Resumo analítico da obra Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire
Cristiane Gandolfi 1
Na obra Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire está implícito a proposição de
formação docente fundamentada no desejo humano de que o professor queira ser autônomo e, portanto, tanto persiga a utopia quanto se veja como incitador deste exercício de autonomia junto às novas gerações. Freire nos mostra que essa conquista exige retidão ética, curiosidade epistemológica, vocação ontológica para ser mais. Essa finalidade da prática educativa progressiva coaduna com a concepção de história como possibilidade humana e visão antropológica do ser que se expressa em seu inacabamento humano. Dessa forma, Freire está preocupado em assinalar seu otimismo e crença na humanidade, uma vez que, concebe a autonomia como possibilidade de enfrentamento à ideologia neoliberal vigente. Sua teoria de autonomia como saber de uma nova prática educativa se fundamenta num tripé estruturado em: não há docência sem discência, ensinar não é transferir conhecimento e ensinar é uma especificidade humana. Como pedagogo, Freire parte do pressuposto do que há de específico na relação pedagógica entre educador/educando a luz da construção do conhecimento. Acredita num educador problematizador, contudo reconhece que vários saberes inerentes a uma pedago gia da autonomia podem existir inclusive na prática do pedagogo conservador. Ensinar exige aprender e a pesquisa é o meio que possibilita a aprendizagem. Daí, ensinar exige rigorosidade metódica, contextualização da aprendizagem, superação do equivoco educacional clássico de que ensinar é transferir conhecimento. Freire concebe o professor autônomo como aquele que pensa certo, isso quer dizer, sujeito que quer conhecer o mundo e dialogar com o outro sobre a realidade vivida. Essa relação dialogal e horizontal entre professor e aluno somente acontece se houver um profundo respeito ao saber do outro. Por isso a problematização de temas que compõem a contextualização da realidade concreta está no centro da aprendizagem. Freire encara esse processo como a passagem da curiosidade ingênua para a criticidade curiosa, insatisfeita, indócil, dela surge a curiosidade epistemológica, importante conceito em sua pedagogia da autonomia. Como se preocupa com o caráter formador no processo de aprendizagem, Freire articula Formação ética ao lado da estética, e se mantêm radicalmente crítico a concepção equivocada de que seja possível uma formação docente restrita à apropriação de técnicas e treinamentos. Seu pensar certo é tecido pela profundidade, qualificação do tema estudado, revisão crítica de seus achados, compreensão de que a vida humana é dialética e que mudar é um direito humano, sem se esquecer de que toda tomada de decisão exige um momento de responsabilidade. Daí a interface decência e boniteza de mãos dadas, pois a atividade docente tem em si a responsabilidade é tica, cidadã, de formar pessoas, logo, o ensino de conteúdos deve estar intrinsecamente associado à formação moral do educando. Essa boniteza se expressa por meio da corporeificação das palavras pelo exemplo. É característica do formador democrático a postura, coerência de agir com retidão ética, enfim, vivência de uma subjetividade democrática. Logo, o pensar certo é contrário a qualquer forma de discriminação étnica, de gênero e de classe social. Nele há tanto o desejo do novo quanto a permanência do que hoje é considerado velho, 1 Socióloga e pedagoga, Mestre em Educação pelo programa Educação:História, Política e Sociedade(PUC/S.P.), professora da Universidade Metodista de São Paulo(cursos Pedagogia e Ciências Sociais). contudo ainda é valido visto que preserva sua coerência ao se manter necessário como contraponto aos desígnios do pragmatismo neoliberal. Por isso a Pedagogia da autonomia de Freire é tão radical, há uma ruptura com a hierarquização de papéis da escola burguesa. O professor entende que sua prática pedagógica é feita com o outro e não para o outro. Nessa dinâmica o aluno pod e ser ensinante e professor pode ser aprendente, é dado à educação o crivo de um ato comunicante. Este não é polêmico, intransigente, autoritário, mas sim dialógico, desafiador, democrático, envolvente, significativo ao contexto vivido. Para que isso ocorra o professor deve cotidianamente voltar-se a sua prática, essa dinâmica possibilita a permanência da chama da curiosidade epistemológica. Freire é incisivo, os sistemas de ensino devem investir na formação permanente do professor. Se esse investimento for aliado a uma prática educativa curiosa e contextualizada no chão da escola teremos a materialidade de uma escola autônoma, onde as pessoas – professores, alunos, profissionais da educação - assumam, decidam, optam por novos compromissos. Esse processo é dialético, quanto maior for a autonomia maior será o reconhecimento e a assunção da identidade cultural. Freire fecha o debate sobre a relação entre docência e discência com a questão da identidade cultural. Em sua pedagogia da autonomia ela é central, visto