan-
çar maior projeção
internacional.

Cândido Portinari
O Café, 1934
Óleo sobre tela

Todas as pessoas têm necessidades básicas para poderem vi-


ver neste mundo. Para que suas necessidades sejam atendidas,
os indivíduos dependem do processo de trabalho. Para atingir
esse fim, eles organizam a sua atividade de alguma maneira na
sua mente. Utilizam alguma ciência, alguma experiência, algu-
ma ideologia, alguma religião, para se organizarem na sua ativi-
dade. Para isso têm opinião própria, têm convicções, têm pro-
pósitos.

Se os homens têm convicções e opiniões diferentes, signifi-


ca que possuem valores e valores diversificados; que possuem
idéias, políticas de ação e metas. O primeiro parágrafo da “A
Ideologia Alemã” já nos dá uma dica: à base de tudo está na
atividade humana, o trabalho, seja ele intelectual, cultural ou
físico.

Podemos afirmar que a pessoa humana é trabalho. É um ser


da natureza que se transforma em ser humano pelo trabalho.
Gostaria que todos prestassem atenção a esse pensamento: “o
homem é um ser natural, um ser biológico, que, através do
trabalho, se transforma em homem, em ser histórico, em ser
social”.

No mesmo processo de trabalhar para atender às suas neces-


sidades reais e imaginárias - no mesmo processo de trabalhar
para comer, beber, vestir-se, abrigar-se, reproduzir-se e, claro,
atender às mais diversas necessidades da fantasia e do estômago
- os indivíduos se tornam humanos, se constituem como seres
sociais.
Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação65

Para ressaltar bem que a pessoa se constitui como pessoa huma-


na enquanto trabalha, podemos utilizar o que um autor clássico
chamou de “metabolismo entre a natureza e o homem”. Isso signi-
fica que o homem, enquanto transforma a natureza em produtos,
em coisas úteis para o estômago e para a fantasia, também trans-
forma a si. Dessa forma, prezado (a) acadêmico (a), você já chegou
à conclusão de que o homem se torna humano por meio do traba-
lho. Todo ser humano é trabalho.

Se o homem é trabalho, podemos conhecê-lo entendendo como


ele trabalha. Configuramos o trabalho no seu sentido geral e tam-
bém específico. No sentido particular, é o trabalho na fazenda, na
loja, na fábrica, na escola, na igreja, na casa, etc. São trabalhos es-
pecíficos que as pessoas desenvolvem. Trabalhos que geralmente
têm a ver com a sobrevivência da pessoa no sentido estrito: comer,
vestir-se, abrigar-se, etc. Todos trabalham, mesmo aqueles que, num
mundo de parasitas, desenvolvem atividades no baralho, na sinu-
ca, no clube, no boteco.

No sentido geral, trabalho significa o simples existir. Existir é


trabalho. Todos pensam, refletem, levam seus problemas para a
comadre e para a pessoa que lê cartas assegurando um bom futu-
ro, ou para o reverendo aconselhar. Todos têm fantasias das mais
variadas, das mais bonitas e até das mais esquisitas. Tudo isso é
trabalho. Mas, o importante não é o trabalho geral; o importante
é o trabalho específico, aquele que se realiza na produção, na so-
brevivência. Este é o que organiza mais a sociedade no seu funda-
mento.

O importante é guardar o que já acentuamos: o indivíduo se


constitui no processo de trabalho. E esse processo é sempre mate-
rial e espiritual.

ATIVIDADE

1. Faça um texto apresentando sua posição sobre a constituição


do indivíduo no processo de trabalho.

A educação é entendida como a que fornece as condições para


que todas as crianças tenham acesso aos bens culturais que a
humanidade já produziu. Nossas crianças têm acesso aos con-
teúdos que os colégios ricos apresentam a seus alunos? Ou:
nossas crianças ficam alienadas desse conteúdo mais rico e
com-pleto?
Reflita sobre essas indagações e faça a leitura do texto a seguir:
66 Guia de Estudos de Filosofia da Educação

TEXTO 4: O CARÁTER DE FETICHE DA MERCADORIA

Quando se afirma que tudo é mercadoria na sociedade capita-


lista, deve-se acrescentar que ela, quando de sua troca com outra
mercadoria ou com dinheiro, adquire um caráter fantasmagórico,
supersticioso. A questão explica-se no fato de que a troca sempre
se refere à circulação da mercadoria; nunca à produção da merca-
doria.

Em outros termos, o caráter de fetiche provém do fato de que o


capitalista não se refere à produção dos objetos, mas somente aos
produtos acabados, realizados, trabalhados, prontos.

Cildo Meireles
Zero Cruzeiro/
Zero Centavos
1974-1978

A mercadoria, a que vai ser trocada por outra ou por dinheiro,


não é considerada como produto do trabalho humano, mas como
uma realidade independente dos homens, com caráter de quem
manda nos homens.

