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Artigos Articles A etnografia como uma légica de investigagao' Ethnography as a logic of inquiry Judith L. Green;? Carol N. Dixon; Amy Zaharlick* Resumo Come resposia Os discusses Controversas acerca do que realmente considerade como etnogratia ern pesquisa ecucacional, as autoras apresentarn a einogrefia como uma légica de investigagGo, ou seja, um Conjunto de principios que localzam 4 emogratla dentro de teciias sobre cullura oplicadas em pesquisas no compo da Educagac. No decorrer do, coplulo, as autoras advogam que [dt exlste um Conjunto considetavel de pesquisas na interlace: entre etnografia @ Educagao, as quals permitem reconhecer a etnogratia enquanto aibordagem de pesaulsa pare os problemas @ as InvesligagSes pertinentes & Educagao. Tendo como ponto dé paitida « nogdc de Toulrrin (1972) sobre o conhecimento cientifco, as ‘auroras atirnam que © reconhecimento da existénola de um grupo de pesquisadores sobre a etnogratia-em-educacdo certamente contibul para 0 estabelecimento de uma ecologia intelectual, ou “um conjunto coletivo de concellos, piéticas © agées aidotacos em comum por membros de urna comunidade denominada ‘vientistas”, a qual confete & enegiatia- em-educagée bases sélidas para considerd-ia uma Kigica de investigagao, Como suporte os seus argumnentas, os aulcias apresentam ftés principios-chave consderades fundamentais 4s quostées relativas & etnogratia aplicada & Educagae, Sao eles: a etnogratia como © estudo de pidticas cullurais, @ etnogratia como inicio de uma perspectiva contrastiva & & etnogratia como infelo de uma perspectiva hoiistica. Ad final, as autoras propdern um esquema para auxilicr o[c}s pesquisadere|ajs na condugdo de suas pesquisas etnograticas sob a Perspectiva da einogiatia-ermeducagde como uma légica de investigagéo. Por fin, titulo Ge melhor clareza da cistingéo de uso dos termos éticc & émico no deconer da pesaulsa etnogratica, esta versio traduzida apresenta nota aceica da telagéo binéila entre uma perspective ético ou émica adotaca pelo(a) pesquisacior(a) durante seu trebatho de campo, Palavias-chave: Einogiatia como uma Logica de Investigagae: Ecelagie intelectual; Emogratia-em-Eoucagao. Publicado em FLOOD, J.; LAPR D.; SQUIRE, J; JENSEN, J. (Org). Research in the Teaching of the English Language Arts. Nehwan, N. 1.1 Lawrence Erlbaum Associates (LEA, 2001, p, 201- 224, Permisso das autores Judith L. Green, Carol N. Dixon e Amy Zaharlick @ da Editora Lowrence Erlbaum Associates (LEA). Tradugio de Adail Sebastidio Rodrigues Jinior e Marie Licia Castanheira, ¢ revisée técnica de Marcos Bagno. Professora da Universidade da Califérnia, Santa Bérbara, Emeil: green@education.uesb.edu 3 Professora de Universidade da Califérnia, Santa Bérbara. Email: dixon@education.vesb.edu * Profassora da Universidade Estadual de Ohio. dacaydo em Renita, Bel Horizon, v.42 p. 13-79. dar 2008 13 ABSTRACT As 0 tesponse to the contentious discussion otound the issue of what counts as. ethnograpny when one is engaged in educational tessarch, the authors presen! ethnography, 284 logic of Inquiry, Inat Is to say, @ set of principles which locate ethnography on Ine basis of giounded theories of culture within Education, Thtoughout the chapter, they advocate that there now exists a wide tange of teseatch on the Interface between ethnography and Education which cllows for the constitution of ethnography as a recognized appioach to educational problems and Inquiies. stemming from Toulmin’s (1972) position on scientific knowledge, the authors claim that the existence of a widely acknowledged group of researchers on ethnography-in-ectucattion surely contributes to the establishment of an intellectual ecology, or “a collective set of commonly held concepts, piactices and actions of members of a group called ‘scientists, that grounds ethnegiaphy-in-education as a logic of inquily. In order to give support to theit arguments, the authors present three key principles considered central ethnographic issues applied to Education, namely, ethnography as the study of cultural practices, ethnography as entaling a contrastive perspective