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PesquisarCOM: caminhos férteis para a pesquisa em psicologia
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PesquisarCOM: caminhos férteis para a pesquisa em psicologia

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No campo científico não é incomum percebermos uma espécie de monocultura do pensamento, como refere Ana Tsing (2019), e assim como a monocultura empobrece os solos na agricultura, a monocultura do pensamento empobrece a diversidade dos mundos que nossas pesquisas podem produzir. A monocultura faz mal para o solo, desgasta, exige que os mesmos nutrientes estejam sempre presentes para que as mesmas sementes cresçam. Assim como na ciência moderna e nas metodologias de replicação. O que propomos é o contrário disso, é um cultivo de diferentes elementos, pensamentos e teorias.
Neste livro procuramos reunir experiências que adubam o solo do PesquisarCOM no campo da Psicologia Social, pois conversamos e escrevemos com pessoas, com bichos, com textos, e a gente conta histórias, muitas histórias porque sabemos que elas são capazes de povoar o mundo e cada uma de nós, e cada um dos capítulos diz isso de um modo muito singular.
LanguagePortuguês
PublisherNau Editora
Release dateJan 9, 2023
ISBN9786587079912
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    PesquisarCOM - Marília Silveira

    Sumário

    Prefácio

    Elis Teles Caetano Silva

    Introdução

    PesquisarCOM: permanências e reparações

    Marcia Moraes

    PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual

    Marcia Moraes

    O chamado da pesquisa: um esboço não linear como proposição para um PesquisarCOM

    Laura Cristina de Toledo Quadros

    A formação em saúde, a Psicologia e os nossos encontros com o PesquisarCOM

    Marília Silveira

    Leonardo Santos de Melo

    Experts: as outras, os outros e o epistemicídio acadêmico

    Marília Meneghetti Bruhn

    Lílian Rodrigues da Cruz

    A escrita acadêmica como desafio do trabalho de campoem Teoria Ator-Rede

    Alexandra Cleopatre Tsallis

    Arthur Daibert Machado Tavares

    Bruna Tibolla Mohr

    Cristiane Dameda

    Deborah da Silva de Souza

    Juliana Rangel Sabatini

    Keyth Vianna

    Loíse Lorena do Nascimento Santos

    Monique Araújo de Medeiros Brito

    Monique Cristina da Silva Louzada Vieira

    Rayanne Suim Francisco

    Rebecca Ferreira Lobo Andrade Maciel

    Rodrigo de Vasconcellos Pieri

    Wallace Araujo de Oliveira

    Escrevendo cartas, construindo uma metodologia de Pesquisa

    Josselem Conti

    Luciana Franco

    Entre pés e patas, um mundo que se faz

    Camila Alves

    O Cosmopolitismo doméstico sob a perspectiva do Pesquisar-Cão

    Arthur Arruda Leal Ferreira

    Tecer comunidade para construir um corpo: uma perspectiva feminista acerca da construção da vida

    Ana Claudia Lima Monteiro

    Sobre encontros com Vovó Catarina e como as mulheres negras podem ensinar à Psicologia sobre memória

    Livia Affonso da Veiga

    Luiza Oliveira

    Abrahão Santos

    William Penna

    Sobre as/os autoras/es

    Prefácio

    Elis Teles Caetano Silva

    Neste livro, escuto as autoras e autores dizerem que caminhar de modo fértil na pesquisa em psicologia é produzir, reencontrar e reparar histórias. Aqui vejo e sinto uma dança, ou seja, um movimento fértil de criação de vida cuja ética é o cuidado. O cuidado, como diz Maria Puig de La Bella Casa, é relação afetiva e vital de interdependência, por isso não é somente liso, confortável e harmonioso. Cuidar inclui o dissenso, o rugoso, o conflitante. Nos artigos que compõem esse caminho-livro, o PesquisarCOM é fio metodológico que cuida de fazer aberturas aos encontros, uma porosidade sem a qual não é possível produzir, reencontrar e reparar mundos. Não há cuidado sem isso.

