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Porto Alegre, v.15, n.1, jan./jun. 2012.

INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO: teoria & prática


ISSN impresso 1516-084X ISSN digital 1982-1654

Individuação e Informação em Gilbert Simondon

Individuation and Information in Gilbert Simondon

Resumo:
Nesse artigo a teoria da individuação de Gilbert Simondon
é apresentada como uma das estratégias de superação
Liliana da Escóssia
da visão substancialista que, ao longo dos séculos, tem
concebido os seres como formas estáveis e idênticas a si Universidade Federal de Sergipe
próprias, menosprezando o processo, o devir, a diferença,
a irreversibilidade temporal. Tomando como eixo de aná-
lise os conceitos de informação, individuação, metaestabili-
dade, transdução e intensidade, em uma articulação e com
1 Introdução
conceitos de autores como Deleuze, Guattari, Prigogine,

D
Stengers, Serres e Bydens, problematiza-se algumas teo-
rias que sustentam a supremacia da Forma, da substância iversas teorias, ao abordaram o ser físico,
e dos seres individuados e propõe-se uma abordagem on- biológico, psíquico ou social, como formas
togenética na qual privilegia-se o processo de engendra-
mento dos seres.
estáveis e idênticas a si próprias, foram
Palavras-chave: Individuação. Informação. Intensidade. unânimes em calar, negar ou contornar os pro-
Simondon. Deleuze-Guattari.
cessos, o devir, a diferença, a irreversibilidade
Abstract:
temporal. Esta é uma afirmação presente nas
In this article, the theory of Gilbert Simondon’s individua- análises de alguns pensadores como Gilles De-
tion is presented as one of the strategies for overcoming of
leuze, Félix Guattari, Ilya Prigogine, Isabelle
a  substantialist  view,  that over the  centuries has  devel-
oped beings as stable forms and identical to themselves, dis- Stengers, e, especialmente, Gilbert Simondon.
regarding the  process, the becoming, difference,  irrevers- Constitui-se, de certa maneira, como um pro-
ibility  of time.  Taking as  a point of analysis  the concepts
of  information,  individuation,  metastability, transduction blema a ser enfrentado, de maneira singular,
and intensity as developed  by  Simondon, in  conjunction por cada um deles, em uma rede conceitual
with concepts of other authors as Deleuze, Guattari, Prigog-
ine,  Stengers, Serres and  Bydens,  this article questions que possui em comum o privilégio concedido
some  theories  that support  the supremacy of  form, sub- ao processo, à relação – lugar-meio de sentido
stance  and of individual beings, proposing  an  ontogenetic
view on which privileges the process of engendering beings
–, da qual emergem, simultaneamente, sujeito
– the process of individuation. e objeto, forma e matéria.
Keywords: Individuation. Information. Intensity. Simon-
Nesse artigo tomaremos a teoria da indivi-
don. Deleuze-Guattari.
duação, desenvolvida por G. Simondon, como
uma das estratégias de aproximação e supe-
ração do problema esboçado acima, tendo
como eixo de análise a problematização que
o autor realiza sobre a noção de forma e so-
bre a relação entre forma e matéria, em suas
ESCÓSSIA, Liliana da. Individuação e informação em Gilbert versões platônica e aristotélica – bem como
Simondon. Informática na Educação: teoria & prática, Porto
Alegre, v. 15, n. 1, p. 19-30, jan./jun. 2012. seus desdobramentos em outros sistemas te-

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óricos, como a Psicologia da Forma e a Teoria Em trabalhos anteriores (ESCOSSIA, 1999,