and ethnography as entailing a nollstle perspective, In the end the authors propose a tramework to help researchers conduct their einnogiaphic research on the bass of ethnogiaphy-in-education as a legic of inquiry. Finally, by mecns of clatifying the use of the terms etic and ethic while one |s conducting nernis fesecrch, this hanslation version brings @ bef explanation of the binary relation between an etic of erie perspective acopeld by Ihe tesearcner dluting her/his felawork. Keywords: Ethnography as a Logic of Inquity; Intellectual Ecology: Ethnography-in- Education. INTRODUGAO A versao anterior a este trabalho foi conclufda com um apelo a contribuigéo de pesquisadores engajados na pesquisa etnografica em educagao acerca da natureza da etnografia em contextos educacionais (Zaharlick e Green, 1991, p. 223). Desde a década em que esta primeira versio foi publicada, um diélogo critico no entorno dessas questdes vem acontecendo, bem como a ocorréncia de mudangas significativas no status e no entendimento da etnografia aplicada a educagao. Desde entao, esse didlogo critico vemn direcionando seu foco de atengao para questées sobre as relages tedrico-metodoldgicas no tocante a uma definigaéo do que vem a ser de fato etnografia ou a légica de investigagao que norteia a pesquisa etnografica e, conseqitentemente, seus resultados. Este trabalho, pois, apresenta um esquema para se entender a légica etnografica de investigagdo, de modo a possibilitar, neste momento, tanto Aqueles que simpatizam com o didlogo, quanto aqueles que se interossam pela etnografia aplicada & educagao, um critério adequado para a pesquisa etnografica. Embora a etnografia tenha sido usada como abordagem de pesquisa por um conjunto significativo de disciplinas, a abordagem “ -—_ilucogio em Revisto, Bolo Horizon, v #2, p, 13-78. dx, 2008, antropolégica tem se revelado a mais dominante em pesquisas educacionais no contexto norte-americano, bem como a vertente mais sistematica e teoricamente definida dentro de contextos educacionais dos Estados Unidos. Esta abordagem vem sendo denominada, por aqueles que a tém usado recentemente, como antropoetnografia (Spindler e Spindler, 1983). A antropoetnografia, na verdade, é a etnografia de base antropoldgica e, embora este termo nfo seja geralmente utilizado em pesquisas atuais nessa linha de interesse, os principios que o orientam ainda séo usados por estudiosos preocupados com a efnografia na educagdo. © OLHO DO FURACAO: GRITICAS E PREOCUPAGOES QUE AINDA PERMANECEM ‘A questao sobre o que realmente é considerado como etnografia nao 6 recente. Essa questao tem sido parte, ha duas décadas pelo menos, de um conjunto continuo de criticas a trabalhos que se intitulam “etnograficos". Em 1980, por exemplo, Rist argumentou, em um artigo na Educational Research, que muitos dos trabalhos que se denominavam etno; na verdade, pesquisas de observagao, e nao etnografia. Rist chamou essas pesquisas de “Blitzkrieg Ethnography” [Etnografia de Ataque], uma vez que tal abordagem nfo ia ao encontro das necessidades da pesquisa etnografica como definida dentro do campo de estudos da antropologia. Em 1982, Heath problematizou o fato de pesquisadores néo compreenderem ou nao honrarem as tradigdes antropolégicas que sustentavam o trabalho etnogréfico, os quais rotulavam suas pesquisas de etnogréficas mesmo quando tal denominagao, de fato, nao se aplicava. Mais de uma década depois, Athanases e Heath (1995) reiteraram e expandiram esses questionamentos em relagéo ao trabalho que tem sido feito na érea das Humanidades e da Lingua Inglesa. Em artigo publicado na Research in the Teaching of English, Athanases e Heath argumentam que Freqiientemente [..] a pesquisa educacional que se rotula etografica tem mostrado pouca evidéncia de aplicacio dos principios-bases que 0s te6ricos em antropologia cultural e etnografia da comunicagio articulam como os fundamentos que direcionam a pesquisa etnogrifica em linguas. Parte do problema decorre da falta de clareza entre os pesquisadores em educacio acerca das bases disciplinares e dos principios da etnografia (p. 264) Educagd em Revista, elo Herons v 42. p. 