Você está na página 1de 2

MEMÓRIA

HÁ 150 ANOS ERA PROPOSTO POR RIEMANN UM NOVO MODELO DE GEOMETRIA

Um clássico da matemática
A palestra dada em 10 de junho de 1854

por Bernhard Riemann se tornaria um


“G ostaria de ouvir o que este rapaz tem a dizer
sobre este assunto.” Assim falou o velho Carl
Friedrich Gauss (1777-1855), considerado o maior
matemático de sua época, quando escolheu o tópico
clássico da matemática. Nela, sobre o qual Georg Friedrich Bernhard Riemann
(1826-1866) deveria falar em sua dissertação para
com base em uma linguagem
obter, em 1854, na Universidade de Göttingen,
intuitiva, esse matemático a chamada habilitação, um tipo de certifica-
do de pós-doutorado necessário para se tor-
alemão apresentou, nar professor universitário na Alemanha.
Segundo o regulamento, Riemann ha-
a uma audiência de via indicado três tópicos, dos quais a ban-
ca examinadora escolheria um. Tradicio-
docentes da Universidade nalmente, a escolha recaía sobre o primei-
ro. Entretanto, Gauss, ao notar que o tercei-
de Göttingen, um conjunto ro tópico se intitulava Sobre as hipóteses nas
quais se fundamenta a geometria, resolveu es-
de conceitos e postulados que,
colher este último.
mais tarde, passaria a ser conhecido A curiosidade de Gauss era plenamente justi-
ficada. Um problema importante da geometria nes-
como geometria riemanniana, da qual sa época era saber se o quinto postulado da geome-
tria plana de Euclides (século 3 a.C.) – “De um ponto
a geometria euclidiana é um caso fora de uma reta pode ser traçada uma única para-
lela a esta reta” – podia ou não ser demonstrado a
particular. A audaciosa concepção partir dos outros quatro postulados (ver ‘Cinco
postulados de Euclides’).
de Riemann não foi bem entendida Por séculos, as tentativas de provar esse quinto
postulado, a partir dos outros, fracassaram. Já em
Há 150 anos

em sua época. Porém, ao longo


1824, Gauss escreveu a um amigo que estava conven-
do século passado, serviu de base cido da existência de uma geometria na qual o quin-
to postulado não era válido. Isso, na época, era uma
para o desenvolvimento de outros idéia revolucionária, e Gauss nunca publicou seus
resultados. Só em torno de 1830, o matemático rus-
modelos de geometria e de teorias so Nikolai Lobachewski (1792-1856) e o húngaro
János Bolyai (1802-1860), independentemente, pu-
da física, como a relatividade geral. blicaram a construção sistemática de tal geometria.
Restava um problema fundamental. Não existia
um modelo dessa nova geometria, única maneira de
garantir que não se poderia achar alguma contradi-
ção nas construções de Lobachewski e Bolyai. Len-
do-se os trabalhos de Gauss, percebe-se que ele acre-
IMAGENS CEDIDAS PELO AUTOR

Figura 1. Uma superfície de curvatura negativa


constante. A geodésica indicada não pode
ser prolongada além da aresta, e isso contradiz
o segundo postulado de Euclides

7 8 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 5 • n º 205
MEMÓRIA
ditava que uma superfície de cur- irão desempenhar o papel de retas nessa Figura 2.
vatura negativa constante, como geometria (figura 2). Uma geodésica
de uma esfera
mostra a figura 1, poderia ser um Gauss havia provado que a curva- ligando
tal modelo – a curvatura em um p1 tura de uma superfície dependia ape- os pontos p1 e p2.
ponto é o produto da maior pela nas de medidas feitas sobre ela. Ela é o caminho
menor das curvaturas de todas Riemann aproveitou esse fato e, le- mais curto,
as curvas da superfície que pas- vando em conta que a geometria por medido sobre
p2 a superfície,
sam pelo ponto. Entretanto, to- ele definida dependia de medidas fei- entre todos
dos os exemplos dessas superfí- tas na variedade, definiu a curvatura os caminhos que
cies têm pontas ou arestas, o que de uma variedade de tal modo que a ligam p1 a p2
contradiz o segundo postulado de curvatura de uma superfície passou a ser
Euclides. É nesse quadro que se situa o um caso particular da noção de curvatura de
trabalho de Riemann. uma variedade de Riemann.
Usando uma linguagem intuitiva, sem definições O caso mais simples dessa situação é o espaço
precisas nem demonstrações cuidadosas, Riemann, euclidiano usual, no qual as geodésicas são retas, e
durante sua dissertação em 1854, introduziu o que a curvatura é identicamente zero. Riemann afir-
hoje chamamos uma variedade de dimensão n (um mou – mas não provou – que se a curvatura é zero
objeto que generaliza a noção de superfície para por toda parte, então a variedade é localmente –
qualquer dimensão e sem menção a um espaço am- isto é, nas proximidades de um ponto – o espaço
biente) e postulou que uma geometria era um mo- euclidiano usual.
do de medir comprimentos em uma tal variedade. Desse modo, a geometria euclidiana é apenas
A partir daí, são definidas as curvas “mais curtas uma entre as geometrias de Riemann, e é possível
entre pontos próximos”, chamadas geodésicas, que provar, como Gauss havia previsto, que as varieda-
des de curvatura negativa constante fornecem mo-
delos para geometrias que não satisfazem o quinto
postulado de Euclides.
A audaciosa concepção de Riemann não foi bem
Os cinco postulados entendida em sua época, e só lentamente se desen-

de Euclides volveu o que hoje chamamos geometria riemannia-


na. Um dos pontos importantes nesse desenvol-
vimento foi a teoria da relatividade geral do físico
1º Dois pontos determinam alemão Albert Einstein (1879-1955), de 1916, que
utilizou a linguagem introduzida por Riemann e
uma única reta.
por seus sucessores – especialmente, os alemães
Elwin Christoffel (1829-1900) e Wilhelm Killing
2º A partir de qualquer ponto de uma
(1847-1923) e os italianos Gregorio Ricci-Cubastro
reta é possível marcar sobre ela um (1853-1925) e Tulio Levi-Civita (1873-1941).
segmento de comprimento arbitrário. O século passado presenciou um desenvolvi-
mento intenso da geometria riemanniana. Além
3º É possível traçar um círculo com centro disso, inspirados por Riemann, foram criados ou-
arbitrário e raio arbitrário. tros modelos de geometrias: a teoria das conexões,
as G-estruturas, a teoria do calibre, entre outras.
4º Todos os ângulos retos são iguais A decisão sobre qual geometria é adequada para
descrever o universo – ou se tal geometrização é
(Definição de ângulo reto:
sequer possível – continua em aberto. Mas isso, pa-
Se duas retas que se cortam formam rafraseando o profético final do artigo de Riemann,
ângulos iguais, o ângulo comum “nos levaria ao domínio de outra ciência, o domínio
assim determinado é chamado reto). da física, no qual a natureza da presente exposi-
ção não nos permite penetrar”.
5º Por um ponto do plano fora de uma
reta passa uma única paralela a essa
reta (retas paralelas de um plano
são aquelas que prolongadas
Manfredo P. do Carmo
indefinidamente não se encontram). Instituto Nacional de Matemática
Pura e Aplicada (Impa)

junho de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 79

Você também pode gostar