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FREI LUÍS DE GRANADA,

MENTOR E BIÓGRAFO
DE D. FREI BARTOLOMEU
DOS MÁRTIRES
– VIDA DO ARCEBISPO.

ANTÓNIO MATOS REIS


Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo.

1
ENCONTRO DE DOIS GRANDES ESPÍRITOS

o outono de 1552, Frei bartolomeu dos mártires, obedecen-

N do às diretrizes emanadas dos seus superiores hierárquicos,


pôs-se a caminho de Évora. a cidade alentejana era então,
depois de Lisboa, a mais importante do país, e por diversas
vezes funcionou como segunda capital do reino, com as prolongadas re-
sidências da corte.
por esta altura, em portugal, procedia-se ao incremento e à refor-
mulação dos estudos a nível superior, em diversas áreas académicas, no
âmbito da política cultural incentivada no reinado de d. João iii, quer
na velha universidade, deinitivamente transferida para coimbra, quer
noutras instituições já existentes ou então criadas1 . em Évora, o grande
promotor da renovação foi o cardeal d. Henrique, prelado excecional,
que esteve longos anos à frente da diocese (1540-1564 e 15765-1578)2. a
leitura da nota biográica que Luís de Granada lhe dedicou 3 ajuda-nos a
compreender o dinamismo que atravessou esta diocese, territorialmen-
te uma das maiores, se não a maior, de todo o país, naquela época, e é
no contexto de tal dinâmica que surgirá a nova universidade de Évora.

1
cf. José sebastião da silva dias, A política cultural da época de D. João III, 2 vols., universidade de coimbra, 1969.
2
cf. amélia polónia, D. Henrique o Cardeal Rei, Lisboa, círculo de Leitores, 2005. a autora dedicou ao tema
especíico do arcebispado eborense de d. Henrique outros estudos, como: “ espaços de intervenção religio-
sa do cardeal infante d. Henrique: actuação pastoral, reforma monástica e inquisição”, em Em torno dos
espaços religiosos – monásticos e eclesiásticos, porto, iHm-up, 2005; “a diocese de Évora em contextos pré
e pós-tridentinos. a actuação pastoral do cardeal infante d. Henrique”, em Eborensia n.º 38, ano XiX,
2006 , p. 45-65.
3
Luis de Granada, História de las virtudes y oicio pastoral del Serenísimo Cardenal don Henrique, Arzobispo
de Évora, que despues fué gloriosísimo Rey de Portugal, em Luis de Granada, Obras Completas (ed. por a.
Huerga)., madrid, Fundación universitaria española; dominicos de andalucía, 1997, vol. 16, p. 135.
4 antónio matos reis

a este movimento icou ligado Frei bartolomeu, que os superiores


enviaram à cidade alentejana, para ministrar lições de teologia, encon-
trando-se entre os destinatários das suas aulas o ilho do infante dom
Luís, dom antónio, futuro prior do crato.
desta estadia na cidade alentejana, o facto mais relevante foi, segun-
do creio, o encontro e o convívio com Frei Luís de Granada, religioso da
mesma ordem, de origem humilde, mas extraordinariamente culto e
piedoso, excelente pregador e escritor, talvez o mais prolíico e o mais
lido autor de livros de espiritualidade, na península ibérica, no século
XVi e seguintes. terá vindo da espanha integrado na leva de dominica-
nos que, em face do interesse manifestado pela monarquia portuguesa,
iria proceder à revitalização da província dominicana de portugal. em
Évora tornou-se muito próximo do cardeal d. Henrique, com o qual co-
laborou de perto e a quem dedicará também a carinhosa biograia a que
já izemos referência. instalados no mesmo convento, podemos imagi-
nar as longas conversas travadas entre ambos os dominicanos. mais ve-
lho dez anos, e com uma grande experiência na atividade pastoral, Luís
de Granada tornou-se especial admirador e possivelmente o mentor de
Frei bartolomeu, que mais tarde lhe icaria a dever a indigitação para
arcebispo de braga. Viria a ser também o seu primeiro biógrafo

os pais de Luís, eram de gente simples, originários de sarriá, na Gali-


za, e possivelmente transferiram-se para Granada, após a sua reconquis-
ta, integrados numa das levas de povoadores nortenhos, cuja deslocação
para aí foi incentivada pela monarquia espanhola, para contrabalançar
o peso da população mourisca, autorizada a permanecer no território4.

4
a Frei Luís de Granada foram dedicadas várias biograias. a mais completa e recente, dotada de rigor
crítico, é de álvaro Huerga, Una vida al servicio de la Iglesia, madrid, bac, 1988. ao público em geral, inte-
ressará a leitura de urbano alonso del campo, Vida y Obra de Fray Luis de Granada, salamanca, editorial
san esteban, 2005 (colección biblioteca dominicana).
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 5

nascido em 1504, viu-se órfão de pai aos cinco anos de idade, viven-
do a sua pobre mãe do trabalho e das esmolas que lhe davam. em 1512,
com oito anos de idade, receberam-no sob a sua carinhosa protecção os
mendoza, condes de tendilha e alcaides de Granada, atribuindo-lhe a
função de pajem dos seus ilhos, tendo frequentado com eles o estudo
das Humanidades, no ambiente fascinante da alhambra granadina.
aos dezanove anos, solicitou a admissão no convento dominicano de
santa cruz la real de Granada, onde professaria a 15 de junho de 1524.
concluída a formação em Valladolid e ordenado sacerdote, regressou a
Granada, para iniciar o seu ministério através da pregação e de outras
atividades apostólicas.
em 1534, inscreveu-se num rol de voluntários, para colaborar na
evangelização da nova espanha (méxico), mas os superiores da ordem
reservavam-lhe outras missões. Logo nesse ano foi incumbido de res-
taurar o convento dominicano de scala coeli, na sierra morena (córdo-
va), onde escreveu o famoso Libro de la oración y meditación, que acaba-
ria de rever em Évora e viria a ser impresso em salamanca, em 1554.
Foi convidado para exercer as funções de professor no prestigiado
colégio de s. Gregório de Valladolid, onde fora aluno, mas declinou o
convite e foi depois eleito prior do convento de palma del rio, em 1545,
daí passando para o de badajoz, onde desempenhou o cargo de prior, de
1548 a 1550, e redigiu o livro de espiritualidade intitulado Guia de Peca-
dores, publicado em 1559.
enviado para portugal, de modo idêntico a outros dominicanos espa-
nhóis, segundo vimos, foi-lhe designado como primeiro campo de acti-
vidade o alentejo e, mais concretamente, a cidade de Évora, passando a
residir no convento que a ordem aí tinha, e tornar-se-á um dos melho-
res colaboradores do cardeal d. Henrique, que então presidia aos des-
tinos da extensa diocese alentejana, cuja vida espiritual e cultural se
preocupou em dinamizar. o trabalho de Frei Luís estendeu-se a várias
frentes: a pregação nas vilas e aldeias, a formação de um grupo de sa-
cerdotes para se dedicarem à pregação, e ainda a escrita de livros, a que
chamou “pregadores mudos”. na mesma direção se situou o apoio dado
à fundação de uma escola ou “estudo universal de gramática, artes, teo-
Frei Luís de Granada
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 7

logia e juntamente casos de consciência e sagrada escritura”, dirigida


por um colégio de Jesuítas, destinada em primeiro lugar à formação do
clero diocesano.
cumprida a sua missão no alentejo e já residente em Lisboa, em 1556,
no capítulo celebrado no convento da batalha, foi eleito provincial, o que
exigiu a sua transiliação da província dominicana de andaluzia para a
de portugal. na mesma altura tornou-se confessor da rainha d. catari-
na, viúva de d. João iii, e regente na menoridade de d. sebastião. após
a morte de d. Frei baltasar Limpo, a rainha, a quem competia indicar o
sucessor, resolveu indigitar Frei Luís de Granada para arcebispo de bra-
ga, atendendo às suas qualidades espirituais, à sua cultura e à intensa
atividade apostólica que tinha desenvolvido em Évora.
rejeitando a nomeação, foi instado a sugerir outro candidato, para
que a arquidiocese fosse provida com um pastor santo, culto e zeloso, e
propôs Frei bartolomeu dos mártires, que inicialmente também recusou
a nomeação, mas acabou por a aceitar, levado por motivos de obediência.
além da sua humildade, é natural que a recusa de Frei Luís de Gra-
nada em aceitar a nomeação fosse devida não só ao facto de a sua língua
materna não ser a portuguesa, mas também ao de, por esta altura, os
livros de espiritualidade que tinha publicado (Livro de Oração e Medi-
tação, Guia de Pecadores e Manual de Orações) estarem a ser objeto das
atenções da inquisição espanhola, presidida pelo severo arcebispo de
sevilha, Fernando Valdés, assessorado pelo dominicano melchior cano,
vindo a ser colocados no Índice espanhol de livros proibidos, em 15595.
estas obras acabariam por ser reabilitadas no concílio de trento, onde
d. Frei bartolomeu dos mártires fora nomeado para integrar a comis-
são encarregada do Índice dos Livros Proibidos. Foi com alegria que em
1563 Luís de Granada recebeu a notícia de que o concílio, tendo revisto
o assunto, aprovara os seus escritos, e de que essa aprovação tinha sido
conirmada pelo papa paulo iV.

5
esta ilação, que não encontramos em qualquer autor, é da nossa inteira responsabilidade.
8 antónio matos reis


durante quatro anos, exerceu as funções de provincial com toda a
sabedoria e equilíbrio, promovendo o lorescimento da observância con-
ventual e a expansão da ordem, incluindo a ereção de dois novos con-
ventos, o de montemor-o-novo e o de ancede, este no concelho de baião,
a elevação a priorado do convento de nossa senhora da Luz, na vila de
pedrógão Grande, e, com Frei bartolomeu dos mártires, o lançamento
das bases para o futuro convento de Viana.
terminado o mandato como provincial, continuou a residir no con-
vento de s. domingos de Lisboa, com algumas estadias noutros con-
ventos da ordem, dedicando-se principalmente à oração, à pregação, à
escrita e à revisão das obras que ia publicando. assistiu à morte do car-
deal d. Henrique, ocorrida em 31 de janeiro de 1580, confortando-o nos
últimos momentos e dedicando-lhe uma afetuosa biograia. até ao im
da vida, continuará em portugal, embora entre os seus muitos livros, na
maioria aqui redigidos, apenas em dois adotasse a língua portuguesa:
Compêndio de Doutrina Cristã e Treze sermões.
com 84 anos de vida, alquebrado pela idade e pelos jejuns e consu-
mido pela doença, no último dia de 1588, entregou serenamente a alma
a deus, depois de, a seu pedido, lhe terem lido a paixão de cristo, segun-
do o evangelho de s. João.

Frei Luís de Granada deixou em legado uma vasta produção literária,


dedicada a vários temas, relacionados direta ou indiretamente com a
espiritualidade6. na sua escrita utilizou as línguas portuguesa, caste-
lhana e latina, cuja escolha dependeu certamente das circunstâncias
históricas e da natureza do público a que as obras se destinaram. as que
visavam o comum da população foram escritas em língua vulgar, na sua
maior parte o castelhano. nas que visavam um público culto e até es-
pecializado, que se estendia para além das fronteiras de portugal e da
espanha, a língua adotada foi a latina.

6
cf. maria idalina resina rodrigues, Fray Luis de Granada y la literatura de espiritualidad en Portugal
(1554-1632) (coleccion "espirituales espanoles"), madrid, Fundación universitaria española, 1988.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 9

excecionalmente, duas dessas obras foram escritas em língua portu-


guesa: Compêndio de Doutrina Cristã e Treze sermões, que aliás se com-
pletam mutuamente, como na portada e no prefácio se adverte, embora
saíssem da tipograia em datas diferentes, respetivamente em 25 de abril
e em 20 de maio de 1559. o facto de nestes livros se adotar a língua portu-
guesa dever-se-á ao contexto histórico em que tiveram a sua origem e aos
seus objetivos: durante a permanência do autor em Évora e com a inali-
dade de serem lidos pelos curas aos ieis, ao longo dos vários domingos do
ano, para suprir a falta de uma pregação ou homilia adequada7.
as outras obras destinadas a terem uma divulgação mais ampla, fo-
ram redigidas na língua castelhana8. entre elas, contam-se o Libro de
la oración y meditación (1554), o Guia de pecadores (1557), e o Manual de
diversas oraciones y exercicios espirituales (1557), que, embora escritos
em espanha, já foram revistos e impressos em portugal. seguiram-se
Memorial de lo que debe hacer el Cristiano (1561), Memorial de la vida cris-
tiana (1565), Introducción al Símbolo de la Fé, em 4 tomos (1583), Doctrina
espiritual (1587). mesmo alguns escritos de tema português foram redi-
gidos na língua materna do autor, designadamente as biograias do car-
deal dom Henrique e de dom Frei bartolomeu dos mártires, e os apon-
tamentos relativos às vidas de soror ana da conceição, de dona elvira
de mendonça e de melicia Fernandes. também para a língua castelha-
na, traduziu o livro Contemptus Mundi, mais conhecido como Imitação
de Cristo (1556), a Escala Espiritual, de s. Juan clímaco (1562), esta com
acréscimos da sua autoria.
embora escrita fora do seu país natal, a sua obra levou a que Frei Luís
de Granada fosse considerado por vários autores como o criador da mo-
derna língua castelhana9.

7
anda-lhe atribuído também, por vezes, um opúsculo em língua portuguesa, intitulado Meditações sobre a
oração do Pater Noster, que, na forma que chegou até nós, não inclui qualquer página com o nome do autor.
no entanto, esta “meditação” aparece incluída “ipsis verbis” na segunda edição do livro Meditações e Ho-
milias de cardeal dom Henrique, impresso em Lisboa, na oicina de antonio ribeiro, em 1577 (a primeira
edição, que ainda o não inclui, é de 1574), abonada com um prefácio de Luís de Granada.
8
referimos apenas algumas obras de Frei Luís de Granada, não obstante a vastidão dos seus escritos, que,
na última edição das Obras Completas, editada por altura das comemorações do iV centenário da sua mor-
te (1988), se distribuíram por 52 volumes (o último, de índices).
9
cf. J. caro baroja, Las formas complejas de la vida religiosa. Religión, sociedad y carácter en la España de los
siglos XVI y XVII. madrid, sarpe, 1985, p. 50.
10 antónio matos reis

os livros que acabamos de referir, escritos em língua vulgar, enqua-


dram-se no âmbito da espiritualidade. É legítimo airmar que nesse do-
mínio criou escola, podendo-se contar como seus discípulos santa te-
resa de ávila, s. João da cruz, s. João de ribera, s. carlos borromeo e s.
Francisco de sales, entre os mais representativos. a piedade cristã dos
séculos posteriores, sobretudo em portugal e na espanha, mas também
nas colónias portuguesas e espanholas, norteou-se pelas orientações
plasmadas nos seus escritos.
numa parte das suas obras adotou, porém, a língua latina, destinan-
do-a a um público escolhido, pois tinha em vista a formação dos clérigos,
designadamente na área das ciências morais e da parenética. Luís de Gra-
nada pretendia certamente que as barreiras linguísticas não diicultas-
sem o acesso, aos seus escritos, de outros leitores da europa, onde foram
lidas, traduzidas e conheceram múltiplas edições. numa dessas obras in-
dustriavam-se os pregadores, ou candidatos a tais, na arte da oratória,
aproveitando os ensinamentos de outros autores, incluindo os clássicos
cícero e Quintiliano: Ecclesiasticae Rhetoricae, sive de ratione concionandi
(1575). Luís de Granada elaborou também uma colectânea ou promptuá-
rio de textos que podiam ser úteis aos oradores sagrados, a Silva locorum
communium omnibus divini verbi concionatoribus (2 tomos, 1585).
tiveram uma extraordinária aceitação as coleções de sermões para
todo o ano litúrgico, publicadas com os títulos de Primus, Secundus,Ter-
tius e Quartus Tomus Concionum de tempore (1573, 1574, 1575, 1580), a
que se somaram os dois volumes das Conciones de Sanctis (1578).
não se pode esquecer a Collectanea moralis philosophiae in tres tomos
distributa (1571), que visava não só a formação dos confessores e pregadores
mas também a de todos os que estavam comprometidos na ação pastoral.

entre bartolomeu dos mártires e de Luís de Granada existia uma


grande ainidade, que se iria aprofundar e tornar mais sólida com o de-
correr dos anos. tanto um como outro tinham origens modestas, se não
humildes; na lor da juventude sentiram-se igualmente atraídos pela
igura ímpar de s. domingos de Gusmão, cujos ideais, no alvor da moci-
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 11

dade, decidiram abraçar; viviam com austeridade, eram sensíveis aos


problemas dos mais pobres e detestavam as honrarias e as grandezas do
mundo, embora algumas vezes nelas se vissem enredados.
tal ainidade não impediu que houvesse diferença nos seus progra-
mas de vida. enquanto Frei Luís de Granada recusou a via do ensino,
dedicando-se sobretudo à pregação e à escrita, bartolomeu dos márti-
res, embora não menosprezasse a escrita nem a pregação, viu-se mer-
gulhado nas lides do ensino, desde o início da sua vida ativa, e nessa li-
nha desejava continuar. as conversas que os dois mantiveram na cidade
alentejana, no intervalo das atividades em que se ocupavam, contribui-
riam para que melhor se conhecessem e cada vez mais se estimassem e
admirassem mutuamente.
Quando viu bartolomeu arrojar-se a seus pés, a aceitar em nome da
obediência as funções que no seu íntimo rejeitava, Luís de Granada, nessa
altura provincial da ordem, entendeu ainda melhor a grandeza de alma
do seu amigo e decidiu nunca mais o perder de vista. ao longo do tem-
po iria anotando o que de mais importante fosse acontecendo na vida do
arcebispo, para que chegasse ao conhecimento dos vindouros. não teria
a veleidade de publicar uma biograia, porque bartolomeu era dez anos
mais novo, mas a de deixar registado aquilo que poderia servir para ou-
tros o fazerem. ao longo das notas que irá tomando no decurso dos anos e
dos comentários que lhes acrescentará, a vida de Frei bartolomeu ir-se-á
manifestando cada vez mais como a concretização da imagem do prelado
ideal que Granada formara na sua mente, e que é revelada na Concio de
oficio et moribus episcoporum, que pronunciou na sagração de d. antónio
pinheiro10, nomeado bispo de miranda (uma diocese recente, encravada
na de braga, que ia até Freixo de espada-à-cinta).
a Vida de Frei Bartolomeu dos Mártires, de Frei Luís de Granada, icou,
por conseguinte, por acabar. a morte do autor, ocorrida, como era natu-
ral, antes da morte do biografado, contribuiu para que a obra permane-
cesse incompleta e para que os editores sentissem a necessidade de lhe
acrescentar o último capítulo, relativo ao termo da existência terrestre

10
Concio F. Ludovici Granatensis de Oficio et moribus episcoporum, Lisboa, Francisco correa typografus
regius, 1565.
12 antónio matos reis

do arcebispo. notam-se também grandes imperfeições no texto, nada


condizentes com o estilo daquele que tem sido classiicado como o cíce-
ro da língua espanhola: Luís de Granada não dispôs do tempo necessário
para apurar a redação desta obra muito especial. tem ela, no entanto,
a vantagem de ter sido escrita por alguém que conviveu de perto com
os factos apresentados, não raramente com um breve comentário. É,
por conseguinte, uma fonte coetânea, próxima do biografado, podemos
dizer, em grande parte, um testemunho direto, e serviu de base incon-
tornável para as biograias posteriores, designadamente para a que foi
preparada por Frei Luís de cácegas e redigida magistralmente por Frei
Luís de sousa. tem ainda a vantagem de ser relativamente breve, fator
importante nos tempos atuais, pois nem sempre há tempo para ler uma
obra mais extensa, repartida por seis livros, como a do nosso clássico.
o facto de ter sido redigida em língua castelhana, no século XVi, tor-
nava-a, porém, inacessível aos leitores portugueses da atualidade. deci-
dimos traduzi-la, inicialmente apenas para nosso próprio uso, parecen-
do-nos depois que seria um importante serviço partilhá-la com todos os
que desejassem conhecer melhor a vida do santo arcebispo, neste ano
em que se comemoram os quinhentos anos do seu nascimento.
procuramos seguir de perto, quase à letra, o texto de Frei Luís de Gra-
nada, embora evitando as imperfeições do original, a que já aludimos,
como por exemplo as repetições de palavras ou de frases. ao contrário
do que sucede em edições espanholas mais recentes, mantivemos as no-
tas do original, designadamente as que identiicam as citações incluí-
das no texto, e até as completámos, de modo a que os estudiosos possam
localizar com precisão as respetivas fontes, e acrescentámos uma ou
outra, com a mesma inalidade, tendo o cuidado de a assinalar, fazen-
do-a preceder de um asterisco, o que acontece sempre que é necessário
distinguir o original do que foi acrescentado.

