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estudos históricos

67 História das
Ciências Humanas
e Sociais

ISSN 2178-1494 | 2019


estudos históricos

EH67 História das


Ciências Humanas
e Sociais

ISSN 2178-1494
Estudos Históricos, volume 32, número 67, maio.-ago de 2019. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas, 1988
Quadrimestral
Resumos em português, inglês e espanhol
Editada e distribuída pela Editora Fundação Getulio Vargas
ISSN: 2178-1494.
1. História 2. Historiografia 3. Periódicos 4. Ciências Sociais 5. Economia e Sociedade.
I – : Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas
CDD 981.005
CDU 981(051)

E-mail: eh@fgv.br
Endereço na internet: http://www.fgv.br/cpdoc/revista
Endereço postal: Fundação Getulio Vargas/CPDOC
Secretaria da Revista Estudos Históricos
Praia de Botafogo, 190, 14º andar, Rio de Janeiro 22.523-900 RJ
H estudos históricos 67|
Rio de Janeiro, vol. 32, n 67, p. 347-563, maio-agosto 2019
o
História das ciências humanas e sociais

Sumário

HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS hUMANAS E SOCIAIS | 347


HISTORY OF ThE HUMANITIES AND SOCIAL SCIENCES
HISTORIA DE LAS HUMANIDADES Y LAS CIENCIAS SOCIALES
Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Ynaê Lopes dos Santos

colaboração especial

CANONS AND COLONIES: ThE GLOBAL TRAJECTORY OF SOCIOLOGY | 349


CÂNONES E COLÔNIAS: A TRAJETÓRIA GLOBAL DA SOCIOLOGIA.
CÁNONES Y COLONIAS: LA TRAYECTORIA GLOBAL DE LA SOCIOLOGÍA
Raewyn Connell

ROGER BASTIDE, ANTONIO CANDIDO E A TESE INTERROMPIDA SOBRE O CURURU | 368


ROGER BASTIDE, ANTONIO CANDIDO AND ThE ThESIS INTERRUPTED ON ThE CURURU

ROGER BASTIDE, ANTONIO CANDIDO Y LA TESIS INTERRUMPIDA ACERCA DEL CARURU


William Santana Santos, Max Luiz Gimenes e Luiz Carlos Jackson

Artigos

SOCIOLOGIAS INDÍGENAS IORUBA: A ÁFRICA, O DESCONCERTO E ONTOLOGIAS NA SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA | 389


INDIGENOUS SOCIOLOGIES: AFRICA, DISCONCERTMENT AND ONTOLOGIES IN CONTEMPORARY SOCIOLOGY
SOCIOLOGÍAS INDÍGENAS YORUBAS: ÁFRICA, DESCONCIERTO Y ONTOLOGÍAS EN LA SOCIOLOGÍA CONTEMPORÁNEA
Marcelo C. Rosa

CIÊNCIAS SOCIAIS, DIPLOMACIA E COLONIALISMO TARDIO: A PARTICIPAÇÃO PORTUGUESA NA COMISSÃO DE COOPERAÇÃO


TÉCNICA NA ÁFRICA AO SUL DO SAARA (CCTA) | 409
SOCIAL SCIENCES, DIPLOMACY AND LATE COLONIALISM: ThE PORTUGUESE PARTICIPATION IN ThE COMMISSION FOR TEChNICAL CO-OPERATION IN
AFRICA SOUTh OF ThE SAhARA (CCTA)
CIENCIAS SOCIALES, DIPLOMACIA Y COLONIALISMO TARDÍO: LA PARTICIPACIÓN PORTUGUESA EN LA COMISIÓN DE COOPERACIÓN TÉCNICA EN
ÁFRICA AL SUR DEL SAhARA (CCTA)
Frederico Ágoas e Cláudia Castelo
DOIS PAÍSES, O MESMO DILEMA? REFLEXÕES SOBRE A DEMOCRACIA E O RACISMO NOS ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL | 429
TWO COUNTRIES, ThE SAME DILEMMA? REFLECTIONS ON DEMOCRACY AND RACISM IN ThE UNITED STATES AND BRAZIL
¿DOS PAÍSES, EL MISMO DILEMA? REFLEXIONES SOBRE LA DEMOCRACIA Y EL RACISMO EN ESTADOS UNIDOS Y BRASIL
Gustavo Mesquita

ENSAIO E INTERPRETAÇÃO DO BRASIL NO MODERNISMO VERDE-AMARELO (1926-1929) | 450


ESSAY AND BRAZIL’S INTERPRETATION BY VERDE-AMARELO MODERNISM (1926-1929)
ENSAYO E INTERPRETACIÓN DE BRASIL EN EL MODERNISMO VERDE-AMARELO (1926-1929)
Lorenna Ribeiro Zem El-Dine

QUANDO NOVOS CONCEITOS ENTRARAM EM CENA: hISTÓRIA INTELECTUAL DO “POPULISMO” E SUA INFLUÊNCIA NA GÊNESE
DO DEBATE BRASILEIRO SOBRE MOVIMENTOS SOCIAIS | 469
WhEN NEW CONCEPTS CAME ON ThE SCENE: ThE INTELLECTUAL hISTORY OF “POPULISM” AND ITS INFLUENCE ON ThE GENESIS OF ThE BRAZILIAN DEBATE
ON SOCIAL MOVEMENTS

CUANDO NUEVOS CONCEPTOS ENTRARON EN ESCENA: hISTORIA INTELECTUAL DEL “POPULISMO” Y SU INFLUENCIA EN LA GÉNESIS DEL DEBATE BRASILEÑO
SOBRE MOVIMIENTOS SOCIALES

José Szwako e Ramon Araujo

AMAR UM AUTOR: OS MARXISTAS NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS E OS “INTÉRPRETES DO BRASIL” | 500


TO LOVE AN AUThOR: MARXISTS IN BRAZILIAN UNIVERSITIES AND ThE “INTERPRETERS OF BRAZIL”
AMAR A UN AUTOR: LOS MARXISTAS EN LAS UNIVERSIDADES BRASILEÑAS Y LOS “INTÉRPRETES DE BRASIL”
Lidiane Soares Rodrigues

UM REGIME DE TRANSIÇÃO: O PAPEL DO IHGSP NO CURSO DE hISTÓRIA DA


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (1934) | 530
A TRANSITION REGIME: ThE ROLE OF ThE IHGSP IN ThE HISTORY COURSE OF ThE UNIVERSITY OF SÃO PAULO (1934)
UN RÉGIMEN DE TRANSICIÓN: EL PAPEL DEL IHGSP EN EL CURSO DE hISTORIA DE LA UNIVERSIDAD DE SÃO PAULO (1934)
Aryana Costa

HISTORY OF ThE “hUMAN SCIENCES” AND WALLACE’S SCIENTIFIC VOYAGE IN ThE AMAZON:
NOTES ON hISTORIOGRAPhICAL ABSENCES | 549
HISTÓRIA DAS “CIÊNCIAS hUMANAS” E A VIAGEM CIENTÍFICA DE WALLACE NA AMAZÔNIA: NOTAS SOBRE AUSÊNCIAS hISTORIOGRÁFICAS
HISTORIA DE LAS “CIENCIAS hUMANAS” Y EL VIAJE CIENTÍFICO DE WALLACE EN AMAZONIA: NOTAS SOBRE LAS AUSENCIAS hISTORIOGRÁFICAS
Victor Rafael Limeira da Silva
Editorial

História das ciências humanas e sociais


History of the Humanities and social sciences
Historia de las Humanidades y las ciencias sociales

Bernardo Borges Buarque de HollandaI*


João Marcelo Ehlert MaiaI*
Ynaê Lopes dos SantosI*

Editores

A o escolhermos o tema “História das ciências humanas e sociais” para o número 67 da


revista Estudos Históricos, sabíamos que receberíamos um volume considerável de boas
contribuições, afinal se trata de um tema interdisciplinar e que dialoga com uma quantidade
significativa de agendas de pesquisa de longa tradição na historiografia e nas ciências sociais
brasileiras. De fato, foi difícil chegar à seleção final de artigos, mas os dez textos aqui publica-
dos dão aos leitores um excelente panorama desse vasto campo.
O número é aberto com uma colaboração original da professora australiana Raewyn
Connell sobre a construção do cânone na sociologia e sua vinculação com as dinâmicas his-
tóricas do colonialismo e do eurocentrismo. Seu artigo “Canon and colonies: the global tra-
jectory of sociology” é uma excelente porta de entrada para uma discussão global do tema
proposto para este número.

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300001

I
Escola de CIências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) – Rio de Janeiro – Brasil.

*Professores da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) e Editores da Revista Estudos
Históricos (bernardo.hollanda@fgv.br; joao.maia@fgv.br; ynae.santos@fgv.br)

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 347-348, maio-agosto 2019 347
Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Ynaê Lopes dos Santos

A sociologia paulista é, por sua vez, objeto de alentada investigação original de William
Santos, Luiz Jackson e Max Gimenes, que destrincham aproximações e tensões entre escolas
e discípulos dessa conhecida tradição intelectual brasileira no texto “Roger Bastide, Antonio
Candido e a tese interrompida sobre o cururu”.
O questionamento da tradição eurocêntrica na historiografia das ciências humanas é
tema para Marcelo Rosa, no seu texto “Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea”, que reconstrói o debate iniciado por Akinsola
Akiwowo sobre as indigenous sociologies, a fim de evidenciar sua rentabilidade teórica para
a sociologia contemporânea.
A relação entre colonialismo e sociologia também surge no trabalho dos colegas por-
tugueses Frederico Ágoas e Cláudia Castelo, que refletem sobre as iniciativas portuguesas
de cooperação científica na África em “Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a
participação portuguesa na Comissão de Cooperação Técnica na África Subsaariana (CCTA)”.
A revista também selecionou textos que procuram repensar o legado de intérpretes clás-
sicos do pensamento brasileiro. Lorenna Zem El-Dine revisita a fração “verde-amarelo” do
modernismo paulista e suas conexões com o ensaísmo clássico brasileiro e latino-americano
em “Ensaio e interpretação do Brasil no modernismo verde-amarelo (1926-1927)”, enquanto
José Szwaco e Ramon Araújo lançam um olhar cuidadoso sobre a trajetória do conceito de
populismo na sociologia paulista e questionam paradigmas explicativos de inspiração bour-
dieusiana no artigo “Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do ‘popu-
lismo’ e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais”.
Por fim, Lidiane Rodrigues evidencia a força da análise sociologizante da vida intelectual
em seu estudo a respeito dos modos de apropriação dos intérpretes do Brasil por parte dos
acadêmicos marxistas, em artigo que tem por título “Amar um autor: os marxistas nas univer-
sidades brasileiras e os intérpretes do Brasil”.
A história da historiografia comparece com os dois textos que fecham o volume. Aryana
Costa questiona o apagamento da atuação universitária dos profissionais do Instituto Históri-
co e Geográfico de São Paulo no seu “Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso de
história da Universidade de São Paulo (1934)”, enquanto Victor da Silva, em “History of the
human sciences and Wallace’s scientific voyage in the Amazon: notes on historiographical ab-
sences”, reflete acerca das tensões entre história da ciência e outros campos historiográficos
por meio de uma análise dos trabalhos que se debruçaram sobre a clássica viagem de Alfred
R. Wallace pela Amazônia.
Acreditamos que este número da revista Estudos Históricos cumpra fielmente nossa voca-
ção de apresentar conhecimento inovador e interdisciplinar sobre o Brasil e o exterior, apontando
para a fertilidade de construirmos diálogos entre a história e as várias ciências sociais. Boa leitura!

