estudos históricos
67 História das
Ciências Humanas
e Sociais
ISSN 2178-1494
Estudos Históricos, volume 32, número 67, maio.-ago de 2019. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas, 1988
Quadrimestral
Resumos em português, inglês e espanhol
Editada e distribuída pela Editora Fundação Getulio Vargas
ISSN: 2178-1494.
1. História 2. Historiografia 3. Periódicos 4. Ciências Sociais 5. Economia e Sociedade.
I – : Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas
CDD 981.005
CDU 981(051)
E-mail: eh@fgv.br
Endereço na internet: http://www.fgv.br/cpdoc/revista
Endereço postal: Fundação Getulio Vargas/CPDOC
Secretaria da Revista Estudos Históricos
Praia de Botafogo, 190, 14º andar, Rio de Janeiro 22.523-900 RJ
H estudos históricos 67|
Rio de Janeiro, vol. 32, n 67, p. 347-563, maio-agosto 2019
o
História das ciências humanas e sociais
Sumário
colaboração especial
Artigos
QUANDO NOVOS CONCEITOS ENTRARAM EM CENA: hISTÓRIA INTELECTUAL DO “POPULISMO” E SUA INFLUÊNCIA NA GÊNESE
DO DEBATE BRASILEIRO SOBRE MOVIMENTOS SOCIAIS | 469
WhEN NEW CONCEPTS CAME ON ThE SCENE: ThE INTELLECTUAL hISTORY OF “POPULISM” AND ITS INFLUENCE ON ThE GENESIS OF ThE BRAZILIAN DEBATE
ON SOCIAL MOVEMENTS
CUANDO NUEVOS CONCEPTOS ENTRARON EN ESCENA: hISTORIA INTELECTUAL DEL “POPULISMO” Y SU INFLUENCIA EN LA GÉNESIS DEL DEBATE BRASILEÑO
SOBRE MOVIMIENTOS SOCIALES
HISTORY OF ThE “hUMAN SCIENCES” AND WALLACE’S SCIENTIFIC VOYAGE IN ThE AMAZON:
NOTES ON hISTORIOGRAPhICAL ABSENCES | 549
HISTÓRIA DAS “CIÊNCIAS hUMANAS” E A VIAGEM CIENTÍFICA DE WALLACE NA AMAZÔNIA: NOTAS SOBRE AUSÊNCIAS hISTORIOGRÁFICAS
HISTORIA DE LAS “CIENCIAS hUMANAS” Y EL VIAJE CIENTÍFICO DE WALLACE EN AMAZONIA: NOTAS SOBRE LAS AUSENCIAS hISTORIOGRÁFICAS
Victor Rafael Limeira da Silva
Editorial
Editores
http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300001
I
Escola de CIências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) – Rio de Janeiro – Brasil.
*Professores da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) e Editores da Revista Estudos
Históricos (bernardo.hollanda@fgv.br; joao.maia@fgv.br; ynae.santos@fgv.br)
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 347-348, maio-agosto 2019 347
Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Ynaê Lopes dos Santos
A sociologia paulista é, por sua vez, objeto de alentada investigação original de William
Santos, Luiz Jackson e Max Gimenes, que destrincham aproximações e tensões entre escolas
e discípulos dessa conhecida tradição intelectual brasileira no texto “Roger Bastide, Antonio
Candido e a tese interrompida sobre o cururu”.
O questionamento da tradição eurocêntrica na historiografia das ciências humanas é
tema para Marcelo Rosa, no seu texto “Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea”, que reconstrói o debate iniciado por Akinsola
Akiwowo sobre as indigenous sociologies, a fim de evidenciar sua rentabilidade teórica para
a sociologia contemporânea.
A relação entre colonialismo e sociologia também surge no trabalho dos colegas por-
tugueses Frederico Ágoas e Cláudia Castelo, que refletem sobre as iniciativas portuguesas
de cooperação científica na África em “Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a
participação portuguesa na Comissão de Cooperação Técnica na África Subsaariana (CCTA)”.
A revista também selecionou textos que procuram repensar o legado de intérpretes clás-
sicos do pensamento brasileiro. Lorenna Zem El-Dine revisita a fração “verde-amarelo” do
modernismo paulista e suas conexões com o ensaísmo clássico brasileiro e latino-americano
em “Ensaio e interpretação do Brasil no modernismo verde-amarelo (1926-1927)”, enquanto
José Szwaco e Ramon Araújo lançam um olhar cuidadoso sobre a trajetória do conceito de
populismo na sociologia paulista e questionam paradigmas explicativos de inspiração bour-
dieusiana no artigo “Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do ‘popu-
lismo’ e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais”.
Por fim, Lidiane Rodrigues evidencia a força da análise sociologizante da vida intelectual
em seu estudo a respeito dos modos de apropriação dos intérpretes do Brasil por parte dos
acadêmicos marxistas, em artigo que tem por título “Amar um autor: os marxistas nas univer-
sidades brasileiras e os intérpretes do Brasil”.
A história da historiografia comparece com os dois textos que fecham o volume. Aryana
Costa questiona o apagamento da atuação universitária dos profissionais do Instituto Históri-
co e Geográfico de São Paulo no seu “Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso de
história da Universidade de São Paulo (1934)”, enquanto Victor da Silva, em “History of the
human sciences and Wallace’s scientific voyage in the Amazon: notes on historiographical ab-
sences”, reflete acerca das tensões entre história da ciência e outros campos historiográficos
por meio de uma análise dos trabalhos que se debruçaram sobre a clássica viagem de Alfred
R. Wallace pela Amazônia.
Acreditamos que este número da revista Estudos Históricos cumpra fielmente nossa voca-
ção de apresentar conhecimento inovador e interdisciplinar sobre o Brasil e o exterior, apontando
para a fertilidade de construirmos diálogos entre a história e as várias ciências sociais. Boa leitura!
348 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 348-348, maio-agosto 2019
Contribuição especial
Raewyn ConnellI* 1
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200002
* Professor Emerita, University of Sydney, and Life Member of the National Tertiary Education Union. She has taught in
several countries and is a widely-cited sociological researcher. Her recent books include The Good University; Gênero em
termos reais; Southern Theory; and Gender in World Perspective (with Rebecca Pearse). Her work has been translated into
nineteen languages. Raewyn has been active in the labour movement, the peace movement, and work for gender equality.
(raewyn.connell@sydney.edu.au) ORCID iD: http://orcid.org/0000-0001-8001-2375
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Raewyn Connell
Abstract
The history of sociology as a field of knowledge, especially in the English-speaking world, has been obscured by
the discipline’s own origin myth in the form of a canon of “classical theory” concerned with European modernity.
Sociology was involved in the world of empire from the start. Making the canon more inclusive, in gender, race,
and even global terms, is not an adequate correction. Important types of social knowledge, including movement-
based and indigenous knowledges, resist canonization. The turn towards decolonial and Southern perspectives, now
happening across the social sciences, opens up new perspectives on the history of knowledge. These can be linked
with a more sophisticated view of the collective production of knowledge by the workforces that are increasingly,
though unequally, interacting. Potentials for a more effectively engaged sociology emerge.
Palavras-chave: History of Sociology; canon formation; classical theory; colonialism; Global South.
Resumo
A história da sociologia como um campo de conhecimento, especialmente no mundo de língua inglesa, foi
obscurecida pelo próprio mito de origem da disciplina na forma de um cânone da “teoria clássica” relacionada
à modernidade europeia. A sociologia está envolvida no mundo do império desde o início. Tornar o cânone mais
inclusivo, em termos de gênero, raça e mesmo globais, não é uma correção adequada. Importantes tipos de
conhecimento social, incluindo conhecimentos baseados em movimentos e indígenas, resistem à canonização. A
virada para as perspectivas decolonial e meridional, agora acontecendo por meio das ciências sociais, abre novas
possibilidades sobre a história do conhecimento, que podem estar ligadas a uma visão mais sofisticada da produção
coletiva de conhecimento pelas forças de trabalho que estão interagindo cada vez mais, embora de forma desigual.
Potenciais para uma sociologia mais engajada têm emergido.
Palavras-chave: História da Sociologia; formação de cânones; teoria clássica; colonialismo; Sul global.
Resumen
La historia de la sociología como un campo de conocimiento, especialmente en el mundo de habla inglesa, ha
sido oscurecida por el mito de origen de la disciplina en forma de un canon de “teoría clásica” relacionada con
la modernidad europea. La sociología estuvo involucrada en el mundo del imperio desde el principio. Hacer que el
canon sea más inclusivo, en términos de género, raza e incluso a nivel mundial, no es una corrección adecuada. Los
tipos importantes de conocimiento social, incluidos los conocimientos basados en el movimiento y los indígenas, se
resisten a la canonización. El giro hacia las perspectivas decolonial y meridional, que ahora está ocurriendo en las
ciencias sociales, abre nuevas puertas en la historia del conocimiento. Estas pueden vincularse con una visión más
sofisticada de la producción colectiva de conocimiento por parte de las fuerzas de trabajo que están interactuando
cada vez más, aunque de manera desigual. Surgen potenciales para una sociología más comprometida.
Palabras clave: Historia de la sociología; Formación canónica; Teoria clásica; Colonialismo; Sur global.
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Canons and colonies: the global trajectory of sociology
O n the University of Cape Town’s upper campus, the main buildings stretch in rows
across a hill face on the lower slopes of the Table Mountain complex. The mountain is
the iconic backdrop to the city first called Kaapstad, and the upper campus buildings have a
magnificent north and east view across the Cape Flats towards the rest of Africa. The site was
donated by Cecil Rhodes, the mining magnate who, in the late nineteenth century, was the
most renowned and ruthless promoter of British imperial expansion in Africa. He had become
Prime Minister of Cape Colony, where he was responsible for coercive laws intended to force
much of the indigenous population off the land, and thus create a cheap labour force for white
farmers, mining companies and other businesses. In the 1930s, the University put up a bronze
statue of Rhodes at the edge of its main plaza.
In 2015, a campaign led by a group of Black students pressed the University to remove the
statue. Quickly becoming known as the “Rhodes Must Go” movement, the students portrayed
the statue as a symbol of continuing White domination of the University, and the failure of
the social “transformation” promised after Apartheid. The argument broadened to racial
inequality in the staffing and student intake of the University, and demands for Africanization
of the curriculum, the movement locating itself in an anti-colonial Black activist tradition,
invoking Frantz Fanon and Steve Biko.
Among the complexities of the situation were the fact that the University of Cape Town
had been a centre of White opposition to the Apartheid regime; that the country had been
governed since 1994 by an African National Congress leadership that had taken the whole
economy in a neoliberal direction, with widespread unemployment among the Black working
class, but growing privilege for a Black minority; that in the neoliberal knowledge economy, the
University of Cape Town was South Africa’s leading institution in the world rankings (indeed,
Africa’s leading institution); that the University’s curriculum was mainly derived from European
and North American knowledge systems, though some of its staff have been working with
alternative knowledges; and that the ANC government was under challenge from Black
nationalist politicians, whose rhetoric overlapped with that of the Rhodes Must Go movement.
The University authorities soon agreed to remove the statue, and Rhodes has gone.
But the debates and tensions triggered by the campaign remain, and they are important
far beyond Cape Town. They raise questions about the imperialist history of the knowledge
system on which universities all over the world depend – the “official knowledge”, as the
North American educationist Michael Apple (1993) has termed it, that is still embedded in
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Raewyn Connell
curricula, assessment practices, and the professional cultures of researchers and teachers. The
homogeneity of this official knowledge is an absolute presupposition of the global rankings of
universities that are now so important to policymakers and university managers.
In this essay, I will explore the postcolonial politics of official knowledge in the discipline
of sociology, and particularly contestations around the canon of “classical” texts and authors in
this discipline. My material comes mainly from Anglophone sociology. I’m aware that regional
trajectories in intellectual life differ. The course of events in the discipline is not the same in
post-communist countries as in countries with a continuous history of capitalism (Titarenko,
2012); nor is it the same in German-speaking countries as in English-speaking countries, even
in the same region. But I think the issues raised are widely relevant.
I n Anglophone countries, the history of sociology is usually taught to students along the
following lines. In the eighteenth and nineteenth centuries, society in Europe and North
America went through a deep transformation, involving the industrial revolution, the advent
of democracy, the rise of bureaucracy and the modern state, and cultural changes of which
the core was secularization. A small group of brilliant intellectuals interpreted this change and
developed a science of modern, as distinct from traditional, society. This was called sociology.
The key figures in developing this science were: Karl Marx, Émile Durkheim and Max Weber.
Their major texts, notably Capital, Suicide, The Division of Labour in Society, and Economy and
Society, form a canon widely known as Classical Theory. A less distinguished second team also
contributed, made up of Tönnies, Spencer, Sumner, Simmel and Pareto.
This is a crude account of the story, but, in truth, the textbook version of “that brilliant age
in which the foundations of the discipline were laid” (Bottomore and Nisbet, 1978: x) is often
as crude as this. And the idea of a founding trio as the core authors of Classical Theory has been
backed by scholarship that is far from crude, but is insistent. Jeffrey Alexander’s monumental
Theoretical Logic in Sociology (1982, 1983) after disposing of positivism, presented an account
of classical theory in the form of an intricate analysis of: Marx, Durkheim, and Weber. Anthony
Giddens’ influential Capitalism and Modern Social Theory (1971) analyzed the writings of:
Marx, Durkheim and Weber. Peter Baehr (2002) more recently elaborated a defence of the
idea of classics for sociology, endorsing the conventional list, though he does not like them to
be called a “canon”.
This picture of sociology spread around the world. A generation ago, Cora Baldock and
Jim Lally (1974: chapter 8) conducted a little survey of the theoretical perspectives adopted
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Canons and colonies: the global trajectory of sociology
by Australians and New Zealanders in the then-new academic discipline of sociology. Three
schools were named in the responses: Marxist, Weberian and Durkheimian. I do not want to
embarrass colleagues by naming bad examples, but I can assure the reader that more than
thirty years after that, an Australian introductory textbook could still introduce the subject
with a story of “The emergence of sociology as a discipline” entirely consisting of: 6 pages on
Durkheim; 10 pages on Marx; and 6 pages on Weber.
Twenty years ago, I wrote a long essay, Why is Classical Theory Classical? (Connell, 1997),
that raised severe doubts about the conventional story. I pointed to the work of historians who
had shown that the huge fame of Durkheim and Weber, and even the inclusion of Marx as a
sociologist, were late developments in the history of the discipline (Platt, 1995). Substantially,
the canonization of this trio occurred from the 1930s to the 1960s, mainly in the United States.
It was not a story that originated in the founding generations themselves. The sociologists of
that period regarded sociology as the creation of a much wider group of pioneers, and would
name two or three dozen of them in the Introductions to their treatises. Lester Ward, for
instance, in the 1897 edition of his Dynamic Sociology, listed 37 notable contributors to the
new science. His list included Durkheim and Tönnies, but neither Marx nor Weber.
The language of “social science”, devised by Comte in the first half of the century, was
taken up around the time of his death in the 1850s by a broad spectrum of reformers. A
generation later, their writing and activism was unevenly converted into an academic discipline
that enthusiastically claimed to be a full-blown empirical science. The claim to be a science
meant speculative generalizations supported by a large body of information. Therefore, the
recording and classification of social knowledge became a major part of the enterprise. Works
such as Spencer’s immensely influential Principles of Sociology, published in the 1870s, or
Sumner’s Folkways a generation later, took the form of huge accumulations of descriptions of
social institutions, customs and events.
Investigations of social conditions in the metropole certainly went into this brew, but the
gaze of Spencer, Ward, Engels, Letourneau, Tönnies, Durkheim, Sumner, Giddings, Hobhouse
and their colleagues ranged far beyond Europe. They gathered and incorporated vast amounts
of data from the colonized world, and from earlier periods of history. Sociology, to this
generation, was not only about industrializing Europe and North America, indeed it was not
primarily about modernity.
Rather, the conceptual framework of sociology was based above all on the contrast
between metropole and colony. The distinction of “primitive” from “advanced” social forms
underpinned the concept of social progress that governed the new science for its first two
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 353-367, maio-agosto 2019 353
Raewyn Connell
generations. And this was a distinction that was founded on the assumption of inherent
difference between colonized and colonizer. Its cultural roots go back as far as the contrast of
Christian and pagan in mediaeval European culture that legitimated the crusades in Palestine
and Prussia, and the fierce disputes that arose in Spain in the sixteenth century about the
legitimacy of overseas conquest.
It is not accidental that sociology as an organized knowledge project emerged at the high
tide of European imperialism, both overseas and overland. The doctrine of progress gave the
liberal intellectuals who created the discipline a solution to the severe cultural dilemma they
faced as beneficiaries of imperialism. By the 1890s, it was globally-sourced data, rather than
local empirical investigation, that legitimated “sociology” as a science. It is highly illuminating
to read the major attempt in the “classical” period to survey all sociological knowledge,
L’année sociologique, the periodical put out by Durkheim’s group. It abstracted reports from
all over the colonized world, and texts about other periods of history, in greater number than
texts about modern Europe. Themes of industrialization, class struggle, or bureaucracy were
very far from being dominant concerns.
In substance and in framing, sociology was global from the start. Though my sketch
is being replaced by more comprehensive narratives, the intimate relationship between
sociology and empire is abundantly proven by more recent historical research (Steinmetz,
2013). This connection was the fundamental fact suppressed by the internalist narrative of the
origins of sociology and the selection of Marx, Weber and Durkheim rather than, say, Spencer,
Letourneau and Sumner. The creation of a canon followed a turn towards the empirical study
of the metropole itself, after the crisis of Comtean sociology in the early twentieth century.
Sociology as a world-viewing intellectual project among the liberal bourgeoisie in Europe
collapsed in the face of war, working-class struggle, nationalism and authoritarian rule.
Sociology faced something of a legitimation crisis as it sought a home in the academic
ecology of US universities after the Great War. Re-interpreting it as a science of modernity, and
emphasising its roots in Great Books of the Western World, helped to handle this problem.
In truth, the Great Books had hardly any relation to the techniques of the Chicago School
fieldworkers and the Columbia School quantifiers, which, since the 1920s, were producing
the bulk of North American sociology. But the disconnection was mostly ignored – “theory”
and “method” were taught in separate courses. Ironically, it was a conservative version of
metropole-centred sociology that was exported to developing countries during the Cold War,
when creating social sciences on the American model in the global South became a project for
the US corporate foundations, the US universities and the American state.
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Canons and colonies: the global trajectory of sociology
The creation of a canon was not just the formulation of an idea. It became a material
practice, in the form of a pedagogy that made the study of “the classics” a required part
of the professional formation of an academic sociologist. A course on “Classical Theory”
became a standard element in the sociology PhD programmes of US universities (It was my
embarrassment at having to teach such a course that led to writing Why is Classical Theory
Classical?).
The pedagogy in that pre-Internet era required written material to work with, so the major
texts of chosen Fathers were excerpted, republished, and translated into English if they had
not previously been; a typical example is Wolff’s (1959) English-language version of Simmel.
An industry of exposition, celebration, biography, commentary and criticism arose, including
Alexander’s and Giddens’s books. The collectively sustained fiction of the Founding Fathers
could then be proudly presented to undergraduates, at the start of their studies (literally in
Chapter 1 of many Sociology 101 textbooks), as the truth about the origins of their discipline.
In Alan Swingewood’s A Short History of Sociological Thought (2000: x) “Marx, Weber
and Durkheim have remained at the core of modern sociology”, not just because they began
it, but because of their depth, rigour and ability to raise disturbing questions about modern
society. This was widely agreed. Alexander’s 1987 paper “The centrality of the classics”
(1987) can stand for many. As well as being texts of unexampled brilliance, the classics serve
a functional purpose for sociology. They allow – indeed invite – argument within a shared
space; the centrality of the classics makes interpretation a key form of theoretical argument, as
the classical texts become a battleground. That was a relatively economical argument. Arthur
Stinchcombe’s plaintive essay “Should sociologists forget their mothers and fathers?” (1982)
claimed that the classics served no less than six functions for sociology.
In Alexander’s version, strikingly, the defence of sociology’s foundation myth returns to
the terrain of religion, where the interpretation of a set of honoured texts – hermeneutics,
ijtihad – is a major form of scholarship and devotion. Yet the history of religion might remind
us that not only what the canon means, but what the canon itself is, can be a subject of fierce
dispute. There have been debates about which of the Gospels are to be accepted as valid;
whether the Apocrypha should form part of the Bible; and which of the hadiths are legitimately
taken as words of the Prophet Mohammed, peace be upon him.
In literature, the other great source of the contemporary idea of a canon, the sense in
which a set of classics is necessarily a back-formation, not a history, is even clearer. Attempts at
defining, purging, expanding and exploding the canon of English literature have been central
activities in Anglophone literary criticism for a long time (Showalter, 1977).
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 355-367, maio-agosto 2019 355
Raewyn Connell
I t is consistent with this broader history that the canon of classical sociology has been
subject to amendment. The Sociology 101 textbooks of the 1970s were usually satisfied
with Marx, Durkheim and Weber. That choice came under fire from feminist sociologists, who
became a large constituency in US sociology during the 1970s and 1980s, and who observed
that even the second team was entirely composed of blokes. African-American sociologists at
the same time observed that the canonical list was entirely White. We could also observe that
it was entirely bourgeois, though the inclusion of Marx gave symbolic protection from socialist
critique; during the student movement of the 1960s and 1970s, sociology even became the
main academic vehicle for new-left radicalism.
Textbook writers and their publishers were sensitive to these changes in the market, so
Sociology 101 textbooks in time amended the membership list. It is now common to see a
nice picture of Jane Addams included in the chapter about classical sociology; alternatively, a
picture of Harriet Martineau, heralded as the first sociologist woman (a concept that would
have surprised her). Neither Addams’s nor Martineau’s writings seem to have been canonized,
however. That did happen for the amendment made in response to African-American criticism.
W. E. B. Du Bois had certainly produced notable sociological books, and The Philadelphia
Negro and The Souls of Black Folk have now been reprinted and anthologised.
This has not happened, however, for Du Bois’s later writings. He did not stop writing
social analysis when he became deeply involved with the anti-colonial movement in Africa,
with peace campaigns, and eventually with the international communist movement. That
seems to me an important limit to his canonization. It highlights the way in which the textbook
version of the foundation story has remained focussed on the global North.
A more radical revision is suggested by nominating thinkers from outside the North
Atlantic world as founders. The most favoured is the eighth century (AH)/fourteenth-century
(CE) Maghrebian politician and intellectual Ibn Khaldun, nominated by Fuad Baali (1988) not
as a founder of sociology but as the founder of sociology. Ibn Khaldun’s Muqaddimah is indeed
a remarkable text, that canvasses issues of rural/urban social difference, state formation, and
the socio-cultural roots of political instability and change. Ibn Khaldun’s historical writing, to
which the Muqaddimah is a conceptual introduction, is, Yves Lacoste (1980) observed, a late
flowering of a broad historiographical tradition in Muslim culture. Ibn Khaldun turned this
tradition towards social analysis, partly in response to the political problems of his own society,
partly in a critique of over-rationalist strains in Islamic philosophy.
356 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 356-367 maio-agosto 2019
Canons and colonies: the global trajectory of sociology
Syed Farid Alatas (2006, 2010) has emphasised the creative potential of this turn. Crucially,
Alatas has shown how the Muqaddimah can provide a framework for understanding political
and religious change in other times and places, and has offered concrete examples. Alatas
has thus moved beyond the purely programmatic to the actual construction of sociological
analyses on non-Eurocentric foundations, with Ibn Khaldun’s work playing the background-
conceptual-framing role, which, in the Eurocentric picture of sociology, is played by the texts
of Marx, Weber and Durkheim.
Can this process be extended? Indeed, should it be? Do we want to reconstitute the
canon of classical sociology on a world, rather than a North-Atlantic, basis?
Some commentary on my book Southern Theory (Connell 2007) has seen it as an attempt
to do just that. I can understand how the book might be read that way, given the familiarity
of canonical thinking in sociology, and the fact that the book begins with a critique of the
European canon. And I don’t mind urging that some of the texts discussed in that book should
be read by any people who might think of themselves as sociologists. Solomon Tshekisho
Plaatje’s Native Life in South Africa, published four years after Durkheim’s Elementary Forms
of Religious Life and six years before Weber’s Economy and Society – and a better guide than
either of those to the realities of the early twentieth century – would be one.
Nevertheless my intention was not to identify a few decisive figures on whom traditions
could be built. It was to show the tremendous wealth of social analyses that were generated
by social change and social struggle in the colonial and postcolonial world, and the diverse
genres in which those ideas were expressed. The sources range from political pamphlets
through religious sermons to economic policy statements to ethnographies.
Southern Theory does nominate names, and discuss specific texts, in an attempt to show
all this concretely, to provide proof of the main claim. However, the text, unlike most books
with “theory” in their title, is not an attempt at a history or a formal treatise. It is, rather,
a narrative of the way in which one intellectual from a settler colony, carefully trained in
Eurocentric social science, encountered people, texts, stories and problems from beyond the
boundaries of that training.
Prophetically, one of the first postcolonial texts I ever read was C. L. R. James Beyond
a Boundary (1963), the best book written about cricket and possibly the best ever written
about sport. Much later I read James’s devastating history The Black Jacobins, which, in 1938,
said most of what ever needed to be said about the Enlightenment.The implication of this
approach was that, rather than being only a narrow group of classic-standard theorists, there
were many more out there of comparable insight and value. And it is not hard to nominate
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 357-367, maio-agosto 2019 357
Raewyn Connell
more. Southern Theory doesn’t discuss James himself, nor his even more famous Caribbean
contemporary Frantz Fanon. Nor does it discuss the social thought of Anouar Abdel-Malek,
Bina Agarwal, Samir Amin, He-Yin Zhen, Kartini, José Carlos Mariátegui, Kwame Nkrumah,
José Rizal (who is discussed by Alatas), Heleieth Saffioti, Sun Yatsen, or Leopoldo Zea, who
are, by no means, a second team. And we could go on – as I have done in Connell (2015a),
on gender theorists.
The recent discussion of global plurality in sociology, sponsored by the International
Sociological Association, has frequently taken the form of national narratives – see the valuable
collections edited by Patel (2010) and by Burawoy, Chang and Hsieh (2010). It is a genre to
which I have contributed, describing the formation of sociology in Australia (Connell, 2015b),
so I don’t consider it a bad approach. It provides extremely useful documentation, among
other things demonstrating the different sequences of intellectual history in different world
contexts. A local history can open up new themes that are little treated in Northern theory. An
example is the powerful awareness of space in the social imagination of the global periphery,
documented in João Maia’s (2008, 2011) research on the history of Brazilian social thought.
But there are limits to a national or even regional narrative, when many social and
intellectual developments in the world of imperialism and post-imperial globalization operate
on a much larger scale. There is a risk that the demonstration of plurality will fall back into
the dubious project, all too familiar in the global North as well as in the South, of trying to
define a unique national or regional style, ethos, spirit or philosophy (For an example from the
global North, see Levine (1995); for a shattering critique of this kind of project, see Hountondji
(1976)).
At the end of the day, re-working the canon, even de-colonizing the canon, and
substituting a more diverse group of classics, is not a methodologically adequate way of
relating to the history of social thought. When researching the disciplinary history of sociology,
we certainly need to study why a narrow canon and an unbelievable foundation story were
invented and institutionalized. But we should not make the same mistake again.
T here are important forms of social thought that resist being formulated in canonical terms.
A good deal of social analysis comes from radical social movements – labour movements,
feminism, gay liberation, landless people’s movements, movements of subordinated castes or
ethnic groups, nationalist movements, anticolonial movements. Some of these movements
358 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 358-367 maio-agosto 2019
Canons and colonies: the global trajectory of sociology
have given rise to important texts, such as B. R. Ambedkar’s 1936 Annihilation of Caste – a
powerful statement on the contradictions of Hindu society from the viewpoint of the oppressed
castes, including a sharp critique of Gandhi. But such statements have force mainly because of
the collective knowledge production behind them.
In recent years, the social sciences have been coming to terms with the fact that knowledge
formation and circulation is global, and is structured both by the history of imperialism and the
tremendous inequalities, as well as the technical possibilities, of the neoliberal world economy
today. Postcolonial, decolonial and Southern perspectives have been elaborated in fields
as diverse as education (Epstein and Morrell, 2012), history (Chakrabarty, 2000), disability
studies (Meekosha, 2011) and criminology (Aas, 2012), as well as sociology in general (Sitas,
2006; Rodríguez, Boatc ă and Costa, 2010; Reuter and Villa, 2010) and specific fields such as
industrial sociology (Keim, 2008).
The tendency of this literature as a whole, I would argue, is anti-canonical. It not only
demonstrates the inadequacy of a European/North American canon, but also reveals obstacles to
the crystallization of any alternative canon derived from the Third World, the Global South, or the
postcolonial world. For instance, Maria Lucia Maciel and Sarita Albagli (2009), exploring how the
idea of “knowledge societies” appears from the global South, show how generalized knowledges
fail in practice to circulate freely, while local linkages and tacit knowledge matter a great deal.
Following another line of thought, Marina Blagojevi ć (2009) observes how knowledge
formation in the Eastern European semi-periphery has been shaped by the de-development
of the region after the collapse of communism and the arrival of neoliberalism, creating
new conditions for knowledge workers. These conditions include privilege and funding for
knowledge workers who can attach themselves to institutions and agendas of the metropole.In
the postcolonial debates about knowledge, the concept of “indigenous knowledge” has played
a leading role. It is often the second term in a contrast with “Western science” or a Western
knowledge system, as in Catherine Odora Hopper’s valuable collection of African research and
theory, Indigenous Knowledge and the Integration of Knowledge Systems (2002). Indigenous
epistemology is the vital point of alterity and resistance in the “decolonial” agenda articulated
in Walter Mignolo’s discussions of Latin America (2005, 2007). Indigenous language, culture
and experience in Aotearoa New Zealand are the bases of Linda Tuhiwai Smith’s influential
critique of mainstream social science in Decolonizing Methodologies (2012).
This is a highly disputed arena; it is not easy to define what indigenous knowledge is. There
has been, for instance, a long and bitter debate about the concept of an “African philosophy”
that is supposedly embedded in the oral cultures of colonized African societies (Serequeberhan,
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 359-367, maio-agosto 2019 359
Raewyn Connell
1991; Hountondji, 2002). The idea of indigenous knowledge does get mixed up with nationalist
agendas and very dubious politics. For instance, the decision by the Mbeki government in South
Africa, which had launched an inspiring “African renaissance” agenda, to reject prevailing
interpretations of the HIV epidemic as being racist, and to define indigenous healing knowledge
as an adequate response to AIDS, led to a public health disaster (Cullinan and Thom, 2009).
Yet there can be no question that colonized peoples in all parts of the world did have
extensive knowledge of their worlds, and practices and technologies based on this knowledge.
Paulin Hountondji and his colleagues documented this for West African societies in the very
important book Endogenous Knowledge: Research Trails (1997), which ranges across the iron
industry, rainmaking, number systems, prediction, zoological nomenclature, pharmacology,
mental disorder and more.
Even those societies which European colonizers and sociologists regarded as the most
primitive of the primitive – the San and Khoikhoi in southern Africa, the Fuegian communities
in the far south of America, and the Aborigines of Australia (whose religion Durkheim insisted
was the most elementary form, despite the fact that he never set foot in Australia) – all had
environmental, biological and social expert knowledge and sustainable technologies, not to
mention complex religious cultures.
As Crossman and Devisch (2002) observe, discussions of indigenous knowledge have
focussed on two fields, agriculture and indigenous medicines; these are the topics of most
interest to transnational corporations and development agencies. I would emphasise, however,
that indigenous knowledge, which is far from static, also includes a large component of
social knowledge. Here are records of social processes, concepts for social relations, ways
of understanding social conflicts and techniques for resolving them, ideas about education.
And of course, knowledge of the social effects of colonization – for a striking example, read
Somerville and Perkins’ beautiful book Singing the Coast (2010).
This knowledge may make connections that are rare in Eurocentric sociology. The
representation of social relations in Australian central-desert Aboriginal art, for instance,
persistently connects people with the land, with particular places and specific routes across
the country. The land is an absolutely central issue in the contemporary, as well as pre-colonial,
culture and politics of Aboriginal communities (Yunupingu, 1997).
Indigenous knowledge resists being formulated in terms of a canon. Where it exists in
oral form, it may be captured in a written record, as Akinsola Akiwowo (1986) did in the
most-discussed case of using oral tradition (in this case, priestly poems in Yoruba language)
as the basis for writing a formal sociology. But oral traditions exist in many variants, and are
constantly re-composed in performance, so it is difficult to claim authority for any transcription.
360 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 360-367 maio-agosto 2019
Canons and colonies: the global trajectory of sociology
M illie Thayer (2010) has recently pointed to the importance of a vast and heterogeneous
“counterpublic” in which feminist thought about gender inequality circulates
internationally. It is characteristic of radical movements to be suspicious of hierarchies, not only
in the wider society, but within movements themselves. The Women’s Liberation movement,
to take one example, put much energy into decentralizing decision-making and collectivizing
representation.The tendency towards shared knowledge production is, according to a thesis
developed by the Arena group in Australia, a characteristic of intellectual workers in advanced
capitalism (Sharp, 1968; Sharp and White, 1968; Connell, 2016). In a society increasingly
dependent on organized knowledge, intellectual labour is increasingly collectivized. The
conditions of this labour emphasise lateral, not hierarchical, relations among intellectual
workers and thus promote a democratic consciousness.
A notable example is the work of the “dependency” school of thought in Latin America.
In the English-speaking world, this work has been mainly known through the writings of Andre
Gunder Frank (1967). As Fernanda Beigel’s (2010) admirable study of dependency theory
makes clear, the ideas were very much a collective product. Building on the pioneering work
in development economics of Raúl Prebisch and Celso Furtado, a group of younger scholars
centred in Santiago de Chile in the 1960s and early 1970s generated a multifaceted critique
of mainstream European/US-derived economics, of orthodox Marxism, and of the initial CEPAL
model of import replacement industrialization. It was the interactions across a number of
research groups spread through several institutions, rather than the centrality of any classics,
that enabled this remarkable surge of creativity.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 361-367, maio-agosto 2019 361
Raewyn Connell
Yet there are tendencies that work in favour of canons. Making a canon is an exercise in
creating celebrity, and both popular mass media and academic life show the power of celebrity
mechanisms (Krieken, 2012). Once a degree of celebrity is established, it can become self-
reinforcing, accumulating more and more “mentions” (as Twitter puts it) simply because the
person or text is already well-known.
I have had a minor experience of celebrity in one field of social science, as my work is
well known in the sub-field of gender research concerned with the study of masculinities. It
has become clear, looking at the way this work has been taken up, that being academically
“celebrated” is not equivalent to being well understood. A sharp narrowing of meaning,
soon amounting to distortion, accompanied the growth of recognition (Connell and
Messerschmidt, 2005).
I know that my work in this field has also assisted some really excellent research and
theorization by others. So the cumulative and self-corrective growth of knowledge does happen
in this field, as it should. But it is not the celebrity or canonical status of a text like Masculinities
(Connell, 2005) that produces this effect. It is the hard work and independent thinking of the
next wave of scholars and activists that does. The main effect of the celebrity is a spurious
authorization of over-simplified and mostly backward-looking accounts of the subject.
Thus, I have a reason to be sceptical of the claim that the “centrality of the classics” is good
for sociology. The mechanisms and consequences of celebrity certainly produced truncated and
distorted accounts of the work of Marx, Durkheim and Weber. The extraordinary interpretation
of Marx as a “conflict theorist” was one of them. Another was the way Anglophone sociology’s
Durkheim almost completely missed the real Durkheim’s urgent commitment to build secular
republican culture in the France of the Dreyfus affair.Yet a third misreading concerned Weber.
To a reader used to the bland Anglophone Weber as Founding Father, or the abstracted
intellect discussed by Alexander and Giddens, it was a revelation to discover Dr Max as an
ambitious, but vulnerable player in the tough world of National-Liberal politics, economic
policy struggles, imperial rule and militarism. As Keith Tribe (1989:12) drily remarked, “what
Weber has come to mean in the sociological tradition is often of dubious value”.
It is not only that canonization leads to boring misinterpretations of the life and work of
intellectuals who are, in their own right, exciting and certainly worth reading. The process also
has serious consequences for the discipline in which it happens. It implies that the creation of
sociological perspectives was a matter of isolated genius. The point that Beigel makes about
the creation of the dependentista framework also applies to the creation of sociology itself as
an academic field in the metropole, from the 1880s to the 1900s. This involved the collective
labour of a whole network of intellectuals, in five or six countries, creating departments,
362 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 362-367 maio-agosto 2019
Canons and colonies: the global trajectory of sociology
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Artigo
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200003
1
Este artigo reivindica, para além de seu argumento, a valorização do trabalho coletivo nas ciências sociais. Agradecemos ao
Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), especialmente à Elisabete Marin Ribas,
pela possibilidade de consultar o Acervo Pessoal Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, a ser aberto ao público a partir
de novembro de 2019. A carta transcrita, como anexo a este artigo, pertence a esse acervo.
I
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil.
*Mestrando em sociologia na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Fernando Pinheiro.
(william.santana.santos@usp.br) ORCID iD: hhtp://orcid.org/0000-0003-1037-9563
II
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil.
**Doutorando em sociologia na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Maria Arminda do Nascimento
Arruda. (maxluizgimenes@gmail.com). ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-0906-6837
III
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 368-388, maio-agosto 2019 368
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu
Resumo
Abordaremos neste texto as relações entre o programa de pesquisa em sociologia da arte liderado por Roger Bastide
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), nas décadas de
1940 e 1950, e a tese incompleta de Antonio Candido sobre o cururu. A análise desse material e de seu contexto
permite avaliar conexões teóricas e metodológicas entre os autores e flagrar as possíveis disputas em jogo nesse
momento em torno da sucessão do sociólogo francês na USP por seus discípulos e discípulas paulistas.
Abstract
In this text, we will discuss the relations between the research program in sociology of art led by Roger Bastide in
the Faculty of Philosophy, Letters and Human Sciences of the University of São Paulo (FFCL-USP) in the 1940s and
1950s, and the incomplete thesis Antonio Candido on the cururu. The analysis of this material and its context allows
us to evaluate theoretical and methodological connections between the authors and to pinpoint the possible dispu-
tes in play at that moment around the succession of the French sociologist at USP by his disciples from São Paulo.
Resumen
En este texto, las relaciones entre el programa de investigación en sociología del arte liderado por Roger Bastide en
la Facultad de Filosofía, Letras y Ciencias Humanas de la Universidad de São Paulo (FFCL-USP), en las décadas de
1940 y 1950, y la tesis incompleta de Antonio Candido acerca del cururu. El análisis de este material y de su contex-
to permite evaluar conexiones teóricas y metodológicas entre los autores y flagrar las posibles disputas en juego en
ese momento en torno a la sucesión del sociólogo francés en la USP por sus discípulos paulistas.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 369-388, maio-agosto 2019 369
William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson
E ste livro teve como origem o desejo de analisar as relações entre a literatura e a socie-
dade; e nasceu de uma pesquisa sobre a poesia popular, como se manifesta no Cururu
– dança cantada do caipira paulista –, cuja base é um desafio sobre os mais vários temas, em
versos obrigados a uma rima constante (carreira), que muda após cada rodada.
A pesquisa foi mostrando que as modalidades observadas em diversos lugares eram
verdadeiros extratos superpostos, em grau variável de mistura, mas podendo ser reduzidos a
alguns padrões. Estes correspondiam a momentos diferentes da sociedade caipira no tempo.
As modalidades antigas se caracterizavam pela estrutura mais simples, a rusticidade dos recur-
sos estéticos, o cunho coletivo da invenção, a obediência a certas normas religiosas. As atuais
manifestavam individualismo e secularização crescentes, desparecendo inclusive o elemento
coreográfico socializador, para ficar o desafio na sua pureza de confronto pessoal. Não era
difícil perceber que se tratava de uma manifestação espiritual ligada estreitamente às mudan-
ças da sociedade, e que uma podia ser tomada como ponto de vista para estudar a outra. Foi
assim que a coerência da investigação levou a alargar pouco a pouco o conhecimento da reali-
dade social em que se inscrevia o cururu, até suscitar um trabalho especial, que é este (o outro,
empreendido inicialmente, talvez nunca passe do estado de rascunho). (Candido, 1964: xii)
Os conhecidos parágrafos iniciais do Prefácio de 1964 de Os parceiros do Rio Bonito
recuperam o processo de mudança de objeto, do cururu para a sociedade caipira, que teria
se consumado no fim do primeiro semestre de 1953, como indicam anotações no esboço da
tese interrompida, intitulada inicialmente “Poesia popular e mudança social” e depois “Poesia
popular e estrutura social”. Ainda no Prefácio, Antonio Candido informa que teria começa-
do a redigir a nova tese em agosto de 1953 e que a teria concluído em setembro de 1954.