Luís de Granada e bartolomeu dos mártires partilhariam muitas re-


lexões sobre as responsabilidades pastorais do cardeal e arcebispo de
Évora, a que prestavam a melhor colaboração, e nesse contexto iriam
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 13

elaborando a sua perspetiva das funções e deveres episcopais, que leva-


rá à elaboração do Stimulus Pastorum, que Frei bartolomeu organizou e
Frei Luís acolheu com entusiasmo e posteriormente divulgou, dando-o
a conhecer a s. carlos borromeo e promovendo, um pouco à revelia do
autor, a sua impressão tipográica.
no domínio da ação pastoral, algumas realizações do cardeal d. Hen-
rique, como arcebispo de Évora, que muito icaram a dever ao apoio e
encorajamento de Frei Luís de Granada, icaram na memória de Frei
bartolomeu, que depois as fez replicar em braga: a criação de um colégio
para o ensino das letras e da teologia aos futuros clérigos (colégio de
nossa senhora da puriicação), do Hospital de nossa senhora da pieda-
de, para tratar os estudantes que adoeciam, do colégio da companhia de
Jesus (que na época chegará a ter mais de cento e trinta religiosos), para
apoiar a ação pastoral e a formação do clero.
É de observar, curiosamente, que os escritos biográicos de Frei Luís
de Granada se caracterizam pelo facto de o autor apresentar a vida dos
biografados como a execução prática da doutrina que defende nos seus
livros de espiritualidade11 .
Frei Luís de Granada, por outro lado, continuou presente na vida
de dom Frei bartolomeu, através dos ensinamentos contidos nos seus
livros, da colaboração que lhe prestou, e dos exemplos que lhe deu. Já
noutra ocasião izemos referência às circunstâncias em que ambos se
manifestaram de acordo sobre a fundação do mosteiro de santa cruz,
em Viana.
conforme Frei Luís de Granada defendia para Évora, d. Frei barto-
lomeu considerou que a renovação espiritual da arquidiocese passava
pela formação do clero e pela elaboração de instrumentos de divulgação
da doutrina cristã. entre eles contam-se a tradução da chamada Sum-

11
para os leitores de hoje, que imaginam o cardeal d. Henrique, membro da família real, cercado de pom-
pas e grandiosidades, constituem uma revelação as informações, que se lêem na biograia escrita por Frei
Luís de Granada, de que, não tendo bens pessoais, gastava todas as receitas da sua então vasta e rica arqui-
diocese na acção pastoral e nas obras de beneicência, se vestia com simplicidade, dava mais aos pobres do
que expendia com a sua casa, e que inclusivamente vendeu toda a baixela de prata, usual na residência dos
príncipes, categoria a que pertencia, substituindo-a por outra, de estanho. esta conduta foi a mesma que
adoptou Frei bartolomeu dos mártires.
14 antónio matos reis

ma Caietana12, destinada à formação moral dos confessores: a edição em


língua castelhana, patrocinada pelo cardeal dom Henrique, promovida
por Luís de Granada, e com o visto de aprovação de dom Frei bartolomeu
dos mártires, tinha sido publicada em Lisboa em 1560, mas poucos anos
depois, em 1565, saiu em braga a edição em língua portuguesa, promo-
vida pelo arcebispo de braga.
Luís de Granada, em 1559, publicou o Compêndio de Doutrina Cristã,
seguido de Treze sermões, e dom Frei bartolomeu fez estampar em bra-
ga, em 1564, o Catecismo ou Doutrina Cristã e Práticas Espirituais.

escrito em língua latina, era, em 1582, impresso em Lisboa o Com-


pendium Spiritualis Doctrinae, de autoria de dom Frei bartolomeu dos
mártires, mas com prefácio de Frei Luís de Granada, onde este assumia
a responsabilidade de proceder à edição, um pouco à revelia do autor,
como já o izera com o Stimulus Pastorum. penso que a edição constituiu
uma homenagem afetuosa, no momento em que dom Frei bartolomeu
deixava o governo da arquidiocese bracarense e se recolhia ao seu mos-
teiro de Viana da Foz do Lima. a citação do evangelho de s. Lucas (10,42),
que se lê no rosto do livro13, alude a este momento especial da vida do
prelado resignatário “Unum est necessarium: Maria optimam partem ele-
git, quae non auferetur ab ea” (uma só coisa é necessária: maria escolheu
a melhor parte, que não lhe será tirada).
no aludido prefácio delineava-se o primeiro apontamento biográico
relativo ao emérito pastor, prenunciando a Vida de Frei Bartolomeu dos
Mártires14, que Frei Luís de Granada, no entanto, deixou por acabar.

12
chamada assim porque foi escrita por tomas de Vio também chamado tomás caetano (1468-1534), por
ter nascido e ingressado na ordem dominicana em caeta ou Gaeta. mestre geral dos dominicanos, cardeal
e legado pontifício, foi professor e escreveu importantes obras de ilosoia e teologia tomista, entre elas a
Summa, em 10 volumes. a obra aqui referida é, porém, a Summa ou Summula de peccatis, publicada em
roma, em 1525.
13
o número do capítulo e/ou do versículo (8) está errado.
14
Luís de Granada, Vida de don fray Bartolomé de los Mártires, Arzobispo de Braga, em Luis de Granada,
Obras Completas (ed. por a. Huerga), madrid, Fundación universitaria española; dominicos de andalucía,
1997, vol. 16, p., p. 165.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 15

sendo relativamente breve, esta Vida de Dom Frei Bartolomeu dos


Mártires tem uma qualidade importante nos tempos atuais, pois nem
sempre se consegue tempo para ler uma obra mais extensa, como a que
foi ultimada por Frei Luís de sousa, repartida por seis livros.
o seu conteúdo distribui-se por doze capítulos. após os dois iniciais,
em que, num deles, em seguida a um breve prólogo, se trata da forma-
ção de bartolomeu dos mártires, e, no outro, da sua eleição e entrada
em funções como arcebispo primaz, o autor dá-nos conta do plano que
teve em mente para os capítulos seguintes: na primeira parte, relatar
as principias virtudes que resplandeceram na vida do arcebispo, cor-
respondendo-lhe, embora o autor não o reira, os capítulos iii a Vi; na
segunda parte, descrever o modo como o prelado exerceu o múnus pas-
toral, com todo o zelo e diligência, como faz nos capítulos Vii a iX. o capí-
tulo X tem por objeto a sua vida após a renúncia ao arcebispado e consti-
tuiria a conclusão da obra, na versão inicial, ainda que provisória; aliás,
alguns parágrafos antes do im, classiica-se o próprio capítulo como a
“parte inal desta história”, isto é, da biograia do arcebispo.
presumivelmente ainda por Frei Luís de Granada, foi posteriormente
adicionado o capítulo Xi, que regista algumas manifestações taumatúr-
gicas da santidade do arcebispo e os primeiros milagres que lhe foram
atribuídos. no último capítulo, escrito após a morte do biógrafo, rela-
tam-se os momentos inais de dom Frei bartolomeu dos mártires, esses
a que Frei Luís de Granada não pôde assistir, por já estar na eternidade.
28 antónio matos reis

d. Frei bartolomeu dos mártires


Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo.

2
VIDA DO ARCEBISPO
(tradução)

CAPÍTULO I
Nascimento, vida e preparação, até ser eleito Arcebispo
da santa Igreja de Braga

omo os céus estão em contínuo movimento, assim parece

C acontecer nas coisas da existência humana, que nunca per-


manecem iguais, conforme vemos. isso transparece clara-
mente na vida dos cristãos de agora, comparada com a da-
queles que os precederam nos alvores do evangelho. destes escreve s.
Lucas15 que, havendo tantos e tão diferentes estados, tinham um só cora-
ção e uma só alma, em deus. nisto vemos quanto os costumes da actual
cristandade diferem dos daquela que então desabrochava.
em parte, o mesmo se poderia veriicar nos estados dos sacerdotes
e de todas as dignidades eclesiásticas, e mais particularmente nos pre-
lados, pois se os compararmos com os ciprianos, os agostinhos, os am-
brósios, os Gregórios e outros tais, notamos claramente a diferença que
o tempo introduziu entre uns e outros. Florescia então a observância
daquele cânone do concílio de cartago, onde se mandava que o bispo ti-
vesse uma casa pobre e alfaias modestas para o seu serviço: vemos agora
o que resta de tal hábito e como estão mudados os tempos, pois esse câ-
none está esquecido e substituído pelo costume contrário. a razão que
para isso se pode encontrar é a diversidade do mundo actual, que pede

15
Actos, 4, 32.
17 antónio matos reis

essa autoridade e esses aparatos que observamos no presente, para rea-


lizar muitas coisas que de outro modo se não conseguiriam, por causa
da maldade dos tempos e da soberba dos homens, que, se não for com
este estilo, não querem submeter-se nem obedecer.
bem vejo que não falta nisso fundamento e razão, mas, como nas ou-
tras coisas, também nesta se deve respeitar o conhecido ditado nequid
nimis, porque as coisas têm um meio, no qual se acha a virtude, estan-
do o vício nos extremos. para que os nossos tempos (a quem deitamos
a culpa dos nossos próprios defeitos) vejam que sem tanto resplendor e
aparato, não faltando a virtude, se pode muito bem governar a igreja,
proporei aqui um conhecido exemplo da nossa idade.
Ver-se-á claramente como este prelado, cuja vida escrevemos, sem
qualquer ajuda para isso, nem a nobreza de linhagem, que usualmente
pode muito nestas coisas, nem o fausto, nem a autoridade temporal, foi
capaz de governar eicazmente as suas igrejas e de levar a termo coisas
que, embora alguns fossem ilhos de reis, nenhum de seus antecessores
conseguiu realizar. essa história vai servir para ajudar os que forem ze-
losos da salvação das suas almas e das suas ovelhas. recebam este de-
sengano e este exemplo para imitar, e os que não o izerem não tenham
com que honestamente se desculpar.
deveria bastar a autoridade da sagrada escritura, onde nosso se-
nhor, por intermédio do profeta ezequiel16, repreende o fausto dos pas-
tores, lançando-lho em rosto, ao dizer que governavam com autoridade
e poder: se isto era inconveniente naquela lei, que com o resplendor das
riquezas do templo pretendia levar à reverência os corações carnais da-
queles homens, quanto mais o será na nossa, como escreve são Jeróni-
mo, fundada por cristo pobre, sendo pobres seus apóstolos e outro tanto
os seus sucessores? o que realmente entendia muito bem o nosso reli-
giosíssimo arcebispo, que no concílio de trento fez esta denúncia, ten-
do em vista os prelados de determinada nação, que vinham mais como
grandes senhores do mundo do que como ministros de cristo; e o que aí
propôs com palavras, seguiu-o durante todos os 23 anos em que gover-

16
Ezequiel, 34, 1 e ss.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 19

nou a sua igreja. mas já é tempo de entrarmos na sua vida e de vermos


como chegou a essa dignidade, como viveu, como ensinou, como foi co-
nhecido, e como depois, ao ver-se carregado de anos, se libertou deste
cargo e, segundo dizia, tirou de cima de si esta corrente de ferro que
muito o atormentava.

começando pelo que normalmente se costuma escrever no início,


nasceu este insigne prelado na cidade de Lisboa, ilho de pais honestos,
não ricos mas de fortuna modesta, e por aqui se veja quanto pode a gra-
ça, que assim levanta e enobrece a natureza. sendo pois de idade com-
petente, determinou furtar o corpo aos perigos e laços do mundo, en-
trando na religião de são domingos, no ano de 1527, no convento de são
domingos de Lisboa. e após os exercícios do noviciado, fez a proissão a
20 de novembro de 1529, sendo geral e mestre da ordem o p.e Francis-
co Ferrariense. estudou com tanta diligência as artes e a teologia, que,
alguns dias depois de concluir os estudos, foi colocado como leitor no fa-
moso mosteiro de nossa senhora da Vitória, ou, por outro nome, da ba-
talha, onde durante muitos anos leccionou teologia; tornou-se assim um
teólogo muito abalizado, recebendo o grau de doutor em teologia no ano
1551, no capítulo Geral realizado pela ordem em salamanca. aprendeu
latinidade, aos onze anos, e entrou para a ordem entre os treze e os ca-
torze, de modo que foi durante dois anos noviço.
mas, voltando ao tempo em que se ocupava no estudo da teologia es-
colástica, furtava o tempo que podia para o dedicar ao estudo da teo-
logia mística, que se alcança com devotas orações e meditações, lendo
também os teólogos que dela trataram, como s. dionísio, s. boaventura,
s. bernardo, Gerson, e outros tais, de que, como abelha solícita, recolhia
as lores das sentenças mais doces e devotas, de que elaborou um peque-
no tratado, que trazia sempre consigo e que, depois de acrescentado, foi
impresso com este título: Compêndio da vida espiritual.
20 antónio matos reis

Quando o escrevia, não para o dar à estampa, mas apenas para si,
não procurava então dispor as coisas por ordem, mas apenas recolher
todos os bons trechos que achava, para despertar a sua devoção. este
tratado, porém, veio ter às minhas mãos, por meio de outras pessoas vir-
tuosas, e pareceu-me que deveria imprimir-se e vir à luz, para que fosse
útil a muitos o que tinha feito apenas para si.
do mosteiro da batalha o mandaram para Évora, para ensinar teolo-
gia a dom antónio, ilho do sereníssimo infante dom Luís. e aproveita-
se esta ocasião para declarar o valor e a inteireza do seu carácter, pois
sendo dom antónio aclamado como rei e o arcebispo solicitado e insta-
do pelo povo para que se mostrasse de acordo com eles, nunca o amor
que tinha pelo seu discípulo, nem o alvoroço, nem a perseguição foram
capazes de o demover da sua convicção relativa à justiça da causa de
el-rei dom Felipe, pelo que lhe foi necessário escapar à fúria do povo e
acolher-se à Galiza, até que a tempestade amainasse.
depois de leccionar em Évora, foi eleito prior do convento de ben-
ica, muito contra a sua vontade, embora a casa fosse adequada à sua
devoção e espírito e a atear nos que nela viviam o fogo que ardia no seu
peito. e para que não se distraíssem os novos súbditos, saindo para ou-
tros lugares a fazer os estudos, ele mesmo, ao cabo de tantos anos como
leitor de teologia, lhes deu um curso de artes; e, à volta deste estudo das
letras, tratava com grande diligência de ocupar os religiosos no exercí-
cio da oração e de várias mortiicações. entre outras coisas, dizia-lhes:
“irmãos, já não preciso de vos dizer para trazerdes os olhos baixos e os
braços recolhidos, senão que vos entregueis à oração, pois se assim o i-
zerdes, como ela tem virtude para compor o homem interior, assim a
tem para compor o exterior; e esta é a verdadeira compostura, que vem
do interior da alma e dura mais tempo; mas sem oração essa compostu-
ra é postiça e ingida e como uma máscara, que, não tendo raízes, logo
cai e redunda em gargalhadas e palrarias e coisas dessa qualidade”. des-
ta maneira, o servo de deus governou o mosteiro, todo o tempo que o
teve ao seu encargo.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 21

morando na cidade de Lisboa, esteve em comunicação com algumas


pessoas espirituais, e, falando várias vezes com elas, aperfeiçoou-se
mais no estudo da teologia mística, a que era muito afeiçoado; e o que ti-
nha aprendido nas escolas sobre os efeitos e a virtude da graça e da cari-
dade, assim como da devoção e da alegria espiritual, via-o concretizado
na vida dessas pessoas. e não é isso coisa nova, nem de pouco fruto, por-
que outros teólogos excelentes e humildes tantas vezes aproveitaram
muito no conhecimento de deus e da verdadeira teologia, convivendo
com pessoas espirituais. porque nas almas e vidas destas pessoas veri-
icavam e viam mais perfeitamente o que haviam estudado e lido, o que
está de acordo com o estilo de nosso senhor, que usa como instrumentos
as pessoas mais humildes, para confundir e ensinar as almas.
conviria por isso que, assim como os que estudaram medicina an-
dam na companhia de um médico de renome para aprenderem a prati-
cá-la, assim os teólogos escolásticos, terminados os seus estudos, tratas-
sem familiarmente com pessoas espirituais, para ver, falando com eles,
o que estudaram nos livros, de modo que, juntamente com a ciência,
tivessem também o gosto e a experiência das coisas de deus, que são
próprios da teologia mística, a qual, experimentando como deus é sua-
ve e amável, ensina a compreender estas perfeições divinas, de acordo
com o que diz o profeta17: Gustate, et videte quoniam suavis est Dominus,
onde primeiro se diz Saboreai, e depois vede, para que se entenda que ao
saborear da vontade se segue o conhecimento do entendimento, que é o
objecto desta teologia mística.

