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ÁGORA 1

HOMO LOQVENS
FLOS SANCTORVM - FLOS MVLIERIS

ANTONIVS A. MINGHETTI1
UFSC
anaumin@hotmail.com

RESUMO
O presente artigo apresenta a língua e a linguagem num fundo de abstração, como
condições possíveis de manifestação da fala que as absorveu para fazer-se passar a
condição de ato. O homem é o único animal falante, não como uma propriedade inata,
mas num desenvolvimento cultural incessante donde derivou uma linguagem a cada
cultura. A língua é assim um sistema convencional da fala numa determinada
comunidade humana na qual seu exercício ganha valores sob a forma de códigos
institucionalizados em um vocabulário e uma gramática específica. A decodificação
desse sistema passa por estudos sobre a Desconstrução num processo onde o
misticismo se confunde com o realismo, oferecendo às Teorias da Tradução um campo
fértil para suas pesquisas no estudo da lingüística.

UNITERMOS
Palavras Chaves: Desconstrução, fala, Mulher-flor, Derrida.
ABSTRACT
The present article presents the mother tongue and the language in an abstraction
background, as possible conditions of speech manifestation that has absorbed them in
order for them do acquire the status of act. The man is the only speaking animal, not as
an innate property, but in an incessant cultural development from which each
language derived to each culture. The mother tongue is thus like a conventional system
of the speech in a certain human community in which its exercise acquires
values which take the shape of institutionalized coded within a vocabulary and a
specific grammar. The decoding of that system goes through studies
on Deconstructions, in a process where mysticism blends in with realism, offering the
Translation Theories a fertile field for their researches in linguistics studies.

UNITERMOS
Palavras Chaves: Deconstruction, speech, Flower’s Woman, Derrida.

_______________________________
(1) Prof. de Estética, Crítica da Arte, Tradução Inter-semiótica, Teorias da Arte Contemporânea
e Música: UnC - Universidade do Contestado, Campus Caçador e da FURB - Universidade
Regional de Blumenau e da UNOESC Universidade do Oeste Catarinense.Este artigo é parte
da Dissertação: DE HOMINIS DIGNITATE, Oratio Ioannis Pici Mirandulensis Concordiae
Comitis, Tradução Anotada e Comentada, produzida pelo prof. Antonio A. Minghetti,
apresentada ao curso de Pós-Graduação em Teoria, Crítica e história da Tradução da
Universidade Federal de Santa Catarina como parte dos requisitos para obtenção do título de
Mestre em Teorias da Tradução, sob orientação Prof. Dr. Mauri Furlan.

INTRODUÇÃO:
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O título do artigo faz menção ao homo loquens, homem que fala e que domina
uma linguagem, porém ao analisar o filme “A Maça”, colocamos a fala na boca da
mulher utilizando metaforicamente o termo FLOS MULIERIS, face à citação do alcorão
abordada no filme, o qual vê a mulher como uma flor.. Assim, a consideramos como “A
Flor dos Santos”, ou seja, imaginamos a possibilidade de incluí-la no livro que relata
a vida dos santos, o verdadeiro Sanctum sanctorum (Livro do período medieval que
relatava os Santos da Igreja Católica), um lugar específico que perpetua a eternidade
de seus inscritos.

Em muitas sociedades e no correr da história, o estatuto das mulheres foi


bastante semelhante ao das crianças. Os dois grupos foram mantidos numa
condição de inferioridade privilegiada. Os dois foram vítimas de óbvios modos
de exploração: sexual, legar, econômica, ao mesmo tempo em que era alvo de
uma mitologia de especial estima. Assim, a sentimentalização vitoriana de
superioridade moral das mulheres e das crianças pequenas concorria com
formas brutais de sujeição erótica e econômica. Sob pressão sociológica e
psicológica, as duas minorias desenvolveram códigos internos de comunicação
e defesa (mulheres e crianças constituem uma minoria simbólica, que se auto
define, mesmo quando ela supera a quantidade de homens adultos na
comunidade, seja devido a guerra, seja devido a circunstâncias especiais). Há
um mundo lingüístico das mulheres assim como há o das crianças. ( Steiner,
2005, p.63)

Questão de Partida: ANÁLISE DO FILME “A MAÇÔ

 O Filme “A Maçã”, de Samira Makhmalbaf


 Sinopse: Zahra e Massoumeh são as personagens reais deste filme. Parecem
retardadas porque passaram enjauladas em casa onze de seus treze anos de
vida. Seus pais, simples e idosos, com o agravante da mãe ser cega,
pensavam estar seguindo alguns vagos preceitos do Alcorão, um dos quais
diria que as meninas são como flores e que expostas ao sol murchariam.
 Mohsen Makhmalbaf, pai de Samira e roteirista que assinou o filme, lhe fez a
seguinte dedicatória: “...o aprisionamento destas meninas reforça a opinião de
que tempo perdido em prisão não pode ser contado como parte de uma vida”
 O filme “A Maçã” possibilita inúmeras metáforas, uma das quais para o jornal O
Estado de S. Paulo, retrata “a prisão da mulher é uma ode, poesia cantada, à
liberdade”.