da Informação. São concepções assentadas 2010), onde abordamos a temática da invenção
em duas maneiras opostas de conceber essa técnica, essa noção de informação como opera-
relação, mas partem, ambas, de uma mes- ção de tomada de forma foi decisiva para sair-
ma afirmação sobre a supremacia da forma/ mos de uma visão psicologizante da invenção.
substância e de uma valorização do seres in- A invenção foi definida como resultado de uma
dividuados, em detrimento do processo que relação transindividual1, efeito de agenciamen-
os engendra, que os constitui – o processo tos coletivos entre homem e matéria, homem
de individuação. Partilham, portanto, de uma e mundo. Em tal abordagem o objeto técnico
lógica substancialista reproduzida incessan- adquire dois estatutos: o primeiro é o de ser
temente ao longo dos séculos, gerando opo- suporte e símbolo da relação transindividual,
sições e hierarquias na concepção dos seres uma vez que traz consigo algo do ser que o in-
e da realidade. Imanente ou transcendente, ventou, uma natureza humana anterior, porém,
anterior ou contemporânea à operação de to- à humanidade constituída no homem. Ao inven-
mada de forma, a Forma, graças a uma su- tar, todo homem emprega seu apeiron2, uma
posta unidade, totalidade e coerência essen- dimensão préindividual e coletiva que embora
cial, conserva sua superioridade com relação ligado a cada ser individual, não lhe pertence. O
à matéria, configurando uma oposição entre segundo estatuto, destacado tanto por Simon-
dois tipos de realidade – aquela que recebe a don (1989) quanto por Michel Serres (1993), é o
Forma e aquela que a encerra. de portador e mensageiro de informação e sen-
Recusando a formulação acima por consi- tido. Isso implica em uma formulação anterior
derá-la insuficiente para dar conta de um plano relativa à noção de matéria: a de que a matéria
processual dos seres, Simondon (1964, 1989) informa, não só porque transmite e veicula in-
desenvolve uma concepção na qual a noção formação, mas porque a forma está presente
de forma é inserida numa rede conceitual que na própria matéria e decorre de sua tecnicida-
comporta noções como metaestabilidade, de3, ou seja, de suas propriedades, da natureza
transdução, campo de intensidade, energia de seus elementos (como a propriedade singu-
potencial e, informação. Em tal concepção, a lar de ligação e conexão dos átomos do silício,
forma é pensada não como princípio de indivi- por exemplo). Resulta que todo ato de invenção
duação, que age de cima ou do exterior, mas deixa de ser algo abstrato, operação intelectual
como informação. Esta, por sua vez, deixa de do homem ou formatação da matéria pelo es-
ser uma grandeza absoluta e quantificável e pírito/forma, para ser inserido em um regime
de ter o sentido que lhe era atribuído tradi- de virtualidades da própria matéria, entendido
cionalmente pela tecnologia das transmissões como o que há de mais concreto, e como rela-
de mensagens – informação como aquilo que ção de agenciamento, acoplamento ou compo-
circula entre emissor e receptor – para ser sição entre duas formas.
pensada como troca significativa e irreversí-
vel, como a própria operação transdutiva de 1 Relação transindividual é aquela que ocorre entre realida-
des pré-individuais e coletivas e não entre indivíduos consti-
tomada de forma que caracteriza todo proces- tuídos (SIMONDON, 1989).
so de individuação, processo através do qual
2 Palavra grega que designa o caráter indeterminado e infi-
se dá a emergência dos indivíduos a partir de nito da natureza, em constante movimento.
um fundo pré-individual, operando uma defa- 3 Tecnicidade: conceito forjado por Simondon (1958) para
sagem do ser em indivíduo e meio. falar do aspecto de concretude das virtualidades da matéria.

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2 Da forma às forças permanentes, estáveis e imutáveis, graças às


leis invariantes que as governam, tal como é
A noção de individuação é o fio condutor suposto acontecer na física. Simondon afirma
do pensamento de Simondon. Através dela, o que embora Platão tenha procurado, ao final
autor desenvolve uma abordagem ontogené- de sua vida, encontrar uma fórmula capaz de
tica4, na qual importa “conhecer o indivíduo explicar o devir – através da noção de idéias-
através da individuação e não a individuação a números, ou de díade-indefinida – o essencial
partir do indivíduo” (SIMONDON, 1989, p. 12). de sua doutrina é a forma arquetípica, enten-
Com isso ele recusa, a um só tempo, o monis- dida como estrutura anterior e superior a to-
mo substancialista de Platão – que considera dos os seres engendrados.
o ser como unidade fundada sobre si mesma e Ao contrário, a forma hilemórfica de Aristó-
o dualismo do esquema hilemórfico aristotéli- teles encontra-se no interior do ser individual
co – segundo o qual o ser é engendrado pelo e intervém no jogo de interação entre estrutu-
encontro de uma forma com uma matéria. ra e matéria. Não é estritamente eterna nem
Há, segundo o autor, uma oposição signi- imutável como a forma platônica, já que passa
ficativa e complementar entre a forma arque- da virtualidade à atualidade no interior do pró-
típica de Platão e a forma hilemórfica de Aris- prio indivíduo, indicando certa relação entre
tóteles. A primeira, baseada na operação de a forma e matéria, uma relação de natureza
cunhar moedas através da impressão de uma inferior, que depende do ser individual para
primeira peça original, é o modelo de tudo que existir. Este, por sua vez, tende à forma. Esta
é superior, eterno e único. A relação entre o idéia de tendência em Aristóteles é concebida
arquétipo e as cópias define o primeiro modo a partir de uma visão animista do mundo, se-
vertical de interação. Uma interação não re- gundo a qual todo objeto tenderia para a per-
cíproca e assimétrica, já que o arquétipo é feição, para a forma ideal, realização de sua
superior e anterior à peça, não tendo neces- perfeita natureza, em função da classe ao qual
sidade da mesma para existir. Nesse modelo pertence. A classe determina o ser e sua fina-
platônico, as cópias podem sofrer degradação lidade. Embora decorrente de uma relação, de
mas a forma/idéia é imutável: não se degrada um processo de interação, o devir aristotélico,
nem progride, sua perfeição está dada na ori- segundo Simondon (1989), é um devir finalis-
gem, em um mundo eterno e transcendente. ta, pois a interação é própria do ser, ainda que
A degradação caracteriza apenas o que é en- pressuponha um certo grau de reciprocidade
gendrado, ou seja, a cópia ou o ser sensível. entre forma e matéria . Assim como em Pla-
Tal como apresentada por Platão, perfeita tão, há em Aristóteles uma superioridade da
desde a origem, superior e imutável, a forma forma, o que muda é que a forma hilemórfica
fornece as bases para diversas teorias psico- se atualiza no ser individual, sendo contem-
lógicas e sociológicas nas quais a permanên- porânea à tomada de forma, ao contrário da
cia, a fixidez e a estabilidade se constituem forma platônica, que é anterior. Mas o ser indi-
como ideais. Subjetividades, grupos, institui- vidual aristotélico permanece primeiro e supe-
ções e sociedades ideais são aquelas dotadas rior à interação, o que define uma hierarquia
de uma inércia que as tornam relativamente característica das relações verticais.
Platão, com a forma eterna, recorre a um
4 Para um maior aprofundamento sobre a abordagem onto- motor, um poder, que não é outro senão o Bem,
genética, ver Escóssia (1999). o qual ilumina o mundo das idéias projetando