13-79. der, 2005 & Subjacente as criticas levantadas por Rist, Heath, Athanases e outros esté o desconforto em relagiio ao fato de educadores terem adotado e, as vezes, cooptado, os métodos etnograficos sem o devido entendimento de suas bases tedricas, bem como dos propésitos e das melas que a antropologia (e outras disciplinas) assume ao se engajar na etnografia (ver Hammersley, 1992; Smith, 1990; e Vidich e Lyman, 1994, para discussées da perspectiva sociolégica). Dois fatores levam a essa critica. O primeiro pode ser recuperado nas criticas de Rist (1980) e Athanases e Heath (1995), mais de uma década depois, que se centralizam na questao de a pesquisa de observagao rotular- se etnografia. O segundo origina-se de uma variedade de métodos qualitativos e pontos de vista teéricos envolvendo a observacéo participante, os quais tém sido desenvolvidos no escopo das pesquisas em educagao desde os anos 1980. No que se refere a esses fatores ou criticas, o problema nao se vincula arelevancia da pesquisa realizada, mas se, de fato, ela condiz com os critérios adequados 4 etnografia (para uma ampla discussao dessas questées relacionadas 4 educagao, ver Green e Bloome, 1995). As razées para o primeiro conjunto de problemas tomam-se visfveis quando consideramos as observacées etnograficas em relacdo a observagao da perspectiva de outros campos do saber. Como argumentam Evertson e Green (1986), existem varias abordagens & pesquisa de observagio que adotam maneiras diferentes de registrar seus fenédmenos de interesse, a maioria das quais nao necessariamente envolve a etnografia: sistemas de categoria, sistemas descritivos, sistemas narrativos e registros tecnolégicos. Sistemas de categorias séo sistemas fechados nos quais todas as varidveis a serem observadas sao definidas a priori. Seus dados sio registrados por meio de enumeragao de ocorréncias de comportamentos particulares ou por meio de tegistros de um conjunto limitado de cédigos a priori que representam o fenédmeno observado. Nesta abordagem, somente as varidveis no sistema podem ser incluidas, sem levar em consideragao se varidveis adicionais tornam-se relevantes ao contexto. Algumas pesquisas, ao utilizarem sistemas de categoria, descobriram a necessidade de se registrar informagao adicional através de narrativas ou notas descritivas, sendo, pois, estas tltimas usadas como informacao contextual. Na maioria das vezes, pesquisadores que adotam essa abordagem cbservam o fendmeno investigado por um periodo limitado de tempo durante um dia (menos que uma hora) e por periodos limitados entre dias. Ademais, esses sistemas sao geralmente utilizados em ue FEducosdo em Revit, Belo Haron, v.42. p. 13-79. de. 2008, tempo real (a vivo) para o registro de comportamentos, sem a oportunidade de verificagéo ou recuperagao desses comportamentos por intermédio de andlises de audio ou video dos eventos observados. Os sistemas descritivos e narrativos, tanto quanto os registros tecnolégicos, sao sistemas abertos que adotam certas formas de registro do fluxo da atividade ou interagéo que podem sor revisitadas posteriormente. Sistemas descritivos podem ter categorias controladas previamente, combinadas de varias maneires a fim de construir sistemas descritivos do progresso de aulas e de segmentar sucessées de comportamentos. Um ponto central para os sistemas descritivos é o uso de transcrigées de falas ou de atividades ocorridas no contexto observado, o que torna os sistemas descritivos dependentes do contexto. Esta caracteristica leva a uma representagao do evento ou atividade e, conseqiientemente, a possibilidade de exame ou andliso posterior dos dados, uma vez que, em dado momento da pesquisa, o pesquisador deixa o campo ou contoxto de investigagao (post hoc). Sistemas narrativos, por sua vez, so sistemas abertos, sem categorias predeterminadas. O pesquisador registra segmentos extensos de atividades ou de eventos em formas de narrativas para representar o desenvolvimento do fluxo de agées. A escolha dos elementos desses sistemas a serem registrados por escrito muito dependerd da percepgao do observador sobre 0 que é realmente importante registrar, como o