O filme “A Maçã”, e a dificuldade de comunicação das meninas prisioneiras,


reforça minha tese, a qual apresenta a língua e a linguagem num fundo de abstração,
como uma condição possível de manifestação da fala que as absorveu para fazer-se
passar a condição de ato. O homem é o único animal falante, não como uma
propriedade inata, mas num desenvolvimento cultural incessante donde derivou uma
linguagem a cada cultura. A língua é assim um sistema convencional da fala numa
determinada comunidade humana na qual seu exercício ganha valores sob a forma de
códigos institucionalizados em um vocabulário e uma gramática específica.
A decodificação desse sistema passa por estudos sobre a desconstrução de
Derrida, num processo onde o misticismo se confunde com o realismo, oferecendo à
Semiologia um campo fértil para suas pesquisas no estudo da lingüística, que além de
outras apresenta-se, principalmente, como uma realidade psíquica formada de
significados e imagens acústicas.
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Este filme confirma o dito de Ortega & Gasset, quando afirma ser o homem tão
somente enquanto um ser em circunstâncias com outros homens; se só; ele não existe
como tal o conhecemos.
Para os gregos, bárbaros eram aqueles possuidores de uma linguagem
inarticulada, portanto desprezados por sua locução deficiente e que não sabiam falar o
grego; sentimento compartilhado mais tarde pelos romanos. Ovídio, em seu exilo no
Mar Negro, mesmo sendo o testemunho da mais alta civilização da época, escreveu:
Barbarus hic ego sum, quia non intelligor ulli (...incapaz de me fazer compreender,
aqui eu sou o bárbaro). O termo bárbaro teve estreita relação com balbus, balbutiens,
com o alemão babbeln e com o francês babiller, numa estreita ligação destes
vocábulos com o nome dado a Babel, numa evidente conotação do episódio da Torre
com os bárbaros que pronunciavam palavras incompreensíveis.
Desta forma, a língua é precedida de uma linguagem lastreada sob um sistema
simbólico referencial, arbitrário, porém, convencional e lógico entre uma determinada
comunidade, o que levou Saussure a classificá-la como uma instituição social que
permite uma pessoa compreender e fazer-se compreender no revelar de suas idéias,
sempre tutelada em seu desenvolvimento permanente pelas impressões deduzidas a
partir da fala de um outro, aqui entendido como alteridade.

Foram à capacidade miraculosa das gramáticas para gerar expressões


contrafactuais, proposições condicionais e, acima de tudo, tempos verbais do
futuro que deram poder a nossa espécie para ter esperança, para ultrapassar a
extinção do indivíduo. Nós resistimos, resistimos criativamente, em razão de
nossa decisiva capacidade de dizer não à realidade, de construir ficções de
alteridade para nossa consciência habitar, uma alteridade sonhada, desejada
ou esperada. É nesse exato sentido que o utópico e o messiânico são figuras
de sintaxe. (Steiner, prefácio, 2005)

Dufrenne vai falar da grande dificuldade de entender a própria intra linguagem:

Há que se considerar que não é fácil discernir na própria linguagem o estatuto


da língua; ela se realiza na fala; em si mesma, é uma abstração do sistema
institucionalizado dos esquemas e normas que presidem ao uso.
Provavelmente ela oferece um semblante de objeto ao indivíduo para o qual é
exterior, estrangeira, e que a apreende: ele a encontra nos léxicos e
gramáticas; mas esses livros são fala fixada, eles falam a respeito da língua,
eles não são a língua (DUFRENNE, 2004, p110)

