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PSICO Ψ

v. 37, n. 2, pp. 169-174, maio/ago. 2006

Psicologia e as práticas institucionais:


A pesquisa-intervenção em movimento
Marisa Lopes da Rocha
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

RESUMO
Este trabalho tem como proposta discutir, no primeiro momento, os pressupostos das pesquisas partici-
pativas, em especial, os da pesquisa-intervenção que traz como referencial teórico-metodológico a análise
institucional. No segundo momento, será apresentado o processo de desenvolvimento e as conclusões
parciais de uma pesquisa realizada em uma escola pública do estado do Rio de Janeiro. Colocar em análise
as relações entre Psicologia e Educação e suas implicações com as condições do trabalho docente e a saúde
na escola é um objetivo atravessado nas presentes reflexões.
Palavras-chave: Pesquisa participativa; pesquisa-intervenção; análise institucional; psicologia e educação.

ABSTRACT
Psychology and institutional practices: Intervention-research in movement
This paper discusses at first the presuppositions of participative researches, in special those which bring
institutional analysis as theoretical and methodological basis. Afterwards, it will be presented the process of
development and the partial conclusions of a research carried out in a public school of Rio de Janeiro. One
of the main goals of these discussions is to analyse the relations between Psychology and Education and
their implications with the conditions of teaching work and health in school.
Key words: Participative research; intervention-research; institutional analysis; psychology and education.

PESQUISA PARTICIPATIVA COMO Parâmetros como os de verdade, neutralidade, ob-


INTERVENÇÃO NAS PRÁTICAS jetividade, universalização de saberes são questiona-
ACADÊMICAS dos e as mudanças que se processam ao longo da/na
As pesquisas participativas surgem como um mo- pesquisa, implicam em transformações também dos
vimento frente às pesquisas cientificistas tradicionais, sujeitos envolvidos e das práticas estabelecidas quer
trazendo pressupostos vinculados à problematização para a população participante na pesquisa, quer para
das relações entre o investigador e o que é investiga- os pesquisadores. Em Thiollent (1987), a investigação
do, entre sujeito e objeto, teoria e prática, com a pers- não tem como ser concebida de modo indiferente às
pectiva do estabelecimento de condições para capta- relações entre pesquisadores e pesquisados.
ção/elaboração da informação no cotidiano das cultu- Numa relação de investigação convencional pre-
ras, grupos e organizações populares. Isso significa tende-se, em nome da objetividade, fechar ao máximo
que as práticas que constituem o social e os refe- o mecanismo de captação, para que as respostas das
renciais que lhe dão sentido vão se produzindo con- pessoas interrogadas sejam emitidas sem efeito de
comitantemente, uma vez que o conhecimento e a aprendizagem e sejam diretamente ‘encaixáveis’ na-
ação sobre a realidade são constituídos no curso da quilo que o investigador deseja mostrar ou justificar.
pesquisa de acordo com as análises e decisões coleti- Assim, perde-se de vista a questão da aprendizagem e
vas, dando à comunidade participante uma presença da criação ao nível das pessoas ou grupos implicados
ativa no processo. O conhecimento se constrói, assim, na situação (Thiollent, 1987, p. 97).
entre o saber já elaborado e incorporado nos pressu- O autor afirma ainda que as análises das condições
postos do pesquisador e o fazer enquanto produção da ação e a produção de novos significados implicam
contínua que organiza a ação investigativa. a desconstrução do caráter individualizado e estereo-
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tipado das respostas. Neste sentido, o cotidiano é fruto de cotidiano para nós está implicado com a dimensão
da experiência coletiva, e podemos considerar que as das mudanças.
