Resumo
Neste início de século uma realidade nova relacionada aos conteúdos do mundo globalizado traz uma renovação
nas formas de organização geográfica da sociedade. Diante dessa nova realidade, conceitos velhos aparecem sob
forma nova e conceitos novos aparecem renovando conceitos velhos.
A rede global é a forma nova do espaço. E a fluidez – indicativa do efeito das reestruturações sobre as fronteiras
– a sua principal característica.
Uma mudança se pede assim na forma do olhar geográfico e do geógrafo. Mas em que consiste este olhar? E
como dar-lhe contemporaneidade? No sentido de esclarecer tais questões este texto examina diversos olhares
geográficos sobre o mundo e as formas geográficas de representação.
Palavras-Chave – Lugar, Região, Rede, Cartografia, Representação.
*
Texto de palestra realizada no sistema FATEC/Paula Souza, da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, revisto e
ampliado pelo autor. Publicada originalmente na Revista Ciência Geográfica número 6, abril de 1997, AGB-Bauru.
**
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) em Geografia da Universidade Federal
Fluminense (UFF).
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Recebido para Publicação em 10.05.2007.
Ruy Moreira
Neste início de século uma realidade destrói e prejudica o modo de vida com
nova, apoiada não mais nas formas que a humanidade se conhecia.
antigas de relações do homem com o Um ponto de inflexão é a década de
espaço e a natureza, mas nas que 1950 e um outro a década de 1970.
exprimem os conteúdos novos do mundo
globalizado, traz consigo uma enorme
A região:
renovação nas formas de organização
o olhar sobre um espaço lento
geográfica da sociedade. Diante dessa
nova realidade, conceitos velhos Quando os geógrafos dos anos 1950
aparecem sob forma nova e conceitos olhavam o mundo o que viam era a
novos aparecem renovando conceitos paisagem de uma história humana que
velhos. mal mudara de página no trânsito dos
A rede global é a forma nova do séculos XIX-XX. Viam a sombra das
espaço. E a fluidez – indicativa do efeito civilizações antigas, com suas paisagens
das reestruturações sobre as fronteiras – a relativamente paradas,
sua principal característica. compartimentadas e distanciadas.
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Da região à rede e ao lugar: a nova realidade e o novo olhar geográfico sobre o mundo
homem. Enquanto isto não acontece, a própria evolução histórica. Como isto
relação homem-espaço-mundo é uma aconteceu?
duplicidade do de dentro e do de fora, até
Há uma raiz de origem epistêmica e
que a troca metabólica funde o homem e
outra de natureza metodológica, ambas
o mundo num mundo-do-homem
com forte viés institucional. São três
(MOREIRA, 2004a e 2004b).
geografias na prática a se atualizar, cada
E, é isto a geograficidade. qual correndo habitualmente em paralelo
à outra: a geografia real (da realidade que
existe fora de nós), a geografia teórica (da
A representação e o olhar da leitura desse real) e a geografia
geografia num contexto de institucional (a dos meandros
espaço fluido institucionais). Há uma realidade externa
a nós, que é o fato de a humanidade
As transformações que levam do existir sob uma forma concreta de
espaço de um arranjo arrumado em organização espacial. E há a
matrizes regionais a um espaço de um representação dessa realidade capturada
arranjo arrumado em rede levantam o por meio de sua formulação teórica. Isto
problema da linguagem. estabelece na geografia uma diferença
Isto se traduz no problema da entre realidade e conhecimento, com a
representação cartográfica, significando tradução dupla do real e do lido, que nem
uma dificuldade adicional. Mas é um sempre se relacionam numa consonância.
esforço necessário, de vez que se trata de Ainda existe, porém, a geografia
requalificar o discurso geográfico no materializada institucionalmente e
formato da linguagem, que preserve sua prisioneira do seu cotidiano.
personalidade histórica e dê o passo Não é isto uma propriedade da
seguinte, que a ponha em consonância geografia, mas dos saberes, uma vez ser a
com a nova realidade. ciência uma forma de leitura do mundo
É disso que trataremos agora. real, que usa como recurso próprio o
expediente das representações
A dupla forma e o problema da conceituais, fazendo-o em ambientes
fortemente formalizados, como as
personalidade lingüística da
instituições de pesquisa e a universidade.