Em função disso, Dufrenne aconselha ao gramático enunciar regras para uma


língua recorrendo à língua para formulá-las, mas também as procurando na fala e, no
limite, no conjunto de todas as falas, pois a língua é o que assegura a unidade de
todos os discursos possíveis nessa fala.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Georg Gusdorf em A Fala, indica uma das passagens do Entretien que segue
ao Rêve de d’Alembert, de Diderot, no qual há no jardim do Rei, dentro de uma jaula
de vidro, um orangotango que se posta com o aspecto de um S. João a pregar no
deserto. O Cardeal de Polignac, um dia, admirando o animal que o fitava, aproximou-
se e olhando em seus olhos ter-lhe-ia dito: “...fala! fala e eu te batizo...”. Mais a
frente, Gusdorf admite que um sábio de uma espécie estranha ao nosso planeta que
se limitasse a examinar os restos mortais de um homem e de um grande macaco, não
discerniria provavelmente, a diferença capital entre os dois, tantas seriam as
semelhanças que seus organismos apresentam. Certamente não descobriria que no
homem existe a função da fala (GUSDORF, 1970, p.8).
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Evidentemente, o orangotango não respondeu ao cardeal, e assim não


ultrapassou o portal da animalidade para a humanidade. Gusdorf usa deste conto de
Diderot para enfatizar a curta distância entre o animal e o homem e ainda a
superioridade deste último, que no exemplo citado julga o prior aumentar sua
dignidade por força de um sacramento. Do animal à pessoa só falta uma palavra
articulada, assim, a linguagem é a condição necessária e suficiente para o acesso ao
reino dos humanos. O homem é o animal falante que se constitui em sociedades deste
reino nas quais suas relações se apóiam na linguagem.
A fala transformada em palavra não intervém para facilitar estas relações
sociais, ao contrário, constituem-nas em um processo discursivo que
permanentemente transfigura e dinamiza sua ambiência. O discurso é uma seqüência
ordenada de enunciados de onde cada um extrai o seu valor a partir dos que o
precederam, estabelecendo uma nova conclusão. Essa concepção funcional da
linguagem abre espaço à lingüística do discurso que em nossos dias é o ramo piloto
da pragmática e da fenomenologia, e ao iluminar a origem psicossocial do ato de falar
encontra no discurso sua pertinência epistemológica.
A fala surge como uma função sem órgão próprio e exclusivo que tornasse
possível localizá-la em um ponto determinado do organismo. A evolução histórica
proporcionou uma pré-determinada disposição anatômica dispersa no organismo para
contribuir para com a fala; cordas vocais, pulmões, língua, boca, aparelho auditivo e,
principalmente, estruturas cerebrais. Ora, todos estes componente existem no
macaco, porém este não articula palavras! Se ele tem a possibilidade da linguagem,
mas não detém esta realidade, há a configuração evidente de que, em essência, a
função da palavra não é de origem orgânica, mas intelectual. O animal não interpreta o
signo, conhecendo apenas o sinal, o que denota uma reação condicional a uma
situação reconhecida de forma global, mas não analisada em seus detalhes.
Assim, não havendo um órgão específico da fala, admitimos a linguagem como
um subproduto da razão do homem, quando levado à consciência de si, que se
configura como um desenvolvimento cultural. Ainda, se um determinado órgão
houvesse, provavelmente falaríamos a mesma língua em nosso planeta, pois
nasceríamos falando. Poderíamos assumir que a invenção da linguagem foi a primeira
das grandes invenções da humanidade e dela surgiram os germes de todas as outras.
Qualquer revolução intelectual passa por uma transformação prévia da
linguagem estabelecida. Exprimir é um ato de substituição de uma percepção ou uma
idéia por um sinal sonoro convencionado que a anuncia, abriga e evoca, pela qual,
através da fala, o homem cria e intenta dominar, senão as realidades da natureza, ao
menos o sentido destas. Parafraseando Pico della Mirandola, em seu Oratio hominis
dignitate, este homem pela fala torna-se a medida de todas as coisas, um deus em
seu microcosmo.
Em sendo a língua um complexo orgânico, desenvolvido historicamente, e
comportando-se como um organismo vivente, este realiza em cada época uma
construção coletiva, embora inconsciente, no qual se nutre seu grupo social. Nomear
desta forma é chamar algo à existência, tirá-lo do nada e dar-lhe luz na vida vivida; e
esta denominação fundamenta o direito a existência no mundo real.
Todo pensamento se constitui na medida em que é formulado. Como a
linguagem é a expressão mais direta do pensamento, pode-se dizer que este se forma
geralmente nas palavras. Por meio da fala, o homem acessa o portal do mundo e este
lhe vem ao pensamento para depois dele sair em forma de palavras. Situar-se neste
mundo, é estar em harmonia com a rede de palavras que coloca as coisas em seu
lugar dentro de um determinado contexto.
Uma língua é para seus usuários um sistema que permite exprimir um número
indefinido de pensamentos com um número finito de sinais, escolhidos de maneira a
recompor exatamente tudo o que se pode querer dizer, comunicando a evidência das
designações das coisas. Há uma dependência recíproca entre a palavra, o
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pensamento e as circunstâncias, que seriam desta forma menos representação do


real, mas de uma língua que manipula inconscientemente a forma de ver o mundo.