O termo fetiche provém dos povos primitivos que, não conse-


guindo entender as forças da natureza, atribuíam poder próprio a
elas, um poder que atemorizava os homens porque dominava os
espíritos daquela época. É aplicado à sociedade produtora de mer-
cadorias; nesta, as mercadorias produzidas pelos homens adqui-
rem capacidades e poderes estranhos aos homens. Os produtos
têm caráter fetichista no sentido de que o seu segredo - a sua pro-
dução por homens concretos - continua não aparecendo; aparece
somente o produto pronto e bonito na vitrina.

O caráter fetichista provém do fato de que os produtos do tra-


balho humano não aparecem como resultados da atividade huma-
na, mas parecem adquirir uma existência, uma vida autônoma (au-
tônoma em relação aos seus produtores) e um poder sobre os seres
Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação67

humanos, no sentido de que a mercadoria impera no mundo dos


negócios, impondo seu preço e escondendo a destreza e a habilida-
de do trabalhador, o conhecimento do operário, o trabalho pago e
não pago que estão dentro dela.

O dinheiro, que rege a compra e a venda dos produtos, dissi-


mula a relação social entre produtores. O dinheiro encobre a rela-
ção social do trabalho embutido nos produtos. A troca de merca-
dorias, nessa perspectiva, fica sendo apenas uma relação de coisas.
O trabalho dos homens, embutido nas mercadorias, não aparece
nessa relação.

Ampliando essa compreensão, podemos dizer que o caráter fe-


tichista da mercadoria consiste em que o trabalho despendido na
produção de coisas já não aparece como valor desses produtos. É o
que acima apontamos: o caráter fetichista ocorre quando se consi-
dera a mercadoria apenas na sua circulação e não na sua produção.

Damos mais um passo para compreender o fetiche: quando não


aparece a produção (o trabalho dos homens), também não aparece
a história da mercadoria. Mas, sabemos que a mercadoria tem his-
tória. Qualquer mercadoria. Veja, por exemplo, a mesa à qual você
está sentado. Ela é uma mercadoria, vendida e comprada pelo pre-
ço do dia. E como mercadoria, ela foi produzida por meio do tra-
balho dos homens; logo, ela tem uma história que vai desde a der-
rubada da árvore até a sua confecção final.

Na sociedade capitalista, o caráter fetichista ocorre quando a


mesa aparece na vitrina pronta para ser comprada, encobrindo que
ela é produto social. Esconde-se a realidade do trabalho que a pro-
duziu.

Parece compreensível que o capitalista não queira mostrar a his-


tória da mercadoria porque ali apareceria o suor dos homens, as
qualidades dos operários, o trabalho pago em forma de salário, a
parte não paga do trabalho, a destreza do trabalhador, a tecnologia
nela embutida, etc. Todas essas determinações fazem parte
constitutiva da mesa; não são visíveis, mas estão, por assim dizer,
dentro da mesa. O passado da mercadoria não é visível. Por isso
alguém escreveu: “o passado oprime como um pesadelo o cérebro
dos vivos...”

Ligado ao entendimento correto do fetiche está o conceito de


alienação.

A alienação do trabalho é entendida como aquela atividade que


é realizada com os instrumentos que pertencem ao empresário,
com a matéria-prima que não é da propriedade do trabalhador e
com as máquinas e a oficina que não pertencem a ele. Por aliena-
68 Guia de Estudos de Filosofia da Educação

ção do produto entende-se que o produto do trabalho não é mais


do trabalhador que a realizou, mas daquele que não o realizou.
Trata-se da configuração que separa o trabalhador do produto. A
alienação geral pode ser entendida como a discrepância entre a
vida dos trabalhadores e a riqueza acumulada historicamente pelo
conjunto dos trabalhadores. O indivíduo contribui para a constru-
ção dos objetos, mas tem somente pequeno acesso a esse bem.

Importa acrescentar aqui que é assim que funciona a sociedade


capitalista. Não se trata, então, de criticar este ou aquele capitalista.
Sem essa forma, o capitalismo não existe.

Como seria a desfetichização da mercadoria? É impossível que


isso ocorra na sociedade burguesa. Todavia, se de repente hou-
vesse uma desfetichização, ficaríamos todos loucos, de tão acos-
tumados que estamos ao fetiche dos produtos. Imagine a mesa e
todos os objetos e pessoas a contar a sua história...

Pode-se entabular uma conversa com a mercadoria e deixar que


ela fale. Ela diria: Olha, por mais que o capital queira esconder
meu passado, até que minha história é interessante. Para começar,
enquanto eu era produzida, constituída, criada, à imagem e seme-
lhança dos planos dos homens, também estes se modificaram, se
transformaram!

A consciência social, formada num mundo de mercadorias, não


se liga ao passado da mercadoria; só se preocupa com a mercadoria
pronta. Aí constrói sistemas de marketing para tentar vendê-la. Não
gosta de vasculhar a vida dos produtos de mostrar a atividade
laborativa e o suor dos trabalhadores.