370 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 370-388 maio-agosto 2019
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu
Tais dados sugerem que Os parceiros foi escrito em apenas um ano, informação que pode
escapar ao leitor. A defesa ocorreria um mês depois, em outubro de 1954.
De todo modo, parece-nos significativo que a abertura de um livro apresente uma pes-
quisa anterior abandonada e seu argumento central. Vale a pena lembrar que as investigações
sobre o cururu foram iniciadas em 1947 (Candido, 1964: xiii) e que todas as idas a campo
anteriores a 1953 e o material nelas recolhido o tinham como motivação principal. Tudo isso
sugere a importância que a pesquisa interrompida tinha para o então professor assistente da
cadeira de sociologia II da Faculdades de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo (FFCL-USP).
O trabalho nunca foi concluído, mas partes foram publicadas, em particular o que deveria
ser a Introdução da tese. Segundo o último Índice contido na pasta, que reúne todo o material
que Antonio Candido havia produzido, a Introdução deveria conter dois capítulos: o primeiro
intitulado “O que é e como foi feito este trabalho” e o segundo chamado “Origem e evolução
de uma prática folclórica”. O primeiro foi modificado e incluído em Literatura e sociedade
(1965), como “Estímulos da criação literária”, terceiro capítulo da primeira parte do livro. As
menções diretas à pesquisa sobre o cururu foram excluídas, e a reflexão teórica e metodológi-
ca, ampliada e rearranjada. O segundo foi publicado como artigo na Revista de Antropologia,
com o título “Possíveis raízes indígenas de uma dança popular” (Candido, 1956). Os capítulos
centrais da tese, entretanto, não foram publicados nem mesmo como artigos.
O argumento da tese interrompida, resumido a posteriori pelo próprio Antonio Candido
na abertura de Os parceiros, revela ainda conexões diretas com o programa de pesquisa
liderado por Roger Bastide em sociologia da arte, cuja origem seria o curso sobre essa espe-
cialidade, ministrado por ele em 1939 e 1940. O livro Arte e sociedade (1945) foi, segundo as
palavras do autor em sua epígrafe, “um resumo muito sintético” desses cursos.
Abordaremos neste texto as relações entre o programa de pesquisa em sociologia da arte
liderado por Roger Bastide na FFCL-USP, nas décadas de 1940 e 1950, e a tese incompleta de An-
tonio Candido sobre o cururu. A análise desse material e de seu contexto permite avaliar conexões
teóricas e metodológicas entre os autores e flagrar as possíveis disputas em jogo nesse momento
em torno da sucessão do sociólogo francês na USP por seus discípulos e discípulas paulistas.
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Seria apaixonante a aplicação no Brasil da sociologia aos problemas da estética. [...] Eu deseja-
ria, neste livro, contribuir com alguns fatos, que servissem de material a uma sociologia da arte
brasileira, e isso no intuito, unicamente, de suscitar futuras pesquisas entre os estudiosos das
coisas da arte e trabalhar, assim, junto com eles, e com o mesmo amor, para a glorificação da
beleza do Brasil. (1941: 11-12)
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Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu
e também em seus estudos sobre religião, o autor defendia o método sociológico como eixo
da análise a respeito desses diversos objetos. A ambição mais ampla desse programa seria
perscrutar a sociedade brasileira e o processo de “interpenetração de civilizações” no qual
ela havia se formado (Peixoto, 2000). A arte e a cultura seriam, portanto, “porta de acesso”
privilegiada para entender esse país de raízes coloniais, escravista e “mestiço”.
Esse programa foi desenvolvido com base na cadeira de sociologia I, da qual Bastide
era catedrático, e incorporou professores assistentes e auxiliares de ensino dessa e de outras
cadeiras, que haviam sido seus alunos desde seu ingresso como professor na USP, em 1938.
Bastide ficara responsável por lecionar sociologias especiais – enquanto Paul Arbousse-Basti-
de ensinava sociologia geral –, entre as quais ofereceu cursos de sociologias estética, estética
brasileira, dos mitos, do folclore, entre outros. Ele publicou diversos trabalhos derivados de tais
cursos, como livros e artigos em revistas especializadas, bem como em jornais de grande cir-
culação. Além disso, estimulou seus alunos a realizarem pesquisas, propondo temas e objetos
que deveriam ser abordados na mesma perspectiva analítica. Esse foi o caso, por exemplo, da
pesquisa de Gilda de Mello e Souza sobre a moda, proposta por ele e notavelmente realizada
por ela (Braga, 1994).
Além desse trabalho, mesmo depois do retorno de Bastide à França, em 1954, várias
análises sobre cultura erudita de seus antigos alunos acionaram os pressupostos teóricos
e metodológicos do programa formulado pelo sociólogo francês. De tal modo, mesmo que
indiretamente, poderíamos interpretar como resultados do projeto coletivo liderado por ele os
trabalhos em sociologia da literatura de Antonio Candido, sobretudo A formação da literatura
brasileira (1959) e Literatura e sociedade (1965); os de Ruy Coelho, “Marcel Proust e nossa
época” (1941) e “Aspectos sociológicos da obra de Kafka” (1966); os de sociologia da arte
de Lourival Gomes Machado, Retrato da arte moderna no Brasil (1947) e O barroco mineiro
(1969); os estudos sobre cinema de Paulo Emílio Salles Gomes, em particular Humberto Mau-
ro, Cataguases, Cinearte (1974); os estudos sobre teatro de Décio de Almeida Prado, como
João Caetano: o ator, o empresário e o repertório (1972).
A novidade de todos esses trabalhos não está no objeto cultural, erudito ou popular, já
enfrentado por críticos e ensaístas, sobretudo no modernismo, e sim no esforço de inscrever
tais objetos na vida social por meio de uma análise sociológica.2
Sobre cultura popular, além do próprio Bastide – especialmente nos livros A psicanáli-
se do cafuné (1941) e Sociologia do folclore brasileiro (1959) –, realizaram trabalhos, mais
diretamente relacionados ao programa de pesquisa em questão: Oswaldo Elias Xidieh, em
Narrativas pias populares (1967) e Semana santa cabocla (1972); Lavínia Costa Villela, em
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William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson
Algumas danças populares do estado de São Paulo (1945) e “Festa do Divino em São Luiz do
Paraitinga” (1946); Florestan Fernandes, em “As trocinhas do Bom Retiro” (1944), Folclore e
mudança social na cidade de São Paulo (1961) e O folclore em questão (1978); Maria Isaura
Pereira de Queiroz, em Sociologia e folclore: a dança de São Gonçalo num povoado baiano
(1958) e Carnaval brasileiro: o vivido e o mito (1992); e Antonio Candido, em “Possíveis raízes
indígenas de uma dança popular” (1957).3
Nessa última seara, a perspectiva analítica de Bastide, estabelecendo uma distância en-
tre sua proposta e a dos folcloristas,4 extensiva aos trabalhos dos estudantes, pode ser apreen-
dida em passagens como a seguinte, retirada de A sociologia do folclore brasileiro:
Em todo o caso, o fato aí está: se as estruturas sociais se modelam conforme as normas cul-
turais, a cultura por sua vez não pode existir sem uma estrutura que não só lhe serve de base,
mas que é ainda um dos fatores de sua criação ou de sua metamorfose. O folclore não flutua
no ar, só existe encarnado numa sociedade, e estudá-lo sem levar em conta essa sociedade é
condenar-se a apreender apenas sua superfície. (1959: 2, grifos nossos)
Como dito, Bastide apostava na sociologia da arte (erudita e popular) como perspectiva
importante para problematizar as transformações em curso na sociedade brasileira. Desse
ponto de vista, um texto como “A sociologia do folclore brasileiro”, redigido em 1949, pode
ser entendido como esboço de interpretação das diversas expressões e substratos sociais do
folclore brasileiro a ser ampliado por uma série de pesquisas posteriores, com a expectativa de
“abrir terreno e formular hipóteses de trabalho, indicando novos campos de ação” (1959: 10).
A questão decisiva seria averiguar, nas diversas manifestações particulares, a função exercida
pelo folclore em processos de ajustamento, resistência e recriação social articulados às trans-
formações gerais em curso.
O autor investiga a formação do folclore brasileiro desde a colonização. A interação entre
os troncos português, africano e ameríndio, mais por justaposição do que por fusão, caracteri-
zaria esse processo. O primeiro seria predominante, mas teria ocorrido também a assimilação
de tradições negras e ameríndias, frequentemente mobilizadas, para o autor, em resistência à
dominação branca. Em relação às tradições ameríndias, Bastide avaliava com otimismo suas
possibilidades de sobrevivência:
As civilizações originais ameríndias eram assim destruídas, mas delas subsistiam pelo
menos alguns elementos motores. Alguns desses jogos conservaram-se até agora e consti-
tuem um dos primeiros elementos do folclore brasileiro. O sairé, o cateretê, a dança da Santa
Cruz, o cururu são testemunhos desse sincretismo entre o catolicismo jesuíta e os jogos dos
indígenas. (1959: 17)
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Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu
Do ponto de vista sociológico, o que o interessava em primeiro plano não eram as ma-
nifestações em si mesmas, mas o enraizamento nos grupos sociais, necessariamente envolvi-
dos em sua transmissão e transformação. Essa abordagem se manifesta num texto posterior
centrado no cururu – “O ‘cururu’, expressão da alma paulista” –, publicado em O Estado
de S. Paulo. Nele, Bastide chama a atenção para a centralidade do cururu nas origens e nas
transformações da sociedade paulista, em geral, e caipira, em particular, daí o título do artigo.
Vejamos um parágrafo do texto:
Remontando-se assim o curso da história, o “cururu” não permanece coisa morta, um fragmento
de folclore cristalizado, vai evoluir, pois, cheio de vida, nunca perde sua força dinâmica,
adaptando-se a todas as transformações da estrutura social, o que bem prova o seu caráter
de expansão do gênio paulista – o qual se conserva o mesmo através de todas as mudanças.
A urbanização do Estado de S. Paulo, com efeito, não destruirá o “cururu”, como no caso de
tantas formas do folclore, particularmente o folclore africano. Apenas essa urbanização vai fazer
que apareça ao lado do “cururu” rural, um novo tipo de “cururu”, o “cururu” urbano. (1951: 5)
A análise subsequente, realizada por Bastide, a respeito dos dois tipos de cururu e dos
significados das mudanças é retomada e aprofundada na tese interrompida de Antonio Can-
dido (1953), como veremos adiante, o que poderia sugerir que o último se apoiara na formu-
lação anterior do francês. Mas sugerimos que houve a construção compartilhada entre mestre
e discípulo de uma interpretação sociológica sobre o cururu, lembrando que Candido já tra-
balhava com o cururu desde 1947. Na sequência do texto, avançaremos com uma abordagem
atenta ao contexto institucional e às relações travadas entre ambos a fim de subsidiar uma
discussão sobre os possíveis motivos da interrupção da tese por Antonio Candido.
O programa de pesquisa liderado por Roger Bastide teve como suporte vínculos pessoais
muito próximos, envolvendo trabalho e amizade, entre ele e seus alunos e alunas.
Além da bibliografia (Braga, 1994; Pontes, 1998; Peixoto, 2000; Garcia, 2002; Pulici, 2008),
inúmeros depoimentos sugerem que o sociólogo francês logrou construir, desse modo, um
ambiente de trabalho muito profícuo. Em alguns casos, com Florestan Fernandes, Maria Isaura
Pereira de Queiroz, Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido, as relações eram muito estrei-
tas, embora houvesse tensões entre mestre e discípulos e entre estes, envolvidos nas disputas
pela progressão na carreira acadêmica, inerentes a esse contexto.
Além das relações institucionais, das pesquisas orientadas, das influências teóricas, o
casal Gilda e Antonio Candido traduziu muitos trabalhos de Bastide – livros, artigos científicos,
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artigos para jornais –, assim participando diretamente, quase como coautores, da produção
intelectual do sociólogo francês (Candido, 1997: 12), o que teria enorme impacto no trabalho
e no pensamento de ambos, como atestam trechos de dois depoimentos de Antonio Candido:
Além da produção escrita, foi grande a sua influência através do contato direto com amigos e
alunos. Eu, pessoalmente, lhe devo muito e às vezes me surpreendo relendo a anos de distância
algum escrito dele, ao verificar até que ponto certas ideias que julgava minhas são na verdade
não apenas devidas à sua influência, mas já expressamente formuladas por ele.
[...]
Os pontos de vista de Bastide se incrustaram de tal modo na minha mente, que perdi a noção
do quanto lhe devo” (1978, 1990 e 1996: 99 e 105).
A trajetória incomum de Antonio Candido foi favorecida, inicialmente, por sua origem
social elevada. Não obstante, em função das circunstâncias nas quais se desenvolveu sua
carreira, tensões diversas – crítica literária/sociologia, neutralidade política/militância, crítica
estética/crítica sociológica – se relacionam com seu dilema central: decidir-se profissionalmen-
te pela sociologia ou pela crítica literária. Antonio Candido nasceu em 1918, no Rio de Janeiro,
mas toda a sua infância transcorreu no interior de Minas Gerais. Seu pai, médico, e sua mãe
descenderam de famílias tradicionais dos dois estados5 e tiveram acesso privilegiado à cultura
própria dos círculos intelectualizados das oligarquias estaduais.
Desse modo, obteve educação elevada desde criança. Sua iniciação literária foi precoce,
mas adquiriu formação intelectual sistemática, sobretudo no curso de ciências sociais da FFCL-
-USP (1939-1941), em especial sob o ensino de professores da missão francesa. Na faculdade,
formou com outros jovens estudantes o Grupo Clima,6 do qual fizeram parte Lourival Gomes
Machado, Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes e Gilda de Moraes
Rocha (posteriormente Gilda Rocha de Mello e Souza), com quem se casou. A experiência deu
projeção a todos no cenário intelectual paulista da década de 1940 (e seguintes). A aliança
matrimonial, em 1943, foi decisiva profissionalmente ao casal, apesar de ter impulsionado
mais a ele.7 No mesmo ano, Antonio Candido assumiu o cargo de primeiro assistente de
Fernando de Azevedo, na cadeira de sociologia II da FFCL-USP, na qual permaneceu até 1958.
Quase ao mesmo tempo, passou a escrever semanalmente na Folha da Manhã (1942-1945)
e, depois, no Diário de São Paulo (1945-1947), ingressando no círculo prestigioso dos críticos
que escreviam para os grandes jornais de São Paulo e Rio de Janeiro.8
A derrota no conhecido concurso na FFCL-USP para a cadeira de literatura brasileira em
1945 – vencido por Mário Pereira de Souza Lima –, apesar do seu excelente desempenho e
de sua aprovação, que lhe garantiu o título de livre-docente em letras, o levaria a apostar mais
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Procuraremos assim sugerir de que modo a literatura erudita se desprende, com as suas
características próprias, da literatura popular – sem assistir a todo o processo, mas apenas
indicando a sua direção e parando por assim dizer no limiar da literatura erudita (Tese inédita:
sem numeração).
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Antes que nos façam a censura de que o assunto é demasiado restrito, limitando-se a um dos
traços do folclore paulista, lembremos que em bom método científico devemos começar pelos
casos mais simples. Neles, com efeito, é possível delimitar e de algum modo reduzir os fatores,
baseando a explicação na série menos complexa de fenômenos – sobretudo em disciplina como
esta, caracterizada pela intervenção de tantos imponderáveis, variáveis sociais e pessoais que
tornam bastante precária a pretensão de causalidade que não se revestir da devida modéstia
metódica. E aos que disserem que o tema é não apenas restrito, mas tênue, diremos que se
para as andorinhas de Machado de Assis um desvão do telhado é o mundo, também o é para o
sociólogo qualquer desvão de realidade, contanto que possa, por meio dela, construir uma visão
coerente das coisas (Tese inédita: sem numeração).
A tese interrompida
S abemos que a tese foi interrompida e finalizaremos este artigo especulando as possíveis
razões dessa decisão. A mudança de objeto, do cururu para a sociedade caipira, teria sido
uma decisão tomada, segundo o autor, pela falta de conhecimento da linguagem musical,
que empobreceria o trabalho. Acreditamos que tal decisão possa ter sido também afetada por
outros motivos.
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Uma interpretação recente sugere que a alteração de percurso teria como referência a
militância política de Antonio Candido no Partido Socialista Brasileiro (PSB), cuja direção nacio-
nal teria solicitado às seções estaduais pesquisas sobre o problema agrário brasileiro, a fim de
subsidiar a atuação do partido no debate parlamentar sobre a reforma agrária, iniciado em 1948
(Gimenes, 2018).11 Nessa direção, Os parceiros enfrentaria mais diretamente essa conjuntura
política do que a tese interrompida sobre o cururu. Outro motivo, de ordem institucional, pode
ser associado a esse de ordem política. Embora não seja possível alcançar uma resposta definiti-
va para esse problema, sugeriremos, baseados em alguns indícios, que esse desvio de rota teria
também relação com as disputas em torno da sucessão de Bastide na cadeira de sociologia I.
O problema dessa sucessão foi discutido pela bibliografia, sobretudo pelas análises in-
teressadas nas clivagens de gênero vigentes nesse período inicial de institucionalização das
ciências sociais em São Paulo (Pontes, 1998; Spirandelli, 2011; Silva, 2016), enquanto vigora-
va o sistema de cátedras. Nessa direção, a disputa pela cátedra teria se dado entre Gilda de
Mello e Souza, então a primeira assistente de Bastide nessa cadeira, e Florestan Fernandes, à
época o segundo assistente de Fernando de Azevedo na sociologia II.12
Gostaríamos de aventar a possibilidade de que Antonio Candido também nutrisse a expecta-
tiva de ser o sucessor de Bastide e que, mesmo sendo falsa essa hipótese, o desfecho dessa dispu-
ta institucional, a favor de Florestan, teria afetado decisões profissionais e intelectuais futuras de
Antonio Candido, como veremos a seguir. Sugerir a existência de uma disputa entre ambos nesse
episódio não implica desconsiderar a forte amizade que nutriam um pelo outro. Se competiram,
foi em função das constrições do regime de cátedra, que restringia demais as possibilidades de
progressão na carreira, mesmo para os jovens professores e professoras mais destacados.
A decisão tomada por Bastide, de indicar Florestan Fernandes para substituí-lo na cáte-
dra, teria se tornado pública no fim de 1952 e, segundo o depoimento de Florestan, provocado
um mal-estar em relação a Fernando de Azevedo, então o catedrático da sociologia II:
Durante o longo período em que nós convivemos, fui assistente dele de 45 até 51,52, não me
lembro direito agora. A partir de certo momento, o Bastide me convidou para passar para a ca-
deira dele, trocando de segundo assistente da cadeira II para ser primeiro assistente da cadeira
I. Foi um pouco difícil a transferência, tive até atritos com Fernando de Azevedo, porque ele
ficou ciumento, mas a questão foi aprovada no Departamento [...] Acontece que o Bastide disse
que a escolha que ele ia fazer era do seu sucessor e que ele não escolheria outra pessoa senão
eu, que ele havia me consultado, que eu estava de acordo, então o Departamento tinha que
decidir. O Departamento decidiu a favor da transferência e o Fernando de Azevedo realmente
não gostou, não ajudou nada na transferência e eu tive até grande conflito com ele por causa
disso. Mas, depois, tudo terminou bem porque somos duas pessoas de bom caráter e os atritos
foram superados sem ressentimento (2015: 193).
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Éramos subordinados e uma espécie de auxiliares que [Fernando de Azevedo] via com muito
egoísmo. Ele não estava lá querendo que fizéssemos carreira. Ele próprio queria fazer nossa car-
reira, queria promover a nossa ascensão no curso, e esta era uma matéria na qual não se podia
mexer. Não posso contar alguns exemplos, para ilustrar, mas ele estava decidido que seríamos
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professores, e quem nos levaria as cartas seria ele. Quer dizer, absorveu ambições que deveriam
ser nossas e isso, eu notei, chegava até a nos prejudicar, porque, é claro, nem eu nem Antonio
Candido somos pessoas de ambição destituída de valor. Tínhamos um senso de valor e havia
um conflito de geração. Essa relação que ele teve conosco era nitidamente amorosa, mas ao
mesmo tempo era uma relação de posse, que ditaria uma espécie de capacidade dele em decidir
o nosso destino. (1995: 191-192)
Florestan Fernandes faria, em 1953, sua livre-docência, possivelmente para dirimir qual-
quer dúvida na comparação entre as credenciais dos candidatos. Lembramos que De todo
modo, em 27 de novembro de 1952 seria transferidoe (Sacchetta, 1996)
Apesar de não ser possível comprovar a hipótese de que o desvio de rota no doutorado
de Antonio Candido tenha sido afetado por esses acontecimentos, ela ganha força se lembrar-
mos que a decisão se deu no calor da hora, sob a impacto da escolha de Bastide. Isso pode ter
acontecido mesmo que Antonio Candido não tivesse a pretensão explícita de assumir a cátedra
e que sua reação de mudar de objeto, por essa razão, tenha sido inconsciente. Vale lembrar a
continuidade direta que havia entre a tese sobre o cururu e o programa de Bastide, do qual Os
parceiros o afastaria. Além disso, a mudança o aproximaria do debate sobre o desenvolvimento
capitalista, que, desde o pós-guerra e a criação da Comissão Econômica para a América Latina
e o Caribe (Cepal), se constituiu como tema central das ciências sociais em toda a América
Latina. A intenção de se aproximar dessa discussão pode ter sido também uma motivação para
a mudança de objeto. Ao examinar as transformações da sociedade caipira diante do avanço da
economia de mercado, Antonio Candido enfrentou essa questão pelo avesso.
Nos anos seguintes ao doutorado de Antonio Candido (1954) e à nomeação de Florestan
como professor contratado (1955) à frente da cátedra de sociologia I, Fernando de Azevedo
se esforçaria para remediar a situação de Antonio Candido, para quem a posição de assistente
se tornara insuficiente. Esse foi um dos motes das cartas trocadas por Fernando de Azevedo e
Antonio Candido em 1957. Fernando de Azevedo propôs inicialmente a recriação da cadeira
de sociologia da educação,15 que acabou não vingando. Ele enviou a Antonio Candido uma
cópia do documento que redigiu no dia 7 de agosto de 1957, autorizado pelo Conselho do
Departamento de Sociologia e Antropologia, para ser enviado à Congregação da Faculdade.
Tal documento propunha duas medidas a serem tomadas visando à progressão da carreira de
Antonio Candido:
Certamente o nome mais indicado para essa disciplina [Sociologia da Educação], a ser criada, é
o Professor Antonio Candido. Não há, neste Departamento, duas opiniões a respeito. Mas, como
a criação de uma disciplina depende de lei e a marcha de um projeto de estatuto legal, por
maior empenho que se ponha em apressá-la, é sempre um pouco lenta, propõe o Conselho de
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Anexo 1
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Notas
1 Em A sociologia da arte, Nathalie Heinich atribui explicitamente a Roger Bastide o papel de precursor da
“sociologia da arte de pesquisa”, constituída em torno de Pierre Bourdieu, ao mobilizar um “recorte moder-
no” que enfoca relações entre produtores, amadores e instituições, ultrapassando a disjuntiva entre arte e
sociedade, propondo o entendimento da “arte como sociedade” (2008: 63-64).
2 Para uma análise detida das relações entre Roger Bastide e os modernistas, em especial com Mário de
Andrade e Gilberto Freyre, ver Peixoto (2000).
3 Os trabalhos sobre cultura erudita foram realizados sobretudo por homens de origem elevada, ao passo que
os trabalhos sobre cultura popular foram feitos por homens com origem popular/média e mulheres.
4 Sobre o movimento folclorista, ver Vilhena (1997).
5 Sobre a origem familiar de Antonio Candido, ver Ramassote (2013).
6 O nome do grupo derivou da revista Clima, que editaram entre 1941 e 1944. Sobre a revista e o grupo, ver
Pontes (1998).
7 Sobre os dilemas de gênero enfrentados por Gilda de Mello e Souza e suas colegas de geração na FFCL-USP,
ver: Corrêa (1995), Arruda (1995), Pontes (2006), Spirandelli (2011) e Silva (2016).
8 Sobre a crítica de rodapé de Antonio Candido, ver Ramassote (2011) e Rodrigues (2018).
9 Além da tese Os parceiros do Rio Bonito, constituem esse conjunto os trabalhos “Opinião e classes sociais
em Tietê” (1947), “O nobre, contribuição para seu estudo” (1948), “Sociologia, ensino e estudo” (1949), “The
Brazilian Family” (1951), “Euclides da Cunha sociólogo” (1952), “A estrutura da escola” (1953), “Informação
sobre a sociologia em São Paulo” (1954), “A vida familial do caipira” (1954), “Papel do estudo sociológico
da escola na sociologia educacional” (1955), “L’état actuel et les problèmes les plus importants des étu-
des sur les sociétés rurales du Brésil” (1955), “Possíveis raízes indígenas de uma dança popular” (1956) e
“A sociologia no Brasil” (1957).
10 Em Psicanálise do cafuné, no capítulo “Dos duelos de tambores ao desafio brasileiro”, há uma discussão
sobre o processo de individualização que acompanharia essa passagem.
11 A favor dessa hipótese, vale mencionar que Antonio Candido registrou no Anuário da FFCL-USP (1939-
1949), publicado em 1953, que já em 1948 desenvolvia pesquisa sobre “Os meios de vida num grupo rural
do município de Bofete” (1953: 657).
12 Muitas mulheres foram preteridas por homens nas disputas pela cátedra até 1969, quando esse sistema foi
abolido. Pensando na cadeira de antropologia, Mariza Corrêa o qualificou como “patriarcal”: “Sistema hierár-
quico, o de cátedra era também patriarcal: se os titulares da cadeira foram todos homens, as assistentes eram
todas mulheres” (1995: 54). Em relação à FFCL, Maria Arminda do Nascimento Arruda resumiu a participação
das mulheres nos seguintes termos: “No período privilegiado por nós, 1939-1973, término do regime antigo, as
mulheres ganhavam visibilidade crescente, mas não galgavam o nível mais alto da carreira” (1995: 219).
13 É um dado instigante que os primeiros doutorados em sociologia tenham sido concluídos por mulheres.
14 Em carta a Fernando de Azevedo, datada de fevereiro de 1949, Roger Bastide manifesta preocupação com
sua substituição próxima e sinaliza a preferência por Florestan Fernandes. Em cartas posteriores, consultadas
no Arquivo do IEB-USP, o assunto não é mais tratado.
15 Os dois textos de sociologia da educação de Antonio Candido foram publicados em 1953 e 1955.
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Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu
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Artigo
Marcelo C. RosaI*
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200004
1
Texto originalmente apresentado no 42º Encontro Anual da Assosiação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais (Anpocs). A versão submetida à revista se beneficia dos comentários críticos do Grupo de Trabalho Teoria Social:
Agendas, Desafios e Perspectivas. Agradeço às integrantes do Laboratório de Sociologia Não Exemplar da Universidade
de Brasília (UnB), a Antonádia Borges, por sua atenta leitura, e aos pareceristas anônimos. A pesquisa foi realizada com
recursos do Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
I
Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF, Brasil.
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Marcelo C. Rosa
Resumo
O texto busca reconstruir a história e a recepção internacional do debate africano centrado na noção de sociolo-
gias indígenas, liderado por Akinsola Akiwowo, no âmbito da Associação Internacional de Sociologia. Para além
de reconstituir os passos do próprio autor na construção e na apresentação de seu argumento, busca-se também
reconstruir os sentidos de sua interpretação nas discussões dominantes sobre teoria e geopolítica sociológica. Os
dois principais polos interpretativos seriam a constatação crítica de seu caráter ideográfico e limitado em termos
conceituais, de um lado, e a defesa geopolítica de sua importância por ter origem fora da Euroamérica, de outro.
Nenhuma das tendências considera, porém, o projeto bem-sucedido. Como conclusão, o texto propõe que uma
leitura mais profícua da contribuição das “sociologias indígenas” para a sociologia global se daria por meio de seu
reconhecimento como alternativa teórico-metodológica para a expansão do universo ontológico do pensamento
sociológico contemporâneo.
Palavras-chave: Teoria social; Sociologias indígenas; Teorias do sul, Sociologias do sul; Sociologia africana;
Ioruba.
Abstract
The paper aims to reconstruct the history and international reception of the African debates on the “indigenous
sociologies” lead by Akinsola Akiwowo in the International Sociological Association congresses and publications. The
reconstitution of its reception in the debates framed under the association of theory and geopolitics demonstrate
a polarization between: a) a critical appraisal of the limits of a supposed ideographic conceptual construction; b) a
geopolitical defense of initiative since it was assembled outside de Euro-Americas. Both perspectives though tend
to consider Akiwowo’s project as a failure for different reasons. The conclusion offers an alternative interpretation
of the contribution based on the reading of the project as a theoretical-methodological expansion of the available
ontological universe of the hegemonic sociological thought.
Keywords: Social theory; Indigenous sociologies; Southern Theories, Sociologies of the South; African socio-
logy; Yoruba.
Resumen
El texto busca reconstruir la historia y la recepción internacional del debate africano centrado en la noción de socio-
logías indígenas, liderado por Akinsola Akiwowo, en el marco de la Asociación Internacional de Sociología. Además
de reconstituir los propios pasos del autor en la construcción y presentación de su argumento, también se busca
reconstruir los significados de su interpretación en las discusiones dominantes sobre teoría sociológica y geopolítica.
Los dos polos interpretativos principales serían la observación crítica de su carácter ideográfico y limitada en térmi-
nos conceptuales, por un lado, y la defensa geopolítica de su importancia porque se origina fuera de Euroamérica,
por el otro. Ninguna de las tendencias, sin embargo, considera el proyecto exitoso. Como conclusión, el texto pro-
pone que una lectura más fructífera de la contribución de las “sociologías indígenas” a la sociología global sería a
través de su reconocimiento como una alternativa teórico-metodológica para la expansión del universo ontológico
del pensamiento sociológico contemporáneo.
Palabras clave: Teoría social; Sociologías indígenas; Teorías y sociologías del sur; Sociología africana; Yoruba.
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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea
Introdução
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Marcelo C. Rosa
C omo primeiro passo para apresentar este debate, procurarei recuperar as pistas deixa-
das pela obra de Akiwowo para a construção de uma narrativa da sociologia africana
e, posteriormente, ioruba. Os primeiros textos traçáveis do autor para o debate internacional
em inglês datam de década de 1960 e lidam com os dilemas das divisões étnicas e tribais no
Estado nigeriano recém-formado. O texto intitulado “The Sociology of Nigerian Tribalism” soa
como um representante clássico do tipo de intervenção sociológica que poderia ser encontra-
do em diversas partes do chamado sul global naquele momento.
Diante dos desafios locais para pensar a vida coletiva “moderna”, a sociologia clássica
europeia é convocada para fornecer coordenadas espaçotemporais nas quais se poderia clas-
sificar e hierarquizar a existência nacional africana ancorada em questões étnicas:
As there develops a common value system-an overriding national ideology-as jobs, money, and
the means of acquiring them become accessible to all, tribalism, most likely, will give way
to what Emile Durkheim calls the “collective unconscious”, and a National Way of Life.
(Akiwowo, 1964: 163)
No Brasil, com Florestan Fernandes; na Índia, com T. S. Madan; no México, com Gonzá-
lez-Casanova e Stavenhagen; ou na Malásia, com S. H. Alatas, a consolidação do Estado-na-
ção moderno e seu sistema de valores se erguia como problema intelectual dominante nas
ciências sociais naquele período. Nada seria mais adequado do que recorrer aos princípios
analíticos e classificatórios usados nas matrizes coloniais que forjaram sua vida coletiva e
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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea
Por outro lado, pode ser que os nigerianos se dando conta dos absurdos e do preço alto do
tribalismo busquem melhores soluções por meio da criação de instituições que facilitem a cir-
culação elementos que ocupem os lugares de classe, status e poder, independentemente de sua
religião, clã ou dialeto. (Akiwowo, 1964: 163)
Não existem sinais aparentes para demonstrar que os cientistas sociais africanos, como raras
exceções, deixarão de operar como mentes cativas, ou que as teorias e técnicas do modo de
conhecimento ocidental internalizado por eles será substituído por outros também validos, mas
autenticamente africanos (Akiwowo, 1976: 201)
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 393-408, maio-agosto 2019 393
Marcelo C. Rosa
No mesmo texto, Akiwowo adverte sobre outro problema. O controle do Estado e seus
burocratas sobre a produção sociológica nas universidades africanas tenderia a postergar in-
definidamente a emergência de uma cultura acadêmica vibrante e independente (Idem: 201).
As contribuições posteriores de Akiwowo seguiram essa tendência, buscando refletir
sobre o papel dos cientistas sociais e da sociologia na Nigéria e em toda a África (1980).
Em capítulo de livro publicado também pela ISA, Akiwowo (1989), utilizando o trabalho do
queniano Ali Mazrui (1978) sobre agenda dos intelectuais africanos, apresenta a definição de
indigenização intelectual como um trabalho para reduzir a estrangeirização de ideias, concei-
tos, teorias e metodologias. Akiwowo defende, no entanto, que a noção deveria ser expandida
para utilizar ideias, valores, conceitos, mitos, história oral e cosmologias com suas sensibilida-
des para experiências sociais africanas no lugar daquelas importadas, mesmo quando estas já
não sejam vistas como estrangeiras pela comunidade acadêmica.
Segundo ele, a contribuição dessas fontes pouco usuais estaria mais próxima daquilo
que Mazrui (1978) denominou em inglês de derationalization, ou seja, o desenvolvimento
de um modo original e específico de embasar, argumentar e explicar fenômenos sociais. Para
Akiwowo (1989), sociólogos africanos deveriam primeiro se apropriar das principais ferramen-
tas da sociologia euro-americana – “endogeneizar”, nas palavras de Hountondji (1997), para
posteriormente desenvolver seu modo próprio de “desracionalizar” o modo hegemônico de
narrar a vida coletiva.
Desracionalizar, em linhas gerais, significaria a possibilidade de estudar e descrever a
vida coletiva fora do padrão lógico argumentativo que orienta a vida ocidental dominante
na sociologia internacional. Nessa proposta, sugerida por Mazrui (1978), a forma narrativa
estaria obrigatoriamente acompanhada da experiência existencial dos sujeitos. Nos termos
do debate contemporâneo, que será trabalhado na parte final deste texto, ela estaria ligada a
uma ontologia específica e a traços que se observam no uso do termo “sociologias indígenas”
como apontado a seguir.
P aralelamente aos textos mais gerais sobre o lugar da sociologia na África, podemos
observar, nas publicações traçáveis de Akiwowo no fim da década de 1970, a introdução
do conhecimento ioruba como fonte de inspiração teórico-conceitual. Em artigo que surgiu
primeiro como conferência, em 1979, e publicado em 1983, o nigeriano introduziu na sua
sociologia a análise da poesia oral ioruba/Ifa, que viria a ser o corpus analítico dos textos
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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea
Aparentemente, apesar dos diferentes e intensivos estudos sobre a motivação nas sociedades
ocidentais, nenhuma teoria ou explicação ontológica foi encontrada para responder pelos di-
versos aspectos do tema. E a possibilidade de que esta teoria venha a ser descoberta parece
remota. (Morakinyo e Akiwowo, 1981:31)
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Marcelo C. Rosa
teóricas especiais das sociologias da região. Na passagem abaixo, ele revela desconforto com
uma indesejável dependência conceitual das sociologias africanas e sua posição diante da
produção universalista euro-americana.
No mesmo texto, no entanto, como ressaltam Adesina (2002), Lawuwyi e Taiwo (1990)
e Archer (1991), o autor oscila entre encontrar equivalentes dos termos “sociedade”, “grupos
sociais” e “processos sociais” da sociologia ocidental no vernáculo africano e encontrar ele-
mentos próprios que os diferenciariam da matriz ocidental.
Por que não utilizar conceitos africanos de sociedade, grupos sociais, processos sociais e seme-
lhantes, derivados de maneiras africanas de codificar a realidade, para chamar a atenção para
outros elementos característicos na matriz disciplinar da sociologia? (Idem: 6)
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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea
O que pode ser observado é a projeção dos princípios de sociação da poesia ioruba para
a formação conceitual e analítica apropriada para a África nos moldes vernaculares criticados
por Adesina (2002), Lawuwyi e Taiwo (1990) e Archer (1991). Apesar de ter apresentado qua-
tro anos antes um paper com esse nome no México, em nenhum lugar do texto encontramos
o uso do termo “indígena”.2 Somente na Introdução ao número da International Sociology de
1988 é que o termo “indígena”3 aparece e é definido usando uma citação de aula inaugural
por ele proferida em 1978, na Nigéria: “A ideia é que a sociologia possa se beneficiar de ideias
locais contidas na literatura oral africana para atenuar os riscos de depender completamente
de conceitos e hipóteses ocidentais.” (1988:160).
A noção de indigenização, num contexto de descolonização tardio, surge ali próxima
daquela de endogenização desenvolvida posteriormente por Hountoundji (1997) para falar
da dependência teórica africana. Para Akiwowo, indigenizar teria o alcance microteórico que
serviria para explicar a vida coletiva local quanto a fatos sociais, ordem social ou realidades
sociais (Idem). Como descrito, em 1989, num capítulo de livro feito também para a ISA, o
autor se associa a Ali Mazrui (1978) na tentativa de uma definição mais precisa do processo
de indigenização das ciências sociais.
Os textos de 1986 e 1988 foram seguidos por duas críticas feitas por autores nigerianos
trazidas pela própria International Sociology em 1988 e 1990. O ponto central é a própria her-
menêutica da poesia oral segundo diferentes perspectivas na Nigéria. Em termos gerais e ociden-
tais, estabelece-se uma controvérsia sobre termos que orientariam uma relação específica entre
indivíduos e comunidades. Enquanto na versão de 1986 Akiwowo mencionava a necessidade
de princípios explanatórios para lidar com ideias e noções contidas na poesia oral, nas críticas
de Makinde (1988), Lawuwyi e Taiwo (1990) os termos em ioruba são tratados como conceitos.
Ao serem trabalhados nos moldes de conceitos sociológicos, a primeira conclusão é a de
que faltaria precisão aos termos escolhidos por Akiwowo. É na crítica de Lawuyi e Taiwo, que
ataca tanto Akiwowo quanto Makinde – o qual tentou esclarecer alguns termos usados por
Akiwowo –, que reside o tema central que inspira o presente texto. Para os autores, não há
precisão nos termos ioruba usados por Akiwowo, e isso, por definição, os tornaria não univer-
salizáveis no debate sociológico internacional:
“O conhecimento não é apenas um fenomeno transcendente, mas também uma noção
culturalmente delimitada que pode ser inutil para além do youruba ou das sociedades africa-
nas” (Lawuyi e Taiwo 1990: 71).
O problema central dos argumentos apontado pelos colegas nigerianos de Akiwowo foi
sua imprecisão, sobretudo quanto à descrição do princípio do asuwada que teria ao menos
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 397-408, maio-agosto 2019 397
Marcelo C. Rosa
três sentidos diferentes em seus textos. Em resposta publicada na mesma revista em 1991,
Akiwowo adota a noção de conceitos para falar dos termos da poesia ioruba e procura mos-
trar que não haveria tanta imprecisão em partes de seu argumento, pois o objeto seria uma
hermenêutica de poesia oral. Em termos sociológicos mais gerais, o problema de Akiwowo
reside em como tratar com precisão elementos que são constantemente produzidos e repro-
duzidos na oralidade.
Q uase uma década depois, um novo texto de Akiwowo na Internacional Sociology reto-
ma o debate com Lawuyi e Taiwo, dessa vez centrando a defesa da pertinência analí-
tica dos termos em ioruba justamente por sua fuzziness. Valendo-se dos argumentos de Bart
Kosko (1993) sobre o fuzzy thinking, Akiwowo passa a defender e a descrever a imprecisão
ontológica como a característica fundamental dos termos ioruba e de sua sociologia indígena.