348 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 348-348, maio-agosto 2019
Contribuição especial

Canons and colonies: the global


trajectory of sociology
Cânones e colônias: a trajetória global da sociologia
Cánones y colonias: la trayectoria global de la sociología

Raewyn ConnellI* 1

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200002

University of Sydney, Sydney, Australia.


I

* Professor Emerita, University of Sydney, and Life Member of the National Tertiary Education Union. She has taught in
several countries and is a widely-cited sociological researcher. Her recent books include The Good University; Gênero em
termos reais; Southern Theory; and Gender in World Perspective (with Rebecca Pearse). Her work has been translated into
nineteen languages. Raewyn has been active in the labour movement, the peace movement, and work for gender equality.
(raewyn.connell@sydney.edu.au) ORCID iD: http://orcid.org/0000-0001-8001-2375

Recebido em 10 de março de 2019 e aprovado para publicação em 17 de junho de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67 p. 349-367, maio-agosto 2019 349
Raewyn Connell

Abstract

The history of sociology as a field of knowledge, especially in the English-speaking world, has been obscured by
the discipline’s own origin myth in the form of a canon of “classical theory” concerned with European modernity.
Sociology was involved in the world of empire from the start. Making the canon more inclusive, in gender, race,
and even global terms, is not an adequate correction. Important types of social knowledge, including movement-
based and indigenous knowledges, resist canonization. The turn towards decolonial and Southern perspectives, now
happening across the social sciences, opens up new perspectives on the history of knowledge. These can be linked
with a more sophisticated view of the collective production of knowledge by the workforces that are increasingly,
though unequally, interacting. Potentials for a more effectively engaged sociology emerge.

Palavras-chave: History of Sociology; canon formation; classical theory; colonialism; Global South.

Resumo
A história da sociologia como um campo de conhecimento, especialmente no mundo de língua inglesa, foi
obscurecida pelo próprio mito de origem da disciplina na forma de um cânone da “teoria clássica” relacionada
à modernidade europeia. A sociologia está envolvida no mundo do império desde o início. Tornar o cânone mais
inclusivo, em termos de gênero, raça e mesmo globais, não é uma correção adequada. Importantes tipos de
conhecimento social, incluindo conhecimentos baseados em movimentos e indígenas, resistem à canonização. A
virada para as perspectivas decolonial e meridional, agora acontecendo por meio das ciências sociais, abre novas
possibilidades sobre a história do conhecimento, que podem estar ligadas a uma visão mais sofisticada da produção
coletiva de conhecimento pelas forças de trabalho que estão interagindo cada vez mais, embora de forma desigual.
Potenciais para uma sociologia mais engajada têm emergido.

Palavras-chave: História da Sociologia; formação de cânones; teoria clássica; colonialismo; Sul global.

Resumen
La historia de la sociología como un campo de conocimiento, especialmente en el mundo de habla inglesa, ha
sido oscurecida por el mito de origen de la disciplina en forma de un canon de “teoría clásica” relacionada con
la modernidad europea. La sociología estuvo involucrada en el mundo del imperio desde el principio. Hacer que el
canon sea más inclusivo, en términos de género, raza e incluso a nivel mundial, no es una corrección adecuada. Los
tipos importantes de conocimiento social, incluidos los conocimientos basados en el movimiento y los indígenas, se
resisten a la canonización. El giro hacia las perspectivas decolonial y meridional, que ahora está ocurriendo en las
ciencias sociales, abre nuevas puertas en la historia del conocimiento. Estas pueden vincularse con una visión más
sofisticada de la producción colectiva de conocimiento por parte de las fuerzas de trabajo que están interactuando
cada vez más, aunque de manera desigual. Surgen potenciales para una sociología más comprometida.

Palabras clave: Historia de la sociología; Formación canónica; Teoria clásica; Colonialismo; Sur global.

350 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 350-367 maio-agosto 2019
Canons and colonies: the global trajectory of sociology

Introduction: Rhodes Must Go

O n the University of Cape Town’s upper campus, the main buildings stretch in rows
across a hill face on the lower slopes of the Table Mountain complex. The mountain is
the iconic backdrop to the city first called Kaapstad, and the upper campus buildings have a
magnificent north and east view across the Cape Flats towards the rest of Africa. The site was
donated by Cecil Rhodes, the mining magnate who, in the late nineteenth century, was the
most renowned and ruthless promoter of British imperial expansion in Africa. He had become
Prime Minister of Cape Colony, where he was responsible for coercive laws intended to force
much of the indigenous population off the land, and thus create a cheap labour force for white
farmers, mining companies and other businesses. In the 1930s, the University put up a bronze
statue of Rhodes at the edge of its main plaza.
In 2015, a campaign led by a group of Black students pressed the University to remove the
statue. Quickly becoming known as the “Rhodes Must Go” movement, the students portrayed
the statue as a symbol of continuing White domination of the University, and the failure of
the social “transformation” promised after Apartheid. The argument broadened to racial
inequality in the staffing and student intake of the University, and demands for Africanization
of the curriculum, the movement locating itself in an anti-colonial Black activist tradition,
invoking Frantz Fanon and Steve Biko.
Among the complexities of the situation were the fact that the University of Cape Town
had been a centre of White opposition to the Apartheid regime; that the country had been
governed since 1994 by an African National Congress leadership that had taken the whole
economy in a neoliberal direction, with widespread unemployment among the Black working
class, but growing privilege for a Black minority; that in the neoliberal knowledge economy, the
University of Cape Town was South Africa’s leading institution in the world rankings (indeed,
Africa’s leading institution); that the University’s curriculum was mainly derived from European
and North American knowledge systems, though some of its staff have been working with
alternative knowledges; and that the ANC government was under challenge from Black
nationalist politicians, whose rhetoric overlapped with that of the Rhodes Must Go movement.
The University authorities soon agreed to remove the statue, and Rhodes has gone.
But the debates and tensions triggered by the campaign remain, and they are important
far beyond Cape Town. They raise questions about the imperialist history of the knowledge
system on which universities all over the world depend – the “official knowledge”, as the
North American educationist Michael Apple (1993) has termed it, that is still embedded in

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 351-367, maio-agosto 2019 351
Raewyn Connell

curricula, assessment practices, and the professional cultures of researchers and teachers. The
homogeneity of this official knowledge is an absolute presupposition of the global rankings of
universities that are now so important to policymakers and university managers.
In this essay, I will explore the postcolonial politics of official knowledge in the discipline
of sociology, and particularly contestations around the canon of “classical” texts and authors in
this discipline. My material comes mainly from Anglophone sociology. I’m aware that regional
trajectories in intellectual life differ. The course of events in the discipline is not the same in
post-communist countries as in countries with a continuous history of capitalism (Titarenko,
2012); nor is it the same in German-speaking countries as in English-speaking countries, even
in the same region. But I think the issues raised are widely relevant.

The founding fathers: canon as pseudo-history

I n Anglophone countries, the history of sociology is usually taught to students along the
following lines. In the eighteenth and nineteenth centuries, society in Europe and North
America went through a deep transformation, involving the industrial revolution, the advent
of democracy, the rise of bureaucracy and the modern state, and cultural changes of which
the core was secularization. A small group of brilliant intellectuals interpreted this change and
developed a science of modern, as distinct from traditional, society. This was called sociology.
The key figures in developing this science were: Karl Marx, Émile Durkheim and Max Weber.
Their major texts, notably Capital, Suicide, The Division of Labour in Society, and Economy and
Society, form a canon widely known as Classical Theory. A less distinguished second team also
contributed, made up of Tönnies, Spencer, Sumner, Simmel and Pareto.
This is a crude account of the story, but, in truth, the textbook version of “that brilliant age
in which the foundations of the discipline were laid” (Bottomore and Nisbet, 1978: x) is often
as crude as this. And the idea of a founding trio as the core authors of Classical Theory has been
backed by scholarship that is far from crude, but is insistent. Jeffrey Alexander’s monumental
Theoretical Logic in Sociology (1982, 1983) after disposing of positivism, presented an account
of classical theory in the form of an intricate analysis of: Marx, Durkheim, and Weber. Anthony
Giddens’ influential Capitalism and Modern Social Theory (1971) analyzed the writings of:
Marx, Durkheim and Weber. Peter Baehr (2002) more recently elaborated a defence of the
idea of classics for sociology, endorsing the conventional list, though he does not like them to
be called a “canon”.
This picture of sociology spread around the world. A generation ago, Cora Baldock and
Jim Lally (1974: chapter 8) conducted a little survey of the theoretical perspectives adopted

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Canons and colonies: the global trajectory of sociology

by Australians and New Zealanders in the then-new academic discipline of sociology. Three
schools were named in the responses: Marxist, Weberian and Durkheimian. I do not want to
embarrass colleagues by naming bad examples, but I can assure the reader that more than
thirty years after that, an Australian introductory textbook could still introduce the subject
with a story of “The emergence of sociology as a discipline” entirely consisting of: 6 pages on
Durkheim; 10 pages on Marx; and 6 pages on Weber.
Twenty years ago, I wrote a long essay, Why is Classical Theory Classical? (Connell, 1997),
that raised severe doubts about the conventional story. I pointed to the work of historians who
had shown that the huge fame of Durkheim and Weber, and even the inclusion of Marx as a
sociologist, were late developments in the history of the discipline (Platt, 1995). Substantially,
the canonization of this trio occurred from the 1930s to the 1960s, mainly in the United States.
It was not a story that originated in the founding generations themselves. The sociologists of
that period regarded sociology as the creation of a much wider group of pioneers, and would
name two or three dozen of them in the Introductions to their treatises. Lester Ward, for
instance, in the 1897 edition of his Dynamic Sociology, listed 37 notable contributors to the
new science. His list included Durkheim and Tönnies, but neither Marx nor Weber.
The language of “social science”, devised by Comte in the first half of the century, was
taken up around the time of his death in the 1850s by a broad spectrum of reformers. A
generation later, their writing and activism was unevenly converted into an academic discipline
that enthusiastically claimed to be a full-blown empirical science. The claim to be a science
meant speculative generalizations supported by a large body of information. Therefore, the
recording and classification of social knowledge became a major part of the enterprise. Works
such as Spencer’s immensely influential Principles of Sociology, published in the 1870s, or
Sumner’s Folkways a generation later, took the form of huge accumulations of descriptions of
social institutions, customs and events.
Investigations of social conditions in the metropole certainly went into this brew, but the
gaze of Spencer, Ward, Engels, Letourneau, Tönnies, Durkheim, Sumner, Giddings, Hobhouse
and their colleagues ranged far beyond Europe. They gathered and incorporated vast amounts
of data from the colonized world, and from earlier periods of history. Sociology, to this
generation, was not only about industrializing Europe and North America, indeed it was not
primarily about modernity.
Rather, the conceptual framework of sociology was based above all on the contrast
between metropole and colony. The distinction of “primitive” from “advanced” social forms
underpinned the concept of social progress that governed the new science for its first two