    Encontro também um chamado: testemunhar e ser afetada pelo cuidado em ação, como ato situado em arranjos singulares e conexões marcadas pelas corporeidades das autoras e autores em suas histórias de vida e pesquisa. Como disse Glória Anzaldúa, na Carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, eles mentiram, não há separação entre vida e escrita. Da mesma forma, não há separação entre vida e pesquisa. Nos artigos que se seguem, acompanho vidas textualizando mundos e abrindo para que outras se autorizem a textualizar os seus, criando comunidades de conhecimentos marcados para vivermos e morrermos bem nesse mundo. Comunidades interespécies onde a floresta, a cachoeira, os cães, os mortos, os espíritos, as cartas, bilhetes no whatsapp, os encontros, os afetos, as dores, as lutas, os equívocos, os mal-entendidos, as reparações, os encantamentos e a não linearidade ocupam seus lugares de agência, aprofundando, complexificando e ampliando as redes de interdependência e responsabilidade.

    Enquanto leitora, os artigos aportam em meu mundo, sendo traduzidos em conexões com minhas experiências, o que me faz querer aproximar, pedindo licença, Vovó Catarina, a preta velha que veio nos ensinar sobre memória no último artigo, e a que aqui nomearei de bailarina PesquisarCOM, essa proposta metodológica que se manifesta nas corporeidades das autoras e autores que tecem este livro. A dança é o movimento que as aproxima, sendo Vovó Catarina a mais velha das bailarinas PesquisarCOM, convocando a mais nova a ouvir as marcas. É na dança com a deficiência que a bailarina PesquisarCOM se manifesta enquanto método que aprende a fertilidade radical da preposição com e é na dança diaspórica que Vovó Catarina se manifesta enquanto método de sobrevivência comunitário herdado de suas ancestrais da África antiga. Portanto, ao fazer ciência (pesquisa) para o bem viver, posso me ancorar nas memórias epistemológicas de Vovó Catarina e da bailarina PesquisarCOM. PesquisarCOM-COM as duas, a preposição da bailarina e a comunidade da vovó.

    Como já puderam notar, leitoras/es, esse prefácio é também escrito COM no sentido mesmo do que o método nos convida a mover – produzir variações com o que os encontros fazem com a gente e não sobre eles. Sendo assim, a/o outra/o importa, ou seja, pesquisadoras/es e pesquisades importam, em relação mútua de afetação. As expertises são reposicionadas, colocadas nas rodas para serem mutuamente escutadas desde seus lugares históricos e localizados de corpo e fala. É por dentro das relações, com seus encontros e desencontros, que vamos fazendo o cuidado agir, ou seja, que vamos fazendo interdependência. É também por dentro das relações que as marcas de gênero, raça, sexualidade, deficiência e classe são chamadas a contar histórias, desviando cada vez mais dos perigos da história única, conforme nos alertou Chimamanda Adichie. Dessa forma, os encontros únicos são aqui encorajados como pistas de pesquisa e cuidado, podendo esses encontros se dar com diferentes seres em relação de partilha, parceria e produção de conhecimentos.

    Os caminhos são férteis porque são múltiplos os encontros por eles proporcionados. São férteis para as psicologias que buscamos colocar em ação nestes tempos – psicologias feitas de histórias marcadas pelos chãos por onde pisam, provocadas por relações situadas de cuidado, pensamento e intervenção. Psicologias problematizadoras das categorias não marcadas. Psicologias que não desviam do que o encontro as faz hesitar, repensar, desdizer, recuar, para assim criar caminhos férteis com o que foi encontrado e, com isso, seguir caminhando, afetando as escritas e criando conceitos que provoquem cada vez mais a proliferação de histórias.