A língua dispõe de certo número de sinais fundamentais, arbitrariamente


ligados a significações chaves; ela é capaz de recompor qualquer significação
nova a partir daquelas, conseqüentemente de dizê-las na mesma linguagem, e
finalmente se exprime porque reconduz todas as nossas experiências ao
sistema de correspondências iniciais entre tal sinal e tal significação de que nos
apoderamos aprendendo a língua, e que é, ele, absolutamente claro, porque
nenhum pensamento se arrasta nas palavras, nenhuma palavra no puro
pensamento de alguma coisa. (PONTY, 1974, p.21)

Pela linguagem, o homem estabelece nexos associativos entre sons e


significado, torna prenhe o espaço e o tempo vital, dando sentido a si mesmo dentro
de um mundo codificado e decodificado permanentemente pelas palavras, suscitadas
por uma fala comum. Assim, a linguagem seria uma essência que representaria a
parte pensante do ser humano, distinta de outras representações.
Toda a realidade coloca o homem e suas possibilidades numa condição de
incapacidade da experienciação estética do real, face as suas relações com o
cotidiano em relação à natureza física e sobrenatural, à qual estamos
permanentemente sujeitos. Ainda, todas as suas experiências são manifestadas por
um falar, designar, por um conceituar. É bem verdade que este processo está
condenado a sofrer incontáveis e imprevistas extensões e mudanças pelas imposições
do tempo, face à acumulação de costumes e de modas lingüísticas.
A fala não é nem o ser nem a ausência deste, mas um comprometimento entre
coisas e pessoas, e ela não existe a priori da iniciativa pessoal que a coloca em
movimento, razão pela qual no resumo a consideramos uma abstração, um não objeto
no sentido latino desta palavra; ab-jectum, aquilo que está visível e fisicamente a sua
frente. Há sempre uma indefinibilidade do objeto para a qual o espírito logra por ordem
na arbitrariedade dos sistemas sígnicos.
A linguagem nos apresenta o homem enquanto Natureza, enquanto a força do
ser que nele se manifesta; não o homem real, tampouco o homem imaginário, mas o
homem possível enquanto um projeto divino. A referência a esta natureza assegura a
verdade da língua e de seu significado.
A linguagem não está submetida ao dicionário, mas sim é este que se dá à
tarefa de avaliar a palavra e catalogar seu significado, a partir da realidade humana,
que encontra na fala um modo de afirmação de si e de seu estabelecimento no
mundo. A operação da fala cria para os homens, mais que o presente, cria uma
natureza consentânea, conforme escreve Aurelius Agostinho em seu Solilóquios, apta
a memorizar o passado, criar uma expectativa do futuro e vivenciar intensamente o
presente do presente. Em Sto. Agostinho há um grande aspecto romântico do
humano: Carreia para o futuro toda a sua esperança e delimita um modus-vivendis na
vida vivida do presente, a partir da lingüística como percepção do mundo, e da
linguagem articulada como a verdadeira essência de “ser” nesse mundo. Se falar
fosse só comunicação, nós humanos estaríamos no limiar da mediocridade.

CONCLUSÃO

Apartando-se os referenciais à língua e à linguagem inteiramente dissecados


no capítulo anterior, o filme oferece outras oportunidades de análise intra e inter-
semiótica que se revestem de igual interesse. Uma primeira leitura poder-se-ia fazê-la
a partir do próprio título do filme “A Maçã”, que desfilou por várias cenas, e nos remete
à história bíblica, na qual se imputa à figura da mulher, a primeira transgressão do ser
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humano à lei de Deus. Conta-nos uma das possíveis histórias a respeito da criação do
mundo, que no sétimo dia da criação, Deus estava cansado, tantas eram suas obras,
e ainda restava fazer o homem num tempo não hábil para executá-lo no mesmo
padrão das outras criações. Pensou e resolveu fazê-lo da forma que pudesse diante
das circunstâncias, imaginando voltar mais tarde e melhorar este projeto fazendo um
homem melhor. Melhor do sânscrito significa mulher, e assim quando fez um novo
homem melhor que o primeiro, criou a mulher.
Esta mulher ou este homem melhorado teve a capacidade de questionar o
próprio Deus humanizado, transgredindo sua ordem e comendo a maçã. Portanto, a
atitude desse homem melhorado ao comer a maçã proibida, simbolicamente
representa a libertação do homem desse Deus (cristianizado pela patrística). Cabe
lembrar que as várias doutrinas religiosas que habitaram o Renascimento em sua
visão de mundo, mantinham uma visão comum, a afinidade em suas origens, que
mostrava um Deus tão superior a ponto de não precisar ditar ordens, mas sim, mostrar
ao homem em sua destinação que este tinha a capacidade de discernir sobre o certo e
o errado. Novamente vemos aqui a figura desse homem melhorado mostrando sua
capacidade de interpretação da vida a partir do projeto da gênese divina.