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 353-367, maio-agosto 2019 353
Raewyn Connell

generations. And this was a distinction that was founded on the assumption of inherent
difference between colonized and colonizer. Its cultural roots go back as far as the contrast of
Christian and pagan in mediaeval European culture that legitimated the crusades in Palestine
and Prussia, and the fierce disputes that arose in Spain in the sixteenth century about the
legitimacy of overseas conquest.
It is not accidental that sociology as an organized knowledge project emerged at the high
tide of European imperialism, both overseas and overland. The doctrine of progress gave the
liberal intellectuals who created the discipline a solution to the severe cultural dilemma they
faced as beneficiaries of imperialism. By the 1890s, it was globally-sourced data, rather than
local empirical investigation, that legitimated “sociology” as a science. It is highly illuminating
to read the major attempt in the “classical” period to survey all sociological knowledge,
L’année sociologique, the periodical put out by Durkheim’s group. It abstracted reports from
all over the colonized world, and texts about other periods of history, in greater number than
texts about modern Europe. Themes of industrialization, class struggle, or bureaucracy were
very far from being dominant concerns.
In substance and in framing, sociology was global from the start. Though my sketch
is being replaced by more comprehensive narratives, the intimate relationship between
sociology and empire is abundantly proven by more recent historical research (Steinmetz,
2013). This connection was the fundamental fact suppressed by the internalist narrative of the
origins of sociology and the selection of Marx, Weber and Durkheim rather than, say, Spencer,
Letourneau and Sumner. The creation of a canon followed a turn towards the empirical study
of the metropole itself, after the crisis of Comtean sociology in the early twentieth century.
Sociology as a world-viewing intellectual project among the liberal bourgeoisie in Europe
collapsed in the face of war, working-class struggle, nationalism and authoritarian rule.
Sociology faced something of a legitimation crisis as it sought a home in the academic
ecology of US universities after the Great War. Re-interpreting it as a science of modernity, and
emphasising its roots in Great Books of the Western World, helped to handle this problem.
In truth, the Great Books had hardly any relation to the techniques of the Chicago School
fieldworkers and the Columbia School quantifiers, which, since the 1920s, were producing
the bulk of North American sociology. But the disconnection was mostly ignored – “theory”
and “method” were taught in separate courses. Ironically, it was a conservative version of
metropole-centred sociology that was exported to developing countries during the Cold War,
when creating social sciences on the American model in the global South became a project for
the US corporate foundations, the US universities and the American state.

354 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 354-367 maio-agosto 2019
Canons and colonies: the global trajectory of sociology

The creation of a canon was not just the formulation of an idea. It became a material
practice, in the form of a pedagogy that made the study of “the classics” a required part
of the professional formation of an academic sociologist. A course on “Classical Theory”
became a standard element in the sociology PhD programmes of US universities (It was my
embarrassment at having to teach such a course that led to writing Why is Classical Theory
Classical?).
The pedagogy in that pre-Internet era required written material to work with, so the major
texts of chosen Fathers were excerpted, republished, and translated into English if they had
not previously been; a typical example is Wolff’s (1959) English-language version of Simmel.
An industry of exposition, celebration, biography, commentary and criticism arose, including
Alexander’s and Giddens’s books. The collectively sustained fiction of the Founding Fathers
could then be proudly presented to undergraduates, at the start of their studies (literally in
Chapter 1 of many Sociology 101 textbooks), as the truth about the origins of their discipline.
In Alan Swingewood’s A Short History of Sociological Thought (2000: x) “Marx, Weber
and Durkheim have remained at the core of modern sociology”, not just because they began
it, but because of their depth, rigour and ability to raise disturbing questions about modern
society. This was widely agreed. Alexander’s 1987 paper “The centrality of the classics”
(1987) can stand for many. As well as being texts of unexampled brilliance, the classics serve
a functional purpose for sociology. They allow – indeed invite – argument within a shared
space; the centrality of the classics makes interpretation a key form of theoretical argument, as
the classical texts become a battleground. That was a relatively economical argument. Arthur
Stinchcombe’s plaintive essay “Should sociologists forget their mothers and fathers?” (1982)
claimed that the classics served no less than six functions for sociology.
In Alexander’s version, strikingly, the defence of sociology’s foundation myth returns to
the terrain of religion, where the interpretation of a set of honoured texts – hermeneutics,
ijtihad – is a major form of scholarship and devotion. Yet the history of religion might remind
us that not only what the canon means, but what the canon itself is, can be a subject of fierce
dispute. There have been debates about which of the Gospels are to be accepted as valid;
whether the Apocrypha should form part of the Bible; and which of the hadiths are legitimately
taken as words of the Prophet Mohammed, peace be upon him.
In literature, the other great source of the contemporary idea of a canon, the sense in
which a set of classics is necessarily a back-formation, not a history, is even clearer. Attempts at
defining, purging, expanding and exploding the canon of English literature have been central
activities in Anglophone literary criticism for a long time (Showalter, 1977).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 355-367, maio-agosto 2019 355
Raewyn Connell

Unsettling the canon

I t is consistent with this broader history that the canon of classical sociology has been
subject to amendment. The Sociology 101 textbooks of the 1970s were usually satisfied
with Marx, Durkheim and Weber. That choice came under fire from feminist sociologists, who
became a large constituency in US sociology during the 1970s and 1980s, and who observed
that even the second team was entirely composed of blokes. African-American sociologists at
the same time observed that the canonical list was entirely White. We could also observe that
it was entirely bourgeois, though the inclusion of Marx gave symbolic protection from socialist
critique; during the student movement of the 1960s and 1970s, sociology even became the
main academic vehicle for new-left radicalism.
Textbook writers and their publishers were sensitive to these changes in the market, so
Sociology 101 textbooks in time amended the membership list. It is now common to see a
nice picture of Jane Addams included in the chapter about classical sociology; alternatively, a
picture of Harriet Martineau, heralded as the first sociologist woman (a concept that would
have surprised her). Neither Addams’s nor Martineau’s writings seem to have been canonized,
however. That did happen for the amendment made in response to African-American criticism.
W. E. B. Du Bois had certainly produced notable sociological books, and The Philadelphia
Negro and The Souls of Black Folk have now been reprinted and anthologised.
This has not happened, however, for Du Bois’s later writings. He did not stop writing
social analysis when he became deeply involved with the anti-colonial movement in Africa,
with peace campaigns, and eventually with the international communist movement. That
seems to me an important limit to his canonization. It highlights the way in which the textbook
version of the foundation story has remained focussed on the global North.
A more radical revision is suggested by nominating thinkers from outside the North
Atlantic world as founders. The most favoured is the eighth century (AH)/fourteenth-century
(CE) Maghrebian politician and intellectual Ibn Khaldun, nominated by Fuad Baali (1988) not
as a founder of sociology but as the founder of sociology. Ibn Khaldun’s Muqaddimah is indeed
a remarkable text, that canvasses issues of rural/urban social difference, state formation, and
the socio-cultural roots of political instability and change. Ibn Khaldun’s historical writing, to
which the Muqaddimah is a conceptual introduction, is, Yves Lacoste (1980) observed, a late
flowering of a broad historiographical tradition in Muslim culture. Ibn Khaldun turned this
tradition towards social analysis, partly in response to the political problems of his own society,
partly in a critique of over-rationalist strains in Islamic philosophy.

356 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 356-367 maio-agosto 2019
Canons and colonies: the global trajectory of sociology

Syed Farid Alatas (2006, 2010) has emphasised the creative potential of this turn. Crucially,
Alatas has shown how the Muqaddimah can provide a framework for understanding political
and religious change in other times and places, and has offered concrete examples. Alatas
has thus moved beyond the purely programmatic to the actual construction of sociological
analyses on non-Eurocentric foundations, with Ibn Khaldun’s work playing the background-
conceptual-framing role, which, in the Eurocentric picture of sociology, is played by the texts
of Marx, Weber and Durkheim.
Can this process be extended? Indeed, should it be? Do we want to reconstitute the
canon of classical sociology on a world, rather than a North-Atlantic, basis?
Some commentary on my book Southern Theory (Connell 2007) has seen it as an attempt
to do just that. I can understand how the book might be read that way, given the familiarity
of canonical thinking in sociology, and the fact that the book begins with a critique of the
European canon. And I don’t mind urging that some of the texts discussed in that book should
be read by any people who might think of themselves as sociologists. Solomon Tshekisho
Plaatje’s Native Life in South Africa, published four years after Durkheim’s Elementary Forms
of Religious Life and six years before Weber’s Economy and Society – and a better guide than
either of those to the realities of the early twentieth century – would be one.
Nevertheless my intention was not to identify a few decisive figures on whom traditions
could be built. It was to show the tremendous wealth of social analyses that were generated
by social change and social struggle in the colonial and postcolonial world, and the diverse
genres in which those ideas were expressed. The sources range from political pamphlets
through religious sermons to economic policy statements to ethnographies.
Southern Theory does nominate names, and discuss specific texts, in an attempt to show
all this concretely, to provide proof of the main claim. However, the text, unlike most books
with “theory” in their title, is not an attempt at a history or a formal treatise. It is, rather,
a narrative of the way in which one intellectual from a settler colony, carefully trained in
Eurocentric social science, encountered people, texts, stories and problems from beyond the
boundaries of that training.
Prophetically, one of the first postcolonial texts I ever read was C. L. R. James Beyond
a Boundary (1963), the best book written about cricket and possibly the best ever written
about sport. Much later I read James’s devastating history The Black Jacobins, which, in 1938,
said most of what ever needed to be said about the Enlightenment.The implication of this
approach was that, rather than being only a narrow group of classic-standard theorists, there
were many more out there of comparable insight and value. And it is not hard to nominate