geografia
Se este múltiplo não é uma exclusividade
Vimos que, embora leia a complexa do saber geográfico, há nele, entretanto, a
realidade mutante do mundo pela janela situação específica do fato de que
do espaço, com a vantagem de encontrar raramente em sua história estas três
na paisagem o instrumento privilegiado geografias coincidem, raramente se
da leitura, o geógrafo nem sempre tem encontram, raramente se confundem.
sabido ser contemporâneo do seu tempo. A década de 1950 é um raro momento
A causa, em boa parte, está na dificuldade de encontro. Quando os geógrafos
da atualização da linguagem – em sua daquela década falam do mundo real, a
dupla forma da linguagem conceitual e geografia teórica o representa com uma
da linguagem cartográfica – a cada novo precisão suficiente para que as pessoas
momento de enfrentamento do real. que os ouvem se sintam como se
É fato que a linguagem geográfica estivessem vendo o que falam, não
deixou de atualizar-se já de um tempo. As sentindo propriamente diferença entre o
expressões vocabulares antigas perderam que ouvem falar e o que vêm. Tal é o que
a atualidade, diante dos novos conteúdos, se percebe nos textos de Pierre George,
e as expressões novas foram tiradas mais para ficarmos num exemplo conhecido,
de outros campos de saber, que da sua acerca dos espaços agrários ou dos
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Da região à rede e ao lugar: a nova realidade e o novo olhar geográfico sobre o mundo
A velha cartografia fala ainda a que Lacoste (1988), além de Eric Dardel
linguagem das medidas matemáticas, que (1990), trabalha.
longe estão de serem o enunciado de
A espacialidade diferencial articula
algum significado. As cores e os símbolos
porções de espaço, semelhantemente aos
nada dizem. É uma cartografia cuja
recortes ritterianos, que Lacoste (1988)
utilidade está preservada para alguns
designa de conjuntos espaciais. Cada
níveis, mas pouco serve para os níveis de
fenômeno forma um conjunto espacial em
significação. Permanece fundamental à
seu recorte. Há um conjunto espacial
leitura geográfica das localizações exatas,
clima, solo, população, agropecuária,
mas não para a leitura do espaço
cidade etc. O limite territorial de cada
dinâmico das redistribuições de espaços
conjunto numa área de recorte comum
fluidos. Serve para representar e
não coincide normalmente, uns sendo mais
descobrir significados dos espaços dos
extensos e outros mais restritos, forma-se
anos 1950. Contudo não tem serventia
um complexo entrecruzamento nessa
para ler os espaços de um novo milênio. É
superposição, que é a matéria-prima da
uma cartografia ainda necessária, todavia
espacialidade diferencial. A paisagem
não mais suficiente.
depende, assim, do ângulo do olhar de
No entanto, os parâmetros de uma quem olha, que toma um dos conjuntos
cartografia geográfica já estão postos: espaciais como referência do olhar, e vê,
estão presentes na linguagem semiológica em conseqüência, a paisagem pelo olhar
das novas paisagens. Mapear o mundo é de referência. Daí que cada conjunto
antes de tudo adequar o mapa à essência espacial resulta numa forma de paisagem,
ontológica do espaço. Representar sua cada qual servindo como nível de
tensão interna. Revelar os sentidos da representação e nível de conceituação.
coabitação do diverso. Falar
Cada complexo de paisagem se
espacialmente da sociedade a partir da
interliga com os complexos vizinhos
sua tensão dialética. Mas tudo é
mediante a continuidade-descontinuidade de
impossível, repita-se, sem uma
cada um e de todos os conjuntos
semiologia da imagem.