Não haveria para o autor nigeriano estabilidade espaçotemporal na relação entre formas
de sociação mais individuais e mais comunitárias, aos moldes de Weber ou Durkheim, por
exemplo. Usando o termo consagrado por Fabian (1982), observamos uma aposta já tardia de
Akiwowo na coetaneidade ontológica entre o individual e o comunitário como meio de lidar
com a vida coletiva ioruba, que, nos termos sociológicos ocidentais, é imprecisa.
É possível depreender que o autor ainda busca, contraditoriamente, precisar o princípio
geral do asuwada como algo que poderia ser universalizado para a sociologia global com um
conceito único que abrangeria o coletivo e o individual. Nota-se aqui, mais uma vez, que o
próprio Akiwowo oscilava nos seus argumentos, a depender do debate em que se envolvia
– no âmbito da ISA, da Unesco ou dos debates nigerianos –, e que não conseguiu ir muito
além da armadilha sociológica de provincializar a própria contribuição quando contestado em
nível global.
Ao olhar de fora do debate que termina por desautorizar a noção de sociologia indíge-
na, porém, no texto de 1999 a poesia oral foi de novo por ele mobilizada, a fim de afirmar
dois pontos inovadores: a ambiguidade dos seres e a multivalência das realidades. Usando
de outra narrativa oral ioruba para se engajar com a noção de fuzzines, o autor se alimenta
das propagadas lições do sábio ou sacerdote Orunmila, que distribuía lições morais sobre a
natureza processual, não linear e não rígida da existência ioruba. Aqui vejo pontos nos quais
a teoria social em escala global poderia se inspirar e receber os efeitos deste trabalho com
mais abertura.
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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea
C omo ressaltado, as contribuições de Akiwowo oscilam entra o uso da poesia oral ioru-
ba para constituir uma proposta mais radical de independência teórica da sociologia
africana por vias epistemológicas e a busca conceitual por termos locais equivalentes àqueles
consagrados pela sociologia hegemônica ocidental.
No âmbito internacional, as conexões de leitura e recepção de Akiwowo e seus textos, no
universo de uma sociologia que tentava se tornar global a partir dos anos 1980, tiveram como
principal efeito a redução de seus argumentos à noção de asuwada como equivalente de con-
ceito sociológico. Foi apenas sobre a possibilidade de universalização de um termo classificado
geopoliticamente como de origem indígena africana que sua contribuição foi posta à prova. A
iniciativa foi recepcionada na sociologia internacional, na melhor das hipóteses, com uma re-
tórica exotizante e, não por acaso, confinada na armadilha da “sociologia indígena” e cobrada
por não gerar conceitos e teorias gerais. Vejamos, por exemplo, como o trabalho de Connell
(2007: 96) tentou abrir espaço hipotético para as chamadas sociologias do sul na África a
partir dos trabalhos de Akiwowo: “Let’s assume that I am trying to use the asuwada principle
and the concepts of ajobi and ajogbe in my sociological research in Australia” (2007: 96).
Num capítulo inteiro de seu livro para reconstrução do pensamento social africano e
em especial de Akiwowo, a autora vai buscar a precisão conceitual – já criticada por pares
nigerianos nos debates da ISA – que garantiria sua circulação global. O mesmo tipo de leitura,
mas com outro objetivo, pode ser observada na apreciação de Julian Go ao buscar promover
as teorias do Sul e pós-coloniais na teoria social e na sociologia: “O conceito do Asuwada
poderia ser a base para uma sociologia não baseada no ocidente”(2016: 148).
A expectativa de Connell e Go, ao considerar a possibilidade de testar a iniciativa de
Akiwowo como um avanço teórico nos moldes como o centro faz – na própria definição da au-
tora australiana –, era um conceito preciso ou utilizável na pesquisa aplicada, especialmente
em outras partes do sul global – um conceito que gerasse comunicabilidade global que acaba
por não acontecer em nenhuma das recepções aqui descritas.
Reed (2013) interpela criticamente o desenvolvimento do trabalho de Connell (2007) e,
sobretudo, esse modo geral de abordar e interpretar os trabalhos de Akiwowo.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 399-408, maio-agosto 2019 399
Marcelo C. Rosa
Para o autor, a expectativa positiva é criada apenas para diálogos no nível de teorias de
longo alcance. Segundo ele, a busca ideal nesses casos deveria estar focada no que Merton
classificou como teorias e conceitos de médio alcance, típicas da sociologia contemporânea.
É preciso lembrar que o próprio autor havia classificado sua intervenção como microteórica
(Akiwowo, 1988:160).
Para a própria Connell, a solução encontrada para os limites das translações conceituais
gerais presentes na noção de asuwada levariam a seu abandono como possibilidade alterna-
tiva: “Eu não estaria assim usando uma sociologia indígena da Nigéria, mas construindo meu
próprio sistema sincrético, o que faria pouco sentido para outras sociólogas tanto na Austrália
quanto na Nigéria” (2007: 96).
Na perspectiva da autora, uma construção teórica com base nas concepções “indíge-
nas” localizadas no tempo, na língua, na experiência e no espaço seria por demais limitada
para compor um panteão teórico da sociologia global, porque encontraria barreiras culturais
demasiado fortes.
Como sugerido na Introdução, em especial entre comentadores não africanos, a presença
de Akiwowo e seus escritos é um gesto diplomático geopolítico no sentido mais tradicional
do termo. Entre entusiastas e céticos, o termo “sociologias indígenas” foi e tem sido utilizado
para demonstrar a capacidade ou a generosidade política de inclusão da África em debates
globais e universais, por isso credencia mais quem o menciona politicamente do que seu autor.
A apropriação de sua pesquisa e seu argumento, no entanto, são apresentados de forma a
não contribuir para a reconsideração da dimensão histórico-espacial disciplinar centrada na
Euroamérica nem para a ampliação de sua política teórica. Eles ocorrem limitados por aquilo
que Keim (2008) chamou de “arena dominante de competição”. Em suma, trata-se de um
argumento que não avança na transformação do espaço ou da política nessa área de conhe-
cimento, como sugere Latour (2016: 16) ao debater os limites da discussão geopolítica nas
ciências sociais.
No âmbito da arena dominante dos debates teóricos, a única porta de entrada aparente-
mente possível seria por meio da introdução de conceitos com muita elasticidade e comunica-
bilidade para considerar desafios empíricos que não tenha um equivalente já estruturado em
nosso corpus teórico disciplinar ocidental. A introdução da poesia oral e da existência instável
ioruba colocam dois elementos distantes demais do centro normal da sociologia global. A
falta de comunicabilidade dos termos ligados ao asuwada contribui, assim, para o desconcerto
da audiência internacional em lidar com uma possível teoria social que seria não facilmente
aplicável na pesquisa empírica.
400 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 400-408 maio-agosto 2019
Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea
O próprio avanço conceitual proposto por Akiwowo (1989) em relação a Mazrui (1978),
de desracionalizar as ciências sociais tendo como base ideias, valores, mitos, história oral e
cosmologias, terminou reduzido apenas à sua dimensão conceitual. Na arena dominante do
debate teórico da sociologia internacional, a qual o próprio Akiwowo e alguns de seus colegas
nigerianos adentraram, não existiu espaço para inclusão significativa da oralidade, valores e
experiências não lineares e racionalizadas nos termos euro-americanos.
Somente em seus leitores mais tardios e baseados no próprio continente, como Adesina
(2002), Omobowale e Akanle (2017) e Ademoyo (2009), é que se vislumbra a inquietação por
aprofundar os desafios epistemológicos presentes na proposta de Akiwowo. Nessa leva mais
recente de intepretação, permanece a crítica ao risco de uma sociologia vernacular apontado
por Archer (1991), mas acompanhado de um claro movimento de ressaltar a dimensão onto-
lógica do contexto da pesquisa: “Há um compromisso ontológico na sociologia do conheci-
mento de Akiwowo que permite a explanação de suas ideias sobre a popósito, a socialidade
humana, natureza e sociedade” (Ademoyo, 2009: 16).
Apropriando-se do termo “intervenção epistêmica”, cunhado por Adesina (2002),
Omobowale e Akanle (2017:49) recuperam o trabalho de Akiwowo procurando demonstrar
que a noção de asuwada se encontra ancorada numa ontologia normativa específica que
condiciona a ação no mundo em parâmetros pouco usuais na sociologia ocidental. Tendo a
ontologia ioruba como base normativa, os textos sobre as sociologia indígenas ensejariam
uma desejada “abertura epistêmica” para outras sociologias africanas e mesmo do sul global.
Tal abertura seria uma alternativa concreta à dependência epistemológica da disciplina em
relação às ontologias euro-americanas.
Enquanto os autores africanos acima buscam retomar essa abertura por uma volta aos
princípios sistêmicos presentes na noção de asuwada, gostaria de sugerir que as saídas en-
contradas no texto de 1999 podem conter outra fonte de ampliação e abertura epistemoló-
gica. Ao ser interpelado a lidar com a noção de fuzzy, Akiwowo introduz com mais clareza
a necessidade de levar em conta na sociologia a importância de lidar epistemologicamente
com ontologias processuais não lineares ou rígidas. O desafio empírico de lidar com trânsitos
ontológicos necessariamente imprecisos entre o bem e o mal, entre as existências físicas e
metafísicas como parte do coletivo que chamamos de social, sugere uma oportunidade inte-
ressante para a disciplina em nível global.
Como ressalta Akiwowo no texto de 1999, a condição ontológica dos objetos e suas
propriedades individuais mudam no decorrer de sua existência e de acordo com os coletivos
nos quais são envolvidos. Sem abrir mão de sua linguagem sistêmica, o autor afirma que elas
se adaptam segundo as mudanças nos propósitos gerais do asuwada.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 401-408, maio-agosto 2019 401
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Gostaria de sugerir que, para além de uma definição conceitual do asuwada, o passo
mais importante de Akiwowo foi lidar epistemologicamente com objetos específicos de rea-
lidades nas quais são transformados continuamente. Por meio da incorporação da oralidade,
fonte por demais instável para a sociologia dominante, a transformação ontológica causa
desconforto e desconcerto para a ciência social hegemônica.
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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea
disconcertment” (2012: 143). Ou seja, sua demanda pela incorporação do desconcerto num
momento anterior ou coetâneo da análise.
Em seu livro After Method (2004) e em textos mais recentes escritos com o colega
taiwanês Wen-yuan Lin, John Law sugere que uma possível solução para o dilema descrito por
Verran é tornar a própria experiência empírica desconcertante um ato performativo de teoria.
Cultivar o desconcerto seria uma chave teórico-metodológica para evitar a mera reprodução
das ontologias dominantes na teoria social.
Nós sugerimos que explorar as origens do desconcerto desta forma e os tornar discursivamente
confiáveis, é também performativo. Nossa conclusão é que o cultivo do desconcerto é uma
sensibilidade ou ferramenta crucial que contribui diretamente para irmos além da metafísica,
das subjetividades, e para formas organizacionais menos diretamente institucionais que repro-
duzem as tradições ocidentais hegemônicas de conhecimento (2011: 138)
A noção cunhada por Verran ganha contornos específicos quando se torna parte da
construção de uma narrativa sobre a política da terra nos andes peruanos e do dualismo que
marcou as análises que separaram a política indígena da política camponesa. Em Earth Beings,
De La Cadena (2015) retoma a noção de Verran e acrescenta:
Para a autora, o ponto central é a pratica de convivência com as ontologias que cau-
sam perplexidade por meio da tolerância à sua existência, sem, no entanto, admitir que tal
existência possa ter implicações sobre o modo pelo qual a sociologia hegemônica entende o
mundo moderno e seus objetos. No caso do Peru, a relação indígena com a terra foi reduzida
aos termos ocidentais da noção campesinato e não teria ampliado o entendimento da relação
entre política e natureza, por exemplo. Assim como o trabalho de Akiwowo que foi limitado
ao asuwada.
Este é ponto central do que eu gostaria de chamar de “política ontológica” hegemôni-
ca na teoria social contemporânea. Uma política que permite a presença do estranho pela
tolerância, como o bom e necessário selvagem, sem que, no entanto, demonstre qualquer
engajamento pelo trabalho teórico-metodológico de sua construção e por sua ampliação do
que seria real ou possível.
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Marcelo C. Rosa
É justamente essa ampliação, movida pelo desconcerto, que daria lugar à formação por
parte de pesquisadoras/teóricas de terceiras categorias/ontologias multivalentes que não se-
riam simplesmente traduzidas de um lugar a outro. Para evitar a abertura de um debate vazio
sobre o verdadeiro sentido de um termo, De la Cadena se apropria da noção forjada por Vi-
veiros de Castro (2004) de um método de “equivocação controlada” para marcar que desen-
tendimentos e equívocos são a marca das diferenças e das heterogeneidades. A equivocação
seria elemento metodológico central para qualquer análise que tenha como base a oralidade
e suas instabilidades no tempo e no espaço.
Em vez de aceitar tomar a imprecisão e a heterogeneidade como fonte para um debate
sobre os limites ontológicos de conceitos sociológicos, os leitores estabelecidos preferiram
apostar na manutenção da precisão conceitual, construindo um flanco contínuo para a des-
construção de inovações vindas fora da desejada existência moderna homogênea.
404 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 404-408 maio-agosto 2019
Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 405-408, maio-agosto 2019 405
Marcelo C. Rosa
Notas
1 “O que acontece é um mero transplante do pensar. Novamente, eu não sugiro uma simples adaptação
simples de técnicas e metodologias, mas do aparato conceitual, dos sistemas de análise e da seleção dos
problemas” (Alatas, 1974: 695).
2 É importante notar que no número do International Social Science Journal de 1976, no qual figura um dos
textos de Akiwowo, outro autor nigeriano já utilizava os termos indigenous e indigenization.
3 No texto de 1989, Akiwowo cita um manuscrito não publicado de 1985 intitulado “Indigenous and universal
perspectives in theoretical sociology”.
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408 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 408-408 maio-agosto 2019
Artigo
Frederico ÁgoasI*
Cláudia CasteloII*
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200005
Parte da pesquisa conduzida pelo autor para a elaboração deste artigo se beneficiou de uma bolsa de pós-doutorado da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).
I Universidade Nova de Lisboa – Lisboa, Portugal.
* Pesquisador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa (Cics-Nova-FCSH). (fagoas@fcsh.unl.pt). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7045-7688.
Parte da pesquisa conduzida por esta autora para a elaboração deste artigo foi cofinanciada pelo Fundo Europeu de
Desenvolvimento Regional (Feder), por meio do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (Compete)
2020, e pela FCT, no âmbito do projeto “Os mundos do (sub)desenvolvimento: processos e legados do império colonial
português em perspectiva comparada (1945-1975)”.
II
Universidade de Coimbra (CES-UC). Coimbra, Portugal.
* Pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC). (claudiacastelo@ces.uc.pt)
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7403-4404.
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Frederico Ágoas e Cláudia Castelo
Resumo
Instituída no segundo pós-guerra, num contexto de crescente contestação ao colonialismo e como resposta das
potências coloniais europeias ao interesse científico das Nações Unidas e de círculos académicos norte-americanos
pela África, a Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA) revelou uma atenção particular
aos estudos sociais, estabelecendo uma agenda de pesquisas paralela à da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Com base nos arquivos diplomático e científico colonial, o artigo analisa
a atividade da CCTA naquele domínio e, sobretudo, a participação portuguesa nessas dinâmicas, determinando a
importância relativa do país na sua promoção e seus reflexos no campo das ciências sociais em Portugal..
Abstract
Established in the second post-war period, in a context of growing opposition to colonialism and as a response of
the European colonial powers to the scientific interest of the United Nations and North-American academic circles
in Africa, the Commission for Technical Co-operation in Africa South of the Sahara (CCTA) paid particular attention
to social studies, establishing a research agenda parallel to that of the United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization (UNESCO). Based on the diplomatic and scientific colonial archives, the article analyzes the
activity of the CCTA in that domain and, above all, the Portuguese participation in these dynamics, determining the
relative importance of the country in their promotion and their reflexes in the field of social sciences in Portugal.
Resumen
En la segunda posguerra, en un contexto de creciente contestación al colonialismo y como respuesta de las poten-
cias coloniales europeas al interés científico de las Naciones Unidas y de círculos académicos norteamericanos por
África, la Comisión de Cooperación Técnica en África al Sur de Sahara (CCTA) reveló una atención particular a los
estudios sociales, estableciendo una agenda de investigaciones paralela a la de la Organización de las Naciones
Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (Unesco). Sobre la base de los archivos diplomáticos y científicos
colonial, el artículo analiza la actividad de la CCTA en ese dominio, y sobre todo la participación portuguesa en esta
dinámica, determinando la importancia relativa del país en su promoción y sus efectos en el ámbito de las ciencias
sociales en Portugal.
410 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 410-428 maio-agosto 2019
Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
Introdução
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Frederico Ágoas e Cláudia Castelo
português” pelo Ministério das Colônias, em 1945, e a reforma curricular da Escola Superior
Colonial (designação original do Iseu), em 1946. Em outro nível, as mesmas mudanças foram
ainda associadas ao crescente envolvimento dos professores do Iseu em fóruns coloniais de
cooperação científica – em especial na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do
Saara (CCTA), criada em 1950 pelas principais potências colonizadoras (Castelo, 2012) – e aos
apelos dos quadros coloniais ativos ou em formação a respeito da sua preparação científica
para governar e, no longo prazo, do seu estatuto profissional (Ágoas, 2012).
Com base nesse conjunto de pistas, que não se contradizem entre si, e assumindo a
transição paradigmática referida e a racionalização gradual do aparato governativo da ad-
ministração colonial (metropolitano e local), o presente artigo pretende aprofundar o estudo
da participação portuguesa na CCTA e da sua importância no desenvolvimento das ciências
sociais coloniais, a partir de 1950, no quadro de outras dinâmicas epistêmicas e institucionais
então em curso no mesmo domínio.
À margem das referências citadas, que tratam o assunto de forma exploratória, a
bibliografia sobre o tópico é praticamente inexistente. No seu livro mais recente, Valentim
Alexandre (2017) aborda a iniciativa diplomática que conduziu à participação de Portugal na
CCTA e o advento da investigação social portuguesa em meados da década de 1950, atri-
buídos aos mesmos motivos político-ideológicos e, mais especificamente, à defesa do império
colonial português.
Na historiografia internacional, o organismo tem sido quase sempre ignorado ou, quan-
do muito, apresentado como uma iniciativa duplamente falha, nos seus intentos técnicos e
políticos (Kent, 1992). Não obstante, a pesquisa por nós conduzida no Arquivo Histórico Di-
plomático e no Arquivo da Comissão Executiva da JIU permite especificar alguns dos motivos
políticos que deram corpo à CCTA – eles próprios relacionados ao avanço da investigação
social na África por parte de terceiros – e avaliar a importância dos mesmos motivos e das
recomendações emanadas daquele organismo no desenvolvimento das ciências sociais portu-
guesas no quadro da investigação colonial.
Em contrapartida, a mesma investigação permite ainda sugerir, de forma lateral, que a
participação portuguesa nesse fórum, em particular no que diz respeito à cooperação em maté-
ria de ciências sociais, assenta em iniciativas prévias de natureza análoga conduzidas de manei-
ra relativamente precoce na antiga Guiné Portuguesa e apontar alguns efeitos epistêmicos que
a cooperação internacional implicou no desenvolvimento das ciências humanas em Portugal.
De modo mais geral, o presente artigo visa ainda contribuir para discussões atualmente
em curso acerca da relação entre as ciências sociais e o colonialismo tardio. Da perspectiva
412 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 412-428 maio-agosto 2019
Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
ao Sul do Saara (Fama), como instrumento de intervenção técnica. Em 1959, a sede transitou
de Londres para Lagos, na Nigéria. A vaga de independências na África negra e a entrada
dos novos estados independentes na CCTA tiveram como consequência a africanização da
comissão, que perdeu, assim, o caráter inicial de “clube colonial” (Vigier, 1954: 349). Gana foi
o primeiro estado-membro africano negro a se tornar parte da comissão (1957), seguida por
Libéria (1958), Guiné (1959), Camarões (1960) e 17 outros países, em 1961.
A África do Sul, cuja política de discriminação racial e supremacia branca chocava fron-
talmente com os novos estados independentes, foi persuadida pelo secretário-geral Cheysson
a abandonar a CCTA às vésperas da 17ª sessão, realizada em Abidjan, em 1962. A Rodésia a
acompanhou. Portugal, por sua vez, viu seus delegados impedidos de participarem da sessão.
Assim, ficou decidido abandonar a designação “ao sul do Saara” e convidar os países do norte
do continente a se associarem, enquanto França, Bélgica e Reino Unidos passariam a mem-
bros assistentes. Cheysson pediu demissão do cargo, considerando que se devia nomear um
secretário-geral africano. A passagem de testemunho para Mamoud Touré não foi fácil, dadas
as rivalidades entre os vários países recém-entrados na CCTA. Em 1964, a comissão seria
integrada na Organização da Unidade Africana (OUA), criada em 1963, sendo-lhe atribuída
uma nova designação: comissão científica, técnica e de investigação.
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Frederico Ágoas e Cláudia Castelo
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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
território do Congo belga, associando um intenso programa acadêmico a uma agenda social
preenchida.14 Os trabalhos seriam dirigidos por uma comissão liderada pelo chefe da delega-
ção local, Frans M. Olbrechts, diretor do Museu Real da colônia, e copresidida pelos chefes das
comitivas francesa e britânica, Hubert Deschamps, responsável pelo setor de ciências humanas
no Office de la Recherche Scientifique Outre-Mer, e Audrey I. Richards, diretora do East African
Institute of Social Research. Da mesma comissão, fizeram ainda parte António Mendes Cor-
reia, como chefe da delegação portuguesa, seus homólogos estrangeiros e os seis presidentes
das várias seções da reunião.
No seu conjunto, as divisões instituídas davam corpo a uma concepção bastante eclética
de ciências sociais e humanas, contemplando disciplinas ou áreas científicas tão distintas
quanto demografia, geografia humana e economia política (secção I); etnologia, sociologia
e etno-história (II); antropologia física, psicologia e nutrição (III); linguística (IV); métodos de
administração (V); artes e tecnologia (VI). Entre os respectivos presidentes, importa destacar
Adriano Moreira à cabeça da seção V. Além dos restantes delegados, estivaram ainda presen-
tes, na qualidade de observadores, figuras como Daryll Forde, diretor do Instituto Internacional
Africano, como vimos; Pierre Gourou, professor da Universidade Livre de Bruxelas e observa-
dor da Academia Real de Ciências Coloniais; Melville Herskovits, professor de antropologia
da Northwestern University; Jean P. Lebeuf, chefe da seção de sociologia da OMS; Guy de La-
charrière, diretor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Unesco; e Prudence Smith,
jornalista da BBC (CCTA, 1955: V-XI).
Com os documentos de que dispomos, não é possível recuperar em detalhe o andamento
dos trabalhos, mas o inventário científico elaborado para o efeito pela comitiva portuguesa
e o documento final publicado pela CCTA nos permitem especificar, como pretendemos, as
orientações que serviram de base para as intervenções dos delegados portugueses e as reco-
mendações saídas do encontro.
Quanto àquele inventário, importa começar por referir, sem surpresa – no contexto da
investigação colonial portuguesa –, o desenvolvimento relativo e o caráter sistemático do
relatório referente à seção III, em particular no que concerne aos estudos de antropologia
física. Da mesma forma, cabe sublinhar o detalhe desproporcionado da exposição respeitante
ao estudo das artes tradicionais em Angola, tal como constava do relatório referente à seção
VI.15 No primeiro, de autoria de António Mendes Correia, dava-se conta de como todos os
territórios portugueses na África já haviam sido objeto de pesquisas naquele domínio e desta-
cavam-se os contributos das missões antropológicas de Angola e Moçambique. No segundo,
de autoria do biólogo António Barros Machado, avultavam as atividades do Museu do Dundo
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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
“Importa agora desenvolver estes conhecimentos de ordem geral, a partir de bases menos
empíricas, considerando que o que se encontra realizado se deve em larga medida aos fun-
cionários administrativos.” Mais especificamente, tratava-se de “desenvolver os estudos de
sociologia”, a respeito de contatos culturais, migrações, vida urbana, níveis de vida e evolução
local face às transformações econômicas.21
As orientações gerais a esse respeito, todavia, ficariam a cargo de Adriano Moreira, na
qualidade de relator da seção V, consagrada aos métodos de administração. Na sua exposição,
o futuro diretor do Ceps e do Iseu começava por assinalar o desenvolvimento dos estudos con-
cernentes à questão político-administrativa para apontar depois baterias aos tópicos da mão de
obra e da destribalização, “um problema de ordem política da mais alta importância e ao mesmo
tempo um fenômeno de ordem social muito interessante” sobre o qual considerava necessário
intensificar os estudos sociológicos. Destacavam-se ainda os problemas da posição do posto
administrativo no quadro da vida tribal e da regulamentação das migrações, por conta das suas
consequências sobre a nacionalidade dos indígenas e como veículo de ideias subversivas.22
Quanto às recomendações que resultaram da conferência, reportavam-se essencialmen-
te à instituição de práticas de cooperação e à definição de tópicos de pesquisa. Acerca da
sociologia e da etnografia, assinale-se o incentivo à execução de monografias de grupos es-
pecíficos – selecionados em função da representatividade regional –, o estímulo à realização
de estudos sobre migrações interterritoriais – precedidos por inquéritos antropológicos nas
regiões de origem – e o incitamento à troca de informações sobre os métodos utilizados na
África para a aplicação de inquéritos urbanos (CCTA, 1955: 11-16).
Em termos institucionais, chamava-se a atenção para a necessidade de criar um corpo de
especialistas que pudesse suprir os objetivos dos governos em matéria de pesquisa científico-
-social e recomendava-se que as autoridades nacionais aumentassem os apoios financeiros
concedidos às instituições responsáveis pela formação nesse domínio (CCTA, 1955: 14). Em
contrapartida, a seção de métodos de administração sugeria que se criasse uma “ligação
permanente e estreita” entre os investigadores das ciências humanas, por um lado, e os go-
vernos e as administrações responsáveis pela acção social, por outro, “de maneira a sugerir as
pesquisas destinadas à solução de problemas urgentes e práticos” (CCTA, 1955: 33).
Na mesma seção, a sociologia ou a antropologia se viam ainda potencialmente impli-
cadas nos estudos destinados a apurar métodos e técnicas adequados aos contatos entre
a população e a administração local, nas pesquisas acerca dos regimes de propriedade, na
promoção econômica e social das massas rurais e nas futuras recolhas de direito costumeiro
(CCTA, 1955: 33-35). A mesma orientação seria estendida a domínios de estudo como a nutri-
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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
Conclusão
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Frederico Ágoas e Cláudia Castelo
Notas
1 Portugal, Arquivo Histórico Diplomático (daqui em diante, AHD), C.E47.P07.2410. Relações com agências
especializadas da ONU. Informação de serviço de Franco Nogueira (MNE), 14.11.1952.
2 AHD, C.E45.P06.2403. Sociologia – Comité Ciências Humanas. Ofício do secretário-geral da CCTA,
18.2.1954, e Apontamento de Franco Nogueira (MNE), 24.2.1954..
3 AHD, C.E45.P06.2403. Doc. CCTA (53)70, Proposal to Appoint an Inter-African Scientific Correspondent on
Sociology.
4 AHD, C.E45.P06.2403. CCTA - Memorandum a apresentar pelo governo português ao Grupo de Trabalho
sobre Sociologia, p. 2. Ver no mesmo maço, doc. CCTA (54)26, Memorandum received from the Portuguese
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532A), v. 1, Doc. CCTA (53)76, Conférence de l’Université de Princeton sur la Recherche Régionale en Afrique.
5 AHD, C.E45.P06.2403. Doc. CCTA (53)70, Proposal to Appoint an Inter-African Scientific Correspondent on
Sociology.
6 AHD, C.E45.P06.2403. Ofício do secretário-geral da CCTA, 18.2.1954.
7 AHD, C.E45.P06.2403. CCTA – Memorandum a apresentar pelo governo português ao Grupo de Trabalho
sobre Sociologia, p. 1.
8 Idem, p. 2
9 AHD, C.E45.P06.2403. Ofício de Manuel Rocheta ao Embaixador de Portugal em Londres, Pedro Teotónio
Pereira, 26.2.1954.
10 AHD, C.E45.P06.2403. Doc. CCTA (54)24, Memorandum du Gouvernment français sur la Sociologie
(Groupe du Travail du 4 mars), 1.3.1954.
11 AHD, C.E45.P06.2403. Relatório de Adriano Moreira sobre a reunião do Grupo de Trabalho realizada em
Londres, em 4 e 5 de março, enviado ao ministro do Ultramar, 8.3.1954.
12 AHD, C.E45.P06.2403. Relatório do secretário da embaixada de Portugal em Londres, Fortunato de Almei-
da, de 5 de marco de 1955, sobre a reunião do Grupo de Trabalho sobre a ligação interafricana em matéria
de sociologia, 5.3.1955.
13 AHD, C.E45.P06.2403. Relatório de Adriano Moreira sobre a reunião do Grupo de Trabalho realizada em
Londres, em 4 e 5 de março, enviado ao ministro do Ultramar, 8.3.1954.
14 AHD, C.E46.P02.2436. CCTA – Documentos relativos à 1ª Conferência de Ciências Sociais, Bukavu, 1955.
Programme de la Conférence Interafricaine pour les Sciences Humaines – 1ère Session, 3.06.1955.
15 AHD, C.E46.P02.2436. Conférence Interafricaine sur les sciences humaines, Bukavu, Aout-Septembre
1955, Rapport présenté par la délégation portugaise. Section III e Section VI.
16 AHD, C.E46.P02.2436. Ata da 5ª Reunião Interministerial da CCTA, 27 de julho de 1955, p. 1.
17 Cf. inventários em C.E46.P02.2436.
18 AHD, C.E46.P02.2436. Rapport présenté par la délégation portugaise, Section IV.
426 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 426-428 maio-agosto 2019
Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
19 Idem, Section I.
20 Idem, Section II.
21 Idem, Section II, p. 2.
22 Idem, Section V.
23 AHD, C.E46.P02.2436. Ata da 12ª Reunião Interministerial da CCTA, 2 de dezembro de 1955, p. 1.
24 Idem, p. 3.
25 AIICT, Proc. 532A, vol. 2, doc. 184. Conclusões finais do Comité Interministerial da CCTA sobre as reco-
mendações aprovadas na 1ª sessão da Conferência Interafricana de Ciências Sociais, em anexo ao ofício da
direção-geral de Administração Política e Civil do Ministério do Ultramar para a Comissão Executiva da JIU,
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428 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 428-428 maio-agosto 2019
Artigo
Gustavo MesquitaI*
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200006
I
Fundação Getulio Vargas (FGV), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
* Pós-doutorando no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio
Vargas e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, com estágio na Vanderbilt University, Nashville,
Estados Unidos. (gustavormesquita@gmail.com)
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6460-495X
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 429-449, maio-agosto 2019 429
Gustavo Mesquita
Resumo
Roger Bastide e Florestan Fernandes atuavam em pesquisas sobre relações raciais financiadas por organizações
internacionais quando, na década de 1960, os Estados Unidos criaram ações afirmativas para responder à desigual-
dade racial. As conclusões dos sociólogos estimularam discussões acerca do mesmo problema no Brasil. Entendeu-se
naquela época que também temos um dilema, ou seja, uma democracia fracionada, excludente da população negra.
Discuto neste artigo a formação do pensamento sociológico de Bastide e Fernandes à luz de teses norte-americanas
de relações raciais, assim como o impacto desse pensamento no debate sobre racismo brasileiro.
Abstract
Roger Bastide and Florestan Fernandes carried out researches on race relations sponsored by international organiza-
tions when, in the 1960s, the United States created affirmative actions to respond to its racial inequality. Conclusions
from the sociologists enhanced discussions about the same issue in Brazil. The time has come for the understanding
that our democracy excludes the Negro population. It is analyzed in this article the formation of Bastide and Fer-
nandes’ sociological thought under American thesis of race relations, as well as the impact of this thought over the
debate on Brazilian racism.
Resumen
Roger Bastide y Florestan Fernandes actuaban en investigaciones sobre relaciones raciales financiadas por organiza-
ciones internacionales cuando, en los años 1960, los Estados Unidos creó acciones afirmativas para responder a su
desigualdad racial. Las conclusiones de los sociólogos estimularon discusiones sobre el mismo problema en Brasil.
Se entendió en aquella época que también teníamos un dilema, o sea, una democracia fraccionada, excluyente de
la población negra. Discuto en este artículo la formación del pensamiento sociológico de Bastide y Fernandes a la
luz de tesis estadounidenses de relaciones raciales, así como el impacto de este pensamiento en el debate sobre
racismo brasileño.
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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil
E m 1958, Florestan Fernandes publicou na revista Anhembi um balanço dos estudos ra-
ciais financiados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (Unesco).1 Tendo como amarra os avanços que a inserção do negro atingira no merca-
do de trabalho das democracias ocidentais, os exames vinculados à organização internacional
eram realizados por cientistas sociais oriundos não só dos Estados Unidos e da Europa, mas do
Brasil e de outros países igualmente chamados, nessa época, de subdesenvolvidos.
Um periódico científico, editado pela mesma organização numa espécie de rede transna-
cional, difundia mundialmente as mais novas pesquisas de relações raciais. Trata-se do Inter-
national Social Science Bulletin, que era tão importante quanto a revista The Unesco Courier,
também comprometida com a questão racial, para o esforço de divulgação das políticas que
essa organização desenvolvia em busca do entendimento global e da eliminação do racismo
nas democracias modernas.
As três revistas estavam comprometidas com a formação de uma interpretação da ques-
tão racial tida como capaz de apontar soluções para os problemas criados pelo fenômeno.
Em outras palavras, buscavam uma interpretação do tema do negro colocado à democracia
moderna. O vínculo entre democracia e racismo era pensado de forma abrangente, pois era
pertinente a qualquer país em que as relações raciais, carregadas de barreiras do preconceito,
representavam um entrave ao desenvolvimento da sociedade de classes e à subsequente
inserção do negro nesse sistema social.
Os artigos publicados nas revistas complementavam e divulgavam as pesquisas raciais
iniciadas pouco tempo antes em vários países, tendo o Brasil e sua intensa miscigenação como
ponto de referência. A urgência dessa nova produção científica em meio ao pós-Segunda
Guerra Mundial, viabilizada pelos programas da Unesco para o desenvolvimento das ciências
sociais em escala global, era alimentada pela consciência dos horrores cometidos durante o
período bélico, incluindo o holocausto, o racismo e a xenofobia (MAIO, 1997).2
Fernandes apresentou em Anhembi a contribuição dos sociólogos interacionistas, for-
mados na Universidade de Chicago, para o dossiê do International Social Science Bulletin
sobre a situação do negro nos Estados Unidos. Os artigos de Herbert Blumer, Franklin Frazier,
St. Clair Drake e H. J. Walker foram mencionados. O mais importante, porém, reside na ênfase
dada pelo sociólogo paulista ao artigo de Roger Bastide, publicado no mesmo número da
revista internacional.
Bastide participou do número com a introdução a respeito dos Estados Unidos e um
artigo especial preparado para esse dossiê. Mas o artigo não se refere à sociedade norte-
americana de maneira isolada. Ao comparar Estados Unidos e Brasil, Bastide abordou o lugar
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 431-449, maio-agosto 2019 431
Gustavo Mesquita
do negro na hierarquia social das duas sociedades. A conclusão do sociólogo, como vere-
mos adiante, veio acompanhada de uma crítica ao racismo brasileiro que indicava caminhos
possíveis para o reverso da moeda: o antirracismo, nascido, segundo ele, junto às aceleradas
mudanças urbano-industriais.
Fernandes valorizou a contribuição de Bastide, como seu texto mostra, porque o entendi-
mento do problema negro norte-americano foi incorporado nas reflexões do sociólogo francês.
Para esses sociólogos, o entendimento externo era significativo para a decifração do problema
negro brasileiro. As relações entre Brasil e Estados Unidos começariam no tratamento correto
do conceito de raça pelos pesquisadores de ambos os países. Notemos o que Bastide dissera
sobre isso: “A característica do presente [em relação à raça] é a progressiva transição da dinâ-
mica das relações raciais para a das relações humanas; cor agora é vista apenas como variável
numa situação geral, afetada por muitos outros fatores” (1957: 423).
No momento em que tal definição de relações raciais foi feita, era comum, para a com-
preensão da situação geral, o conceito de cor vir acompanhado de seu par: a ascensão social.
Nos anos 1950, as noções de cor e ascensão social formaram um par cujo poder de explicação,
à luz da psicologia social e da sociologia, se tornou diretriz endossada pela Unesco para os
estudos de relações raciais em curso naquele momento (Guimarães, 2009).
Os grupos de cor passaram a ser o mais importante dos fatores operativos da análise
histórico-sociológica das relações raciais no decurso da formação nacional. São o conceito de
raça com o qual Bastide e Fernandes fizeram suas pesquisas sob subvenção da Unesco. No
artigo em Anhembi, três anos depois das Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo,
o sociólogo paulista fez considerações sobre cor que combinam com as do francês, tecidas no
International Social Science Bulletin. Ele argumentou que a importância da cor – das cores
preta e parda, que compõem o grupo negro – reside em seu grande peso na análise de uma
situação social mais ampla. Esse conceito de raça era aplicado nas pesquisas da maioria dos
cientistas sociais, além dos norte-americanos, brasileiros:
A maioria dos especialistas tende a interessar-se pelo negro na medida em que ele pode
ser encarado como um dos fatores operativos em uma situação social mais ampla e com-
plexa. Só alguns cientistas negros se especializaram no estudo do negro propriamente dito.
(Fernandes, 1958: 105)
Ao retomar as teses das Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, Bastide,
em 1957, e Fernandes, em 1958, desenvolveram argumentos parecidos, ambos dando a en-
tender que a cor do negro interfere numa situação geral. Afinal, que situação é essa? A parce-
ria internacional das revistas nos ajuda a entendê-la. No balanço feito pelo sociólogo paulista
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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil
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Gustavo Mesquita
A pesquisa que resultou em An American Dilemma não teve uma origem tão discrepante
da dos outros estudos raciais patrocinados por fundações norte-americanas na pri-
meira metade do século XX, exceto algo particular no caminho seguido por Frederick Keppel,
presidente da Carnegie Corporation em 1937, para atender aos anseios de sua fundação. Nos
Estados Unidos, até a Segunda Guerra Mundial, era comum as grandes empresas privadas
exercerem filantropia aos negros por meio de suas fundações.
Essas fundações, no Norte ou no Sul, miravam políticas de melhoria da educação da
população negra. Mesmo realizada em escolas e faculdades próprias para negros, separadas
dos brancos, a educação era o foco da ação das fundações, e isso estava em acordo com algu-
mas associações negras, a exemplo da National Association for the Advancement of Colored
People (NAAPC).
A educação dos negros camponeses, visando à formação de uma classe trabalhadora
mais robusta, composta por operários e outras categorias mais bem qualificadas, inclusive
de melhores trabalhadores rurais, refletia a ação das fundações em resposta aos constantes
deslocamentos dos negros das fazendas do Sul para as cidades do Norte. A migração começou
com força já no século XIX, após a abolição, mas aumentou consideravelmente no século XX,
graças às transformações urbanas e tecnológicas decorrentes da Primeira Guerra Mundial.
Nos ardentes conflitos da Segunda Guerra, além da migração em massa para as gran-
des cidades, onde a maioria dos negros se aglomerava em guetos e outros bairros negros,
até as tropas do Exército ianque, que combatiam os inimigos de guerra nas regiões europeias
sob domínio nazista, foram divididas por critério de raça: negros para um lado, brancos para
outro. A honra nacional por terem sido os vitoriosos da guerra se limitou aos soldados bran-
cos. Aos negros, restou só a dádiva por terem sido convocados para lutar em nome de seu
país (Higham, 1997).
