TEXTO BASE 2
INTRODUÇÃO
Aqueles que têm trabalhado na área pastoral, aplicando os ensinos bíblicos para
as ocasiões do dia a dia, têm boas possibilidades de se confrontarem com uma
interpretação popular do Salmo 116.15 que mostra Deus como alguém que se agrada da
morte de seus fiéis. Muitas mensagens, por exemplo, em funerais, consolam os
enlutados com esta leitura e interpretação. Isto com base em versões bíblicas bem
conhecidas do povo, que apresentam o texto com, no mínimo, uma palavra ambígua
para traduzir o hebraico yāqār (rq;y;) que é o adjetivo traduzido, normalmente, por
"precioso/a".
O problema é tão claro entre os leitores não acostumados com as técnicas de
exegese e interpretação que a Sociedade Bíblica do Brasil disponibiliza um artigo para
explicar a razão da diferença de tradução deste versículo entre a Nova Tradução na
Linguagem de Hoje e as versões de Ferreira de Almeida publicadas por ela (SBB
Suporte, 2015).
O problema é antigo, tanto é assim que Mc Nair, em uma publicação brasileira
de 1949 já afirmava que os expositores explicavam o significado deste versículo de
61
GUSSO, Antônio Renato. A posição divina a respeito da morte dos seus fiéis: o problema da
interpretação e tradução do Salmo 116.15. In: GUSSO, Antônio Renato; KUNZ, Claiton André.
(organizadores). Nas entrelinhas do texto bíblico: exercícios de leitura e interpretação. Curitiba: Núcleo
de Publicações FABAPAR, 2016. p.9-22.
muitas maneiras, mas não de forma convincente. Diante disso, ele procura apresentar a
interpretação dele mesmo, com base em autoridades no assunto, daquela época (p.307).
Buscando esclarecer a necessidade de uma tradução que não seja dúbia para o
leitor comum, acostumado, muitas vezes a decorar versículos sem levar em conta o
contexto, este texto apresenta algumas possibilidades lexicais para a tradução de yāqār
(rq;y;), algumas das versões diferentes em português, a contextualização do versículo e
seguintes palavras: 1) raro/rara, para a qual citou como referência 1Sm 3.1, que aparece
no texto bíblico com a explicação de que as visões naquele tempo não eram frequentes
(ARA), o que explica a opção por "rara", mas, também 2Sm 12.30, texto que descreve o
tipo de pedras da coroa de determinado rei, do que se interpreta como preciosa; 2) De
grande valor, valioso/a, para o que citou Sl 36.8, que na ARA (Versão de Almeida
Revista e Atualizada) foi traduzida por "delícias", Pv 3.15, na ARA traduzida como
"preciosa", falando da sabedoria descrita como "Mais preciosa é do que pérolas", e,
ainda, Jó 31.26, texto que faz referência ao esplendor da lua; e 3) Nobre, tomando como
base Jeremias 15.19, onde a ARA apresenta um contraste entre "precioso e vil" (2010,
p.201).
Plampin simplificou utilizando apenas uma palavra portuguesa para traduzir
yāqār (rq;y;). Utilizou como base os mesmos textos que Holladay havia usado,62 com a
inclusão de apenas mais um, que foi o de 1Rs 10.2, referência a pedras preciosas. Com
base neles apresentou como possibilidade apenas o termo "precioso" (1997, p.155).
Em especial para este artigo talvez seja os significados que John E. Hartley
apresenta para a palavra yāqār. Como ele escreve para um dicionário teológico, vai
mais longe do que os outros autores citados até aqui. Ele apresenta significados e os
comenta. Em sua explicação a respeito de yāqār (rq;y;), entre vários textos citados e
comentados, ele também cita o próprio Salmo 116.15, dizendo que entre as várias coisas
consideradas preciosas, como a sabedoria, a bondade de Deus, os lábios instruídos, e
outros significados, está a morte dos santos aos olhos de Deus (1998, p.652). Mais
adiante, Hartley, tratando diretamente do valor da vida diz: "No AT a vida é encarada
como tendo grande valor. Davi não quis matar Saul mesmo quando esteve em posição
de superioridade, pois considerou preciosa a vida do rei (1Sm 26.8-11, 21; 2Rs 1.13s.).
Uma mulher adúltera causa enormes danos porque quer se assenhorar daquilo que o
homem tem de mais precioso, a sua vida (Pv 6.26). Deus também protege e livra o seu
povo da opressão porque considera precioso o seu sangue (Sl 72.14)" - (1998, p.653).