    Introdução

    A proposta deste livro¹ surgiu a partir de um encontro realizado em Maceió-AL, a Jornada de Pesquisas e Escritas em Psicologia, realizada em 2019 na Universidade Federal de Alagoas.² A abertura deste evento produziu um efeito, um encontro entre as autoras deste livro e integrantes do Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP), Tecnologias, subjetividades, políticas e escritas de pesquisa. Este encontro marcava as conexões entre nós e o PesquisarCOM proposto por Marcia Moraes em 2010. Este livro foi, naquele momento, pensado como a celebração dos 10 anos desta proposição metodológica do PesquisarCOM e dos efeitos em nós e dos caminhos singulares e impensados aos quais aquele texto de 2010 nos havia levado.

    Mas o livro só pôde nascer efetivamente três anos depois de sua concepção, três anos atravessados por uma pandemia, iniciada meses depois de nosso encontro em Maceió. Três anos em que muitas coisas que nos eram caras perderam sentido, inclusive escrever. Muitas das autoras deste livro relataram em seus textos a dificuldade de fazer essa escrita, posto que ela foi marcada por séries de perdas, não apenas da vida que levávamos antes da pandemia, mas pelas perdas concretas de entes queridos, colegas e amigos/as que recheiam de história o atual e fatídico número que já ultrapassa 666 mil mortes decorrentes da Covid-19, hoje, em 2022, quando finalizamos o livro. Não sem efeito nos tornamos outras nesse processo e o livro concebido em 2019 também se transformou.

    Nesse tempo fomos levadas a perceber o quão voraz e exploratória é a nossa relação com a terra e o quanto de desconexão produzimos com os lugares onde vivemos. Nada que nossos povos originários já não nos dissessem há tempos, desde a previsão da queda do céu pelo Davi Kopenawa Yanomami (2015) até O amanhã não está à venda de Ailton Krenak (2020). Passamos a ser tocadas por essas palavras que nos convocam ao trabalho de reconexão com a terra, o chão, aquele ao qual os autores e autoras da Teoria Ator-Rede também diziam para nos ater. É do chão em que pisamos que nascem as nossas pesquisas. Donna Haraway (2019) nos lembra, por meio das derivações, que Guma, palavra gótica e anglo-saxã, transformou-se mais tarde em human e que ambos os temos se sujam com a terra e seus bichos, ricos em húmus. Nossa humanidade, portanto, deriva desse solo fértil que contém universos inteiros de vida.

    No campo científico não é incomum percebermos uma espécie de monocultura do pensamento, como refere Ana Tsing (2019), e assim como a monocultura empobrece os solos na agricultura, a monocultura do pensamento empobrece a diversidade dos mundos que nossas pesquisas podem produzir. A monocultura faz mal para o solo, desgasta, exige que os mesmos nutrientes estejam sempre presentes para que as mesmas sementes cresçam. Assim como na ciência moderna e nas metodologias de replicação. O que propomos neste livro é o contrário disso, é um cultivo de diferentes elementos, pensamentos e teorias. Nós levamos o pesquisarCOM de um campo a outro, nós conectamos várias coisas a ele, nós testamos diferentes dispositivos, nós inventamos formas de escrita e outras tantas coisas que não eram imagináveis lá em 2010 quando Marcia Moraes escreveu a proposição.

    Entendemos nesse caminho que um solo para se manter fértil também precisa de variação, precisa ser pensado de forma sazonal, precisa ser respeitado também, cuidado – pesquisarCOM não é apenas estar com uma pessoa num campo de pesquisa, é mais complexo que isso, dá trabalho, exige uma ética e uma presença. E uma disposição para ser afetada e se transformar no caminho. Exige fazer as questões que o campo coloca trabalharem conosco, exige não esquecer de sempre consultar os/as experts. E seguimos não sendo os/as experts. Seguimos abdicando do lugar de expertise a cada vez que pisamos no campo de pesquisa.