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sua sombra sob a forma de sensíveis. Aris- o todo e o elemento” (SIMONDON, 1989, p.
tóteles afirma um devir na interação forma- 44). Em todo campo, o elemento possui dois
matéria, mas este é apresentado como uma estatutos e preenche duas funções: primeiro,
tendência natural: uma criança cresce porque ao receber a influência do campo, submete-se
tende em direção ao adulto, uma glande de às suas forças; depois, o elemento intervém
carvalho tende a se transformar num carvalho no campo a título criador e ativo, modificando
adulto, etc. Ou seja, as interações ocorrem no suas linhas de força. Trata-se de uma corre-
interior do próprio ser individual, este é pri- lação, e aqui o termo refere-se claramente ao
meiro e por isso encerra poder do devir. Como caráter recíproco da interação elemento-todo,
afirmam Simondon (1989), são duas maneiras não se confundindo com a interação platônica
distintas de conceber a relação entre forma e ou aristotélica.
matéria, mas que partem igualmente de uma O modo de funcionamento de um campo
idéia de supremacia da forma e da substân- magnético é tomado por Simondon (1989)
cia, idéia que nem a Idade Média nem o Re- como exemplo da idéia de correlação e recipro-
nascimento, conseguiram reverter, através de cidade. Se uma barra de ferro não-imantada é
uma possível uma articulação entre a forma colocada no interior de um campo magnético,
arquetípica e a forma hilemórfica que resultas- ela adquire características de imantação, em
se num novo modo de conceber essa relação. função do campo criado pelos imãs que já exis-
Simondon considera que Giordano Bruno foi tiam e formavam o campo. Uma vez imantada,
um dos que tentou realizar uma síntese entre esta barra reage sobre a estrutura do campo
o nível individual e grupal do ser, entre o ele- e torna-se “cidadã da república do conjunto,
mento e o todo, não obtendo êxito justamente como se ela própria fosse um imã criador des-
porque lhe faltava a chave para a análise dos se campo” (SIMONDON, 1989, p. 44). A noção
processos de interação – a noção de campo. de campo eletromagnético possibilitou a apre-
A noção de campo aparece na segunda me- ensão de um tipo de campo dinâmico capaz
tade do século XIX, nos trabalhos desenvol- de comportar a propagação de uma energia,
vidos pelos físicos Michael Faraday e James oferecendo uma reciprocidade entre a função
Ckerk Maxwell, marcando uma ruptura com a de totalidade e a função de elemento e um
visão de mundo da mecânica clássica. Segun- acoplamento dinâmico entre os elementos no
do o modelo newtoniano da física, a realidade interior do campo. O conceito de campo de
era formada de corpos materiais que pode- forças tematizado pela física revelou “proces-
riam ser divididos infinitamente, agindo uns sos muito mais refinados de interação entre
sobre os outros por gravitação. Os trabalhos as partes por intermédio do todo onde inter-
de Faraday, no campo da eletricidade, suge- vêm mudanças seletivas” (SIMONDON, 1989,
riam uma forte ação do meio, posteriormente p. 46), influenciando decisivamente teorias e
comprovada matematicamente por Maxwell. conceitos de outras áreas do saber, a exemplo
Decorre disto uma concepção eletromagnéti- da Psicologia da Forma – abordagem gestal-
ca da luz e com ela a noção de campo eletro- tista dos fenômenos psicológicos – e, poste-
magnético, no qual as forças se propagam. A riormente, a Teoria de Campo de Kurt Lewin
noção de campo se refere não a uma adição (1973). Brentano, filósofo do séc. XIX que co-
de elementos, mas a uma dinâmica de forças nhecia profundamente as antigas noções de
e “estabelece uma reciprocidade de status on- interação platônica e aristotélica é considera-
tológico e de modalidades operatórias entre do o precursor da Teoria da Forma (gestaltis-

