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MENTOR E BIÓGRAFO
DE D. FREI BARTOLOMEU
DOS MÁRTIRES
– VIDA DO ARCEBISPO.
1
ENCONTRO DE DOIS GRANDES ESPÍRITOS
1
cf. José sebastião da silva dias, A política cultural da época de D. João III, 2 vols., universidade de coimbra, 1969.
2
cf. amélia polónia, D. Henrique o Cardeal Rei, Lisboa, círculo de Leitores, 2005. a autora dedicou ao tema
especíico do arcebispado eborense de d. Henrique outros estudos, como: “ espaços de intervenção religio-
sa do cardeal infante d. Henrique: actuação pastoral, reforma monástica e inquisição”, em Em torno dos
espaços religiosos – monásticos e eclesiásticos, porto, iHm-up, 2005; “a diocese de Évora em contextos pré
e pós-tridentinos. a actuação pastoral do cardeal infante d. Henrique”, em Eborensia n.º 38, ano XiX,
2006 , p. 45-65.
3
Luis de Granada, História de las virtudes y oicio pastoral del Serenísimo Cardenal don Henrique, Arzobispo
de Évora, que despues fué gloriosísimo Rey de Portugal, em Luis de Granada, Obras Completas (ed. por a.
Huerga)., madrid, Fundación universitaria española; dominicos de andalucía, 1997, vol. 16, p. 135.
4 antónio matos reis
4
a Frei Luís de Granada foram dedicadas várias biograias. a mais completa e recente, dotada de rigor
crítico, é de álvaro Huerga, Una vida al servicio de la Iglesia, madrid, bac, 1988. ao público em geral, inte-
ressará a leitura de urbano alonso del campo, Vida y Obra de Fray Luis de Granada, salamanca, editorial
san esteban, 2005 (colección biblioteca dominicana).
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 5
nascido em 1504, viu-se órfão de pai aos cinco anos de idade, viven-
do a sua pobre mãe do trabalho e das esmolas que lhe davam. em 1512,
com oito anos de idade, receberam-no sob a sua carinhosa protecção os
mendoza, condes de tendilha e alcaides de Granada, atribuindo-lhe a
função de pajem dos seus ilhos, tendo frequentado com eles o estudo
das Humanidades, no ambiente fascinante da alhambra granadina.
aos dezanove anos, solicitou a admissão no convento dominicano de
santa cruz la real de Granada, onde professaria a 15 de junho de 1524.
concluída a formação em Valladolid e ordenado sacerdote, regressou a
Granada, para iniciar o seu ministério através da pregação e de outras
atividades apostólicas.
em 1534, inscreveu-se num rol de voluntários, para colaborar na
evangelização da nova espanha (méxico), mas os superiores da ordem
reservavam-lhe outras missões. Logo nesse ano foi incumbido de res-
taurar o convento dominicano de scala coeli, na sierra morena (córdo-
va), onde escreveu o famoso Libro de la oración y meditación, que acaba-
ria de rever em Évora e viria a ser impresso em salamanca, em 1554.
Foi convidado para exercer as funções de professor no prestigiado
colégio de s. Gregório de Valladolid, onde fora aluno, mas declinou o
convite e foi depois eleito prior do convento de palma del rio, em 1545,
daí passando para o de badajoz, onde desempenhou o cargo de prior, de
1548 a 1550, e redigiu o livro de espiritualidade intitulado Guia de Peca-
dores, publicado em 1559.
enviado para portugal, de modo idêntico a outros dominicanos espa-
nhóis, segundo vimos, foi-lhe designado como primeiro campo de acti-
vidade o alentejo e, mais concretamente, a cidade de Évora, passando a
residir no convento que a ordem aí tinha, e tornar-se-á um dos melho-
res colaboradores do cardeal d. Henrique, que então presidia aos des-
tinos da extensa diocese alentejana, cuja vida espiritual e cultural se
preocupou em dinamizar. o trabalho de Frei Luís estendeu-se a várias
frentes: a pregação nas vilas e aldeias, a formação de um grupo de sa-
cerdotes para se dedicarem à pregação, e ainda a escrita de livros, a que
chamou “pregadores mudos”. na mesma direção se situou o apoio dado
à fundação de uma escola ou “estudo universal de gramática, artes, teo-
Frei Luís de Granada
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 7
5
esta ilação, que não encontramos em qualquer autor, é da nossa inteira responsabilidade.
8 antónio matos reis
durante quatro anos, exerceu as funções de provincial com toda a
sabedoria e equilíbrio, promovendo o lorescimento da observância con-
ventual e a expansão da ordem, incluindo a ereção de dois novos con-
ventos, o de montemor-o-novo e o de ancede, este no concelho de baião,
a elevação a priorado do convento de nossa senhora da Luz, na vila de
pedrógão Grande, e, com Frei bartolomeu dos mártires, o lançamento
das bases para o futuro convento de Viana.
terminado o mandato como provincial, continuou a residir no con-
vento de s. domingos de Lisboa, com algumas estadias noutros con-
ventos da ordem, dedicando-se principalmente à oração, à pregação, à
escrita e à revisão das obras que ia publicando. assistiu à morte do car-
deal d. Henrique, ocorrida em 31 de janeiro de 1580, confortando-o nos
últimos momentos e dedicando-lhe uma afetuosa biograia. até ao im
da vida, continuará em portugal, embora entre os seus muitos livros, na
maioria aqui redigidos, apenas em dois adotasse a língua portuguesa:
Compêndio de Doutrina Cristã e Treze sermões.
com 84 anos de vida, alquebrado pela idade e pelos jejuns e consu-
mido pela doença, no último dia de 1588, entregou serenamente a alma
a deus, depois de, a seu pedido, lhe terem lido a paixão de cristo, segun-
do o evangelho de s. João.