17
Salmo 33, 9.
22 antónio matos reis

CAPÍTULO II
De como foi eleito Arcebispo de Braga

este tempo, estando a governar o reino a sereníssima e cris-

N tianíssima rainha dona catarina, mulher que foi do rei dom


João iii, vagou o arcebispado de braga; e, como era de tão ex-
tremada virtude e cristianismo, queria encontrar uma pes-
soa muito religiosa para aquela igreja, para icar inteiramente tranquila
da sua consciência. neste momento, um padre que era confessor de sua
alteza, e tinha um conhecimento muito familiar deste outro padre, deu-
lhe informação das suas letras, virtude e religião; e, entre outras coisas,
disse-lhe que, uma vez posto nesta dignidade, nada havia de mudar no
trato e humildade que na sua ordem tinha, assim no tratamento da sua
pessoa como no da sua casa e família.
dando sua alteza crédito a esta informação, decidiu nomeá-lo para
este cargo, mas antes desta nomeação foram muitos os opositores e os
patrocinadores de outros candidatos, especialmente daqueles nobres
que estão convencidos de que todas as dignidades e honrarias se lhes
devem, a título da sua nobreza, os quais fatigaram sua alteza com tantas
oposições e queixas, que, cansada com essas coisas, acabou por desaba-
far: “Queira deus que, enquanto eu governar, todos os prelados deste
reino sejam imortais, para que não me veja de novo noutro conlito como
este”. contudo, a cristianíssima senhora, fundada no temor de deus, re-
sistiu com todas as armas a estes golpes e contradições, perseverando
irmemente naquilo que, segundo deus, havia decidido.
mandando chamar este padre, na altura prior de benica, deu-lhe a
conhecer a sua decisão. ele alegou, por sua parte, as razões que tinha para
se escusar de tão grande cargo, declarando a sua insuiciência; mas sua
alteza respondeu que tinha outras informações, de pessoas não suspei-
tas, diferentes do que ele dizia. ao que ele replicou, dizendo que outros
havia de que se tiveram melhores informações em tempos passados, mas
que, uma vez postos em dignidades, se mudou o que eram, e com ele podia
acontecer o mesmo. ao que sua alteza sabiamente respondeu: “eles não
mudaram, mas descobriram o que eram”. e o bom padre nem com estas
nem com outras se inclinou para o que sua alteza mandava.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 23

neste momento, o então provincial da ordem, chamou-o a capítulo,


após a oração de completas, e na presença de todos os religiosos do con-
vento de são domingos, de Lisboa, depois de uma prática a propósito,
fazendo-o prostrar-se por terra, ordenou-lhe que em virtude da santa
obediência, sob pena de excomunhão maior latae sententiae, aceitasse a
nomeação que sua alteza tinha feito da sua pessoa.
então, atemorizado com tão rigorosa ordem do prelado, que estava
no lugar de deus, não discutindo se poderia ou não impor-lhe essa or-
dem, humildemente obedeceu; e o que a rainha, com toda a sua autori-
dade e razões, não conseguiu alcançar, alcançou-o a obediência ao seu
superior, coniando no senhor que o que desse modo aceitava ele o enca-
minharia para um im ditoso.
pondo-se em pé, pronunciou na presença de todos estas palavras:
“sou tido nesta província por homem amigo do meu parecer, nisto pro-
ponho agora de o ser, que, tanto quanto possível e se compadeça com
esta dignidade, não tenho de mudar o modo de vida que tive até agora na
religião, quer no cuidado e tratamento da minha pessoa, quer em tudo
o que tocar à minha casa e família”. e, voltando-se para um cruciixo,
disse com uma postura de santo: Cristo, não me desampareis.
depois de consagrado, enquanto esteve em Lisboa, jamais saiu a ca-
valo, nunca tratou de dinheiros ou de rendas, todo ocupado no que ti-
nha proposto, e assim se conservaria todo o tempo que governou aquela
igreja. e pretendendo o bispo de são tomé, e abade de tibães18, frade des-
ta ordem, e seu vizinho, convencê-lo a que tivesse mais abertura quanto
à sua casa e família e aos acompanhantes da sua pessoa, e recorrendo ao
meu apoio, nem eu nem ele pudemos afastá-lo do seu propósito, citando
o exemplo de s. martinho, do qual está escrito que, entrando na diocese,
procurou ser o mesmo que era, mantendo a mesma humildade no co-
ração e a mesma pobreza no vestuário, de tal modo que, agindo com a
dignidade de bispo, não deixava a postura e o estilo de monge.

18
*bernardo da cruz, que não chegou a entrar em funções como bispo de s. tomé, retido pelo rei e encar-
regado de outras funções, como a de reitor e reformador da universidade de coimbra, foi comissário do
santo ofício e terminou a vida como abade de tibães e carvoeiro.
24 antónio matos reis

Logo que tomou posse do arcebispado e viu a carga espiritual e tem-


poral que tinha aos ombros e a conta que tinha de dar de tantas almas,
e os muitos negócios que aquela prelazia tem, por causa da jurisdição
temporal que lhe está anexa, era tão grande a alição e a angústia da sua
alma, que passava os dias e as noites a invocar nosso senhor e a pedir-lhe
que abrisse caminho para o aliviar daquela “cadeia de ferro” tão pesada;
e com isto se lhe punha na frente a conta tão rigorosa que teria de dar por
tantos milhares de almas e o temor das penas do inferno, que se apresen-
tavam tão ao vivo como se as tivesse diante dos olhos. movido por estes
temores, escreveu ao papa, dando conta da sua insuiciência e pedindo
com grande veemência que o libertasse daquela carga, protestando que
todas as faltas que tivesse naquele ofício carregariam a sua consciência.
mas, apesar dessas diligências e desejos, nem por isso afrouxava no
cumprimento do seu ministério, preparando-se para o trabalho, e pe-
dindo a nosso senhor espírito e força iguais para ele. e andando em vi-
sita, os visitadores, que dormiam no mesmo aposento (por ser acanhada
a pousada), sentiam que se levantava de noite e se punha de joelhos num
canto do quarto, e com muitas lágrimas e suspiros pedia a nosso senhor
ajuda para cumprir com aquela tão pesada obrigação.
isto é pouco para descrever as angústias e temores que a sua alma
padecia; e, para economizar palavras, direi uma coisa que, se não tivesse
acontecido comigo, não a acreditaria. e foi assim: poucos meses depois
que tomou posse do arcebispado, insistiu comigo, com todas as suas for-
ças, para que negociasse com sua alteza que lhe tirasse esse fardo, enca-
recendo tanto as angústias que a sua alma com ele padecia, que chegou
a dizer-me estas palavras: “eu não me vou enforcar, porque é ofensa de
deus, mas tenho vindo a sentir as angústias sofridas por um homem
quando se enforca”. disso recebi tão grande tristeza e desconsolo, pelo
que tocava à honra de deus e da nossa ordem, que o não sei explicar.
mas pelo que vi e senti, o sucesso do governo deste padre mostrou-me
que foi uma providência singular e admirável de deus, pelos grandes
bens que deste seu temor se seguiram. porque, assim como escolhen-
do nosso senhor a são paulo como ministro e instrumento para obter a
salvação das almas, lhe deu um tão intenso amor e desejo de as salvar,
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 25

que desejava gastar-se todo por elas, até chegar a querer ser anátema de
cristo, nosso redentor, pela salvação de seus irmãos, assim na alma des-
te seu servo incutiu tão grande temor, para que o que no santo apóstolo
fazia o amor, neste o izesse este santo temor, a que também não faltava
amor; porque esse é o estilo daquela divina sabedoria que dispõe todas
as coisas suavemente, e essa a consequência e a ordem de suas obras, a
qual proporciona sempre as causas de acordo com os efeitos que quer
produzir, e assim dá grande força àqueles que fazem grandes coisas.
e ninguém se admire de atribuir tanta importância a este temor,
pois o bem-aventurado são Jerónimo19, depois de ter contado a grande
penitência que fazia no deserto, chega à conclusão de que o grande te-
mor que tinha concebido das penas do inferno o condenou àquela pri-
são, embora bem se compreenda que nem num temor nem no outro fal-
tava caridade e amor.
este temor foi para ele, durante todo o tempo que governou, um es-
pinho muito agudo que feria o seu coração, de tal modo que, dia e noite,
nunca descansava nem perdia um instante que não o empregasse no seu
ofício; de tal modo que já não vivia em si nem para si, mas todo estava
concentrado no cuidado do que havia de fazer.
bem podia agora divagar, lamentando a condição dos nossos tempos,
ao considerar como os homens têm olhos diferentes para encararem os
ofícios e dignidades eclesiásticas, observando com quanta sede e fome
são procuradas, enquanto este homem de deus, que tinha olhos para as
ver, as aborrecia mais do que à morte, querendo fugir delas com ansie-
dade tão grande como aquela com que as procuram aqueles que de tais
olhos carecem.
regressando ao nosso tema, entendia o servo de deus a carga que
tinha aos ombros; parecia-lhe que lhe eram dirigidas estas palavras dos
provérbios de salomão, que dizem20: “Filho, se entrastes como iador de
algum amigo, olha que estás amarrado e obrigado com as palavras da
tua boca; portanto, faz o que te digo, meu ilho, e trabalha para te livrar,

19
s. Jerónimo, Ad Eustochium Paulae iliam De custodia virginitais.
20
Provérbios, 6, 1-6 .
26 antónio matos reis

porque caíste nas mãos do teu próximo; e, portanto, corre, apressa-te,


acorda o teu amigo, não adormeças nem te descuides, trabalha para te
livrar, como cabrito-montês da mão que o prende e como a ave do laço
do caçador”. parece que deus inspirou estas palavras a este seu servo, de
acordo com a atenção e diligência que, dia e noite, tinha em procurar o
bem das suas ovelhas.
este era todo o seu cuidado, a sua ocupação, o seu manjar, como disse
o salvador21 . isto era o que, acordado ou dormindo, trazia sempre ante os
olhos, trabalhando nesta vinha do senhor, de tal maneira que se achasse
descarregado, no dia de dar contas ante o pai de famílias, e merecedor
da paga prometida. e com tanta ânsia se entregava a este negócio, que
podia dizer com o profeta22 que nem entraria na morada de sua casa,
nem se deitaria na cama, nem daria sono repousado aos seus olhos, nem
descanso aos dias de sua vida, até achar lugar para o senhor e morada
para o deus de Jacob, o qual mora nas almas puras e limpas. isto se verá
claramente na vida e procedimento deste solícito e vigilante pastor.
entrando o nosso bom pastor pelas portas da obediência neste apris-
co, a primeira coisa que fez foi olhar o ensinamento que havia de seguir,
para ordenar segundo ele a sua vida, porque nisto ou se acerta tudo ou
se erra tudo o que adiante se há de fazer. e para isso, desviando os olhos
dos nossos tempos, colocou-os naqueles antigos padres de gloriosa me-
mória, de quem acima izemos menção (cuja santidade e vida já estão
pelo comum consentimento da igreja aprovadas), aos quais com todas
as suas forças procurou imitar. e saiu-se tão perfeitamente com isso,
que muitas vezes dizia o mui ilustre senhor dom Fernão martins [de
mascarenhas], que foi mandado como embaixador do rei de portugal ao
concilio de trento e tratou mui familiarmente com ele: “não sei como
viviam santo agostinho e santo ambrósio e outros santos bispos, mas
sei que mais não fariam, nem de outra maneira viveriam, do que como
este padre vive”.

21
João, 4, 32-34.
22
Salmo 131, 3-5.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 27

este exemplo e outros tais de nossa idade, de que aqui não faço ex-
pressa menção, suicientemente nos mostram que nestes tempos, em
que as coisas da virtude estão tão decaídas, ainda é possível imitar aque-
les santos pontíices que no passado loresceram.
e para mais perfeito cumprimento, a primeira coisa que fez foi tirar
do Pastoral de são Gregório, e de outros santos pontíices, a maneira de
vida que os imitadores deles hão de seguir, para o que compilou um tra-
tado, que chamou Stimulus pastorum, em que se ocupava muito em par-
ticular das virtudes próprias do bispo, isto é, da sua doutrina, das suas
esmolas, da sua família e casa, e outras coisas semelhantes, tratado que
deixou em poder do ilustríssimo cardeal borromeo, e daí veio às minhas
mãos, e eu, vista a utilidade e a importância do livro, sem licença do au-
tor, o mandei imprimir.
28 antónio matos reis

CAPÍTULO III
Da sobriedade, modéstia e humilde tratamento da sua casa,
pessoa e família

ebruçando-nos em particular sobre a vida do nosso pastor,

D trataremos, na primeira parte desta história das virtu-


des principais que nele resplandeceram, e, na segunda, do
cuidado e diligência com que exerceu o seu ofício pastoral.
recordando-se primeiramente daquelas palavras do Eclesiástico23, que
diz: “trabalha por recuperar e remediar o teu próximo, mas olha que
de tal maneira procures a salvação alheia, que não percas a tua”, assim
mesmo considerava aquele saudável conselho que o apóstolo escreveu
ao seu discípulo timóteo, dizendo-lhe24: “olha por ti e pelo ofício de ins-
truir os outros, porque desta maneira salvarás a tua alma e a da aqueles
que te ouvirem”.
É de notar que primeiro diz que olhe por si, e depois pelo ofício que
tem, porque do primeiro se segue o segundo; porque o que já está de-
senvolvido e aproveitado em si, facilmente poderá aproveitar aos ou-
tros. Fazer isso é imitar a ordem que vemos nas plantas, que primeiro
ganham raízes na terra e crescem, e depois de crescidas dão fruto, e não
antes. ao contrário procedem os que querem fazer avançar os outros,
estando eles atrasados, querendo ser mestres, sem terem sido bons dis-
cípulos, e limpar as consciências alheias, tendo as suas manchadas, não
atendendo ao que diz o mesmo eclesiástico25: Ab immundo quid munda-
bitur? e por serem muitos os que caem neste erro, diz o bem-aventurado
são bernardo26 que temos hoje na igreja muitas jarras, que pretendem
derramar, antes de recolher em si o que depois haviam de derramar.

23
Eclesiástico 29, 27.
24
1 Timóteo, 4, 16.
25
Eclesiástico, 34, 4.
26
s. bernardo, Sermo 18 in Cantica Canticorum, 3.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 29

considerando isto, o nosso bom pastor entendeu que primeiro havia


de reformar a sua vida e a sua casa do que as alheias; portanto decidiu
respeitar o que no princípio tinha prometido, que era conservar na sua
pessoa e na sua casa a temperança e a modéstia que observara no mos-
teiro; o que de tal maneira cumpriu, que antes passou além do prometi-
do do que falhou.
a sua cama era como a que tinha no mosteiro, muito estreita, com
mantas de lã, sem cortinas, e sem algum outro aparato; nunca se viram
nela lençóis inos, senão por doença, tampouco camisa de linho, senão
de lã; em toda a sua casa não havia um reposteiro, nem um pano de ar-
mas, nem coisa semelhante, mas, pelo contrário, era tão desnuda como
a cela de um pobre frade.
a família era também proporcionada com o demais, constando apenas
das pessoas que de nenhuma maneira se podiam escusar, e estas humil-
demente vestidas, sem que em sua casa houvesse escudeiro, nem homem
de capa e espada, nem camareiro para o ajudar a vestir ou a tirar a roupa,
porque sozinho se vestia e despia, como usava quando vivia no mosteiro.
a comida era uma só ração de vaca ou de carneiro; porque o pesca-
do lhe era proibido pelos médicos, pela má disposição de uma perna.
no vinho deitava tanta água, sendo homem de idade, que mais parecia
água avinhada que vinho; e, se por caso lhe punham algum manjar mais
esquisito na mesa, tocando nele, o mandava dar aos pobres; e havendo
hóspedes para comer na sua companhia, não queria estender-se a fazer
grandes larguezas, senão, lembrando-se que aquela era mesa de bispo,
muito pouco acrescentava ao ordinário, por honra deles.
e quem esta temperança reprovar, pode culpar a santo agostinho,
em cuja vida se escreve que, havendo convidado alguns bispos, um de-
les, mais curioso, foi ver o que estava preparado e, vendo as poucas pro-
visões que havia, perguntou ao santo varão o que tinha ordenado para a
comida e para os convidados. respondeu: Et ego vobiscum nescio27. isto é,
tampouco o sei eu como vós. a causa disto está em que os santos varões
trazem sempre tão levantado o coração nas coisas altas e divinas, que se

27
*Jacopus a Voragine, Legenda Aurea, cap. cXXiV (de sancto agostino).
30 antónio matos reis

envergonham de se distrair com coisas tão baixas. e isto ainda entendia


séneca, ilósofo gentio, que diz: Major sum, et ad majora natus, quam ut
sim mancipium corporis mei28, que quer dizer: maior sou, e para maiores
coisas nasci, que para ser escravo do meu corpo.
e com serem tais as comidas de nosso pastor, não eram mais regala-
das as ceias, porque queria ter os exercícios de seu recolhimento e ora-
ção na noite, antes de comer coisa alguma; e por isto nos dias de ceia
mandava pôr em sua antecâmara um par de ovos com pão e vinho, e,
depois de haver estado boa parte da noite com deus, e tomada já esta
ceia tão larga sua alma, saía da sua antecâmara, só e sem serviço algum,
comia os seus dois ovos; e quando era dia de jejum, punham-lhe ali a re-
feição e muitas vezes a achavam inteira de manhã, e davam aos pobres,
e com esta forma de abstinência e com outras asperezas e disciplinas
castigava a sua carne e a sujeitava ao espírito, acordando-se do que o
apóstolo diz29: “Castigo o meu corpo e faço-o servir ao espírito, para que
não seja eu reprovado, tendo pregado aos outros”. e, para dar a entender
quão vil coisa era o corpo, costumava dizer que a alma do homem era
como um anjo encerrado no corpo de um cavalo. porque é por certo coisa
admirável entre as coisas de deus ver os altos e baixos da nossa alma.
parte deste rigor observava-o ainda nas doenças. por isso, aconse-
lhando-o os companheiros, numa indisposição, que se alimentasse me-
lhor, respondeu: oh carne e sangre, quantos advogados tens!
era tão amigo da pobreza, virtude evangélica, que lhe pesava quando
lhe davam um hábito novo, e folgava mais com o que estava já usado, e,
dando-lhe um, mandava dar o outro aos pobres. nisto se conformava
com o glorioso agostinho, que diz de si mesmo: Confesso que tenho ver-
gonha de trazer uma veste de pano ino, e por isso a vendo quando ma dão,
para que, pois a veste não pode ser comum, o pano o seja30.
e como era tão modesto no seu traje, assim queria que o fossem os
clérigos. particularmente estranhava tanto alguns trazerem nas man-
gas da camisa aqueles folhos, que, quando em alguns os via, os cortava,
condenando nos eclesiásticos todo o exagero.