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mo), tendo inspirado inicialmente Ehrenfels, esta possui duas características: a primeira é
depois Kohler e Koffka, assim como todos os a capacidade de envolver o maior número pos-
outros teóricos da forma que posteriormente sível de elementos e dar continuidade à ten-
utilizaram a noção de campo. dência de cada sub-conjunto; a segunda, de
De acordo com a análise de Simondon ser a forma mais estável, a que não se deixa
(1989), a teoria gestaltista resultante da no- dissociar, a que se impõe, a mais provável.
ção de campo recusa, ao mesmo tempo, a vi- Para Simondon, é incorreto relacionar boa
são idealista (platônica) da forma e a visão forma a estabilidade ou probabilidade, pois
empirista (aristotélica). Para os gestaltistas, em todos os domínios (físico, biológico, psí-
a percepção, assim como a ação, é a apre- quico e social), “o estado mais provável é um
ensão e a realização de uma configuração do estado de morte; é um estado degradado a
campo perceptivo, cujos elementos constitu- partir do qual nenhuma transformação é pos-
tivos estão em constante interação, tal como sível sem intervenção de uma energia exterior
os imãs em um campo magnético. Além dis- ao sistema degradado” (SIMONDON, 1989, p.
so, o sujeito que percebe passa a constituir 49). Trata-se de um estado estável, porém
o campo perceptivo, ou seja, passa a ser re- desprovido de qualquer germe de devir. Não
alidade de um campo que se divide em dois é uma boa forma, na medida em que não é
subconjuntos: campo sujeito e campo objeto. significativa. Sendo assim, não é a tendência
A ação e a percepção seriam a descoberta de progressiva à estabilidade e homogeneidade
uma estrutura, de uma configuração comum no campo que produz formas pregnantes e
ao campo exterior/fenomenal (campo objeto) significativas, mas a permanente atividade de
e ao campo interior (campo sujeito), estrutura irradiação e propagação em domínios novos.
esta definida como o resultado de um estado Se podemos falar em equilíbrio ou perma-
de equilíbrio estável. nência no interior da teoria da individuação, é
somente no sentido de uma metaestabilidade,
3 Do equilíbrio estável à ferramenta conceitual que nos permite pensar
metaestabilidade: informação um sistema que se mantém longe do equilíbrio
como intensidade estável, sem cair na instabilidade. Ao contrá-
rio do equilíbrio estável, a metaestabilidade
É precisamente na idéia de estrutura resul- aponta para um sistema/campo de natureza
tante de um equilíbrio estável que Simondon intensiva, portador de alto nível de energia
situa a insuficiência da Teoria da Forma (Ges- potencial. Explicação que confere um estatuto
talt). O modelo de sistema em equilíbrio está- de processualidade ao campo metaestável, ao
vel utilizado por esta teoria relaciona a ope- mesmo tempo em que afirma a positividade
ração de tomada de forma a um estado que do processo, ao invés de concebê-lo de ma-
é considerado por Deleuze, em Nietzsche e a neira negativa, do ponto de vista do seu desa-
filosofia, como um “estado terminal do devir”, parecimento.
conforme nos lembram Prigogine e Stengers Prigogine e Stengers (1993), radicalizando
(1993, p. 199). Essa é a mesma crítica feita a crítica ao equilíbrio estável, afirma que os
por Simondon à noção de boa forma, através processos ocorridos num sistema que tende
da qual os gestaltistas buscam explicar a par- ao equilíbrio acabam evoluindo para um esta-
ticipação dos elementos na estrutura do todo. do onde estes processos se compensam mu-
No gestaltismo a estrutura é a boa forma e tuamente, anulando sua velocidade, e, ainda