6
cf. maria idalina resina rodrigues, Fray Luis de Granada y la literatura de espiritualidad en Portugal
(1554-1632) (coleccion "espirituales espanoles"), madrid, Fundación universitaria española, 1988.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 9
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anda-lhe atribuído também, por vezes, um opúsculo em língua portuguesa, intitulado Meditações sobre a
oração do Pater Noster, que, na forma que chegou até nós, não inclui qualquer página com o nome do autor.
no entanto, esta “meditação” aparece incluída “ipsis verbis” na segunda edição do livro Meditações e Ho-
milias de cardeal dom Henrique, impresso em Lisboa, na oicina de antonio ribeiro, em 1577 (a primeira
edição, que ainda o não inclui, é de 1574), abonada com um prefácio de Luís de Granada.
8
referimos apenas algumas obras de Frei Luís de Granada, não obstante a vastidão dos seus escritos, que,
na última edição das Obras Completas, editada por altura das comemorações do iV centenário da sua mor-
te (1988), se distribuíram por 52 volumes (o último, de índices).
9
cf. J. caro baroja, Las formas complejas de la vida religiosa. Religión, sociedad y carácter en la España de los
siglos XVI y XVII. madrid, sarpe, 1985, p. 50.
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10
Concio F. Ludovici Granatensis de Oficio et moribus episcoporum, Lisboa, Francisco correa typografus
regius, 1565.
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para os leitores de hoje, que imaginam o cardeal d. Henrique, membro da família real, cercado de pom-
pas e grandiosidades, constituem uma revelação as informações, que se lêem na biograia escrita por Frei
Luís de Granada, de que, não tendo bens pessoais, gastava todas as receitas da sua então vasta e rica arqui-
diocese na acção pastoral e nas obras de beneicência, se vestia com simplicidade, dava mais aos pobres do
que expendia com a sua casa, e que inclusivamente vendeu toda a baixela de prata, usual na residência dos
príncipes, categoria a que pertencia, substituindo-a por outra, de estanho. esta conduta foi a mesma que
adoptou Frei bartolomeu dos mártires.
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chamada assim porque foi escrita por tomas de Vio também chamado tomás caetano (1468-1534), por
ter nascido e ingressado na ordem dominicana em caeta ou Gaeta. mestre geral dos dominicanos, cardeal
e legado pontifício, foi professor e escreveu importantes obras de ilosoia e teologia tomista, entre elas a
Summa, em 10 volumes. a obra aqui referida é, porém, a Summa ou Summula de peccatis, publicada em
roma, em 1525.
13
o número do capítulo e/ou do versículo (8) está errado.
14
Luís de Granada, Vida de don fray Bartolomé de los Mártires, Arzobispo de Braga, em Luis de Granada,
Obras Completas (ed. por a. Huerga), madrid, Fundación universitaria española; dominicos de andalucía,
1997, vol. 16, p., p. 165.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 15
2
VIDA DO ARCEBISPO
(tradução)
CAPÍTULO I
Nascimento, vida e preparação, até ser eleito Arcebispo
da santa Igreja de Braga
15
Actos, 4, 32.
17 antónio matos reis
16
Ezequiel, 34, 1 e ss.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 19
Quando o escrevia, não para o dar à estampa, mas apenas para si,
não procurava então dispor as coisas por ordem, mas apenas recolher
todos os bons trechos que achava, para despertar a sua devoção. este
tratado, porém, veio ter às minhas mãos, por meio de outras pessoas vir-
tuosas, e pareceu-me que deveria imprimir-se e vir à luz, para que fosse
útil a muitos o que tinha feito apenas para si.
do mosteiro da batalha o mandaram para Évora, para ensinar teolo-
gia a dom antónio, ilho do sereníssimo infante dom Luís. e aproveita-
se esta ocasião para declarar o valor e a inteireza do seu carácter, pois
sendo dom antónio aclamado como rei e o arcebispo solicitado e insta-
do pelo povo para que se mostrasse de acordo com eles, nunca o amor
que tinha pelo seu discípulo, nem o alvoroço, nem a perseguição foram
capazes de o demover da sua convicção relativa à justiça da causa de
el-rei dom Felipe, pelo que lhe foi necessário escapar à fúria do povo e
acolher-se à Galiza, até que a tempestade amainasse.
depois de leccionar em Évora, foi eleito prior do convento de ben-
ica, muito contra a sua vontade, embora a casa fosse adequada à sua
devoção e espírito e a atear nos que nela viviam o fogo que ardia no seu
peito. e para que não se distraíssem os novos súbditos, saindo para ou-
tros lugares a fazer os estudos, ele mesmo, ao cabo de tantos anos como
leitor de teologia, lhes deu um curso de artes; e, à volta deste estudo das
letras, tratava com grande diligência de ocupar os religiosos no exercí-
cio da oração e de várias mortiicações. entre outras coisas, dizia-lhes:
“irmãos, já não preciso de vos dizer para trazerdes os olhos baixos e os
braços recolhidos, senão que vos entregueis à oração, pois se assim o i-
zerdes, como ela tem virtude para compor o homem interior, assim a
tem para compor o exterior; e esta é a verdadeira compostura, que vem
do interior da alma e dura mais tempo; mas sem oração essa compostu-
ra é postiça e ingida e como uma máscara, que, não tendo raízes, logo
cai e redunda em gargalhadas e palrarias e coisas dessa qualidade”. des-
ta maneira, o servo de deus governou o mosteiro, todo o tempo que o
teve ao seu encargo.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 21
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Salmo 33, 9.
22 antónio matos reis
CAPÍTULO II
De como foi eleito Arcebispo de Braga
18
*bernardo da cruz, que não chegou a entrar em funções como bispo de s. tomé, retido pelo rei e encar-
regado de outras funções, como a de reitor e reformador da universidade de coimbra, foi comissário do
santo ofício e terminou a vida como abade de tibães e carvoeiro.