28
*seneca, Ep. LXV, 20: maior sum et ad maiora genitus quam ut mancipium sim mei corporis.
29
1 Coríntios 9, 27.
30
*cf. possidio, Vita Sancti Aurelii Augustini, Liber Quartus, cap. ii, 3.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 31

CAPÍTULO IV
Dos exercícios espirituais e da oração e meditação

ste homem de deus era muito amigo e grande apologista da

E virtude da oração, como acima declarámos, e o que reco-


mendava aos outros muito mais o tomava para si. mas de tal
maneira se dava à oração, e a tratar com deus, que receava
não lhe acontecesse o mesmo que a moisés, que, por estar tanto tempo no
monte a falar com deus, veio o povo a afrouxar e a adorar um bezerro. e,
por isso, repartia o tempo de tal maneira que, à imitação do sumo pastor
Jesus cristo, gastava o dia com os próximos e as noites com deus.
desse modo, tocadas as ave marias, recolhia-se ao seu aposento,
onde muitas vezes se ouviam os clamores e suspiros com que tratava
com deus; e gastava boa parte da noite nisto e em estudar os sermões
que havia de pregar, o que algumas vezes fazia de joelhos, para ouvir de
nosso senhor o que havia de dizer ao povo neste lugar. e neste tempo
das santas vigílias não intervinha outra coisa senão deus, evitando em
seu coração todo outro cuidado e pensamento. e com ser de sua natureza
muito cuidadoso do que havia de fazer, tinha recebido de nosso senhor a
particular mercê de que, recolhendo-se, não o inquietava nada a memó-
ria dos negócios que estavam a seu cargo, com serem tantos.
e se neste tempo alguém chamava na sua câmara com algum negó-
cio, despedia-o, dizendo: Suficiat diei malitia sua31 . tinha também um
vaso de água à cabeceira, destinado a lavar os olhos, ao despertar pela
manhã, para estar mais livre do sono e mais atento a nosso senhor.
e não se contentava em fazer este exercício de noite, mas também ca-
minhando, nas visitações, o que fazia todo o ano, exceptuado o advento
e a quaresma, em que residia na sede da diocese, conforme o concílio.
mandava sempre que os companheiros e os moços seguissem à frente
um bom trecho, e icava só, orando e meditando e dando suspiros, que
por vezes se ouviam; e muitas vezes, postos os braços em cruz, trazia os
olhos levantados ao céu e postos em deus, e a divina majestade se en-

31
Mateus, 6, 34.
32 antónio matos reis

carregava de olhar onde o seu jumento punha os pés. andando desta


maneira seu caminho, tomava ocasião de quantas coisas se ofereciam
para levantar o seu espírito para o céu, mormente quando passava por
algumas grandes fragas, porque se lhe representavam aqui as monta-
nhas em que os antigos monges faziam vida solitária. e assim, passando
por um lugar destes, começou a louvá-lo muito e, dizendo-lhe os compa-
nheiros que aquela era a pior terra do mundo, respondeu que era muito
boa ad elevandam mentem, como homem que trazia todos os seus pensa-
mentos em deus.
este tempo do caminhar tinha-o pelo maior dos seus regalos, porque
nele se entregava todo a nosso senhor, sem impedimento dos negócios.
e assim, em lugar do tempo que lhe faltava em casa, aproveitava-se do
que tinha nos caminhos; por onde, se, perguntando a algum caminhan-
te que encontrava quanto havia dali ao lugar, lhe dizia que estava próxi-
mo, lhe pesava, por ver que se encurtava o tempo do seu recolhimento e
exercício interior.
e, caminhando, de tal maneira repartia e ordenava as jornadas que
nunca perdesse a missa. estando na cidade, dizia-a antes que entrasse
nos negócios, a tempo que a ouvissem todos os que vinham a negociar
com ele. com esta quotidiana refeição procurava renovar e atiçar o fer-
vor da caridade e devoção, que com a muita ocupação de negócios costu-
ma resfriar-se. sabia muito bem que este fervor, no estado da natureza
corrupta, é como o calor na água que está ao fogo, a qual, afastada dele,
pouco a pouco vai arrefecendo. espiritualmente experimentam isso
cada dia as pessoas dadas à oração, pois, afastando-se dela, logo sentem
diminuir o calor da devoção que na oração haviam adquirido.
e portanto o que quer estar sempre devoto trabalhe, enquanto lhe
seja possível, por nunca se apartar deste divino fogo; de modo que há de
ser como o forno do vidro, que sempre arde, e não como o forno de co-
zer pão, que a tempos deixa de arder. este santo calor procurava o nosso
bom pastor conservar com a missa de cada dia. Verdade é que, de propó-
sito, deixava de dizer missa um dia da semana, para renovar com isto a
memória do temor e da reverência que a este divino sacramento se deve.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 33

CAPÍTULO V
Da sua grande caridade para com os próximos e especialmente
para com os pobres

orque seria prolixo tratar de todas as virtudes que resplan-

P deceram na vida deste servo de deus, farei menção somente


das duas principais em que se distinguiu, que são a caridade
e a humildade. uma é o fundamento de todas as virtudes; e
a outra é a primeira e a rainha de todas as demais; as quais nos deixou o
salvador ao im da vida muito recomendadas com aquele exemplo me-
morável do lava-pés, que foi obra de grande humildade e caridade. como
homem de deus, que entendia isto muito bem, procurou assinalar-se
nestas duas virtudes.
Falemos pois da sua caridade para com o próximo, porque por esta se
verá a que tinha para com deus. primeiramente, recordando-se do que o
salvador diz32: “o que izestes a qualquer um destes pequenos irmãos meus,
a mim o izestes”, não olhava os pobres como pobres, senão como a pessoa
de cristo, a quem representavam. e assim nunca se importunava com eles,
como muitos fazem. a ordem que nisto tinha era que, depois de ter pago
os salários aos criados e oiciais de justiça e aos familiares da sua casa, o
remanescente se gastava inteiramente com todo o género de pobres, assim
viúvas recolhidas e pobres envergonhados, como outros; aos envergonha-
dos mandava dar cada mês certo dinheiro, pão, vestidos e mantos, para vi-
rem à igreja; além disto, vestia cada ano mais de quatrocentos pobres, a
muitos dava calças e sapatos. para isto enviava pelo mês de outubro à feira
de baiona, por pano para o sobredito vestuário; e ao algarve, por passas e
amêndoas para os doentes; de modo que fazia a deus senhor das rendas de
sua igreja, servindo de procurador e despenseiro destes recursos.
tinha uma particular devoção, que até depois de já estar recolhido
em seu mosteiro conservava: de tudo o que lhe punham diante partia
sempre metade para alguns pobres, assim do pão, como da carne, da
fruta, e do demais; no que parecia ter por convidado a cristo no pobre, e
assim com este partilhava amigavelmente a metade.

32
Mateus, 25, 45.
34 antónio matos reis

em braga tinha médico contratado, com salário, para todos os po-


bres. Folgava ter estes diante de si quando comia, porque dizia que tais
eram os banquetes por cujo meio trespassamos ao céu todas as nossas
caridades e obras pias.
cada dia se dava esmola geral a quantos pobres se juntavam na sua
casa, que eram mais de mil os que de ordinário lhe iam ter à porta; tinha
ordenado aos seus criados que não despedissem ninguém sem esmola.
entendendo quanto é mais necessária a esmola espiritual do que a cor-
poral, como verdadeiro pai, tinha conta com uma e com a outra: todos
os dias, antes de partir a esmola, mandava a um sacerdote que lhes en-
sinasse a doutrina cristã; estas e outras tais são as invenções dos iéis e
prudentes servos que deus pôs à frente da sua família, para que a todos
dêem a seu tempo a sua medida de trigo.
tinha especial cuidado dos enfermos da cidade e dos hospitais, pro-
vendo-os de medicinas, açúcar e outras coisas necessárias aos doentes,
e de médico que os curasse. o mesmo fazia com os padres do mosteiro de
são Frutuoso e com os mosteiros de monjas pobres.
mandava acolher em sua casa os peregrinos, costumando dizer que
naquela casa só ele era peregrino e que tudo o que nela havia era dos
pobres, nem conhecia outros parentes senão estes. a uma irmã monja
que tinha no mosteiro do rosário, de Lisboa, dava regularmente, cada
ano, o necessário, sem alguma demasia. nem com os pobres de outro
bispado tinha conta, dizendo que toda a renda daquele arcebispado era
dos pobres dele. e, o que é mais, em tempo de esterilidades e de fomes
tinha a fome alheia por sua. acudia com grande caridade e providência,
como verdadeiro pai dos pobres, a socorrer esta necessidade, mandando
comprar trigo onde havia mais abundância, no reino ou fora dele.
apesar de ser tão generoso para com os pobres e ter tantas necessi-
dades à sua conta, nem por isso tratava de aumentar nem acrescentar
as suas rendas, antes guardava nisto grande moderação, para que nem
os arrendadores deixassem de ganhar, andando as rendas baixas, nem
por outra parte perdessem, andando altas, e se encarecesse o preço das
coisas, como acontece quando andam altos os arrendamentos. por isso
procurava que os seus arrendatários fossem as pessoas mais abonadas
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 35

da terra; e com esta moderação não cresciam as suas rendas; e aos seus
recebedores mandava que as cobrassem com todo o comedimento, escu-
sando prisões e vexações.
com serem tantos os encargos que tinha à sua conta e tão pouca a
renda, chegava para tudo, por tomar para si tão pouco, e também porque
às vezes nosso senhor, como pai piedoso, acrescentava a fazenda que
tão bem repartia. assim aconteceu que, tomando a conta ao celeireiro
do trigo que estava a seu cargo, lhe acharam mais de mil e quinhentos
alqueires de pão acima do que se tinha metido no celeiro, no que não
pôde haver erro, conferindo o livro do recibo e gasto, pelo que sobrar tão
grande quantidade claramente parecia obra daquele que é pai de mise-
ricórdia e pai dos pobres. outra vez entregaram-lhe duzentos cruzados,
ou escudos, que sobraram de visitação; e, dando cada dia duas ou três
moedas de esmola, duraram dois anos, quando à partida não dariam se-
quer para um só.
embora tivesse pessoas encarregadas de repartir as esmolas, queria
trazer sempre dinheiro consigo, para quem lhe pedisse; porque o seu co-
ração não sofria que lhe pedissem e invocassem o nome de deus em vão,
e desta maneira cumpria e entendia o que o salvador diz 33: Omni petenti
te tribue, quer dizer, dá a todos os que te pedem. e até lhe aconteceu en-
contrar no caminho um clérigo com uma roupinha tão rota que se lhe
viam as carnes: tendo-o chamado a vir consigo a sua casa e não havendo
nela dinheiro, deu-lhe o mantéu que trazia. e além de todas estas esmo-
las tinha outras mais secretas que corriam por sua mão.
como pessoa tão dada a obras de caridade, propôs e votou, no santo
concílio de trento, que os bispos, depois de tomarem o necessário para
os gastos da sua casa e família, aplicassem o demais a favor dos pobres,
como património de cristo. e, durante o concílio, todo o seu cuidado era
escrever para braga, a recomendar que se tivesse muita atenção para
com os pobres. Quando se retirou para o convento de Viana, tinha uma
cela cuja janela dava para o campo, e por ali acudiam os pobres a pedir
esmola, e lha dava; e quando não tinha outra coisa, deitava-lhes a cama.

33
Lucas, 6, 30.
36 antónio matos reis

sucedeu isto tantas vezes, que foi necessário mudá-lo para outra cela,
porque, quando pensavam que tinha cama, a tinha dado em esmola.
com esta grande liberalidade e entranhada misericórdia para com os
indigentes, sendo para si tão pobre, roubou os corações dos seus súbditos
e os afeiçoou grandemente à sua pessoa e doutrina. porque verdadeira
é a sentença de salomão que diz34: Victoriam et honorem acquiret qui dat
munera; alma autem aufert accipientium. Quer dizer: vitória e honra al-
cançará o que faz dádivas, pois com elas conquista os corações dos que as
recebem. e por esta razão, sem andar muito acompanhado e rodeado de
criados, o amavam e reverenciavam os seus súbditos, não como a homem
da terra, senão do céu, pois neste entesourava, e não naquela.
este grande resultado não o obtêm os prelados que querem ter gran-
de casa e família, porque nada lhes queda, ou muito pouco, para ganhar
a afeição dos seus súbditos com dádivas. deveriam esses recordar-se do
exemplo do salvador 35, que, decidindo lavar os pés dos discípulos, se cin-
giu com uma toalha tão apertada que sobrassem apenas dois extremos
suicientes para os limpar, depois de lavados, no que deu o exemplo aos
que agora estão em seu lugar, para que de tal maneira tomem o necessá-
rio para as suas pessoas e dignidades que sobre pano para limpar os pés,
isto é, para socorrer os pobres de cristo.
passemos agora a outro grau mais alto de caridade, que é o amor dos
inimigos. Foi um de seus beneiciados a roma e acusou o bom prelado de
muitas falsidades, das quais se ilibou suicientemente, mostrando cla-
ramente o contrário do que tinha sido acusado. por isso, sua santidade,
sabida a verdade, mandou castigar o acusador, e o rei de portugal, infor-
mado do caso, o desnaturalizou de seus reinos, de modo que a calúnia
redundou em dano do caluniador e em maior glória do caluniado, como
aliás costuma suceder quando perseguem os bons. com efeito, pio V, de
gloriosa memória, que então presidia à igreja de deus, enviou-lhe um
breve, no qual lhe dizia que o tinha por bem-aventurado, pois era perse-
guido por fazer justiça, e que estivesse certo de que, ainda que viessem
contra ele seiscentos testemunhos adversos, nenhum crédito lhes daria.

34
Provérbios, 22, 9.
35
João, 13, 4-5
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 37

então o pobre beneiciado, vendo-se perdido, não teve outro remédio


senão vir e lançar-se aos pés do arcebispo, com muitas lágrimas; e ele
mesmo fez outro tanto, e, tomando-o nos braços, o levantou e abraçou, e
alcançou de sua santidade e do rei que fosse perdoado. assim favorece a
divina providência aos prelados que, postos de lado os temores e respei-
tos humanos, fazem o que devem, ainda que lhes custe caro.
de idêntica benignidade usou para com outros caluniadores: estan-
do uma noite em reunião com certos padres, uns homens desalmados,
por haverem sido castigados, quiseram vingar-se, e, chegando-se ao pé
da janela onde os podia ouvir, ultrajaram-no, chamando-lhe herege e lu-
terano e outros tais nomes que o furor da ira lhes inspirava. mas outros
bons homens, das suas janelas, os repreenderam asperamente, alegan-
do que diziam mal de um santo. então, com rosto manso e sereno, ouvin-
do as vozes de uns e de outros, não quis que se izesse inquirição daquela
desvergonha, vencendo com altivez os descomedimentos alheios, que é
uma das propriedades que séneca põe no homem sábio: Scire contemne-
re et contemni, isto é, saber desprezar e saber ser desprezado36.