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 357-367, maio-agosto 2019 357
Raewyn Connell

more. Southern Theory doesn’t discuss James himself, nor his even more famous Caribbean
contemporary Frantz Fanon. Nor does it discuss the social thought of Anouar Abdel-Malek,
Bina Agarwal, Samir Amin, He-Yin Zhen, Kartini, José Carlos Mariátegui, Kwame Nkrumah,
José Rizal (who is discussed by Alatas), Heleieth Saffioti, Sun Yatsen, or Leopoldo Zea, who
are, by no means, a second team. And we could go on – as I have done in Connell (2015a),
on gender theorists.
The recent discussion of global plurality in sociology, sponsored by the International
Sociological Association, has frequently taken the form of national narratives – see the valuable
collections edited by Patel (2010) and by Burawoy, Chang and Hsieh (2010). It is a genre to
which I have contributed, describing the formation of sociology in Australia (Connell, 2015b),
so I don’t consider it a bad approach. It provides extremely useful documentation, among
other things demonstrating the different sequences of intellectual history in different world
contexts. A local history can open up new themes that are little treated in Northern theory. An
example is the powerful awareness of space in the social imagination of the global periphery,
documented in João Maia’s (2008, 2011) research on the history of Brazilian social thought.
But there are limits to a national or even regional narrative, when many social and
intellectual developments in the world of imperialism and post-imperial globalization operate
on a much larger scale. There is a risk that the demonstration of plurality will fall back into
the dubious project, all too familiar in the global North as well as in the South, of trying to
define a unique national or regional style, ethos, spirit or philosophy (For an example from the
global North, see Levine (1995); for a shattering critique of this kind of project, see Hountondji
(1976)).
At the end of the day, re-working the canon, even de-colonizing the canon, and
substituting a more diverse group of classics, is not a methodologically adequate way of
relating to the history of social thought. When researching the disciplinary history of sociology,
we certainly need to study why a narrow canon and an unbelievable foundation story were
invented and institutionalized. But we should not make the same mistake again.

Histories difficult to canonize

T here are important forms of social thought that resist being formulated in canonical terms.
A good deal of social analysis comes from radical social movements – labour movements,
feminism, gay liberation, landless people’s movements, movements of subordinated castes or
ethnic groups, nationalist movements, anticolonial movements. Some of these movements

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Canons and colonies: the global trajectory of sociology

have given rise to important texts, such as B. R. Ambedkar’s 1936 Annihilation of Caste – a
powerful statement on the contradictions of Hindu society from the viewpoint of the oppressed
castes, including a sharp critique of Gandhi. But such statements have force mainly because of
the collective knowledge production behind them.
In recent years, the social sciences have been coming to terms with the fact that knowledge
formation and circulation is global, and is structured both by the history of imperialism and the
tremendous inequalities, as well as the technical possibilities, of the neoliberal world economy
today. Postcolonial, decolonial and Southern perspectives have been elaborated in fields
as diverse as education (Epstein and Morrell, 2012), history (Chakrabarty, 2000), disability
studies (Meekosha, 2011) and criminology (Aas, 2012), as well as sociology in general (Sitas,
2006; Rodríguez, Boatc ă and Costa, 2010; Reuter and Villa, 2010) and specific fields such as
industrial sociology (Keim, 2008).
The tendency of this literature as a whole, I would argue, is anti-canonical. It not only
demonstrates the inadequacy of a European/North American canon, but also reveals obstacles to
the crystallization of any alternative canon derived from the Third World, the Global South, or the
postcolonial world. For instance, Maria Lucia Maciel and Sarita Albagli (2009), exploring how the
idea of “knowledge societies” appears from the global South, show how generalized knowledges
fail in practice to circulate freely, while local linkages and tacit knowledge matter a great deal.
Following another line of thought, Marina Blagojevi ć (2009) observes how knowledge
formation in the Eastern European semi-periphery has been shaped by the de-development
of the region after the collapse of communism and the arrival of neoliberalism, creating
new conditions for knowledge workers. These conditions include privilege and funding for
knowledge workers who can attach themselves to institutions and agendas of the metropole.In
the postcolonial debates about knowledge, the concept of “indigenous knowledge” has played
a leading role. It is often the second term in a contrast with “Western science” or a Western
knowledge system, as in Catherine Odora Hopper’s valuable collection of African research and
theory, Indigenous Knowledge and the Integration of Knowledge Systems (2002). Indigenous
epistemology is the vital point of alterity and resistance in the “decolonial” agenda articulated
in Walter Mignolo’s discussions of Latin America (2005, 2007). Indigenous language, culture
and experience in Aotearoa New Zealand are the bases of Linda Tuhiwai Smith’s influential
critique of mainstream social science in Decolonizing Methodologies (2012).
This is a highly disputed arena; it is not easy to define what indigenous knowledge is. There
has been, for instance, a long and bitter debate about the concept of an “African philosophy”
that is supposedly embedded in the oral cultures of colonized African societies (Serequeberhan,

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Raewyn Connell

1991; Hountondji, 2002). The idea of indigenous knowledge does get mixed up with nationalist
agendas and very dubious politics. For instance, the decision by the Mbeki government in South
Africa, which had launched an inspiring “African renaissance” agenda, to reject prevailing
interpretations of the HIV epidemic as being racist, and to define indigenous healing knowledge
as an adequate response to AIDS, led to a public health disaster (Cullinan and Thom, 2009).
Yet there can be no question that colonized peoples in all parts of the world did have
extensive knowledge of their worlds, and practices and technologies based on this knowledge.
Paulin Hountondji and his colleagues documented this for West African societies in the very
important book Endogenous Knowledge: Research Trails (1997), which ranges across the iron
industry, rainmaking, number systems, prediction, zoological nomenclature, pharmacology,
mental disorder and more.
Even those societies which European colonizers and sociologists regarded as the most
primitive of the primitive – the San and Khoikhoi in southern Africa, the Fuegian communities
in the far south of America, and the Aborigines of Australia (whose religion Durkheim insisted
was the most elementary form, despite the fact that he never set foot in Australia) – all had
environmental, biological and social expert knowledge and sustainable technologies, not to
mention complex religious cultures.
As Crossman and Devisch (2002) observe, discussions of indigenous knowledge have
focussed on two fields, agriculture and indigenous medicines; these are the topics of most
interest to transnational corporations and development agencies. I would emphasise, however,
that indigenous knowledge, which is far from static, also includes a large component of
social knowledge. Here are records of social processes, concepts for social relations, ways
of understanding social conflicts and techniques for resolving them, ideas about education.
And of course, knowledge of the social effects of colonization – for a striking example, read
Somerville and Perkins’ beautiful book Singing the Coast (2010).
This knowledge may make connections that are rare in Eurocentric sociology. The
representation of social relations in Australian central-desert Aboriginal art, for instance,
persistently connects people with the land, with particular places and specific routes across
the country. The land is an absolutely central issue in the contemporary, as well as pre-colonial,
culture and politics of Aboriginal communities (Yunupingu, 1997).
Indigenous knowledge resists being formulated in terms of a canon. Where it exists in
oral form, it may be captured in a written record, as Akinsola Akiwowo (1986) did in the
most-discussed case of using oral tradition (in this case, priestly poems in Yoruba language)
as the basis for writing a formal sociology. But oral traditions exist in many variants, and are
constantly re-composed in performance, so it is difficult to claim authority for any transcription.

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Canons and colonies: the global trajectory of sociology

As Jìmí Adésinà (2002) observes in a reflection on Akiwowo’s project, by abstracting from


the situation, it is easy to miss their purposive character, the political agenda they carry and the
power relations they may embody.
This point is even more powerful when the story, the ritual or the artwork is strongly
linked to specific places. This is an experience I have had, at Ubirr in Kakadu (northern
Australia). Hearing a traditional story told in the place to which it refers, experiencing the
spirit beings moving and the events unfolding around me on the site, makes entirely real
the interpenetration of the Dreaming and the present, so alien to mainstream European-
derived social science, but so central to indigenous knowledges in Australia. However, outside
that place, how can we generalize the knowledge contained in that story? Only by a radical
abstraction from the land – an operation all too similar to that destruction of Aboriginal links
to the land that was the core of colonization.

Towards a more radical view of intellectual labour

M illie Thayer (2010) has recently pointed to the importance of a vast and heterogeneous
“counterpublic” in which feminist thought about gender inequality circulates
internationally. It is characteristic of radical movements to be suspicious of hierarchies, not only
in the wider society, but within movements themselves. The Women’s Liberation movement,
to take one example, put much energy into decentralizing decision-making and collectivizing
representation.The tendency towards shared knowledge production is, according to a thesis
developed by the Arena group in Australia, a characteristic of intellectual workers in advanced
capitalism (Sharp, 1968; Sharp and White, 1968; Connell, 2016). In a society increasingly
dependent on organized knowledge, intellectual labour is increasingly collectivized. The
conditions of this labour emphasise lateral, not hierarchical, relations among intellectual
workers and thus promote a democratic consciousness.
A notable example is the work of the “dependency” school of thought in Latin America.
In the English-speaking world, this work has been mainly known through the writings of Andre
Gunder Frank (1967). As Fernanda Beigel’s (2010) admirable study of dependency theory
makes clear, the ideas were very much a collective product. Building on the pioneering work
in development economics of Raúl Prebisch and Celso Furtado, a group of younger scholars
centred in Santiago de Chile in the 1960s and early 1970s generated a multifaceted critique
of mainstream European/US-derived economics, of orthodox Marxism, and of the initial CEPAL
model of import replacement industrialization. It was the interactions across a number of
research groups spread through several institutions, rather than the centrality of any classics,
that enabled this remarkable surge of creativity.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 361-367, maio-agosto 2019 361
Raewyn Connell