24 antónio matos reis
que desejava gastar-se todo por elas, até chegar a querer ser anátema de
cristo, nosso redentor, pela salvação de seus irmãos, assim na alma des-
te seu servo incutiu tão grande temor, para que o que no santo apóstolo
fazia o amor, neste o izesse este santo temor, a que também não faltava
amor; porque esse é o estilo daquela divina sabedoria que dispõe todas
as coisas suavemente, e essa a consequência e a ordem de suas obras, a
qual proporciona sempre as causas de acordo com os efeitos que quer
produzir, e assim dá grande força àqueles que fazem grandes coisas.
e ninguém se admire de atribuir tanta importância a este temor,
pois o bem-aventurado são Jerónimo19, depois de ter contado a grande
penitência que fazia no deserto, chega à conclusão de que o grande te-
mor que tinha concebido das penas do inferno o condenou àquela pri-
são, embora bem se compreenda que nem num temor nem no outro fal-
tava caridade e amor.
este temor foi para ele, durante todo o tempo que governou, um es-
pinho muito agudo que feria o seu coração, de tal modo que, dia e noite,
nunca descansava nem perdia um instante que não o empregasse no seu
ofício; de tal modo que já não vivia em si nem para si, mas todo estava
concentrado no cuidado do que havia de fazer.
bem podia agora divagar, lamentando a condição dos nossos tempos,
ao considerar como os homens têm olhos diferentes para encararem os
ofícios e dignidades eclesiásticas, observando com quanta sede e fome
são procuradas, enquanto este homem de deus, que tinha olhos para as
ver, as aborrecia mais do que à morte, querendo fugir delas com ansie-
dade tão grande como aquela com que as procuram aqueles que de tais
olhos carecem.
regressando ao nosso tema, entendia o servo de deus a carga que
tinha aos ombros; parecia-lhe que lhe eram dirigidas estas palavras dos
provérbios de salomão, que dizem20: “Filho, se entrastes como iador de
algum amigo, olha que estás amarrado e obrigado com as palavras da
tua boca; portanto, faz o que te digo, meu ilho, e trabalha para te livrar,
19
s. Jerónimo, Ad Eustochium Paulae iliam De custodia virginitais.
20
Provérbios, 6, 1-6 .
26 antónio matos reis
21
João, 4, 32-34.
22
Salmo 131, 3-5.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 27
este exemplo e outros tais de nossa idade, de que aqui não faço ex-
pressa menção, suicientemente nos mostram que nestes tempos, em
que as coisas da virtude estão tão decaídas, ainda é possível imitar aque-
les santos pontíices que no passado loresceram.
e para mais perfeito cumprimento, a primeira coisa que fez foi tirar
do Pastoral de são Gregório, e de outros santos pontíices, a maneira de
vida que os imitadores deles hão de seguir, para o que compilou um tra-
tado, que chamou Stimulus pastorum, em que se ocupava muito em par-
ticular das virtudes próprias do bispo, isto é, da sua doutrina, das suas
esmolas, da sua família e casa, e outras coisas semelhantes, tratado que
deixou em poder do ilustríssimo cardeal borromeo, e daí veio às minhas
mãos, e eu, vista a utilidade e a importância do livro, sem licença do au-
tor, o mandei imprimir.
28 antónio matos reis
CAPÍTULO III
Da sobriedade, modéstia e humilde tratamento da sua casa,
pessoa e família
23
Eclesiástico 29, 27.
24
1 Timóteo, 4, 16.
25
Eclesiástico, 34, 4.
26
s. bernardo, Sermo 18 in Cantica Canticorum, 3.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 29
27
*Jacopus a Voragine, Legenda Aurea, cap. cXXiV (de sancto agostino).
30 antónio matos reis
28
*seneca, Ep. LXV, 20: maior sum et ad maiora genitus quam ut mancipium sim mei corporis.
29
1 Coríntios 9, 27.
30
*cf. possidio, Vita Sancti Aurelii Augustini, Liber Quartus, cap. ii, 3.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 31
CAPÍTULO IV
Dos exercícios espirituais e da oração e meditação
31
Mateus, 6, 34.
32 antónio matos reis
CAPÍTULO V
Da sua grande caridade para com os próximos e especialmente
para com os pobres
32
Mateus, 25, 45.
34 antónio matos reis
da terra; e com esta moderação não cresciam as suas rendas; e aos seus
recebedores mandava que as cobrassem com todo o comedimento, escu-
sando prisões e vexações.
com serem tantos os encargos que tinha à sua conta e tão pouca a
renda, chegava para tudo, por tomar para si tão pouco, e também porque
às vezes nosso senhor, como pai piedoso, acrescentava a fazenda que
tão bem repartia. assim aconteceu que, tomando a conta ao celeireiro
do trigo que estava a seu cargo, lhe acharam mais de mil e quinhentos
alqueires de pão acima do que se tinha metido no celeiro, no que não
pôde haver erro, conferindo o livro do recibo e gasto, pelo que sobrar tão
grande quantidade claramente parecia obra daquele que é pai de mise-
ricórdia e pai dos pobres. outra vez entregaram-lhe duzentos cruzados,
ou escudos, que sobraram de visitação; e, dando cada dia duas ou três
moedas de esmola, duraram dois anos, quando à partida não dariam se-
quer para um só.
embora tivesse pessoas encarregadas de repartir as esmolas, queria
trazer sempre dinheiro consigo, para quem lhe pedisse; porque o seu co-
ração não sofria que lhe pedissem e invocassem o nome de deus em vão,
e desta maneira cumpria e entendia o que o salvador diz 33: Omni petenti
te tribue, quer dizer, dá a todos os que te pedem. e até lhe aconteceu en-
contrar no caminho um clérigo com uma roupinha tão rota que se lhe
viam as carnes: tendo-o chamado a vir consigo a sua casa e não havendo
nela dinheiro, deu-lhe o mantéu que trazia. e além de todas estas esmo-
las tinha outras mais secretas que corriam por sua mão.
como pessoa tão dada a obras de caridade, propôs e votou, no santo
concílio de trento, que os bispos, depois de tomarem o necessário para
os gastos da sua casa e família, aplicassem o demais a favor dos pobres,
como património de cristo. e, durante o concílio, todo o seu cuidado era
escrever para braga, a recomendar que se tivesse muita atenção para
com os pobres. Quando se retirou para o convento de Viana, tinha uma
cela cuja janela dava para o campo, e por ali acudiam os pobres a pedir
esmola, e lha dava; e quando não tinha outra coisa, deitava-lhes a cama.
33
Lucas, 6, 30.