36
*cf. séneca (aliás, autor incerto), De Moribus, 24. “contemnere” é um leitmotiv recorrente na obra de
séneca.
38 antónio matos reis

CAPÍTULO VI
Da virtude da humildade que teve na sua vida

assemos da virtude da caridade à da humildade, conserva-

P dora desta mesma caridade; porque dizem que, assim como


o simples fogo se mantém debaixo das cinzas, assim a chama
da caridade é protegida pela humildade. Foi sempre o nosso
arcebispo muito afeiçoado a esta virtude, a qual, embora tenha as suas
raízes no interior da alma, daqui irradia para fora, assim nas palavras
como nas obras e no tratamento da pessoa, e até no mesmo hábito e ves-
tuário, porque todas estas coisas se parecem à mãe que a gerou, que é o
conhecimento da própria vileza e o desprezo de si mesmo; e digo despre-
zo, porque não basta este conhecimento para fazer o homem humilde, se
não se junta com o desprezo de si mesmo: porque a humildade não tem
o seu alicerce no entendimento, embora dele proceda, senão na vontade.
de tal maneira o nosso pastor era humilde, que nunca por isso perdeu
a gravidade que à sua dignidade e ofício pertencia. esta humildade não
era postiça nem ingida, como a de muitos outros, senão que procedia do
mesmo peso da virtude. e por ela não lhe obedeciam e o reverenciavam
menos os seus, do que se fora um grande príncipe. mas, por ser em todas
as coisas humilde, não queria por isso perder um ponto da preeminên-
cia da dignidade e dos privilégios de sua igreja, como foi compelido a ju-
rar solenemente, quando tomou posse. por isso, quando veio às cortes de
tomar, sempre trouxe cruz alçada, como primaz que pretendia ser, até
à câmara de sua majestade (ainda que outros prelados reclamassem),
para que não fosse minimizado o direito da sua igreja. comigo aconte-
ceu outra coisa semelhante, porque tratando eu de imprimir o livro de
que acima iz menção, chamado Stimulus Pastorum, e pondo ao princípio
o nome do autor, que era ele, não quis pôr Primaz, parecendo-me que,
pela humildade que sempre lhe conheci, se ofenderia com isto; mas não
foi assim, antes parecendo-lhe que em alguma maneira isso ia contra a
preeminência da sua igreja, mandou-me rasgar aquele primeiro cader-
no e imprimir outro, em que se pusesse aquela palavra Primaz; porque
a virtude da humildade não exclui o que pertence à autoridade da dig-
nidade.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 39

mas voltemos à humildade. subia uma escadaria tão devagar, que


um amigo, que ia a seu lado, lhe perguntou por que subia tão devagar.
respondeu: vou pensando nos graus que os santos escrevem da humil-
dade, citando, em relação a isto, o que o profeta diz do homem justo37:
Ascensiones in corde suo disposuit, etc. desta maneira os grandes servos
de deus, como em deus andam transformados, em todas as coisas ele se
lhes representa, assim como ao que tem sobre os olhos um vidro verde
todas as coisas que vê parecem verdes.
exortava os seus oiciais e amigos a que se guardassem muito do pe-
rigo da vanglória, que é um vento muito subtil, que entra por onde quer,
mormente quando acha motivo nas boas obras que fazemos. porque é tal
a natureza deste vício, que, sendo verdade que os outros vícios são com-
batidos pelas virtudes, só este toma ocasião para nos fazer guerra com
elas. daí, quanto mais o homem for virtuoso, tanto mais se deve preca-
ver deste vício, que das próprias virtudes faz arma para as destruir.
mostra-nos a humildade interior da sua alma, entre outros, este
exemplo: um padre muito religioso e seu familiar andava desejoso de
morrer e suplicava a nosso senhor que o tirasse desta vida. perguntou a
este servo de deus se tinha idêntico desejo, o qual, pensando um pouco
o que havia de responder, disse que não tinha esse desejo. instado a di-
zer porquê, respondeu que, se nosso senhor fosse servido, desejava viver
mais tempo, para purgar as negligências que havia cometido no arcebis-
pado. com isto cessou logo a tentação daquele padre, dizendo que, se um
varão tão santo desejava viver, porque tinha culpas que purgar, quanto
mais o havia ele de desejar, pois tinha tanto mais por que temer.
era muito modesto e humilde nas disputas. Quando se examinavam
os que havia de ordenar, ouvia primeiro o parecer dos assistentes, e se-
guia-o, sendo tão grande letrado que por si poderia muito bem decidir os
impedimentos, mas em tudo se havia como o menor de todos, sendo na
verdade o maior, seguindo o exemplo do mestre da humildade, que, se-
gundo ele mesmo disse38, estava entre seus apóstolos e discípulos como
aquele que serve e não como senhor.

37
Salmo 83, 6.
38
Lucas, 22, 27.
40 antónio matos reis

esta mesma virtude fazia que, ao contrário do que sucede com ou-
tros, não tivesse por agravo que apelassem de uma sentença sua para o
superior, dizendo que emendaria as suas faltas e ignorâncias, e portanto
não só não se agravava mas antes folgava com isso; porque, como verda-
deiro humilde, não se iava muito do seu parecer, e, como temeroso de
deus, procurava por esta via descarregar a sua consciência, e, como pru-
dente, furtava-se ao perigo da sua alma, remetendo a carga para outros.
embora tivesse breve de são pio V, de gloriosa memória, não só para
que não lhe pudessem pôr suspensão em matéria de reformação e cor-
recção, mas também em qualquer outra matéria, para que acompanha-
do com um adjunto ou dois, que indicava, sentenciasse as causas apella-
tione remota (coisa que a mais ninguém foi concedida), nunca quis usar
desta faculdade, antes, pelo contrário, folgava que apelassem dele, pela
razão acima referida.
por esta mesma razão, quando em alguma causa estavam de tal
modo os votos repartidos que a resolução quedava dependente só dele,
não queria reservar este encargo para si, mas chamava um erudito de
muita coniança, para assim icar mais livre e segura a sua consciên-
cia. porque o grande temor de deus, que morava na sua alma, o fazia
ter sempre diante dos olhos a hora da morte e das contas, procurando,
quanto era possível, achar-se descarregado nessa ocasião.
sentia muita pena, como verdadeiramente humilde, quando lhe fa-
ziam elogios. aconteceu, uma vez, que certa pessoa disse muitas coisas
em seu louvor e depois veio a pedir-lhe uma que não lhe devia conceder;
então, disse mui a propósito, não sem graça, aquilo do evangelho39: Omnis
homo primum bonum vinum ponit, et cum inebriati fuerint, tunc id quod
deterius est. mas já é tempo de que, suposto o fundamento destas virtudes
pessoais, comecemos a tratar das que pertencem ao ofício pastoral.

39
João, 2, 10.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 41

CAPÍTULO VII
Do ofício da visita do arcebispado

rimeiramente exponhamos o modo e a ordem que este vigi-

P lantíssimo pastor seguia nas visitações, em que se ocupava


todo o ano, exceptuando os tempos em que o santo concílio
tridentino manda assistir na catedral.
chegando ao lugar que havia de ser visitado, convocado o povo e junto
na igreja, logo pela manhã, dizia missa, crismava e pregava a doutrina
em linguagem chã, acomodada à capacidade dos ouvintes; repreendia
particularmente o vício da carne, que naquela terra era muito generali-
zado; e neste ponto muitas vezes se inlamava, clamando contra os que
por este vício animal afastavam deus da sua alma.
depois de crismar e pregar, sentava-se a uma mesa, a visitar, e dois
visitadores, noutras duas; e desta maneira, sendo o lugar pequeno,
numa manhã quedava visitado, ainda que muitas vezes se acabava o
ofício com o dia, e a esta hora ia comer, bem cansado; e se estava outro
lugarzito próximo, de tarde o visitava, e pregava outra vez.
uma vez, estando já a cavalo para se ir embora, aconteceu chegar um
homem com um ilho para que o crismasse, e o arcebispo apeou-se da
mula e mandou preparar o necessário para esta função; e, dizendo os vi-
sitadores que bastaria ir aquele homem ao lugar que estava mais adian-
te, respondeu que não era justo, que aquele homem pedia o seu direito, e
era-lhe devedor, e assim se apeou e crismou o jovem. e com ser tão gran-
de o arcebispado, como se disse, nunca buscou auxiliar que o ajudasse
no ofício pontiical, senão sozinho por si fazia tudo.
acabada a visitação do dia, conferia com os visitadores o que tinham
achado e fazia um relatório dos delinquentes num cartapácio que sem-
pre trazia no seio; para poupar tempo em escrever, e guardar maior se-
gredo, usava estas cifras: se os testemunhos eram de fama clara, punha
um o claro; se não, punha um o escuro; e se eram de suspeita, punha
uma +. para maior clareza, tinha repartido o arcebispado em certas par-
tes, e de cada uma tinha um livro ordenado por abecedário; e ordina-
42 antónio matos reis

riamente trazia estes livros consigo, sem que pessoa alguma os visse.
neles, com letra sua, tinha escritas as culpas dos delinquentes, com as
notas que declarámos. assim mesmo, nestes livros trazia escritos os be-
neiciados e virtuosos de quem havia de iar; e de alguns dizia: este pare-
ce homem de deus; e de outros: é varão de clara fama; de uns dizia: este
sabe letras; e de outros: nada sabe; ou de outros: pouco sabe. trazia tam-
bém aqui anotadas as obrigações das igrejas e dos encargos de missas e
rendas delas; e por aqui entendia como se havia de haver em quaisquer
assuntos, quando vinham às suas mãos, e com a ajuda destes livros sabia
quanto se passava no seu arcebispado.
além disso, as obrigações de mais urgência escrevia-as a seu modo
em papéis pequenos e colava-os na parede de seu aposento, onde os
pudesse ver, e cada dia os lia; e assim mandava acudir com o remédio
necessário com muita diligência, e não descansava até executar o que
pedia cada caso.
Quem não reconhece nestes cuidados e providências a diligência e
a vigilância deste bom pastor? Quem não vê o cuidado que sempre teve
em acudir às suas obrigações, sem que jamais se lhe pudesse imputar
algum género de cobardia, por diicultosos que fossem os negócios que
trouxesse entre as mãos? Quem não vê quão engenhoso e solícito é o te-
mor de deus e da conta que se lhe há-de dar das ovelhas redimidas pelo
seu sangue? pois um peito como este é capaz de todas as invenções e di-
ligências. outras ainda há que referir, bem conformes a esta solicitude e
cuidado, a condizer com o nome de bispo, que quer dizer sentinela, como
deus chamou ao profeta ezequiel40, quando o enviou a pregar, de tal
modo tinha presentes nos livros os delinquentes que havia de corrigir.
aconteceu repreender um clérigo honrado, e dizendo-lhe o clérigo: V.
s. ilustríssima é meu inimigo, respondeu: inimigo? aqui vos trago escri-
to dentro do meu peito. e, sacando do seu cartapácio, mostrou-lhe ali o
seu nome, e com este garbo começou a tratar de seu remédio.
não poupava nenhuma espécie de pessoas, e muito menos as mais po-
derosas, porque, como tinha a deus do seu lado, assim tinha o ânimo e o

40
Ezequiel, 3, 16-17.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 43

coração fortalecido para semelhantes encontros. nisto imitava ao santo rei


ezequias, o qual vendo que tinha deus da sua parte, por ser iel guardador
de seus santos mandamentos, cobrou ânimo para se rebelar contra a pre-
potência do rei dos assírios, podendo escrever-se dele: teve mais sucesso
do que podia desejar, pois está escrito que todos os que esperam em deus
não serão confundidos, isto é, nunca resultarão em vão as suas esperanças41.
aconteceu-lhe saber de um homem nobre, muito valente e temido
por todos, que há muitos anos estava apartado da sua mulher legítima
e envolvido com outras, do que os prelados passados não puderam ave-
riguar, pelo receio que lhe tinham. mas contra um homem tão poderoso
prevaleceu outro mais poderoso, que o era pelo espírito de deus. porque,
depois de o haver repreendido e mostrado com palavras muito ásperas
a fealdade do estado em que vivia, lhe disse que não o havia de absolver
nem admitir em nenhuma igreja, até que fosse para a sua casa e izesse
vida com a sua mulher. e embora se enraivecesse e barafustasse, dizen-
do a outros que havia de matar o arcebispo, inalmente se lhe apagou a
fúria e veio render-se à igreja, pedindo perdão, e coabitou com sua mu-
lher; desta maneira, reconciliado com a igreja e com a sua companheira,
daí a poucos dias morreu em paz.
andando a visitar a comarca de chaves, soube que um corregedor
tinha arrombado as portas da igreja da vila e tirado um homem refu-
giado nela, para o prender. acudiu logo o bom pastor, zeloso da honra de
deus e da imunidade da igreja, e mandou fazer uma procissão, levando
as cruzes cobertas com um véu negro, enquanto os clérigos cantavam o
salmo 42: Quare fremuerunt gentes, etc. chegados à igreja com esta pro-
cissão, fez um sermão a propósito do que vinha ao caso, e logo mandou
pronunciar a sentença de excomunhão, e apagar as velas, voltando-as
para baixo; e com estas coisas quebrantou a dureza do corregedor, que
veio confessar a culpa e pedir perdão, o que lhe foi concedido, mas com
tal penitência que no domingo seguinte estivesse à porta da igreja com
aquele machado aos ombros, com o qual tinha quebrado as portas da
igreja, e que juntamente restituísse o preso, o que tudo se cumpriu intei-

41
Provérbios, 23, 18; Salmos 9, 10-20; 25, 3;
42
Salmo 2.
44 antónio matos reis

ramente. Feito isto, icou em paz e com muita amizade com o dito corre-
gedor; porque nada disto fazia o servo de deus com ímpeto de ira, senão
com zelo de justiça, e, como isto entendiam, os delinquentes icavam
emendados e não com inimizade.
não tinha proteu tantos semblantes e iguras quantas este pruden-
tíssimo pastor43, acomodando-se ao que pedia o remédio das almas, imi-
tando o apóstolo que fazia o mesmo, como explicou, dizendo 44: Omnia
omnibus factus sum ut omnes facerem salvos. pois, como era senhor de si
mesmo e de seus afectos, não se deixava levar por estes, mas fazia o que
convinha à cura dos seus enfermos; e assim, a uns tratava com grande
humildade e mansidão, e com lágrimas de compaixão, por ver a sua per-
dição, com o que os cativava e rendia, e com outros usava do rigor que
pediam as suas culpas.
a um clérigo facinoroso, que andava à sombra de telhados e pelos
montes, feito bandoleiro, o fez chamar, assegurando-lhe que nenhum
mal lhe faria; e, quando lhe apareceu diante, mandou-o sentar-se numa
cadeira e, pondo-se de joelhos, derramando muitas lágrimas por o ver
tão perdido, o moveu à compunção, e desta maneira o emendou e teve
em sua casa muito tempo.
com este se houve como cordeiro, mas para com outros era um leão,
quando o negócio o pedia. assim, visitando uma vila onde o juiz estava
amancebado e, por rogos da sua má companhia, distorcera muitas vezes a
justiça, chamou-o junto de si e, santamente indignado, lhe disse: vós sois
um grande ladrão! espantado, o juiz retorquiu-lhe: olhe V. s. ilustríssima
como fala. respondeu: eu vo-lo provarei, porque estais amancebado pu-
blicamente com fulana, e os que querem algo de vós negoceiam por seu
intermédio o que querem, e assim roubais a justiça das partes, e isto é ser
ladrão. e logo remediou este mal, fazendo que a mulher saísse da terra.
estando para celebrar missa de pontiical, e vendo que se começava
a revestir para ler o evangelho um dignitário que na terra estava algo

43
*segundo a mitologia, proteu, ilho de poseidon e de tétis, tornou-se guardador dos rebanhos de seu
pai, isto é, dos grandes peixes, das focas e dos monstros marinhos. tinha o dom da profecia e o poder de
se metamorfosear para escapar aos perseguidores ou aos que o buscavam para saber dos acontecimentos
futuros: se alguém conseguisse vencer o medo perante as formas terríveis que assumia, revelava-lhe a
verdade, como sucedeu com menelau, rei de esparta, que pretendia saber se podia voltar, e como, à sua
terra, após a guerra de tróia.
44
1 Coríntios, 9, 19.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 45

infamado, mandou-lhe que o não izesse, para não honrar a culpa, hon-
rando a pessoa culpada. e, com a sua boa diligência, levou inalmente
a bom termo este negócio, pois, embora a mulher estivesse oculta em
casa, conseguiu contactá-la e fazê-la sair da terra. este mesmo benei-
ciado, que muito sentiu este golpe, depois caiu na conta e teve por gran-
de benefício a cura que nele se havia feito, e assim o agradeceu.
a outro homem importante, que também estava em pecado, persua-
diu, com a autoridade que tinha, e obrigou-o a morar na cidade de braga
e a conviver com os padres da companhia, e desta maneira conseguiu
que se emendasse.
Há naquele arcebispado uma terra cheia de fragas e montanhas, em
grande parte do ano coberta da neve, que se chama o barroso; e assim,
por isto, como pela aspereza dos campos, porque não se pode aí andar a
cavalo, nunca foi visitada por nenhum prelado em tempos passados, se-
não apenas por são Geraldo; por isso, estava a terra tão desamparada de
sacerdotes que se passavam dois e três meses sem os moradores ouvirem
missa e sem terem quem lhes ensinasse a doutrina cristã. assim, encon-
trando-se pelo caminho um velho, e, perguntando-lhe se sabia quantos
eram os mandamentos, respondeu que eram dez, e, instando-o a dizer
quais, mostrou os dedos das mãos. chegando a esta gente a notícia de
que o arcebispo os ia visitar, e conhecendo a fama da sua santidade, de-
cidiram fazer-lhe uma recepção com cantares devotos. o princípio de
um dizia: “bendita seja a santíssima trindade, irmã de nossa senhora”,
tal era a rudeza daquela gente. pois visitou-os o nosso arcebispo e, as-
sentado naquelas fragas, lhes pregava, os doutrinava e os crismava.
porque os clérigos de missa não queriam habitar naquela terra, reu-
niu ali muitos moços, ilhos da gente desses lugares, levou-os para bra-
ga, sustentando-os em sua casa, e fez-lhes ensinar tudo o que era mister
para serem sacerdotes, ordenando-os depois da haverem estudado, sem
património 45, por ter bula de sua santidade para esse efeito, e depois os
enviava à terra da sua origem. com esta inovação providenciou o pru-
dente pastor à necessidade daquela gente inculta.