Ao notar a insuficiência da filantropia há décadas realizada pelas fundações norte-ameri-
canas, diante do agravamento dos conflitos raciais particularmente no Sul, onde a segregação
crescia em violência sistemática e se alastrava em regozijo do Jim Crow, Keppel admitiu que
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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil
mudar as estratégias filantrópicas da Carnegie era necessário, e assim convocou uma seleção
de intelectuais que pudessem orientar a mudança. Numa lista de 22 nomes, escolhera Gunnar
Myrdal para o projeto.4
O chefe da Carnegie sabia quão complexas ficavam as tensões raciais naqueles anos
de 1930, mas não pretendia eliminar a segregação ao mudar a forma de apoio à popula-
ção negra. Seu foco era fazer com que um intelectual apontasse mais efetivos sistemas de
filantropia, de modo que o racismo nos Estados Unidos diminuísse. Eis que o acaso mostra
sua face ao trazer Myrdal e seu conhecimento em engenharia social, uma área da ciência
ao mesmo tempo anticomunista e reformista, muito próxima dos ideais político-sociais dos
pioneiros da terceira via.5
Esperava-se certo avanço nas restrições que cercavam as discussões em torno do pro-
blema racial vivido nos Estados Unidos. Keppel dizia que tal discussão era tão carregada de
emoção de ambos os lados, dos intelectuais negros e brancos, de Norte a Sul, que apenas
um estrangeiro poderia chegar a uma interpretação suficientemente objetiva. Mas o acaso
alterou seus planos:
Depois de muito procurar por um estrangeiro objetivo para fazer o trabalho, Keppel inadvertida-
mente escolheu um cientista social que não acreditava na objetividade da ciência social e que
estava profundamente comprometido com a engenharia social. Myrdal, um forasteiro, não fazia
parte do mundo das Ciências Sociais norte-americanas e seu compromisso com a ciência sem
valores. Ele não precisava se submeter à revisão de seus pares. Foi a própria evasão de Myrdal
da ortodoxia que tornou os cientistas sociais hesitantes a desenvolver recomendações de políti-
cas para as relações raciais o que permitiria que o estudo tivesse impacto além do estrito mundo
acadêmico. (Cohen, 2014: 11-12)
Feita a escolha, Myrdal teve liberdade para desenvolver o projeto da Carnegie. Não
conheceu restrições ao estabelecer o escopo do projeto à sua maneira nem ao recrutar
extenso grupo de assistentes para auxiliá-lo na pesquisa. Ampliara o projeto original e não
recebera negativas de Keppel por causa disso. Numa tentativa de apaziguar a discórdia dos
cientistas sociais norte-americanos, já que não aceitavam a escolha do estrangeiro para um
projeto dessa envergadura, Myrdal selecionou um numeroso grupo de psicólogos sociais,
sociólogos e antropólogos para prestarem assistência ao levantamento de fontes e dados
pertinentes ao projeto.
Negros e brancos foram selecionados, a maioria das Universidades de Chicago, Colum-
bia, Northwestern, Fisk e Howard, embora os assistentes mais importantes, por terem con-
tribuído diretamente para o desenvolvimento da pesquisa, fossem pessoas da confiança de
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 435-449, maio-agosto 2019 435
Gustavo Mesquita
Myrdal, suecos como ele. É o caso de Richard Sterner, que, em nome da coordenação dos
cientistas sociais participantes do projeto, viajara para os Estados Unidos ao lado de Myrdal a
seu pedido (Southern, 1987).
Egresso da Escola Sociológica de Chicago, Arnold M. Rose ficou responsável pela coorde-
nação da equipe junto com Sterner. Ambos os assistentes acompanharam de muito perto o de-
senrolar da pesquisa de campo feita por Myrdal em alguns estados sulistas logo que chegara
ao país. A pesquisa de campo foi considerada decisiva, tanto quanto humanamente dramática,
posto que a aproximação dos estrangeiros com a realidade nua e crua do racismo segrega-
cionista do Sul os convenceu de que o problema para o qual a Carnegie buscava solução não
resultava apenas do comportamento do negro. Era mais do que isso. Tratava-se de um dilema
racial alimentado pelo branco. Seria, portanto, o racismo dos brancos, sua supremacia, o fator
determinante na criação de um conflito, danoso e persistente, entre o credo norte-americano
e a democracia dos e para os brancos.
Os objetivos do projeto foram ampliados depois dessa constatação, sem empecilhos ou
outras dificuldades impostas por Keppel, pois a ele interessava observar o limite ao qual Myrdal
chegaria depois de tomar conhecimento da situação de mal-estar civilizacional criada pela vio-
lência contra os negros do país. O dilema norte-americano, por conseguinte, passou a problema
central da investigação em curso. Nela, Myrdal aplicou a mesma metodologia não neutra, capaz
de reconhecer a ambivalência dos valores democráticos dos Estados Unidos, anteriormente
desenvolvida em sua obra econômica – ponto de partida para sua interpretação da questão
racial, entendida como problema negro. Tal compreensão foi suplementada com os dados dos
assistentes acerca da ambivalência do credo norte-americano, isto é, o choque entre a ordena-
ção do sistema democrático e as atitudes segregacionistas dos brancos contra os negros.
Arnold M. Rose recebeu a incumbência de terminar a redação de An American Dilem-
ma quando Myrdal tivera que retornar à Suécia, em 1943, antes da conclusão do projeto. A
pesquisa, graças ao trabalho complementar de Rose, tomou a forma final de An American
Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy, livro escrito quase por inteiro pelo
próprio Myrdal, cuja visão moral do dilema norte-americano era uma significativa diferença
em relação ao que havia sido dito, quer em chave culturalista, quer em chave marxista, sobre
as relações raciais naquele país.
Em suas mais de mil páginas, o livro enciclopédico trouxe um debate crítico com as teses
de cientistas sociais como Robert E. Park, Franklin Frazier, Franz Boas, Ashley Montagu, entre
outros. O sueco, ao rejeitar de novo o marxismo como modelo explicativo da desigualdade
racial nos Estados Unidos – como fizera na obra acerca do desenvolvimento econômico
436 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 436-449 maio-agosto 2019
Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil
mundial –, usou o princípio das causas acumulativas para explicar o distúrbio nos padrões
urbanos e rurais de vida dos negros.
O ponto fundamental consiste na tese de que um distúrbio no estágio inicial do equilí-
brio sistêmico não estimula reações compensatórias nem tende a restaurá-lo. Ao contrário, o
distúrbio produz mudanças que movem o sistema para longe de sua posição inicial. O padrão
de vida dos brancos, muito superior ao dos negros, é visto como um distúrbio para o sistema
igualitário norte-americano. O tratamento intensamente desigual dispensado ao grupo negro,
na mesma sociedade do grupo branco, é visto como movimento que afastou, ao longo da his-
tória, o equilíbrio do sistema para muito longe da democracia, criando desse modo um dilema,
que Myrdal começou a tese definindo:
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 437-449, maio-agosto 2019 437
Gustavo Mesquita
A chave foi o impacto sobre a consciência nacional baseado na convicção de Myrdal de que as
ideias morais tinham força. Uma vez que uma mudança na direção positiva estivesse concluída,
as causas acumulativas proveriam a dinâmica com mais aprimoramentos (2008: 74).
Entendemos que um movimento em qualquer uma das variáveis negras na direção dos ní-
veis brancos tenderá a diminuir o preconceito do branco. Ao mesmo tempo, o preconceito
do branco é responsável, direta ou indiretamente, pela mais efetiva manutenção dos níveis
baixos relativos às variáveis negras. É também nossa hipótese que, no todo, o melhoramento
de qualquer uma das variáveis negras tenderá a melhorar todas as outras variáveis negras e,
assim, indiretamente assim como diretamente, resultará num acumulativo e reforçado efeito
sobre o preconceito do branco. Um acréscimo no emprego tenderá a aumentar a renda; elevar
os padrões de vida; e melhorar a saúde, a educação, o comportamento e a obediência civil,
e vice-versa; uma melhor educação é capaz de aumentar as chances de empregos mais bem
remunerados, e vice-versa; e assim em todo o percurso através de nosso completo sistema
de variáveis. Cada uma das mudanças secundárias tem efeito sobre o preconceito do branco
(MYRDAL, 1944: 1066-1067).
438 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 438-449 maio-agosto 2019
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Gustavo Mesquita
C omo sociedades de castas são formadas? Como ocorre a transição desse sistema social
para o de classes? Como raças entram em evolução para classes sociais e livram as
sociedades dos preconceitos antidemocráticos? Qual a função do negro e do branco nesse
processo social? O que, afinal, significam raça, casta, estamento e classe? Enfim, como se
operam tais conceitos teóricos na análise da discriminação racial no Brasil? Lado a lado com
a tradição formada principalmente pelos estudos interacionistas e culturalistas de Chicago e
Columbia, An American Dilemma trazia respostas a essas perguntas, dado seu volume enci-
clopédico de conceitos teóricos, métodos e técnicas em ciências sociais.7
440 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 440-449 maio-agosto 2019
Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil
Um homem que representa a tradição europeia, esse Myrdal, ele escreve um livro todo sobre
o elemento político na economia [referindo-se ao The Political Element in the Development
of Economic Theory, de 1953]. Um professor americano poderia escrever uma biblioteca toda,
uma enciclopédia para provar que não deve existir elemento político na ciência. Esse é um
contraste vigoroso. É por isso que o livro de Myrdal, An American Dilemma, aqueles apêndices
tiveram uma importância tão grande nos Estados Unidos, porque levaram a uma fermentação
nova (1978b: 26).
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Gustavo Mesquita
principais apoiadores do livro no Brasil, mas seus usos pouco a pouco deixaram de ser ocultos
e começaram a ser mais pronunciados. Parece que falar sobre o racismo na década anterior
era algo mais arriscado e menos incentivado do que na década seguinte, quando os cientistas
sociais de São Paulo se sentiram confiantes para lançar uma antítese à interpretação da socie-
dade brasileira desenvolvida em Casa-grande & senzala.9
Quando, em 1953, entravam em fase de conclusão os inquéritos sobre valores, com-
portamentos e atitudes característicos das relações raciais no espaço paulista, Paulo Duarte
(1947) publicou uma nota introdutória a seus resultados em Anhembi. Longe do que afirmara
seis anos antes, em O Estado de S. Paulo, a respeito da cordialidade e da ausência de racismo
no Brasil, dessa vez os novos estudos do negro assumiram um caráter urgente.
O projeto da Unesco tinha importância à medida que esclareceria um problema cada
dia mais grave para a democracia brasileira: o tema negro. Essa investigação, todavia, não
tinha abrangência apenas nacional. Sua universalidade decorre, para ele, da oportunida-
de de compreender inconsistências, restrições e males que a temática negra, sub-reptícia
e ardilosamente, causa ao sistema democrático. Conhecer as causas dessa questão era,
assim, fundamental:
Foi assim que Unesco e Anhembi se encontraram unidas na realização de um mesmo trabalho
de alta significação universal, como seja uma análise objetiva mas feita em profundidade sobre
a vida da população negra do Brasil, país universalmente considerado como aquele que melhor
solução estava dando ao problema, entre todos os países brancos possuidores de importante
parcela de população de cor. (Duarte, 1953: 433)
442 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 442-449 maio-agosto 2019
Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil
A ascensão social do negro e do mulato encontra barreiras raciais desde o século XIX,
na medida em que os indivíduos com tais cores tentam crescer na competição social, esfor-
çando-se para vencê-la em busca das melhores oportunidades no mercado. Lembremos que
o tema das pesquisas feitas em São Paulo reside na situação do negro na ordem competitiva,
fundante do sistema social igualitário. Isso significa que o interesse dos cientistas sociais, ao
contrário das sobrevivências africanas na cultura negra contemporânea, se concentrava na
inserção do negro e do mulato no mercado de trabalho. Tal questão era, na verdade, uma dire-
triz endossada pela Unesco e observada por Bastide, Fernandes e seus assistentes, igualmente
interessados no direcionamento da pesquisa dado pela organização internacional.
Se o preto e o pardo sofrem discriminação racial nas áreas modernas e industriais do país,
a ordem competitiva apresenta inconsistências de natureza estrutural. O problema negro seria de
estrutura social e merecia solução urgente. É a origem do problema a mesma dos Estados Unidos?
Ficou clara, nas Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, a tese nativa segundo a qual,
no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, há preconceito de marca, e não de origem. Desse modo,
o branco racista discrimina, antes de tudo, a cor ou o fenótipo das pessoas pretas e pardas, assim
como tudo o que essas cores representam simbolicamente, para ele, em termos negativos.
Nos Estados Unidos, numa comparação que exprime graus de intensidade dos racismos,
a discriminação é, sobretudo, de origem, atitude preconceituosa mais explícita e violenta por
causa de sua tendência à exclusão de todas as pessoas com origens étnicas e nacionais dife-
rentes da supremacia branca norte-americana (Nogueira, 1955).
O primeiro ciclo brasileiro de pesquisas raciais da Unesco chegara ao fim na virada da
década de 1950 para a de 1960, mas as obras dele resultantes ainda eram publicadas conse-
cutivamente. Em 1957, antes do definitivo encerramento do ciclo, Bastide chamou a atenção
para o dilema brasileiro no International Social Science Bulletin. Trata-se de uma das primeiras
vezes em que o racismo dos Estados Unidos foi comparado ao do Brasil de forma invertida,
em Brazil: An Interpretation, de Gilberto Freyre.
Myrdal falou do “dilema americano”. Talvez o conjunto de fatos e interpretações discutidos nes-
te artigo possam ser resumidos ao dizermos que há também um “dilema brasileiro”. O distúrbio
da estrutura social e o desenvolvimento das ideias democráticas estão tendendo a substituir o
velho paternalismo pela luta não mais por igualdade formal, mas agora econômica e racial.
Esta luta enseja consciência racial entre as pessoas de cor e discriminação entre os brancos [...]
No Brasil industrial, este dilema é revelado, neste momento, pela forma que a discriminação
assume [...] A grandeza do Brasil consistirá em sair de seu dilema passando do paternalismo
ao igualitarismo sem perder, na passagem, as qualidades de amor, de tolerância, de respeito
mútuo, que caracterizam seus filhos (1957: 512).
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 443-449, maio-agosto 2019 443
Gustavo Mesquita
A um negro é negado um cargo não porque ele é negro – ele é informado que a vaga infeliz-
mente acabou de ser preenchida. A ele não é negada uma promoção na carreira profissional
– ele não é aprovado no exame médico. Esta solução, que não engana ninguém, obviamente
não pode durar (Bastide, 1957: 512).
O racismo velado não pode durar, senão o sistema democrático no Brasil não alcança o
equilíbrio necessário para acelerar a modernização. Não pode durar porque o racismo entrou
num círculo vicioso que atrasa a modernização. A transição completa para o sistema social
igualitário, preservando as características positivas da cultura brasileira, só estaria verdadeira-
mente completa com a solução do dilema brasileiro e nosso problema negro. As raças ainda
fazem sentido nas relações sociais, ao passo que, sociologicamente, o sistema social igualitá-
rio é incompatível com o pensamento racial – daí o fato de nosso dilema ter tido destaque no
ciclo de pesquisas da Unesco, sendo constante motivo de preocupação para cientistas sociais
e diretores da organização internacional.
Em 1964, Fernandes aprofundou o estudo da desigualdade brasileira com sua tese para pro-
fessor titular da USP: A integração do negro na sociedade de classes. Conquanto nativa, a interpre-
tação da questão racial continuou se valendo do argumento das causas acumulativas de Myrdal:
444 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 444-449 maio-agosto 2019
Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil
Como ex-agentes do trabalho escravo e do tipo de trabalho manual livre que se praticava na
sociedade de castas, o negro e o mulato ingressaram nesse processo [o de constituição da
ordem social competitiva] com desvantagens insuperáveis. As consequências sociopáticas da
desorganização social imperante no “meio negro” ou da integração deficiente à vida urbana
concorreram para agravar o peso destrutivo dessas desvantagens, aniquilando ou corroendo
até as disposições individuais mais sólidas e honestas de projetar o “homem de cor” no apro-
veitamento das oportunidades em questão. Desse ângulo, percebe-se com facilidade como a
degradação pela escravidão, a anomia social, a pauperização e a integração deficiente combi-
nam-se entre si para engendrar um padrão de isolamento econômico e sociocultural do negro e
do mulato que é aberrante em uma sociedade competitiva, aberta e democrática. (1965: 192)
Delineia-se claramente, assim, o dilema racial brasileiro. Visto em termos de uma das comuni-
dades industriais em que o regime de classes sociais se desenvolveu de modo mais intenso e
homogêneo no Brasil, ele se caracteriza pela forma fragmentária, unilateral e incompleta com
que esse regime consegue abranger, coordenar e regulamentar as relações raciais. Essas não
são totalmente absorvidas e neutralizadas, desaparecendo atrás das relações de classes. Mas se
sobrepõe a elas, mesmo onde e quando as contrariam, como se o sistema de ajustamentos e de
controles sociais da sociedade de classes não contivesse recursos para absorvê-las e regulá-las
socialmente (Idem: 391).
Vendo a reprodução incessante do dilema brasileiro, que não permite que as relações de
raça se tornem relações de classe numa sociedade de classes democrática, resta a Fernandes
lançar, em A integração do negro na sociedade de classes, sua conclusão final, análoga à de
An American Dilemma, relativa aos Estados Unidos:
Essa explicação permite situar o problema do negro de uma perspectiva realmente sociológica.
Ele não constitui um “problema social” apenas porque evidencia contradições insanáveis no
comportamento racial dos “brancos”, porque traduz a persistência indefinida de padrões iní-
quos de concentração racial da renda, do prestígio social e do poder ou porque, enfim, atesta
que uma parcela considerável da “população de cor” sofre prejuízos materiais e morais incom-
patíveis com os fundamentos legais da própria ordem social estabelecida. Esses sintomas con-
duzem à superfície o mal crônico, que é mais grave e pernicioso. Trata-se das condições mínimas
de diferenciação e de integração normais de um sistema social. (1965: 392)
Perde o sistema social igualitário, perdem os cidadãos, perde a nação. As novas teses
brasileiras de relações raciais logo viajaram de volta para os Estados Unidos, graças a sua
rápida e eficiente difusão no mundo acadêmico daquele país. Em 1953, Richard Morse, então
professor de história das américas em Columbia, publicou um artigo no The Journal of Negro
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 445-449, maio-agosto 2019 445
Gustavo Mesquita
History (1953). Fernandes foi aqui considerado um inovador cientista social que, desafiando
o imponente pensamento de Freyre, desenvolvia uma nova interpretação do Brasil: o dilema
brasileiro. Não continua o Brasil a ser pensado por cientistas sociais e historiadores de ambos
os países como um dilema nacional até nossos dias? Acredito que a história da sociologia
ainda tenha muito a dizer sobre essa questão.
Notas
1 Anhembi era identificada por seu criador, Paulo Duarte, como uma revista de cultura. Foi criada em São
Paulo, em 1950, em alinhamento ao ideário liberal dos pioneiros da USP, centrado fundamentalmente no
papel da ciência como orientação dos rumos da sociedade. Em seu apogeu, graças à tão profícua parceria
estabelecida com a Unesco, o periódico dera uma contribuição significativa para o debate contemporâneo
sobre relações raciais relativo não só ao Brasil, mas de forma universal. Artigos dessa natureza, produzidos,
por exemplo, pelos sociólogos Oracy Nogueira, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando
Henrique Cardoso, eram comuns em suas páginas. Entretanto, a revista teve de encerrar as atividades em
1962, em virtude de uma grave crise financeira (Hayashi, 2010).
2 O livro Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, organizado por Roger Bastide e Florestan
Fernandes, é só um exemplo das várias pesquisas raciais financiadas pela Unesco no Brasil entre os anos 1950
e 1960. Foi publicado pelo convênio Anhembi/Unesco, em 1955, e contou com monografias, além das dos
organizadores, de Oracy Nogueira, Virgínia Bicudo e Aniela Ginsberg. Em 1959, na segunda edição da obra,
inscrita na Coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional, foram excluídas as monografias dos outros
pesquisadores, com exceção de Bastide e Fernandes, e seu título foi encurtado para Brancos e negros em São
Paulo.
3 Representativa dessa tradição intelectual é a coletânea Race Relations and the Race Problem, organizada
por Thompson (1939), em que um conjunto de cientistas sociais, sob a liderança de Robert Park, abordou o
racismo do ponto de vista interacionista. A pergunta-chave do livro era: como a compreensão do conflito racial
pode auxiliar a integração da sociedade norte-americana?
4 Economista e sociólogo sueco, Myrdal já era um social-democrata fortemente anticomunista e reformista em
meados dos anos 1930. A primeira edição de seu livro The Political Element in the Development of Economic
Theory apareceu nessa época, exprimindo um economista crítico das leis naturais de Adam Smith e do utilita-
rismo de John Stuart Mill. Foi discípulo do também sueco Knut Wicksell, cujas lições em economia, em síntese,
giram em torno da importância da teoria monetária para o equilíbrio das nações. Myrdal buscou expor, ao longo
de sua trajetória, as falácias dos teóricos clássicos e tornar possível a introdução de premissas de valor, como
moralidade, crenças e costumes, na análise social e econômica. Ganhou o Nobel de Economia pelo conjunto da obra
em 1974 (Barber, 2008).
5 Arthur M. Schlesinger Jr., Eleanor Roosevelt, Walter Reuther e outros precursores do Americans for Democra-
tic Action (ADA), embrião do que mais tarde se tornaria a Unesco, além de intelectuais como Edward Franklin
Frazier, Gunnar Myrdal, Hanna Arendt, Ashley Montagu e Margaret Mead, foram importantes agentes do mo-
vimento internacional pelos direitos humanos. Apoiado pelo presidente Harry Truman, o movimento foi confi-
gurado em torno da ideia de third force, uma estratégia política não alinhada nem à esquerda nem à direita,
mas ao centro vital, tendo a defesa do desenvolvimento econômico como engendrador da liberdade. A agen-
446 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 446-449 maio-agosto 2019
Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil
da dos direitos humanos, por enfocar setores marginalizados da sociedade, pressupunha, desde o começo,
essa concepção político-ideológica. Ela era o caminho, diziam seus inventores, para as democracias ocidentais
evitarem a infiltração da ideologia comunista, especialmente nos países subdesenvolvidos (Cancelli, 2012).
6 A inconformidade à falta de democracia desconheceu consenso tão absoluto assim. Imediatamente, alguns
intelectuais se posicionaram contra a tese de Myrdal e rejeitaram seu programa de antirracismo liberal-refor-
mador. Foi o caso de Ralph Ellison e Carter Woodson, dois ativistas negros, e de Herbert Aptheker, membro
do Partido Comunista dos Estados Unidos. As críticas desses intelectuais tiveram em comum a rejeição do
reformismo presente no livro. Haveria um compromisso político de Myrdal com a modernização da socieda-
de americana, o qual se sobreporia à interpretação mais isenta da questão negra. A visão liberal do autor
resultaria de seu compromisso político-ideológico com os ideais de modernidade burgueses. Para ambos
os ativistas negros, o reformismo implicava a nociva negação da originalidade da cultura afro-americana,
ao passo que, para o comunista, Myrdal era um representante da classe dominante, cujas reformas liberais
atenderiam somente às prementes necessidades de mudança da ordem capitalista, tornando-a mais tolerante
com diferenças étnico-raciais (Ellison, 2003).
7 Estudos bem informados sobre a história das ciências sociais no Brasil e no exterior são encontrados em
Stocking, 1982; Oliveira, 1987; Miceli, 1989 e 1995; Cuche, 2008; Maia e Pereira, 2009; Brasil Júnior, 2013;
Meucci, 2015; Maio e Lopes, 2017.
8 No que toca à fração paulista, já na segunda nota de rodapé do projeto de pesquisa coletivo, escrito por
Florestan e revisado por Bastide, nota-se a onipresença de An American Dilemma e das obras clássicas de
Chicago, recomendadas como referência obrigatória no campo intelectual e usadas como fundamentação
teórica da pesquisa a ser desenvolvida (Bastide e Fernandes, 1959: 323).
9 Em 1948, em “A análise sociológica das classes sociais”, artigo aparecido pela primeira vez em Sociologia
– Revista didática e científica, editada pela Elsp, Florestan relativizou a significação do conceito de classes
sociais. Nessa relativização, porém, afirmou que a conceituação de Myrdal, desenvolvida nos apêndices de
An American Dilemma, era a mais próxima da realidade social, já que não definia classe só como condição
material, mas, paralelamente, como valores e crenças constitutivas das identidades (Fernandes, 1948: 112).
10 O problema negro recebeu tanta atenção no Brasil que Anhembi com frequência abordava o assunto.
Avanços científicos, com pretensão de universalidade, em torno do pensar e do equacionar a questão racial
em múltiplos países, logrados por cientistas sociais franceses, ingleses, mexicanos etc., foram trazidos à tona
pela revista em busca da instrução antirracista de seu público leitor. Evidência disso é o artigo “O racismo e
a ciência” (1954), no qual a crítica à discriminação racial identificada no Brasil foi feita à luz das conclusões
de Arnold M. Rose, em The Origins of Prejudice, e Michel Leiris, em Race et Civilisation. Esses sociólogos par-
ticiparam de um projeto mais amplo da Unesco, intitulado The Race Question in Modern Science, responsável
pelas novas dimensões do conceito de raça. Para uma análise transnacional da atuação da Unesco no campo
das relações raciais, ver Cancelli, Mesquita e Chaves, 2019.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 447-449, maio-agosto 2019 447
Gustavo Mesquita
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Artigo
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200007
I
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
*Doutora em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro,
Brasil. (lrzedine@gmail.com). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4055-8733.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 450-468, maio-agosto 2019 450
Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)
Resumo
Este artigo analisa publicações da vertente Verde-amarela/Anta do modernismo paulista, entre os anos de 1926 e
1929, no jornal diário Correio Paulistano. Discute a hipótese de que as proposições de Cassiano Ricardo, Menotti
Del Picchia, Plínio Salgado e demais participantes do grupo, para o estudo do Brasil e dos brasileiros, devem ser
analisadas tendo em conta, além do discurso de valorização da intuição estética, seus diálogos com os ensaios de
interpretação nacional na tradição brasileira e latino-americana, os quais os verde-amarelos teriam considerado
como forma adequada de aproximação com o discurso científico sobre a realidade brasileira.
Abstract
The article analyzes authors of the group Verde-amarelo/Anta, a trend of paulista modernism. Cassiano Ricardo,
Menotti Del Picchia, Plínio Salgado published articles on the newspaper Correio Paulistano between 1926 and 1929.
I argue they understood Brazil and Brazilian people through the Brazilian and Latin American tradition of nation
essays, as Alberto Torres and José Vasconcelos. Those essays were a part of the historical and sociological culture of
the early twenty century. Then I conclude that the authors had a more complex relationship with scientific discourse
than the historiography of the modernism admit, beyond the aesthetic intuition and an anti-scientific discourse.
Keywords: Modernism; Interpretations of Brazil; Essay; Verde-amarelo/Anta movement; Races relations; José
Vasconcelos.
Resumen
Este artículo analiza publicaciones de la vertiente Verde-amarela/Anta del modernismo paulista, entre los años 1926
y 1929, en el diario Correio Paulistano. Sostengo la hipótesis de que para analizar las proposiciones de Cassiano
Ricardo, Menotti Del Picchia, Plínio Salgado y demás participantes del grupo, para el estudio de Brasil y de los
brasileños, se debe tener en cuenta, además del discurso de valorización de la intuición estética, sus diálogos con
los ensayos de interpretación nacional en la tradición brasileña y latinoamericana, que los verde-amarelos habrían
considerado como forma adecuada de acercamiento con el discurso científico sobre la realidad brasileña.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 451-468, maio-agosto 2019 451
Lorenna Ribeiro Zem El-Dine
Introdução
A naliso neste artigo a apologia dos ensaios de interpretação nacional por parte da ver-
tente verde-amarela/anta do modernismo paulista, manifestada em artigos publicados
no Correio Paulistano, entre 1926 a 1929. Argumento que a valorização da intuição, em de-
trimento dos processos analíticos do conhecimento, embora uma marca reconhecida do grupo
de Plínio Salgado, Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo (Jardim, 2016),1 não significou um
contraponto irremediável a formas reflexivas de apreensão da realidade. A meu ver, a tensa
relação dos verde-amarelos com o discurso científico terminaria por respaldar a tradição en-
saística nacional e latino-americana, aqui compreendida como parte da cultura historiografia
e sociológica brasileira das primeiras décadas do século XX.
Considero nesta análise a importância de situarmos o modernismo de São Paulo no pa-
norama das mudanças ocorridas no cenário intelectual brasileiro do início do século XX e de
nos lembrarmos dos caminhos pelos quais se deu a institucionalização das ciências sociais em
distintos contextos nacionais (Lepenies, 1996; Martins, 2003), considerando as tensões entre
os literatos e os cientistas, que permearam o processo de especialização dos saberes no Brasil
(Sá, 2006). Com base nesse enfoque, apesar da marca anti-intelectualista verde-amarela, a
participação desse grupo na interpretação do país, tarefa que os intelectuais dos anos 1920
estabeleceram como fundamental, pode, enfim, ser examinada.
Investigo as publicações verde-amarelas como discursos que não só defenderam a prer-
rogativa do artista como intérprete da brasilidade, mas também tencionaram outras perspec-
tivas a partir das quais se produzia conhecimento sobre o Brasil e os brasileiros. Ao chamar a
atenção para polêmicas e reflexões que reverberarão nos desdobramentos do modernismo em
ensaios de caráter sócio-histórico de maior fôlego, publicados na década seguinte,2 cogito a
inclusão da reflexão dos verde-amarelos sobre o ensaísmo no escopo de uma “sociologia mo-
dernista” ou como parte da “floração” que antecede o “canteiro sociológico” mais abundante
dos anos 1930 (Martins, 2013: 61) e, consequentemente, também a inclusão do grupo no rol
dos chamados intérpretes do Brasil.
A eleição dessa perspectiva tem em vista que, nos últimos anos, a pesquisa em he-
merotecas digitais brasileiras como a da Biblioteca Nacional, a abordagem transnacional e
o interesse da historiografia sobre a formação de redes intelectuais implicam novos vieses
para uma história intelectual do modernismo. Acerca dos verde-amarelos, em periódicos dos
anos 1920, vem sendo possível mapear desde referências conhecidas a obras de brasileiros
como Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna e Roquette-Pinto até citações mais
dispersas a autores latino-americanos, como o uruguaio José Enrique Rodó e os peruanos
452 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 452-468 maio-agosto 2019
Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)
Francisco Garcia Calderón e José Carlos Mariátegui, ou ainda mais sistemáticas, como no
caso de José Vasconcelos (El-Dine, 2017; Coelho, 2018). Além disso, é possível notar o
contato que tiveram com obras como as do alemão Hermann Keyserling e as do norte-ame-
ricano Waldo Frank, que nos anos 1920 e 1930 elegeram a América Latina como objeto de
suas reflexões e construíram sólidas redes intelectuais no continente ( Berriel, 1987; Lino,
2009; Faria, 2013).
Como escritores contumazes em periódicos e revistas, os verde-amarelos se inseriram
cada qual de um modo particular nos debates internos ao modernismo, bem como repisaram
a forma periodística do ensaísmo hispano-americano (Skirius, 2006: 12). Suas publicações
reagiram aos debates intelectuais e aos acontecimentos da época, transitando sobre o terreno
comum da percepção da decadência do legado cultural europeu e da crise da ordem liberal
no período no entreguerras. De fato, foi também interpelando esse contexto intelectual e a
própria crise do regime republicano brasileiro que os verde-amarelos e seus pares se voltaram
para o estudo do passado nacional e do brasileiro, produzindo intepretações do país que tanto
se acercaram quanto deslocaram os padrões científicos estrangeiros .
Ao mesmo tempo, não se pode esquecer que, como editores da revista literária Novíssi-
ma (1923-1926), Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia ensaiaram uma aproximação com
escritores latino-americanos, chegando a reunir um grupo eclético de colaboradores, do qual
participaram o mexicano Federico Gamboa, os uruguaios Juana de Ibarbourou e Vítor Perez
Petit, e os argentinos Alfonsina Storni, Lorenzo Stanchina, Manuel Galvéz, Nicolás Olivari e
Benjamín de Garay (Guelfi, 1989: 43).3
Inicialmente, analiso o lugar da crítica aos cientistas e aos procedimentos da ciência na
conformação do verde-amarelismo e de seus contrapontos aos pares modernistas. Em segui-
da, argumento queos verde-amarelos elegeram a tradição ensaística brasileira e latino-ame-
ricana como base teórica de seu movimento, numa tentativa de se diferenciarem de outras
correntes do modernismo, e chamo a atenção para suas leituras de Alberto Torres. Por fim,
sugiro uma relação entre ensaio e a interpretação do Brasil e dos brasileiros proposta pelos
verde-amarelos, tendo em vista seus diálogos com a obra de José Vasconcelos.
Ao longo do artigo, procuro observar a interlocução dos verde-amarelos com outros
modernistas e intelectuais da época, especialmente com Graça Aranha, Oswald de Andrade e
Mário de Andrade, a fim de estabelecer o contexto de suas reflexões.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 453-468, maio-agosto 2019 453
Lorenna Ribeiro Zem El-Dine
454 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 454-468 maio-agosto 2019
Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)
No verso disso, entretanto, o contraponto ao modo de conhecer da ciência foi uma moe-
da corrente, seja nas críticas dos verde-amarelos ao passadismo literário, seja nos seus emba-
tes com outros modernistas. Nesses casos, o argumento divergente seria construído sobre a
negativa aos modelos europeus e à replicação de fórmulas artísticas que consideraram equi-
valentes aos procedimentos sistemáticos da ciência. Para os verde-amarelos, possivelmente
imbuídos de ecos da crítica romântica à invasão da ciência a territórios alheios aos seus, havia
certo parentesco nos processos que tornavam os parnasianismos, mas também modernistas
como Oswald de Andrade e Mário de Andrade, muito teóricos, ao passo que a poesia nacional
deveria ser espontânea e traduzir sinceramente a realidade brasileira.5 Por essa razão, segun-
do Cassiano Ricardo, a “revelação do Brasil” era prerrogativa da poesia e da sua expressão
sentimental “mais concreta e mais pura” que a linguagem dos cientistas (11 jan. 1927).
Nessa interpretação, aliás, os verde-amarelos coincidiriam com o ponto de vista de Graça
Aranha, para quem os processos analíticos da ciência produziam um entendimento fragmen-
tário da realidade nacional (Jardim, 2016: 25). Para Cassiano Ricardo, por exemplo, o artista
se distanciava da pátria se a tomasse por seu objeto de estudos, ao passo que sua subjetivi-
dade projetada sobre o mundo exterior seria um reflexo da realidade nacional. A seu ver, a
arte era capaz de captar por si só a essência nacional, e o processo de criação realizava uma
fusão harmoniosa entre o artista e a pátria, dispensando a mediação dos processos científicos
(Velloso, 1983: 48).
Em meados de 1925, os verde-amarelos se referiram à poesia Pau Brasil como um “dolo-
roso experimentalismo científico”. Nas palavras de Cassiano Ricardo e Plínio Salgado, Oswald
de Andrade se inspirara no trabalho dos “fisiologistas”, que “costumam tirar certas partes do
cérebro dos animais, para ver se eles andam, sentem, gritam”, e estaria fazendo o mesmo com
o estilo brasileiro “ainda em ensaio, a ver se ele exprime alguma coisa” (Hélios, 28 set. 1925).
Apesar da convergência dos modernistas em torno do tema da brasilidade, ocorrida espe-
cialmente a partir de 1924 (Jardim, 2016), cada vez mais as diferenças entre os verde-amarelos,
Oswald de Andrade e Mário de Andrade se aprofundaram. Graça Aranha foi isolado por parte
do grupo paulista, e Sergio Buarque de Holanda escancarou as divergências entre os diversos
grupos do movimento com a publicação de O lado oposto e outros lados, em 1926. De todo
modo, Oswald de Andrade e os verde-amarelos se mantiveram afinados no entendimento de
que a intuição seria o caminho mais adequado à apreensão da brasilidade, ao passo que Mário
de Andrade privilegiaria a pesquisa sistemática da cultura nacional (Ibidem: 73; 81; 95).
Por outro lado, considerando que os discursos desses escritores foram se constituindo
uns contra os outros (Ricupero, 2018: 896), muitas vezes parecem ser tênues os limites no tra-
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modernismo verde-amarelo (1926-1929)
A pesar de a intuição ter sido apontada pelos verde-amarelos como o caminho mais
adequado para a interpretação do Brasil, a partir de 1926, o ensaio se firmaria cada
vez mais como um caminho interpretativo que dava conta desse aspecto. Foi esse o rumo indi-
cado em Literatura e política, quando Plínio Salgado sugeriu um descolamento com relação ao
modernismo literário e a reconfiguração das bases intelectuais do verde-amarelismo, fazendo
alusão à tradição ensaística brasileira:
Sentir-se-á nestas páginas a impressão que me tem ficado da obra de Alberto Torres, das pon-
derações de Tavares Bastos, do nosso pensamento nacional que, com feições contrastantes,
espelha-se na literatura social e política de Oliveira Vianna, Pontes de Miranda, Licínio Cardoso,
Roquette-Pinto, Tristão de Athayde, Jackson de Figueiredo [...]. Também será observada a in-
fluência dos depoimentos e comentários de Euclides da Cunha (1927: XI-XII).
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ensaio sobre Alberto Torres, Alberto Torres e o tema da nossa geração (1931), que foi publi-
cado primeiro nos rodapés do Correio Paulistano, entre 1927 e 1928, e, mais tarde, impresso
pela Schmidt Editor-Rio, com prefácio escrito por Plínio Salgado. Nesse texto, Plínio Salgado
apresentou a si e a Motta Filho como porta-vozes de “uma geração sacrificada”, que começou
a exercer sua crítica sobre a República, notando “o contraste entre as realidades da Nação e o
espírito que animava a sua Constituição e as suas leis” (Salgado, 1931: II), ao mesmo tempo
que se familiarizavam com as realidades brasileiras estudadas pelas obras de Oliveira Vianna
e Alberto Torres.
Alberto Torres, na visão de Motta Filho, havia sido um político discreto, mas profundo,
além de um sociólogo com “visão pragmática das coisas brasileiras” (1931: 17-20). Suas
ideias coincidiam com as de pensadores como Tavares Bastos, Joaquim Nabuco e Euclides da
Cunha e estariam em contraponto ao alheamento de intelectuais como Rui Barbosa. Segundo
Motta Filho, para Alberto Torres, o brasileiro estava acostumado à “força apaziguadora” da
imaginação, costumava adiar a verdade e não conseguia impor sua personalidade nacional,
por isso precisava urgentemente substituir a imaginação por uma visão da realidade brasileira
(Ibidem: 28-29). Alberto Torres não aceitava o espírito catedrático europeu, observava e falava
com consciência americana e brasileira, e “o que ele diz, na observação local dos problemas
nacionais, está hoje generalizado e aceito pelas mais potentes autoridades sociológicas do
mundo” (Ibidem: 48).
Essa leitura de Candido Motta Filho evoca sentidos paradoxais dessa época, que conci-
liava a afirmação da cultura local, o questionamento do legado europeu, mas também a fami-
liaridade com autores que produziram da Europa críticas à cultura ocidental e que, buscando
referenciais culturais externos ao velho continente, voltavam as atenções para outros cenários
no mundo, como Ásia, África e América Latina. Considerando-se o contexto modernista, cabe
lembrar que a crítica à cultura ocidental também foi uma questão central para a Antropofagia
e que, desde o lançamento da poesia Pau Brasil, em 1924, Oswald de Andrade negou várias
vezes a identificação com o primitivismo europeu (Ricupero, 2018: 882 e 891).8
No capítulo “A terra e sua gente”, Motta Filho cita o A decadência do Ocidente, de
Oswald Spengler, e ressalta uma de suas premissas: a de que a vitalidade de um povo de-
pendia de sua convivência harmônica com a terra e de sua compreensão sobre os caracteres
geopolíticos de sua conduta (1931: 47). Além disso, afirma ter se convencido da semelhança
“entre o modernismo da civilização da América e o processo da civilização” no Egito antigo
(Ibidem: 67), depois de ler um artigo do crítico de arte alemão Wilhelm Worringer, O america-
nismo da civilização egípcia, que teria sido publicado na Revista do Ocidente, em 1926.