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que haja relações recíprocas, o próprio funcio- ar (DUPUY, 1996) . Emergindo no contexto da
namento do sistema produz um desapareci- cibernética – teoria do controle e comunica-
mento gradativo das relações. A subordinação ção da máquina e do animal – não é de sur-
da idéia de processo a de estado resulta, para preender que essa teoria, segundo Simondon
esses autores, em uma negação do processo (1989), ofereça uma explicação plausível para
enquanto tal: certos sistemas de aprendizagem, mas con-
tenha graves limitações em relação ao tema
O sistema físico, no sentido concreto que lhe de- nos domínios da psicologia e da sociologia.
ram a dinâmica e a termodinâmica, não conhece
Partindo da premissa de que quanto “mais a
o tempo. Enquanto o sistema, isolado, fechado
ou aberto, admite uma função potencial, a sua correlação entre emissor e receptor é estrei-
verdade está no seu estado, que terá, por direi- ta, menor é a quantidade de informação” (SI-
to, a mesma eternidade que o sistema (PRIGO- MONDON, 1989, p. 51), em uma aprendizagem
GINE; STENGERS, 1993, p. 199).
realizada com êxito (por exemplo, o domínio
de uma máquina por um operador que nela
Essa é também a conclusão a que chega
trabalha), a melhor forma corresponde justa-
Simondon, em sua teoria da individuação,
mente à menor quantidade de informação e,
dos processos de tomada de forma. Para ele
como conseqüência, resulta de um estado em
a individuação não pôde ser adequadamen-
que a correlação ou a reciprocidade tende a
te pensada porque a única forma de equilí-
se extinguir.
brio conhecida era o equilíbrio estável, que “
Eis o paradoxo a ser solucionado a fim de
[...] exclui o devir, pois corresponde ao mais
que a noção de informação possa ser utilizada,
baixo nível de energia potencial possível [...]
por exemplo, em psicologia e em sociologia:
e o sistema, tendo alcançado seu mais bai-
encontrar algo que permita relacionar uma
xo nível energético, não pode se transformar
melhor forma ao mais alto grau de informa-
novamente” (SIMONDON, 1989, p. 14). Ou
ção. Por considerar que a idéia de qualidade
seja, todas as teorias que partem da noção
remetia ainda a uma propriedade absoluta do
de equilíbrio estável não conseguem lidar de
ser, Simondon opta por tomar emprestado à
maneira processual com a questão da relação
energética o termo intensidade de informação:
forma-matéria, todo-parte, pois subtraem das
a intensidade é sempre relacional, ou seja, ela
relações justamente a sua operatividade, ou
é significativa para o sistema que recebe a in-
seja, sua capacidade de acionar regimes e tro-
formação (SIMONDON, 1964). A intensidade
cas significativas de informações que caracte-
da informação diz respeito a uma diferença
rizam os processos de individuação.
de potencial, podendo também ser denomi-
A Teoria da Informação, especialmente
nada tensão de informação. Isso permite ex-
através do uso que é feito por Norbert Wie-
plicar os processos de tomada de forma sem
ner5, concebe a informação a partir da física,
recorrer à idéia de boa forma, e tampouco a
mais especificamente, da termodinâmica line-
uma grandeza de informação, mas a partir de
uma operação decorrente da intensidade de
5 Embora Shannon (1916-2001) seja conhecido como “o pai
da teoria da informação”, foi Wiener (1948) quem associou informação, ou, das relações existentes em
a idéia de informação a de quantidade, afirmando ser tão
importante a mensuração desta quanto a de energia ou de
um campo. No lugar de uma boa, ou melhor,
matéria. O fio de Cobre, por exemplo, passou a ser estudado Forma, uma forma intensiva, tensionada pela
e utilizado pela energia ou pela informação que era capaz de
transmitir, e isso foi responsável por grande parte da revolu- existência de ordens de grandeza incompatí-
ção trazida pela informática. veis, ou ainda, aquela que “contém um campo

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de forma elevado, isto é, uma boa distinção, distintos e incompatíveis7, cuja concentração é
um bom isolamento entre os dois ou a plurali- levada a um limite disruptivo. O campo intensi-
dade de termos que a constituem e, no entan- vo de informação é considerado também como
to, entre eles, um campo intensivo, um poder uma rede, no sentido em que opera uma cone-
de produzir efeitos energéticos se algo é intro- xão significativa do um e do múltiplo, uma cor-
duzido nele” (SIMONDON, 1989, p. 52). relação entre múltiplos e diferentes termos.
No artigo Gilbert Simondon, o indivíduo e A tensão de informação é a propriedade
sua gênese fisico-biológica, Deleuze, ao ca- que permite ao sistema, entendido como rede,
racterizar o ser pré-individual, nos fornece im- estruturar um domínio e propagar-se através
portantes pistas para o entendimento do con- dele, ordenando-o. Se retomamos a noção de
ceito de informação na teoria da individuação: pregnância da forma, diremos que esta é dada
“Singular sem ser individual, eis o estado  do justamente pelo alto nível de tensão, pela ca-
ser pré-individual. Ele é diferença, disparida- pacidade de atravessar e estruturar domínios
de, disparação[...] disparidade, como primeiro cada vez mais variados e heterogêneos, e não
momento do ser, como momento singular ...” pela estabilidade. Resulta que, para que haja
(DELEUZE, 2003, p. 121). Em seguida desen- uma tomada de forma, é preciso que duas
volve toda uma argumentação para mostrar condições sejam atendidas conjuntamente:
como a individuação é um processo de reso- uma tensão de informação produzida por um
lução desse primeiro estado problemático6 do germe estrutural e informativo e uma ener-
ser, resolução que se dá através de duas for- gia contida na matéria informável. Isso define
mas complementares: como ressonância in- a operação de tomada de forma como uma
terna, entendida como um grau mais primitivo operação de modulação,8 que significa a ação
de “comunicação entre realidades de ordem do germe estrutural/informativo sobre um do-
diferente”; e, como informação, entendida mínio estruturável/metaestável e sua expan-
como aquilo que “estabelece uma comunica- são no interior deste domínio. Esta operação
ção entre dois níveis díspares, um definido por desenrola-se em “uma micro-estrutura que
uma forma já contida no receptor, o outro de- avança progressivamente através do domínio
finido pelo sinal trazido do exterior”(DELEUZE, que toma forma, constituindo o limite moven-
2003, p. 122). A Informação comparece então te entre a parte informada (estável) e a parte
como resolução de uma disparidade, ou, de não informada ainda (metaestável) do domí-
uma problemática pré-individual. nio” (SIMONDON, 1989, p. 55).
Simondon contrapõe à Forma estável a A relação forma-matéria numa teoria
idéia de uma forma metaestável e intensiva. energética traduz-se então por uma relação
Tensão, intensidade e potencial de informação
ou de forma. Qualquer que seja o termo utili-
zado nesse contexto conceitual, os significa- 7 Isto não significa o estabelecimento de uma equivalência
entre forma e informação, quando estes são tomados sepa-
dos remetem a uma dimensão energética que radamente. Para Simondon a forma, entendida como regula-
reúne aspectos ou dinamismos habitualmente ridade espacial e temporal, não é uma informação, mas sim
uma condição da informação, esta entendida como variabili-
dade das formas (SIMONDON, 1989).