36 antónio matos reis
sucedeu isto tantas vezes, que foi necessário mudá-lo para outra cela,
porque, quando pensavam que tinha cama, a tinha dado em esmola.
com esta grande liberalidade e entranhada misericórdia para com os
indigentes, sendo para si tão pobre, roubou os corações dos seus súbditos
e os afeiçoou grandemente à sua pessoa e doutrina. porque verdadeira
é a sentença de salomão que diz34: Victoriam et honorem acquiret qui dat
munera; alma autem aufert accipientium. Quer dizer: vitória e honra al-
cançará o que faz dádivas, pois com elas conquista os corações dos que as
recebem. e por esta razão, sem andar muito acompanhado e rodeado de
criados, o amavam e reverenciavam os seus súbditos, não como a homem
da terra, senão do céu, pois neste entesourava, e não naquela.
este grande resultado não o obtêm os prelados que querem ter gran-
de casa e família, porque nada lhes queda, ou muito pouco, para ganhar
a afeição dos seus súbditos com dádivas. deveriam esses recordar-se do
exemplo do salvador 35, que, decidindo lavar os pés dos discípulos, se cin-
giu com uma toalha tão apertada que sobrassem apenas dois extremos
suicientes para os limpar, depois de lavados, no que deu o exemplo aos
que agora estão em seu lugar, para que de tal maneira tomem o necessá-
rio para as suas pessoas e dignidades que sobre pano para limpar os pés,
isto é, para socorrer os pobres de cristo.
passemos agora a outro grau mais alto de caridade, que é o amor dos
inimigos. Foi um de seus beneiciados a roma e acusou o bom prelado de
muitas falsidades, das quais se ilibou suicientemente, mostrando cla-
ramente o contrário do que tinha sido acusado. por isso, sua santidade,
sabida a verdade, mandou castigar o acusador, e o rei de portugal, infor-
mado do caso, o desnaturalizou de seus reinos, de modo que a calúnia
redundou em dano do caluniador e em maior glória do caluniado, como
aliás costuma suceder quando perseguem os bons. com efeito, pio V, de
gloriosa memória, que então presidia à igreja de deus, enviou-lhe um
breve, no qual lhe dizia que o tinha por bem-aventurado, pois era perse-
guido por fazer justiça, e que estivesse certo de que, ainda que viessem
contra ele seiscentos testemunhos adversos, nenhum crédito lhes daria.
34
Provérbios, 22, 9.
35
João, 13, 4-5
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 37
36
*cf. séneca (aliás, autor incerto), De Moribus, 24. “contemnere” é um leitmotiv recorrente na obra de
séneca.
38 antónio matos reis
CAPÍTULO VI
Da virtude da humildade que teve na sua vida
37
Salmo 83, 6.
38
Lucas, 22, 27.
40 antónio matos reis
esta mesma virtude fazia que, ao contrário do que sucede com ou-
tros, não tivesse por agravo que apelassem de uma sentença sua para o
superior, dizendo que emendaria as suas faltas e ignorâncias, e portanto
não só não se agravava mas antes folgava com isso; porque, como verda-
deiro humilde, não se iava muito do seu parecer, e, como temeroso de
deus, procurava por esta via descarregar a sua consciência, e, como pru-
dente, furtava-se ao perigo da sua alma, remetendo a carga para outros.
embora tivesse breve de são pio V, de gloriosa memória, não só para
que não lhe pudessem pôr suspensão em matéria de reformação e cor-
recção, mas também em qualquer outra matéria, para que acompanha-
do com um adjunto ou dois, que indicava, sentenciasse as causas apella-
tione remota (coisa que a mais ninguém foi concedida), nunca quis usar
desta faculdade, antes, pelo contrário, folgava que apelassem dele, pela
razão acima referida.
por esta mesma razão, quando em alguma causa estavam de tal
modo os votos repartidos que a resolução quedava dependente só dele,
não queria reservar este encargo para si, mas chamava um erudito de
muita coniança, para assim icar mais livre e segura a sua consciên-
cia. porque o grande temor de deus, que morava na sua alma, o fazia
ter sempre diante dos olhos a hora da morte e das contas, procurando,
quanto era possível, achar-se descarregado nessa ocasião.
sentia muita pena, como verdadeiramente humilde, quando lhe fa-
ziam elogios. aconteceu, uma vez, que certa pessoa disse muitas coisas
em seu louvor e depois veio a pedir-lhe uma que não lhe devia conceder;
então, disse mui a propósito, não sem graça, aquilo do evangelho39: Omnis
homo primum bonum vinum ponit, et cum inebriati fuerint, tunc id quod
deterius est. mas já é tempo de que, suposto o fundamento destas virtudes
pessoais, comecemos a tratar das que pertencem ao ofício pastoral.
39
João, 2, 10.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 41
CAPÍTULO VII
Do ofício da visita do arcebispado
riamente trazia estes livros consigo, sem que pessoa alguma os visse.
neles, com letra sua, tinha escritas as culpas dos delinquentes, com as
notas que declarámos. assim mesmo, nestes livros trazia escritos os be-
neiciados e virtuosos de quem havia de iar; e de alguns dizia: este pare-
ce homem de deus; e de outros: é varão de clara fama; de uns dizia: este
sabe letras; e de outros: nada sabe; ou de outros: pouco sabe. trazia tam-
bém aqui anotadas as obrigações das igrejas e dos encargos de missas e
rendas delas; e por aqui entendia como se havia de haver em quaisquer
assuntos, quando vinham às suas mãos, e com a ajuda destes livros sabia
quanto se passava no seu arcebispado.
além disso, as obrigações de mais urgência escrevia-as a seu modo
em papéis pequenos e colava-os na parede de seu aposento, onde os
pudesse ver, e cada dia os lia; e assim mandava acudir com o remédio
necessário com muita diligência, e não descansava até executar o que
pedia cada caso.