Como se percebe, as possibilidades são muitas, mas, no geral, apontam para um
sentido bom, positivo.
possibilidade não está descartada para representá-la em português. Para fins didáticos as
versões serão divididas em positivas e negativas. Ou seja, versões que podem dar a
entender que Deus se alegra com a morte de seus fiéis e versões que podem dar a
entender que Deus sofre com ela.
62
A versão original de Holladay, em inglês, é de 1988. O trabalho de Plampin é de 1997.
2.1. Versões Positivas (Deus gosta da morte de seus fiéis)
Aqui serão apresentadas algumas versões e, logo abaixo delas, breves comentários a
respeito delas em relação ao significado de yāqār (rq;y); . Neste caso apontando para
"Preciosa (yāqār - rq;y;) é aos olhos do SENHOR a morte dos seus santos". (ARA)
"É valiosa (yāqār - rq;y;) aos olhos de Iahweh a morte dos seus fiéis". (BJ)
Fridlin, 2006)
A versão produzida por David Gorodovits e Jairo Fridlin, ainda que leve o nome
de Bíblia Hebraica, na verdade é uma tradução do tanak (˚nt)63 para o português, em
sua ordem canônica, realizada por judeus. Em sua página a respeito da bibliografia
consultada pode ser encontrada a versão bíblica de João Ferreira de Almeida da
Imprensa Bíblica Brasileira, de 1979 (Gorodovits e Fridlin, 2006, p.8), a qual também
utilizou como tradução para yāqār (rq;y;) a palavra "preciosa".
"Dolorosa aos olhos de Jeová É a morte dos que lhe são leais." (TNMBS)
"É penoso para o Senhor ver morrer os seus fiéis" (Ave Maria)
A Bíblia Sagrada da Editora Ave Maria apresenta numeração dupla para este salmo,
assim como para outros. Portanto, o texto pode ser identificado como Salmo 115.6 ou
Salmo 116.15, seguindo neste segundo caso a numeração utilizada no atual Texto
6363
O tanak (˚nt) contém todos os livros do Antigo Testamento que aparecem como a primeira parte da
Bíblia Protestante, apenas em ordem diferente.
Hebraico. Ela não é uma versão feita diretamente das línguas originais, hebraico, grego
e aramaico, mas de uma tradução francesa feita destas línguas, como bem se destaca em
seu prólogo à tradução, escrita em 1959. Seja como for, seus tradutores entenderam e
expressaram que Deus não gosta da morte dos seus fieis, pelo contrário, a morte destes
lhe é "penosa" (1993).
"A vida (māwet - tw,m;) dos seus seguidores é preciosa (yāqār - rq;y;) aos olhos do
SENHOR". (AS21)
normalmente entendido como morte, pela palavra "vida" em português. Assim, fugiu do
problema causado com uma, mas caiu em outra dificuldade, ainda que dê bom sentido
no contexto. Talvez esta troca de "morte" para "vida" tenha sido influenciada por Artur
Weiser, que ao comentar o Salmo 116.15, explicou que o orante oferecia um sacrifício
ao Deus fiel e amoroso, para o qual "a vida de seus fiéis é demais preciosa para ele
abandoná-los" (1994, p.559). Ou, quem sabe, tenham ido buscar em uma fonte ainda
mais distante, como João Calvino, que ao comentar o versículo disse que percebia nele
que as "vidas" dos servos de Deus são preciosas aos seus olhos (2009, p.146).
"É custosa (yāqār - rq;y;) aos olhos de Javé a morte dos seus fiéis". (BP)
Esta versão, conhecida como Bíblia Pastoral, diz em nota que "a menção da
morte indica que o agradecimento foi feito após a cura de uma doença grave". Também
interpreta morte, por vida, dizendo que "a vida de cada pessoa é valiosa para Deus".
"O SENHOR Deus sente pesar (yāqār) quando vê morrerem os que são fiéis a ele".
(NTLH)
NTLH, em seu breve comentário a respeito deste versículo, procura dar base para a
tradução diferente das mais antigas da própria Sociedade Bíblica do Brasil. Faz isto
citando Ezequiel 33.11, onde, na mesma versão, está escrito: "Diga-lhes que juro pela
minha vida que eu, o SENHOR Deus, não me alegro com a morte de um pecador. Eu
gostaria que ele parasse de fazer o mal e vivesse. Povo de Israel, pare de fazer o mal.
Por que é que vocês estão querendo morrer?". O comentarista, claramente combatendo a
ideia de que Deus se alegra com a morte do fiel, defende que Deus não se alegra com a
morte do pecador, e muito menos com a morte dos fiéis, pois, para Ele, a vida destes lhe
é preciosa, como também assevera o Salmo 72.14, o qual diz: "Ele os livra da
exploração e da violência; a vida deles é preciosa (yāqār - rq;y;) para ele" (NTLH).