situações e os resultados organizados a partir das pes- A vida cotidiana, onde as práticas são tecidas, não
quisas participativas são sempre provisórios e que, pode ser considerada como uma totalidade fechada em
para a sua compreensão, é fundamental a contextuali- si mesma e nem desenvolvida através de relações de
zação dos fatores, a análise das forças que os produzi- determinação linear com a globalidade hegemônica e
ram e dos efeitos das práticas. com os valores dominantes. Antes, para que o cotidia-
Porém, se, por um lado, podemos considerar que no ganhe consistência, é fundamental que pela análise
as pesquisas participativas se constituem a partir de coletiva, seja intensificado, aglutinando as ações frag-
uma metodologia que apresenta pressupostos gerais de mentárias e descontínuas, imprimindo novos sentidos
investigação, por outro, é necessário observar a diver- à realidade (Rocha, Gomes e Lima, 2003, p. 139).
sidade de tendências evidenciada nos diferentes mo- Sendo o cotidiano construído a partir das experiên-
dos de ação, procedimentos e priorização de objetivos cias vividas no curso das ações desenvolvidas para dar
em que a pesquisa-intervenção se caracteriza por uma conta das exigências relativas ao trabalho, contamos
intervenção psicossociológica em nível de transforma- ainda com as contribuições de Kastrup (1999) no que
ção institucional. tange à noção de experiência como o âmbito onde se
circunscrevem variações que foram sendo produzidas
A pesquisa-intervenção traz como referencial nas sucessivas operações que vão sendo repetidas, ora
teórico-metodológico a análise institucional afirmando, ora desmontando hábitos cristalizados,
O movimento institucionalista surge na década de num processo permanente de aprendizagem e desa-
60 na França e nas décadas seguintes na América Lati- prendizagem.
na, tendo como principais referências Lourau (1993; Assim, para começarmos um trabalho em Análise
1997), Lapassade (1998), Guattari (1985; 1992), Hess institucional, é importante a construção de um campo
e Authier (1994), Baremblitt (1992), Saidon (1987; de análise, ou seja, a organização de conhecimentos
2002), Rodrigues, Leitão e Benevides (1992), Barros históricos, políticos e conjunturais acerca do campo
(1999), entre outros. Os principais conceitos que ser- de intervenção no qual buscamos desenvolver um pro-
vem como ferramentas de intervenção nas ações cole- cesso de investigação. A partir do estabelecimento
tivas são a reconceituação de grupo e de instituição, a coletivo de um projeto de trabalho, a pesquisa-inter-
análise das demandas, os analisadores históricos ou venção tem início através de dispositivos mobilizado-
construídos e a análise da transversalidade e das im- res, e durante todo o processo é fundamental uma par-
plicações. É ainda importante ressaltar que o método ticipação ativa da comunidade implicada na análise da
na análise institucional não é só uma questão de pro- micropolítica ali produzida, explicitada nos seus mo-
cedimento, mas uma postura frente ao trabalho, ao vimentos, problemáticas, formas de ação e processos
outro, à vida. A fim de trabalhar um pouco com esses sociais. O campo de intervenção só se constitui como
conceitos, pretendemos tecer algumas considerações tal no momento em que as experiências locais podem
com vistas a facilitar a compreensão do institucio- entrar em análise à luz da contextualização socio-his-
nalismo enquanto um dispositivo analítico. tórico-política. Isso significa que os efeitos das práti-
Por grupo entendemos não um conjunto de pes- cas são tomados na sua complexidade, desconstruindo
soas organizadas por certas estabilizações de espaço e dualidades, determinismos, individualizações psicolo-
tempo, mas os processos que se constituem entre elas gizantes, e o que ganha consistência é uma analítica
e a partir delas no exercício permanente de buscar sen- dos modos de produção da existência na comunidade.