espaciais, alargando a espacialidade
diferencial para o todo da superfície
Para uma cartografia geográfica terrestre numa seqüência de
A geograficidade é o que, no fundo, a entrecruzamentos, que lembra o conceito
geografia clássica de Carl Ritter (1974) e de diferenciação de áreas de Hettner –
Alexander von Humboldt (1866) busca visto, porém, no formato do complexo de
apreender, representar e, assim, por complexos de Sorre (1961)–, a superfície
intermédio da geografia, clarificar como terrestre se organizando como um todo
prática consciente do homem. A grande combinado de continuidade e
limitação da cartografia corrente – mesmo descontinuidade, que faz dela mais que
a semiologia gráfica – é a linguagem que um simples mosaico de paisagens e algo
leve a isto. Uma alternativa foi aberta por muito distanciado conceitualmente de
Yves Lacoste (1988) com o conceito de uma seqüência horizontal de regiões
espacialidade diferencial, um conceito diferentes e singulares.
muito próximo da visão corológica e da Lacoste (1988) expressa certamente a
individualidade regional de Ritter, e, na influência do relativismo de Einstein
formulação, muito próxima também do nessa atribuição do conceito de paisagem
conceito de diferenciação de área de e de superfície terrestre ao movimento do
Alfred Hettner, com a vantagem de vir olhar. E lembra o conceito de espaço de
como uma proposta de escala. E, destarte, Henri Lefebvre (1981 e 1983) nessa
a caminho de uma linguagem da combinação de espaço e representação,
geograficidade. Conceito, por sinal, com
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que acaba por ser o conceito de DARDEL, E. (1990) Homme et la Terre: Nature de la
espacialidade diferencial. Realité Geographique. Paris: CTHS.
HARVEY, D. (1992) A Condição Pós-Moderna. São
Além disso, retira o conceito de escala Paulo: Loyola.
do entendimento puramente matemático HUMBOLDT, A. von (1866) Cosmos: essai d'une
da cartografia cartesiana tradicional e o description physique du monde . Paris: L. Grierin
remete a uma concepção qualitativa (sem LA BLACHE, P. V. (1954) Princípios de Geografia
dispensar a abordagem quantitativa), Humana. Lisboa: Edições Cosmos
permitindo renovar a linguagem da LACOSTE, Y. (1988) A Geografia, isso serve, em
primeiro lugar, para fazer a guerra. São Paulo: Papirus
cartografia, a partir da renovação da
Editora.
linguagem da geografia, numa nova
LEFEBVRE, H. (1981) La Production de L´Espace.
semiologia. Assim, o espaço bem pode ser Paris: Éditions Anthropos.
um todo de relações entrecruzadas, cada _______________ 1983. La Presencia y la Ausencia.
porção espacial – o território – se Contribucion a la teoría de las representaciones. México:
identificando por uma espessura de Fondo de Cultura Económica
densidade de relações diferente, umas MOREIRA, R. (1994) O espaço da geografia. As
com um tecido espacial mais espesso e formas históricas do trabalho do geógrafo. In Boletim
outras mais modestas, inovando o Fluminense de Geografia, ano II, vol. 1, n. 2. Niterói:
AGB
conceito de densidade, habitat, ecúmeno,
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sítio, entre outros da geografia clássica, ardil da identidade e a representação da diferença
por tabela, sem contar com a constituição na geografia. in revista GEOgraphia, ano I, no. 1.
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conceitos, a partir da teoria que dê conta _____________ (2001) As Categorias Espaciais da
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______________ (2004a) Marxismo e geografia, a
Abre então a possibilidade de geograficidade e o diálogo das ontologias. In
introduzir esse novo viés cartográfico – a GEOgraphia, ano VI, n° 1. Niterói: PPGEO-UFF
cartografia de um espaço visto como uma ______________ (2004b) Ser-Tão: o universal no
semiologia de real significação –, regionalismo de Graciliano Ramos, Mário de
Andrade e Guimarães Rosa (um ensaio sobre a
compreender o espaço como modo de
geograficidade do espaço brasileiro). In Ciência
existência do homem, incluindo-o como Geográfica, ano X, volume X, n. 3. Bauru: AGB
um elemento essencial de sua ontologia, e ____________ (2006) Espaço e Contra-Espaço:
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