No ponto anterior foram vistas algumas versões bíblicas que podem dar margem à
basicamente duas formas de interpretação do texto em foco. Agora, buscando entender o
problema e encontrar as soluções, nesta parte do artigo serão abordadas, também de
forma abreviada, apenas a título de exemplos, interpretações diferentes a respeito, não
apresentadas pelas versões, mas por comentaristas e intérpretes das versões.
3.1. Interpretações que entendem que Deus gosta da morte de seus fiéis
Champlin afirma que este versículo (Sl 116.15) é um dos mais citados de todo o
Livro de Salmos, e que ele é utilizado com muita frequência em funerais. Partindo do
princípio que Deus gosta da morte de seus fiéis, este autor apresenta uma lista de
possíveis significados para a palavra hebraica yāqār (rq;y;), quais sejam: brilhante, clara,
excelente, valiosa e preciosa. Mas levanta uma pergunta e procura responder em quatro
pontos. A pergunta foi em termos de esclarecer, afinal, em que sentido Deus poderia
considerar a morte de seus fiéis como preciosa (2001, p.2425). Para responder em que
sentido a morte pode ser preciosa, disse o seguinte:
E para concluir seu arrazoado tentando explicar como é que a morte é preciosa para
Deus, Champlim ainda diz, em mais um ponto explicativo, quando é que a morte passa
a ser preciosa aos olhos de Deus:
Isto que foi dito acima não é novidade. Na verdade, Agostinho já havia feito
algo semelhante ao comparar a morte dos fiéis no texto aqui analisado como sendo uma
possibilidade de imitação da morte de Cristo. Para ele, pregando neste salmo, Jesus
derramou o seu sangue para que os fieis não hesitem em de derramar o seu próprio
sangue pelo Senhor, ainda que em proveito próprio. Assim, deixa o leitor entender que
Deus gosta da morte de seus fiéis, dentro deste contexto de martírio cristão.65 O
problema é que o salmo é de época muito anterior ao cristianismo.
3.2. Interpretações que entendem que Deus não gosta da morte de seus fiéis
64
http://archote.blogs.sapo.pt/322467.html - Texto datada de 05 de setembro de 2009, consultado em
05/09/15, 12h03.
65
AGOSTINHO, Santo. Comentário aos Salmos. São Paulo: Paulus, 1998, p.353-354.
Derek Kidner ao interpretar o texto optou por mostrar que a interpretação melhor aponta
para aquela que mostra que Deus não gosta da morte de seus santos. Contudo, mesmo
entendendo que é assim, também não desprezou completamente a opção de Deus gostar
dela, pois o termo pode ser entendido como 'altamente estimada' ou, ainda, 'custosa'.
Assim, preferiu dizer, com base no v.3, o qual aponta para o livramento da morte, que o
sentido mais provável é o que mostra que a morte dos fiéis é custosa a Deus (1992,
p.425).
Como defende Tate este é um salmo de gratidão, no qual o adorador canta diante da
congregação (vs. 18 e 19), em forma de testemunho, que Iavé ouviu as suas orações e
como o livrou da morte (vs. 3-11). O que faz em uma composição que pode ser dividida
em duas partes (1-9 e 10-19), encerrada por altos brados de louvor pela ação salvadora
de Iavé. Quanto ao v. 15, especificamente, destacando a palavra analisada neste artigo,
ele cita a tradução tradicional inglesa precius (preciosa), mas sente que deve explicá-la,
e assim explica em termos que apontam para o significado de "precioso", mas como
algo que traz preocupação e tristeza para Iavé (1994, p.508).
Alonso Schökel é muito claro ao optar por uma interpretação que mostra Deus
indignado com a morte daqueles que lhe são fiéis. Tanto é assim que ele, antes de
comentar o versículo, ao apresentar o Salmo todo em versão própria, o traduziu da
seguinte maneira: "O Senhor faz pagar cara a morte de seus leais".66 Já no comentário
ele destaca o grande valor da vida humana conforme o que se encontra em outros
salmos e textos do Antigo Testamento. Depois disso levanta uma pergunta hipotética
que estaria sendo feita no texto do Salmo 116.15, algo como: Quanto vale a vida
daqueles que são fiéis a Deus e quanto ele pagaria para salvar a vida deles? E, na
sequência responde: "A taxa de Deus é muito alta se se trata de seus leais, entre os quais
se inclui o orante"67 deste salmo. Para encerrar sua explanação, em um ponto que ele
chama de "transposição cristã", o que também poderia ser chamado de aplicação,
Alonso emite a seguinte avaliação do Salmo 116 como um todo: "Um salmo que trata
da vida que vence a morte, de como Deus estima a vida de seus leais".68
66
ALONSO SCHÖKEL, Luis. Salmos II: salmos 73-150. São Paulo: Paulus, 1998, p.1397.
