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15 Dezembro 2019
Segundo ele, apesar de a cultura dominante não alimentar “uma relação explícita
com Deus” e confiar “praticamente tudo” “à racionalidade e à política dos
meios e não dos fins”, precisamos fazer “experiências intangíveis, aquelas que
vão além dos interesses, do trabalho, do consumo e das ocupações do dia a dia:
viver a gratuidade da vida, experimentar um amor profundo, uma amizade sólida,
um sentido de vida que vai além do limite de nossa morte”. Neste tempo de
celebrar o Natal, aconselha, a forma mais concreta de vivê-lo “é olharmos cada
criança, nossos filhos e filhas, as crianças dos outros, especialmente aquelas que
perambulam pelas ruas, como a presença escondida da divina Criança”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, eles refletem sobre
o sentido do Natal e sobre como essa data, que celebra o nascimento de Jesus e
a presença de Deus no mundo para os cristãos, pode ser uma fonte de esperança e
de transformação da realidade.
Confira a entrevista.
O Natal, no seu sentido mais profundo, quer dizer que Deus está definitivamente
ligado ao destino humano. E que nós, humanos, pertencemos a Deus a ponto de
fazer-se um de nós. Não precisamos mais temer: ele se chama Emanuel, quer
dizer, “Deus conosco”. Estando em Deus e Deus em nós, nutrimos a firme
esperança de que nossa vida está garantida para sempre. Pode haver, nas palavras
de Camões, “procelosa tempestade e soturna noite e sibilante vento”, mas o fim é
bom. Ainda na expressão de Camões, “há serena claridade, esperança de porto e
salvamento”. O Natal realiza esta promessa.
O Natal, no seu sentido mais profundo, quer dizer que Deus está definitivamente
ligado ao destino humano – Leonardo Boff
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Leonardo Boff - A fé cristã não é somente boa para a eternidade. Deve ser boa
também para este mundo. Jesus não veio fundar uma nova religião já que havia
muitas naquele tempo. Veio para nos ensinar a viver. A viver os bens que
constituem a essência do que irá anunciar mais tarde e que ele chamou de Reino
de Deus. O conteúdo desse Reino é feito de amor incondicional, de solidariedade
para com os mais fracos, de misericórdia para com os perdidos na vida, de perdão
e de entrega confiante a Deus sentindo-o como um Pai bom que tem
características de mãe, pois cuida de cada cabelo de nossa cabeça, nos acolhe
como a galinha os seus pintainhos e ama, como diz São Lucas, até os ingratos e
maus. Viver estes valores é fazer uma revolução na sociedade e na política.
Revolução mesmo seria se pudéssemos considerar como Jesus considerou os
pobres e desesperados “como meus irmãos e irmãs mais pequenos”. Por que os
cristãos não vivem isso, nos espanta e nos mostra como é ainda forte a dimensão
do Negativo entre nós, coisa que Jesus quis superar e nos desafiou a superá-lo.
Frei Betto - Ressaltar que Deus não quer o sofrimento de ninguém. Criou-nos
para sermos felizes! O sofrimento é decorrente das estruturas injustas, da
violência humana e de enfermidades. O Natal enfatiza que a esperança de mudar
esse estado de coisas vem do excluído, do oprimido, do presépio e não do palácio
de César.
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Leonardo Boff - O que mais falta no mundo de hoje é esperança. As mudanças
são quase sempre mais do mesmo, por isso produzem frustração e desengano.
Numa situação desta devemos voltar aos relatos bíblicos que falam da criação,
onde sempre se termina com “e isso é bom”. Os intérpretes da Bíblia nos
deixaram claro que estes textos que quase nunca são referidos na Bíblia posterior
são proféticos. Querem nos pintar o futuro, o paraíso que virá. Agora nem tudo é
bom. Há tantos cataclismos naturais, guerras letais e mortes absurdas. Só no fim
de tudo, depois de um longo caminhar, vamos ouvir a palavra verdadeira de
Deus: “Tudo isso é muito bom”. Por isso um filósofo alemão de formação marxista
que escreveu três volumes fundamentais com o título “O princípio esperança”,
Ernst Bloch, disse: “O verdadeiro Gênesis não está no começo, mas no fim”. Ele
era judeu e assim pensavam os hebreus bíblicos e pensamos também nós cristãos.
O mundo e o gênero humano estão ainda nascendo até acabarem de nascer na
culminância do processo cosmogênico e antropogênico. Só então vai se realizar o
verdadeiro Gênesis. Até lá, devemos estar abertos ao futuro. A salvação não
vem do passado, mas do futuro. Ela vem ao encontro de nós porque
profundamente a ansiamos. Esta ânsia é um grito de Deus mesmo dentro de nós
nos reforçando a olharmos para o futuro e a confiarmos que, no final de todas as
coisas, tudo valeu a pena. “Et tunc erit finis”, traduzindo: “então eis o fim bom
porque tudo chegou a sua plenitude”.
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Leonardo Boff - Esperamos aquilo que ainda não é, mas poderá ser e será. A
presença de Deus em nossa existência atribulada e mortal, mas também
abençoada e discretamente feliz, é uma antecipação de como será o fim
promissor. Devemos aprender a amar o invisível e darmo-nos conta de que o
invisível é o outro lado do visível. Jesus já como Criança é o visível humano que
esconde o invisível de Deus. Como dizia, de forma insuperável, Fernando Pessoa:
“Ele é a eterna Criança, o Deus que faltava… a Criança tão humana que é divina”.