45
*o direito canónico, até ao concílio Vaticano ii, exigia que os clérigos, antes de serem ordenados,
tivessem património próprio, que teoricamente permitisse a sua sustentação.
46 antónio matos reis

era infatigável na realização das visitas pastorais, e não havia quem


pudesse aguentar esse esforço mais do que ele. mas o seu exemplo de
visitador e a virtude dos outros visitadores que o acompanhavam, os fa-
zia resistir no trabalho. para estas funções e para ministros da justiça,
assim eclesiástica como secular, que também estava a seu cargo na ci-
dade de braga, buscava os maiores e mais virtuosos letrados que havia
no reino, os quais eram tais que muitos deles viria a tomar o rei nosso
senhor para o seu serviço.
entre outras virtudes, uma foi muito notável e digna de ser proclama-
da: é que, em todos os vinte e três anos em que governou aquela igreja, não
consta que impusesse pena de dinheiro, nem tampouco usava de exco-
munhão, senão em casos muito urgentes, para não enredar as almas com
censuras. o processo a que recorria, para castigar e emendar os culpados,
era evitar que entrassem nas igrejas: inalmente envergonhavam-se e
arrependiam-se, apartando-se do pecado, ou casando-se com as mulhe-
res que eram participantes nele, ou com outras; e desta maneira, tão sem
sangue e sem custa de dinheiro, salvou um grande número de pessoas. e
quando a realização destes casamentos era impedida ou diicultada pela
pobreza, como bom pastor, os ajudava com a sua fazenda.
Há razão para lamentar o abuso que, neste assunto, se comete em
muitos lugares, porque se castigam os que se acham culpados, em um
ou em dois ducados, pela primeira vez, e pela segunda aumentam-lhes a
pena pecuniária, quedando-se na mesma situação, e a troco de um pou-
co de dinheiro se mantêm até outra visita, no mesmo pecado; e desta
maneira o fruto da visitação acaba por ser não o de emendar os peca-
dos, mas o de sacar dinheiros para a câmara do bispo, com escândalo
do povo, o que faz com que todo o esforço da visitação se torne em fumo.
usava também o nosso pastor de artifício para trazer à luz a verdade,
para aquilo de que não se achava suiciente prova, porque, chamando
os que estavam infamados e perguntando-lhes há quanto tempo havia
que estavam apar tados, e respondendo eles há quanto, daqui tomava al-
guma conjectura para rastrear a verdade, ou ao menos para conirmar
os conitentes no seu bom propósito, e com estas diligências procurava
limpar a terra dos pecados.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 47

adoptou também um estratagema para emendar uma mulher adúl-


tera, mandando-a aparecer perante si. o marido, escandalizado com
isto, foi atrás dela, e então o sábio pastor disse-lhe: tenho notícia de que
tratais asperamente a vossa mulher, o que é contra a lei do matrimónio,
e, portanto, quis avisar-vos, a vós e a ela, para que vivais em paz e servi-
ço de deus. e chamando a mulher, disse-lhe: ando a inventar meios para
vos avisar, de modo que o vosso marido não vos corte a cabeça, portanto
olhai por vós, para não perderdes juntamente o corpo e a alma.
andando o arcebispo em visitação pela diocese, deu a peste na cida-
de da braga, e poderia muito bem continuar neste tempo a sua visita e
providenciar acerca das esmolas para os doentes da cidade, para não pôr
em perigo a sua pessoa, cuja vida era tão importante para o bem do seu
rebanho, mas não curou destas ilosoias, senão, como bom pastor, pôs a
vida em perigo, para acudir à necessidade corporal e espiritual das suas
ovelhas. interrompida a visita, veio para a cidade, onde permaneceu du-
rante todo o tempo do mal, visitando em cada dia os enfermos e provi-
denciando tudo o que lhes era necessário. com tais providências e com o
mérito do sacrifício, em que este bom pastor se ofereceu a deus, durou a
peste menos tempo do que se pensava. este exemplo, mesmo que outros
não houvesse, basta para entender a virtude e a vigilância deste prelado,
pois, segundo a deinição do príncipe dos pastores46, é bom pastor aquele
que põe em perigo a sua vida pela de suas ovelhas, como aqui observamos.
bastava o que até aqui se referiu, para enaltecer o nosso pastor, mas
a caridade costuma ser engenhosa para procurar o bem da coisa que se
ama. Vemos isso nos diversos meios que este amante de cristo buscou
para benefício das suas ovelhas, as quais amava como coisa três vezes
recomendada pelo mesmo cristo a são pedro, ao coniar-lhe a sua igre-
ja47. considerando que passavam de mil duzentas e vinte e seis igrejas as
que tinha a seu cargo, e a necessidade de ministros idóneos para curar
delas, procurou com grande rapidez fundar naquela cidade um colégio
dos padres da companhia de Jesus, provendo-o de igrejas anexas, com
renda bastante, e com a obrigação de ter pelo menos quatro classes de

46
João. 10, 11.
47 João, 21. 15-17.
48 antónio matos reis

gramática e lição de artes48 e de casos de consciência49, no qual há mais


de mil e quinhentos estudantes. o colégio, além do fruto quotidiano que
produz, nas conissões, na pregação e na administração dos sacramen-
tos, nesta cidade e na sua comarca, serve para ensinar as ditas ciências,
que os estudantes aprendem, habilitando-se para o ministério de todas
estas igrejas de braga.
aqui se me oferece observar aos que murmuram de que haja tantos
estudos e colégios neste reino, que, se soubessem a obrigação que têm os
reis de portugal, coniada pelos sumos pontíices, de dilatar a fé e pre-
gar o evangelho no meio mundo que está a seu cargo, entenderiam que,
ainda que todo este reino fosse de colégios, era pouco para cumprir com
esta obrigação de acudir a tantas nações de bárbaros iniéis, muitos dos
quais estão clamando e pedindo a fé e morrendo de fome, por não haver
desse pão para tantos.
mas deixando este aparte, direi somente o que toca ao arcebispado de
braga, por me parecer que não sabem que coisa é razão e cristandade os
que disto murmuram. porque, sendo verdade que este arcebispado tem
mais de mil e duzentas igrejas, segue-se que há de ter necessariamente
outros tantos curas. e estes forçosamente hão de ser confessores, e para
isto hão de saber algo de casos de consciência, porque de outra maneira
pecarão mortalmente, se ouvirem conissões. porque se é pecado exercer
o ofício de médico quando se não sabe medicina, assim o é exercer o ofício
de confessor, que é ser médico das almas, sem saber o que se requer para
a sua cura. esse pecado é tanto mais grave quanto é maior o dano das al-
mas, que hão de durar para sempre, do que o dos corpos, que se acabarão
amanhã. daqui nasce que, sendo os confessores ignorantes, se irão ao in-
ferno, e levarão atrás de si os penitentes, porque, como disse cristo nosso
redentor50, se um cego guia a outro cego, ambos cairão no barranco. por
isso disse que não sabem que coisa é cristandade os que disto murmuram,
porque, sendo a conissão um dos principais sacramentos da igreja cristã,

48 *com o nome de artes se designavam as disciplinas que constituíam os programas escolares de nível
mais alto, nos últimos séculos da idade média: o “trivium”, que incluía a gramática, a lógica e a retórica, e
o “quadrivium”, que englobada a aritmética, a geometria, a astronomia e a música.
49 *isto é, teologia moral, segundo a nomenclatura actual.
50
Mateus, 15, 14.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 49

e sendo necessária para ela a ciência moral, além das chaves da ordem e
da jurisdição, como se compreenderá que se admita a necessidade deste
sacramento na igreja cristã e não se queira que haja doutrina para a sua
administração? e, se é tão grande o número das igrejas, também o há de
ser o dos que devem ser ensinados para estar nelas.
para este mesmo ministério procurou com toda diligência criar o se-
minário, como mandou o santo concilio de trento, para que ali se crias-
sem ministros, com bons costumes e doutrina, para este ofício, em cuja
fundação se ocupou com tanto calor e empenho, que em meio ano, jun-
tando muitos oiciais, fez casa bastante para sessenta moradores; e foi o
primeiro a contribuir, com cento e vinte mil maravedis de renda de sua
mesa, e fez com que todos os seus beneiciados também contribuíssem.
o que conseguiu facilmente: por um lado com a sua virtude e exemplo,
e, por outro, por ser pouco o que cabia aos prebendados: porque, a quem
tinha cem mil maravedis da renda, não cabiam mais de dois mil de con-
tribuições, e, como são muitos os beneiciados em tão grande prelazia,
há renda bastante para a sustentação do seminário, em que se educam
os naturais do barroso, a que acima izemos referência.
mas não termina aqui a diligência e o cuidado do nosso bom pastor,
porque, considerando que o alimento das almas é a palavra da deus e ven-
do que não era possível prover de pregadores um tão grande número de
igrejas, dotava-as ao menos de pregadores mudos, que são os livros san-
tos, para o que ele próprio compôs um catecismo, em que declarava co-
piosa, singela e devotamente, todos os pontos principais e documentos da
doutrina cristã, para que os curas, em lugar de sermão, lessem um pedaço
deste livro, e após a leitura dissessem o que deus lhes desse a entender. e
para as festas principais de nosso senhor e de sua bendita mãe, escreveu
também breves sermões e colações, em que declarava o mistério da festa
e história dela, que andavam juntos com o mesmo catecismo. e é sabido
que o povo aproveitava muito com um e com os outros.
assim, com esta diligência e com a dos padres da sua ordem, dester-
rou grande parte da rudeza e da ignorância espalhada por toda aquela
terra. a estes serviços juntou outro, que foi o de obter de sua santidade
um jubileu para os que se confessassem e comungassem nas quatro pás-
50 antónio matos reis

coas do ano, e com este atractivo tão saboroso se moveu grande parte da
gente a frequentar os sacramentos da conissão e da sagrada comunhão,
que é o alimento e o mantimento mais suave das almas.
o fruto que se seguiu, assim do trabalho da visitação, como destas pro-
vidências que temos referido, é que, estando antes a gente daquela terra
tão envolta em vícios sensuais que estes não se tinham por infâmia, estão
agora as coisas tão mudadas, que muitos se emendaram, e o que não se
emendou é tido por infame, tendo antes as coisas chegado àquele estado
miserável que condena séneca, ao dizer que estarão perdidas as repúbli-
cas quando os vícios forem considerados como estilo e costume da terra,
porque daí se segue que o vicioso não se tem por infame51.
não contente com sua vigilância, onde quer que os achava, busca-
va iéis ajudantes que o auxiliassem a levar esta carga, à imitação do
rei saul, que, onde quer que achava um varão forte, o juntava a si, para
dele se ajudar na guerra. pois assim este prelado buscava os mais com-
petentes letrados e de melhor vida que havia na terra e, além de lhes dar
salário adequado, tinha-os na sua casa, para se aconselhar com eles, em
cada hora que fosse necessário, mandando-lhes que tivessem as portas
sempre abertas, para ouvir as partes, e encomendando-lhes que, quan-
do houvessem de condenar alguém, olhassem primeiro para si e para as
suas faltas, e depois dessem as sentenças.
a clemência que recomendava aos outros, usava-a nas suas determi-
nações, procedendo mais por amor e por benevolência, do que por cen-
suras e rigores de justiça. isso melhor se entenderá, lembrando o que
sucedeu num concílio provincial que celebrou na cidade da braga com
os bispos sufragáneos, onde se estabeleceram várias leis sapientíssimas
e muito acomodadas ao bem comum de toda a província. tinham por
certo os eclesiásticos que, com o seu zelo e religião, os havia de apertar
muito, mas assim não aconteceu, porque, ao tempo de publicar os decre-
tos, ele mesmo, em nome da clerezia, apelou para a santa sé apostólica,
de alguns deles, que pareciam demasiadamente rigorosos. assim enten-
deram todos que ele, como pastor vigilante e piedoso, agia com brandura
quando convinha.

51
*cf. séneca, Epistula ad Lucilium, XVii, 1.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 51

com a sua muita prudência e a sua autoridade alcançou muitas de-


clarações do sagrado concilio de trento em dúvidas que havia, fez mui-
tas constituições novas e reformou os estilos da audiência de braga, com
que agora a diocese se pode governar muito harmoniosamente.
acerca dos que se haviam de ordenar fazia grande diligência, doendo-
se dos abusos que nesta matéria se cometiam, porque muitos dos ordi-
nários encomendavam o exame aos seus oiciais, alguns dos quais eram
como mercenários, que não pretendiam mais que levar o seu salário, fa-
zendo este ofício supericialmente, mais para cumprir do que com o dese-
jo de acertar, e assim aprovavam alguns que não deveriam, porque onde
não há temor de deus não se faz casa às direitas. o nosso bom pastor, em-
bora tivesse muito bons oiciais, queria também intervir nisto, além de
ter encomendado esse exame aos padres da companhia. não se conten-
tando com a suiciência dos estudos, também se interessava por conhecer
os seus costumes, e para isto os mandava falar com alguns homens pru-
dentes em que tinha coniança, para que lhe dessem informação da sua
capacidade. e depois, ao tempo da matrícula, estava presente, com dois
letrados seus, e via os papéis e as informações que deviam ter da sua boa
fama e costumes, e dava um olhar aos livros que consigo trazia da visita-
ção, para ver se achava alguma coisa neles. aconteceu descobrir alguns
culpados e tocados por certos vícios, e a esses tais repreendia, não lhes
dando as ordens até que lhe constava da sua emenda.
com este zelo condenou a negligência de alguns prelados, que, con-
tentes com a suiciência das letras, não olhavam tanto ao que tocava aos
costumes, que era o principal. Quando celebrava este sacramento da or-
dem, administrava-o com grande solenidade, como quem tinha os olhos
abertos para conhecer a sua dignidade. e infundia grande temor aos que
tomavam ordens, fazendo-lhes práticas santíssimas, como as faria qual-
quer um dos antigos padres que conheciam a dignidade deste ministério.
bastava o trabalho contínuo dos caminhos e visitações de todo o ano,
para que, quando viesse à cidade, tomasse um pouco de repouso, mas
não era assim, porque, durante o tempo que nela residia, pregava na
quaresma, advento, festas principais e domingos, e isto com grande fer-
vor espiritual, não cuidando de subtilezas, senão do que convinha para
a reformação dos costumes.
64 antónio matos reis

Frei Luís de Granada no seu "scriptorium"


Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 53

CAPÍTULO VIII
Da ida ao santo Concílio de Trento

stando o nosso bom pastor ocupado com a governação da

E sua igreja, foram os prelados convocados para o concílio de


trento. embora pudesse escusar-se a fazer tão longa viagem,
pela doença que tinha numa perna, movido por um grande
ardor e pelo desejo de dar o seu contributo para a reformação das coisas,
esforçou-se como gigante a percorrer este caminho, não levando consi-
go maior companhia da que a necessária, como quem ia mais coniado
na providência de nosso senhor para realizar algo do que no aparato e
fausto do seu séquito.
Levava por companheiro o p. Frei Henrique de brito [de távora], da
sua ordem, muito religioso, que, por seus méritos e virtude, foi depois
arcebispo de Goa. chegando a alguma cidade onde havia um mosteiro
dominicano, mandava a gente da sua comitiva para alguma pousada, e
só, com seu companheiro, ia pousar nos mosteiros, em alguns dos quais
era conhecido e tratado como merecia, noutros passava como qualquer
forasteiro ordinário, prostrando-se em terra ante o prior e pedindo a
sua bênção, como é costume dos hóspedes que vêm de caminho.
no insigne convento de santo estêvão de salamanca assim fez, mas,
sendo depois reconhecido, por razão de um padre português que estava
ali a estudar, o prior e todos os padres do convento, designadamente os
mais idosos, lançaram-se-lhe aos pés, pedindo-lhe a bênção, com tanto
amor e reverência como se fora nosso pai são domingos, pela fama que
já aí tinha chegado das suas grandes virtudes e da sua vida evangélica.
o santo varão, quando assim os viu, disse-lhes: oh meus padres, porque
fazem isso? não me deixareis saciar de ser frade, que há dias que ando
muito longe de o ser?
neste mosteiro procedeu à ordenação de muitos dos seus religiosos,
no oratório dos noviços, com aquela gravidade e santidade com que o
costumava fazer, pregando e engrandecendo a dignidade das ordens,
para que os que as recebiam entendessem a obrigação e a responsabi-
54 antónio matos reis

lidade que assumiam. isso foi matéria de grande ediicação para todos,
especialmente para os religiosos mais velhos que ali viviam, por haver
renovado a devoção e o modo com que os padres antigos administravam
este sacramento52.
chegado a trento e participando nos actos do concílio, toda a sua
preocupação foi a de que se tratasse da reformação dos abusos, deixan-
do outras coisas que eram de menos importância, alegando que fazer
o contrário era imitar o Faraó, que mandava matar os ilhos varões e
guardar as mulheres decrépitas.
no concílio queixou-se publicamente do fausto com que viviam al-
guns prelados, assinalando a nação donde mais se encontrava esse esti-
lo, defendido como imagem e título de autoridade, ainda que seja maior
a que nasce da virtude e do zelo da honra de deus e da salvação das al-
mas do que a de quaisquer outros meios humanos.
apresentou uma proposta e votou para que se izesse um decreto em
que se mandasse aos prelados que, depois de tomada a renda que con-
vinha à decência de seu estado, o demais se despendesse em obras pias.
o decreto não saiu, porém, como pretendia, porque houve muitos votos
em contrário.
era tido como muito independente em votar, porque tinha deus no
seu peito, e não olhava a mais ninguém senão a ele; e assim aconteceu
que, ao tratar-se da reformação, dizendo-se que os ilustríssimos e reve-
rendíssimos cardeais não tinham necessidade da reformação, volven-
do-se para o lugar onde eles estavam sentados, disse-lhes que eram a
fonte onde todos os demais prelados haviam de beber, e, por isso, convi-
nha que esta fonte estivesse muito limpa, pois tantos eram os que nela
se haviam de dessedentar. Quem não veria, pois, que este peito estava
cheio de deus, pois, nas barbas e na presença de três cardeais, que repre-
sentavam a pessoa de sua santidade, a quem todos os padres do concí-
lio reverenciavam, ousou dizer palavras de tanta liberdade? oh como é
grande coisa o temor de deus, pois onde este reina, como mais poderoso,
lança fora todos os outros temores humanos!

*nota: ao contrário do que a colocação aqui deste episódio podia levar a crer, a passagem por salamanca
52

deu-se na viagem de regresso.


Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 55

num intervalo, o cardeal de Lorena, tio do rei da França, decidiu ir


a roma encontrar-se com sua santidade e tratar com ele dos seus afa-
zeres, e em sua companhia foi o nosso bom pastor, não só para visitar
aqueles santos lugares, onde estão os corpos dos apóstolos, mas também
para pedir a sua santidade algumas coisas que lhe pareciam convenien-
tes para socorrer as necessidades de suas ovelhas, porque para isso ne-
nhum caminho recusava. como em todas as localidades se izesse gran-
de recepção ao dito senhor, o nosso prelado furtava-se a todas as honras
e seguia por outro caminho.
chegando a um lugar de onde se via roma, apeou-se da mula e man-
dou apear todos os seus criados, e, cheio de alegria no espírito santo,
pondo-se de joelhos, começou a dizer: ah santa mãe nossa! oh, escola de
religião cristã! oh, coluna e fundamento da verdade, de onde sai a luz do
mundo e o conhecimento do bem comum, onde estão os corpos dos san-
tos apóstolos e os de inumeráveis outros mártires! Fez ali aos seus um
grande sermão sobre o amor com que haviam de tratar as coisas daquela
santa mãe, de donde saía a doutrina católica, a qual quanto mais velha
tanto mais havia de ser amada, acrescentando a isto que com justíssima
razão pusera nosso senhor o governo da sua igreja entre os italianos da-
quela cidade.
e desde este lugar foi a pé com a sua comitiva até roma, onde foi mui-
to bem recebido pelo papa e pelos cardeais, pela fama da sua virtude e da
liberdade com que falou no concílio. Foi-se aposentar ao mosteiro da sua
ordem, porque não quis ir para a casa do embaixador de portugal, para
evitar o aparato e o prazer das mesas dos embaixadores, como homem
habituado à sobriedade da vida monástica. Queixando-se o embaixador
a sua santidade de o arcebispo ir pousar no convento, e não na sua casa,
respondeu sua santidade (como já sabia da temperança do bom pastor):
dai-lhe vós dois ovos assados duros e aceitará a vossa hospedagem.
56 antónio matos reis

presidia à igreja católica pio iV, que o convidou e lhe mandou pôr a
mesa junto de si.
aconteceu então uma coisa notável. dando-lhe audiência sua santi-
dade, a primeira vez, em presença de alguns cardeais e bispos, e man-
dando-lhe o papa que se sentasse, com a sua acostumada liberdade (que
a não havia perdido em roma), respondeu: santíssimo padre, não posso
sentar-me já, estando os bispos meus irmãos em pé. e parecendo a sua
santidade que tinha razão, usando da sua acostumada benignidade,
mandou que todos se sentassem.
no dia em que comeu com o pontíice, vendo que à mesa se servia
com baixela de prata, perguntou-lhe que por que não se servia de por-
celanas, que era um serviço muito formoso. ao que sua santidade res-
pondeu: dizei vós ao cardeal dom Henrique que mas envie e comerei
nelas. sabendo-o, este nosso sereníssimo cardeal lhe enviou um grande
presente delas.
deve advertir-se que, se era tão grande o descontentamento que
nosso arcebispo recebia de ver baixela de prata nas mesas dos bispos,
também estranhou vê-la na mesa da sua santidade, e por isso lhe falou
nas porcelanas. bem via que muitos se ofenderiam com este parecer,
alegando que se servem de prata, para que à hora da morte achem ali
fácil remédio para pagar a seus criados. o amor próprio é tão engenho-
so que acha sempre razões e dá a cor de piedade às coisas que quer; e é
tão subtil, que, como dizem os santos, em todas as coisas se intromete, e
ainda nos mais divinos exercícios, sem que se entenda. por isso, os que
iam mais ino no serviço de deus e lhe querem oferecer um sacrifício
puro e limpo, acautelam-se desta contradição que trazem dentro de si,
examinando muito bem o propósito que os move, para não se iludirem
com a aparência do bem. outros meios há para recompensar os criados,
sem dar de si esta nota, que é a de se servirem como grandes senhores,
tendo os seus aparadores e mesas a resplandecer com vasos de prata, en-
quanto a terra está cheia com as lágrimas e as necessidades de pobres,
de quem devem ser pais.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 57

Voltando ao assunto, o papa outorgou ao nosso prelado outras graças


e faculdades para corresponder a algumas necessidades das suas ove-
lhas; entre elas, uma foi a de, nos processos de matrimónio, poder dis-
pensar, no foro de consciência, da ainidade em primeiro grau. assim
mesmo lhe concedeu que, quando algum juiz procedesse contra ele com
censuras, seu confessor o pudesse absolver in foro conscientiae. e, além
disto, outorgou-lhe um jubileu perpétuo, a que acima izemos menção,
para os seus súbditos que se confessassem nas quatro páscoas do ano53.
entendendo que, como pessoa tão amante da pobreza, não tinha uma
cavalgadura boa para caminhar, deu-lhe uma mula sua, branca, muito
formosa, e fez-lhe outros favores.

53
*natal, páscoa da ressurreição, espírito santo (pentecostes) e santa maria de agosto (assunção).
58 antónio matos reis

CAPÍTULO IX
Das principais coisas que realizou o Arcebispo

untemos agora o im com o princípio. o meu intento principal

J neste momento da história é declarar que, sem excessivo apa-


rato e grande família, pode um prelado realizar tudo o que per-
tence ao seu ofício, se tiver as outras qualidades que se reque-
rem, que são a virtude, a prudência, a diligência nos negócios, e a largueza
nas esmolas, e, com isto, a gravidade em seus costumes, não a que é artii-
ciosa e postiça, senão a que nasce do mesmo peso e dignidade da virtude, o
que icará suicientemente provado se declararmos as coisas que este bom
pastor planeou e executou no tempo em que governou sua igreja.
primeiramente, em relação ao seu cabido (que é a coisa para que maior
poder e autoridade se requer, por os cabidos serem muito privilegiados e
poderosos), conseguiu fazer o que nenhum de seus antecessores, ainda
que alguns deles eram ilhos de reis, tinha feito. o cabido estava na posse
imemorial de designar os visitadores da cidade de braga, tanto para o cle-
ro como para os leigos, do que se seguia que nem o pastor conhecia a cara
de suas ovelhas, nem, o que é mais, a vida dos eclesiásticos, que convém
que seja tão perfeita como conhecida e corrigida. entendendo o nosso pas-
tor a desordem deste abuso, coniado em deus e na razão da justiça, em-
penhou-se em o extirpar da sua igreja, e, depois de vários lances e golpes
que neste conlito se deram, resolveu-se inalmente o assunto tão feliz-
mente, que, por mais razões que os capitulares tivessem alegado contra o
seu pastor, não somente não prevaleceram, mas ainda foram gravemente
repreendidos por sua santidade pio V, de santa memória, com estas pa-
lavras: Non erubuerint tanquam suspectum recusare venerabilem fratrem
nostrum Bartholomeum, archiepiscopum bracarensem. desta maneira se
concluiu esta grande empresa, e a concórdia foi tal como convinha ao ser-
viço de nosso senhor e ao bem da justiça, icando assente que o prelado
visitasse por si só a clerezia da cidade de braga e, para a visita dos leigos
desta cidade, nomeasse dois capitulares, os quais lhe dessem conta do que
achassem na visita, para que assim o prelado tivesse notícia completa da
vida e dos costumes dos súbditos que tinha a seu cargo.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 59

além desta proeza, que se pode considerar notável, realizou outra,


de fruto nada menor, sem ter exemplo para imitar ou tomar como re-
ferência em todo este reino, e até mais longe, a qual foi a fundação do
seminário, que o santo concílio ordenou, para formar ministros em le-
tras, recolhimento e bons costumes, para o serviço de tantas igrejas que
há no arcebispado, pois, como já dissemos, passam de mil e duzentas e
vinte e seis, para as quais não era possível achar ministros idóneos já
feitos, se não se trabalhasse para os fazer. porque se o turco (ainda que
este exemplo seja profano) tem cuidado de criar soldados para a guer-
ra, desde meninos, para que aprendam a matar homens, quanto mais
o deve ter a igreja pena criar ministros, desde moços, para salvar as al-
mas? o decreto do concílio sobre este assunto agradou tanto ao nosso
pastor, que só por esta causa deu por bem empregue jornada tão larga.
aprovado este decreto, com outros tais, ao chegar à sua pousada, pôs-se
de joelhos, dando graças a nosso senhor pelo que estava tão bem ordena-
do, dizendo que bem parecia o espírito santo assistir aos concílios, pois
neles se estabeleciam tão saudáveis decretos.
a estas duas coisas tão importantes juntarei uma terceira, não menos
proveitosa, que foi a de fundar em braga o colégio dos padres da compa-
nhia, para ensinar tanto os do seminário, como uma grande multidão de
clérigos, que para aquela prelazia são necessários, conforme já dissemos.
e além disto, por ser uma grande povoação e de muito trato, como
porto de mar, fundou em Viana um mosteiro da sua ordem, desde a
base, e dotou-o devidamente com um mosteiro antigo que estava ane-
xo à mesa episcopal, para que ali vivessem religiosos doutos, que resol-
vessem os casos de consciência e, juntamente com isso, pregassem e
confessassem na terra. este mosteiro, em conjunto com o colégio acima
referido, são duas plantas que sempre estão a dar fruto de saudável dou-
trina, não uma vez no ano, mas todos os dias.
o nosso pastor realizou todas estas coisas com a sua modesta casa
e família, o que não foi impedimento para obras tão grandes, antes lhe
serviu de grande ajuda, porque, sendo tão pobre para si, além das es-
molas que acima referimos, conseguiu juntar recursos suicientes para
ediicar estas duas tão importantes casas.
60 antónio matos reis

conseguiu também outra coisa de grande interesse, que foi a paz


com os senhores do território, especialmente com o visconde de ponte
de Lima, com quem os seus antecessores tiveram pleitos sobre os direi-
tos dos seus padroados: de tal maneira compôs os negócios com ele, que-
dando tão em sua graça, que, ao visitar o arcebispo a localidade onde
vivia, saiu a recebê-lo e lhe pediu humildemente a bênção.
e quando alguns outros senhores, por virtude dos seus padroados,
lhe apresentavam alguma pessoa menos digna para as funções de mi-
nistro sagrado, de tal maneira, com tais palavras e com tal cortesia o ex-
cluía, que não quedavam ofendidos, por terem entendido que em nada
lhe movia paixão, senão razão e temor de deus.
de muitas outras coisas que o nosso pastor realizou não se faz aqui
menção, senão destas, por serem tão notáveis, e assim os prelados teme-
rosos de deus e desejosos de sua salvação, com o seu exemplo, verão que,
sem muito aparato de pajens e escudeiros, podem cumprir muito bem
com a obrigação do seu ofício e fazer coisas difíceis e grandes, porque ao
prelado que religiosamente vive e tão liberalmente gasta o que tem com
os pobres, deus, os homens e o mesmo mundo o favorecem e ajudam em
todas as suas coisas.
os que condenarem este modo de vida tão humilde e pobre, conde-
nem também santo agostinho, de quem se escreveu 54 que só as colheres
que tinha eram de prata, mas todos os pratos de que se servia eram de
barro ou de madeira, e as outras alfaias da sua casa eram tais que à hora
da sua morte não precisou de fazer testamento, porque, como pobre de
cristo, não tinha matéria para o fazer. condenem santo ambrósio, que
até os cálices de prata mandava fundir para resgatar cativos, o que não
faria se tivesse outros recursos para os resgatar. condenem são exupé-
rio, de quem são Jerónimo escreveu estas palavras55: Santus Exuperius
Tolosanae urbis episcopus, esuriens,[…] pascit alios: et ore pallente jejuniis,
fame torquetur aliena […] nihil illo ditius, qui corpus Domini canistro vi-
mineo, sanguinem portat in vitreo. Quer dizer: “são exupério, bispo de

54
In eius vita, cap. 22.* Luís de Granada refere-se à obra de possidio, Sancti Augustini Vita. na edição critica
bilingue de Herbert t. Weiskotten, London, 1919, esta passagem encontra-se a pág. 92-94.
55
s. Jerónimo, Epistola ad Rusticum Monachum, tom. 1, 125, 20, pL, 1085.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 61

tolosa, padecendo a fome, dá de comer aos outros, e, trazendo o rosto


macilento, devido ao seu pouco alimento, sente-se atormentado com a
fome alheia: não há coisa mais rica que este prelado, que, para dar aos
pobres todos os bens que possui, transporta o corpo de nosso senhor
numa cesta de vime, e o seu precioso sangue num vaso de vidro”. era
assim o estilo e a vida daqueles padres, regidos não por espírito humano,
mas divino, que os movia a este modo de vida pobre e humilde. uma vez
que os santos pontíices que escolheram este estilo de vida são louvados
e celebrados na igreja como grandes prelados, não têm boa escusa os que
escolhem outra maneira de vida, contrária a esta, parecendo-lhes que é
mais a propósito para desempenhar bem o seu ofício pastoral. nem com
razão podem alegar que a mudança dos tempos pede outra coisa, pois no
tempo actual viveu este prelado com esta mesma temperança. e tam-
bém o reverendíssimo são carlos borromeo, de feliz memória, e outros
que aqui poderíamos nomear, sem que esta modéstia diminuísse a sua
autoridade, senão que antes a acrescentasse muito mais, porque o povo
considera como novos homens, vindos do céu, os que, podendo ser ricos
com o mundo, preferiram ser pobres com cristo.
62 antónio matos reis

CAPÍTULO X
De como deixou o arcebispado

alámos, no início, da maneira como o nosso pastor entrou no

F arcebispado, pela porta real da obediência. Vejamos agora de


que modo saiu. são bernardo, dirigindo-se ao papa eugénio56,
escrevia-lhe que tivesse muito cuidado consigo, em razão
do perigo em que vivia, porque logo (diz) “recebereis grande pena com a
multidão de negócios que vos afastarão dos braços da vossa mãe raquel,
e continuando no meio deles, daí a pouco, sentireis a mesma pena, mas já
não tão grande, e inalmente, com a continuação, vireis a calejar a alma e
a não sentir o dano que recebeis”.
este é um perigo comum, em que incorrem os varões recolhidos e vir-
tuosos, quando o mundo os traz para a praça pública e os constitui em
dignidade; que nenhuma coisa há tão áspera e difícil que a habituação,
especialmente se prolongada por muitos dias, não torne fácil e até suave.
pois deste perigo tão comum de tal maneira o senhor livrou o nosso pon-
tíice, que não somente não bastou a habituação de vinte e três anos, em
que governou aquela igreja, para calejar a sua alma, mas antes, quanto
mais continuava neste ofício, tanto mais sentia o peso da sua carga. e as-
sim os seus dizeres ordinários, em cartas e fora delas, eram: as tribulações
do meu coração se multiplicaram. e do mesmo modo que são Gregório se
lamentava, no princípio dos seus Diálogos57, de haver saído do porto segu-
ro e calmo do seu mosteiro para o pélago dos negócios do pontiicado, as-
sim se queixava este varão e assim gemia e suspirava por aquela quietude
e aquele silêncio que tinha perdido.
este descontentamento o fez escrever a sua santidade, como se disse,
e a todos os que nisto o podiam ajudar; e tanto mais insistia nisso, quanto
mais o atacava a falta de saúde para os trabalhos. neste tempo escreveu
a Frei Luís de Granada, alegando estas e outras razões, para que as repre-
sentasse ao sereníssimo rei dom Henrique, suplicando-lhe que se conten-

56
s. bernardo, De Consideratione, liv. i, cap. i, 1.
57
s. Gregório magno, Diálogos, liv. i, prólogo.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 63

tasse com tantos anos de trabalho e o deixasse descansar. o que o autor


destas linhas fez, pela grande instância com que lhe pedia que izesse ofí-
cio de iel amigo para com ele, e não sei se de iniel para com deus; mas
este escrúpulo me tirou o prudentíssimo e cristianíssimo rei, estando na
cama, enfermo do mal de que faleceu, dizendo-me: deixa-o, que, assim
como está, produz mais fruto que todos quantos lhe podem suceder.
e assim, neste tempo, não se pôde ainda concretizar o seu anseio, até
que, vindo às cortes de tomar, foi benignamente recebido por sua majes-
tade, quer pela fama da sua santidade, quer pela rectidão e inteireza que
tinha tido nas passadas alterações do reino, desejoso de lhe fazer todo
o favor e mercê, e não pediu outra coisa senão uma carta para sua san-
tidade, para que lhe quisesse dar descanso e liberdade, depois de vinte
e três anos de trabalho. Vista pois por sua majestade a razão e a instân-
cia com que pedia esta carta, lha outorgou, escrevendo a sua santidade
muito encarecidamente sobre isso. desta maneira se cumpriu aquele
seu tão grande e tão antigo desejo de liberdade.
enquanto as bulas não vinham, continuou como antes, com a admi-
nistração do arcebispado. e, porque elas tardaram algum tempo, e era ra-
zão que não se lhe negasse o estipêndio daquele trabalho, houve diiculda-
de na justiicação do direito que a isto havia, e iniciou-se um pleito sobre
o assunto. mas isso era uma coisa tão alheia ao seu modo de ser que pediu
a sua majestade que a decisão fosse entregue à arbitragem de juízes, mas
sem a formalidade de julgamento, e assim se fez. a conclusão a que se che-
gou foi a de que se lhe desse o que fosse merecido pelo tempo de seu traba-
lho. ele não o queria para entesourar na terra, mas no céu, destinando-o
a acabar aquele mosteiro da sua ordem, porque para si não era mais que
o correspondente a uma moderada sustentação. tratando-se da pensão
que se lhe havia de dar, não pediu mais que isso, mas sua majestade não
teve respeito ao pouco que ele, como pobre frade, pedia, senão ao que mais
convinha, e assim lhe mandou atribuir mil ducados de pensão, dos quais
dava ao mosteiro de Viana, onde se recolheu, o necessário para a susten-
tação da sua pessoa e de uma mula e dois moços, que o acompanhavam,
quando ia a pregar pelos lugares da comarca, e o demais repartia-o com
os seus grandes amigos, que eram os pobres de cristo.
64 antónio matos reis

recolhido pois neste mosteiro, que ele mesmo fundou, vivia como
qualquer dos religiosos, achando-se presente em todas as horas do coro,
sem faltar a alguma, e entregando-se todo a nosso senhor, sem algum
outro cuidado e obrigação, alegrando-se e dando muitas graças a deus,
porque, de um mar tão inquieto de negócios, o trouxe a um porto da
quietude e de recolhimento tão desejado, experimentando em si o que
salomão dizia 58, que é árvore de vida o cumprimento do desejo.
tanto era o gosto que tinha na oração, que fazia com a boca alguns
movimentos consideráveis, de que se inquietava todo o coro. perguntan-
do-lhe um dia o padre Fr. João da cruz (que foi duas vezes provincial
daquela província e era seu especial amigo) por que fazia aqueles tre-
jeitos, respondeu que ia imaginando, quando orava, que libava o sangue
de cristo, e da suavidade que nisto sentia, nasciam, sem reparar nisso,
aqueles ademanes.
não contente com o seu próprio aproveitamento, procurava também,
quanto lhe era possível, o dos seus irmãos; porque, podendo já descansar
(por passar da idade que a lei antiga estipulava para os ministros do tem-
plo), não o fazia, porque, tendo num corpo fraco um espírito forte, saía
a pregar aos domingos, pelos lugares da comarca. para isto se levantava
às três da manhã, rezava no coro as horas com os outros religiosos, até
à nona, logo se paramentava para dizer missa e fazia que a ouvissem os
dois moços que iam com ele, mandando-os logo almoçar, para que não
tomassem nada do povo onde iam a pregar. e se chegava lá muito cedo,
pregava antes da missa, e, ao despedir-se do povo, avisava-o de que já
ele e os seus ouviram missa, para que não se escandalizassem os fracos,
ao vê-lo ir-se antes. Foi este um dos grandes cuidados, que sempre teve,
de não dar motivo de reparo a ninguém, chegando ao ponto de, quando
comia ovos em sexta-feira diante de outros, dizer que não estranhassem
o que fazia, porque tinha bula de sua santidade para isto.
o costume que tinha durante o seu arcebispado, como antes disse-
mos, de partir a comida com os pobres, também agora o mantinha. em
tudo o que era contra o seu regalo, seguia o que a ordem e a obediência