Yet there are tendencies that work in favour of canons. Making a canon is an exercise in
creating celebrity, and both popular mass media and academic life show the power of celebrity
mechanisms (Krieken, 2012). Once a degree of celebrity is established, it can become self-
reinforcing, accumulating more and more “mentions” (as Twitter puts it) simply because the
person or text is already well-known.
I have had a minor experience of celebrity in one field of social science, as my work is
well known in the sub-field of gender research concerned with the study of masculinities. It
has become clear, looking at the way this work has been taken up, that being academically
“celebrated” is not equivalent to being well understood. A sharp narrowing of meaning,
soon amounting to distortion, accompanied the growth of recognition (Connell and
Messerschmidt, 2005).
I know that my work in this field has also assisted some really excellent research and
theorization by others. So the cumulative and self-corrective growth of knowledge does happen
in this field, as it should. But it is not the celebrity or canonical status of a text like Masculinities
(Connell, 2005) that produces this effect. It is the hard work and independent thinking of the
next wave of scholars and activists that does. The main effect of the celebrity is a spurious
authorization of over-simplified and mostly backward-looking accounts of the subject.
Thus, I have a reason to be sceptical of the claim that the “centrality of the classics” is good
for sociology. The mechanisms and consequences of celebrity certainly produced truncated and
distorted accounts of the work of Marx, Durkheim and Weber. The extraordinary interpretation
of Marx as a “conflict theorist” was one of them. Another was the way Anglophone sociology’s
Durkheim almost completely missed the real Durkheim’s urgent commitment to build secular
republican culture in the France of the Dreyfus affair.Yet a third misreading concerned Weber.
To a reader used to the bland Anglophone Weber as Founding Father, or the abstracted
intellect discussed by Alexander and Giddens, it was a revelation to discover Dr Max as an
ambitious, but vulnerable player in the tough world of National-Liberal politics, economic
policy struggles, imperial rule and militarism. As Keith Tribe (1989:12) drily remarked, “what
Weber has come to mean in the sociological tradition is often of dubious value”.
It is not only that canonization leads to boring misinterpretations of the life and work of
intellectuals who are, in their own right, exciting and certainly worth reading. The process also
has serious consequences for the discipline in which it happens. It implies that the creation of
sociological perspectives was a matter of isolated genius. The point that Beigel makes about
the creation of the dependentista framework also applies to the creation of sociology itself as
an academic field in the metropole, from the 1880s to the 1900s. This involved the collective
labour of a whole network of intellectuals, in five or six countries, creating departments,

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Canons and colonies: the global trajectory of sociology

journals, conferences, associations, curricula and textbooks. As noted earlier, sociologists at


the time took a collective, not canonical, view of the making of their discipline.
Most problematically, the reliance on a canon to provide structure, identity or boundaries
to a field of knowledge – the claim most persistently made for the canon in sociology –
obstructs thinking. It obstructs the capacity to think for oneself, it obstructs willingness to
leap beyond those boundaries and put that professional identity at risk. It is really bizarre that
the polemic of an embattled metropolitan intellectual in the 1890s about the methodological
separateness of the social should be taught to students in India or China in the 2010s as part
of the definition of their field of study, at a time when they are choking in the pollution of their
cities and scared by anthropogenic climate change.
In the wake of the inconclusive discussion of Michael Burawoy’s agenda for “public
sociology” (Clawson et al., 2007), some colleagues have become severely despondent about
the lack of impact that sociology is having in current public affairs, while neoliberal politics
gets a harder grip and global antagonisms deepen (Prosono, 2012). One of the reasons for
ineffectuality is surely the structure of official knowledge in sociology itself.
The decolonial and Southern perspectives discussed above imply that any serious
contemporary re-thinking of the social sciences must work on a world scale. This requires us
to understand the workforce of knowledge creation on a world scale, with attention to the
neo-colonial situations in which large parts of that workforce operate (Mkandawire, 2005).
The material inequalities among knowledge workers on a world scale are among the severe
problems of contemporary social science.
However, a global perspective also opens up great possibilities for intellectual renovation.
Rhodes Must Go, and we are not short of ideas for what should replace colonial structures
of knowledge: including the epistemological pluralism identified by many thinkers (Olivé et
al., 2009), the “theory from the south” suggested by Jean and John Comaroff (2012), the
“connected sociologies” proposed by Gurminder Bhambra (2014), and the all-important
detailed work of networks of researchers in global-South contexts, like the South African
education research introduced by Epstein and Morrell (2012).
Sociology does have a capacity to speak to the critical issues of contemporary society.
But it will do so only if more sociologists are willing to think for themselves, form new kinds
of international connections, and take intellectual and personal risks. In short, do as Marx,
Durkheim and Weber did, rather than endlessly repeat what they said. It won’t get you into
the American Sociological Review. But it might help change the world.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 363-367, maio-agosto 2019 363
Raewyn Connell

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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 367-367, maio-agosto 2019 367
Artigo

Roger Bastide, Antonio Candido e a tese


interrompida sobre o cururu1
Roger Bastide, Antonio Candido and the thesis interrupted on the
cururu
Roger Bastide, Antonio Candido y la tesis interrumpida acerca
del caruru
William Santana SantosI* 2

Max Luiz GimenesII** 3

Luiz Carlos JacksonIII*** 4

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200003

1
Este artigo reivindica, para além de seu argumento, a valorização do trabalho coletivo nas ciências sociais. Agradecemos ao
Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), especialmente à Elisabete Marin Ribas,
pela possibilidade de consultar o Acervo Pessoal Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, a ser aberto ao público a partir
de novembro de 2019. A carta transcrita, como anexo a este artigo, pertence a esse acervo.

I
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil.

*Mestrando em sociologia na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Fernando Pinheiro.
(william.santana.santos@usp.br) ORCID iD: hhtp://orcid.org/0000-0003-1037-9563

II
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil.

**Doutorando em sociologia na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Maria Arminda do Nascimento
Arruda. (maxluizgimenes@gmail.com). ORCID iD: http://orcid.org/0000-0002-0906-6837

III
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil.

*Professor de sociologia na Universidade de São Paulo (USP). (ljackson@usp.br)


ORCID iD: hhtp://orcid.org/0000-0002-6269-6096

Artigo recebido em 10 de março de 2019 e aceito para publicação em 17 de junho de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 368-388, maio-agosto 2019 368
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

Resumo
Abordaremos neste texto as relações entre o programa de pesquisa em sociologia da arte liderado por Roger Bastide
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), nas décadas de
1940 e 1950, e a tese incompleta de Antonio Candido sobre o cururu. A análise desse material e de seu contexto
permite avaliar conexões teóricas e metodológicas entre os autores e flagrar as possíveis disputas em jogo nesse
momento em torno da sucessão do sociólogo francês na USP por seus discípulos e discípulas paulistas.

Palavras-chave: Roger Bastide; Antonio Candido; Sociologia paulista; Intelectuais.

Abstract

In this text, we will discuss the relations between the research program in sociology of art led by Roger Bastide in
the Faculty of Philosophy, Letters and Human Sciences of the University of São Paulo (FFCL-USP) in the 1940s and
1950s, and the incomplete thesis Antonio Candido on the cururu. The analysis of this material and its context allows
us to evaluate theoretical and methodological connections between the authors and to pinpoint the possible dispu-
tes in play at that moment around the succession of the French sociologist at USP by his disciples from São Paulo.

Keywords: Roger Bastide; Antonio Candido; Sociology of São Paulo; Intellectuals.

Resumen
En este texto, las relaciones entre el programa de investigación en sociología del arte liderado por Roger Bastide en
la Facultad de Filosofía, Letras y Ciencias Humanas de la Universidad de São Paulo (FFCL-USP), en las décadas de
1940 y 1950, y la tesis incompleta de Antonio Candido acerca del cururu. El análisis de este material y de su contex-
to permite evaluar conexiones teóricas y metodológicas entre los autores y flagrar las posibles disputas en juego en
ese momento en torno a la sucesión del sociólogo francés en la USP por sus discípulos paulistas.

Palabras clave: Roger Bastide; Antonio Candido; Sociología paulista; Intelectuales.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 369-388, maio-agosto 2019 369
William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson

A essência das massas trabalhistas e populistas é, antes,


a consciência de massa que a consciência de classe.
Ianni, 1968

Os que duvidavam (ou ainda duvidam) da capacidade


dos trabalhadores de se organizarem politicamente
estão sendo obrigados a reconhecer que o PT
é hoje uma realidade nacional.
Lula, 1982
Introdução

E ste livro teve como origem o desejo de analisar as relações entre a literatura e a socie-
dade; e nasceu de uma pesquisa sobre a poesia popular, como se manifesta no Cururu
– dança cantada do caipira paulista –, cuja base é um desafio sobre os mais vários temas, em
versos obrigados a uma rima constante (carreira), que muda após cada rodada.
A pesquisa foi mostrando que as modalidades observadas em diversos lugares eram
verdadeiros extratos superpostos, em grau variável de mistura, mas podendo ser reduzidos a
alguns padrões. Estes correspondiam a momentos diferentes da sociedade caipira no tempo.
As modalidades antigas se caracterizavam pela estrutura mais simples, a rusticidade dos recur-
sos estéticos, o cunho coletivo da invenção, a obediência a certas normas religiosas. As atuais
manifestavam individualismo e secularização crescentes, desparecendo inclusive o elemento
coreográfico socializador, para ficar o desafio na sua pureza de confronto pessoal. Não era
difícil perceber que se tratava de uma manifestação espiritual ligada estreitamente às mudan-
ças da sociedade, e que uma podia ser tomada como ponto de vista para estudar a outra. Foi
assim que a coerência da investigação levou a alargar pouco a pouco o conhecimento da reali-
dade social em que se inscrevia o cururu, até suscitar um trabalho especial, que é este (o outro,
empreendido inicialmente, talvez nunca passe do estado de rascunho). (Candido, 1964: xii)
Os conhecidos parágrafos iniciais do Prefácio de 1964 de Os parceiros do Rio Bonito
recuperam o processo de mudança de objeto, do cururu para a sociedade caipira, que teria
se consumado no fim do primeiro semestre de 1953, como indicam anotações no esboço da
tese interrompida, intitulada inicialmente “Poesia popular e mudança social” e depois “Poesia
popular e estrutura social”. Ainda no Prefácio, Antonio Candido informa que teria começa-
do a redigir a nova tese em agosto de 1953 e que a teria concluído em setembro de 1954.

370 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 370-388 maio-agosto 2019
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

Tais dados sugerem que Os parceiros foi escrito em apenas um ano, informação que pode
escapar ao leitor. A defesa ocorreria um mês depois, em outubro de 1954.
De todo modo, parece-nos significativo que a abertura de um livro apresente uma pes-
quisa anterior abandonada e seu argumento central. Vale a pena lembrar que as investigações
sobre o cururu foram iniciadas em 1947 (Candido, 1964: xiii) e que todas as idas a campo
anteriores a 1953 e o material nelas recolhido o tinham como motivação principal. Tudo isso
sugere a importância que a pesquisa interrompida tinha para o então professor assistente da
cadeira de sociologia II da Faculdades de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo (FFCL-USP).
O trabalho nunca foi concluído, mas partes foram publicadas, em particular o que deveria
ser a Introdução da tese. Segundo o último Índice contido na pasta, que reúne todo o material
que Antonio Candido havia produzido, a Introdução deveria conter dois capítulos: o primeiro
intitulado “O que é e como foi feito este trabalho” e o segundo chamado “Origem e evolução
de uma prática folclórica”. O primeiro foi modificado e incluído em Literatura e sociedade
(1965), como “Estímulos da criação literária”, terceiro capítulo da primeira parte do livro. As
menções diretas à pesquisa sobre o cururu foram excluídas, e a reflexão teórica e metodológi-
ca, ampliada e rearranjada. O segundo foi publicado como artigo na Revista de Antropologia,
com o título “Possíveis raízes indígenas de uma dança popular” (Candido, 1956). Os capítulos
centrais da tese, entretanto, não foram publicados nem mesmo como artigos.
O argumento da tese interrompida, resumido a posteriori pelo próprio Antonio Candido
na abertura de Os parceiros, revela ainda conexões diretas com o programa de pesquisa
liderado por Roger Bastide em sociologia da arte, cuja origem seria o curso sobre essa espe-
cialidade, ministrado por ele em 1939 e 1940. O livro Arte e sociedade (1945) foi, segundo as
palavras do autor em sua epígrafe, “um resumo muito sintético” desses cursos.
Abordaremos neste texto as relações entre o programa de pesquisa em sociologia da arte
liderado por Roger Bastide na FFCL-USP, nas décadas de 1940 e 1950, e a tese incompleta de An-
tonio Candido sobre o cururu. A análise desse material e de seu contexto permite avaliar conexões
teóricas e metodológicas entre os autores e flagrar as possíveis disputas em jogo nesse momento
em torno da sucessão do sociólogo francês na USP por seus discípulos e discípulas paulistas.