que o ser humano é um ser social, histórico e concreto. Essa construção humana permeia todo processo educativo e é produto vivo dos processos de socialização vivenciados na escola. No entanto, a escola ainda está exageradamente amarrada em sua faceta formal, já que sua dinâmica informal tem sido ao longo do tempo negligenciada. O autor criva a importância de seus processos de socialização, sobretudo quando destaca o que há de informal nessa estrutura. A relação formal e informal traduz sua concepção de escola como espaço humano, onde gestos dos professores, a emoção, a sensibilidade, a intuição, a adivinhação, o medo, se entrelaçam ao caráter mais sistematizado do ensino. É nessa amalgama que se constrói o conhecimento, paulatinamente o medo dominado torna-se coragem, a adivinhação primeiramente intuída ao ser pesquisada torna-se apropriação de um conteúdo científico vivido no contexto da prática educativa. A compreensão de que ensinar não é transferir conhecimento se põe como um segundo tripé de sua pedagogia da autonomia. O professor deve ser humilde, ser consciente das imposições ideológicas das estruturas sociais de uma sociedade capitalista/neoliberal, e, sobretudo deve ter rigorosidade metódica, portanto, não deve ser permissivo, licencioso, espontaneista. A negação a conduta autônoma é conceituada por Freire como uma transgressão ética, que se consubstancia como uma ruptura com a decência. Uma prática educativa ética é tecida pelo respeito à autonomia do ser do educando e pelo saber docente fundamentado no bom senso, na postura humilde e tolerante com relação à construção do saber. Mas, ao mesmo tempo, no reconhecimento da importância de ser politizado, haja vista a luta em defesa dos direitos dos educadores, a apreensão verdadeira da realidade, a alegria e esperança no ato educativo que se redescobre no desejo de conhecermos o mundo juntos. Essa relação pedagógica anima a convicção de que mudar é possível e a curiosidade epistemológica se reafirma como alicerce de uma prática educativa progressista. Apesar da forte politicidade presente na pedagogia freiriana, em nenhum momento Freire a restringe ao discurso político. O bom professor não pode ser neutro, deve ter compromisso com a vida e a ação comunicativa deve ser orientada pelo dialogo que se faz com narrativas sobre o objeto tematizado, na perspectiva de trazer o aluno para a problematização do tema. A sala de aula é uma arena sagrada na qual se trava a batalha de descoberta e redescoberta do mundo vivido. Portanto, o professor desafia o aluno a pensar, a acompanhar seu pensamento e dialogar sobre as diversas maneiras de enxergar o mundo. Nesse contexto não há espaço para autoritarismo ou licenciosidade, aqui autoridade e liberdade conduzem o processo de crescimento humano. A condução da sala de aula é uma atividade especificamente humana sendo que a autoridade docente é inerente a ela. Essa se faz com firmeza e segurança, as quais são garantias de um bom cotidiano escolar. Junto a isso, bons professores demonstram competência profissional, valorizam a ação de continuar estudando, buscam se aprimorar, são justos, sérios, humildes e generosos. Essas características lhes conferem força moral [na ação de] coordenar as atividades de sua classe. Para Freire a autoridade deve ser democrática, ela se constrói no exercício de coerência, competência, gosto pela vida e pela educação, amorosidade, respeito aos outros, tolerância, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, esperança no mundo melhor. Muito além de Ciência e técnica, um educador progressista mantém sua capacidade de luta, de recusa ao fatalismo, sempre se move na direção da escuta ao educando, enfim; resiste à burocratização da mente, atesta em seu testemunho ser um educador comprometido com a humanidade em seu tempo histórico. Paulo Freire escreve sua Pedagogia da Autonomia em 1996, num momento em que o neoliberalismo se expande no planeta. Aqui ele reassume seu compromisso com o humano, com uma educação que forme gente que seja mais gente, adverte que o educador progressista deve usar a televisão como uma ferramenta pedagógica : debater, aprofundar, questionar a multiplicidade de informações anunciadas cotidianamente pelas mídias é visto por Freire como essencial. Posiciona-se contrário ao pragmatismo neoliberal, ao lucro insaciável da ética do mercado e a toda forma de transgressão da ética humana que tem sido aprofundada nesse contexto. É essencialmente crítico aos mecanismos de ideologização presentes na educação e conclui sua assertiva de que educação é uma especificidade humana com o reconhecimento de que ela é ideológica, de que ensinar exige disponibilidade para o diálogo, e, essencialmente, educar exige querer bem aos educandos. A afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade, elas se encontram numa prática educativa entre educador/educando norteada pela justa alegria de viver. Certamente os saberes docentes fundamentados nesse tripé se consubstanciam numa pedagogia da autonomia, formadora de gente resistente ao pragmatismo de nosso tempo.