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Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)
Motta Filho argumenta que o Egito, antes da civilização americana, por conta de suas
características geográficas, teria deparado com a necessidade de “criar uma personalidade
inédita com a absorção de raças e gênios contrastantes” (Ibidem). Também na América, diante
da mesma urgência, existiria “uma força oculta que faz esquecer ao estrangeiro seu país de
origem”, conforme o adágio egípcio: “o estrangeiro que bebe a água do Nilo esquece o seu
país Natal” (Ibidem: 67-68).9
Diante disso, para Motta Filho, a solução para o problema racial no Brasil não passava
pela discussão sobre “raças puras e outros bizantinismos de civilizações extenuadas” (Ibidem:
68). Alberto Torres, segundo Motta Filho, “não se impressionava por ver algumas populações
interiores atacadas de moléstias tropicais”; ele as compreendia como “feridos de uma refrega
e também como atestado de que havia uma luta séria e dramática. Mas nunca degeneração”
(Ibidem: 69). Há aqui uma coincidência com os discursos médico-sanitaristas da época, para
os quais o brasileiro do interior não sofria de mácula racial, mas estaria abandonado pelas
elites políticas republicanas (Lima e Hochman, 1996).
Em todo caso, Motta Filho diria que o pessimismo em relação ao brasileiro que era dis-
seminado por ensaios como o Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado, que retratava o Brasil
e os brasileiros “em ‘pose’ de tristeza e de desânimo”, reproduzia, na realidade, um “ponto
de vista ocidental”. Conforme afirmava, Graça Aranha era “menos civilizado que o Sr. Paulo
Prado”, pois considerava o trabalho e a alegria do brasileiro (30 nov. 1928).
A ssim, o debate que ficara restrito ao campo das artes e à aquisição de um estilo nacio-
nal se voltava para a elaboração de um programa, baseado na obra de Alberto Torres
e de outros ensaístas, para a “observação local dos problemas nacionais”. A primeira coisa a
ver era o profundo abismo existente entre os chamados dois brasis. A relação entre o litoral e
o interior do país, constantemente retomada pelos ensaios históricos e sociais do Brasil, nas
primeiras décadas do século XX (Lima, 1999), foi também destacada por Plínio Salgado, em
Literatura e política.
O escritor idealizou o interior como um lugar onde os traços autênticos da cultura brasi-
leira estariam resguardados da ameaça dissolvente do cosmopolitismo do litoral. Entretanto,
apesar da ênfase sobre um suposto “mal urbano”, Salgado sugeriu uma aliança entre aquelas
duas tendências: “o Sertão deve dar à Cidade a sua alma e receber desta os benefícios da civi-
lização. Uma e outro devem respirar [...] numa atmosfera de tradições históricas e aspirações
comuns” (1927: 83).
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Lorenna Ribeiro Zem El-Dine
Em 1927, Plínio Salgado escreveu que, a seu ver, o Facundo (1845) do argentino Do-
mingo F. Sarmiento tomava outro sentido: “Eu via o homem brotar da Terra e avançar para
a cidade. Eu via a grande cortesã [...] invadida, por uma manada de antas arrasadoras do
cosmopolitismo” (19 mai. 1927). Alguns meses antes, ele publicou que Sarmiento, ao visitar o
túmulo de Facundo Quiroga, teria afirmado que o “sangue bárbaro” deste pulsaria sempre em
sua pátria, “atenuado pela civilização”, porém com “toda a sua força nativa” (23 jan. 1927),
o que, na sua visão, era um dado mais importante que o próprio livro escrito por Sarmiento.
Além disso, alertou que o Brasil não deveria repetir o erro do país vizinho, que teria se
tornado “uma nação rica, mas sem traços expressivos de originalidade” (8 fev. 1927). Ao
contrário da Argentina, o Paraguai seria um exemplo mais edificante, porque “soube conservar
a sua feição, mais fiel a terra e à raça” (Ibidem). Era necessário ouvir “o aviso formidável de
Euclides da Cunha e o exemplo argentino, que Sarmiento estampou no seu Facundo”, a fim
de “preparar uma grande nacionalidade americana” (21 jul. 1927).
A relação ambígua entre a atração pela cultura europeia e a tentativa de deslocamento
dos padrões culturais eurocêntricos seria retomada nos anos seguintes. Em 1928, Menotti
Del Picchia comemorou a prosperidade econômica das pequenas cidades do oeste paulista e
seus desdobramentos, que permitiam neutralizar o exílio interno do brasileiro (21 abr. 1928).
Cassiano Ricardo celebrou, no ano seguinte, a ampliação das estradas de ferro e de rodagem,
das “estações radiotelegráficas e da telefonia automática”, chamando a atenção para a pos-
sibilidade de o país, por meio do incremento das comunicações, conhecer e tomar posse da
própria cultura, bem como, pelos mesmos instrumentos, se abrir ao influxo externo e se tornar
menos exilado do mundo (27 mai. 1928). Em ambos os casos, embora a modernização tenha
sido vista como uma oportunidade para projetar valores “autênticos” da cultura brasileira, sua
celebração suaviza a ideia de uma oposição irremediável ao cosmopolitismo.
As referências continentais ganharam maior projeção nessa época. Menotti Del Picchia,
lembrando novamente Facundo, interpretou as sucessivas revoltas militares que tencionavam
o regime republicano brasileiro desde sua implementação e as interpretou como repetições de
um “fenômeno americano”, o caudilhismo (6 jul. 1927). A apreensão do Brasil sob um parâ-
metro continental foi reforçada, na mesma época, pela releitura de O sonho da raça (1924),
de Alarico Silveira. O texto se referia à mítica descida dos tupis do interior do continente, dos
territórios da Bolívia e do Peru, até o litoral brasileiro, uma migração que explicaria a nostalgia
do bandeirantismo histórico pelo Oeste, e que teria sido reeditada no anseio da época pela
interiorização. Tal narrativa, pela óptica de Alarico Silveira, acenava para os laços culturais,
autóctones, mais fortes que as artificiais divisões territoriais entre os países sul-americanos
(nov.-dez. 1924).
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Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)
Num sentido próprio e conectado com o tema racial, O sonho da raça reiterava a im-
portância do espaço e do território para o encontro com um sentido brasileiro e americano.
A interiorização e o urgente encontro com a “terra” foram temas recorrentes de Cassiano
Ricardo, em 1926 e 1927, incluindo suas notas “impressionistas” sobre a obra de Edgard
Roquette-Pinto, que lembram a leitura de Candido Motta Filho da obra de Alberto Torres.
Nelas, Cassiano Ricardo destacaria: “O que nos falta, disse Roquette Pinto, é conhecer o que
se tem descoberto e conquistado. O que nos falta, direi eu, é compreendê-lo na sua imensa
significação. É penetrá-lo nas suas fontes de riqueza. É investigá-lo nas suas condições de
vida” (14 set. 1927).
A obsessão de Cassiano Ricardo pelo “sertão” dividiu espaço com a idealização da po-
pulação mestiça do interior. Ele ressaltou, em publicações no Correio Paulistano e em Martim
Cererê (1928), a importância das três raças na história paulista e brasileira, mas sob o ponto
de vista de uma hierarquia de funções (Moreira, 2001). No que diz respeito ao negro, Ricardo
se distanciou tanto da negativa de Alfredo Ellis Junior, em Raça de gigantes (1926), a respeito
da pouca participação do negro na sociedade bandeirante, quanto da opinião de Ellis Junior,
de que teria sido precária a adaptação fisiológica do negro às condições ambientais de São
Paulo (1928: 44). Assim, o ponto de vista de Cassiano Ricardo terminaria ficando mais próxi-
mo do de Alberto Torres, que, conforme Candido Motta Filho destacava à época, considerava
ser “uma superstição essa a de afirmar a degeneração do negro entre nós” (1931: 69).
Já Menotti Del Picchia afirmou que a solução do problema racial brasileiro dependia
exclusivamente da “plasmação étnica”, nas condições especificas do clima e do ambiente
brasileiro. Acerca disso, atestava que a “mistura bizarra” entre “o luso, o preto e o índio”,
“sob o nosso sol”, havia formado “um tipo tão prodigioso de energia física e de iniciativas,
que conseguiu desbravar, fixar-lhe as fronteiras, possuir e defender uma das pátrias geografi-
camente maiores do mundo” (26 ago. 1926). Com esses argumentos, rechaçava a adoção de
políticas imigratórias pelo estado de São Paulo, contrapondo-se às que haviam sido propostas
por Alfredo Ellis Junior, na condição de deputado estadual, e pelo sociólogo Oliveira Vianna,
em 1926, as quais propunham a adoção de critérios raciais para a seleção dos imigrantes
(El-Dine, 2016). Conforme Menotti Del Picchia se justificava: “Precisamos de braços e todos os
braços são bons, quando são sadios moral e fisicamente, e estão habituados ao trato da terra”
[...], “o que se deverá evitar [...] será [a] entrada de elementos defeituosos ou pouco sadios,
rebeldes à disciplina social, perigosos, portanto, à ordem do agregado” (26 ago. 1926).10
Os pontos de vista de Alfredo Ellis Junior e Oliveira Vianna, por ultrapassarem esses
cuidados, ao ver de Menotti Del Picchia, ilustravam uma “forma puramente lírica” de tratar
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O intelectual e ensaísta mexicano José Vasconcelos foi referência recorrente nas publi-
cações de Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e Plínio Salgado. As primeiras men-
ções à sua obra mais famosa, La raza cósmica (1925), foram contemporâneas da discussão
acerca da proposta de Plínio Salgado de elegerem um totem nacional quando, em 1927, os
verde-amarelos assumiram o nome de Movimento da Anta, coroando a preferência de Plínio
Salgado por símbolo indígena (El-Dine, 2017).
Além do discurso otimista acerca da miscigenação no continente americano, que, segun-
do José Vasconcelos, formaria um mestiço cósmico e seria a síntese de todas as raças anterior-
mente existentes (Ascenso, 2013), é provável que suas posições ambivalentes em relação à
ciência tenham chamado a atenção do grupo paulista. Segundo José Vasconcelos, “la historia
empírica, enferma de miopía, se pierde en el detalle” e “cae en la puerilidad de la descripción
de los utensilios y de los índices cefálicos y tantos otros pormenores, meramente externos que
carecen de importancia si se les desliga de una teoría vasta y comprensiva” (1948: 15). Diante
disso, propunha uma fórmula que faria sentido aos verde-amarelos: “Ensayemos, pues, expli-
caciones, no con fantasía de novelista, pero sí con una intuición que se apoya en los datos de
la historia y de la ciencia” (Ibidem: 15-16).
Tal como a obra de José Vasconcelos, a simbologia da Anta representou a evocação de
passado mítico e um aceno na direção do futuro. Mais do que se ater à realidade antropo-
lógica do brasileiro, Plínio Salgado pretendeu elaborar um discurso nacional condizente com
um país que seria o berço do “homem síntese” idealizado por José Vasconcelos. A escolha da
Anta se justificava por sua referência à raça, que, na visão de Plínio Salgado, soube deixar-se
assimilar pela mestiçagem e desaparecer, abrindo o caminho para o futuro sugerido pelo
intelectual mexicano.
A partir de 1926, os verde-amarelos viram São Paulo como o cenário ideal para a reali-
zação daquela tese, considerando o grande afluxo de imigrantes que a cidade recebia e sua
exposição à influência subjetiva do tupi (Picchia et. al. 1929). O papel visionário do indígena,
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Considerações finais
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Notas
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porta que conservem aqui a sua religião, o seu idioma, [...] se é gente disposta a obedecer às nossas leis e às
nossas autoridades, se é gente que vai trabalhar na lavoura, levando para os nossos campos uma educação
social e higiênica” (2 maio 1924).
11 Essa perspectiva de um sentido histórico como sucessão de civilizações, que repetem períodos de ascen-
são, apogeu e declínio, cabe ressaltar, se tornou bastante conhecida nos países latino-americanos com a cir-
culação de A decadência do Ocidente (1918), de Oswald Spengler, que, como visto, não passou despercebido
aos modernistas verde-amarelos.
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Artigo
José SzwakoI*1
Ramon AraujoII*2
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200008
I
Universisdade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
* Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e Pró-Cientista UERJ. Organizou “Ensaios de História
Intelectual do Paraná” (Ed. UFPR) e “Movimentos Sociais e Institucionalização” (EdUERJ). (zeszwako@hotmail.com)
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4764-6533.
II
Universisdade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 469-499, maio-agosto 2019 469
José Szwako e Ramon Araujo
Resumo
O texto segue a trajetória da produção de F. Weffort sobre o chamado “populismo” e mostra seus efeitos no debate
dos “movimentos sociais urbanos” e também dos “novos personagens em cena” , defendendo uma história inte-
lectual centrada em ideias e nas tensões entre intelectualidade e expectativas políticas. A observação de inflexões e
continuidades na tese populista permite chegar a dois resultados. A miríade de conceitos que marcou, em parte, a
gênese da discussão brasileira sobre movimentos sociais nasce como crítica e adesão à herança weffortiana. Além
disso, o artigo mostra que os novos conceitos não se gestam em algo como um “campo acadêmico”, e sim nascem
de inspirações e influências daquele conjunto de intelectuais e das apostas por eles forjadas em seus núcleos na
sociedade civil (o Cedec, no caso) ou nas relações com outros atores civis e partidários.
Abstract
The text follows the trajectory of F. Weffort’s production of so-called “populism” and shows its effects in the debate
of “urban social movements” (JA Moisés) and also of the “new characters on the scene” (MC Paoli and E. Sader),
defending an intellectual history centered on ideas and tensions between intellectuality and political expectations.
The observation of inflections and continuities in the populist thesis leads to two results. The myriad concepts that
marked, in part, the genesis of the Brazilian discussion of social movements are born as criticism and adherence to
the Weffortian heritage. Moreover, the article also shows that the new concepts are not created in an “academic
field”, but are born of the inspirations and influences of that group of intellectuals and the bets they forge in their
nuclei in civil society or in relations with other civil and partisan actors.
Resumen
El texto sigue la trayectoria de la producción de F. Weffort sobre el llamado “populismo” y muestra sus efectos en
el debate de los “movimientos sociales urbanos” (JA Moisés) y también de los “nuevos personajes en escena” (MC
Paoli y E. Sader), defendiendo una historia intelectual centrada en ideas y en las tensiones entre intelectualidad y
expectativas políticas. La observación de inflexiones y continuidades en la tesis populista permite llegar a dos resul-
tados. La miríada de conceptos que marcó, en parte, la génesis de la discusión brasileña sobre movimientos sociales
nace como crítica y adhesión a la herencia weffortiana. Además, el artículo muestra que los nuevos conceptos no
se gestan en algo como un “campo académico”, sino que nacen de inspiraciones e influencias de aquel conjunto
de intelectuales y de las apuestas por ellos forjadas en sus núcleos en la sociedad civil o en las relaciones con otros
actores civiles y partidarios.
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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
Introdução1
A partir de fins dos anos 1970, as ciências sociais brasileiras viveram uma reviravolta
cognitiva que, embora discreta, deixou marcas até hoje insuspeitas. O povo, ou melhor,
suas histórias, lutas, associações e experiências entravam na agenda de pesquisa de histo-
riadores e cientistas sociais do Brasil sem data para sair. Não mais as massas, mas o povo,
o que incluía operários, classes populares, movimentos populares ou urbanos – personagens
dotadas de razão, cuja ação tinha sentido próprio. Foi nessa atribuição de racionalidade que
consistiu aquela reviravolta. Todo um desconforto intelectual com o dito atraso e a alegada
falta de consciência dessas personagens, supostamente manipuladas por figuras e sindicalis-
mos populistas, foi criticado, e sua história, desde então, recontada.
Essa mudança cognitiva ficou selada na tensão entre duas obras: Quando novos perso-
nagens entraram em cena (Sader, 1988) e A arte da associação (Boschi, 1987). Entre ambas
as publicações e antes delas, desfilaram categorias de análise e acusação como nacionalismo,
basismo, elitismo, politicismo, espontaneísmo e autonomismo, que demarcavam uma oposição
entre as análises e nos legaram um debate sobre movimentos sociais.
Este texto faz uma história intelectual dessas ideias e heranças,2 de suas forças e apostas,
que conformaram esse espaço de reflexão com objeto próprio de análise, de forma a demons-
trar a emergência de novos conceitos por meio de rupturas e continuidades face à herança do
debate populista nas análises dos movimentos urbanos e dos novos personagens.
Nosso estilo de história intelectual se inscreve em dois registros: um negativo e outro
positivo. Quanto ao primeiro, opõe-se àquela sociologia contextualista centrada em biografias,
estratégias e investimentos institucionais, mais propriamente, à versão da história das ciências
sociais no Brasil na ponta desse contextualismo (cf. Miceli, 1989),3 para colocar no centro
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da análise modos de pensar ou famílias de argumento (Brandão, 2005). A ênfase aqui recai
sobre as disputas de ideias e ideais textualmente expressos e entendidos como forças sociais
reflexivas (Bastos e Botelho, 2010), bem como sobre debates e embates distinguidos por em-
préstimos e cortes intelectuais operados entre linhagens e grupos – sendo grupos, debates e
conteúdos organizacionalmente mediados (Santos, 2017).
As ressalvas àquele contextualismo são de duas ordens interligadas: a dissociação, a
nosso ver, inapropriada entre vida política e vida intelectual, e uma teleologia implicada em
suas categorias fundamentais e mais amplamente aceitas. A verve biográfico-estratégica do
contextualismo impede que se reconheça a conexão íntima, complexa e tensa entre política
e produção intelectual (Pecaut, 1990), com prejuízo para a compreensão dos conteúdos em
jogo na análise de uma produção desse naipe. Além de flertar com um tipo de utilitarismo
de classe e simbólico (Bastos e Botelho, 2010), a ênfase na economia das estratégias e dos
recursos investidos em conversões institucionais disciplinares carrega, ao desligar política e
pensamento, um impensado teleológico em cujo horizonte parecem estar noções correlatas à
bourdiesiana de “campo”.4
Para o que aqui nos interessa, tal postura é apreensível nas análises que, tendo coroado
um modo específico e paulistano de prática de pesquisa, confundiram a história desses agentes
não só com instauração da ciência verdadeira e puramente sociológica – porque em tese de-
satrelada da ação política e do Estado, estilo e estigma atribuídos a cariocas –,5 mas também
com o ápice e centro de um tal campo da disciplina sociológica.6 Essa saga das instituições e
dos heróis da ciência institucionalizada cobra preço alto na autocompreensão de nossas ciên-
cias sociais e dos ritmos dessa história. Exemplo disso tem sido o volume do esforço de revisão
necessário para criticar e desfazer a periodização imposta aos autores do pensamento brasileiro
e seus supostos ensaísmo e caráter pré-científico (Santos, 2017; Schwarcz e Botelho, 2011)
No contexto histórico que nos cabe neste artigo, tal teleologia tem implicações não me-
nos graves, pois, da segunda metade dos 1970 até o fim da década seguinte, dois processos
transcorrem ao mesmo tempo: nossa última redemocratização e a robusta institucionaliza-
ção da pesquisa em ciências sociais. Uma vez fortalecidos os programas de pós-graduação,
com associações concorrentes e solidárias pela instituição de posições e identidades, essa
institucionalização seria prova de que, após décadas de saga, conquistamos nosso mercado
simbólico próprio, um espaço real e relativamente autônomo, com lógicas e disputas próprias,
padrões, métodos e interesse sui generis. Enfim, um campo para chamar de nosso – tornado
retrospectivamente doxa: “[nos] anos 1970/80, uma parte do campo intelectual brasileiro,
composta por cientistas sociais vinculados à esquerda, passou a dedicar-se ao estudo dos
movimentos populares” (Perruso, 2010: 250).
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e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
A menção à esquerda trai certa pureza do campo e denota não uma distância acadêmica,
e sim conexões refletidas em vínculos de natureza político-ideológica. Partindo do entendi-
mento hifenizado da atividade intelectual como político-intelectual, a postura interpretativa
aqui proposta não poderia nutrir uma categoria como a de campo, que, por definição, subli-
nha autonomia e processos de autonomização. Tomamos antes estilos e modos de pensar
academicamente informados como atalhos entre política, intelectuais e suas apostas. Trata-se
de destacar, nesta versão da história de nossas ciências, os diferentes “modos intelectuais de
se relacionar com a realidade que subsumem até mesmo os mais lídimos produtos da ciência
institucionalizada” (Brandão, 2005: 236).
Assim, autores, debates e textos são aqui lidos por sua filiação ou lógica acadêmica e,
ao mesmo tempo, por seus laços com organizações civis e partidárias envolvidas em outras
arenas intelectuais de disputa,7 não raro em variadas e permanentes formas de relação com
a universidade.
Para uma história intelectual dedicada à parte dos autores e das obras que, nas dinâ-
micas da transição democrática, passou da crítica ao populismo ao elogio à racionalidade
popular, importa ainda a questão dos ritmos de institucionalização das ciências sociais. “Po-
demos tomar a abertura democrática (1985) para demarcar o início de uma terceira fase
[...] de especialização, na qual esse processo avançaria muito no interior de cada uma das
disciplinas” (Jackson e Barbosa, 2017: 230). Se, como pressupomos, vidas intelectual e política
andam pari passu, a demarcação de uma fase por atributo exterior e cronológico das regras
estatais do jogo recoloca a excessiva ênfase no aspecto propriamente universitário de nossa
produção, desligando-a mais uma vez da ação e da luta políticas. Como veremos, a produção
das ciências sociais e da história foi uma das principais forças em disputa nas lutas políticas e,
sobretudo, discursivas travadas ao redor da redemocratização e por ela.
Nesses termos, embates e debates sobre quem eram os atores (se populares, sindicais,
partidários etc.) e processos relevantes para forjar ou barrar a reconstrução democrática se
encontravam, em 1985, já um tanto vertebrados, encontrando síntese posterior na oposição
Sader/Boschi, e a tensão disciplinar entre ciência política, antropologia e sociologia teve na
gênese do debate sobre movimentos sociais um de seus momentos mais férteis. Tais momen-
tos, contudo, não foram marcados só pelo progressivo estabelecimento de fronteiras disci-
plinares cada vez mais claras (autônomas?), como também por apropriações de insights e
categorias de áreas vizinhas, nas interlocuções entre as três áreas das ciências sociais e delas
com a história e com certa filosofia pós-marxista, permeados por empréstimos entre autores
e grupos afinados por apostas político-normativas (e partidárias) relativamente convergentes.
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Queríamos ter uma sociedade civil, precisávamos dela para nos defender do Estado monstruoso
à nossa frente [...], se não existisse, precisaríamos inventá-la. Se fosse pequena, precisaríamos
engrandecê-la [...]. É evidente que, quando falo aqui de “invenção” ou de “engrandecimento”,
não tomo estas palavras no sentido de propaganda artificiosa. Tomo-as como sinais de valores
presentes na ação política, e que lhe conferiam sentido exatamente porque a ação pretendia
torná-los uma realidade” (1989 [1983]: 518).
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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
Esse elogio à sociedade civil e a aposta nela constituíram, porém, um dos últimos mo-
mentos da história intelectual aqui recontada. Antes disso, foi preciso consagrar a tese popu-
lista, aceitar e criticar parte de seus pressupostos, para apenas daí, com essa dupla adesão e
crítica, ser capaz de ver ação, sentido razoável e certo simbolismo nas ações e nas mobiliza-
ções das classes populares. Vejamos, pois, como categorias e nuances do chamado populismo
se cristalizaram como um dos pilares do debate contemporâneo sobre movimentos sociais.
E mbora o populismo como tema e objeto de preocupação de nossas ciências sociais ante-
ceda as décadas de 1960 e 1970, tendo ocupado parte da agenda dos isebianos e seus
dilemas expressos nos Cadernos do Nosso Tempo (Gomes, 2001; Hollanda, 2012), a reflexão
mais influente e sistemática sobre o tema encontrou em Weffort seu mais importante teórico
no Brasil (Gomes, 2001: 29). As raízes teóricas e as gerações de intelectuais que inspiraram
a produção de Weffort à época são várias. De um lado, situava-se a produção de sociólogos
então ligados à Universidade de São Paulo, como Simao, Lopes e Rodrigues – entre outros,
como Touraine, em diálogo com a sociologia uspiana –, cujas pesquisas em geral tratavam
das relações entre classe operária, formas sindicais de organização, Estado e desenvolvimento.
De outro, as críticas dirigidas por Oliveira, Conceição Tavares e Serra a certo economicismo do
pensamento cepalino também influenciaram Weffort.8 Além desses, antes mesmo da criação
do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a interlocução prolongada com Car-
doso, Singer e Ianni também deixou marcas recíprocas9 nas teorizações sobre o populismo.
A primeira dessas marcas pode ser vista em Política e revolução social no Brasil (1965),
que teve Ianni como organizador e contou com contribuições de Cohn, além dos próprios
Ianni, Weffort e Singer. Na obra se encontram alguns dos principais temas que, por longo
tempo, rondarão a imaginação acadêmica sobre o Brasil pós-1930. À massa despolitizada
(Singer, 1965: 70) correspondem políticos e partidos clientelistas e burgueses, cujo exemplo
mais completo teria sido Vargas e sua política de clientela, sobretudo com o proletariado
urbano pós-1930, imaturo, haja vista que a notável experiência de um proletariado emigrante
europeu havia se dissolvido nas transformações da estrutura demográfica e ocupacional da
classe (Ianni, 1965: 35).
Assim, em plano político ou social – este determinando aquele – se dá a continuidade da
solução de compromisso herdada do Estado Novo, e no pós-1945 os componentes marginais
da classe operária, que formam a massa, permanecem disponíveis para a manipulação política
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e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
Ademarismo, queremismo, janismo e janguismo são versões nuançadas da mesma lógica po-
pulista – incluindo o sistema partidário –,13 sendo que a crise e o golpe de 1964 são, nesse
diapasão, o esgotamento daquele pacto, seu colapso, como dizia Ianni.
O estatuto dado aos setores urbanos ou às massas populares no raciocínio da tese po-
pulista é ambivalente. Por um lado, a manipulação por parte do líder político em relação a
elas nunca foi absoluta, pois dinâmicas e trocas entre líder e massa permitiram também a ca-
nalização e a expressão de insatisfações populares (1978: 70-ss). Assim, porquanto nenhuma
classe encontra respaldo direto no Estado, o chefe político depende, nessas condições de uma
espécie de vazio político, da legitimação das massas. No entanto, por outro lado, a emergência
política dos setores urbanos e de seus interesses é resumida à “submissão a um senhor, a uma
chefia que lhe é imposta pelas condições da luta política que [...] se move pelos interesses de
outras classes” (1978: 30). Quer dizer, a massa se expressa politicamente apenas na medida
em que, e porque, é politicamente manipulada – as massas “são a raiz efetiva do poder”, mas
nessa mesma condição não passam de massa de manobra (1978: 60).
Apesar da posição ambivalente na equação manipulação-canalização, é o primeiro lado
do par que tira nuance e dá o tom da adjudicação dos setores urbanos na tese weffortiana.
Longe de destacar a vocalização de preferências, a ênfase na descrição das massas recai
sobre deficiências e ausências de várias ordens. Dadas a industrialização e a urbanização
vividas no país, o contingente de população vinda do campo experimenta condições de
escassez e insatisfatórias de vida e trabalho que lhes colocam numa situação de disponibili-
dade política (1978: 60).
Nessa configuração modernizada, a massa é sinônimo de vários setores urbanos, de in-
divíduos reunidos e de múltiplas formas de situação ecológica que, juntas, tendem a dissolver
os vínculos com os padrões tradicionais sem chegar a formar propriamente uma classe graças
àquela composição social heterogênea – fator que, por sua vez, impede tanto uma ação polí-
tica quanto uma identidade de classe homogêneas:
É particularmente notória [a heterogeneidade] quando nos referimos àquelas classes que teo-
ricamente deveríamos designar como proletárias, em via de proletarização ou assimiláveis ao
proletariado: operários industriais, agrícolas, operários-urbanos não industriais; trabalhadores
urbanos por conta própria ou rurais não-assalariados; pequenos assalariados do comércio e dos
serviços, etc. Entre esses diferentes setores (e no interior de cada um deles) são notáveis as dife-
renças com relação a condições de vida, relações de trabalho, situação ecológica [...]. Ademais,
é duvidoso que se possa tomar qualquer desses setores, como um grupo politicamente homo-
gêneo com a possível exceção dos operários industriais no que se refere ao comportamento
sindical (Weffort, 1978: 80).
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É dessas múltiplas faltas que se valem o populismo e o populista, pois as relações massa/
líder são predominantemente individuais, e nelas o conteúdo de classe não se manifesta de
modo direto (1978: 81). Sob a tutela do líder carismático, a massa mostra seu irracionalismo
(1978: 37). Assim, sem formação nem perfil de classe, sem conteúdo nem consciência de clas-
se, a massa urbana brasileira é, para retomar Marx, nosso saco de batatas. Nesse diapasão, ao
reivindicar discursivamente o povo, como se ouve nos apelos populistas, diz-se que o Estado
encobre as contradições de classe, age como suposto árbitro das diferentes classes, impedindo
a identificação dos interesses reais das classes populares (1978: 55 e 81) e reivindicando a
representação de um social nacional unificado.
De modo inverso, a relação mantida pela fração mobilizada dos trabalhadores com o Es-
tado, nos sindicalismos ou em associações populares, é lida como uma sorte de anexo, já que
os trabalhadores seguem tanto as regras dos seus líderes quanto o destino destes, a exemplo
de 1964 (1978: 19; 57).
Esse diagnóstico negativo do pacto populista e dos setores urbanos nele pode ser mais
bem compreendido se inserido no bojo de suas disputas político-intelectuais, isto é, das apos-
tas teórico-políticas e dos adversários com e contra os quais se situa a tese populista. Con-
quanto não seja em qualquer momento explicitada, a aposta subjacente à produção dos
textos da década de 1960 tem lógica revolucionária – condições estruturais (herança rural,
heterogeneidade, disponibilidade etc.) levaram à conformação de massas com potencial, no
máximo, para uma revolução individual (1978: 84).
O populismo é a forma política e ideológica que conduz à traição (1978: 35) da vocação
revolucionária irrealizada e projetada, para dizê-lo de algum modo, sobre uma não classe. É
com referência a tal aposta, impossibilitada pelo pacto populista, que ganha sentido o tom
crítico dirigido à situação de compromisso entre frações de classes e a um caráter de anexos
do Estado atribuído aos sindicalismos.
Os adversários intelectuais dessa aposta são nítidos: os assim chamados ideólogos do
nacionalismo (1978: 16).14 Ou seja, os intelectuais do Instituto Brasileiro de Economia, Socio-
logia e Política (Ibesp), posteriormente agrupados no Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(Iseb), eram acusados de fazer uma exaltação nacionalista do povo, confundindo o sentido
real da participação das massas (1978: 16). Classe e povo são os epítomes categoriais da
forma pela qual cada um dos lados dessa disputa interpretativa empreendeu seu prognóstico
do cenário sociopolítico brasileiro pré-1964. No horizonte de paulistas e cariocas, duas apos-
tas operavam como atalho entre teoria e política: luta de classes e revolução, de um lado, e
aliança de classes e progresso, de outro (Ferreira 2001b; Hollanda, 2015).
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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
Se, no entanto, essas intepretações divergiam no nível prognóstico de qual era o hori-
zonte em disputa e de como chegar até ele – se pela aliança de classes ou pela sua superação
–, no âmbito diagnóstico as coisas não parecem tão simples, pois boa parte da produção
carioca, tanto no Ibesp quanto no Iseb,15 teve também o populismo como alvo (Gomes, 2001).
A leitura, por exemplo, da falta de uma mentalidade classista que caracteriza as gerações de
trabalhadores com tradição de luta poderia ser atribuída a Weffort ou a qualquer uspiano de
boa cepa da mesma geração, porém é de autoria de Ramos (1961: 56). É igualmente da massa
que se trata nos Cadernos do Nosso Tempo – esse conglomerado multitudinário de indivíduos,
essa expressão confusa e primária de aspirações instintivas (Ibesp, 1954: 142).
O diagnóstico weffortiano, como vimos, não está muito longe das conclusões de seus
adversários, para quem a “massa é pura amorfia” (Hollanda, 2015: 629). Mas não é só quanto
ao déficit de racionalidade da massa que cariocas e paulistas compartilham traços de seus
respectivos diagnósticos. Soma-se a isso uma crítica comum dirigida ao moralismo das bases
eleitorais e da retórica de representantes populistas. Enquanto teóricos do Ibesp criticam a
limitação da mentalidade moralista instrumentalizada por legendas como Partido Democra-
ta Cristão (PDC) e Partido Socialista Brasileiro (PSB), segundo a qual “tudo depende de os
homens que dirigem os acontecimentos serem considerados bons ou maus” (1954: 152),
Weffort enfatiza a função mistificadora do moralismo na produção ideológica, sintetizado na
fórmula o tostão contra o milhão, da campanha de Jânio Quadros para a prefeitura de São
Paulo (1978: 36-ss).
Como se nota, a tese do populismo expressada nos textos da década de 1960 extrai, das
relações tecidas em sua configuração político-intelectual, as chaves cognitivo-políticas pelas
quais interpreta pré-1964 e 1964. Ao mesmo tempo que compartilha com seus adversários
acusados de nacionalistas parte do diagnóstico de mazelas e faltas das massas brasileiras,
Weffort as enquadra na moldura de um marxismo de corte estrutural, à la Ianni e Singer, colo-
cando, porém, crise de hegemonia/situação de compromisso no centro da análise.
Ainda que a ideia de manipulação seja eventualmente matizada,16 apontando para al-
guma ambiguidade do pacto populista, as massas nele pressionam e participam, mas não
passam de oposições domésticas (1978: 23; 43). Em função talvez da apropriação singular de
O 18 Brumário, a produção de Weffort carrega distintiva estadofobia17 – no populismo, o Esta-
do é concebido como entidade independente; ideologias (nacionalistas, desenvolvimentistas)
alimentam o mito de um Estado do povo, sem diferenciações de classe; e, quando em 1961
esse arranjo começa a ruir, todos, à esquerda e à direita, se orientam pela crença num Estado
superior e soberano (1978: 64-65).
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Se não é exclusiva da reflexão weffortiana, essa noção de Estado entendido como enco-
brimento de contradições, divisões e representação (mítica) invertida da dominação de classe
fez, e segue fazendo,18 escola no pensamento uspiano contemporâneo.
Em contraste com os textos dos anos 1960, a produção weffortiana da década seguinte
opera uma inflexão na qual o primeiro plano da análise é tomado não mais pelo pacto po-
pulista, mas por seus atores, por escolhas e aporias desses atores, bem como pelo seu papel
como operadores da reprodução ou da superação daquele pacto. A análise das greves de
1968 dá exemplo eloquente disso, pois “os movimentos de Contagem e Osasco represen-
tam, em graus diferentes, um mesmo processo de ruptura interna do sindicalismo populista”
(1972: 87). Sem prejuízo das estruturas, a ênfase nos atores, tanto em Origens do sindicalismo
populista quanto em Democracia e movimento operário,19 é central nesse segundo Weffort,
para quem a análise histórica requer a das conjunturas nas quais o movimento social realiza
suas opções (1973: 69). Passa-se, assim, a criticar as visões que obscurecem “as margens de
liberdade e, portanto, de responsabilidade dos protagonistas pelo rumo tomado pelos acon-
tecimentos” (1978b: 9).
Coerente com tal inflexão, a análise agora conjuga os pares massa/líder e situação de
compromisso/crise hegemônica com a ação de partidos, sindicatos e trabalhadores na confec-
ção daquele compromisso e na sua ruína em 1964. Poucos agrupamentos escapam à crítica.
Udenistas, liberais, nacionalistas de esquerda e de direita, tenentistas – todos são escrutina-
dos, mas são os “comunistas [que] sofrem nas mãos de Weffort” (Reis, 2001: 368).
A proeminência agora dada a atores e escolhas é circunscrita por uma reflexão de fun-
do sobre sua orientação política. Contra economicismos e sociologismos (1973:70), o autor
não vê escolhas como epifenômenos do populismo ou das ideologias nacionalistas; ele as
vê, antes, como índice de liberdade e autonomia dos sindicalismos, bem como de seu grau
de dependência/independência. “[C]omo poderia haver liberdade efetiva para os sindicatos
sem desligamento do Ministério do Trabalho?”, indaga-se Weffort (1973: 85), enxergando no
pós-guerra uma contradição, pois o que o Partido Comunista Brasileiro (PCB), por meio do
Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT), “buscava não era a autonomia das organiza-
ções em nome dos interesses da classe operária, mas um pouco mais de liberdade para melhor
servir aos interesses políticos do governo”.
No que tange à interlocução e à crítica, ao mesmo tempo que segue a acusação de
nacionalistas sobre os intelectuais do então extinto Iseb, rebaixado a aparelho ideológico de
Estado (1978b: 10), as trocas e as inspirações mudam. Enquanto sobrenomes como Souza,
Schmmiter e Lamounier passam a comparecer positivamente no diagnóstico de Weffort, a
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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
inspiração sociológica uspiana fica deslocada, em boa medida, por causa daquela inflexão que
não acolhe mais o recurso à ideia de atraso. A explicação da tragédia do movimento operário
deve ser procurada menos no atraso da classe operária que numa orientação persistente por
parte de seus pretensos dirigentes em apoiar-se nesse atraso para suas próprias manobras
políticas (1973: 71).
A que tragédia Weffort se refere? Tendo ido do populismo a seus atores, do regime aos
sindicatos, o autor destacou em veia enfática o papel do PCB e de seus dirigentes nos rumos
e nos destinos do sindicalismo brasileiro. Especialmente no pós-guerra, os comunistas teriam
se subordinado a Vargas, à sua institucionalidade dita fascista corporativa e, adiante, a seus
herdeiros políticos. Aos olhos de Weffort, o PCB deu nada menos que vida à estrutura sindical
oficial (1973: 83). A caracterização do laço entre comunistas e poder político alterna entre
colaboração de classes, aliança e adesão por parte dos primeiros, sendo considerado partido
da ordem (1973: 80; 1979b: 16).
No que concerne à ideologia, a relação com os soviéticos não seria suficiente para expli-
car a disposição dos dirigentes comunistas a agir em nome da ordem e da tranquilidade, aper-
tando o cinto em momentos de impulso grevista. Era um reformismo dos líderes, com certo
viés de classe, que explicaria o não questionamento do Imposto Sindical – pedra de toque da
heteronomia no quadro weffortiano – e sua ação mais orientada para fins e funções políticas
do que econômicas. A situação trágica do sindicalismo residia, enfim, em que a liderança
comunista era vista como “incapaz de organizar a classe operária de maneira autônoma”
(Weffort, 1973: 81).
É com Participação e conflito industrial que o recurso à autonomia ganha peso em We-
ffort. Deslocada a ideia de atraso, nas greves de 1968, “o movimento operário não pode ser
visto apenas como dependente da história da sociedade, mas também como sujeito de sua
própria história” (1972: 10). Contagem e Osasco lhe trazem pistas de uma luta operária além
do sindicalismo populista, por sugerirem esboços de formas alternativas, bem como orien-
tação e organização; por sugerirem uma atitude de independência em face do Estado e das
empresas (1972: 11).
Contagem fora exemplo de irrupção espontânea das massas operárias. A análise situa
tanto greves organizadas quanto espontâneas num mesmo continuum e dentro de condições
mais amplas que lhes preparam, a fim de sublinhar que a ação grevista, numa conjuntura dada
e limitada, no caso mineiro
não foi prevista ou proposta quer pelas direções e “oposições sindicais”, quer pelas organiza-
ções de esquerda. Ela ocorreu como um ato espontâneo da massa operária e sua espontanei-
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 481-499, maio-agosto 2019 481
José Szwako e Ramon Araujo
dade terminou por impor-se mesmo àqueles que [...] tentaram controlar, coordenar ou dirigir
os acontecimentos.
[...]