    Nesse trabalho de nos afetar e nos transformar fomos percebendo que erramos também – porque afirmamos o erro, o titubeio e a falha nos nossos textos. Nossos textos saem sempre sujos de terra, das experiências, marcados, às vezes machucados pelas dores nossas e dos outros seres que encontramos. Quando levamos o pesquisarCOM de um campo a outro criamos outras gramáticas, criamos outras formas de escrita que estejam afinadas ao campo de pesquisa em que pisamos. Por esta razão pesquisarCOM não tem um modo pronto e dado de fazer, mas ao mesmo tempo não é qualquer prática de pesquisar que se pode considerar pesquisarCOM...

    Neste livro procuramos reunir experiências que adubam o solo do PesquisarCOM no campo da Psicologia Social, pois conversamos e escrevemos com pessoas, com bichos, com textos, e a gente conta histórias, muitas histórias porque sabemos que elas são capazes de povoar o mundo e cada uma de nós, e cada um dos seguintes capítulos diz isso de um modo muito singular.

    O que fez com que nós tenhamos nos encontrado no PesquisarCOM e ainda sustentarmos a permanência desse encontro? Talvez seja exatamente a diferença, os campos para os quais levamos o PesquisarCOM, os bichos que convocamos como interlocutores, o fato de escrevermos cartas e textos coletivos pelo WhatsApp³, mas também os artigos e capítulos, o fato de que nos racializamos, nos encontramos com a nossa branquitude, recebemos as críticas de que somos contra-hegemônicas/os, mas ainda não somos decoloniais, e nós também escutamos as vozes ancestrais, convocamos as mães, pais e as avós para compor a nossa escrita, para povoar o mundo. Nós temos um desejo ou uma mania incessante de conectar as coisas, insistimos nisso, e neste livro conectamos as coisas pelas histórias das nossas pesquisas e vidas e o que tem sido possível escreverCOM elas.

    Como este livro deriva do texto escrito em 2010 por Marcia Moraes, decidimos incluí-lo no livro, caso você leitor/a não o conheça ou deseja relembrá-lo. Ele se torna então parte do húmus a partir do qual o livro nasce. O húmus reúne também os capítulos de Marcia Moraes, que retoma e relê seu próprio texto de 2010, bem como os capítulos de Laura Quadros, Marília Silveira e Leonardo Santos de Melo e Marília Meneghetti Bruhn e Lílian Rodrigues da Cruz, compondo as histórias e os deslocamentos de campo aos quais levamos o pesquisarCOM. Nestes textos recolhemos as humusidades daquele texto de 2010 e seguimos levando adiante e retomando outra vez aquilo que perdemos ou invisibilizamos no caminho. O pesquisarCOM ganhou terras novas, novos campos de pesquisa, novas bactérias e outros seres fazem com que se torne terreno fértil para outras paisagens e mundos.

    A segunda passagem do livro é o broto, que são as experiências de escrita coletiva de Alexandra Cleopatre Tsallis, Arthur Daibert Machado Tavares, Bruna Tibolla Mohr, Cristiane Dameda, Deborah da Silva de Souza, Juliana Rangel Sabatini, Keyth Vianna, Loíse Lorena do Nascimento Santos, Monique Araújo de Medeiros Brito, Monique Cristina da Silva Louzada, Rayanne Suim Francisco, Rebecca Ferreira Lobo Andrade Maciel, Rodrigo de Vasconcellos Pieri, Wallace Araujo de Oliveira e a insistência nas cartas de Josselem Conti e Luciana Franco. Como um broto, esses capítulos fazem nascer formas de escrever na universidade e formas de conectar a escrita e a vida.

    A terceira passagem é a compostagem, quando Camila Alves e Arthur Arruda Leal Ferreira cavoucam a terra com suas espécies companheiras caninas, fazendo arejar a terra para seus textos e outras produções existenciais na cidade. Tal passagem é sobre criar mundos em parcerias multiespécies.