A forma mais concreta de vivermos no Natal, esta verdade, é olharmos cada
criança, nossos filhos e filhas, as crianças dos outros, especialmente aquelas que
perambulam pelas ruas, como a presença escondida da divina Criança. Então,
trataríamos com amor e carinho a todos e a todas.
IHU On-Line - O Papa concluiu seu discurso exortando para que não nos
afastemos da vida em oração, ao lembrar um pedido do padre Arrupe aos
jesuítas que estavam trabalhando em campos de refugiados na Tailândia:
“não deixem a oração”. Como podemos experimentar o sentido do Natal
através da oração?
Frei Betto - Oramos para cultivar a nossa fé. E o contrário do medo não é a
coragem, é a fé. Jesus, como acentua o evangelho de Lucas, passava longas horas
em oração. Porque tinha fé como nós temos, e até passou por crise de fé ("Meu
Pai, por que me abandonaste?"). É fundamental que a nossa militância, a nossa
missão, seja alimentada pela oração, deixar Deus orar em nós, abrir-nos à ação do
Espírito em nossas vidas, de modo a não ficarmos reféns da racionalidade
instrumental. Assim como um casal alimenta a sua relação por momentos de
intimidade, nós cristãos nutrimos a espiritualidade na oração.
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IHU On-Line - Alguns consideram que um dos maiores desafios do
cristianismo é vivê-lo na prática. Como podemos viver o cristianismo no
dia a dia?
Leonardo Boff - É difícil e é fácil. É difícil porque nossa cultura dominante não
alimenta uma relação explícita com Deus como aquele que, secretamente, conduz
o caminho de nossa vida e confere coesão à sociedade. Praticamente tudo é
confiado à racionalidade e à política dos meios e não dos fins. Essa cultura não
nos ajuda a fazermos experiências intangíveis, aqueles que vão além dos
interesses, do trabalho, do consumo e das ocupações do dia a dia: viver a
gratuidade da vida, experimentar um amor profundo, uma amizade sólida, um
sentido de vida que vai além do limite de nossa morte. E é também fácil porque o
que quis Jesus, definitivamente, quando peregrinou entre nós? Diria,
respondendo: que nos tratássemos humanamente, que nos amássemos, não só os
que estão do nosso lado (o que não é tão difícil), mas os invisíveis, aqueles que
ninguém olha ou se interessa por eles, que não discriminássemos a ninguém em
razão de sua etnia, de seu sexo, de sua opção de vida, que tivéssemos
solidariedade a partir dos últimos, misericórdia para com aqueles que fraquejam
e não conseguem avançar na vida, que pudéssemos perdoar para que a raiva e o
ódio não sejam a última página do livro de nossa vida e que mantivéssemos
intimidade com Deus, como Pai, amigo, Mãe de infinita bondade, pois
sempre estão misturados com tudo o que fazemos em nossa curta passagem por
esta vida.
Resumindo tudo, penso que no Pai Nosso está a “ipsissima intentio Jesu”,
traduzindo: “a intenção originária de Jesus”. Esta seria: unir Pai Nosso com o Pão
Nosso. Pai Nosso representa nosso impulso para cima, para a transcendência,
para o desígnio último de Deus, o seu Reino (uma absoluta revolução de tudo). O
Pão Nosso significa nosso enraizamento na Terra, com nossas necessidades de
sobreviver juntos (por isso não o Meu Pão), mas o Pão Nosso. Vivemos em
sociedade onde há sempre conflitos e cobranças. Daí a importância do perdão
que harmoniza. Por fim, superar a grande tentação da desesperança, de pensar
que com a morte, tudo acaba ou que podemos romper com Deus. Somente
quando mantemos unidos o Pai Nosso com o Pão Nosso, podemos dizer Amém…
Viver isso com a coerência possível à nossa fragilidade humana, é seguir o
seguimento de Jesus, viver cristãmente, viver plenamente como humanos.
IHU On-Line - Como levar essa mensagem do Cristo aos não cristãos,
respeitando e preservando sua cultura?
Jesus veio nos trazer as bases de um novo projeto civilizatório – Frei Betto
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Leonardo Boff - Eu lhe diria: tente tratar sempre humanamente o outro, ame
incondicionalmente, tenha compaixão operativa para com os pobres, supere o
rancor e a raiva quando for ofendido, cuide da Mãe Terra porque sem ela nada
mais seria possível e mantenha a porta aberta para as possíveis surpresas do
futuro. Talvez deste futuro lhe venha algo surpreendente que o poderá unir a
todos como “num ônibus, cheio de gente alegre” (Chico Buarque), alguém que
poderá ter mil nomes, que poderá ser o Deus da ternura humana e da jovialidade
da vida. Se seguir por este caminho, estará no seguimento de Jesus que viveu tudo
isso junto com outros antes e depois dele. Sejas tu também um destes.
http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/595168-natal-e-tempo-de-
viver-a-gratuidade-da-vida-e-abrir-se-a-utopia-a-outros-mundos-possiveis-
entrevista-especial-com-leonardo-boff-e-frei-betto