Do ponto de vista das questões de organização, as greves espontâneas são sempre relevantes
[...] porque indicam que as organizações (corporativas ou políticas) existentes são inadequadas
ou insuficientes. Neste sentido, a espontaneidade operária representa, no essencial, um impulso
para novas formas de organização. Da mesma maneira, a greve espontânea pode ser vista
como representando uma forma embrionária da consciência social dos operários que no ato da
greve abandonam sua costumeira posição de submissão e assumem uma atitude de resistência
coletiva aos grupos dominantes. (1972: 22-24)
Assim, Participação e conflito industrial traz uma embocadura que não apenas circuns-
creverá, de modo analítico, a produção posterior de Weffort, como também inspirará a cogni-
ção (e a aposta) de toda uma geração de intelectuais. Junto com os índices de autonomia e
independência, emerge a questão da espontaneidade dos operários e de sua consciência, não
mais a falta dela, mas sua forma embrionária. Contagem e Osasco davam vazão àquela cog-
nição estadofóbica. Enquanto no primeiro caso há uma espontaneidade quase pura, no outro
é por vontade das organizações sindicais, por meio das comissões de fábrica – via participação
de base (1972: 52) –, que eclode a greve. Esse último caminho organizacional, contudo, não
macula seu potencial porque o sindicato de Osasco foi esboçando a própria concepção política
sobre a sociedade e o Estado, terminando por representar para os operários, mais do que um
sindicato, seu modo de expressão política.
A medida da análise aqui não está nos resultados imediatos de cada greve, mas na
política dos envolvidos, incluindo-se negociação e repressão estatais. No caso mineiro, o perfil
autêntico e espontâneo da massa de trabalhadores e do movimento grevista fora refreado por
organizações comprometidas com a perspectiva do sindicalismo oficial. No caso paulista, onde
o sindicato era central, a greve fora resultado da consciência nutrida pelas comissões de fábri-
ca e de suas contradições internas. Recusando, à conclusão, uma ruptura entre independência
sindical e herança corporativa, Weffort rejeita também a noção de que Osasco e Contagem
seriam meros desvios de um padrão populista; afirma, antes, que ambos gestaram embriões
de organização autônoma (1972: 90-92).
A crítica ao chamado sindicalismo populista e aos comunistas do PCB depois feita por
Weffort (1973; 1978b) se dá à luz desse autonomismo. No entanto, o ano de 1978 traz uma
reconfiguração político-intelectual capital. Se, de um ponto de vista mais amplo, a distância
entre 1978 e 1973 coincide com o início da distensão e de maior liberdade política e civil no
país, do ponto de vista das relações e das tensões intelectuais, é marcada pela saída, em 1976,
de Weffort do Cebrap e por seu papel central na formação do Centro de Estudos de Cultura
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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
Contemporânea (Cedec), cuja aposta era “perceber no presente os germes da mudança para
uma sociedade democrática, articulada e participante” (Comissão Editorial, 1978, s/p). Na raiz
desta aposta, o autonomismo. “Não há movimento operário independente sem democracia, e
não há democracia sem movimento operário independente” (Weffort, 1978b: 7). É evidente o
peso do argumento weffortiano na Revista de Cultura Contemporânea e no Cedec, que reunia
nomes como Chaui, Sader e Moisés. Aquela estadofobia, por exemplo, ecoa obliquamente na
Apresentação inaugural da revista:
Nosso ambiente [brasileiro] de criação da cultura esteve quase sempre ligado à expansão das
funções estatais, contribuindo para favorecer um estilo de trabalho intelectual cujo protótipo
mais recente é o tecnocrata [...]. Cumpre, nos dias que correm, criar as condições para o desen-
volvimento da visão crítica do passado e do presente. (1978, s/p)
Traduzindo: criticar, na teoria e com efeitos na prática, o ‘passado populista’ foi a pri-
meira missão autoproposta pelos intelectuais à gênese do Cedec. O texto que abre o primeiro
volume da Revista de Cultura Contemporânea se autocompreende como ‘ajuste de contas’.
“A questão [das relações entre democracia e movimento operário] é do presente, da história
que se está fazendo e da que se tem para fazer, mas também é do passado” (Weffort, 1978b:
7). Autonomista e alternativo-democrático – era essa o duplo fundamento da visão de Wef-
fort sobre movimentos e momentos de reorganização sindical e, logo adiante, partidária que
marcaram o fim daquela década. Autonomista porque crítica da suposta ausência de uma
perspectiva própria em relação ao problema da organização sindical (1978: 12).
Em tom antipecebista, ele denuncia também o imediatismo e o instrumentalismo dos
comunistas, que teriam, ressoando Coutinho, dificuldade em aceitar ideais de liberdade e
democracia como valores (1979a: 11). Contra um instrumentalismo da esquerda, cabia ao
sindicalismo emergente forjar uma alternativa de esquerda que fosse além das exigências
conjunturais (1979a: 10). Nessa via de mão dupla20 que, entre 1978 e 1979, se tornaram os
laços entre reflexão intelectual e autoimagem dos operários, os quais, em conjunto, deram
vida ao Partido dos Trabalhadores (PT), a expectativa weffortiana era que, dada aquela mobi-
lização e incorporada a crítica do passado, o que se pode pretender é que se tenha uma nova
concepção de democracia a criar (1979b: 12), de maneira autônoma.
Democrática, articulada e participante era o tripé ideal da sociedade projetada pelos ce-
dequianos. Nessa aposta, o eixo participacionista foi central e transparece na reação às críticas
à participação e ao conflito industrial, segundo as quais essa análise seria simplista porque
espontaneísta.21 Em resposta, Weffort afirma que o então Movimento Democrático Brasileiro
(MDB) e os sindicatos oficiais eram organizações extremamente limitadas e que a participação
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 483-499, maio-agosto 2019 483
José Szwako e Ramon Araujo
dos trabalhadores nelas não esgotava a questão da representação sindical, cujo dilema era
criar alternativas organizatórias (1976: 154).
Informada pelos eventos ditos espontâneos de Contagem e Osasco, bem como informan-
do a autoimagem de atores e mobilizações de fins dos 1970, a análise weffortiana trazia mais
do que um ideal de sociedade; trazia um ideal de relação entre Estado e sociedade marcada
pelo autonomismo, não mais pelo populismo – vivia aí, na inspiração em Weffort, na aposta
do Cedec e nas suas trocas com grupos civis e políticos então em cena, uma das raízes intelec-
tuais do longevo ideário da democracia participativa no país (Teixeira, 2017).
A história intelectual da reflexão weffortiana nos mostra que ênfases e luzes sobre
o populismo mudam pari passu a filiações e pontes intelectuais, acadêmicas ou não, com
grupos não só da sociedade civil, mas também de justaposições e tensões deles com a
sociedade política. Por volta de 1964, a reflexão se centra nas ausências sociológicas de
massa que impediriam a realização de uma imaginada vocação revolucionária de classe no
bojo do dito regime populista. Na inflexão rumo às escolhas, aquela deficiente não classe
deixa de ser o aspecto central para dar vez a atores, à sua consciência e à sua autonomia, ou
à falta delas.
Em seu conjunto, indo do regime ao sindicalismo populista, a produção de Weffort per-
correu caminho igual e paralelo ao de outros acadêmicos e grupos de intelectuais da esquer-
da paulista que, nos 1970, foram das macrodeterminações a conjuntura, atores e política
(Lahuerta, 2001). Não sem ironia, a descoberta da política veio, em Weffort, impregnada de
uma recusa do Estado; uma renitente estadofobia costurava suas análises com efeitos longe-
vos dicotomizantes: Estado versus sociedade civil – um “Estado forte das grandes burocracias
públicas, aliado ao grande capital estrangeiro e nacional, que impõe uma autoridade pratica-
mente ilimitada sobre a sociedade civil” (1979b: 12). Contra aquele Estado maldito e herdado,
uma virtuose civil.
Tal cognição operava um paralelismo entre regimes autoritário e populista, bem como
acachapava toda a história política e sindical, de 1945 a 1964, num rótulo comum e inde-
vido.22 Seja como for, o enquadramento weffortiano se impôs além da universidade, influen-
ciando autores e atores que foram a um só tempo acadêmicos, civis e partidários, reverencian-
do-os na medida em que respondessem àquele autonomismo e à correspondente sociedade
civil pretensamente autônoma, mas igualmente redentora (Lahuerta, 2001: 73). Vejamos, pois,
como essas análises, ênfases e lógicas de interpretação permearam a gênese do debate bra-
sileiro sobre movimentos sociais.
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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
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José Szwako e Ramon Araujo
se alastrava país afora – da capital à grande São Paulo, passando pelo interior paulista e
espicaçando noutras capitais.
A solução do conflito seguiu dupla lógica: institucional, sob a pena do Tribunal Regional
do Trabalho, e extrainstitucional, sob a lógica da solidariedade e da radicalidade operárias,
expressadas tanto na adesão e nos momentos mais tensos do confronto quanto na condição
imposta pelo líder grevista de que os prisioneiros políticos fossem soltos, como o foram. Além
de terem conseguido fazer, na marra, uma greve legalmente proibida, os trabalhadores logra-
ram uma reforma no gabinete de Vargas, levando João Goulart ao Ministério do Trabalho, e
também, como desdobramento do Comitê Intersindical, uma institucionalidade que duraria
ao menos até 1964.
Essa reconstrução de Moisés é sui generis pelo esforço narrativo dedicado ao conflito
e seus atores. À conclusão, porém, duas tendências sintetizam tudo. Uma delas é ligada aos
trabalhadores com tendência espontânea à radicalização e sem liderança definida; a outra,
ligada ao desempenho extremamente ambígua do PCB, no seu papel de estimular e controlar
os trabalhadores (1978: 92-93). Mais uma vez, a tese populista e a razão autonomista compu-
nham a chave pela qual era lido o caso. A despeito de veicular possibilidades de uma política
clara de organização autônoma em relação ao Estado, a greve, em razão daquela ambiguida-
de, teria resultado no fortalecimento do populismo (Idem: 93-94).
No seminário de 1977, todavia, junto com seus pares cedequianos, a potência e a es-
pontaneidade vistas em 1953 lhe ensinavam algo mais fundamental, caro à aposta do Ce-
dec quanto ao papel dos trabalhadores na transição: que as relações entre espontaneidade
e direção política são “fundamentais para definir as funções de representação de qualquer
partido que se proponha a liderar a classe operária” (Moisés, 1978: 151). Diante de Moisés,
de seus inspiradores e interlocutores, era esse era um dos desafios teórico-políticos então
postos e autopropostos.
Naquele mesmo ano do seminário, o Cedec abria sua primeira coleção de livros com a
publicação de Contradições urbanas e movimentos sociais, organizado por Moisés, no qual
vinha a lume A Revolta dos suburbanos, ou “Patrão, o trem atrasou” (Moisés e Martinez-
-Alier, 1977). Na apresentação, lê-se que, entre os textos publicados,25 a reflexão de Moisés
e Martinez-Alier era a mais fiel às preocupações intelectuais do Cedec (Weffort, 1977: 10).
Acusando parte das ciências sociais de elitismo, esse Weffort em nada lembra aquele das
faltas da massa tal como caracterizada nos 1960 e se questiona, no ritmo daquela inflexão,
por que a espontaneidade popular era lida só em termos negativos como instinto ou falta
de organização.
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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
É contra tal visão elitista que se dirige a análise dos episódios de quebra-quebras e
depredação de ônibus e trens nas capitais carioca e paulista, em especial entre 1973 e 1975.
Analogamente à análise de 1953, após um panorama dos acidentes e dos incidentes, bem
como de feridos e mortos em quase uma década, a dinâmica das revoltas ocupa o núcleo da
análise, na qual são (o)postos os atores: usuários, rebelados; o Estado e seus agentes, que
reagem para conter os acontecimentos; e as empresas e seus trabalhadores.
Longe de serem protestos cegos, essas revoltas não se reduzem à mera destruição dos
meios de transporte; são, antes, dirigidas contra o Estado, respondendo a anseios coletivos
(Moisés e Martinez-Alier, 1977: 30). Quer dizer, a massa é dotada de razão. “Essa massa po-
pular não é um aglomerado casual de pessoas [...]. Não existe organização prévia, mas existe
uma identidade de condição e de propósito [...]. Esse sentimento de identificação se manifesta
em formas diversas de solidariedade” (1977: 41). Massa – note-se – racional, solidária e
prenhe de simbolismo. Antecipando Melucci, a dupla vê nos eventos e nos depoimentos revol-
tosos a natureza simbólica desses movimentos (Idem: 33-ss). Na resposta de um presidente
militar, por exemplo, veem a fabricação de um povo como interlocutor válido do Estado.
A revolta dos suburbanos foi reconhecido por sua veia pioneira (Machado e Ribeiro,
1985). Moisés e Martinez-Alier inovaram conceitualmente ao entrar no debate dos movi-
mentos sociais urbanos, marcando a gênese do Grupo de Trabalho homônimo na Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em 1979. Saem Lu-
cáks e Gramsci, entram Castells, Lojkine, e com eles as relações entre capitalismo e contradi-
ções urbanas (Moisés e Martinez-Alier, 1977: 44-53), para inquerir o peso dessas últimas no
acirramento da reprodução das relações de produção.
Se bem que elogiada por seu pioneirismo, essa análise foi também criticada por se fixar
na polarização Estado versus sociedade, negligenciando a variedade de formas assumidas pe-
las relações entre protestos e movimentos sociais, de um lado, e representantes e instituições
estatais, de outro (Santos, 1981). A herdada estadofobia levava a uma apreciação “um pouco
pobre [do Estado], definido apenas como inimigo autoritário ou a mira contra o qual se movia
a sociedade civil” (Cardoso, 1983: 321).
De signo urbano, a qualificação do conector operante entre Estado e sociedade civil
deixou marcas indeléveis no debate brasileiro sobre movimentos sociais desde seu nasci-
mento. Se não rompeu com aquela herança, os deslocamentos trazidos por A revolta dos
suburbanos nos permitem ao menos notar que o fim dos anos 1970 está analiticamente a
anos-luz da noção de manipulação e alienação das massas; antes, tratava-se de ver racio-
nalidade na revolta, mais uma vez e ainda à espera de direção, pois a espontaneidade era
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 487-499, maio-agosto 2019 487
José Szwako e Ramon Araujo
encarada pela via da organização das massas (Moisés e Martinez-Alier, 1977: 57). Assim,
diante de intelectuais e núcleos como o Cedec e Moisés, emergiam mobilizações e persona-
gens que, ao contrário de um elitismo, lhes traziam promessas, apostas, e, com elas, novos
conceitos e categorias.
Descobriu-se, por exemplo, que o operariado brasileiro não é nem nunca foi atrasado e irra-
cional, embora possa ser conservador; que a sociedade civil não é propriamente fraca nem
o Estado brasileiro propriamente seu promotor (...); que o campesinato brasileiro não é uma
sobrevivência, mas uma produção viva deste capitalismo (...); que as formas de resistência ope-
rária não se fazem em sindicatos, mas se aprendem na própria fábrica; que os povos indígenas
não estão destinados a desaparecer (...) – em suma, que os dominados existem, têm voz própria
(...), longe de serem alienados e passivos. (Paoli, 1987: 54)26
488 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 488-499 maio-agosto 2019
Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
tocaram no ponto essencial da experiência vivida de classe: [elas] tornaram visível e pública
suas condições de trabalho e vida, fizeram circular as experiências reprimidas, ocuparam o
espaço da produção, reatualizaram a reivindicação social negada pelos patrões e prometida
pelo Estado. (1987: 97)
A crítica a Weffort nos permite observar um desvio de monta em relação àquela renitente
estadofobia: “Imbricados na ideologia, no Estado, empurrados para a sombra, paralisados
na concepção vigente, os trabalhadores viveram experiências e formularam interesses no
interior disso tudo” (1986: 98-99). É a influência thompsoniana que ressoa nessa concepção
de experiência e das dimensões fenomenológicas de classe que “não se esgota[m] na ideo-
logia, ou nas lógicas e necessidades da produção e do poder, embora as suponham” (Paoli,
1987: 58). Em diálogo com outros críticos,27 Paoli (1988) chegava à conclusão de que as
leis trabalhistas não concorriam com uma classe imaginada; antes, constituíam uma cultura
de classe assentada no eixo dos direitos e da sua reivindicação. Sujeitos, cultura, sentidos,
direitos, cotidiano, subjetividade, identidade, imaginário – o debate guinava da estrutura à
experiência (Sader, 1988: 37). Pelas mãos de Paoli e inúmeros outros, um leque categorial
entrava em cena com insights capitais não só no debate dos movimentos sociais, mas tam-
bém na história social brasileira.28
Todas essas categorias veiculam a recusa de um raciocínio típico da nossa imaginação
sociológica – a heterogeneidade deixava de ser jugo e obstáculo a uma classe lida por viés
trop estrutural para ser tida como constitutiva da sociedade brasileira e de suas desigualdades
e manifestações de classe nos atores populares. “[Os] movimentos sociais ensinaram que a
dominação não é um pacote pronto que dominados indiferenciados engolem” (Paoli, 1987:
56). Ou seja, na implicação análoga em Sader, os manipulados também manipulam (1988:
110). Heterogêneos e dotados de agência – era assim que Paoli e Sader viam trabalhadores
e movimentos.
À raiz dessa postura interpretativa, suas inspirações se situam em meio a três tendên-
cias cruzadas. Nutrem-se, em primeiro lugar, da interlocução com achados e avanços antro-
pológicos e historiográficos, respectivamente, na USP e no Museu Nacional, bem como na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade Federal Fluminense (UFF).29
Também se nutrem da pluralização e das pugnas então vividas pelo marxismo, cujo exemplo
da descoberta por parte da intelectualidade brasileira da política e da sociedade civil era só um
caso num conjunto mais amplo de críticas (britânicas, em especial) a certa moda estruturalista.
Por fim, e de modo mais importante, tem uma de suas raízes em Chaui e na crítica democrática
de Lefort e Castoriadis de repensar o marxismo e as esquerdas sob o risco de recair no lado
de lá do par socialismo ou barbárie.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 489-499, maio-agosto 2019 489
José Szwako e Ramon Araujo
490 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 490-499 maio-agosto 2019
Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
indiferenciada. Seria possível pensar a identidade dos trabalhadores como formada pelo getu-
lismo, porém ela expressa sua subordinação a um projeto exterior.
Assim, a adjudicação heterogênea da sociedade civil e de atores dotados de agência
caberia a poucos. Novos personagens produzem sentidos, enquanto velhos ganham sentido
alheio. Alguns, tidos erroneamente como manipulados, são capazes de elaborar suas experiên-
cias e identidades, ao passo que outros seriam de fato manipulados.30
O peso da tese populista na primeira geração do debate sobre movimentos sociais não
pode ser subestimado. ‘No período populista...’ é a forma textual pela qual autores operaram
a clivagem novos/velhos. Naquele passado imaginado, “as relações clientelistas desenvol-
veram-se em sua forma clássica, na política de favores, [e nele] as creches entram como
equipamento de assistência” (Gohn, 1985: 153-154). Os movimentos no campo tampouco
escaparam. “Até 1964, observa-se a história de uma luta pela tutela política do sindicato
camponês ainda incipiente, entre o populismo, o PCB e a Igreja Católica” (Scherer-Warren,
1987: 44). Entre os excluídos da novidade, as Sociedades de Amigos de Bairro foram as que
mais sofreram, resumidas a clientelismo e participação controlada na chave autonomia versus
cooptação (cf. Jacobi, 1983).31 Já os “novos movimentos se caracterizam por suas lutas para
romper com os esquemas populistas do passado” (Scherer-Warren, 1987: 42).
Note-se, porém, que a adesão à tese populista não ficou restrita a teóricos que queriam
ver novidade nos movimentos de então. Mesmo os críticos do chamado autonomismo parti-
lhavam da leitura acachapante daquele padrão socioestatal de interação pré-1964.32 Enrique-
cido por novas categorias e dividido entre autonomistas e institucionalistas, nascia o debate
sobre movimentos sociais enraizado no solo comum do passado populista.
Feitas as contas, a interpretação do pré-1964 de O populismo na política brasileira se
tornava, ao longo dos 1980, hegemônica (Santanna, 1998), na universidade e fora dela. Face
a esse sucesso político-intelectual, aquela invenção de uma sociedade civil (Weffort, 1988
[1983]) pode ser agora entendida. Parecia politicamente necessário inventar uma redenção
civil pela conjuntura autoritária e contra ela, ao mesmo tempo que a compreensão do histórico
de lutas e atores era intelectualmente obliterada por um raciocínio estadofóbico que acacha-
pava nuances do conflito social num antigetulismo quase declarado ou lhes esganava no an-
tipecebismo. Desse ‘passado’, desse vazio suposto e imposto pela análise, nascia a autocom-
preensão de nossa sociedade civil – virtuosa... Se o esforço historiográfico posterior mostrou
adequadamente, a nosso ver, limites e erros dessa tese, ela precisa ser, ainda assim, entendida
na sua história, ou seja, no rol de apostas e disputas das quais fez parte e saiu, goste-se ou
não, vencedora. A força da herança de Weffort mostra mais que uma dupla hermenêutica.
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José Szwako e Ramon Araujo
Duas conclusões
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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
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José Szwako e Ramon Araujo
Notas
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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais
temente por uma acentuada intenção normativa (pensamos particularmente nos trabalhos de Hélio Jaguaribe
e de Guerreiro Ramos)” (Weffort, 1978: 66).
15 Para uma ideia de certa continuidade intelectual do Ibesp e do Iseb, ver Schwartzman (s/d).
16 Weffort (1978: 84-85).
17 Lynch (2011: 35).
18 Seria possível, seguindo Botelho (2007), sugerir hipoteticamente como essa estadofobia constitui proble-
ma central de uma sequência da sociologia política brasileira, na qual as interpretações do Weffort da década
de 1960 se alinham cognitivamente tanto à produção de Marilena Chaui nos tempos da transição democrá-
tica quanto à de Francisco de Oliveira no que concerne aos governos Lula.
19 Texto publicado na Revista de Cultura Contemporânea, dividido em três trechos complementares e corres-
pondentes a Weffort (1978b, 1979a e 1979b).
20 Santanna (1998: 24).
21 Siqueira e Fernandes (1976: 51 e 54).
22 Indevido é a conclusão a que leva os críticos da tese populista. Ver Gomes (2001) e Ferreira (2001).
23 Embora a publicação de “Greve de massa e crise política” date apenas de 1978, o conteúdo empírico
central do livro, sobre os eventos de 1953, ganhou a primeira redação em 1971, tendo uma primeira versão
publicada em 1976, na Revista Contraponto, e, sob forma avançada, no terceiro capítulo do livro (Moisés,
1978: 67-94). Já o quinto capítulo (123-152) traz observações e contribuições à outra versão do texto discu-
tida, em 1977, em seminário do Cedec (Moisés, 1978: 123).
24 “A revolta dos suburbanos ou ‘Patrão, o trem atrasou’” (Moisés e Martinez-Alier, 1977).
25 Entre eles, “Acumulação monopolista, Estado e urbanização”, no qual o diagnóstico de F. de Oliveira
dá pistas daquela cognição dicotomizante: “As formas do conflito social são novas. As classes populares,
soldadas pela dialética da reprodução ampliada do capital, já não se dirigem ao Estado; dirigem-se contra o
Estado” (Oliveira, 1977: 75).
26 Não obstante tenha sido apresentado no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional e rapidamente publicado numa série dessa mesma instituição em 1982, “Os trabalhadores urbanos
na fala dos outros” saiu em livro apenas no fim da década de 1980 – não por acaso, organizado por um
antropólogo. Ver Leite (1988).
27 Citando expressamente “Burguesia e trabalho” de A. C. Gomes.
28 Chalhoub e Silva (2009). Como nosso foco neste texto recai sobre o peso da tese populista no debate de
movimentos sociais – e também por motivos de economia textual –, não temos como lidar com a importância
inequivocamente relevante da história social do trabalho para o desenvolvimento de agendas e categorias
analíticas de nossas ciências humanas e para a crítica a Weffort.
29 Quanto à antropologia, referências obrigatórias na interlocução e no dissenso interpretativo eram E.
Durham e R. Cardoso, enquanto José Sérgio Leite Lopes foi interlocutor privilegiado de Paoli. Quanto à histo-
riografia, ver Movimento operário brasileiro 1900/1979, em especial o texto de por H. Hirata que, como Paoli,
questionou as conclusões de Weffort.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 495-499, maio-agosto 2019 495
José Szwako e Ramon Araujo
31 A reconstrução da trajetória da produção de P. Jacobi, ao longo da década de 1980, poderia nos mostrar
uma inflexão interna e rica, que passa inicialmente de uma postura autonomista a uma autocrítica de tom
institucional e interacionista.
32 “À diferença da mobilização que caracterizou os anos pré-1964, aquele ano [1978] parecia inaugurar um
interesse generalizado pelos valores democráticos” (Boschi, 1988:13).
33 Na contramão da autoimagem uspiana, veja-se uma análise das relações entre sociólogos, ação política e
laços com a política estadual em Romão (2006).
34 “O conhecimento dos discursos sobre a sociedade e a história assume importância fundamental porque
condiciona o próprio objeto que nomeia, entranhando-se em seu acontecimento” (Sader e Paoli, 1986: 41).
35 Almeida, 1983.
Referências bibliográficas
496 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 496-499 maio-agosto 2019
Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
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Artigo
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200009
1
A pesquisa que embasa este artigo foi parcialmente financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A coleta dos dados depen-
deu do envolvimento de numerosos marxistas, sem os quais esta pesquisa não teria sido possível. Às agências e a eles,
nosso principal agradecimento.
I
Universidade de São Paulo, (USP) São Paulo – SP, Brasil.
*
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Adjunta do Dpto. de Ciências Sociais da
UFSCar. (lidianesrgues@gmail.com), ORCID iD: https://orcid.org/ 0000-0003-2011-9888
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Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”
Resumo
Os marxistas que atuam em universidades brasileiras responderam a um questionário com 59 perguntas. Uma delas
indagava: “Por quais autores/intérpretes do Brasil você tem mais interesse?” Com base nas respostas a essa per-
gunta, elaborou-se um ranking com suas predileções por determinados autores. Este artigo se propõe a identificar
o princípio gerador da dupla escolha dessa lista: a dos marxistas por esses intérpretes e a desses intérpretes pelos
marxistas. Para tanto, realiza uma caracterização sociológica dos respondidos e dos respondentes, assim como da
representação que os segundos compartilham a respeito dos primeiros.
Palavras-chave: Sociologia Histórica das Ciências Sociais; Sociologia dos Intelectuais; História do Marxismo;
Pensamento Social e Político Brasileiro; Universidades.
Abstract
Marxists working in Brazilian universities have answered a questionnaire with 59 questions. One of them asked:
“Which authors/interpreters in Brazil are you most interested in?” Based on the answers to this question, a ranking
was prepared with the predilections for certain authors. This article aims to identify the principle that rises from
the double choice of this ranking: that of Marxists for certains “interpreters” and that of certains “interpreters” for
Marxists. To this end, it carries out a sociological characterization of the respondents and the respondents, as well as
the representation that the latter share about the former.
Keywords: Historical sociology of social sciences; Sociology of intellectuals; History of marxism; Brazilian social
and political thought; Universities.
Resumen
Los marxistas que trabajan en las universidades brasileñas respondieron a un cuestionario con 59 preguntas. Una de
ellas preguntó: “¿En qué autores/intérpretes de Brasil te interesa más?” A partir de las respuestas a esta pregunta,
algunos autores elaboraron una clasificación con sus predilecciones. Este artículo propone identificar el principio que
genera la doble elección de esta lista: la de los marxistas por estos intérpretes y los intérpretes por los marxistas. Para
ello, realiza una caracterización sociológica de los citados y los encuestados, así como la representación que estos
últimos comparten sobre los primeros.Palabras clave: Sociología histórica de las ciencias sociales; Sociología de los
intelectuales; Historia del marxismo; Pensamiento político y social brasileño; Universidades.
Palabras clave: Teoría social; Sociologías indígenas; Teorías y sociologías del sur; Sociología africana; Yoruba.
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Lidiane Soares Rodrigues
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Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”
Autores/Intérpretes %
1. Florestan Fernandes (f1) 22,9%
2. Caio Prado Júnior (f1) 20,9%
3. Ruy Mauro Marini (f2) 3,5%
4. Carlos Nelson Coutinho 3,3%
5. Celso Furtado 3,2%
5. Ricardo Antunes 3,2%
6. Antonio Candido 2,7%
7. Sérgio Buarque de Holanda 2,5%
8. Jacob Gorender 2,2%
9. Francisco de Oliveira 2,1%
9. José Paulo Netto 2,1%
Este artigo se propõe a identificar o princípio gerador da dupla escolha desse ranking: a
dos marxistas pelos “intérpretes” e a desses “intérpretes” pelos marxistas. Para tanto, realiza
uma caracterização sociológica dos respondidos e dos respondentes, assim como da represen-
tação que os segundos compartilham a respeito dos primeiros.
Importa uma consideração prévia, de ordem teórica. Optou-se por adotar o enquadra-
mento analítico da sociologia da cultura de Pierre Bourdieu e, simultaneamente, tomar dis-
tância do emprego de seu conceito de “campo”, aliando-se ao refinamento hodierno de sua
teoria, proposto por expoentes de sua herança intelectual. Essa atitude cautelosa considera as
peculiaridades do mercado de bens simbólicos, indissociável dos sistemas de ensino nacionais
em países de desenvolvimento capitalista periférico e tardio, com frágil poder geopolítico e
econômico no espaço transnacional do intercâmbio econômico e cultural (Novais e Cardoso,
2009; Miceli, 2005 [1972], p. 125-156).
Foram inseridas, nas operações analíticas em ato, as reflexões subjacentes a essa conduta
mais refletida e crítica ao uso indiscriminado da palavra “campo”, que tem colaborado para a
perda do poder explicativo desse conceito. Para tanto, adotou-se a sugestão de Gisèle Sapiro,
segundo a qual, do conceito de campo, vale reter a ideia de “espaço de relações estruturado/
estruturante”, orientando os agentes em sua luta uns contra os outros, uns com os outros,
uns pelos outros – em detrimento de uma propriedade definidora deles: a autonomia (2013).
É essa propriedade que a prática cultural de países periféricos coloca permanentemente
em questão, e sua operacionalização não pareceu profícua aos achados empíricos da enque-
te que embasa este artigo. Assim, supor que exista um “campo (autônomo) do marxismo”
seria despropositado, por tudo que se exporá abaixo. Em contrapartida, a competição por
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Lidiane Soares Rodrigues
trunfos investidos de valor próprio e sentido, no meio dos marxistas, dotados da capacidade
de segmentar e hierarquizar, legitimamente, os próprios agentes do processo de segmentação
e hierarquização, só pôde ser realçado pelo emprego das noções do polo restrito e ampliado
do “mercado dos bens simbólicos” (Bourdieu, 2003) e da dominação simbólica com base na
“crítica da razão escolástica” (Bourdieu, 2001).
Essas noções pontilham a obra de Bourdieu desde sua juventude, porém o presente tra-
balho mobiliza suas análises de maturidade, período em que sua atenção se dirige não apenas
para os mecanismos determinantes do polo “dominante” da dominação simbólica (Bourdieu
e Passeron, 1975), mas também para o papel ativo exercido pelos agentes dominados no
trabalho de sua própria dominação (Bourdieu, 2002; 2015, p. 569-588). Essa perspectiva é
basilar para a análise a seguir.
Por fim, a crítica à razão escolástica precisa ser sublinhada, já que também toma posi-
ção em relação ao estado das discussões. Este trabalho tenciona propor uma alternativa à
oposição entre análises internalistas e externalistas que disputam o enquadramento da vida
intelectual (Rodrigues, 2017a; Jackson e Praxedes, 2017). Para tanto, partiu-se da evidência
de que a vida das ideias comporta dimensões não racionais e afetivas, de modo a eleger tal
dimensão como objeto e empenhar-se em compreendê-la. Retoma-se esse ponto nas consi-
derações finais.
Preliminares
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Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”
A apreciação do ranking constatou que os autores induziram a leitura uns dos outros. Os
localizados da terceira à nona posições trabalharam pelo acréscimo de valor simbólico
dos autores mais citados que do eles por meio de intervenções destinadas a isso (Netto, 1987;
Coutinho, 2000; Antunes, 1998; Saviani, 1994; Oliveira, 2003; Konder, 1989; Candido, 1996;
Gorender, 1987). Do mesmo modo que eles induziram leituras de Florestan Fernandes e Caio
Prado Jr., o primeiro o fez em relação ao segundo (Fernandes, 1988, 1989, 1991ª e 1991b).9
Importam as circunstâncias de produção desses textos, que condicionaram a fatura e a recep-
ção de seus conteúdos.10
Os artigos de Florestan Fernandes sobre Caio Prado Jr. e os dos autores da f2 que tratam
de ambos foram produzidos a propósito de homenagens – aniversário de nascimento, faleci-
mento ou cerimônia de consagração em vida. Os autores são liberados, pela natureza desses
eventos, de certas convenções às quais os acadêmicos são submetidos regularmente. Neles,
permite-se – e mesmo se requer – o afrouxamento do compromisso com referências biblio-
gráficas e factuais precisas, daí a “citação de memória”, tanto da obra quanto das lembranças
do autor incensado.11 A autoridade simbólica de que os autores são investidos ao comentar
uns aos outros torna impensadas e impensáveis as operações de seleção; enquadramento e
articulação de sentido; classificação, apreciação e hierarquização daqueles(as) fragmentos
biográficos/citações avulsas.12
Do mesmo modo que os paratextos secundários enquadram textos principais, tornan-
do-os inteligíveis segundo os padrões do meio a que se destinam, os escorços biográficos
– presentes em depoimentos, entrevistas, obituários, conferências – enquadram trajetórias.
Os textos menores sobre os autores induzem leituras dos textos maiores dos autores, por
meio da inculcação da crença no valor deles, do dever de lê-los, de categorias classifica-
tórias (prévias) e, sobretudo, de um protocolo de indagações obrigatórias.13 As práticas de
incensamento são dotadas de uma capacidade extraordinária de capilarizar certa represen-
tação dos autores e de suas obras. É precisamente o que se observa nos textos menores de
Florestan Fernandes sobre Caio Prado Jr.
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“Estabelecia uma síntese, que na esfera acadêmica seria entendida como uma fusão entre
história, economia, geografia e sociologia. [...] tinha em mente que [...] uma relação recíproca
entre teoria e prática, conhecimento e transformação da realidade” (1988: 6)
5) Ser/dever ser de um marxista, os sacrifícios sem recompensas: “Imaginem
o que aconteceu com Caio. A intrepidez [...] suportou equilibrada e serenamente as duas
espécies de sanção (da classe com que rompeu, do Partido que não o reconheceu). [...] A sua
coragem e o seu orgulho o preparavam para repelir as afrontas dos esbirros e a repressão
policial. Fazia o seu aprendizado de intelectual revolucionário e descobria como eram tratados
os de baixo e os que se viam banidos da legalidade por pertencerem ao PCB. Venceu, e as
provas da vitória estão em sua carreira de militante, em sua fidelidade ao PCB e à causa de
sua renovação. Essas provas valem tanto ou mais que seus méritos de historiador e suas cre-
denciais de porte excepcional” (1989, p. 35). “O PCB [...] Representava uma promessa digna
de fé, endossada por gente responsável, egressa do tope da pirâmide e do núcleo do sistema
de poder. A revolta de Caio carregava consigo pois, uma carga explosiva e o expunha a todos
os ódios, a todos os estigmas, a todas as perseguições ou difamações”. (1989: 34-35)
6) O que é/deve ser, institucionalmente, um marxista? Acadêmico destituído
de academia: “[...] a ditadura constrangeu a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras a per-
der a presença direta e ativa de uma mente fecunda” (1999, p. 11). “Por nós, ele teria ficado
como professor [...] Sérgio (Buarque de Holanda) se aposentara contra a nossa vontade (e)
só Caio poderia sucedê-lo e substituí-lo, à altura dos padrões mais exigentes da investigação
histórica (1989, p. 28-29). “[...] Ele reaparece com todo o brilho, como expressão legítima
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras [...] e da qual tornou-se um mestre sem ter sido
um professor de carreira” (1999, p. 11). “Caio representava o seu espírito e sustinha os seus
avanços” (1989: 32).
7) No PCB – livre no espírito, obediente na prática: “(em Evolução política do
Brasil, 1933) dá suas respostas aos membros da classe social dominante e ao PCB [...] para
afirmar-se em toda a plenitude como um intelectual revolucionário livre, pronto avançar na
conquista da revolução social e na emancipação dos excluídos, porém dotado de uma facul-
dade própria de submeter-se à disciplina e às orientações partidárias” (1991). “Caio, dentro
de seu estilo objetivo, procedeu a uma análise de situações históricas distintas em termos
comparativos e dela ousou tirar conclusões divergentes das que eram defendidas e impostas
pelo PCB. [...] essa qualidade de enfrentar até o fim, até o fundo uma pergunta intelectual
que exige extrema coragem e pode custar sacrifícios imprevisíveis, Caio possui em uma escala
admirável e rara entre os intelectuais brasileiros” (1989: 38).
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Densos e dotados da capacidade de instar reações – o que é digno de nota num meio
intelectual como o brasileiro, no qual o silenciamento consiste na estratégia de disputa por
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Observação: as organizações partidárias com menos de um indivíduo foram eliminadas da tabela. Por economia
expositiva, indicamos a similaridade da distribuição proporcional, entre a base dos 277 indivíduos em foco e os
988 respondentes, mas suprimimos a das demais, que apenas repetiriam a constatação de que as tendências gerais
colhidas pela pesquisa se encontram reproduzidas. Efetivamente, há princípios de coesão que unificam o espaço, e
o topo desse ranking pôde documentá-lo de modo compacto.
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Lidiane Soares Rodrigues
Dos 277 respondentes 27,8% afirmaram não ter preferência por partidos. Os que
afirmam ter alguma preferência se concentram, de modo equilibrado, entre PSOL, PT, PCB e,
em menor proporção, PSTU. Já no que diz respeito à filiação partidária, a proporção quase
se inverte. Enquanto 68,6% afirmam não ser filiados a partido algum, 27,5% se concentram
entre PCB, PT, PSOL, PSTU e PC do B – havendo ainda uma distribuição muito dispersiva do
restante. Como a tabela indica, a proporção invertida, em termos de filiação/preferência, do
conjunto dos 988 indivíduos, é reproduzida entre os 277. Tudo se passa como se a propor-
ção de indivíduos filiados a partidos correspondesse ao dobro de indivíduos cuja predileção
partidária não passa à prática política partidária efetiva.
A morfologia torna compreensível a eleição de figuras que, segundo Florestan Fer-
nandes, tiveram uma atividade partidária sem grandes recompensas e ao custo de grandes
sacrifícios, como ruptura total com sua classe, ódio, estigma, perseguição, difamação. A
relação problemática dos respondentes com os partidos aos quais poderiam se filiar e aos
quais se esperaria que devotassem alguma predileção é refratada na relação problemática
dos autores respondidos com o sistema partidário. A visibilidade política dos marxistas con-
trasta com seu exíguo engajamento partidário, um achado contraintuitivo desta pesquisa.
As posições e as tomadas de posição dos marxistas, nos sistemas partidário e univer-
sitário, tornam inteligível a escolha dos dois autores no topo do ranking, caracterizados nos
termos de Florestan Fernandes. A posição duplamente dominada predispõe à identificação
com “heróis vencidos” em sentido duplo: acadêmico e partidário. Vencidos porque não
obtiveram glórias equivalentes a seus méritos e heroicos porque incensados por pares em
posições homólogas. Observa-se a natureza recíproca dessa eleição.
No que concerne à terceira dimensão problemática, a fim de caracterizar de modo
enxuto o perfil socioeconômico dos respondentes e as assimetrias em operação nesse meio,
enfatizando o capital cultural de origem, tomou-se a escolaridade materna dos respon-
dentes como indicador expressivo. Em seguida, eles foram segmentados segundo posse/
destituição do diploma de pós-graduação, na linhagem materna; e posse/destituição de um
diploma de graduação universitária,22 chegando-se a uma divisão em três frações, distribuí-
das da seguinte maneira:
512 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 512-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”
Trata-se de uma estrutura piramidal. No topo, apenas 8,7% dos indivíduos apresentam
um percurso escolar idêntico ao da mãe. No meio, encontra-se uma camada de 26,4% que ul-
trapassou a etapa mais longeva de escolaridade materna. Na base, uma imensa maioria, 65%,
representa a primeira geração de universitários de sua família materna. No espaço constituído
pelos respondentes, essa parcela é 7,47 vezes mais densa do que o topo e 2,46 vezes mais
densa do que a camada média.