fazer, quando e de que maneira. O registro narrativo se transforma no evento que seré analisado. Portanto, a natureza desse registro (p. ex., registros de exemplos ou narrativas descritivas da seqiéncia da atividade) e a abordagem da anélise (p. ex., 0 uso de cédigos preestabelecidos ou o desenvolvimento de cddigos previamente determinados) dependerao das metas ou objetivos do pesquisador. Registros tecnoldgicos (p. ex., gravagées de fita cassete, gravacées de video e fotografias) sao sistemas abertos que registram sons e/ ou agées dentro do campo de alcance das lentes da cdmera ou do microfone. Esses tipos de registros possibilitam anélises post hoc, porém eles nao representam tudo o que aconteceu no cendrio pesquisado, sendo, como os sistemas narrativos, influenciados pela escolha do foco e pela localizagao espacial do pesquisador, Um exemplo da importancia de se realizar registros tecnolégicos ou registros narrativos pode ser visto no trabalho de Marshall e Weinstein (1988). Ao pesquisarem as expectativas de professoras, Marshall e Weinstein verificaram que duas professoras nao se enquadravam em suas previsées, fato que os conduziu a analisar o registro narrativo para um reexame {ducagéa em Resto, Belo Horaemte, v.42. 9, 13-79. dec, 2005, 2 dos dados. Ao recontextualizar os dados, eles perceberam que a imprevisibilidade nao se deu, na verdade, pela existéncia ou inexisténcia de variaveis particulares ou inerentes as professoras, mas, sim, que os padres de uso e distribuigao dessas varidveis é que faziam a diferenga. Sem o registro narrative como base de codificagao dos dados, Marshall ¢ Weinstein nao teriam condigées de reexaminar o motivo da ineficdcia de seu modelo quando de seu uso com as duas professoras. Sistemas narrativos e registros tecnolégicos podem ser ferramentas etnograficas quando usadas como parte da observagdo participant. Todavia, omero uso de tais abordagens de observagéo nao constitui, por si s6, método etnogréfico (Green e Wallat, 1981; LeCompte e Priessle, 1993; Spradley, 1980). Por exemplo, Spradley (1980) argumenta que um observador- etuégrefo sempre sera wn participante, no obstante possa assumir diferentes papéis ao longo do continuum, desde um envolvimento profundo com o grupo social em determinado momento, até um papel mais passivo de observador e participante. Além disso, como ficaré evidente nas secées soguintos, esse tipo de observagio 6 realizado em um longo perfodo de tempo, orientado por teorias da cultura. De igual modo, observacées etnograficas envolvem uma abordagem que centraliza suas preocupagdes em compreender que de fato seus mombros precisam saber, fazer, prever e interpretar a fim de participar na construcao dos eventos em andamento da vida que acontece dentro do grupo social estudado, por meio da qual o conhecimento cultural se desenvolve (Agar, 1980; Ellen, 1984; Heath, 1982; Spradley, 1979, 1980). Para conseguir tal informagao, o etnégrafo registra notas de campo, coleta e analisa artefatos produzidos pelos membros do grupo social, entrevista Participantes acerca de suas interpretagées sobre o que esta ocorrendo (sempre que possivel), e, caso seja possivel, faz gravagées de audio e video das agdes observadas. Desta forma, o observador-etnégrafo registra a seqiiéncia das atividades desempenhadas tornando-as disponiveis para avaliagdes posteriores. (Ver também Emerson, Frotz e Shaw, 1995; Spindler e Spindler, 1987; Spradley, 1979, 1980.) Um observador que adentra o campo de investigagao com uma lista de itens predefinida, com questées e hipéteses predeterminadas, ou com um esquema de observa¢ao que defina a priori todos os comportamentos ou eventos que serao registrados, ndo esta, decerto, se engajando na etnografia, nao obstante o nivel do profundidade da observagao foita ou o grau de credibilidade do sistema de observagao. Sobretudo, se o observador nao se ducaga em Revs, Belo Horo, v.42. p, 13-79, der. 2005. basear em teorias da cultura para direcionar as escolhas do que é relevante observar e registrar, ou abranger sua interpretacdo pessoal a respeito da atividade observada, ele nao estaré se engajando numa abordagem etnografica como