O programa de Roger Bastide

E mbora de modo flexível e aparentemente desinteressado, Roger Bastide criou e dirigiu


um programa de pesquisa em sociologia da arte na FFCL-USP entre 1939 e 1954, o que

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 371-388, maio-agosto 2019 371
William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson

se comprova pelo conjunto numeroso de publicações de sua autoria e de seus alunos no


período e depois, como resultados indiretos. Todos esses trabalhos encamparam um mesmo
método e objeto geral. Os primeiros livros de Bastide editados no Brasil, Psicanálise do cafuné
e estudos de sociologia estética brasileira (1941), A poesia afro-brasileira (1943), Imagens
do Nordeste místico em branco e preto (1945) e Arte e sociedade (1945), são seus primeiros
frutos. Formulações programáticas podem ser encontradas nesses trabalhos, como a seguinte,
retirada da Introdução do primeiro:

Seria apaixonante a aplicação no Brasil da sociologia aos problemas da estética. [...] Eu deseja-
ria, neste livro, contribuir com alguns fatos, que servissem de material a uma sociologia da arte
brasileira, e isso no intuito, unicamente, de suscitar futuras pesquisas entre os estudiosos das
coisas da arte e trabalhar, assim, junto com eles, e com o mesmo amor, para a glorificação da
beleza do Brasil. (1941: 11-12)

O desenvolvimento mais consistente, contudo, do ponto de vista teórico, seria construído


em Arte e sociedade. Com base num balanço inicial sobre o desenvolvimento da sociologia da
arte em diversas vertentes analíticas, Bastide percorre as dimensões principais dos processos
de produção e circulação artística, defendendo a tese de que, mesmo nas expressões eruditas
e de vanguarda, a criação seria em boa medida coletiva, justificando a perspectiva que define
como “estética sociológica”, envolvida no estudo da gênese social dos valores artísticos. Com
esse objetivo geral, o autor examina as instâncias principais de tais processos, a produção, a
recepção, as instituições e, por fim, o jogo de determinações recíprocas entre arte e sociedade.
Seu esquema supõe, entretanto, a arte como instituição social, rompendo as visões dicotômi-
cas que implicam uma separação estanque entre tais domínios.
Desse ponto de vista, a análise sociológica seria indispensável a qualquer estudo siste-
mático da atividade artística e de seus produtos. Por tudo isso, a sociologia da arte e da cultura
propiciaria um olhar privilegiado para entender processos históricos e sociais mais amplos.
Vale mencionar que sua proposta seria reconhecida posteriormente na França, sobretudo por
Nathalie Heinich, como precursora da sociologia da arte e da cultura constituída no terço final
do século XX, em especial em torno de Pierre Bourdieu.1
Na primeira edição do livro (1945), Roger Bastide apresenta, no fim de cada capítulo,
uma seção intitulada “assuntos para pesquisa”, suprimida na segunda edição (1971). É pos-
sível interpretar tais sugestões como tópicos de um programa de pesquisa em sociologia da
arte que o sociólogo francês teria liderado entre as décadas de 1940 e 1950 na FFCL-USP.
Esse programa supunha a realização de trabalhos sobre cultura erudita – artes plásticas, lite-
ratura, arquitetura, música, teatro – e popular – música, literatura e dança. Nas duas frentes,

372 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 372-388 maio-agosto 2019
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

e também em seus estudos sobre religião, o autor defendia o método sociológico como eixo
da análise a respeito desses diversos objetos. A ambição mais ampla desse programa seria
perscrutar a sociedade brasileira e o processo de “interpenetração de civilizações” no qual
ela havia se formado (Peixoto, 2000). A arte e a cultura seriam, portanto, “porta de acesso”
privilegiada para entender esse país de raízes coloniais, escravista e “mestiço”.
Esse programa foi desenvolvido com base na cadeira de sociologia I, da qual Bastide
era catedrático, e incorporou professores assistentes e auxiliares de ensino dessa e de outras
cadeiras, que haviam sido seus alunos desde seu ingresso como professor na USP, em 1938.
Bastide ficara responsável por lecionar sociologias especiais – enquanto Paul Arbousse-Basti-
de ensinava sociologia geral –, entre as quais ofereceu cursos de sociologias estética, estética
brasileira, dos mitos, do folclore, entre outros. Ele publicou diversos trabalhos derivados de tais
cursos, como livros e artigos em revistas especializadas, bem como em jornais de grande cir-
culação. Além disso, estimulou seus alunos a realizarem pesquisas, propondo temas e objetos
que deveriam ser abordados na mesma perspectiva analítica. Esse foi o caso, por exemplo, da
pesquisa de Gilda de Mello e Souza sobre a moda, proposta por ele e notavelmente realizada
por ela (Braga, 1994).
Além desse trabalho, mesmo depois do retorno de Bastide à França, em 1954, várias
análises sobre cultura erudita de seus antigos alunos acionaram os pressupostos teóricos
e metodológicos do programa formulado pelo sociólogo francês. De tal modo, mesmo que
indiretamente, poderíamos interpretar como resultados do projeto coletivo liderado por ele os
trabalhos em sociologia da literatura de Antonio Candido, sobretudo A formação da literatura
brasileira (1959) e Literatura e sociedade (1965); os de Ruy Coelho, “Marcel Proust e nossa
época” (1941) e “Aspectos sociológicos da obra de Kafka” (1966); os de sociologia da arte
de Lourival Gomes Machado, Retrato da arte moderna no Brasil (1947) e O barroco mineiro
(1969); os estudos sobre cinema de Paulo Emílio Salles Gomes, em particular Humberto Mau-
ro, Cataguases, Cinearte (1974); os estudos sobre teatro de Décio de Almeida Prado, como
João Caetano: o ator, o empresário e o repertório (1972).
A novidade de todos esses trabalhos não está no objeto cultural, erudito ou popular, já
enfrentado por críticos e ensaístas, sobretudo no modernismo, e sim no esforço de inscrever
tais objetos na vida social por meio de uma análise sociológica.2
Sobre cultura popular, além do próprio Bastide – especialmente nos livros A psicanáli-
se do cafuné (1941) e Sociologia do folclore brasileiro (1959) –, realizaram trabalhos, mais
diretamente relacionados ao programa de pesquisa em questão: Oswaldo Elias Xidieh, em
Narrativas pias populares (1967) e Semana santa cabocla (1972); Lavínia Costa Villela, em

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 373-388, maio-agosto 2019 373
William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson

Algumas danças populares do estado de São Paulo (1945) e “Festa do Divino em São Luiz do
Paraitinga” (1946); Florestan Fernandes, em “As trocinhas do Bom Retiro” (1944), Folclore e
mudança social na cidade de São Paulo (1961) e O folclore em questão (1978); Maria Isaura
Pereira de Queiroz, em Sociologia e folclore: a dança de São Gonçalo num povoado baiano
(1958) e Carnaval brasileiro: o vivido e o mito (1992); e Antonio Candido, em “Possíveis raízes
indígenas de uma dança popular” (1957).3
Nessa última seara, a perspectiva analítica de Bastide, estabelecendo uma distância en-
tre sua proposta e a dos folcloristas,4 extensiva aos trabalhos dos estudantes, pode ser apreen-
dida em passagens como a seguinte, retirada de A sociologia do folclore brasileiro:

Em todo o caso, o fato aí está: se as estruturas sociais se modelam conforme as normas cul-
turais, a cultura por sua vez não pode existir sem uma estrutura que não só lhe serve de base,
mas que é ainda um dos fatores de sua criação ou de sua metamorfose. O folclore não flutua
no ar, só existe encarnado numa sociedade, e estudá-lo sem levar em conta essa sociedade é
condenar-se a apreender apenas sua superfície. (1959: 2, grifos nossos)

Como dito, Bastide apostava na sociologia da arte (erudita e popular) como perspectiva
importante para problematizar as transformações em curso na sociedade brasileira. Desse
ponto de vista, um texto como “A sociologia do folclore brasileiro”, redigido em 1949, pode
ser entendido como esboço de interpretação das diversas expressões e substratos sociais do
folclore brasileiro a ser ampliado por uma série de pesquisas posteriores, com a expectativa de
“abrir terreno e formular hipóteses de trabalho, indicando novos campos de ação” (1959: 10).
A questão decisiva seria averiguar, nas diversas manifestações particulares, a função exercida
pelo folclore em processos de ajustamento, resistência e recriação social articulados às trans-
formações gerais em curso.
O autor investiga a formação do folclore brasileiro desde a colonização. A interação entre
os troncos português, africano e ameríndio, mais por justaposição do que por fusão, caracteri-
zaria esse processo. O primeiro seria predominante, mas teria ocorrido também a assimilação
de tradições negras e ameríndias, frequentemente mobilizadas, para o autor, em resistência à
dominação branca. Em relação às tradições ameríndias, Bastide avaliava com otimismo suas
possibilidades de sobrevivência:
As civilizações originais ameríndias eram assim destruídas, mas delas subsistiam pelo
menos alguns elementos motores. Alguns desses jogos conservaram-se até agora e consti-
tuem um dos primeiros elementos do folclore brasileiro. O sairé, o cateretê, a dança da Santa
Cruz, o cururu são testemunhos desse sincretismo entre o catolicismo jesuíta e os jogos dos
indígenas. (1959: 17)

374 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 374-388 maio-agosto 2019
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