Os polos extremos dessa estratificação, em detrimento das camadas e dos valores mé-
dios, comandam a dinâmica das trocas simbólicas, como se à heterogeneidade das origens
culturais observada nas trajetórias dos dois autores favoritos dos marxistas correspondesse a
das frações mais determinantes do ethos do espaço – que, juntas, conformam 73,7%. Nas
representações simbólicas mais recorrentes do grupo, os extremos – ousadia, firmeza, intre-
pidez, coragem – correspondem a um princípio de apreciação atitudinal e de depreciação da
satisfação, típica das camadas médias, com a ascensão social (castração).
A possessão/despossessão observada acima é tributária parcial da morfologia mais am-
pla das universidades brasileiras e do sistema de pós-graduação vigente no país.23 Interessa
a esta análise, contudo, que as assimetrias engendrem operações específicas de eufemização
simbólica de um atrito potencial entre mais e menos investidos/destituídos de capital cultural
– por exemplo, a depreciação da acomodação à ascensão socioeconômica, acima destacada,
como fiadora da integridade de princípios morais e ideológicos.
A ascensão socioeconômica se formou numa base sobre a qual se ergueram os argumen-
tos de justificativa para a expansão recente do ensino superior no plano dos investimentos
públicos e dos estímulos para os indivíduos se dedicarem aos estudos (Costa, 2012). Há uma
particularidade nesse meio, espécie de “cultura do contra”, avessa a valores médios, condutas
medianas, classes médias e conjunto de conotações que ela implica, sendo mais digno, seja a
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decadência do topo, seja a fidelidade às bases da pirâmide – exercida por indivíduos originá-
rios de uma ou de outra (Candido, 1978).
A seguir, tenciona-se evidenciar, por meio de uma reconstituição alternativa, orientada
por outras indagações, a metamorfose da determinação em liberdade, operada na represen-
tação que Florestan Fernandes faz de Caio Prado Jr. Assim, certa modalidade de interesse
desinteressado ficará patente.
A fim de provocar algum estranhamento nas leituras marxistas desses autores, propo-
mos um excurso biográfico comparativo das trajetórias de Florestan Fernandes e de
Caio Prado Jr.,24 adotando como eixos: o espaço social da cidade de São Paulo, entre o nas-
cimento do mais velho e o falecimento de ambos (1907-1995); seus trunfos e handicaps; o
leque limitado de escolhas face ao fechamento das oportunidades político-partidárias para as
elites dirigentes em descenso – inércia da trajetória familiar herdada por Caio Prado Jr. –; o
leque limitado de escolhas abertas face à abertura do dinamismo acanhado da modernização
para as camadas remediadas – percurso de ascensão econômica, sem plena integração social,
de Florestan Fernandes.
Em perspectiva objetivante, daí resultam duas carreiras simetricamente invertidas no que
tange a seus pontos de partida e à orientação possível da ação, determinadas pelas condições
em que foram obrigados a escolher/renunciar.
No período da vida intelectual produtiva dos dois, São Paulo era o epicentro da mo-
dernização econômica do país, e a produção cultural e científica da cidade foi impactada
pela mobilidade social e pela imigração ligadas a esse processo histórico (Arruda, 2001;
Pontes, 1998).
O autor que ocupa o primeiro lugar, Florestan Fernandes, tem origens modestas: é filho
de uma imigrante portuguesa, empregada doméstica, e nem sequer conheceu seu pai. Seu
percurso ascensional foi inteiramente dependente da oportunidade aberta pela criação da
Universidade de São Paulo (USP), em 1934. O trabalho de construção institucional de uma
nova ciência, a sociologia, significou para ele a superação de sua penúria, conferindo-lhe
identidade e grupo de referência (Arruda, 1995; Pontes, 1998; Gemignani, 2002). Por isso,
abriu mão das ambições de participação política que tanto marcam os intelectuais brasileiros
– paulistas, em particular (Limongi, 1987).
514 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 514-529 maio-agosto 2019
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Amar um autor: os marxistas nas universidades
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Florestan Fernandes, consiste num indicador indefectível de que sua ascensão social não foi
acompanhada de plena integração nesse espaço (Rodrigues, 2010).
Enquanto eles circulavam entre o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap),
o Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj) e os Estados Unidos, Florestan
Fernandes foi para o Canadá, dando prosseguimento a um isolamento que já se configurava
na crise institucional da FFCL-USP (Keinert, 2011; Miceli, 2001 e 1993; Rodrigues, 2018a).27
O sistema de oposições objetivas observado nas características invertidas – de origem e
de orientação da ação – dos dois autores tem contrapartida na composição sociológica dos
respondentes – a base massiva contrasta com a fração mínima de escolaridade prolongada
equivalente à da mãe. Eis a base da metamorfose elaborada por Florestan Fernandes e talvez
razão última da orquestração da sensibilidade e das crenças.
Sufocando os valores médios (ascensão, castração, ponderação, hesitação) e exaltando
as atitudes extremas (ousadia, coragem, intrepidez) que enfrenta extremos (perseguições, di-
famação, estigma), Florestan Fernandes se dirige ao topo e à base dos respondentes, saciando
suas demandas simbólicas. Ele é o agenciador mais importante da refração operada pelo
espaço entre as propriedades sociais dos respondentes e dos respondidos, por meio de uma
terceira operação: a metamorfose de um acadêmico em político (ele próprio) e de um comunista
disciplinado num intelectual livre e acadêmico (Caio Prado Jr.), evidente no contraste entre a
reconstituição acima e a que ele elaborou.
A constatação de oximoro de Pierre Bourdieu, segundo o qual “a ilusão da liberdade é
determinante dos intelectuais” (2015, p. 458), torna-se precisa para o caso da representação
de Caio Prado Jr. como um “intelectual revolucionário livre, pronto avançar na conquista da
revolução social e na emancipação dos excluídos, porém dotado de uma faculdade própria de
submeter-se à disciplina e às orientações partidárias” (Fernandes, 1991), isto é, sua ação de
tudo independe, emanando da própria vontade.
A articulação dos três elementos, correspondentes às três dimensões problemáticas des-
tacadas do sistema de representações exposto inicialmente, completa o sistema das crenças
deste espaço: a crença na fidelidade do primeiro lugar a seu grupo de origem – em decalagem
com a evidência objetiva de ter se desprendido dela, embora não tenha sido integrado aos
grupos dirigentes –; na ruptura do segundo com o grupo de origem – em decalagem com
a evidência objetiva de ter dependido inteiramente dos recursos dela, embora não tenha se
mantido integrado a ela; no desinteresse de ambos pelos interesses materiais e pela consa-
gração mundana.
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A imersão dos respondentes num meio movido pela interlocução entre agentes oriun-
dos dos polos da estratificação social, denegando ambições e valores médios em favor de
extremos, parece central para a compreensão disso. O interesse em fazer valer como valor o
desinteresse é correlato à ruptura e à fidelidade de classe observada na morfologia do grupo.
No topo, há alguma ruptura, pois os indivíduos estão “traindo” sua destinação social ao não
se associarem a grupos dirigentes e dominantes nos partidos, nas universidades e na base,
nesta por motivos inversos.
É preciso compensar, portanto, o desencaixe entre o ingresso num espaço no qual são
estrangeiros – posto que o destino social familiar não previra seu ingresso na universidade
e na pós-graduação –, mantendo-os fiéis às suas origens, na medida em que se situam em
posições a elas equivalentes na lógica própria do espaço institucional (marxistas/dominados).
Essa experiência parece não ser exclusiva do meio marxista em análise. Segundo Chris-
tophe Charle, a tomada de posição socialista entre frações dos alunos da École Normale
Supérieure no fim do século XIX consistia numa acomodação ao desajuste de que padeciam: a
decalagem entre o ponto de origem (popular) e o de chegada (entre as elites). As práticas – de
agremiação, de leituras coletivas, de militância – promoviam vínculos e solidariedade mútua
entre indivíduos estrangeiros ao universo dos normaliens, carentes de integração nele (Charle,
1990, p. 99-100).
É possível aventar similitude entre essa experiência e a que vimos caracterizando. É evi-
dente que, ao reunir os indivíduos com origens socioeconômicas discrepantes e heterogêneas,
num espaço cujos contornos não são institucionais, em estrito senso – o marxismo não é uma
disciplina, não emite diploma, não tem percurso regular, em etapas, para a formação –, o
problema da coesão do conjunto se apresentaria. Talvez, por meio da alquimia das trocas sim-
bólicas, as demandas de integração dos indivíduos e da configuração coletiva se satisfaçam.
Afinal, é notável que o modus operandi das representações dos autores seja capaz de conferir
sentido à ação e razão à desrazão, estabelecendo as crenças e reforçando o valor delas, estrei-
tando vínculos entre aqueles que nelas se reconhecem.
Considerações finais
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linhagens (Brandão, 2007; Miceli, 2000). O tratamento da eficácia social da categoria “autor”
(Sapiro e Santoro, 2017) e o cruzamento do ranking de predileções dos marxistas com obser-
vações de terreno em seus eventos se revelaram profícuos para isso.
A despeito de rivalizarem em torno dos quadros analíticos mais legítimos para a análise
dos intelectuais brasileiros, os pesquisadores presos às referidas oposições estão em acordo
impensado a respeito das escolhas obrigatórias que conformam seus estudos (Charle, 2006).
Tanto internalistas/inclinados ao argumento político quanto externalistas/inclinados ao argu-
mento sociológico convergem, em primeiro lugar, na escolha por casos de figura dominantes,
que ocupam a hierarquia superior das leituras prestigiadas e são incensados.
Assim, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre são os protótipos no polo interna-
lista, enquanto os artífices disciplinares, como Florestan Fernandes ou José Arthur Giannotti,
se tornam o protótipo dos externalistas (Arruda, 1995; Rodrigues, 2011). Em segundo lugar,
os dois polos tendem a eliminar o vetor público, como indutor das práticas de seus casos de
figura, dando atenção preferencial para a interlocução (internalistas) e a competição (exter-
nalistas) intrapares do polo restrito. Os estudos sobre a atuação dos acadêmicos no âmbito
editorial, contudo, têm mostrado sob duplo constrangimento, do perfil dos pares e da sua
clientela simbólica – alunos e leitores (Rodrigues, 2018 a; 2018d; 2018e).
Em terceiro lugar, os dois lados das oposições recíprocas se dividem quanto à eleição do
processo de profissionalização disciplinar (internalistas) ou aos tempos longínquos de regime
não disciplinar como objetos principais (externalistas), deixando a desejar alguma sistemati-
zação dos nexos entre os tempos pretéritos e o momento presente.
Devedor dos debates entre essas posições, o presente trabalho promoveu uma inversão
destas três tendências: dedicou-se ao estudo de um segmento denso, situado em margens
dominadas do campo acadêmico – em detrimento do privilégio de “casos de figura” domi-
nantes –, situado no presente em curso; construiu o argumento investigando os nexos entre
os conteúdos das mensagens, as posições, as estratégias dos produtores delas e as demandas
simbólicas da clientela simbólica disputada por eles – esforçando-nos para operacionalizar o
programa inscrito na releitura bourdieusiana da sociologia da religião weberiana (Bourdieu,
2003); tratou de um segmento que não recebeu o enquadramento das teorias da diferencia-
ção, talvez por se caracterizar justamente pela oposição à divisão do trabalho intelectual,28
isto é, postulou como válida a análise em termos de divisão social do trabalho de dominação
também para agentes e grupos que não se definem como construtores de “campos discipli-
nares autônomos”.29
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Amar um autor: os marxistas nas universidades
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Anexos
Respostas %
1º Florestan Fernandes 214
2º Caio Prado Junior 159
3º José Paulo Netto 6,9
4º Carlos Nelson Coutinho 5,3
5º Ricardo Antunes 4
6º Demerval Saviani 2,9
7º Ruy Mauro Marini 2,7
8º Francisco de Oliveira 2,5
9º Celso Furtado 2,4
10º Leandro Konder 2
11º Antonio Candido 1,8
12º Sérgio Buarque de Holanda 1,8
Total 697%
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Lidiane Soares Rodrigues
Escolaridade
Pai Mãe
Base: 277 respondentes Base: Base: 277 respondentes Base:
do topo (%) 988 (%) do topo (%) 988 (%)
Analfabeto 1,8 2,6 1,4 1,7
Fund. Incom. 28,2 26 23,1 22,7
Fund. Compl. 9 8,8 10,5 10,1
Médio Incom. 3,2 5 4,7 5,0
Médio Comp. 18,8 16,9 20,2 21,3
Superior Incom. 3,6 5,5 4,7 5,6
Superior Comp. 25,3 25,2 26,4 24
Pós-graduado 9,4 9,3 8,7 9,2
Não sei 0,7 1,9 0,4 0,5
Notas
1 A coleta dos dados foi realizada em conjunto com Profa Dra Paula Marcelino. Agradeço por discutirem comi-
go este trabalho, em diferentes etapas da elaboração, a Frédéric Lebaron, Johan Heilbron, Laurent Jeanpierre,
Horacio Tarcus, Sergio Miceli, Marcelo Ridenti, Maria Alice Rezende de Carvalho, Ana Maria Almeida, Ana
Paula Hey, Edson Farias, Graziela Perosa, Bernardo Ricupero, Luiz Carlos Jackson, Armando Boito Jr. Também
sou grata aos pareceristas anônimos de diversas publicações e das agências mencionadas, cuja exigência
de rigor tem sido acompanhada de generosidade e estímulo. Por fim, agradeço aos desafios lançados pelos
presentes nessas ocasiões, aos quais tento responder com este artigo. Como de praxe, declaro que assumo
inteira responsabilidade pelas conexões de sentido apresentadas.
2 Trabalho financiado pelo CNPq e pela Fapesp. Ocultam-se informações para manter anonimato
3 O leitor ligará esta discussão à ideia de “função autor”, elaborada por Michel Foucault (2001a, 2001b,
2008), e esse é decerto o ponto de partida, por se tratar de uma das concepções mais comuns entre nós: a
proposta de colocar em suspenso a crença na delimitação e na estabilidade das categorias “autor” e “obra”.
A retomada dessa discussão por Roger Chartier também orienta este trabalho (2014 a, 2014b, 1990, 2002;
Chartier, Bourdieu, Darnton, 1985).
4 O fenômeno se processa de tal modo que o espaço social – dos “especialistas em autores” – e o dos temas/
autores (simbólico) se tornam homólogos. O campo filosófico francês já foi estudado por meio desta aborda-
gem (Soulié, 1995), em que se baseia este artigo.
5 Convém esclarecer que a pergunta era aberta e permitia até três respostas. O ranking acima e a análise a
seguir consideram apenas a primeira, a mais propícia para apreender a estrutura do espaço (Bourdieu, 2003).
Ao todo, obtivemos 988 respondentes, que compõem o banco da pesquisa. Em vez de segregarmos a exposi-
ção da coleta dos dados, optamos por apresentá-la conforme a necessidade dos argumentos.
522 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 522-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”
6 A análise se limita às práticas e aos artefatos produzidos para e pelos marxistas, daí empregarmos a noção
de “espaço autorreferenciado”.
7 Entre os 988 indivíduos, havia 128 nomes diferentes; entre os 632 selecionados para este exame, 97. Não é
possível discutir essa multiplicidade, mas vale uma observação, a fim de justificar a análise do topo do ranking:
a dispersão a partir do terceiro lugar indica a diversidade dos “marxismos” e a divergência de parâmetros
compartilhados de excelência num sistema universitário de centralização problemática. No topo, portanto,
encontra-se a dimensão de unificação do espaço.
8 Antropologia, arquitetura, ciências sociais, direito, economia, filosofia, geografia, história, letras. A noção
de “intérprete” não tem os mesmos significado e peso em todas as áreas, portanto a necessária seleção das
que evidenciam mais proximidade na atribuição de sentido ao termo. Para chegarmos a isso, consideramos as
disciplinas como espaços sociais e cognitivos (Heilbron; Bokobza, 2015; Renisio, 2015; Fabiani, 2006; Abbott,
2000) e nos embasamos nos estudos sobre a gênese social da “academização” da obra de Karl Marx (Almei-
da; Cavalieri, 2018; Rodrigues, 2011).
9 Ainda que a ordem sequencial do ranking não seja o objeto principal em análise, é válido assinalar que os
estudos parciais já realizados indicam o papel de comando exercido por Florestan Fernandes no conjunto do
escalonamento. Ocultam-se referências para preservar o anonimato.
10 As exceções são: Celso Furtado, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Ruy Mauro Marini, que não
participam do círculo de recíproco reconhecimento na qualidade de autores-comentadores dos outros autores
do ranking. Avaliando a fração de autores coincidente com o cânone do PSPB – estabelecido pela observação
dos autores mais presentes em suas atividades, além do site Biblioteca Virtual do Pensamento Brasileiro –,
distinguimos aqueles que parecem ser específicos dos marxistas: os três primeiros. Infelizmente, a economia
do artigo impede de explorar as afinidades entre o PSPB e o marxismo.o mesmo modo, no topoo do ranki-
mente ao sentido atribuilos 988 indivtrajetorias dos autores e no mesmo modo, no topoo do rankio mesmo
modo, no topoo do rankimente ao sentido atribuilos 988 indivtrajetorias dos autores e no mesmo modo, no
topoo do rankilternativa a ela sentido neles que evidencia a : ue elas - ponto inteliglocuo com PSBolanda.
Do mesmo modo, no topoo do ranki.
11 Há duas exceções. Carlos Nelson Coutinho produziu o referido texto para o site Gramsci e o Brasil (Cou-
tinho, 2000), e a coletânea sobre Celso Furtado é constituída de paratextos não orais, mas de escritos – pre-
fácios, apresentações e introduções – concebidos por Francisco de Oliveira (2003). Apesar das diferenças, a
função de “enquadramento” é similar.
12 Realizamos observações em eventos e jamais presenciamos alguém indagar a respeito da precisão sobre
citações textuais. Isso não significa que a clientela/plateia não seja um fator ativo na orientação do palestrante/
depoente, e sim que, liberada das convenções acadêmicas para propor suas conexões, sua clientela/plateia as
aceita ou rejeita segundo outros princípios, igualmente liberados delas. A “autoridade sobre os autores” pode se
fundamentar em vários vínculos – familiares, pessoais, político-partidários etc. O título de um dos textos utilizados
é indicativo da força simbólica da amizade como fiadora de autoridade: “A visão do amigo” (Fernandes, 1989).
13 A respeito dos aparatos e das hierarquias textuais, ver Genette, 2009; Mollier, 2009; Chartier, 2014.
14 Empregamos “sociodiceia” na acepção de Pierre Bourdieu (2003a): narrativas que sistematizam a história
coletiva e conferem sentido às experiências constitutivas de uma configuração.
15 Mais preciso seria afirmar para um “marxista homem”. A evidente virilização dos atributos, eivados de
conotações bélicas e fálicas, corresponde à homogeneidade de gênero dos autores. Trata-se de um ponto que
não se pode explorar devidamente neste artigo, porém tampouco deixar de assinalá-lo.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 523-529, maio-agosto 2019 523
Lidiane Soares Rodrigues
16 A diferenciação dos dois tipos principais de poderes e de reconhecimento – o espiritual e o temporal, re-
ferindo-se, respectivamente, ao domínio dos conteúdos propriamente intelectuais e ao controle das condições
materiais e institucionais que viabilizam as práticas (Bourdieu, 1984: 138-ss) – é fundamental no argumento
e retomada adiante.
17 Argumentar em favor da correção indiscutível do que afirma Florestan Fernandes para explicar a vigência
dessas representações implicaria supor que a crença nelas depende apenas da consistência das ideias, e não
das disposições daqueles a que elas se destinam. Os atributos incensados seriam destituídos de sentido e o
ranking seria outro, caso fossem outros os respondentes. Em contrapartida, os fragmentos mobilizados são
verídicos; não se trata de invenção arbitrária.
18 A título de exemplares desse tipo de pertencimento aos protocolos estabelecidos pelo gerenciamento de
Florestan Fernandes, consultar, para o caso de Caio Prado Jr.: D’incao, 1989; Martinez, 2008; Secco, 2008;
Pericás, 2016; Ricupero, 2000; e, para Florestan Fernandes: D’incao, 1987; Martinez, 1998. Em perspectiva
diversa: Rodrigues, 2018c, sobre Caio Prado Jr.; e Arruda, 1995; Gemignani, 2002, sobre Florestan Fernandes).
19 Os critérios se subordinaram aos propósitos iniciais da pesquisa: a) recusa de qualquer definição prévia ou
normativa de marxismo e consequente interesse em todos que se identificam com ele (Tarcus, 2007, p. 29);
b) constatação de que o marxismo atual depende de práticas eruditas e acadêmicas opostas às do campo
político em que emergiu (Rodrigues, 2011; Gouarné, 2013; Tarcus, 2007; Boito; Motta, 2012; Hubmann, 2012;
Schöttler; Grandjonc, 1993), havendo interdependência e concorrência entre os polos mais “academizados”
(Elias, 1982) e os mais “partidários”. A permeabilidade dos sistemas universitário e partidário foi apreendida
pelo escrutínio de preferências e filiações partidárias, as quais se apresentam abaixo. Por fim, selecionar pro-
fessores e alunos de pós-graduação se justifica em virtude dos compromissos e do peso que a identificação
assume nessas posições, diferentemente do que significaria em fases mais indeterminadas da trajetória.
20 Não ignoramos a possível distorção das respostas. Para contornar o viés, nós as consideramos em face
a outras experiências, confirmando a evidência de que são capazes de suscitar efeitos expressivos disso no
espaço (Cf. episódio público: Boschetti, s/d; Carta aberta à Capes).
21 A primeira pergunta foi respondida por docentes e discentes; a segunda, apenas por docentes. No banco
de dados, eles se distribuem, respectivamente, em 43,3% e 56,7%.
22 Opinamos por segmentar os indivíduos segundo os critérios de possessão/destituição materna de pós-
-graduação, pois: a) todos os respondentes alcançaram esse nível educacional – portanto, mede-se até onde
foram além do ponto a que a mãe chegou); b) dada a raridade do título no polo materno, opinar por ele torna
mais evidente a assimetria.
23 Como nosso esforço neste artigo se dirige à dinâmica interna do espaço, entendemos não haver prejuízo
ao argumento acima, a impossibilidade de precisar a proporção de indivíduos de primeira geração familiar/
materna, no sistema de alunos e diplomados da pós-graduação. Pelo mesmo motivo, adotamos uma clivagem
própria, em detrimento daquela mais usual na sociologia da educação – primeira geração de graduados, e
não filhos de mães pós-graduadas).
24 Insistimos, sem o objetivo de corrigi-las, senão de realçar seus princípios de enquadramento.
25 Ressalte-se a distância interpretativa: “Ele partiu do tope, fez o movimento inverso e no momento em
que não havia crise moral no seio da classe dominante. Ao contrário, a classe dominante estava solidamente
implantada no poder” (Fernandes, 1989: 34).
26 Infelizmente, não dispomos de espaço para dar os exemplos disso, mas as biografias os relatam bastante,
ainda que os alinhave sob a tutela dos princípios de Florestan Fernandes e não destaquem que sua posição
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Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”
no espaço social chancelava vínculos ideológicos com o PCB e de amizade com configurações liberais e anti-
varguistas, por exemplo.
27 Seria possível voltar aos sete itens acima e rearranjar seus sentidos com base nesse escorço. Por exem-
plo, a austeridade ascética de Caio Prado Jr., sendo factualmente verossímil, talvez corresponda às práticas
econômicas de restrição orçamentária de camadas em descenso, premidas pelos deveres de manutenção de
um estilo de vida que se tornou oneroso e que, ao mesmo tempo, não pode ser abandonado (Miceli, 2000:
22-63; Trigo, 2001).
28 O mesmo problema foi encontrado por Eric Brun no estudo sociológico dos situacionistas, e uma alterna-
tiva analítica idêntica foi desenvolvida por ele (Brun, 2014).
29 Tal como é a tendência na sociologia brasileira do campo acadêmico, salvo exceções dignas de nota, seja
por orientarem suas atenções aos cientistas sociais como frações dominadas no campo do poder e prestando
serviços aos aparelhos de Estado (L’estoile; Neiburg; Sigaud, 2002; Hey; Rodrigues, 2017a; Hey, 2008), seja
por abordarem novos flancos de escrutínio, notadamente o das assimetrias globais (Silva, 2017; Maia et. al.,
2016; Bringel; Domingues, 2017; Rodrigues, 2017b, 2018a).
Referências bibliográficas
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 525-529, maio-agosto 2019 525
Lidiane Soares Rodrigues
526 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 526-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 527-529, maio-agosto 2019 527
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Artigo
Aryana CostaI* 1
DOI: : http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200010
I
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern), Mossoró, Brasil.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 530-548, maio-agosto 2019 530
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)
Resumo
Este artigo busca compreender, por meio das atas da revista do IHGSP, o interesse de membros desse instituto na
composição do quadro docente e nos debates sobre saberes e currículos do curso de geografia e história, inaugu-
rado em 1934 na USP. Nesse intuito, usamos o caso de Plinio Ayrosa para identificar as práticas que esses novos
professores levaram consigo para a universidade. Assim, foi possível problematizar uma memória institucional já
estabelecida que apaga esses sujeitos da história do curso e que, consequentemente, limita sua dimensão na história
da historiografia brasileira.
Abstract
This article studies, through the records of the IHGSP Journal, the engagement of this Institute’s members in the
configuration of the faculty of the Geography and History course installed in USP in 1934, and in the debates over
its contents and curricula. The case of Plinio Ayrosa was useful in identifying the practices these new professors were
bringing to the university. It was thus possible to reopen the discussion on an already established institutional me-
mory which erases these figures from the history of the course and, as a consequence, diminishes their participation
in the history of Brazilian historiography.
Resumen
Este artículo busca comprender el interés de miembros del IHGSP en la composición del cuadro docente y en los
debates sobre saberes y currículos del curso de geografía e historia, inaugurado en 1934 en la USP, a través de las
actas de la revista del instituto. En ese sentido, usamos el caso de Plinio Ayrosa para identificar las prácticas que
esos nuevos profesores llevaron consigo a la universidad. Así, fue posible problematizar una memoria institucional
ya establecida que apaga a esos sujetos de la historia del curso y que, consecuentemente, limita su dimensión en la
historia de la historiografía brasileña.
Palabras clave: IHGSP; USP; Historia de la historiografía; Curso de historia; Plinio Ayrosa.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 531-548, maio-agosto 2019 531
Aryana Costa
Introdução
O curso de geografia e história na Universidade de São Paulo (USP) foi criado em 1934.
Em entrevistas, as memórias de seus docentes e ex-alunos sobre sua fundação e seu
funcionamento constroem uma clivagem entre dois grupos de professores, divididos entre
inovadores e tradicionais, no que se refere aos diferentes entendimentos acerca de teoria e
metodologia da história e também da metodologia de sala de aula. Por um lado, ressaltam a
inovação trazida pela experiência e pela produção dos professores franceses Fernand Braudel
e Jean Gagé, os primeiros a ocuparem a cátedra de história geral da civilização. Por outro
lado, atribuem os rótulos de “conservadores” e “tradicionais” ao trabalho dos professores
brasileiros que ocuparam as cátedras de história da civilização brasileira e etnografia brasileira
– Afonso Taunay e Alfredo Ellis Junior –, bem como língua tupi-guarani, Plinio Ayrosa.
As narrativas de origem do curso remetem em especial ao lugar ocupado pelos professo-
res franceses e sua posição de centralidade e importância na consolidação do saber histórico e
geográfico, ao passo que oblitera a participação dos professores brasileiros e de suas questões
e interesses no processo de disciplinarização desses saberes. Motivados por essa separação, a
proposta deste artigo é compreender a fundação do curso de geografia e história na USP, por
meio de debates e articulações ocorridas no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo (IHGSP), instituição a que pertenciam os professores brasileiros do curso, como um dos
lugares precípuos do debate sobre história e geografia no Brasil.
Assim, este artigo se volta para a etapa anterior ao início do curso apresentado pelos
Anuários da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), para aquela que corresponde à
concepção e à organização dos saberes numa configuração curricular. Enfoca especialmente
o debate em torno da disciplina de etnografia brasileira e língua tupi-guarani, presente nos
três anos da grade curricular, o que denota sua relevância. Nas atas da Revista do Instituto
Histórico Geográfico de São Paulo (RIHGSP), encontram-se debates e articulações ocorridos no
primeiro semestre de 1934 entre membros dessa instituição e as autoridades governamentais
paulistas para a implantação desse curso.
Por meio da análise dessas atas, é possível construir outra narrativa desse início que
complementa aquelas que já conhecemos e que pertence também a essa história, mesmo que
referente a um período imediatamente anterior ao início das aulas. Neste artigo, é proposto
que as décadas de 1930 e 1940, quando a primeira geração formada pela universidade ainda
se encontrava num processo de convivência entre os regimes de produção historiográfica
nacional e estrangeira já existentes, foram igualmente um período de convivência entre dife-
rentes entendimentos sobre a atuação de um profissional de história.
532 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 532-548 maio-agosto 2019
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)
O IHGSP foi fundado em 1894, e sua organização e seus propósitos eram muito pare-
cidos com os do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Em 1932, a ad-
missão de sócios se fazia por indicação – era necessária uma proposta assinada por três ou
mais sócios efetivos, que deveria conter os dados pessoais do candidato e seus méritos. Era
obrigatória também a apresentação de “um trabalho científico” sobre assunto de história ou
geografia “precipuamente” de São Paulo (RIHGSP, 1933-1934: 469-469). Esse conjunto seria
apreciado pela comissão de admissão de sócios e pela comissão técnica respectiva – caso
fosse um trabalho de história do Brasil, de São Paulo, de geografia ou de etnografia –, que
emitiriam pareceres a serem aprovados em assembleia.
No período aqui retratado – o início da década de 1930 –, o IHGSP vinha sofrendo com
deficiências orçamentárias, por ter deixado de receber as subvenções do governo do estado
pelos anos consecutivos de 1929, 1930 e 1931. O volume 29 de sua revista, referente a 1931,
por exemplo, não pôde ser publicado por falta de verba. Em 1932, ano conturbado por causa
da Revolução Constitucionalista, o instituto contava com 156 sócios (RIHGSP, 1931-1932:
118). Em 1934, porém, já somava 206 sócios, e, em 1935, 222. A turbulência dos três primei-
ros anos da década de 1930 parece ter se arrefecido a partir de 1933, mas os relatórios não
deixam de ter um tom negativo. Não obstante a procura por filiações aumentasse, o que deno-
ta uma constância no interesse pelo instituto, os volumes de sua revista continuavam saindo
com atraso – o de número 30 não saíra no prazo –, e ainda não havia instalações adequadas
para seu museu e seu arquivo.
Apesar da resolução do estatuto de 1932 de não envolvimento em questões políticas (RIH-
GSP, 1933-1934: 481), os membros não deixavam de lançar mão de seus estreitos contatos
com o poder público para tentar resolver a situação financeira. Em 1936 e 1937, parcerias e
convênios com a prefeitura e o governo do estado foram estabelecidos para que o instituto exer-
cesse atividades de restauração e publicação de documentos e para conseguir uma nova sede.
Em nome da história de São Paulo, o IHGSP compunha comissões e promovia celebrações para
comemorações de datas, como as relativas ao quarto centenário da fundação de São Vicente.
Pouco citados nas memórias de alunos e professores, Afonso Taunay, Plinio Ayrosa e
Alfredo Ellis Junior, os três professores brasileiros que compuseram o quadro docente no início
do curso de história e geografia da USP, foram sócios desse IHGSP. Como já dito, Taunay e
Ellis Junior ocuparam a cadeira de história da civilização brasileira, e Ayrosa, a de etnografia
brasileira e tupi-guarani. Todavia, recorre-se pouco a essas figuras na construção da memória
do curso e da universidade.1
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 533-548, maio-agosto 2019 533
Aryana Costa
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Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)
de Filosofia, Ciências e Letras. Antes disso, já havia publicado Primeiras noções de tupi, em
1933, e organizado e prefaciado o Dicionário português-brasiliano e brasiliano-português, em
1934. Tornou-se catedrático da cadeira de etnografia e língua tupi-guarani em 1939, com a
tese Dos índices de relação determinativa de posse no tupi-guarani. Também foi membro da
Academia Paulista de Letras (1940) e de vários outros institutos históricos do país – da Bahia,
de Pernambuco, do Rio de Grande do Norte, do Rio Grande do Sul e de Sergipe. Fez parte da
comissão de redação da Revista de História quando esta foi fundada, em 1950. Faleceu em ju-
nho de 1961.4Os três já faziam parte do IHGSP no momento da fundação do curso de história
e geografia. Taunay, o mais velho, tomou posse em 1912. Ellis Junior, em 1927, e Ayrosa, em
1928. O pertencimento à mesma associação propiciou o convívio e o engajamento comum em
solenidades e comissões, o que provavelmente lhes permitiu inclusive carregar essa identidade
coletiva para a própria faculdade. Antes de pertencerem à USP, eram pesquisadores não só no
sentido cronológico, mas no simbólico – o título de professor na universidade era mais um no
rol da experiência que já traziam.
A carreira desses sujeitos seguiu, pois, a lógica inversa de prestígio acadêmico dos tem-
pos atuais: o reconhecimento como estudiosos veio antes da atividade como professores. Cir-
culavam num ambiente em que uma identidade paulista já vinha sendo construída no seio das
letras históricas (Ferreira, 2002: 22) e que implicava uma série de atividades comuns exercidas
no IHGSP, as quais serviam como definidoras de sua identidade historiadora.
Por exemplo, para Taunay, em seu discurso de posse, “entre os mais elevados títulos de
associação científica de que nos devemos orgulhar no Brasil, figuram certamente os diplomas
do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em magno destaque” (1914: 89). Nesse
mesmo breve discurso, ele se dedica a traçar um paralelo entre o espírito dos primeiros pau-
listas e aquele do instituto, ambos imbuídos da missão de construir uma história nacional. Do
mesmo modo que os bandeirantes foram os responsáveis pelo feito de moldar o país, a mais
nobre tarefa a que o instituto podia se preocupar era “com as questões nacionais, dedicando
aos assuntos brasileiros tanta atenção quanto aos regionais. É que o inspira a tradição: assim
também nunca São Paulo coube dentro das suas fronteiras” (1914: 89. Grifo nosso).
O IHGSP incorporava ele mesmo o prolongamento da raça de gigantes, tarefa que não
era pequena. Cabia-lhe continuar, por meio da história de São Paulo, a história nacional.5
No mesmo ano da posse de Taunay, em outubro de 1912, também tomava posse no
IHGSP George Dumas. Figura presente no cenário intelectual brasileiro desde a primeira dé-
cada do século XX, Dumas teve participação importantíssima no posterior recrutamento de
professores para a USP em 19346 junto a Theodoro Fernandes Sampaio. Era Júlio de Mesquita
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Aryana Costa
Filho – proprietário do jornal O Estado de São Paulo e que tomou posse no IHGSP no fim de
1933 – quem iria primeiramente para a Europa prospectar professores para a recém-criada
USP (Petitjean, 1996: 263). Mas, não podendo ir, fez a ligação entre Theodoro Sampaio e
Dumas (Ferreira, 2005: 230).
Segundo Dumas, numa carta a Jean Marx, diretor do Services d’Oeuvres Françaises à
l’Étranger (Sofe), “ele (Theodoro) conhece poucas pessoas ou não conhece ninguém, e se nós
queremos ganhá-lo a todo custo, trazê-lo para a nossa influência, é indispensável cercá-lo em
Paris de pessoas que ele admira e colocá-lo em contato direto com eles” (Idem: 266).
É Theodoro Sampaio, membro fundador do IHGSP, em que pronunciou discursos, necro-
lógios e fez parte da comissão de etnografia – no mesmo período em que Taunay transitava
pelas comissões de história de São Paulo ou de história do Brasil –, professor da Escola Po-
litécnica, geógrafo, estudioso da língua tupi-guarani e nomeado o primeiro diretor da FFCL,
quem vai à França e à Itália no primeiro semestre de 1934 para articular a contratação dos
professores estrangeiros que deveriam ocupar as cátedras recém-criadas na FFCL.
Vê-se que as pessoas que farão parte do curso de história e geografia circulam pelo
mesmo espaço já ao menos nas duas décadas que antecedem o decreto de criação da USP,
compartilhando ali um ethos acerca do exercício do historiador, um conjunto de interesses e,
igualmente importante, uma rede de sociabilidades. Tanto que algumas das atividades promo-
vidas e praticadas pelo instituto ao longo dos anos 1920 e no início dos anos 1930 ganharão
continuidade na estrutura do curso, em especial aquelas que tratam dos estudos indígenas,
assunto de grande interesse dos seus membros.
536 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 536-548 maio-agosto 2019
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)
Além disso, Srs. consócios, cumpre-me fazer-vos cientes de uma coincidência de alta relevância
para este Instituto, no concernente à criação da cadeira de Etnografia Brasileira. Ao iniciar-se
a vida desta instituição, o seu primeiro presidente lançava um apelo aos sócios para que
se dedicassem ao estudo do tupi-guarani; e, quarenta e quatro anos mais tarde, revivendo
essa mesma ideia, porém querendo dar-lhe feição mais prática, empenhou-se o nosso atual
presidente perpétuo, Sr. Dr. Torres de Oliveira, junto ao então interventor deste Estado, o Sr.
Armando de Sales Oliveira, para que, entre as matérias professadas na Faculdade de Filosofia,
figurasse a língua tupi-guarani. A vitória que tão honrosamente coube a um destacado sócio
deste cenáculo, no concurso que acaba de realizar-se, é motivo de júbilo para este Instituto,
que tanto trabalhou para que o cultivo da língua tupi-guarani se tornasse uma realidade.
(RIHGSP, 1939: 186-187. Grifo nosso)7
Desde sua posse, em 1928, Ayrosa parece ter uma presença bastante querida no IHGSP.
Em fevereiro daquele ano, seu nome é aprovado para integrar o quadro de sócios do instituto.
Em agosto, toma posse. Naquele momento, o presidente do instituto, José Torres de Oliveira,
revela que Ayrosa não era um estranho:
O Sr. presidente, dando posse ao membro recipiendário do sodalício, diz não ser. S. S. um des-
conhecido nesta casa de trabalho que é o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, onde
houve sempre quem o acompanhasse com carinho no seu curso brilhante de Engenharia na
Escola do Rio de Janeiro, colimado na obtenção do prêmio de viagem à Europa, e também na
sua vida jornalística. (RIHGSP, 1938: 309).
Ayrosa teria vida bastante ativa no instituto. Entre suas atividades estavam a partici-
pação nas comissões de trabalho – dividiu-se entre a comissão de redação da revista e a
de etnografia – e na organização dos festejos comemorativos para o Quarto Centenário da
Fundação de São Vicente, com Taunay e Alberto Penteado; a organização da biblioteca do
Instituto em 1929; a indicação para primeiro secretário – e diretor da biblioteca e mapoteca
do Instituto – em 1932; e, em 1933, a leitura de vários estudos ao final das sessões sobre
termos de origem tupi no vocabulário brasileiro. Em suas próprias palavras, ficamos sabendo
que Ayrosa era um “burro de carga.” Ele assim relata seu envolvimento, em especial em 1932,
nas atividades do Instituto:8
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 537-548, maio-agosto 2019 537
Aryana Costa
Imagine V. que andei trepado em escadas vertiginosas pregando bandeiras e retratos pelas
paredes do nosso salão nobre depois de ter escrito mil e uma notícias para os jornais fazendo a
“propaganda” dos “pândegos”. Durante o dia todo numa luta com convites, com arrumações
de salas, com telefonadas. [...] Logo após, secretariando a sessão com ares soberbos de histo-
riador, quando não tinha de me postar junto à máquina de projeção para pôr na tela os docu-
mentos dos conferencistas. Cada vez mais me convenço de que sou positivamente um “bicho”,
um sabe-tudo, um esplêndido “burro de carga”. Na hora do aperto ninguém sabe fazer nada.