percebida do ponto de vista antropolégico. Em virtude dessas argumentagées, Rist (1980), Heath (1982), Athanases e Hoath (1995), e outros, levantam o problema como o de pesquisadores que, ao conduzirem seus estudos de observagao, alogam estar engajados em etnografia ou realizando pesquisa etnogréfica, quando, na verdade, suas pesquisas se norteiam por objetivos, métodos e teorias diferentes. (Para mais discussées sobre as diferengas relativas 4 pesquisa em ensino, ver Erickson, 1986.) Um argumento semelhante pode ser aplicado a alguns trabalhos académicos rotulados como pesquisa “qualitativa”. Desde os anos 1980, um. conjunto significative de perspectivas “qualitativas", oriontadas por um. niimero diferente de teorias, tem sido adotado efou desenvolvido em educagio (Denzin Lincoln, 1994; LeCompte, Millroy 0 Priessle, 1992). Embora alguns teéricos tentem equiparar suas abordagens com a etnografia, por comungarem métodos parecidos, eles néo aderem necessariamente aos postulados da pesquisa de base etografica nem compartilham dos objetivos dela, Erickson (1986) descreve tais abordagens, relativas A pesquisa educacional, afirmando que elas sio alternativamente denominadas etnogrificas, qualitativas, de obsecvacio participante, de estudo de caso, intecacionistas simbélicas, fenomenoldgicas, construcionistas, ou interpretativas. Essas abordagens sic levemente diferentes, embora comunguem semelhanca considerivel umas com as outras [..] O que faz desse trabalho um trabalho de interpretacio ou qualitative € muito mais uma questio essencial de foco € de intengo do que de procedimento de coleta de dacios; isto é, uma éémica de pesquisa nfio constitui-um métada de pesquisa (p. 119-120). Uma maneira de reformular as discussées levaniadas até aqui 6 percebé- Jas como indicativas de que metodologia 6 mais do que uma técnica; na verdade, abrange relagGes entre teoria e método. Tais relagdes formam a base para a construgéo do conhecimento que, de fato, 6 0 resultado do trabalho de membros daquilo que Toulmin (1872) chama de ecologia intelectual. Kelly e Green (1998) descrevem a posigao de Toulmin, no tocante ao conhecimento cientifico e as mudangas ocorridas nesse conhecimento, da seguinte forma: Educagdo om Revit, Belo Horizonte, x, 42.p, 13-79. dex 2005 Oa A andlise do trabalho de ‘Toulmin também mostrou que sua visio da mudanga conceitual [dentro de uma dada disciplina] sustenta-se numa teoria da racionalidade da ciéncia, em que a ciéncia nfo é vista como um conjunto universal de regras inferenciais ou lealdade a teorias fundacionais, mas como um conjunto coletive de conceitos, praticas € agées adotados em comum por membros de uma comunidade denominada “cientistas”. Assim, uma mudanga conceitual pode ser percebida como uma teoria da racionalidade, pelo fato de tomar visiveis as cazBes que realmente contam como as responsaveis por mudancas do conbecimento num determinado geupo [..] {Portanto, uma] forma de compreender 08 argumentos de Toulmin é pereeber 2 “Ciéncia” como produto das agdes dos membros daquele grupo (isto é, cientistas), os quais, diante de uma situagdo-problema, sustentam-se na histitia de suas idéias intelectuais, tanto quanto nos tracos sociais e fisicos da situagZo-problema para consteuir um centendimento da ‘problemitica’ explocada. Do ponto de vista desta perspectiva, novos fendmenos podem vir a ganhar existéncia por meio do falar e do agic, gracas as acdes dos membros de uma comunidade cientifica (Knott Cetina, 1983; Latour e Woolgar, 1986). (p. 149) Em vista da posigao de Toulmin acerca da construgao do conhecimento cientifico como produto das ages de membros pertencentes a uma dada ecologia intelectual. podemos perceber por que Heath (1982), Athanases ¢ Heath (1995), Rist (1980) ¢ outros, orientados pela antropologia’, levantaram criticas sobre trabalhos que nao honravamas tradigées intelectuais a histéria das idéias dentro de suas ecologias intelectuais. Em outras palavras, essas criticas nao legitimam tais trabalhos como orientados pelo “conjunto de conceitos, praticas e agdes adotados em comum” (Toulmin, 1972, citado em Kelly e Green, 1998, p. 149) que constituem as perspectivas