Quem não reconhece nestes cuidados e providências a diligência e
a vigilância deste bom pastor? Quem não vê o cuidado que sempre teve
em acudir às suas obrigações, sem que jamais se lhe pudesse imputar
algum género de cobardia, por diicultosos que fossem os negócios que
trouxesse entre as mãos? Quem não vê quão engenhoso e solícito é o te-
mor de deus e da conta que se lhe há-de dar das ovelhas redimidas pelo
seu sangue? pois um peito como este é capaz de todas as invenções e di-
ligências. outras ainda há que referir, bem conformes a esta solicitude e
cuidado, a condizer com o nome de bispo, que quer dizer sentinela, como
deus chamou ao profeta ezequiel40, quando o enviou a pregar, de tal
modo tinha presentes nos livros os delinquentes que havia de corrigir.
aconteceu repreender um clérigo honrado, e dizendo-lhe o clérigo: V.
s. ilustríssima é meu inimigo, respondeu: inimigo? aqui vos trago escri-
to dentro do meu peito. e, sacando do seu cartapácio, mostrou-lhe ali o
seu nome, e com este garbo começou a tratar de seu remédio.
não poupava nenhuma espécie de pessoas, e muito menos as mais po-
derosas, porque, como tinha a deus do seu lado, assim tinha o ânimo e o
40
Ezequiel, 3, 16-17.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 43
41
Provérbios, 23, 18; Salmos 9, 10-20; 25, 3;
42
Salmo 2.
44 antónio matos reis
ramente. Feito isto, icou em paz e com muita amizade com o dito corre-
gedor; porque nada disto fazia o servo de deus com ímpeto de ira, senão
com zelo de justiça, e, como isto entendiam, os delinquentes icavam
emendados e não com inimizade.
não tinha proteu tantos semblantes e iguras quantas este pruden-
tíssimo pastor43, acomodando-se ao que pedia o remédio das almas, imi-
tando o apóstolo que fazia o mesmo, como explicou, dizendo 44: Omnia
omnibus factus sum ut omnes facerem salvos. pois, como era senhor de si
mesmo e de seus afectos, não se deixava levar por estes, mas fazia o que
convinha à cura dos seus enfermos; e assim, a uns tratava com grande
humildade e mansidão, e com lágrimas de compaixão, por ver a sua per-
dição, com o que os cativava e rendia, e com outros usava do rigor que
pediam as suas culpas.
a um clérigo facinoroso, que andava à sombra de telhados e pelos
montes, feito bandoleiro, o fez chamar, assegurando-lhe que nenhum
mal lhe faria; e, quando lhe apareceu diante, mandou-o sentar-se numa
cadeira e, pondo-se de joelhos, derramando muitas lágrimas por o ver
tão perdido, o moveu à compunção, e desta maneira o emendou e teve
em sua casa muito tempo.
com este se houve como cordeiro, mas para com outros era um leão,
quando o negócio o pedia. assim, visitando uma vila onde o juiz estava
amancebado e, por rogos da sua má companhia, distorcera muitas vezes a
justiça, chamou-o junto de si e, santamente indignado, lhe disse: vós sois
um grande ladrão! espantado, o juiz retorquiu-lhe: olhe V. s. ilustríssima
como fala. respondeu: eu vo-lo provarei, porque estais amancebado pu-
blicamente com fulana, e os que querem algo de vós negoceiam por seu
intermédio o que querem, e assim roubais a justiça das partes, e isto é ser
ladrão. e logo remediou este mal, fazendo que a mulher saísse da terra.
estando para celebrar missa de pontiical, e vendo que se começava
a revestir para ler o evangelho um dignitário que na terra estava algo
43
*segundo a mitologia, proteu, ilho de poseidon e de tétis, tornou-se guardador dos rebanhos de seu
pai, isto é, dos grandes peixes, das focas e dos monstros marinhos. tinha o dom da profecia e o poder de
se metamorfosear para escapar aos perseguidores ou aos que o buscavam para saber dos acontecimentos
futuros: se alguém conseguisse vencer o medo perante as formas terríveis que assumia, revelava-lhe a
verdade, como sucedeu com menelau, rei de esparta, que pretendia saber se podia voltar, e como, à sua
terra, após a guerra de tróia.
44
1 Coríntios, 9, 19.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 45
infamado, mandou-lhe que o não izesse, para não honrar a culpa, hon-
rando a pessoa culpada. e, com a sua boa diligência, levou inalmente
a bom termo este negócio, pois, embora a mulher estivesse oculta em
casa, conseguiu contactá-la e fazê-la sair da terra. este mesmo benei-
ciado, que muito sentiu este golpe, depois caiu na conta e teve por gran-
de benefício a cura que nele se havia feito, e assim o agradeceu.
a outro homem importante, que também estava em pecado, persua-
diu, com a autoridade que tinha, e obrigou-o a morar na cidade de braga
e a conviver com os padres da companhia, e desta maneira conseguiu
que se emendasse.
Há naquele arcebispado uma terra cheia de fragas e montanhas, em
grande parte do ano coberta da neve, que se chama o barroso; e assim,
por isto, como pela aspereza dos campos, porque não se pode aí andar a
cavalo, nunca foi visitada por nenhum prelado em tempos passados, se-
não apenas por são Geraldo; por isso, estava a terra tão desamparada de
sacerdotes que se passavam dois e três meses sem os moradores ouvirem
missa e sem terem quem lhes ensinasse a doutrina cristã. assim, encon-
trando-se pelo caminho um velho, e, perguntando-lhe se sabia quantos
eram os mandamentos, respondeu que eram dez, e, instando-o a dizer
quais, mostrou os dedos das mãos. chegando a esta gente a notícia de
que o arcebispo os ia visitar, e conhecendo a fama da sua santidade, de-
cidiram fazer-lhe uma recepção com cantares devotos. o princípio de
um dizia: “bendita seja a santíssima trindade, irmã de nossa senhora”,
tal era a rudeza daquela gente. pois visitou-os o nosso arcebispo e, as-
sentado naquelas fragas, lhes pregava, os doutrinava e os crismava.
porque os clérigos de missa não queriam habitar naquela terra, reu-
niu ali muitos moços, ilhos da gente desses lugares, levou-os para bra-
ga, sustentando-os em sua casa, e fez-lhes ensinar tudo o que era mister
para serem sacerdotes, ordenando-os depois da haverem estudado, sem
património 45, por ter bula de sua santidade para esse efeito, e depois os
enviava à terra da sua origem. com esta inovação providenciou o pru-
dente pastor à necessidade daquela gente inculta.