tido para o desdobramento das ações e para o signifi- Na trajetória da investigação, partimos da análise da
cado de sua própria existência. Assim, um grupo se demanda que o próprio pesquisador cria quando ofe-
faz na multiplicidade de tensões geradoras de trans- rece seus serviços (não teria sentido pensar em oferta
formações nas/das circunstâncias e no/do curso de seu de trabalho do psicólogo em uma sociedade oriental,
movimento. Da mesma maneira, as instituições na por exemplo, ou em outra etapa histórica de nossa pró-
perspectiva do movimento institucionalista, não são pria sociedade, ou seja, o que nos é solicitado está im-
compreendidas como estabelecimentos ou estruturas plicado com o que nossa presença suscita, quer pela
organizacionais, mas se constituem em práticas sócio- nossa atitude, quer pelo que representa nossa profis-
historicamente produzidas, trazendo, portanto, a di- são) e das demandas gerais existentes no local ou que
mensão dos valores, das tradições, da referência das venham a surgir no desenvolvimento do trabalho. Esse
ações que no cotidiano são naturalizados e tomados já é também o início do processo de análise das im-
como verdades absolutas, universalizados. O sentido plicações (Barbier, 1985) feita pela equipe inter-
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ventora e que deverá ser estendida a toda a comuni- as tradições e hábitos da comunidade investigada, os
dade em análise. consensos estabelecidos que naturalizam o cotidiano
A análise das implicações busca dar visibilidade nos seus valores, produções e expectativas em busca
às relações dos participantes, incluindo o próprio gru- do movimento. Para isso as análises macropolíti-
po de analistas, com as instituições que se atualizam cas são fundamentais, pois nos situam nas forças
na intervenção. conjunturais atravessadas nas práticas, sendo também
O curso do trabalho desenvolve-se na perspectiva de imprescindível colocarmos uma lupa nas relações e
transversalizar as análises, ou seja, de iluminar as insti- nos efeitos dos atos que encarnam as políticas mais
tuições atravessadas nas práticas enquanto uma supe- amplas, afirmando-as no dia-a-dia e fazendo-as avan-
ração do limite da análise da verticalidade – relações çar. A perspectiva micropolítica não despreza a razão,
sociais institucionalizadas, hierarquizadas e funcionais a consciência, mas considera que não são suficientes
– e da análise da horizontalidade – relações imediatas, para provocar mudanças, dando atenção às ações, à
informais nos diferentes estratos. O movimento da sensibilidade e ao que pode fazer diferença. Negar o
análise institucional tem como proposição mais geral status quo é uma dimensão do combate, mas não a úni-
estabelecer um processo autogestionário, entendendo ca, afirmar outros modos de existência que escapem
que autonomia é um exercício permanente de análise aos determinismos é fazer história. O qualitativo se
e compreensão das condições em que se realiza a ação vincula, portanto, à recuperação do percurso dos mo-
e, neste sentido, dos seus limites e possibilidades. vimentos dessa comunidade, percebido nas polêmicas,
Temos, então, que a pesquisa-intervenção traz nos desvios, nas ações que fazem diferença, frente ao
como proposta criar dispositivos de análise da vida dos hegemônico, que abre espaço a imprevisibilidades.
grupos na sua diversidade qualitativa, e isto significa Para o psicólogo, isso implica enfrentar as armadilhas
que esta proposição investigativa tem como alvo o do assistencialismo psicologizante que caça os riscos,
movimento, as rupturas que as ações individuais e que fareja as circunstâncias suspeitas, corporificando
coletivas imprimem no cotidiano. Os processos em ‘o diferente’, personagem fragmentado do processo do
desenvolvimento na pesquisa-intervenção produzem qual é um modo de expressão, um analisador. A pesqui-
permanentemente a realidade na qual cada um de nós sa-intervenção busca criar um campo de problematização,
e os diferentes grupos são um modo de expressão. escavando outras dimensões do cotidiano e instaurando
tensão entre representação e expressão, com a perspecti-
A diversidade qualitativa va de dar consistência a novos modos de subjetivação.