da antropologia cultural ou da etnografia da comunicagao. Esses problemas levantados podem ser comproendidos melhor se examinarmos 0 argumento sobre a etnografia como uma disciplina constituinte da Ciéncia da Educagao conforme proposto por Green e Bloome (1995). Estes tedricos argumentam que ja existe uma comunidade de pesquisa suficientemente ampla de etndgrafos, com base em tradigées da teoria cultural e da etografia da comunicagao, dentro do ‘Omesmo é vélide para pesauisadores que trabalhom a pertirde um ponto de visa socioligico, embora, até 0 presente momento, tais argumentos tenham surgido mais ne coniexto britéinico do que no contaxto norte-omericane (Atkinson, 1990; Fllen, 1984; Hammersley, 1983; ¢ Smith, 1990}. 20 Educago em Revista, Belo Horizore, 9. 42. p. 13-7. dex, 2005 campo da educagdo, que respalda a constituigao da etnografia como uma disciplina (uma ecologia intelectual) dentro da Educagéo. Admitindo-se a perspectiva da etnograjia-cm-educagdo, tanto aqueles que tencionam abordar a etnografia segundo seus principios fundacionais, quanto aqueles que rotulam sua pesquisa como sendo de base etnografica, estao se aliando a uma comunidade de praticas que esto sujeitas a seus proprios critérios de trabalho e pesquisa. (Para uma discussao acerca do critério da pesquisa qualitativa que apresenta argumentos similares sobre a necessidade de criar um diélogo que vé ao encontro das expectativas de tradigées diferentes, ver Howe e Eisenhart, 1990.) AFINAL, © QUE E ETNOGRAFIA? ‘Tendo considerado as criticas e proposto uma maneira de compreender a etnografia como o trabalho de uma ecologia intelectual, apresentamos agora uma breve introdugdo ao desenvolvimento da etnografia num eixo temporal. Esta histéria 6 parte do conhecimento cultural daqueles engajados na etnografia de um ponte de vista antropolégico, E um conhecimento cultural necessério para situarmos os desenvolvimentos atuais da Educagao-dentro da histéria intelectual mais ampla da etnografia por entre as disciplinas. Visées diferentes da etnogratia e seu desenvolvimento histérico A resposta sobre o que 6 etnografia jé é em si um campo polémico. Agar (1994) afirma que “etnografia [é] um termo cuja etimologia do grego indica ‘descrigio de povos” (p. 54). LeCompte e Priessle (1993) estabeleceram suas bases como originadas “de ethnos, isto 6, raga, povo, ou grupo cultural, e graphia, que significa escrita ou representagao de um campo especffico, numa forma especifica” (p. 1). R. F Ellon, antropélogo social britanico, captou a complexidade da tarefa de definigao da etnografia. Sua descrigdo apresenta uma visio multifacetada do terme, possibilitando, assim, a percepgao das variagées de uso atual do termo: Considere-se, por exemplo, a palavea “etnografia”. Esta palavea é usada normalmente para se referic a descrigdes empiricas da cultura e da organizacio de populacGes humanas particulates (como cm “uma monografia etogeifica”, “uma etmografia”). A implicacio disso é a de um registro completo, um produto, No entanto, o sentido se Educasee er Revista, Bela Hovicante, v.42, p, 13-79. dee. 2005 . 21 modifica de alguma forma se falamos de “etnogeafia” em oposi¢io a “teoria”, ou de “uma descrigio etnogrifica” (significando pessoas que vier) em oposigdo a uma descti¢ao histérica ou arqueol6gica. Ainda mais diferente € 0 uso do termo para indicar um conjunto de procedimentos de pesquisa normalmente indicando estudo qualitativo intensivo de pequenos grupos através de “observacio participante” [..] Finalmente, “etnografia” pode se referir a um campo académico, a uma disciplina em scu amplo sentido, eavolvendo o estudo comparativo de grupos étnicos [.] Assim, etnogeafia é algo que se pode fazer, estudar, usar, ler ou escrever. Seus vitios usos refletem maneitas pelas quais tedticos distintos tém se apropriado do termo, na maioria das vezes, pot caz3cs conceituais. Nao estamos aqui sugerindo, porém, que termo seja empregado em um tinico sentido, mesmo que fosse possivel determinar uma definigo isolada. Contudo, ¢ importante saber que as diferengas, embora ténues, existem. (1984, p. 7-8)- A Tuz do argumento de Ellen, vé-se pouco valor em