8 Em Física, a modulação define um tipo de operação de


6 Deleuze destaca ainda que o conceito de“problemático” em interação física, que se realiza em um relais amplificador, em
Simondon deixa de ter um sentido negativo, subjetivo e in- número infinito de estados. Trata-se de uma operação pela
determinado para adquirir, um sentido objetivo, designando qual um sinal de fraca energia atualiza com um certo número
um momento do ser, o primeiro momento pré-individual. de graus possíveis a energia potencial de um certo campo.

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transdutiva9 e progressiva da dupla estrutu- deve-se tentar reuni-las.”(FAGOT-LARGEAULT,


rante-estruturado, através de um limite ativo 1994, p.38): “...tirar sentido do conflito” (FA-
que faz passar a informação. Mas é a energia GOT-LARGEAULT, 1994, p.38). Esse é, a nosso
metaestável que permite à estrutura avançar, ver, um dos traços centrais da perspectiva de
já que os potenciais de propagação residem Simondon: explicar os processos de tomada
na própria matéria, tendo o limite como um de forma não simplesmente opondo-se à teo-
relais amplificador (SIMONDON, 1989, p. 33). ria arquetípica platônica e à teoria hilemórfica
Considerando que em tal modelo a informa- aristotélica, mas tomando partido de agencia-
ção avança de forma irreversível, o limite mentos conceituais que revelam uma potên-
entre eles se desloca de maneira contínua e cia de propagação e fecundação em domínios
igualmente irreverssível, o que é estabelecido heterogêneos, desde as formas físicas até os
em cada operação transdutiva funciona como fenômenos grupais e sociais.
germe estrutural da próxima operação, isso Quando aplicada ao psíquico, essa teoria
significa dizer, por um lado, que o próprio li- permite analisar, por exemplo, a gênese do
mite atua como modulador, e, por outro, que pensamento, identificando a experiência como
há “mudança local progressiva do estatuto um domínio de metaestabilidade. A reduplica-
ontológico do meio” (SIMONDON, 1989, p. 61). ção das experiências é considerada uma ativi-
O meio externo pode passar a compor a inte- dade que faz passar o conteúdo mental a um
rioridade de um sistema, fazendo emergir si- estado supersaturado. Vejamos: “A experiên-
multaneamente outras exterioridades, outros cia relativa a um mesmo objeto reúne e su-
meios associados10 . perpõe aspectos parcialmente contraditórios,
Encontram-se reunidas nessa operação de produzindo um estado metaestável do saber
transdução ou modulação a assimetria da du- relativo ao objeto” (SIMONDON, 1964, p. 60).
pla hilemórfica (forma e matéria), cuja maté- No que se refere ao social, “as variações ale-
ria apresenta tendência, e o poder arquetípico atórias nas amostras do domínio social, não
da forma platônica, que preexiste à tomada permitem uma verdadeira previsibilidade nem
de forma. Conforme assinala Fagot-Largeault uma verdadeira explicação, pois quanto mais
“...em Simondon, quando duas teses estão extensas, mais heterogêneas são as amostras”
em conflito, longe de opô-las dialeticamente, (SIMONDON, 1964, p. 62). Sendo assim, o que
há de mais importante a explicar são justa-
mente as configurações decorrentes dos esta-
9 Simondon oferece várias definições de transdução, todas
relacionadas entre si e muito próximas do que é nomeado dos metaestáveis, ricos em potenciais, como o
como operação de modulação: “uma operação física, biológi-
ca, mental, social, pela qual uma atividade se propaga grada-
estado pré-revolucionário, “onde um aconte-
tivamente no interior de um domínio...” (SIMONDON, 2003, cimento está prestes a se produzir, onde uma
p. 112), “... a transdução é aparição correlativa de dimensões
e de estruturas em um ser em estado de tensão pré-indivi- estrutura está prestes a jorrar; basta que o
dual, isto é, em um ser que é mais que unidade e mais que germe estrutural apareça, e às vezes, mesmo
identidade, e que ainda não se defasou em relação a si pró-
prio em múltiplas dimensões” (SIMONDON, 2003, p. 112), o acaso pode produzir o equivalente do ger-
“A transdução corresponde a essa existência de relações que me estrutural”(SIMONDON, 1964, p. 63). So-
nascem quando o ser pré-individual se individua; ela exprime
a individuação e permite pensá-la, logo, é uma noção simul- ciedades e grupos se transformam em função
taneamente metafísica e lógica; aplica-se à ontogênese e é a das condições de metaestabilidade, ou seja,
própria ontogênese” (SIMONDON, 2003, p. 113).
por uma disparidade interna: os grupos, assim
10 O conceito de meio associado, no pensamento de Simon-
dom, remete a ideia que em todo processo de individuação o
como os indivíduos (psíquicos) e as moléculas,
meio é criado simultaneamente ao indivíduo.