67
ALONSO SCHÖKEL, Luis. Salmos II: salmos 73-150. São Paulo: Paulus, 1998, p.1403-1404.
68
ALONSO SCHÖKEL, Luis. Salmos II: salmos 73-150. São Paulo: Paulus, 1998, p.1404.
Assim, como se percebe neste ponto, existem traduções e interpretações bem diferentes
deste texto, entre intérpretes conceituados bem como populares. Desta forma, no
próximo item, será analisado o contexto, para que este lance mais alguma luz no texto
em pauta.
4. A CONTEXTUALIZAÇÃO DO VERSÍCULO
6969
GUSSO, Antônio Renato. Os Livros Poéticos e os de Sabedoria: Introdução fundamental e auxílios
para a interpretação. Curitiba: A. D. Santos Editora, 2012. p.67-68.
B. Ele o salva da morte (116.3, 8-11).
Aqui neste esboço também fica claro que o salmista está grato por ter sido salvo.
Inclusive, o v.15, o qual tem causado algum problema na interpretação, está como base
para mostrar que o salmista cumpre suas promessas, isto porque resistiu à crise que o
havia acometido.
CONCLUSÃO
Não se pode dizer que as versões que dão margem para uma interpretação
positiva (que Deus gosta da morte de seus fiéis) estejam completamente erradas na
tradução do termo yāqār. Afinal, no geral, a palavra yāqār tem significado positivo.
Também, mesmo que se utilize uma palavra positiva para a tradução, como "preciosa",
o contexto, apresentando o livramento do fiel, mostra claramente que a morte deve ser
entendida como preciosa a ponto de Deus não deixar que ela ocorra com facilidade. É
simples deduzir: Ora, se Deus gosta da morte do fiel porque razão não o deixou morrer?
A fraqueza mesmo destas traduções, talvez seja não levar em consideração o fato da
prática da leitura de versículos fora de contextos. Isto também deve ser levado em conta
na hora da tradução.
Assim, conclui-se que as versões que apontam para uma forma negativa de Deus
ver a morte de seus fiéis, se encaixa melhor com o significado original do texto. Este
sentido pode ser bem transmitido por traduções dinâmicas, como as da NVI e NTLH,
conforme citadas acima, mas também em traduções formais, desde que se escolha uma
palavra adequada, como fez a Edição Pastoral ao optar pela palavra "custosa" como
tradução de yāqār (rq;y;). Ainda, dentro do contexto, que aponta para o desgosto de
Deus com a morte e não o prazer, fica como sugestão a tradução de yāqār (rq;y); pela
palavra "dolorosa". Então, uma boa possibilidade de tradução formal poderia ser: É
dolorosa (yāqār -rq;y;) aos olhos de Iavé a morte dos seus santos.
REFERÊNCIAS
A Bíblia Vida Nova. Editor responsável: Russell P. Shedd; Tradução em português por
João Ferreira de Almeida. Edição revisada e atualizada no Brasil. São Paulo: Vida
Nova; Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995.
ALONSO SCHÖKEL, Luis. Salmos II: salmos 73-150. São Paulo: Paulus, 1998.
Bíblia Sagrada: A Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista. 2ª. impr. São Paulo:
Paulinas, 1985.
Bíblia Sagrada: Almeida Século 21. 2 ed. Revisada e atualizada com o novo acordo
ortográfico. São Paulo: Edições Vida Nova, 2010.
Bíblia Sagrada. Tradução dos originais mediante a versão dos Monges de Maredsous
(Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico. 88ª ed. Revista por Frei José Pedreira de Castro,
O.F.M.,e pela equipe auxiliar da editora. São Paulo: Editora "Ave Maria" Ltda, 1993.
CALVINO, João. Salmos - volume.4. São José dos Campos, SP: Editora Fiél, 2009.
GUSSO, Antônio Renato. Gramática instrumental do hebraico. 2 ed. São Paulo: Vida
Nova, 2008.
GUSSO, Antônio Renato. Os Livros Poéticos e os de Sabedoria: Introdução
fundamental e auxílios para a interpretação. Curitiba: A. D. Santos Editora, 2012.
KIDNER Derek. Salmos: Introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova,
1992.
WEISER, Artur. Os Salmos. São Paulo: Paulus, 1994. (Coleção grande comentário
bíblico).