Não te fiz nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal, para que tu,
livremente, tal como um bom pintor ou um hábil escultor, dês acabamento à
forma que te é própria, segundo teu desejo e resolução. Você poderá
degenerar-se e transformar-se em ser inferior, aquele considerado irracional;
mas poderá regenerar-se de acordo com sua decisão, e aproximar-se dos
seres superiores que são divinos. (Pico della Mirandola in Oratio Hominis
Dignitate)

Esta posição mostra claramente que Eva não seria responsável pelo primeiro
pecado do homem, o da Maçã, mas sim uma avant-gard na eterna luta do homem pela
liberdade e por sua dignidade.
Uma segunda leitura desta obra é referenciada na fala do pai das meninas
citando o alcorão, ao identificar a menina com uma flor. Ao colocar simbolicamente a
mulher no reino das flores, faz-se uma referência clara ao símbolo cósmico da
perpetuação da vida. A simbologia da mulher em nossa metáfora é um carreamento à
elevação e à sublimação espiritual, destino dos seres via um outro ser mais bem
projetado, ou seja, a mulher e seu ventre, o qual disponibiliza o constante vir à vida
num incessante recomeçar que determina a eternidade do homem terreno.
E, finalmente uma terceira leitura, que nos leva a um momento anterior, fatos
que aparecem em primeiro plano; condições sócio-culturais de uma família
desestruturada.
O modernismo gerou um paradoxo; de um lado, mercadorias, tais como
religiões que nos oferecem a vida eterna e ideologias que nos asseguram uma
sociedade perfeita num futuro próximo, e de outro, um mundo socialmente estático e
de uma historicidade cíclica, onde o homem é sujeito e ao mesmo tempo indivíduo. Na
contemporaneidade a extensão do corpo humano é a sociedade e sua tecnologia que
supera a si mesmo, levando o si deste indivíduo ao nada, reduzindo sua riqueza
visível a apenas uma existência de sobrevivência e impedindo que este converta o
mundo em órgão do seu corpo.
A este processo de proceder sempre a um retorno a partir do problema que se
mostra, Derrida chamou desconstrução que não significa destruição, mas sim
desmontagem, decomposição dos elementos. A desconstrução como fenômeno serve
nomeadamente para acenar partes de um todo que estão dissimuladas, num
desvelamento da visibilidade que não aparece numa visualidade imediata.
Uma reflexão sob a desconstrução em Derrida nos faz pensar sobre a tradução
sob o ponto de vista fenomenológico de Hurssel, um retorno à coisa mesma, que exige
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uma palavra com prefixo trans, significando um movimento de volta: Translação,


transferência, transliteração, transladação, translato, translocação, et alii.
Este viver, onde a consciência objetiva não coincide nunca com as estruturas
ordenantes, permeando o ente e impedindo que o seu fazer encontre o seu pensar,
constitui o lastro da cultura ocidental, que se apresenta como um sistema
racionalizado, e um imaginário abrigo, mas que no descompasso do fazer-pensar
instaura a angústia nos viventes deste mundo artificial. No filme aos prantos o pai das
meninas externa sua impotência ante sua realidade vivida e inexorável, numa fala
angustiosa de revolta contra a vida e contra o sistema.
Se desconstruírmos os fatos que mitigam uma primeira e rápida intervenção,
no caso as vidas das meninas, fatalmente cairemos na estrutura social da comunidade
em questão, constataremos que no filme buscou-se uma solução que atendesse o
efeito, mas longe ficou a possibilidade de eliminar a causa de origem.
Desconstruir, neste caso as mensagens intra e inter semióticas do filme A
Maça, a partir da relevância da fala no processo de comunicação e desenvolvimento
do ser humano, foi procurar entender que nem sempre cinzas são traduções de um
fogo anterior.

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