buscar um ponto de vista (ico. Ao contrario, nés nos posicionamos a favor da importancia de compreender as diferengas para decidirmos se o trabalho em execugao corresponde aos critérios da etnografia definidos dentro do escopo da educagao e de campos tedricos relacionados. Um exame de diferentes livros de pesquisa e de artigos de reviséo da referida literatura também nos leva a identificagao de um amplo e distinto conjunto de olhares sobre a génese e o desenvolvimento da etnografia no tempo e nas disciplinas. Embora esses olhares se distingam em detalhes especificos, o que emerge dessa anlise é a longa histéria da etnografia e seu desenvolvimento ao longo dos séculos, tanto formando quanto sendo formada por disciplinas emergentes (p. ex., antropologia, sociologia e educagao). Nesta secao, apresentamos o quadro histérico que surgiu quando consideramos os argumentos daqueles que trabalham a etnografia numa interface entre antropologia e educagao. Dobbert (1984) afirma que a etnografia se originou das formas pelas quais poetas, viajantes, missionaries @ historiadores documentavam e descreviam “pessoas com aspectos estranhos” que esses autores encontravam quando viajavam e/ou viviam longe de seus préprios territérios nacionais. Tanto Erickson (1986) quanto Athanases e Heath (1985) reforgam esse argumento, remontando as origens da etnografia aos séculos XVI e XVII, e relacionando suas mudangas 4s transformagées da histéria intelectual do Ocidente. Erickson (1986) afirma que a teoria interpretativa e a etnografia estao inter-relacionadas: 22 Educa em Reis, Belo Heit, v 42, p. 13-79. dz, 2005 A pesquisa interpretativa ¢ sua teoria norteadora se desenvolveram a partic do interesse nas vidas e perspectivas de pessoas que tinkam pouca ‘ou nenhuma vox na sociedade. O final do século XVIII presenciou 0 surgimento dessa preocupagiio. Tedricos sociais medievais reforcaram a dignidade do trabalho bragal; contudo, com 0 colapso da visio mundial medieval dos séculos XVI e XVII, as classes baixas da sociedade da época passacam a ser cetratadas em termos considerados, pelo menos, paternalistas. Erickson associa o desenvolvimento subseqiiente da etnografia do século XIX ao surgimento da antropologia como disciplina e ao interesse da expansao colonial pelos povos colonizados. Ele acrescenta que Outra linha de interesse desenvolvida no final do século XTX foi com 98 povos iletrados destituidos de poder e a respeito dos quais pouco se sabia. Eram povos nio-letzados pertencentes aos territétios coloniais africanos e asidticos que eram, governados pelas Cortes Européias e que, ao final do século XIX, cresciam e se desenvolviam celeremente. Os relatos de viajantes acerca desses povos tém sido esctitos desde 0 inicio das exploragSes européias do século XVI. Ao final do século XIX, tais relatos foram se tomande mais detalhados © completos, recebendo atencXo cientifica do campo da antropologia. Os anteopdlogos chamaram esses relatos de emografia, ou seja, uma monografia descritiva das formas de vida de povos considerados ethnoi, tetmo grego antigo pata “outros” — batbaros que no eram gregos (p. 123} Athanases e Heath (1995) acrescentam informagées relevantes no tocante ao desenvolvimento histérico da etografia, argumentando que Ao final do século XX, julgamentos fundamentais sobre a “‘boa” pritica etnogrifica criaram expectativas sobre o trabalho de campo do pesquisador, 0 qual o exccutatia usando a lingua local ¢ representando cxatamente 0 que 0 grupo pesquisado era, e no 0 que nao era ow 0 gute preasava ser mudado @ partic de um ponto de vista de estranho Aquela comunidade. [Grifos no original] Além disso, a etografia continuava mantendo scus lagos com a historia politica e econdmica, além de incluic descrigées de influéncias contextuais nos habitos culturais e lingiisticos dos grupos (p. 264). Dobbert (1984) caracteriza essa mudanca como um deslocamento da perspoctiva ética para a mica. Ela argumenta que, antes dos anos 1960, a perspectiva do préprio etnégrafo sobre o que era observado (uma perspectiva ducogio em Revs, Belo Haine, v 42.9. 13-79.der.2005 0

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