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tornam-se incompatíveis com relação a si pró- de um campo transcendental impessoal e pré-


prios. Há uma diferenciação causada por uma individual que não se confunde nem com a
supersaturação energética. forma pessoal de um Eu kantiano, nem com
O autor busca resolver os problemas rela- a forma consciência, mesmo que esta seja
tivos à interação forma-matéria, todo-parte, descrita em termos de intencionalidades e re-
individual-coletivo, através de agenciamentos tenções puras. (DELEUZE, 1988). Com isso,
conceituais transdutivos11 entre noções oriun- estende à filosofia kantiana a crítica realiza-
das de teorias tradicionalmente opostas e no- da por Simondon à metafísica substancialista.
ções da energética. Assim, na teoria da indivi- O que há de comum entre a metafísica e a
duação o germe arquetípico deixa de ser uma filosofia transcendental kantiana é, segundo
forma superior e imutável e passa a ser germe Deleuze:
informativo. Da relação hilemórfica, Simondon
retém a idéia de uma matéria que apresen- Esta alternativa que elas nos impõem: ou um
fundo indiferenciado, sem fundo, não-ser infor-
ta tendência, mas esta deixa de ser natural
me, abismo sem diferenças e sem propriedades
para ser efeito de um regime de metaestabili- – ou então um Ser soberanamente individua-
dade.. A noção de forma perde então o esta- do, uma forma fortemente personalizada. Fora
tuto transcendente do esquema arquetípico e deste Ser ou desta Forma, não tereis senão o
caos... Em outros termos, a metafísica e a fi-
passa a ser concebida como forma intensiva, losofia transcendental se entendem a fim de
capaz de estruturar a matéria, quando esta se não conceberem singularidades determináveis
encontra em estado metaestável. a não ser já aprisionadas em um Ego individual
(Moi) supremo ou um Eu pessoal (Je) superior
Em Diferença e Repetição, Deleuze pro- (DELEUZE, 1974, p. 109).
põe uma nova concepção do transcendental
para falar do processo de individuação dos
Como assinala Agamben (2000), trata-se
seres. Embora considere que, com o concei-
para Deleuze de “alcançar uma zona-pré-in-
to de transcendental, Kant tenha buscado re-
dividual e absolutamente impessoal, além (ou
verter a imagem do pensamento e renunciar
aquém) de toda idéia de consciência” (AGAM-
ao Eu substancial, Deleuze (1988) argumenta
BEN, 2000, p. 174). O resultado é um empiris-
que este filósofo não abre mão dos pressu-
mo transcendental: separado de toda idéia de
postos implícitos da representação, o que fica
consciência, o transcendental deleuziano se
evidenciado pela sua pressa em “decalcar” as
apresenta como uma experiência sem cons-
estruturas ditas transcendentais sobre os atos
ciência nem sujeito, invertendo a fórmula do
empíricos de uma consciência psicológica. Em
transcendental kantiano que remetia a uma
sintonia com Simondon, afirma a existência
consciência pura sem experiência alguma.
Citamos Deleuze: “Quando se abre o mundo
11 Esse agenciamento exigiu uma distinção conceitual entre pululante das singularidades anônimas e nô-
campo e domínio. Embora o termo campo seja utilizado, em
alguns momentos, como sinônimo de domínio, ao introdu- mades, impessoais, pré-individuais, pisamos,
zir sua concepção energética do psiquismo e do social, Si- afinal, o campo do transcendental” (DELEUZE,
mondon reserva o conceito de campo para definir aquilo que
existe no interior de um arquétipo, ou seja, as estruturas 1974, p. 106).
quase paradoxais que servem de germe para o indivíduo e
Mireille Buydens (1990) enfatiza a decisiva
que podem ser reunidas sob os termos tensão de informação
ou intensidade de informação (ou de forma). Resulta disso influência do pensamento de Simondon na ca-
o conceito de campo de intensidades. A noção de domínio
refere-se ao conjunto da realidade que pode tomar forma,
racterização do campo transcendental deleu-
ser individuada, pela operação transdutiva, confundindo-se ziano – especialmente quanto ao seu caráter
com a matéria metaestável (SIMONDON, 1989, p. 64)