Do ponto de vista sociológico, o que o interessava em primeiro plano não eram as ma-
nifestações em si mesmas, mas o enraizamento nos grupos sociais, necessariamente envolvi-
dos em sua transmissão e transformação. Essa abordagem se manifesta num texto posterior
centrado no cururu – “O ‘cururu’, expressão da alma paulista” –, publicado em O Estado
de S. Paulo. Nele, Bastide chama a atenção para a centralidade do cururu nas origens e nas
transformações da sociedade paulista, em geral, e caipira, em particular, daí o título do artigo.
Vejamos um parágrafo do texto:

Remontando-se assim o curso da história, o “cururu” não permanece coisa morta, um fragmento
de folclore cristalizado, vai evoluir, pois, cheio de vida, nunca perde sua força dinâmica,
adaptando-se a todas as transformações da estrutura social, o que bem prova o seu caráter
de expansão do gênio paulista – o qual se conserva o mesmo através de todas as mudanças.
A urbanização do Estado de S. Paulo, com efeito, não destruirá o “cururu”, como no caso de
tantas formas do folclore, particularmente o folclore africano. Apenas essa urbanização vai fazer
que apareça ao lado do “cururu” rural, um novo tipo de “cururu”, o “cururu” urbano. (1951: 5)

A análise subsequente, realizada por Bastide, a respeito dos dois tipos de cururu e dos
significados das mudanças é retomada e aprofundada na tese interrompida de Antonio Can-
dido (1953), como veremos adiante, o que poderia sugerir que o último se apoiara na formu-
lação anterior do francês. Mas sugerimos que houve a construção compartilhada entre mestre
e discípulo de uma interpretação sociológica sobre o cururu, lembrando que Candido já tra-
balhava com o cururu desde 1947. Na sequência do texto, avançaremos com uma abordagem
atenta ao contexto institucional e às relações travadas entre ambos a fim de subsidiar uma
discussão sobre os possíveis motivos da interrupção da tese por Antonio Candido.

Roger Bastide, Antonio Candido e o cururu

O programa de pesquisa liderado por Roger Bastide teve como suporte vínculos pessoais
muito próximos, envolvendo trabalho e amizade, entre ele e seus alunos e alunas.
Além da bibliografia (Braga, 1994; Pontes, 1998; Peixoto, 2000; Garcia, 2002; Pulici, 2008),
inúmeros depoimentos sugerem que o sociólogo francês logrou construir, desse modo, um
ambiente de trabalho muito profícuo. Em alguns casos, com Florestan Fernandes, Maria Isaura
Pereira de Queiroz, Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido, as relações eram muito estrei-
tas, embora houvesse tensões entre mestre e discípulos e entre estes, envolvidos nas disputas
pela progressão na carreira acadêmica, inerentes a esse contexto.
Além das relações institucionais, das pesquisas orientadas, das influências teóricas, o
casal Gilda e Antonio Candido traduziu muitos trabalhos de Bastide – livros, artigos científicos,

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 375-388, maio-agosto 2019 375
William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson

artigos para jornais –, assim participando diretamente, quase como coautores, da produção
intelectual do sociólogo francês (Candido, 1997: 12), o que teria enorme impacto no trabalho
e no pensamento de ambos, como atestam trechos de dois depoimentos de Antonio Candido:

Além da produção escrita, foi grande a sua influência através do contato direto com amigos e
alunos. Eu, pessoalmente, lhe devo muito e às vezes me surpreendo relendo a anos de distância
algum escrito dele, ao verificar até que ponto certas ideias que julgava minhas são na verdade
não apenas devidas à sua influência, mas já expressamente formuladas por ele.
[...]
Os pontos de vista de Bastide se incrustaram de tal modo na minha mente, que perdi a noção
do quanto lhe devo” (1978, 1990 e 1996: 99 e 105).

A trajetória incomum de Antonio Candido foi favorecida, inicialmente, por sua origem
social elevada. Não obstante, em função das circunstâncias nas quais se desenvolveu sua
carreira, tensões diversas – crítica literária/sociologia, neutralidade política/militância, crítica
estética/crítica sociológica – se relacionam com seu dilema central: decidir-se profissionalmen-
te pela sociologia ou pela crítica literária. Antonio Candido nasceu em 1918, no Rio de Janeiro,
mas toda a sua infância transcorreu no interior de Minas Gerais. Seu pai, médico, e sua mãe
descenderam de famílias tradicionais dos dois estados5 e tiveram acesso privilegiado à cultura
própria dos círculos intelectualizados das oligarquias estaduais.
Desse modo, obteve educação elevada desde criança. Sua iniciação literária foi precoce,
mas adquiriu formação intelectual sistemática, sobretudo no curso de ciências sociais da FFCL-
-USP (1939-1941), em especial sob o ensino de professores da missão francesa. Na faculdade,
formou com outros jovens estudantes o Grupo Clima,6 do qual fizeram parte Lourival Gomes
Machado, Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes e Gilda de Moraes
Rocha (posteriormente Gilda Rocha de Mello e Souza), com quem se casou. A experiência deu
projeção a todos no cenário intelectual paulista da década de 1940 (e seguintes). A aliança
matrimonial, em 1943, foi decisiva profissionalmente ao casal, apesar de ter impulsionado
mais a ele.7 No mesmo ano, Antonio Candido assumiu o cargo de primeiro assistente de
Fernando de Azevedo, na cadeira de sociologia II da FFCL-USP, na qual permaneceu até 1958.
Quase ao mesmo tempo, passou a escrever semanalmente na Folha da Manhã (1942-1945)
e, depois, no Diário de São Paulo (1945-1947), ingressando no círculo prestigioso dos críticos
que escreviam para os grandes jornais de São Paulo e Rio de Janeiro.8
A derrota no conhecido concurso na FFCL-USP para a cadeira de literatura brasileira em
1945 – vencido por Mário Pereira de Souza Lima –, apesar do seu excelente desempenho e
de sua aprovação, que lhe garantiu o título de livre-docente em letras, o levaria a apostar mais

376 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 376-388 maio-agosto 2019
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

decididamente na carreira de sociólogo. Em 1947, afastou-se dos jornais e passou a se dedi-


car ao ensino e à pesquisa sociológica, o que se explica também pela mudança do regime de
trabalho dos “professores assistentes”, que passou de tempo parcial para integral.
A partir dessa data, até o fim da década seguinte, publicou um conjunto significativo de
textos sociológicos9 e iniciou a preparação de sua tese em sociologia, que, como vimos, se
voltou antes ao cururu e depois à transformação dos meios de vida do caipira paulista. A tese
Os parceiros do Rio Bonito seria defendida em 1954 e publicada como livro somente dez anos
depois. É preciso lembrar que, no mesmo período, o autor escreveu e publicou A formação da
literatura brasileira (1959), sua obra mais reconhecida.
A definição do tema inicial do doutorado foi condicionada por sua relação com Bastide
e afinada com seu programa de pesquisa, a despeito de orientada formalmente por Fernando
de Azevedo, descompasso ao qual voltaremos no próximo item. A escolha pelo cururu teria
ocorrido após pesquisa de campo solicitada por Bastide sobre atividades folclóricas em Pira-
cicaba, em 1946, realizada em conjunto com Gilda (Candido, 1996/2018: 263). A partir de
então, Candido iria diversas vezes a campo, entre 1947 e 1953, nos municípios paulistas de
Piracicaba, Tietê, Porto Feliz, Conchas, Anhembi, Botucatu e Bofete – a última viagem a esta
cidade, em janeiro/fevereiro de 1954, já visava recolher informações para Os parceiros –, além
de Cuiabá e Várzea Grande, no Mato Grosso, com o intuito de recolher dados sobre o cururu,
compartilhados e discutidos com Bastide.
O material inédito reunido na pasta “Poesia popular e mudança social”, apesar de in-
completo, comprova que Antonio Candido trabalhou na tese até agosto de 1953, quando de-
cidiu mudar o rumo do trabalho. De acordo com o último sumário da tese em preparação, ela
deveria se dividir, além de Prefácio, Introdução e Conclusão, em três partes principais, voltadas
à descrição, à análise e à interpretação dos três tipos de cururu – “de sítio”, “de escritura” e
“de assunto” –, que expressariam três etapas na transição da “comunidade tradicional” para
a “sociedade urbanizada”, construção tipológica apoiada em boa medida no livro Folk Culture
of Yucatan, de Robert Redfield, que o autor havia lido nos seminários de Emílio Willems, como
explicitado na Introdução.
Não obstante, as relações entre a tese do cururu e o programa de Bastide podem ser per-
cebidas nos diversos níveis de construção do trabalho. No primeiro item da Introdução da tese,
depois reelaborado e incluído, como vimos, em Literatura e sociedade (1965), com o título
“Estímulos da criação literária”, as diferenças entre literatura popular e erudita são discutidas,
sobretudo, em função do processo de individualização da criação literária, que caracterizaria
a passagem histórica entre uma e outra.10 Demarcando os terrenos da crítica literária e da

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 377-388, maio-agosto 2019 377
William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson

sociologia, a primeira seria reivindicada como a disciplina mais diretamente capacitada ao


estudo da literatura erudita. A sociologia, diante desse objeto, seria uma disciplina auxiliar,
eventualmente descartável. No caso da literatura popular, entretanto, o jogo se inverteria, as-
sumindo a sociologia (e a antropologia) a condição de disciplina prioritária, apta a reconstruir
a lógica necessariamente coletiva da criação literária e artística nas sociedades tradicionais.
Em relação às posições assumidas por Bastide em Arte e sociedade, sintetizadas acima,
Candido é mais reticente quanto ao alcance analítico da sociologia em face dos objetos literá-
rio e artístico. Para o primeiro, o estudo sistemático da literatura erudita não poderia prescindir
do instrumental sociológico; para o segundo, essa abordagem figuraria como possível, mas
não obrigatória, em função da especificidade do objeto em questão. No estudo da literatura
popular, as posições de ambos coincidem. Nessa direção, as manifestações populares ou fol-
clóricas só poderiam ser compreendidas por meio da abordagem sociológica, que permitiria
aprendê-las como práticas ligadas, nos termos do autor, “a uma dada estrutura, no caso, o
cururu e a sociedade paulista em mudança” (Tese inédita: sem numeração).
A reflexão teórica conduzida na Introdução da tese interrompida estava articulada à
pesquisa sobre o cururu, e, nesse formato, aparentemente mais restrito – em relação à ver-
são posterior incluída em Literatura e sociedade –, a ambição teórica da tese se expressava
em toda a sua amplitude. Tratava-se de escapar da reflexão abstrata sobre as relações entre
literatura e sociedade e “buscar sua articulação real que se dá no terreno particular dos casos
concretos” (Tese inédita: sem numeração). Mais especificamente, o autor pretendia, com sua
pesquisa sobre o cururu, dar conta de dois grandes desafios. O primeiro seria o “estudo da
emergência progressiva do indivíduo na criação literária”, relacionado à separação entre o
criador e o público, transformação decisiva não apenas no caso analisado, mas na própria
conformação histórica da literatura erudita no Ocidente:

Procuraremos assim sugerir de que modo a literatura erudita se desprende, com as suas
características próprias, da literatura popular – sem assistir a todo o processo, mas apenas
indicando a sua direção e parando por assim dizer no limiar da literatura erudita (Tese inédita:
sem numeração).