Vocês já viram propaganda de produtos na TV que se refere a


homens suados no labor da criação da mercadoria? É difícil. Apa-
recem esportistas suando, (suor artificial de spray) sim, mas por-
que precisam vender produtos que repõem tais e tais forças... O
passado é trazido à baila somente quando favorece o presente do
capital.

Não podemos deixar de mencionar o seguinte: apesar da aliena-


ção e apesar do fetiche, o desenvolvimento de produção sempre
maior de bens materiais e culturais é altamente civilizatório e faz
os homens sempre mais universais. Por quê? Porque quanto mais
bens materiais e espirituais existirem, tanto maior o âmbito acessí-
vel para os indivíduos se apropriarem, degustarem, conhecerem...
Nessa perspectiva, o acesso aos jornais, à televisão, ao cinema, ao
teatro, não podem ser considerados como obra do demônio; ao
contrário, são as formas - joio misturado ao trigo - com que o ho-
mem pode apropriar-se do bens materiais e espirituais que o con-
junto dos homens construiu.
Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação69

No produto do trabalho humano o objeto é trabalhado e o mun-


do circundante altera-se enquanto também se modificam os sujei-
tos. O ambiente natural cede lugar a um contorno cultural, resul-
tado da atividade dos homens. Nessa atividade prática constroem-
se também as forças essenciais humanas, como capacidades, habi-
lidades e destrezas.

Robert Rauschenberg
Coca-Cola Plan, 1958
Pintura combinada
67.9 x 64.1 x 12.1 cm

Na apropriação das coisas, o homem inclui, por meio de sua


atividade, âmbitos cada vez maiores e mais amplos de novas
potencialidades essenciais humanas, de novas propriedades e ca-
pacidades dos indivíduos e de novos conhecimentos. E isso signifi-
ca que o homem inclui uma capacidade de transformar em leis,
em princípios de sua atividade, um âmbito cada vez mais amplo
de conexões e de regularidades naturais. São os objetos produzi-
dos pelos homens - e não a natureza - que originam as novas ne-
cessidades coletivas. O objeto que serve à satisfação das necessida-
des humanas não é o objeto imediatamente natural, mas o objeto
alterado pela atividade humana: um objeto histórico.

ATIVIDADE

1. Na sua opinião, quais são os produtos que exercem fetiche


sobre os jovens na atualidade? Liste os produtos e justifique sua
escolha. Faça uma discussão com seus colegas sobre as repostas
que vocês encontraram.

BENEDITO: UM HOMEM DA CONSTRUÇÃO


Nessa última parte da unidade você lerá o poema Benedito e
construirá um texto como foco na prática educativa que aconte-
ce nas escolas de Educação Básica, isto é, com base nas leituras
dos textos anteriores.
70 Guia de Estudos de Filosofia da Educação

BENEDITO

Maria de Lourdes Barreto de Oliveira,


do livro “Projeto Escola Zé Pião”

Meu nome é Benedito.


Sou do interior.
Moro na capital.

No interior, o trabalho era pouco.


Às vezes, trabalhava na cana.
Às vezes, trabalhava de servente.
Às vezes, fazia bico brocando mato.
Eu não tinha terra.

Vim para a capital.


Em João Pessoa, levanto edifícios,
levanto casas,
levanto pontes.
A minha mão faz a cidade maior.

Trabalho de segunda a sexta.


Às vezes, preciso trabalhar até nos sábados e nos feriados.
Todo dia pego bem cedo no trabalho,
largo ao entardecer.
Às vezes, faço serão.
Durmo moído de cansaço.

De noite, jogo conversa fora.


Um companheiro toca violão.
Outro conta um caso.
Outro conta os tostões.
Bate a saudade da minha casa.
Bate a saudade de minha menina.
Bate a saudade até do meu lugar.

O clac-clac do dominó anima a noite.


O jogo de palito também.
Miro sai para namorar.
Gino e Guido vão tomar uma cachacinha.
Bate a saudade da minha casa.
Bate a saudade da minha menina.
Bate a saudade até do meu lugar.

Trabalho por produção.


A obra pede pressa.
Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação 71

A massa seca rápido e fez a minha mão correr.


Com a colher, assento tijolo sobre tijolo.
O mestre reclama: - Olha o tijolo dançando, homem!
Calado, conserto o que fiz.
A parede vai crescendo e me faz pequeno.
Miro prepara o traço.
Beto reboca a parede.
A massa corta as mãos e os pés da gente.
Um companheiro, de rosto suado, assobia.
Outro grita lá de cima: - E o café.
Meu companheiro pinta a parede.
A tinta na parede é bonita de dar gosto!
A tinta faz beleza e me deixa tonto.

A tinta esconde a massa.


A massa esconde o tijolo.
O tijolo ocupa o vazio.
A massa, a tinta, o tijolo escondem a minha mão.
Escondem a mão do meu companheiro pintor.
Escondem a mão do meu companheiro pedreiro.
O edifício aparece naquela rua.
Alto, bonito, aprumado...

Não se escuta mais o zum-zum da construção.


Os companheiros já se espalharam.
Junto as minhas ferramentas.
Saio dali.
Vou começar tudo de novo.

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