45
*o direito canónico, até ao concílio Vaticano ii, exigia que os clérigos, antes de serem ordenados,
tivessem património próprio, que teoricamente permitisse a sua sustentação.
46 antónio matos reis
46
João. 10, 11.
47 João, 21. 15-17.
48 antónio matos reis
48 *com o nome de artes se designavam as disciplinas que constituíam os programas escolares de nível
mais alto, nos últimos séculos da idade média: o “trivium”, que incluía a gramática, a lógica e a retórica, e
o “quadrivium”, que englobada a aritmética, a geometria, a astronomia e a música.
49 *isto é, teologia moral, segundo a nomenclatura actual.
50
Mateus, 15, 14.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 49
e sendo necessária para ela a ciência moral, além das chaves da ordem e
da jurisdição, como se compreenderá que se admita a necessidade deste
sacramento na igreja cristã e não se queira que haja doutrina para a sua
administração? e, se é tão grande o número das igrejas, também o há de
ser o dos que devem ser ensinados para estar nelas.
para este mesmo ministério procurou com toda diligência criar o se-
minário, como mandou o santo concilio de trento, para que ali se crias-
sem ministros, com bons costumes e doutrina, para este ofício, em cuja
fundação se ocupou com tanto calor e empenho, que em meio ano, jun-
tando muitos oiciais, fez casa bastante para sessenta moradores; e foi o
primeiro a contribuir, com cento e vinte mil maravedis de renda de sua
mesa, e fez com que todos os seus beneiciados também contribuíssem.
o que conseguiu facilmente: por um lado com a sua virtude e exemplo,
e, por outro, por ser pouco o que cabia aos prebendados: porque, a quem
tinha cem mil maravedis da renda, não cabiam mais de dois mil de con-
tribuições, e, como são muitos os beneiciados em tão grande prelazia,
há renda bastante para a sustentação do seminário, em que se educam
os naturais do barroso, a que acima izemos referência.
mas não termina aqui a diligência e o cuidado do nosso bom pastor,
porque, considerando que o alimento das almas é a palavra da deus e ven-
do que não era possível prover de pregadores um tão grande número de
igrejas, dotava-as ao menos de pregadores mudos, que são os livros san-
tos, para o que ele próprio compôs um catecismo, em que declarava co-
piosa, singela e devotamente, todos os pontos principais e documentos da
doutrina cristã, para que os curas, em lugar de sermão, lessem um pedaço
deste livro, e após a leitura dissessem o que deus lhes desse a entender. e
para as festas principais de nosso senhor e de sua bendita mãe, escreveu
também breves sermões e colações, em que declarava o mistério da festa
e história dela, que andavam juntos com o mesmo catecismo. e é sabido
que o povo aproveitava muito com um e com os outros.
assim, com esta diligência e com a dos padres da sua ordem, dester-
rou grande parte da rudeza e da ignorância espalhada por toda aquela
terra. a estes serviços juntou outro, que foi o de obter de sua santidade
um jubileu para os que se confessassem e comungassem nas quatro pás-
50 antónio matos reis
coas do ano, e com este atractivo tão saboroso se moveu grande parte da
gente a frequentar os sacramentos da conissão e da sagrada comunhão,
que é o alimento e o mantimento mais suave das almas.
o fruto que se seguiu, assim do trabalho da visitação, como destas pro-
vidências que temos referido, é que, estando antes a gente daquela terra
tão envolta em vícios sensuais que estes não se tinham por infâmia, estão
agora as coisas tão mudadas, que muitos se emendaram, e o que não se
emendou é tido por infame, tendo antes as coisas chegado àquele estado
miserável que condena séneca, ao dizer que estarão perdidas as repúbli-
cas quando os vícios forem considerados como estilo e costume da terra,
porque daí se segue que o vicioso não se tem por infame51.
não contente com sua vigilância, onde quer que os achava, busca-
va iéis ajudantes que o auxiliassem a levar esta carga, à imitação do
rei saul, que, onde quer que achava um varão forte, o juntava a si, para
dele se ajudar na guerra. pois assim este prelado buscava os mais com-
petentes letrados e de melhor vida que havia na terra e, além de lhes dar
salário adequado, tinha-os na sua casa, para se aconselhar com eles, em
cada hora que fosse necessário, mandando-lhes que tivessem as portas
sempre abertas, para ouvir as partes, e encomendando-lhes que, quan-
do houvessem de condenar alguém, olhassem primeiro para si e para as
suas faltas, e depois dessem as sentenças.
a clemência que recomendava aos outros, usava-a nas suas determi-
nações, procedendo mais por amor e por benevolência, do que por cen-
suras e rigores de justiça. isso melhor se entenderá, lembrando o que
sucedeu num concílio provincial que celebrou na cidade da braga com
os bispos sufragáneos, onde se estabeleceram várias leis sapientíssimas
e muito acomodadas ao bem comum de toda a província. tinham por
certo os eclesiásticos que, com o seu zelo e religião, os havia de apertar
muito, mas assim não aconteceu, porque, ao tempo de publicar os decre-
tos, ele mesmo, em nome da clerezia, apelou para a santa sé apostólica,
de alguns deles, que pareciam demasiadamente rigorosos. assim enten-
deram todos que ele, como pastor vigilante e piedoso, agia com brandura
quando convinha.