Se qualitativo, na pesquisa-intervenção, não é sim- Concluindo as linhas gerais que configuram uma
plesmente a interpretação, explicação ou qualificação pesquisa intervenção enquanto uma investigação
do quantitativo, então, do que se trata? É importante qualitativa, seria importante evidenciar que está pau-
considerar que o dado colhido em uma pesquisa já é o tada no paradigma ético-estético-político proposto por
efeito de uma objetivação, a extremidade de um pro- Guattari (1992), em que a ética é o reconhecimento da
cesso, forma compacta que nos dá a sensação de maté- alteridade, referida não ao parâmetro da tolerância ou
ria estável, de fato acabado. No entanto, o que nos in- da intolerância, mas ao desafio da convivência que não
teressa é dar visibilidade às ações, aos rituais, às práti- implica em consenso redutor ao mesmo, ao um, mas a
cas que instituem um objeto, uma individualidade acordos possíveis e temporários. Nesta perspectiva, a
como algo em si mesmo. Os discursos e as normas pro- ética envolve o exercício do pensamento que avalia
duzidos em uma coletividade são práticas constitutivas situações e acontecimentos, que afirma escolhas e ca-
da realidade e é isso o que nos cabe investigar, ou minhos como potencializadores de vida; a estética traz
seja, os movimentos permanentes dos processos de a dimensão da criação, já que não há conhecimentos
subjetivação. Qualitativo está ligado aos sentidos pro- universais para serem aplicados, mas uma diversidade
duzidos nas relações socio-historicamente determina- de injunções que desafiam o pensamento, a ação e a
das, afirmando a alteridade e as turbulências que nos sensibilidade para a produção de novos processos de
movem a analisar, a dialogar, a buscar entender o que existência; a política afirma a responsabilização fren-
vivemos. As palavras mudam de significado em fun- te aos efeitos produzidos nas práticas e os compromis-
ção dos sentidos que vão sendo agenciados nas práti- sos e riscos implicados com as tensões e as posições
cas de acordo com as relações de força implicadas assumidas. Para Rocha e Aguiar (2003), a questão se
naquele momento. Os sentidos são a virtualidade das vincula à produção de utopias ativas em que o exercí-
ações, estando aquém e além das palavras que signifi- cio da autonomia é limitado ao mesmo tempo que é infi-
cam o que experienciamos. nito, pois é uma questão relativa à potencialidade da vida.
Segundo Veiga Neto (1996), o desafio dos pesqui- Desse modo, das visões totalizadoras e das utopias
sadores é ultrapassar as representações que estruturam passamos às ações que remetem às estratégias de aná-
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lise das formas constituídas, evidenciando seu caráter com a comunidade participante envolveu discussões
fluido, polêmico, que flexibilizam divisões tradicio- acerca da dimensão político-institucional (poder fren-
nais, cujas práticas sociais, as experiências, são pon- te aos procedimentos e gerenciamento do processo –
tos de criação de sentido e não reflexo de uma realida- organização do trabalho escolar) e da dimensão peda-
de que está em outro lugar. As tradições e os poderes gógica (contextualização das demandas locais e inter-
institucionais, sem dúvida, são fatores socioeconô- ferência na construção curricular – articulação entre
mico-culturais determinantes do que pode ser feito, concepção e execução), dimensões essas em que são
mas o homem tem no pensar o desafio ético da exis- tecidas as condições do trabalho docente e o processo
tência digna, lutando para o estabelecimento do que de escolarização. Os dispositivos de intervenção
deve ser frente às pressões em questão. Os limites e as construídos para a realização da análise das deman-
possibilidades do coletivo se fazem num vai-e-vem do das, das implicações e da transversalidade circunscre-
jogo político, resistindo às formas das múltiplas arma- veram três segmentos:
dilhas de repetição do mesmo. • os dispositivos de intervenção junto aos alunos
– oficina de sexualidade e oficina de escola e