    Por fim, nos encontramos com as raízes, de volta à terra os capítulos de Ana Claudia Lima Monteiro e de Livia Affonso da Veiga, Luiza Oliveira, Abrahão Santos e William Penna convocam as memórias e histórias ancestrais de mãe e avó, são histórias do que herdamos, diferimos e criamos.

    Marília, Marcia e Laura

    organizadoras


    1 Este livro foi impresso com financiamento da FAPERJ.

    2 O evento foi realizado com financiamento da FAPEAL (Edital AORC 2019).

    3 O WhatsApp é um aplicativo para celulares que permite envio e recebimento de mensagens textuais, imagens, vídeos, áudios, documentos etc.

    Referências

    HARAWAY, Donna. Seguir con el problema. Generar parentesco en el Chthuluceno. Bilbao: Consonni, 2019.

    KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

    YANOMAMI, D. K.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um Xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

    TSING, Anna Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.

    humus

    [...] terráqueo, terreno, no solo, na lama, pleno de matéria viva e apaixonada, que se materializa nas relações com outros terráqueos, humus para um mundo mortal mais vivível [...].*

    * HARAWAY, Donna. Companhias multiespécies nas naturezas culturas. Uma conversa entre Donna Haraway e Sandra Azeredo (S. Azeredo, Trad.). In: MACIEL, Maria Esther (org.). Pensar/escrever o animal. Ensaios de Zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011, p. 399.

    PesquisarCOM:

    permanências e reparações

    Marcia Moraes

    Dedico este trabalho a Iaponira Santos, porque não esquecerei jamais suas palavras naquele corredor da UERJ, e a Antony Coutinho de Moraes, entre todos, o primeiro e decisivo encontro que tive com a deficiência visual.

    Reler

    Lembro que muitos anos atrás, vi uma entrevista de Carlos Drummond de Andrade num programa de TV. O repórter aponta o microfone para um Drummond já idoso e pergunta, entre outras coisas: o que o senhor costuma ler? Drummond responde, com serenidade, voz baixa, as palavras sendo ditas quase sem que a boca se mexesse, como se fossem deslizando lentamente no dizer de um segredo: Eu não leio mais nada, só releio. Fiquei impactada com essa resposta, esperava que o poeta fosse enumerar bibliografias! Tempos depois, ainda estava (e está) comigo a afirmação do poeta. Não foram poucas as vezes que voltei, mentalmente, ao só releio dito por Drummond. Também não foram poucas as vezes que reli um texto e nele encontrei o que nunca tinha lido, visto ou sabido que ali estava. Nestes re-encontros com novos achados era sempre o poeta que me sussurrava os tímidos meios-sorrisos de quem descobre preciosidades em papéis soltos.

    Escrever este texto me fez reler um outro, redigido há mais de dez anos.⁴ Se reler um texto é abrir uma porta a um mundo não percorrido, reler um texto de nossa própria lavra é ir ao encontro de um outro que estranhamente ainda somos nós. Vocês devem estar se perguntando: por que retomar este trabalho tanto tempo depois de tê-lo escrito? Eu mesma me faço e me fiz esta pergunta algumas vezes, antes de tomar a decisão de me sentar diante desta tela em branco. Há 12 anos eu dizia que pensar envolve encontros inéditos com o mundo (MORAES, 2010), não é algo que se faça pelo puro exercício de um gosto. Pois os encontros ocorridos nos últimos anos foram bastante intensos, fortes o suficiente para adensar os sentidos do fazerCOM os outros a pesquisa, produzindo tanto variações, quanto indicando continuidades. Então, falar hoje daquele texto escrito em 2010 é ir ao encontro de algumas permanências, reparações e achados que o pesquisarCOM experimentou no curso desse tempo. É ir ao encontro também de alguns espantos e discordâncias.