51
*cf. séneca, Epistula ad Lucilium, XVii, 1.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 51
CAPÍTULO VIII
Da ida ao santo Concílio de Trento
lidade que assumiam. isso foi matéria de grande ediicação para todos,
especialmente para os religiosos mais velhos que ali viviam, por haver
renovado a devoção e o modo com que os padres antigos administravam
este sacramento52.
chegado a trento e participando nos actos do concílio, toda a sua
preocupação foi a de que se tratasse da reformação dos abusos, deixan-
do outras coisas que eram de menos importância, alegando que fazer
o contrário era imitar o Faraó, que mandava matar os ilhos varões e
guardar as mulheres decrépitas.
no concílio queixou-se publicamente do fausto com que viviam al-
guns prelados, assinalando a nação donde mais se encontrava esse esti-
lo, defendido como imagem e título de autoridade, ainda que seja maior
a que nasce da virtude e do zelo da honra de deus e da salvação das al-
mas do que a de quaisquer outros meios humanos.
apresentou uma proposta e votou para que se izesse um decreto em
que se mandasse aos prelados que, depois de tomada a renda que con-
vinha à decência de seu estado, o demais se despendesse em obras pias.
o decreto não saiu, porém, como pretendia, porque houve muitos votos
em contrário.
era tido como muito independente em votar, porque tinha deus no
seu peito, e não olhava a mais ninguém senão a ele; e assim aconteceu
que, ao tratar-se da reformação, dizendo-se que os ilustríssimos e reve-
rendíssimos cardeais não tinham necessidade da reformação, volven-
do-se para o lugar onde eles estavam sentados, disse-lhes que eram a
fonte onde todos os demais prelados haviam de beber, e, por isso, convi-
nha que esta fonte estivesse muito limpa, pois tantos eram os que nela
se haviam de dessedentar. Quem não veria, pois, que este peito estava
cheio de deus, pois, nas barbas e na presença de três cardeais, que repre-
sentavam a pessoa de sua santidade, a quem todos os padres do concí-
lio reverenciavam, ousou dizer palavras de tanta liberdade? oh como é
grande coisa o temor de deus, pois onde este reina, como mais poderoso,
lança fora todos os outros temores humanos!
*nota: ao contrário do que a colocação aqui deste episódio podia levar a crer, a passagem por salamanca
52
presidia à igreja católica pio iV, que o convidou e lhe mandou pôr a
mesa junto de si.
aconteceu então uma coisa notável. dando-lhe audiência sua santi-
dade, a primeira vez, em presença de alguns cardeais e bispos, e man-
dando-lhe o papa que se sentasse, com a sua acostumada liberdade (que
a não havia perdido em roma), respondeu: santíssimo padre, não posso
sentar-me já, estando os bispos meus irmãos em pé. e parecendo a sua
santidade que tinha razão, usando da sua acostumada benignidade,
mandou que todos se sentassem.
no dia em que comeu com o pontíice, vendo que à mesa se servia
com baixela de prata, perguntou-lhe que por que não se servia de por-
celanas, que era um serviço muito formoso. ao que sua santidade res-
pondeu: dizei vós ao cardeal dom Henrique que mas envie e comerei
nelas. sabendo-o, este nosso sereníssimo cardeal lhe enviou um grande
presente delas.
deve advertir-se que, se era tão grande o descontentamento que
nosso arcebispo recebia de ver baixela de prata nas mesas dos bispos,
também estranhou vê-la na mesa da sua santidade, e por isso lhe falou
nas porcelanas. bem via que muitos se ofenderiam com este parecer,
alegando que se servem de prata, para que à hora da morte achem ali
fácil remédio para pagar a seus criados. o amor próprio é tão engenho-
so que acha sempre razões e dá a cor de piedade às coisas que quer; e é
tão subtil, que, como dizem os santos, em todas as coisas se intromete, e
ainda nos mais divinos exercícios, sem que se entenda. por isso, os que
iam mais ino no serviço de deus e lhe querem oferecer um sacrifício
puro e limpo, acautelam-se desta contradição que trazem dentro de si,
examinando muito bem o propósito que os move, para não se iludirem
com a aparência do bem. outros meios há para recompensar os criados,
sem dar de si esta nota, que é a de se servirem como grandes senhores,
tendo os seus aparadores e mesas a resplandecer com vasos de prata, en-
quanto a terra está cheia com as lágrimas e as necessidades de pobres,
de quem devem ser pais.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 57
53
*natal, páscoa da ressurreição, espírito santo (pentecostes) e santa maria de agosto (assunção).
58 antónio matos reis
CAPÍTULO IX
Das principais coisas que realizou o Arcebispo
54
In eius vita, cap. 22.* Luís de Granada refere-se à obra de possidio, Sancti Augustini Vita. na edição critica
bilingue de Herbert t. Weiskotten, London, 1919, esta passagem encontra-se a pág. 92-94.
55
s. Jerónimo, Epistola ad Rusticum Monachum, tom. 1, 125, 20, pL, 1085.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 61
CAPÍTULO X
De como deixou o arcebispado
56
s. bernardo, De Consideratione, liv. i, cap. i, 1.
57
s. Gregório magno, Diálogos, liv. i, prólogo.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 63
recolhido pois neste mosteiro, que ele mesmo fundou, vivia como
qualquer dos religiosos, achando-se presente em todas as horas do coro,
sem faltar a alguma, e entregando-se todo a nosso senhor, sem algum
outro cuidado e obrigação, alegrando-se e dando muitas graças a deus,
porque, de um mar tão inquieto de negócios, o trouxe a um porto da
quietude e de recolhimento tão desejado, experimentando em si o que
salomão dizia 58, que é árvore de vida o cumprimento do desejo.
tanto era o gosto que tinha na oração, que fazia com a boca alguns
movimentos consideráveis, de que se inquietava todo o coro. perguntan-
do-lhe um dia o padre Fr. João da cruz (que foi duas vezes provincial
daquela província e era seu especial amigo) por que fazia aqueles tre-
jeitos, respondeu que ia imaginando, quando orava, que libava o sangue
de cristo, e da suavidade que nisto sentia, nasciam, sem reparar nisso,
aqueles ademanes.
não contente com o seu próprio aproveitamento, procurava também,
quanto lhe era possível, o dos seus irmãos; porque, podendo já descansar
(por passar da idade que a lei antiga estipulava para os ministros do tem-
plo), não o fazia, porque, tendo num corpo fraco um espírito forte, saía
a pregar aos domingos, pelos lugares da comarca. para isto se levantava
às três da manhã, rezava no coro as horas com os outros religiosos, até
à nona, logo se paramentava para dizer missa e fazia que a ouvissem os
dois moços que iam com ele, mandando-os logo almoçar, para que não
tomassem nada do povo onde iam a pregar. e se chegava lá muito cedo,
pregava antes da missa, e, ao despedir-se do povo, avisava-o de que já
ele e os seus ouviram missa, para que não se escandalizassem os fracos,
ao vê-lo ir-se antes. Foi este um dos grandes cuidados, que sempre teve,
de não dar motivo de reparo a ninguém, chegando ao ponto de, quando
comia ovos em sexta-feira diante de outros, dizer que não estranhassem
o que fazia, porque tinha bula de sua santidade para isto.
o costume que tinha durante o seu arcebispado, como antes disse-
mos, de partir a comida com os pobres, também agora o mantinha. em
tudo o que era contra o seu regalo, seguia o que a ordem e a obediência
58
Provérbios, 13, 12.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 65
59
*chamou-se noli me tangere a uma úlcera maligna, cuja evolução se considerava tanto mais favorável
quanto menos se lhe tocasse.