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: trabalho; conselho de representantes e grêmio;
TRABALHO DOCENTE, PRODUÇÃO DE projeto manghupe (estágio profissionalizante no
SUBJETIVIDADE E SAÚDE Hospital Pedro Ernesto para alunos do ensino
médio); entrevistas e observações de turma. Tais
O projeto de pesquisa-intervenção que se realizou atividades tiveram como objetivo tanto atender
ao longo de 7 anos com uma equipe de coordenação e às solicitações feitas pelo próprio corpo discen-
alunos de Iniciação Científica do curso de Psicologia te, como conhecer seus valores, questões, mo-
da UERJ foi concluído no final de 2003 e tinha como dos de inserção no processo de ensino-aprendi-
proposta configurar e problematizar a organização do zagem e relações com as demais equipes da co-
processo de trabalho do professor do ensino funda- munidade escolar, buscando afirmar uma orga-
mental e médio que vem consolidando, na nossa reali- nização política ao corpo discente, facultando
dade, um modo de pensar/fazer escola à margem da uma participação ativa na vida e nos rumos do
qualificação e da valorização do magistério. A pers- trabalho escolar;
pectiva era a de colocar em análise o cotidiano educa- • os dispositivos de intervenção junto aos funcio-
cional de uma escola pública urbana do Rio de Janei- nários – entrevistas individuais e em pequenos
ro. Como vimos anteriormente, a pesquisa-intervenção grupos; debates organizados em pequenos gru-
tem como referencial teórico-metodológico a análise pos; acompanhamento de alguns dias de traba-
institucional, cujo primeiro movimento é a constitui- lho. Nosso objetivo com os funcionários era não
ção de um campo de análise em relação às questões só conhecer, mas analisar coletivamente as con-
atravessadas na problemática investigada. Nesse pro- dições de trabalho, a articulação com os demais
jeto, tínhamos então: o levantamento de material bi- setores, estabelecendo críticas e alternativas
bliográfico sobre a organização do trabalho docente para o exercício de suas funções;
no tempo e espaço da sociedade brasileira e suas im- • os dispositivos de intervenção junto aos profes-
plicações no cotidiano escolar; o estudo da história da sores – contatos informais diários; entrevistas;
constituição do processo educacional brasileiro atra- participação nos eventos por eles organizados;
vés da análise da organização do trabalho escolar e for- grupos de discussão por turma ou por série; reu-
mas de gestão e suas implicações com a divisão social niões gerais. Tais dispositivos buscaram mobi-
do trabalho na realidade brasileira; a configuração da lizar o segmento de professores para a análise
desqualificação do magistério vinculada à desvalori- coletiva do cenário político-institucional e o
zação da educação e à divisão sexual do trabalho no modo como a conjuntura atravessa as condições
ensino elementar e médio, evidenciando o que vem se de trabalho, relações e formas de organização e
constituindo como saúde/adoecimento no trabalho, as- concomitante se processa a intervenção com
sim como resistência dos professores a esse processo. vistas à ampliação de qualidade de vida local.
O segundo movimento é a constituição de um cam- Em relação aos familiares, foram tentadas várias
po de intervenção que, nessa pesquisa, se deu em uma formas de dispositivos como reuniões gerais temáticas,
escola de ensino fundamental e médio (a partir da por série e por turma, contatos informais em festas e
quinta série ao ensino médio) da rede pública do esta- nos horários de saída sem que quaisquer dessas inicia-
do do Rio de Janeiro, com uma população, naquele tivas fizessem deslanchar um trabalho sistemático. O
momento, de 100 professores, 50 funcionários e 1700 motivo alegado, na sua grande maioria, foi o extenso
alunos. O projeto coletivo de trabalho estabelecido horário de trabalho fora de casa e de afazeres domésti-
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cos. O que pudemos perceber é que a expectativa dos de dança; o excesso de calor nas salas com um grande
que optaram pelo horário integral, é que a escola dê número de alunos.