    Nas linhas que virão a seguir há alguns trechos escritos em itálico. Eles são fragmentos de memórias escritos em temporalidades distintas, com cenas e situações da vida cotidiana e da pesquisa, alguns divulgados em mídias sociais, outros não. São fragmentos que, em alguma medida, adensam os sentidos do pesquisarCOM. Indiquei entre parênteses o ano em que foram escritos e a situação a que remetem. Os/as leitores/as notarão que o texto, como um todo, é marcado por temporalidades distintas. Ele foi escrito entre os anos de 2020 e 2022, aos pedaços, cheio de tropeços, de idas e vindas. Foram os anos da pandemia da Covid 19 e do caos sanitário que vivemos em nosso país. Não foi uma escrita fácil. As interrupções eram muitas, o exercício da pesquisa foi se fazendo junto com as demandas da vida e com o meu lugar de cuidadora de meu pai, velhinho, cego, acamado e muito doente. Há também uma modulação no uso do pronome pessoal, ora na primeira pessoa do singular, ora na primeira do plural. Também deixei no texto os registros dessa modulação porque elas expressam os modos como foram vividas as experiências e situações narradas.


    4 Inserimos nesta obra a publicação do artigo PesquisarCOM: deficiência visual e política ontológica (MORAES, 2010).

    Permanências

    Estava saindo de uma sala no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Uerj, onde participava de um evento com muitos amigos queridos, quando escuto alguém me chamando: professora Marcia, professora Marcia! Voltei-me e a vi já bem pertinho de mim. Entre tímida e nervosa, ela me disse:

    – Professora Marcia, me chamo Iaponira, sou uma mulher com baixa visão. Queria te dizer que seus textos mudaram a minha vida.

    Lembro-me de que ela me chamava de senhora. Pedi para que me chamasse de você. Ela estava nervosa de falar comigo, pude sentir o tremor de suas mãos quando tocaram as minhas. Estávamos ainda de mãos dadas, quando ela comentou:

    – É estranho encontrar em carne e osso alguém que me é tão conhecida, professora, ainda que só pelos textos.

    Iaponira havia lido vários textos meus. Havia se emocionado e se conectado especialmente com a narrativa da bailarinae ali, no encontro com aqueles escritos, havia se re-encontrado como mulher com deficiência visual. Agradeci a ela pela oferta que me fazia, devolvendo-me tão bons afetos, mobilizados e ativados pelas leituras dos meus textos. Fiquei muito comovida com esse encontro. Agradeço a Iaponira ainda hoje. Agradecerei sempre. Falei-lhe que aquelas palavras faziam com que eu pudesse dizer-lhe de volta: então tudo o que escrevi faz e fez sentido, porque uma vida foi tocada com esses textos. Foi um encontro comovente, lindo. Ela e Laura Cristina de Toledo Quadros, sua querida orientadora de mestrado, me convidaram para a qualificação, depois para a banca. Foi uma preciosidade acompanhar Iaponira florescer e vicejar no belíssimo trabalho que escreveu no mestrado.Agora, eram o texto e a escrita dela que me afetavam, que me transformavam. Depois desses encontros, segui acompanhando-a pelo Facebook. Li relatos intensos que ela fez sobre processos de vida, nem sempre fáceis. Continuei sendo alcançada pelos escritos dela. Vibrei quando a vi feliz com as gracinhas do filhote, neném de pouca idade. Iaponira teve Covid em 2020 e partiu desse mundo. Sua força e doçura seguem vivas nas linhas e entrelinhas desse texto (Fragmentos de memórias, dezembro de 2020, em homenagem a Iaponira Santos).

    Se tem alguma coisa que permanece viva em todos esses anos é o efeito que as narrativas situadas da deficiência, presentes no texto de 2010 e em outros,⁷ produz nas pessoas com deficiência. O encontro com Iaponira Santos, narrado na abertura desta seção, foi muito marcante. Ela foi uma destinatária importante da carta⁸ que escrevi como remetente. Nove anos depois de ter dançado no palco de sua escola e de ter

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