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pré-individual – e os desdobramentos em dire- confere a física. Conforme esclarece Simon-


ção a uma concepção de forma transcendental. don, “a capacidade para uma energia de ser
Buydens (1990) estabelece uma equivalência potencial está estritamente ligada à presença
entre indivíduo e forma12, pois considera que de uma relação de heterogeneidade, de dissi-
esta é justamente o que “institui o indivíduo metria com relação a outro suporte energéti-
como tal, traçando o contorno que o distingue co” (SIMONDON, 1964, p.76).
do mundo e o especifica” (BUYDENS, 1990, p. De natureza heterogênea e relacional, a re-
17). Tal como o indivíduo, a forma não existe alidade potencial, préindividual e metaestável,
a priori, é segunda e relativa. Antes da emer- apresenta-se pois como um campo problemá-
gência da forma/indivíduo, existem singulari- tico, cuja resolução se dá, tanto para Simon-
dades pré-individuais, que se definem por sua don quanto para Deleuze, pela informação
natureza intensiva e metaestável: eis a afir- – entendido como processo relacional e sig-
mativa que reúne as explicações deleuziana e nificativo – fazendo-a coincidir com a própria
simondoneana para a questão da gênese do operação de tomada de forma, a individuação
seres individuados. Como assinala Buydens A idéia de um ser pré-individual que se atu-
(1990), Deleuze afirma que a metaestabilida- aliza em formas individuadas, resulta na desti-
de é a própria virtualidade. tuição do indivíduo como dado primeiro e úni-
A autora considera que o campo transcen- co – ponto central da teoria da individuação.
dental, em Deleuze, pode ser caracterizado Além de não esgotar os potenciais da realida-
de duas maneiras: de maneira extrínseca e de de pré-individual, a individuação faz aparecer
maneira intrínseca. Extrínseca, na medida em não somente o indivíduo, mas a dupla indi-
que pode ser dito um “extra-ser”, que subsiste víduo-meio. O indivíduo é então, duplamente
na superfície das coisas como pura virtualida- relativo: por um lado não é o ser completo, na
de e que se atualiza na esfera da efetividade, superfície subsiste um pré-individual; por ou-
sem que isso, entretanto, jamais o esgote to- tro, é ontologicamente secundário, resulta de
talmente. O mundo é pensado aqui a partir de um estado do ser no qual ele não existia nem
um potencial que lhe ultrapassa e excede-lhe, como princípio de individuação13.
sem, no entanto, existir fora dele. Do ponto Por fim, considerando a dimensão psíqui-
de vista intrínseco, o campo transcendental ca e coletiva da individuação, nesse contex-
deleuziano é constituído de singularidades nô- to de pensamento simondoneano-deleuziano,
mades, impessoais e pré-individuais. Defini- podemos dizer que, como toda forma, a for-
do como campo de potenciais metaestáveis, ma-subjetividade resulta de individuações, de
o préindividual expressa a idéia de intensida- conjunção de forças e contingências. O que
de na teoria da individuação, apropriada por aponta para a possibilidade de individuações
Deleuze para definir o campo transcendental que produzam não as formas atuais, mas ou-
como campo de intensidade, implicando sem- tras formas, nem Homens nem Sujeitos: indi-
pre uma diferença, pois a energia em questão viduações ou individualidades impessoais.
é uma energia potencial, na acepção que lhe
13 Isso não significa que o indivíduo seja cronologicamente
12 Buydens (1990) afirma que os conceitos de multiplicida- secundário. A afirmação de um estado do ser não-fasado e
de, em Deleuze e Guatarri (1995) e o de dobra, apresentado de sua posterior defasagem em indivíduo e meio, não de-
por Deleuze na obra Foucault (DELEUZE, 2005) são funda- corre de uma lógica de sucessão temporal, da passagem de
mentais na elucidação do estatuto da forma pois ambos pos- um ser pelo tempo. Ao contrário, a individuação é a própria
suem um caráter secundário com relação a uma instância temporalização e o ato de defasar é uma operação de cisão
precedente e pré-formal. temporal (PELBART, 1998).

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Recebido em: 13 de outubro de 2011


Aprovado para publicação em: 28 de novembro de 2011

Liliana da Escóssia
Professora do Departamento de Psicologia e do Mestrado em Psicologia Social e Política da Universidade Fe-
deral de Sergipe – Aracajú/SE, Brasil. E-mail: liliana.em@infonet.com.br

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