conta, sozinha, do processo educacional. No modo de funcionamento institucional, encon-
De todo o trabalho analisado, que foi exaustiva- tramos algumas das características das instituições
mente debatido pela equipe de intervenção e com a contemporâneas: a fragmentação, a homogeneização,
comunidade, através dos diferentes dispositivos, po- a aceleração e a hierarquia. A fragmentação, mais do
demos ressaltar alguns dos principais indicadores de que um modo de operar isolado, é um modo de viver e
análise: fracasso escolar (resultados do processo de de ver o funcionamento escolar que cria personagens
ensino-aprendizagem sempre aquém das expectativas (o aluno problema, por exemplo), objetivando fatos e
dos educadores), indisciplina (transgressão às regras), situações, desqualificando processos e fragilizando a
violência (exacerbação da indisciplina que causa dano articulação enter profissionais frente às lutas impor-
físico ou moral ao outro) e tédio (baixa de humor so- tantes de serem travadas pela qualidade no trabalho. A
cial vinculada ao desânimo e ao descrédito de possí- homogeneização, causa e efeito da fragmentação, se
veis mudanças). Os indicadores, pontos aglutinadores apresenta no esvaziamento dos debates, das avaliações
de forças e polêmicas que expõem os modos de fun- e enfraquecimento do exercício das escolhas, levando
cionamento produzidos pelas políticas instituídas e pe- os profissionais à ênfase na repetição e à perda de sen-
las práticas cotidianas, geravam demandas assisten- tido das tarefas. A aceleração na produtividade, valor
ciais, individualizantes e criavam a todo momento so- vinculado ao projeto da qualidade total, aponta para o
licitações de tratamentos, afirmando a escola como cumprimento de múltiplas atividades concomitantes,
uma rede de cuidados para crianças e/ou professores já que a descentralização é da tarefa e não da gestão,
problemas. Isso não se dá fora de circunstâncias eco- valorizando, portanto, a agilidade, o quantitativo dos
nômicas, políticas, culturais e históricas do nosso país resultados e o achatamento das diferenças. Finalmen-
e, neste sentido, evidencia que os sucessivos governos te, a hierarquia, afirmada tanto nos modos de ocupa-
conferem verbas sempre desproporcionais ao aumento ção de cargos, por aqueles que estão desempenhando
da demanda escolar, priorizando medidas eleitoreiras funções administrativas, como no desconhecimento
e que favoreçam as estatísticas que elevam o Brasil no quase que generalizado, pelos educadores, das leis e
ranking dos países em desenvolvimento, no que tange das regras do ofício, o que leva ao medo do risco e à
ao número de cidadãos alfabetizados, ao invés de ata- inibição de iniciativas. Encontramos, no dia-a-dia das
car problemas crônicos de carenciamentos na ordem atividades escolares, uma tendência a repetir práticas
da formação docente, das condições de trabalho, dos tradicionais, sistemáticas, que ganham espaço porque
salários. Mesmo os avanços contidos nas leis acabam a comunidade, quase sempre, apresenta uma organiza-
não se efetivando na realidade do magistério por falta ção precária, o que faculta um funcionamento buro-
de políticas públicas que implementem mudanças efeti- cratizado e centralizado do poder, em todos os níveis,
vas. Soma-se ao fator econômico-político o fator his- levando ao tarefismo e à perda de sentido. Do mesmo
tórico-cultural vinculado às raízes religiosas do nosso modo, as práticas clientelistas, as políticas de ‘jeiti-
ensino e sua identificação ao trabalho missionário, às im- nho’ e o paternalismo se inscrevem na escola – inscre-
plicações da feminização do magistério, que traz o lugar vem a escola – na dificuldade de publicizar o poder.
da mulher na nossa sociedade para a organização esco- Se, por um lado, aliviam o cotidiano corrido e sufoca-
lar, e ao movimento caracterizado como a modernização do com alguns favores e concessões, por outro, dei-
do ensino que profissionalizou o trabalho do professor xam os educadores mais vulneráveis, e aí se incluem
de ensino elementar e médio nos moldes tecnicista. as relações com os especialistas.