60
Eclesiástico 32, 8-11.
61
Eclesiástico 31, 10.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 67
andam tão perdidos, que por elas se matam com armas; este homem
de deus não só as desprezou, mas fez tantos esforços para fugir delas,
quantos fazem outros para as alcançar. claramente se vê que esta não
é obra da natureza, senão da divina graça; não da carne nem do sangre,
que amam as coisas da terra, senão do espírito de deus, que sempre as-
pira às do céu.
na parte final desta história parece-me que é explicar de que prin-
cípio proveio esta grande solicitude e vigilância de nosso pastor, para
que se estime em muito o que foi causa da tanto bem: foi o ter-se dado
muito aos exercícios espirituais da oração e da meditação, em que sem-
pre se ocupou o servo de deus. com a persistência nestes exercícios, se
ia criando e arraigando na alma um profundo temor de deus, o qual o
fazia trabalhar no seu ofício sem descansar.
Quanto fosse amigo destes santos exercícios e do recolhimento e vir-
tude que para eles se requer, se entenderá pelo que disse a um familiar
seu amigo. morando, antes da sua eleição, no mosteiro de são domingos,
de Lisboa, e achando-se perturbado com o movimento de contactos e vi-
sitas, disse a este seu amigo: gostaria que, sem culpa da minha parte,
se levantasse uma tempestade contra mim, para que, em consequência,
me tivessem preso numa cela, porque ali mais livremente poderia bus-
car a deus e a mim próprio. isto pois nos declara quanto era amigo do re-
colhimento e da ocupação interior quem tomava por ideal ver-se preso,
para estar livre e desocupado.
cuidava muito da pureza da sua consciência, afastando-se de qual-
quer pecado, ainda que apenas venial, o que melhor se compreenderá
através do exemplo que a seguir apresento. escrevia por mão de um reli-
gioso, a pedir ao rei certo favor para uma pessoa, alegando, na carta, que
tinha para com ela muitas obrigações. escrita já grande parte, disse: ter
eu algumas obrigações, é verdade, mas muitas, não. e mandou rasgar a
carta e começar outra. dizendo-lhe o escrevente e insistindo em que não
reparasse naquilo, não quis aquietar-se, mas, pelo contrário, disse: tenho
sessenta anos e não quero fazer coisa de que tenha que me confessar.
para fugir à prolixidade, deixam-se outros exemplos semelhantes,
em que bem se mostrava que o espírito santo morava nesta alma.
68 antónio matos reis
CAPÍTULO XI
De alguns milagres e coisas memoráveis que sucederam
em vida do santo Arcebispo.
62
o parágrafo que se seguia, e aqui retirado do corpo do texto, repete factos já referidos: “una mulher
esteve cinco dias com suas noites com dores de parto muito atrozes, e o maior inconveniente e perigo era
que a criança estivesse já morta, com o que nem os médicos com os remédios faziam coisa que valesse a
pena para que desse à luz. estava tão acabada já a mulher com o esforço e tão rendida ao mal, acabadas as
forças, de maneira que não podia falar, e choravam-na já por morta os da sua casa. uma mulher do bairro,
que ali se achou presente, persuadiu-a a que buscasse alguma coisa dos hábitos ou vestes do arcebispo.
trouxeram uma túnica, vestiram-lha e logo no momento começou a falar muito claramente, e em voz alta
disse: sejam dadas graças a deus, eu já estou boa; e logo deu à luz o ilho vivo. o mesmo sucedeu, e com a
mesma túnica, a outra mulher que havia três dias que estava fatigadíssima com atrozes dores de parto.
isto mesmo aconteceu a outra mulher, colocada no mesmo perigo, que, depois de pôr um escapulário do
santo arcebispo, deu à luz de imediato”.
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 71
63
*terminaria aqui o texto escrito por Frei Luís de Granada. tendo morrido em 31 de dezembro de 1588,
claramente se vê que não podia narrar a morte do bem-aventurado arcebispo d. Frei bartolomeu dos már-
tires, ocorrida em 16 de Julho de 1590. a breve relação da morte do santo prelado, que constitui o capítulo
seguinte, deve tê-la acrescentado Frei João Lopez, bispo de monópoli, na Quarta Parte de la Historia General
de Santo Domingo (Valladolid, 1615, pág. 655-686), para completar a biograia escrita por Frei Luís de Gra-
nada, e passou a acompanhá-la posteriormente. na edição das obras completas de Frei Luís de Granada, de
1906, omite-se não só o capítulo Xii mas também o capítulo Xi.
72 antónio matos reis
CAPÍTULO XII
A ditosa morte de D. Frei Bartolomeu dos Mártires
64
*atribuída a s. Fulgêncio. cf. Sancti Fulgentii Ruspensis Vita, Prolegomena, caput XXiX, 63 (Patrologia
Latina, tomus LXV, paris, 1847, col. 149).
Frei Luís de Granada, mentor e bióGraFo de d. Frei bartoLomeu dos mártires – Vida do arcebispo. 73
*a biograia incluída na edição das obras completas, terminava com o seguinte parágrafo, que tem todas
65
as características de uma adenda posterior: “numa carta do papa pio iV, dirigida ao cardeal de portugal,
d. Henrique, que depois foi rei, respondendo a outra que este lhe tinha escrito em sua recomendação,
menciona-se o crédito que no concílio de trento teve a bondade, a religião e a devoção do arcebispo. num
breve do papa Gregório Xiii, remetido ao arcebispo, o sumo pontíice dizia conceder-lhe certa graça pelos
grandes merecimentos da sua pessoa”.