O Ayrosa convida, o Ayrosa escreve notícias, o Ayrosa substitui fusíveis queimados, o Ayrosa
recebe as personalidades mais ou menos “atenentadas”, o Ayrosa fala, o Ayrosa projeta diapo-
sitivos e, por fim, o Ayrosa fecha o Instituto lá pelas 24 horas... Enfim, cada um desembaraça a
meada do destino como pode (Guimarães, 1982: 8. Grifo nosso)
O sr. presidente declara que está confirmada a notícia, em tempo levada ao conhecimento do
Instituto, da provisão do consócio dr. Plinio Airosa na cadeira de tupi-guarani da Universidade
de S. Paulo. Adiantou o dr. José Torres de Oliveira que o ato do governo paulista foi recebido
com gerais aplausos e que ele, pensando interpretar o sentimento dos confrades do Instituto,
havia endereçado ao sr. dr. Marcio Pereira Munhoz, interventor federal interino, um telegrama
nos seguintes termos: “O Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, cheio de júbilo pela pro-
vimento do seu digno primeiro secretário, dr. Plinio Airosa, na cadeira de tupi-guarani, criada
pela clarividência do dr. Armando de Sales Oliveira na Universidade de S. Paulo, apresenta a v.
exa. calorosas felicitações por esse ato acertado, com que são tão justamente aquilatados a
atividade patriótica, o talento e a cultura geral e especializada do ilustre paulista, nosso pre-
zado consócio. Deus guarde a v. exa.” [...] Falou, ainda, o sócio efetivo dr. Plinio Airosa, para
agradecer ao Instituto o interesse tomado pela criação da referida cadeira e também a maneira
como havia recebido a notícia da sua nomeação para regê-la. Declarou que a sua maior alegria
não provinha tanto do fato de ser escolhido para professor de uma matéria, que constituíra a
preocupação de tantos espíritos de escol em nossa terra mas principalmente, da sua criação
pelo governo, satisfazendo assim uma velha aspiração do grande Visconde de Porto Seguro,
Francisco Adolfo de Varnhagen. (1940: 248. Grifo nosso)
538 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 538-548 maio-agosto 2019
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)
mais do que esperada. Ayrosa era, então, o nome dos estudos em tupi-guarani da instituição,
conhecido de Armando Sales de Oliveira, e sobretudo no ano precedente ao da criação da USP
figura recorrente nas atas das sessões. A definição para essa cadeira é anterior à de Taunay,
sócio mais antigo e que veio a ocupar a cadeira de história da civilização brasileira.
Na correspondência trocada com seu amigo Archimedes, vê-se a confirmação do signifi-
cado político que teve a campanha pela instituição dos estudos da língua tupi:
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 539-548, maio-agosto 2019 539
Aryana Costa
tado da campanha – “satisfeitíssimo não propriamente por ter sido eu o escolhido, mas por
ter sido alguém, o que significa a vitória da campanha” – e se permite deliciar-se na glória de
ser o “primeiro professor de língua tupi do mundo”.
A criação dessa cadeira na universidade é indicativo de quanto, desde o discurso inau-
gural de seu primeiro presidente, o instituto “estava certo” em insistir na salvaguarda dos
estudos em língua tupi. Sua ocupação é feita por um indivíduo a quem o IHGSP vinha acom-
panhando mesmo antes de entrar como sócio – “não ser S. S. um desconhecido nesta casa de
trabalho que é o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo” – e que, uma vez lá dentro,
desempenhou mais de uma função, ou seja, a quem o instituto poderia dizer, de fato, que era
um de seus filhos.
Essa era uma via de mão dupla. Tanto o instituto podia reivindicar Ayrosa quanto este
reivindicava o instituto. Seu currículo publicado no Anuário da FFCL de 1934-1935 mostra
que seu vínculo de maior expressividade são as academias a que pertence. Entre elas, o maior
cargo é o de secretário-geral ocupado no IHGSP:
Bacharel em letras pelo antigo Ginásio Ciências e Letras e graduado em engenharia pela Escola
Politécnica do Rio de Janeiro.
Obteve o primeiro prêmio de literatura, instituído pelo Jornal do Brasil em 1917 e direito ao
prêmio de viagem à Europa para aperfeiçoamento de estudos. Encarregado de um Curso de
Tupi no Centro do Professorado Paulista. Secretário Geral do Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo e membro dos Institutos Históricos do Rio Grande do Norte, Baía e Santa Catarina.
Membro titular da Société des Americanistes de Paris, da Société de Linguistique de Paris e da
Academia Paulista de Letras. (Anuário 1934-1935: 329)
Quando entra para o quadro de professores da recém-criada FFCL, Ayrosa carrega con-
sigo, como marca maior, sua identidade como pesquisador da língua tupi chancelada pelo
seu pertencimento ao Instituto Histórico e Geográfico. É essa lógica de produção que se verá
presente nas suas proposições para a cadeira.
Aqui talvez valha a pena retomar ainda a questão das redes de sociabilidades. Como
já visto, Theodoro Sampaio foi o elemento de ligação entre São Paulo, Itália e França para
a montagem do quadro docente da universidade. Quando morre, em 1937, o IHGSP decide
promover homenagens ao seu sócio fundador, escolhendo como um de seus oradores jus-
tamente Plinio Ayrosa. O texto depois publicado rende reflexões de duas ordens – uma que
reforça o argumento sobre as relações pessoais como regime de legitimação para produção
historiográfica do período, e a criação da USP como sua extensão, e outra que dá a ver a ideia
de historiador que Ayrosa tinha.
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Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)
A fama de Sampaio vem de seus trabalhos como engenheiro, mas também de seu inte-
resse pelos estudos em história, geografia e em língua tupi-guarani. O nível da proximidade
entre os dois (Sampaio e Ayrosa), porém, é o que aqui nos interessa. A figura que definiu
os professores estrangeiros que viriam para São Paulo foi de uma grande proximidade com
Ayrosa, que chama Sampaio de grande amigo (RIHGSP, 1937, p. 273) e de saudoso mestre
(Idem: 276). Perto da morte de Sampaio, Ayrosa o levou para passear em São Paulo, e um dos
lugares a que o acompanhou foi a FFCL. “Levei-o à Faculdade de Filosofia e tentei levá-lo à
presença do Dr. Armando Sales de Oliveira, a quem, pouco antes, elogiara entusiasticamente
pela criação da cadeira de tupi-guarani em nossa Universidade” (Idem: 277).
Sendo seu mestre, Theodoro serve como pretexto para Plinio Ayrosa definir as
qualidades de um bom historiador. Em verdade, Ayrosa define a atividade de fazer trabalhos
históricos, pois, assim como ele mesmo, Theodoro, Taunay e Ellis Junior, nenhum deles é de-
finido naqueles tempos somente como historiador. Suas formações são das mais díspares
(engenharia e direito), e a definição que mais circula entre eles é a de “estudiosos”. De modo
que a competência de Theodoro é estabelecida por sua diligência, humildade e, especialmente,
afinco nos estudos:
Sua vitória inconteste, a sua vitória positiva no campo das pesquisas históricas e no penum-
broso ambiente vasto da linguística ameríndia, ele a atingiu graças ao próprio esforço, graças
à sua tenacidade e, sobretudo, graças ao equilíbrio mental que soubera estabelecer desde os
seus verdes anos de juventude.
Ao contrário de muitos historiadores contemporâneos, nunca se aventurou a conclusões históri-
cas sugeridas por documentos e estudos fragmentados, como nunca julgou os vultos históricos
à luz exclusiva de seu critério pessoal. (Idem, p. 274)
Ayrosa leva para a faculdade essa pressuposição do que deveria ser o fazer historiográ-
fico, que vinha de seu convívio com pessoas que tinham a mesma bagagem. O texto para o
Anuário da FFCL do “primeiro professor de língua tupi no mundo” falando sobre a orientação
geral do curso se preocupa principalmente com as condições de pesquisa. A tarefa que arroga
para a cadeira é, primeiro, a de organizar material de pesquisa para os estudos em etnografia
e tupi-guarani no país. Como não havia, naquele momento, obra que conseguisse dar conta
do estado da arte etnográfica no país, devia a cadeira “ocupar-se principalmente na coleta
imediata do vastíssimo material de que se há de servir, tentando fixar, na caótica literatura
especializada, as linhas diretoras de sua conduta” (1934-35: 142).
Ayrosa queria construir um “edifício etnográfico nacional” (Idem: 143), pois até então só en-
contrara obras que se confinavam a “minúsculas áreas étnicas” que “esquadrinham minúcias não
raro ridículas de um dado grupo social que o acaso pôs ao alcance de suas vistas” (Idem: 141).
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 541-548, maio-agosto 2019 541
Aryana Costa
Assim é que os primeiros passos da cadeira, sua função na FFCL, seriam necessariamente os de
reunir o quanto se encontre esparso pelas vastas bibliotecas nacionais e estrangeiras, capaz
de servir ao seu ideal construtivo [...]. Logo após, ou concomitantemente se for possível, com
a mesma largueza e tolerância, arrecadar e canalizar, para os museus brasileiros, as sobras
documentais etnográficas [...] que ainda não hajam deixado se esgueirar para o estrangeiro.
(Idem: 143)
Art. 1.0 – O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (...) tem por finalidade promover o
estudo, seu aperfeiçoamento, e a divulgação da história e da geografia precipuamente de São
Paulo.
§ único - Para consecução de sua finalidade, o Instituto:
a) realizará sessões ou assembleias gerais, ordinárias e extraordinárias, para os sócios; especiais
para a diretoria e uma sessão magna anual;
b) manterá uma biblioteca e mapoteca;
C) manterá um arquivo e museu;
d) manterá correspondência e permuta de publicações com as sociedades congêneres, nacio-
nais e estrangeiras;
e) manterá a publicação de uma revista;
f) promoverá excursões e festas cívicas. (RIHGSP, 1933-1934: 467. Grifos nossos)
542 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 542-548 maio-agosto 2019
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 543-548, maio-agosto 2019 543
Aryana Costa
Por terem se formado no quadro das “letras históricas”, no entanto, o tipo de pesquisa
que produziam não encontrou validade dentro das novas regras geradas pelo campo acadê-
mico. Essa clivagem não passava despercebida nem pelos professores nacionais. Embora para
a posteridade tenha sobrevivido a imagem de que resistiam aos professores estrangeiros, o
próprio Ayrosa reconhece sua importância e, sobretudo, a diferença entre eles. Em depoimento
para O Estado de São Paulo, ele discorre sobre o ensino de história e geografia na Faculdade
de Filosofia logo em 1935:
Não foi por vaidade tola ou por luxo que a Faculdade contratou, na Europa, professores dos
mais afamados: não foi para desdenhar dos professores que aqui vivem que chamou outros do
estrangeiro. Em S. Paulo não havia ainda um centro de irradiação cultural organizado, nem um
centro de formação intelectual sistematizado. Os professores estrangeiros vieram exatamente
para nos ajudar a formar esse centro. Trazem-nos os mais avançados métodos de ensino e re-
fletem, aqui, as mais altas conquistas das ciências e das letras europeias. Ora, só quem vive no
ambiente culto e severo das universidades europeias pode transmitir os segredos, os detalhes,
os pequeninos nadas que arcabouçam o prestigio e a eficiência das velhas universidades. Eles
não vieram apenas dar aulas: vieram organizar programas, montar laboratórios, sugerir normas
de ensino, corrigir falhas que nos passavam despercebidas, criar ambiente propício a novos es-
tudos, transmitir-nos, enfim, um pouco de alma universitária. A Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras abre as suas portas a todos os que queiram receber uma cultura sadia e moderna, livre
e desinteressada, e que, com razão, lamentavam a falta, em S. Paulo, de um grande centro de
estudos e pesquisas.
O governo paulista deu-nos o que pedíamos. (13/02/1935: 5. Grifos nossos)
É interessante perceber a divisão nas tarefas. A diferença entre as duas gerações era
a alma universitária que os estrangeiros tinham e que ainda precisávamos criar. Havia dois
regimes de produção coabitando um mesmo espaço. “Sobreviveu” aquele que deu forma
à organização universitária. Essa institucionalização produziu uma terceira geração,13 cuja
identidade nascia dependente desse arranjo que instituía um novo tempo do trabalho (seriado
em anos) e novas formas (coletivas) de produção. Os alunos do curso, por sua vez, passaram
a formar um grupo inédito, com sua própria memória compartilhada sobre o que deveria ser
a produção de história e a formação de historiadores, cujo fator de agregação viria a ser a
ligação com os professores estrangeiros.
Conclusão
544 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 544-548 maio-agosto 2019
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)
disso, todos os nomes dos intelectuais brasileiros que constam das primeiras articulações para
a fundação da universidade constam também na lista de sócios do IHGSP: George Dumas, Ar-
mando Sales de Oliveira, Júlio de Mesquita Filho, Theodoro Sampaio. No entanto, ao instituto
é dada pouca importância nesse início de história, ainda que com três de seus sócios como
professores de história.
Melhor talvez seria dizer que não é que o IHGSP esteve “presente” na fundação desse
curso, e sim que o curso de história e geografia foi uma espécie de atividade paralela desses
homens que se propuseram a organizar uma universidade em São Paulo. Falar em “presen-
ça” do IHGSP nas origens do curso dá a entender que este já nasceu como algo definido,
independente e com identidade própria, quando o que se propõe aqui é salientar o caráter de
transição dessa fase na produção historiográfica em São Paulo.
A criação do curso de geografia e história na USP não significou de imediato uma
diminuição no reconhecimento profissional e do papel que o instituto exercia na escrita da
história de São Paulo e, portanto, “da história nacional”. O apelo de seu presidente junto ao
interventor para a criação de cadeiras no novo curso não foi a única ação empreendida junto às
autoridades. Ao contrário. Nos anos imediatamente posteriores à criação do curso, em vez
de um declínio nas atividades do instituto, percebe-se a continuidade das suas boas relações
com a esfera política – houve iniciativas de transferência para uma sede própria construída
pela prefeitura de São Paulo em 1936 (RIHGSP, 1937, v. 32) e um convênio com o governo do
estado para restauração, tradução, catalogação, encadernação e publicação de toda a docu-
mentação presente na Repartição de Estatística e no Arquivo do Estado, por meio do projeto
de lei 2.800, de 28 de dezembro de 1936.
Recebendo as devidas subvenções do estado, até a publicação do volume 32 de sua re-
vista, em 1937, o instituto publicaria seis volumes de documentação: cinco dos “documentos
interessantes para a história e costumes de São Paulo” e mais um de ordens régias, o que lhe
rendeu notícias elogiosas na imprensa (RIHGSP, 1937, v. 32).
O silenciamento do IHGSP nessa história acontece por uma abordagem anacrônica, que
procura enxergar naqueles primórdios aquilo que já estamos acostumados a definir como
“universidade”, “acadêmico”, “profissional” – que é a parte daqueles que “venceram”,
dos que se estabeleceram, em detrimento do que à época era tido como parâmetro para
reconhecimento, a exemplo desses homens que circulavam nesses meios (IHGSP, Academia
Paulista de Letras, Museu Paulista, IHGB etc.) e que também estiveram lá no início de tudo.
Como algo novo, a ser desenhado no seu devir, as atividades de historiador nas décadas
de 1930, 1940 e até meados de 1950 ainda se encontravam no interstício entre um regime
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 545-548, maio-agosto 2019 545
Aryana Costa
“antigo” e um “novo”, que caminhava para definir suas regras de funcionamento, reconheci-
mento, legitimidade e autonomia. Saindo das práticas “amadoras”, via de regra individuais e
ditadas pelo ritmo do próprio indivíduo que estava produzindo, agora era preciso compartilhar
as formas e os fazeres desse saber com terceiros, não mais pelo meio físico que eram os livros,
mas sob novos arranjos: uma grade horária, um espaço físico, uma continuidade no tempo.
O surgimento da USP e o campo de produção de história são aqui considerados tendo
em vista essas condições. Não só as práticas do fazer história se encontravam em processo de
adequação às novíssimas “restrições” de tempo, espaço e sociabilização que a instituição da
universidade produziu, mas a identidade de historiador profissional estavam em busca de um
formato. Sendo um período de transformações para várias das atividades do campo intelectual,
o curso de história e geografia que nasce em 1934 não foge desse quadro. Os modos de ser
historiador e fazer história dos institutos históricos se encontram plenamente no seu nascimento.
Notas
1 Antonio Celso Ferreira ressalta a falta de estudos sobre a “historiografia produzida em São Paulo, princi-
palmente a do IHGSP e a das primeiras décadas dos estudos uspianos, quando passaram por esta instituição
figuras como Afonso de Taunay e Alfredo Ellis Jr., vindos da primeira agremiação” (2002: 174, nota de rodapé
2). Desde 2002, é possível verificar um incremento no número de obras. Vide, por exemplo, Um metódico à
brasileira, de Anhezini (2011); Teorias raciais e interpretação histórica: o Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo (1894-1940), de Mahl (2001); Os documentos interessantes para a história e costumes de São Pau-
lo: subsídios para a construção de representações, de Mendes (2011); e Subsídios para a história da educação
no Brasil: um estudo da eevista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, de Pereira (2013).
2 Os dados biográficos de Afonso Taunay foram retirados de Karina Anhezini (2011).
3 Os dados biográficos de Ellis Junior foram retirados do artigo de John Monteiro (1994). Conferir também o
Capítulo 4 de Roiz (2012).
4 Os dados biográficos de Ayrosa foram retirados de Drumond (1961 e 1964).
5 Ferreira (2002) discute o projeto de história local/história nacional do IHGSP, analisando as práticas e os
temas a que se dedicaram seus associados.
6 Desde 1908, Dumas havia sido indicado pelo Groupement des Universités et Grandes Écoles de France pour
les relations avec l’Amérique Latine para a divulgação das obras dessa organização (Petitjean, 1996: 260). “A
grande figura nesse processo de recrutamento foi o já mencionado Georges Dumas. Profundo conhecedor da
realidade brasileira e amigo de membros da elite do país, Dumas tinha excelente trânsito entre as autoridades
diplomáticas francesas e, ao mesmo tempo, uma inserção importante no campo intelectual e acadêmico
francês. O fato de ser normalien e professor da Sorbonne lhe franqueava o acesso a uma rede de nomes
respeitados, espalhados por diferentes instituições francesas” (Ferreira, 2005: 231).7 A criação da cadeira
de etnografia e tupi-guarani não é o único movimento do IHGSP em relação às questões indígenas nesse
período. No relatório de 1933, a diretoria comunica que conseguiu, com sucesso, a inclusão de sua proposta
546 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 546-548 maio-agosto 2019
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)
“para que figurasse na nova Constituição Brasileira direitos civis e políticos em benefícios dos nossos índios”
(RIHGSP, 1933-1934: 418).
8 O trecho é retirado da coletânea de correspondências trocadas entre Ayrosa e Archimedes Pereira Guimarães.
9 Não à toa, segundo Ferreira (2005), uma das grandes controvérsias dentro do instituto se deu em torno da
filiação linguística da tribo guaianá (p. 141-149). Após a confirmação de que era dos tupis, e não dos tapuias,
que os guaianás descendiam – reafirmando, pois, a dignidade dessa descendência –, “estava desobstruído,
portanto, o caminho para o resgate das várias contribuições dos indígenas tupi, de um modo geral, à civili-
zação paulista” (p. 143). Tanto Ferreira (2002: 143) quanto Schwarcz (1993: 130) destacam a presença rele-
vante de estudos etnogeolinguísticos e antropológicos, respectivamente, na produção do IHGSP. Essa preocu-
pação se estendeu à primeira proposta de formação acadêmica de historiadores e geógrafos em São Paulo.
10 Que toma posse como consócio em agosto de 1936. As conexões entre as pessoas ligadas à criação do
curso estão se dando por volta desse momento. Além de Armando Sales, lembremos que Júlio de Mesquita
Filho, outro cabeça no projeto da USP, havia sido eleito para o quadro do IHGSP quatro meses antes da criação
da universidade.
11 A função de formar professores só vai ser assumida, por um motivo bastante prático, diante da necessida-
de urgente de aumentar as matrículas na faculdade em 1935, pois 80% dos alunos de 1934 não se rematri-
cularam, e somente 123 se inscreveram para o novo ano letivo. Somando o total de alunos inscritos, a FFCL
se encontrava com 12 alunos a menos do que no primeiro semestre. Para sanar essa ausência de interessados
na faculdade, que estava apenas em seu segundo semestre de funcionamento, Fernando de Azevedo recorreu
ao comissionamento de professores primários e secundários, que, após aprovação no exame vestibular, seriam
dispensados de suas funções didáticas para fazer o curso na FFCL (Limongi, 1988: 190).
12 “Entendida enquanto testemunho de como um conjunto de homens experimentou um certo ‘tempo’.
Falar de geração nessa perspectiva é falar de relações entre “pessoas” de um mesmo grupo (que podem ou
não ter a mesma classe de idade) e é falar também de relações entre gerações, pois há uma nítida dinâmica
contrastiva nesse processo” (Gomes, 1996: 41).
13 “A noção de geração deve, portanto, transcender a manifestações ‘externas’, resultando de um trabalho
de memória comum de grupo, que identifica sua vivência e a transmite aos seus sucessores que não a com-
partilharam” (Gomes, 1996: 41). Nesse caso, a “geração” de Taunay e Ayrosa não “consegue” transmitir sua
vivência aos seus sucessores, pois a lógica a que pertenciam – e que também estavam eles mesmo criando,
especialmente depois da década de 1940 – já era a de outra instituição.
fontes
Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – 1934/1935. São Paulo: FFLCH/USP, 2009.
GUIMARÃES, Archimedes. Cartas de um Professor de Tupi. Plinio Marques da Silva Ayrosa. Belo Horizonte,
1982.
O Ensino de História, Geographia e Ethnographia na Universidade de S. Paulo. O Estado de São Paulo.
13/02/1935. p. 5.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. São Paulo: Gráfica Paulista, v. 30. 1931-1932.
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 547-548, maio-agosto 2019 547
Aryana Costa
Referências bibliográficas
548 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 548-548 maio-agosto 2019
Artigo
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200011
I
Universidade Federal da Bahia (Ufba), Salvador (BA) Brasil.
*
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências, Universidade Federal da Bahia (Ufba),
Salvador, Bahia / Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), Feira de Santana, Bahia. (v.limeiradasilva@gmail.com).
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-0728-394X
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 549-563, maio-agosto 2019 549
Victor Rafael Limeira da Silva
Resumo
Este ensaio analisa uma bibliografia historiográfica particular com o objetivo de abordar a divergência entre história
e história da ciência. Defendo que a ausência da história das ciências humanas na historiografia da ciência expande a
distância entre a história da ciência e outras disciplinas dos estudos históricos. Para ponderar essa hipótese, analisarei
a historiografia sobre a viagem científica de Alfred Russel Wallace na Amazônia (1848-1852), argumentando que a
omissão da dimensão etnográfica dessa expedição expõe aspectos importantes para compreender a natureza da tal
dissensão e seus efeitos na construção da história das ciências humanas.
Palavras-chave: Historiografia; História da ciência; História das ciências humanas; Wallace; Amazônia;
Etnografia.
Abstract
This essay analyses a particular historiographical bibliography with the aim of addressing the divergence between
history and history of science. I argue that the absence of the history of the human sciences in the historiography of
science expands the distance between the history of science and other disciplines of historical studies. To ponder this
hypothesis, I will analyse the historiography of Alfred Russel Wallace’s scientific voyage in the Amazon (1848-1852),
arguing that the omission of the ethnographic dimension of this expedition exposes important aspects to understand
the nature of such dissension and its effects on the construction of the history of the human sciences.
Keywords: Historiography; History of science; History of the human sciences; Wallace; Amazon; Ethnography.
Resumen
Este ensayo analiza una bibliografía historiográfica particular con el objetivo de abordar la divergencia entre historia e
historia de la ciencia. Sostengo que la ausencia de la historia de las ciencias humanas en la historiografía de la ciencia
amplía la distancia entre la historia de la ciencia y otras disciplinas de los estudios históricos. Para reflexionar sobre
esta hipótesis, analizaré la historiografía del viaje científico de Alfred Russel Wallace en la Amazonia (1848-1852),
argumentando que la omisión de la dimensión etnográfica de esta expedición expone aspectos importantes para
comprender la naturaleza de tal disensión y sus efectos en la construcción de la historia de las ciencias humanas.
Palabras clave: Historiografía; Historia de la ciencia; Historia de las ciencias humanas humanidades; Wallace;
Amazonia; Etnografía.
550 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 550-563 maio-agosto 2019
History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences
Introduction
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Victor Rafael Limeira da Silva
from current academic human sciences, and whose epistemological grounds and sets of practices
cannot be understood as based in the a priori of the “two cultures” thesis (Snow, 1959).
I will argue that the undervaluation of the ensuing ethnography from Wallace’s
expedition results from two other aspects, which are rooted in the historiography of science
and demonstrable in the Wallaceanna.1 The first regards the limitation of History of science to
the “natural sciences”, expressing an ahistorical view of the “human sciences” as a category
that puts historians and historians of science in paradoxical situations. The second concerns
the double displacement that the history of the human sciences requires: it depends on the
harmonisation between “diachrony” and “synchrony” and claims a radical historicisation of
the very object, man, which humanities have usually taken for granted.
This essay is arranged in a section of historiographical analysis and a section of general
statements. The works to be analysed are classified in sets: A) Works that deal directly with Wallace’s
Amazonian journey; B) Works that deal indirectly with Wallace’s Amazonian journey and; C) Works
on Wallace’s anthropological views that deal directly/indirectly with Amazonian ethnography. Sets
C and B initiate the discussion in order to show that the fragmented image of the voyage usually
presented derives from similar absences in the more specialised literature of Set A.
S mith (1972), Kottler (1974), Degler (1991), Browne (1992), Camerini (1993), Seaward
and Fitzgerald (1996), Fichman (2001), Knapp et al. (2002), Horta (2003), Smith (2004),
Vetter (2006), Caso and Gutiérrez (2007), Moreira (2009), Ellen (2011), Kuklick (2011), Bick-
erton (2014) and Ferguson (2015) are part of Set C, which includes works that omit most or
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History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences
all of the above-mentioned terms and/or do not articulate them mutually. For this reason, they
have no utility for historiographical analysis, but illustrate how the absence in Set A of inquir-
ies into Wallace’s ethnographic data may reflect on the appropriation of the historical image
of this scientific journey in other works that may seek to deal with it. Brotman (2001), Lyons
(2009), Benton (2010), Lowrey (2010) and Flannery (2018) also compose Set C, but amidst
the tending absence referred to allow to make brief notes.
Brotman (2001) has one of the few works dedicated to Wallace’s connection with Victorian
Anthropology, which has as material the naturalist’s collected data and speculations regarding
the human perceptions of sound. Lyons (2009), in turn, composes the narrow group of works
about Wallace’s evolutionary science in its relationship with Anthropology and Spiritualism,
but just anticipating some questions responded more densely by Sera-Shriar (2018).
Benton (2010) brings Wallace’s experiences with Amazonian and Malaysian2 natives to
the core of the debate with Darwin on human evolution and sexual selection. As for the
Amazonians, he focuses only on Wallace’s own impression of the people in a “state of
nature”. While Lowrey (2010) proposes a reading specifically on Wallace’s legacy to British
Anthropology, but the naturalist’s interaction with Amazonian natives, unfortunately, consists
of only a paragraph.
More recently, Flannery (2018), in one of his chapters, resumes the discussion about the
recurrent disagreements between Wallace and Darwin concerning humankind in evolution.
The allusions to the naturalist’s field experience are limited to the journey in Malaysia and
without connection between ethnographic productions and Ethnology, or Anthropology as
scientific fields.
G eorge (1964), Raby (2001), Fichman (2004) and Beccaloni and Smith (2008) compose
Set B of the analysed historiography.
George (1964) elaborates explanatory schemes of the naturalist’s main ideas and draws
general pictures of the reception to his thought in the 20th century. The expeditions to Brazil
and Malaysia are treated as a single block and although emphasising Wallace’s studies about
native languages, she restricts it to the material collected in the Asian islands from 1854.
Raby (2001) combined a good recovery of the naturalist’s personal records with his
letters, main texts and cross-sources from other scientists. The title he gave to Chapter Three,
Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 553-563, maio-agosto 2019 553
Victor Rafael Limeira da Silva
“Apprenticeship on the Amazon”, indicates exactly the interpretive model of the “failure” of
Wallace’s Amazonian voyage. It would not be a question of taking the term “apprenticeship”
literally or not to consider that in fact, this journey was quite amateurish if compared to the
expedition in Asia, but it would be important to point out how the repetition of this thesis
reached the 2000s practically intact.
Fichman (2004) unleashed a series of articles that analyse specific dimensions of
Wallace’s thought, among them are his contacts with Natural Theology, Spiritualism and social
reformist ideas. As for Wallace’s passage in Brazil, the historian maintains a similar position
to the previous ones, briefly exploring Wallace’s contact with the natives, although no longer
defending the thesis of the “failure” of this expedition.
The collection organized by Beccaloni and Smith (2008), having as subtitle “The
Intellectual Legacy of Alfred Russel Wallace”, undervalues his legacy to sciences such as
Ethnology and Anthropology. Even in the texts in which Wallace’s social and political thought
are topically addressed, the connection of his ideas with these specific fields of 19th century
science is left to the reader’s own interpretation, limited by descriptions of the naturalist’s
achievements within the natural sciences. The only exception seems to be Ted Benton’s chapter
that describes Wallace’s contacts with native groups, however, not proposing or indicating his
contributions for the development of the British anthropological tradition.
B eddall (1969), Ferreira (1990), Knaap (1999), Camerini (2001), Moreira (2002), Egerton
(2012), Lima (2014), Van Wyhe (2014), Vetter (2010, 2015) and Hemming (2015) repre-
sent Set A of the selected historiography.
Beddall (1969) was one of the first to abandon monumental interpretations of the history
of the evolutionary triad Darwin-Bates-Wallace. However, what she set out to do about the
history of the Wallace-Bates’ Amazonian expedition was basically to underreport its scientific
results in relation to those from Wallace’s Asian journey.
Ferreira (1990) does not extrapolate the “nucleus” of scientific discussion of the early
Darwinian-Wallacean collaborations: varieties, mimetism, geographical distribution and
migration. Thus, Wallace and Bates’ observations and speculations concerning native groups
from the Amazon basin are reduced to a superficial description of local characters highlighted
in their narratives (Wallace, 1853; Bates, 1873), not seeming to imply for the theoretical
project that Wallace began to delineate in the middle of the Amazon rainforest.
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History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences
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Victor Rafael Limeira da Silva
from the collecting along with the native populations, and as an intrinsic part of knowledge
production in the 19th century Natural History.
In the works of Set C about which there were more themes to discuss besides absences,
the analysis demonstrates how flagrant is the issue I seek to review. All of these are works
that somehow direct their interests towards Wallace’s conceptions and legacy to areas of
knowledge closely related to the Anthropology and Ethnology from the 19th century, what
further confirms the sharpness of the absence.
The undervaluation of the scientific inquiries into man states that the problem is not
only broad and complex, but also recurrent. I take this problem, in part, as a longer reflection
of misunderstandings about the history of scientific fields emerged from the late 18th century
“epistemological shift”, from which 19th century “sciences of man”, such as Philology,
Sociology, Psychology, History and Anthropology originated (Foucault, 1970).
The main of these misreadings is the relevance given to the argument of the “intrinsic
reflexivity” of the human sciences as a criterion of demarcation with the natural sciences
(Mazlish, 1998). This demarcation view leads to disregard that the “self-knowledge” that
results from human sciences is what changes the subject, and not the “knowledge” itself
that changes people and not nature (Smith, 2005). The opacity of fields such as 19th century
Anthropology and Ethnology is a direct product of this demarcation argument, which imposes
natural sciences as an interpretive model for the history of scientific fields mistakenly assumed
to have proper forms of understanding only from the 20th century as academic disciplines.
Conclusive thoughts
I t is well known to historians of science that the hybrid condition of their discipline places
them in difficult positions within the knowledge community. In the case of the history of
the human sciences, this ground is even more contested because besides lacking a dominant
narrative pattern, this field is located at the intersection of three others: History of science,
Intellectual history, and History of ideas (Smith, 1997a: 23).
Many possible causes for the distance between historians tout court and the History of
science have been raised and debated: the omission of historical literature about science in
historians’ academic formation; the restriction of historians’ interest to scientific programmatic
texts; the view of the histories of science and technology as a single process; the disputes as
to whether the “nucleus” of science could be historically or sociologically comprehended; and
an increasingly restricted pattern of expertise within knowledge fields (Gavroglu, 2007: 60-63;
Kuhn, 1977: 132-151; Shapin, 1992).
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History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences
According to Thomas Kuhn (1977: 158-161), all the causes could be confronted and
even overcome with the progressive diversification and expansion of the History of science,
although the central root of the problem would be hardly cut off. For him, the consolidation
of the “two cultures” discourse is the fundamental basis of the major quarrel between the
History of science and the Historical Studies.
With the changes that led to the construction of the scientific History in the 1930s under
the Annales’ model, historians began a quest to keep pace with the academic and social
development of the natural sciences. In his reflections concerning the “humanisation of the
humanities”, historian François Dosse (2018) exemplifies how the process of scientificisation
of History by the founding fathers of the Annales School distanced the field from science, at
the same time that sought to take its new references from it.
Changes such as those occurring in Physics in the early 20th century were felt by historians,
mainly by the shift of perspective regarding the “referent observer”. But the direction that they
took was towards the scientific models still under the principles of classical Physics, such as
Durkheimian Sociology, thus leading to structuring and deterministic constraints in the view of
science advanced among them (Dosse, 2018: 454-455).
This is exactly what Kuhn (1977: 157) refers to when he says that historians “too have
tasted the forbidden fruit of the tree of knowledge”. Not being the “unscientific” rhetoric of
classical humanities interesting anymore, History defined itself as scientific, which would have
made its role ambiguous in seeking to historicise sciences. Since History itself is one of the
scientific disciplines, when historians are led to analyse past sciences, they feel a shift in their
métier, as if they are swerving themselves to practices concerning Epistemology.
From the causes listed above, Steven Shapin (1992) draws attention to the debate
between the views of the “nature of science” as being determined in a sociocultural way or
epistemologically isolated from the surrounding context. For him, one of the most striking
reverberations of the “two cultures” problem took place in the issue of “internalism/
externalism”, which marked the historiography of science until the late 1980s.
Being a debate that Shapin considers little seriously explored, its consequences would
benefit from the crystallisation of the notions that guide the radical distinction between
humanities and natural sciences in the academic behaviour. From the question of research
funding to the literature offered in university courses, a massive influence of the “authority”
of science could be perceived in a perspective very close to the Positivism from the early
20th century. Thus, instead of favouring integration among the fields, this influence would
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fuel hostilities resulting from a vision of science embraced by the humanities, but today little
defended by the scientists themselves.
According to Shapin (2010: 378), the major strongholds of “belief in the existence,
coherence and power of the Scientific Method” are found in departments of the human
sciences, not in those of the natural sciences. This assertion is not only corroborated by what I
pointed out from Dosse (2018) about the constitution of the scientific foundations of History in
the early 20th century, but also by other historians of science, such as Peter Dear (1995: 153),
for whom internal inconsistencies in theoretical communication within historiography result
from what he classifies as a “reestablishment” of the division internalism/externalism, this
time under the old binary pair nature/culture.
Differently from the approach that the Annales’ Scientific History maintained with
Social Sciences in its objectivist and structuring perspective (Dosse, 2018: 305), the new
historiography of science, resulting from the influence of Kuhn’s theses upon British and
French Sociology and Anthropology of Knowledge, renounced master narratives and turned
increasingly to the particular and contingent. This turn made room in the historiography of
science for the application of the “principle of symmetry” from the Bloorian Sociology of
Scientific Knowledge, and later of the “generalized symmetry” principle from Bruno Latour and
Michel Callon’s Anthropology of Science (Ibid.: 441-442).
At this point that Shapin (1982) calls “sociological reconstruction” of the historiography
of science, one finds clues to think of the possibilities of overcoming the opacity of the history
of the human sciences in the specialised historiography, as well as its implication for the wide
schism between History and History of science.
This movement would have fomented a radical historicism in the approaches to science,
leading to the consideration of all agents in the development of scientific knowledge beyond
the human (Dosse, 2018: 442). In the case of the human sciences, for which the human is both
a means and an end, this radical historicism would produce approaches to past scientific ideas
and actions through the terms of its own epoch, avoiding the application of Whiggish notions
in the study of the history of these disciplines.
The prominence of ahistorical views about the humanities, largely as a result of the
updating of Whiggish vices, has kept the double isolation of the history of the human sciences
off the list of points to be highlighted in the debate regarding the distance between History
and History of science. Taking into account that the history of sciences, such as Ethnology and
Anthropology, have not hitherto held a prominent position in theoretical and historiographical
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History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences
debates, it could emerge with less biased possibilities to reduce part of the distance between
History and History of science.
Two main aspects can be mentioned in this regard. The first is that, for historians, the
category “human sciences” is both “ahistorical” and describes a “strange” field located in a
transdisciplinary space. This notion derives from the fact that, for History, its creative process is
based on the act of finding within selected events narrative structures to explain them, whereas
historians of science must impose a narrative form to its object of study. Thus, while History
believes that the “verifiability” of its work is given by a “transparent” narrative construction
and not by analyses of ideas and concepts, History of science engages directly with theory,
since its own object is the reflexive construction of systems of sense (Smith, 1997a: 27).
The second is that the rejection of “disciplinary history” is a ground for historians’
misunderstanding about science’s historical dimensions. What they consider as amenable to
historical analysis are science’s “external” relations and not the “internal” ones that give
it its own development, quite distinct from the general context. The exception seems to be
solely the history of the arts, literature and music, with which historians have long been
engaged. Thus, agreeing with Kuhn (1977: 152-155), historians’ resistance would not be to
science itself, nor to all kinds of disciplinary history, but only to those that require certain
epistemological shifts.
The history of the human sciences exemplifies the way in which these two aspects
are manifested. It would not be suggested that this field could lead historians to an actual
approximation with History of science because its themes are more familiar than, for example,
history of Physics or Chemistry, but by being academically established it would lead historians
to overcome some barriers, which prevent them from acquiring a better understanding of the
métier of historians of science and human sciences’ own historicity.
One of the barriers results from the very constitution of the human sciences. Unlike the
natural sciences, their “object” occupies a simultaneous place of “subject-object”, being this
ambiguity, for instance, denser in the case of Anthropology; and while studying its object,
these sciences modify it by the very process of self-knowledge. Thus, the history of the human
sciences would be a narrative of the human self-creation and a reflexive investigation not
only about how the past human sciences studied “human nature”, but also about how, at
the same time of the quest to understand “human nature”, these sciences change it radically
(Smith, 1997b).
This operation would overcome the gap between “Academic History” (the voice of the
past) and “Philosophical History”, the self-reflexive voice with which we understand ourselves
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as historical beings. According to Smith (1997a: 13), such a dichotomy has generated the
division between writing history with and without theory punctuated earlier. This bipartition
would derive from one of the dimensions of the consolidation of Academic History: the
structuring of its method based on the strict notion of “diachrony”.
Rejecting “synchronic” analyses usually employed by disciplinary histories, which seek
to understand relations between ideas, concepts, and theories contemporary to each other,
History claims its share of “scientificity” conquered by notions such as “verified past” that
would guarantee “neutrality” and “objectivity”. As Kuhn (1977: 156-157) pointed out,
historians perceive their craft as similar to the sciences that History of science studies; sharing
this “scientificity” would prevent them from accepting two preconditions for reducing the
schism between the fields: that only by comprehending itself as “narrative” History could
radically historicise science and that the history of the human sciences would lead historians to
understand that this field, unlike the history of the natural sciences, is part of the very process
of knowledge production in the sciences it studies. Therefore, to understand how the human
sciences modified the “human” is to “denaturalise” the “human nature”, which humanities
and social sciences take as their object.
The theme of the historiography about Wallace’s scientific voyage in the Amazon was
taken as a pretext to illustrate and enrich the debate. As a scientist who produced knowledge
in an integrated way in almost every scientific area, the historical literature about him clearly
exemplifies how the history of the human sciences is perceived as a mere incorporation of
the object - man - into the natural sciences. Having realized that the opacity of the history of
Anthropology and other “sciences of man” from the 19th century implicates both historians
and historians of science, the possibilities of dialogue multiply, since overcoming this absence
would require a joint work of the entire historiographical community.
Notes
1 As I will call from now on the texts that explore the life and work of the British naturalist. The term is used
by the Alfred Russel Wallace Fund to designate a diverse set of objects, honours and species named after him.
2 Between 1854 and 1862, Wallace was on a second important scientific expedition, this time in the Malay
Archipelago.
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