No curso da pesquisa-intervenção, foram se evi- É fundamental pontuar que mudar o processo de
denciando os indicadores de análise, suas condições trabalho na escola, implica um amplo processo de in-
de produção socioeconômico-cultural e históricas e as clusão em um outro regime de tempo a partir da
implicações locais dos professores, funcionários e alu- contextualização das crianças e dos adolescentes e da
nos com a organização desse processo. Pudemos veri- implementação de propostas pedagógicas inovadoras
ficar que algumas características pregnantes contri- para a adequação do trabalho, isso porque a realidade
buíam para a deterioração das condições ambientais e é sempre diversa e requer o reconhecimento das sin-
físicas pessoais: o excesso de trabalho pelas duplas e gularidades em atividades coletivas, o incentivo à cria-
triplas jornadas devido aos baixos salários; o excesso ção de questões no cotidiano, onde o ‘fio da meada’
de barulho, causado pela ferrovia ao lado da escola e seja possível de ser construído.
pela agitação do longo corredor em que as salas não Todos esses fatores evidenciados também nas aná-
têm paredes até o teto, trazendo para cada sala de aula lises bibliográficas, constituídos ao longo dos séculos
o burburinho das demais, entre essas as de música e as na nossa sociedade, vêm contribuindo para a des-
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qualificação e desvalorização do magistério e para di- sobre trabalhadores, mas também as que pesam
versas formas de adoecimento dos educadores como sobre as mulheres, as crianças, as minorias se-
estresse, depressão, ansiedade, rouquidão, vinculadas xuais etc., as que pesam sobre sensibilidades
a um modo de inclusão no processo que exclui a co- atícas, ... só uma reação em cadeia, atravessando
munidade em cadeia da organização do processo de as estratificações existentes, poderá catalisar um
trabalho. Para os educandos, é a infantilização um dos processo irreversível de questionamento das for-
efeitos dessa formação sociofamiliar e escolar. Isso mações de poder às quais está acorrentada a socie-
não significa que o professor, os funcionários e alunos dade atual (Guattari, 1985, p. 67-68).
não inventem maneiras de traçar um percurso com to-
dos os imprevistos que fazem o cotidiano. O que não REFERÊNCIAS
se instala é uma dinâmica de reconhecimento em que
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a diferença ganhe consistência, inteligibilidade como (1ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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inglês ver’ fruto das miraculosas soluções pragmáticas Hess, R., & Authier, M. (1994). L’analyse institutionnelle,
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avanço no processo de autogestão, mediante análises (1ª ed.). Paris: Economica.
coletivas, lutas pela melhoria de qualidade de vida na Lourau, R. (1993). Análise Institucional e práticas de pesquisa,
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cidadania. Como criar resistências aos mecanismos (pp. 19-35). Porto Alegre: Mediação.
individualizantes? Vivemos um tempo em que é pre-
ciso ir além das denúncias, afirmando novas práticas Recebido em: 13/04/2005. Aceito em: 10/08/2006.

que sustentem territórios de convivência, sempre Autora:


Marisa Lopes da Rocha – Professora Adjunta e Pesquisadora em Educação do
renováveis. Guattari (1985) nos fala da micropolítica Departamento de Psicologia Social e Institucional no Programa de Pós-Gra-
como algo que não despreza os grandes movimentos, duação em Psicologia Social da UERJ. Mestre em Filosofia da Educação pelo
IESAE/FGV e Doutora em Psicologia pela PUC/SP no Núcleo de Estudos e
mas que traz a dimensão das práticas de si, enquanto Pesquisas da Subjetividade.
uma ética-estética da existência: Endereço para correspondência:
MARISA LOPES DA ROCHA
Toda questão está em saber de que revolução se Rua Mário Coimbra Bouças, 10, Bl. 2, apto 501 – Freguesia
trata! Trata-se, sim ou não, de acabar com todas as CEP 22743-675, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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PSICO, Porto Alegre, PUCRS, v. 37, n. 2, pp. 169-174, maio/ago. 2006

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