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vida!" (entrevista)
Claudio Willer
Soma-se a isso uma biografia coerente, marcada por uma busca constante que
inclui sua passagem pelo surrealismo (1924/27) e a ruptura por, na verdade,
encarnar radicalmente as idéias desse movimento: suas iniciativas no teatro de
vanguarda; sua revisão crítica da História e sua discussão do colonialismo em obras
como Heliogábalo e nas palestras mexicanas: seu mergulho em outro universo; ao
participar do culto do peiote dos Taraumaras: e sua tragédia, seu internamento por
oito longos anos, de hospício em hospício, durante a guerra, na França ocupada,
até ser resgatado em 1946, fisicamente acabado pelo sofrimento - ele, que sempre
execrava os psiquiatras, declarando já em 1925 que "nós nos rebelamos contra o
direito concedido a homens de sacramentar com o encarceramento perpétuo suas
investigações no domínio do espírito", para reiterar em 1947, em seu Van Gogh,
que "em todo demente há um gênio incompreendido cujas idéias, brilhando em sua
cabeça, apavoram as pessoas, e que só no delírio consegue encontrar uma saída
para o cerceamento que a vida lhe preparou". Talvez essa identificação de gênio e
loucura não valha para todo e qualquer louco; mas vale para Antonin Artaud, como
ele o demonstrou através de sua vida e sua obra.
CW - Como começou essa relação tão íntima com Artaud e sua obra?
PT - Como ele vinha muito em casa e eu havia parado com os estudos, pediu-me
que tomasse o ditado de alguns de seus textos. Isso aconteceu muito
naturalmente. Artaud sempre, desde seus primeiros escritos, preferiu ditar seus
textos: Heliogábalo, por exemplo, e alguns dos textos de O teatro e seu duplo, o
que provocava erros de transcrição, erros auditivos que depois corrigi na edição
das Obras Completas. Acabei aprendendo a datilografar para cuidar de sua
obra. Van Gogh me foi ditado integralmente, o que levou cerca de dois meses, e
não dois dias, como chegaram a dizer.
CW - E há cartas a Henri Parisot, de Rodez, que para mim têm uma força especial…
PT - As cartas a Parisot são outro problema. Elas foram escritas em Rodez, quando
Artaud estava internado no asilo, em solidão total. Os textos que escrevia então
eram para ele mesmo, sem intenção de publicar. Quando Parisot lhe escreveu (para
tratar da edição da Viagem ao país do taraumaras), Artaud teve um interlocutor do
mundo livre. Escreveu-lhe cartas para servirem de prefácio à edição
dos Taraumaras e outras para serem publicadas à parte. Essas cartas dirigiam-se
para um interlocutor e para o leitor. Artaud queria falar de tudo o que havia
acumulado, de tudo o que se havia passado com ele durante aqueles anos em que
esteve internado (de 1937 a 1946), e isso da forma mais penetrante, mais
impactante. Ele sempre pôs muito de si nas cartas, eram parte de sua vida… As
cartas para Génica Athanasiou, as que ele quis que fossem acrescentadas à edição
de Suppôts et supliciations…
PT - As pessoas são sempre más testemunhas e Artaud contou muito para mim,
ocupou toda minha vida com seu texto. Não quero ser uma falsa testemunha. mas
quando vejo obras que o mostram como só paroxístico ou histérico, eu não
concordo. A visão que tenho de Artaud é de alguém que sabia ser alegre, que
também era capaz de divertir-se e de brincar.
Ele me tratava cerimoniosamente, como uma grande dama, me tratava por vous.
Era sempre o vous, não aceitava o tu. Isso porque foi tutoyé (tratado por tu)
durante os anos em que esteve internado - então o tu era penoso para ele. Mas
mesmo isso, era capaz de comentar de um modo engraçado. No fim da vida,
rejeitou todas as religiões e não suportava as manifestações religiosas. Quando
Marie Casarés foi conhecê-lo, estava usando uma corrente com uma cruz, e
Barrault pediu-lhe que a tirasse, pois iria desagradar a Artaud. E houve aquela
ocasião no Flore, quando Abel Gance mandou um emissário procurá-lo. Gance já
estava bem velho mas ainda queria fazer um grande filme sobre a vida de Cristo e
convidou Artaud para trabalhar no filme. Artaud ficou furioso. Essas coisas, ele
contava vituperado, mas também rindo, se divertindo.