58
Provérbios, 13, 12.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 65

mandavam, sem admitir nenhuma particularidade na mesa, na cama,


nos hábitos e no tratamento da sua pessoa.
naquela terra era já tido por santo e com este pressuposto assistiam
à sua missa muitos doentes de diversas enfermidades, para lhe pedir a
bênção, fazendo-lhes o sinal da cruz. ao princípio, ele surpreendia-se
muito; mas depois já não o estranhava tanto, antes a todos recebia be-
nignamente e lhes dava a bênção. os resultados disto (que é dar a saú-
de aos doentes) não os procurámos averiguar, e por isso nada ousamos
airmar, fazendo mais caso do exemplo das virtudes que nos ediicam,
que dos milagres que nos espantam: estes os poderão fazer alguma vez
homens maus, mas as virtudes não se encontram senão nos verdadeira-
mente santos.
na vila de Viana, uma mulher casada estava, cinco dias havia, com
tão atrozes dores de parto que não falava nem comia coisa de substância,
e as comadres, que ali assistiam, tinham por certo que a criança de que,
há oito meses, andava grávida já estava morta, porque já lhes cheirava
mal, e o médico, que esta história me contou, aplicava-lhe os remédios
que a medicina ensina para expelir a criatura morta. desconiados de
todo o remédio humano, acudiram ao divino e, como naquela terra este
padre é por todos havido como santo, procuraram obter alguma peça
dos seus vestidos para socorrer a doente, e, dando conta disto ao padre
Fr. João da cruz (que é seu amigo muito familiar), deu-lhes este uma tú-
nica que tinha em seu poder, que era do servo de deus, sem que este o
soubesse, e, vestindo-a à doente, logo na hora falou, dizendo: estou sã.
e continuando com saúde, completados os nove meses, pariu um ilho
vivo e escorreito. sabido isto na terra, daí a poucos dias estava outra mu-
lher de parto, três dias havia, sem poder despedir a criança, e acudiram
então a pedir a mesma túnica, deram-lha e logo pariu.
um doente tinha na garganta uma amigdalite que o abafava, e os
seus parentes procuraram ter uma cinta deste padre, e, havendo quem
a conseguisse sem ele se aperceber, colocaram-na sobre o doente e este
logo deitou pela boca toda a podridão de sangue e pus que tinha dentro,
recuperando a saúde.
66 antónio matos reis

una mulher apresentou-lhe, três vezes, um miúdo de pouca idade


com uma parte da cara cancerosa, com o mal a que chamam noli me
tangere59, e, fazendo-lhe o arcebispo o sinal da cruz, icou curado, como
hoje em dia se vê nesta cidade.
chegando à barra da povoação um navio que vinha carregado de tri-
go, levantou-se tão brava tormenta que estava o navio para se perder nos
baixios, onde pouco antes se haviam perdido outros dois, com a tormen-
ta; acudiram os pescadores com as suas barcas a ajudá-lo, e as mulheres
destes e a gente do povo estavam na praia aos gritos, face ao perigo dos
seus maridos. ouvindo o padre os gritos e compreendendo o perigo, re-
colheu-se logo à sua cela a fazer oração, e o navio escapou daquele evi-
dente perigo, o que todos atribuíram à sua prece.
mais importante e maior que todos os milagres era a santidade deste
varão da deus, o desprezo de si mesmo e de quanto possuía, milagre que
o eclesiástico encarece com estas palavras60: “Bem-aventurado o homem
em que não se acha mácula de pecado, nem foi atrás do ouro, nem pôs a
sua coniança nos tesouros do dinheiro. Quem é este, e louvá-lo-emos, por-
que fez maravilhas na sua vida. Tendo sido posto à prova com o dinheiro,
foi achado perfeito, portanto a sua glória será eterna, e toda a multidão e a
assembleia dos santos contarão as suas esmolas”.
estes são os milagres que nos dão testemunho da verdadeira santida-
de, o que é signiicado por aquelas palavras que dizem61 que “foi provado
e examinado como o ouro, e foi achado perfeito”. para o que é de saber,
segundo disse um sábio, que aquela que chamam pedra de toque mostra
qual seja o ouro verdadeiro e qual o falso; mas o mesmo ouro é o toque em
que se distinguem os bons e os maus, porque, conforme os homens apre-
ciam ou desprezam o ouro, assim julgamos da sua virtude e santidade.
se desprezar o dinheiro, que é coisa tão baixa, é tão grande argu-
mento da virtude e de santidade, mais o será haver desprezado honras,
dignidades e poderes, que são coisas atrás das quais os ilhos de adão

59
*chamou-se noli me tangere a uma úlcera maligna, cuja evolução se considerava tanto mais favorável
quanto menos se lhe tocasse.
60
Eclesiástico 32, 8-11.
61
Eclesiástico 31, 10.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 67

andam tão perdidos, que por elas se matam com armas; este homem
de deus não só as desprezou, mas fez tantos esforços para fugir delas,
quantos fazem outros para as alcançar. claramente se vê que esta não
é obra da natureza, senão da divina graça; não da carne nem do sangre,
que amam as coisas da terra, senão do espírito de deus, que sempre as-
pira às do céu.
na parte final desta história parece-me que é explicar de que prin-
cípio proveio esta grande solicitude e vigilância de nosso pastor, para
que se estime em muito o que foi causa da tanto bem: foi o ter-se dado
muito aos exercícios espirituais da oração e da meditação, em que sem-
pre se ocupou o servo de deus. com a persistência nestes exercícios, se
ia criando e arraigando na alma um profundo temor de deus, o qual o
fazia trabalhar no seu ofício sem descansar.
Quanto fosse amigo destes santos exercícios e do recolhimento e vir-
tude que para eles se requer, se entenderá pelo que disse a um familiar
seu amigo. morando, antes da sua eleição, no mosteiro de são domingos,
de Lisboa, e achando-se perturbado com o movimento de contactos e vi-
sitas, disse a este seu amigo: gostaria que, sem culpa da minha parte,
se levantasse uma tempestade contra mim, para que, em consequência,
me tivessem preso numa cela, porque ali mais livremente poderia bus-
car a deus e a mim próprio. isto pois nos declara quanto era amigo do re-
colhimento e da ocupação interior quem tomava por ideal ver-se preso,
para estar livre e desocupado.
cuidava muito da pureza da sua consciência, afastando-se de qual-
quer pecado, ainda que apenas venial, o que melhor se compreenderá
através do exemplo que a seguir apresento. escrevia por mão de um reli-
gioso, a pedir ao rei certo favor para uma pessoa, alegando, na carta, que
tinha para com ela muitas obrigações. escrita já grande parte, disse: ter
eu algumas obrigações, é verdade, mas muitas, não. e mandou rasgar a
carta e começar outra. dizendo-lhe o escrevente e insistindo em que não
reparasse naquilo, não quis aquietar-se, mas, pelo contrário, disse: tenho
sessenta anos e não quero fazer coisa de que tenha que me confessar.
para fugir à prolixidade, deixam-se outros exemplos semelhantes,
em que bem se mostrava que o espírito santo morava nesta alma.
68 antónio matos reis

do exercício da oração, acompanhado com a pureza da vida, saem


homens perfeitos e grandes prelados, como se viu no caso do nosso ar-
cebispo. aqui têm os prelados impressa a imagem pastoral, e dos meios
e exercícios que a isso os hão de ajudar, para que, seguindo este exem-
plo, recebam do príncipe dos pastores o prémio dos seus trabalhos, com
tantos graus da glória, quantas almas encaminharem para o céu com o
seu trabalho.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 69

CAPÍTULO XI
De alguns milagres e coisas memoráveis que sucederam
em vida do santo Arcebispo.

izendo uma vez missa, o santo arcebispo, na data em que

D já se tinha retirado para o rincão da sua cela, ao chegar às


orações do sagrado canon, deteve-se muito nelas, fora do
seu costume, e depois abreviou a missa. uma coisa e outra
pareceram grande novidade ao irmão que o ajudava, imaginando que o
arcebispo se tinha sentido mal, causa daquela mudança. mas, com toda
a diligência, o arcebispo, acabada a missa, acudiu à sua cela e deu uma
certa quantidade de dinheiro a um criado chamado Fernando Frutuo-
so, rogando-lhe que fosse, com toda a diligência e pressa, à povoação,
onde encontraria um velho, ao qual havia de entregar aquele dinheiro,
dando-lhe as senhas pelas quais o reconheceria. adverte-se que aquele
pobre homem levava uma corda debaixo da capa, porque, tendo-lhe su-
cedido uma grande desgraça, daquelas que o mundo chama infortúnios,
o demónio lhe meteu na cabeça que se enforcasse, para que com a morte
se lhe acabassem as misérias, fazendo o pai das mentiras com que o mi-
serável homem esquecesse as penas que o esperavam no inferno. deu-
lhe o dinheiro e ele mudou de ideias.
Havia naquele lugar um homem cego, chamado manuel, que concebeu
grandes esperanças de que, por meio da intercessão do santo arcebispo,
deus lhe daria saúde. com esta certeza e coniança, ia à igreja do conven-
to, cada dia, ouvir a sua missa, e, acabada, lhe suplicava que lhe dissesse os
evangelhos. repetiu isto, alguns dias, fazendo-lhe o sinal da cruz sobre os
olhos, com o que o cego recuperou a vista, e depois vestiu o hábito da religião.
70 antónio matos reis

um menino do mesmo lugar nasceu com uma carnosidade grande


numa das faces, enfermidade que com os remédios mais cresce e nenhu-
ma cura tem, se deus milagrosamente não a dá. alita, a mãe levou três
dias o menino ao arcebispo, fazendo-lhe este sempre o sinal da cruz na
parte enferma, com o que o menino recuperou totalmente a saúde. um
mancebo padecia de uma gravíssima enfermidade e o mal foi em tal cres-
cimento, que, tendo recebido já a extrema-unção, lhe deram um capuz do
arcebispo, e, pondo-o o doente sobre a cabeça, recuperou a saúde.62
diversas vezes, quando havia tormentas e borrascas no mar, fazendo
o servo de deus o sinal da cruz, logo se amainavam. e chegando uma
vez certos baixeis às proximidades de Viana, em grande perigo e a pon-
to de se afundarem, fazendo o arcebispo o sinal da cruz, acalmou-se o
mar e as naves entraram no porto em salvamento. no pensamento dos
mareantes, era tão certo o socorro que o céu enviava pela mão do arce-
bispo, que os que se achavam em terra, vendo que algum baixel estava
em perigo no mar, suplicavam ao servo de deus que izesse oração, e com
ela se acabava o perigo.
todas as vezes que saía do mosteiro com o seu companheiro para ir à
casa de são salvador de torre, anexa ao seu mosteiro, onde ia para aten-
der à oração com maior sossego e menos ruído, rodeava-o inumerável
gente do povo: uns, postos de joelhos, lhe beijavam as mãos, outros, o
escapulário e os hábitos. muitos, à ida e à vinda, o acompanhavam; as
mulheres que não podiam sair de casa, pondo-se às janelas, pediam a
bênção ao servo de deus.

62
o parágrafo que se seguia, e aqui retirado do corpo do texto, repete factos já referidos: “una mulher
esteve cinco dias com suas noites com dores de parto muito atrozes, e o maior inconveniente e perigo era
que a criança estivesse já morta, com o que nem os médicos com os remédios faziam coisa que valesse a
pena para que desse à luz. estava tão acabada já a mulher com o esforço e tão rendida ao mal, acabadas as
forças, de maneira que não podia falar, e choravam-na já por morta os da sua casa. uma mulher do bairro,
que ali se achou presente, persuadiu-a a que buscasse alguma coisa dos hábitos ou vestes do arcebispo.
trouxeram uma túnica, vestiram-lha e logo no momento começou a falar muito claramente, e em voz alta
disse: sejam dadas graças a deus, eu já estou boa; e logo deu à luz o ilho vivo. o mesmo sucedeu, e com a
mesma túnica, a outra mulher que havia três dias que estava fatigadíssima com atrozes dores de parto.
isto mesmo aconteceu a outra mulher, colocada no mesmo perigo, que, depois de pôr um escapulário do
santo arcebispo, deu à luz de imediato”.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 71

alguns que se embarcavam com ele no rio confessavam que, choven-


do com toda a fúria, icavam todos molhadíssimos, menos o arcebispo.
aos domingos e festas, indo pregar nas igrejas vizinhas, pedindo-lhe a
bênção e a esmola, acompanhavam-no cortejos de pobres, cuja compa-
nhia era gratíssima ao santo, e mais quando se achava com dinheiros
para repartir63.

63
*terminaria aqui o texto escrito por Frei Luís de Granada. tendo morrido em 31 de dezembro de 1588,
claramente se vê que não podia narrar a morte do bem-aventurado arcebispo d. Frei bartolomeu dos már-
tires, ocorrida em 16 de Julho de 1590. a breve relação da morte do santo prelado, que constitui o capítulo
seguinte, deve tê-la acrescentado Frei João Lopez, bispo de monópoli, na Quarta Parte de la Historia General
de Santo Domingo (Valladolid, 1615, pág. 655-686), para completar a biograia escrita por Frei Luís de Gra-
nada, e passou a acompanhá-la posteriormente. na edição das obras completas de Frei Luís de Granada, de
1906, omite-se não só o capítulo Xii mas também o capítulo Xi.
72 antónio matos reis

CAPÍTULO XII
A ditosa morte de D. Frei Bartolomeu dos Mártires

om os muitos anos, agravaram-se as enfermidades do santo

C arcebispo; traziam-no atormentado os problemas da bexiga,


não o deixando urinar, e de tal maneira o atacaram que, ain-
da que o santo ancião desejasse encobrir a causa da doença e
as dores que o martirizavam, não o pôde fazer de maneira que a qualida-
de do mal não vencesse o ânimo e a determinação do santo. no meio das
dores, repetia muitas vezes estas palavras: Domine, da mihi hic patien-
tiam et postea indulgentiam64 , “senhor, dai-me agora paciência e depois
indulgência”. a violência do sofrimento, que o levava a desfalecer com
muita frequência, era a moléstia maior, e esta anunciava a morte; mas,
se a enfermidade crescia e as forças se acabavam, a prática da oração a
deus foi no seu servo a mesma de sempre. usava umas breves orações,
que os santos chamam jaculatórias, com as quais louvava ao senhor, re-
conhecendo como obra da sua misericórdia as dores que padecia, e jun-
tamente suplicava pela salvação eterna de sua alma. Já tinha chegado a
um estado em que vivia com olvido de todas as coisas que há no mundo,
mas, no que tocava aos deleites do espírito e ao amor de deus, dizia coi-
sas muito a propósito e de celestial sabedoria.
morreu cheio de anos, como se diz de alguns santos patriarcas anti-
gos, e cheio de merecimentos. Faleceu a 16 de Julho de 1590, terça-fei-
ra, à hora de completas, achando-se presentes os frades e os cónegos da
igreja de braga, que todos acompanharam a santa partida do arcebispo
com orações e lágrimas. e porque deus nem sempre quer que a honra
de seus servos comece apenas na outra vida, senão que já nesta se ho-
menageiem os santos, foi o novo arcebispo de braga, d. Fr. agostinho de
Jesus, que lhe deu o santíssimo sacramento da extrema-unção. achou-
se presente no seu falecimento, acompanhado pelo cabido da catedral
de braga, e providenciou tudo o que foi necessário para que o santo fos-

64
*atribuída a s. Fulgêncio. cf. Sancti Fulgentii Ruspensis Vita, Prolegomena, caput XXiX, 63 (Patrologia
Latina, tomus LXV, paris, 1847, col. 149).
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 73

se enterrado com a dignidade que convinha à sua pessoa, mostrando o


grande amor que tinha ao seu predecessor defunto.
mal amanheceu o dia seguinte, deu-se um concurso de gente tão
grande que foi necessário levar o corpo do santo defunto pelas ruas pú-
blicas do lugar, para que todos se consolassem com a sua vista. enquanto
o aparelhavam para o enterro, rasgaram as suas vestes, não deixando na
cela objectos nem panos, dos que o servo de deus usava, por pequenos e
velhos que fossem, que não se partissem, dedo a dedo, entre os que se
achavam presentes, levando cada um a sua parte, alegre com tão pre-
ciosas relíquias.
Houve grandes discrepâncias com o cabido de braga sobre o lugar
onde se havia de sepultar o corpo, e ainda que o arcebispo, que se achava
presente, quisera favorecer a pretensão dos cónegos, a instância dos fra-
des e da vila de Viana foi tal que não quis sentenciar de modo diferente.
tiveram os de Viana medo de alguma violência e alguns deles acudiram
armados, com a decisão de arriscar a fazenda e a vida para que o corpo
do santo icasse na sua terra. acabadas as exéquias, e depois de o padre
Fr. Jorge, da ordem de santo agostinho, companheiro do senhor arce-
bispo, ter pregado um grande sermão, em hábito pontiical, o arcebispo
fez o ofício de sepultura, honrando não só a dignidade do arcebispo de-
funto, mas também a virtude de um grande santo. não houve homem
na vila de Viana que não celebrasse o enterro com muitas lágrimas, que
todos choravam, como se a cada um lhe houvesse faltado o pai. passado
um mês, trinta soldados armados assistiram à colocação na sepultura,
em que puseram este epitáio: Ardere et lucere jubet, qui luxit et arsit:
luxit enim exemplis, arsit amore Dei (manda arder e iluminar aquele que
iluminou e ardeu: iluminou com os exemplos, ardeu no amor de deus):
palavras que em breve resumo traduzem a santidade do arcebispo, e o
grande exemplo que foi a sua vida65.

*a biograia incluída na edição das obras completas, terminava com o seguinte parágrafo, que tem todas
65

as características de uma adenda posterior: “numa carta do papa pio iV, dirigida ao cardeal de portugal,
d. Henrique, que depois foi rei, respondendo a outra que este lhe tinha escrito em sua recomendação,
menciona-se o crédito que no concílio de trento teve a bondade, a religião e a devoção do arcebispo. num
breve do papa Gregório Xiii, remetido ao arcebispo, o sumo pontíice dizia conceder-lhe certa graça pelos
grandes merecimentos da sua pessoa”.

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