O segundo desafio da pesquisa seria problematizar os efeitos da “mudança sociocultural


sobre as formas literárias”, mas também as funções variadas desempenhadas pela literatura
popular (o cururu) no processo de mudança social (urbanização) que afetava a sociedade cai-
pira. Nessa direção, talvez a grande pretensão da sociologia da cultura de Bastide – a de que,
com base num objeto restrito, a análise poderia problematizar processos históricos e sociais
amplos – é reivindicada por Antonio Candido no trecho final da Introdução:

378 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 378-388 maio-agosto 2019
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

Antes que nos façam a censura de que o assunto é demasiado restrito, limitando-se a um dos
traços do folclore paulista, lembremos que em bom método científico devemos começar pelos
casos mais simples. Neles, com efeito, é possível delimitar e de algum modo reduzir os fatores,
baseando a explicação na série menos complexa de fenômenos – sobretudo em disciplina como
esta, caracterizada pela intervenção de tantos imponderáveis, variáveis sociais e pessoais que
tornam bastante precária a pretensão de causalidade que não se revestir da devida modéstia
metódica. E aos que disserem que o tema é não apenas restrito, mas tênue, diremos que se
para as andorinhas de Machado de Assis um desvão do telhado é o mundo, também o é para o
sociólogo qualquer desvão de realidade, contanto que possa, por meio dela, construir uma visão
coerente das coisas (Tese inédita: sem numeração).

A análise detida do material etnográfico é realizada no miolo da tese, baseada na des-


crição, na análise e na interpretação (infelizmente não concluída) das modalidades de cururu
construídas pelo autor. A descrição do que seriam o cururu de sítio, o cururu de escritura e o
cururu de assunto é minuciosa e sensível às diversas dimensões dessa modalidade de literatura
popular. No que toca aos dois primeiros tipos, o calendário de festas tradicionais é reconstituído,
e em seu interior o cururu é exposto em toda a sua complexidade formal, incluindo a louvação,
a coreografia, os cantos, os assuntos etc. Para o último tipo, a prática folclórica é examinada no
compasso de sua mudança, diretamente condicionada pela urbanização, que traz à tona um
processo de autonomização em relação ao sistema social de origem, que levaria “do folclórico
ao popularesco, do sagrado ao secular, do coletivo ao individual” (Tese inédita: sem numeração).
Na parte seguinte, de análise, o cururu é discutido do ponto de vista das transforma-
ções de suas funções nos diversos estágios de assimilação da sociedade caipira à sociedade
urbana. O cururu de sítio, “como prática eminentemente coletiva”, seria entendido como
um elemento simbólico integrador das comunidades tradicionais. Diante da urbanização, nas
cidades, o cururu de assunto, individualizado e secularizado, favoreceria a inserção do caipira
na sociedade em mudança, amaciando tensões. Do outro lado, na sociedade tradicional acos-
sada pelos elementos materiais e culturais urbanos, o cururu de assunto amorteceria impactos,
favorecendo uma mudança social e cultural menos disruptiva.

A tese interrompida

S abemos que a tese foi interrompida e finalizaremos este artigo especulando as possíveis
razões dessa decisão. A mudança de objeto, do cururu para a sociedade caipira, teria sido
uma decisão tomada, segundo o autor, pela falta de conhecimento da linguagem musical,
que empobreceria o trabalho. Acreditamos que tal decisão possa ter sido também afetada por
outros motivos.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 379-388, maio-agosto 2019 379
William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson

Uma interpretação recente sugere que a alteração de percurso teria como referência a
militância política de Antonio Candido no Partido Socialista Brasileiro (PSB), cuja direção nacio-
nal teria solicitado às seções estaduais pesquisas sobre o problema agrário brasileiro, a fim de
subsidiar a atuação do partido no debate parlamentar sobre a reforma agrária, iniciado em 1948
(Gimenes, 2018).11 Nessa direção, Os parceiros enfrentaria mais diretamente essa conjuntura
política do que a tese interrompida sobre o cururu. Outro motivo, de ordem institucional, pode
ser associado a esse de ordem política. Embora não seja possível alcançar uma resposta definiti-
va para esse problema, sugeriremos, baseados em alguns indícios, que esse desvio de rota teria
também relação com as disputas em torno da sucessão de Bastide na cadeira de sociologia I.
O problema dessa sucessão foi discutido pela bibliografia, sobretudo pelas análises in-
teressadas nas clivagens de gênero vigentes nesse período inicial de institucionalização das
ciências sociais em São Paulo (Pontes, 1998; Spirandelli, 2011; Silva, 2016), enquanto vigora-
va o sistema de cátedras. Nessa direção, a disputa pela cátedra teria se dado entre Gilda de
Mello e Souza, então a primeira assistente de Bastide nessa cadeira, e Florestan Fernandes, à
época o segundo assistente de Fernando de Azevedo na sociologia II.12
Gostaríamos de aventar a possibilidade de que Antonio Candido também nutrisse a expecta-
tiva de ser o sucessor de Bastide e que, mesmo sendo falsa essa hipótese, o desfecho dessa dispu-
ta institucional, a favor de Florestan, teria afetado decisões profissionais e intelectuais futuras de
Antonio Candido, como veremos a seguir. Sugerir a existência de uma disputa entre ambos nesse
episódio não implica desconsiderar a forte amizade que nutriam um pelo outro. Se competiram,
foi em função das constrições do regime de cátedra, que restringia demais as possibilidades de
progressão na carreira, mesmo para os jovens professores e professoras mais destacados.
A decisão tomada por Bastide, de indicar Florestan Fernandes para substituí-lo na cáte-
dra, teria se tornado pública no fim de 1952 e, segundo o depoimento de Florestan, provocado
um mal-estar em relação a Fernando de Azevedo, então o catedrático da sociologia II:

Durante o longo período em que nós convivemos, fui assistente dele de 45 até 51,52, não me
lembro direito agora. A partir de certo momento, o Bastide me convidou para passar para a ca-
deira dele, trocando de segundo assistente da cadeira II para ser primeiro assistente da cadeira
I. Foi um pouco difícil a transferência, tive até atritos com Fernando de Azevedo, porque ele
ficou ciumento, mas a questão foi aprovada no Departamento [...] Acontece que o Bastide disse
que a escolha que ele ia fazer era do seu sucessor e que ele não escolheria outra pessoa senão
eu, que ele havia me consultado, que eu estava de acordo, então o Departamento tinha que
decidir. O Departamento decidiu a favor da transferência e o Fernando de Azevedo realmente
não gostou, não ajudou nada na transferência e eu tive até grande conflito com ele por causa
disso. Mas, depois, tudo terminou bem porque somos duas pessoas de bom caráter e os atritos
foram superados sem ressentimento (2015: 193).

380 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 380-388 maio-agosto 2019
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

Nesse momento, Bastide solicitou a transferência de Florestan da sociologia II, da qual


ele era o segundo assistente, para a sociologia I, com a intenção de viabilizar a sucessão futu-
ra, que afinal ocorreria no fim de 1954. Esse episódio deve ser contextualizado.
Não sabemos por que não foi realizado um concurso de cátedra, uma vez que essa era
a regra institucional vigente, segundo o Regimento de Concurso para Provimento dos Cargos
de Professor Catedrático e Livre-Docente na FFCL-USP, aprovado no Decreto nº 13.426, de
23 de junho de 1943. De acordo com o Anuário da FFCL-USP (1939-1949), nesse período,
14 cadeiras em vários cursos da faculdade foram providas por concurso. Em ciências sociais,
entretanto, o primeiro concurso propriamente dito ocorreria apenas em 1956, para a cadeira
de política, vencido por Lourival Gomes Machado. Todas as nomeações anteriores decorreram
de arranjos internos, sendo bastante provável que, desde o começo da década de 1940, a
influência exercida por Fernando de Azevedo, diretor da faculdade entre 1941 e 1943, tenha
sido determinante para a reorganização do curso.
Em 1941, foram unificadas as duas cátedras de sociologia (I e II) e criadas as de antropo-
logia e política. Roger Bastide assumiu a de sociologia; Paul Arbousse-Bastide, a de política; e
Emílio Willems – antigo assistente de Fernando de Azevedo na sociologia educacional –; a de
antropologia. Após o término do mandato de Fernando de Azevedo como diretor da faculdade,
em 1943, a cadeira de sociologia foi novamente dividida. Bastide assumiria a sociologia I, e
o próprio Fernando de Azevedo, a sociologia II.
Nesse período, foram também contratados diversos professores assistentes para essas
cadeiras, entre os quais Gilda, Florestan e Antonio Candido. Ela, por Bastide, na sociologia I, e
eles por Fernando de Azevedo, na sociologia II. As duas grandes promessas masculinas foram
recrutadas por Fernando de Azevedo, apesar da filiação intelectual de ambos a Roger Bastide.
O quadro é revelador das disputas em curso. As cátedras de sociologia eram ocupadas
por um dos professores mais destacados da missão francesa, que, como vimos, liderou um
programa de pesquisa vigoroso e produziu, em curto prazo, escritos numerosos e qualificados.
Sob sua regência, com exceção de Mário Wagner Vieira da Cunha, todos os cargos de profes-
sor assistente foram supridos por mulheres13 – Lucila Hermann, Lavínia da Costa Villela, Gio-
conda Mussolini, Gilda de Mello e Souza –, até a transferência de Florestan, no fim de 1952.
Sugerimos que Bastide ocupava o polo científico do curso de ciências sociais.
De outro lado, estava o articulador institucional do curso, herdeiro direto de Julio
Mesquita Filho e representante do projeto fundacional que Irene Cardoso (1982) designou
como “comunhão paulista”, no polo político/institucional. Filiados intelectualmente a Roger
Bastide e institucionalmente a Fernando de Azevedo, Antonio Candido e Florestan Fernandes

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William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson

avançaram na carreira acumulando trunfos entre as décadas de 1940 e 1950, no decorrer do


período fundacional de implantação das ciências sociais em São Paulo. Mas cada um o fez
à sua maneira, direcionados pelos capitais (social e cultural) de que dispunham – o primeiro
como herdeiro, dividido entre a crítica literária e a sociologia; o segundo, como trânsfuga de
classe, totalmente dedicado à sociologia.
No início dos anos de 1950, quando Bastide já havia decidido voltar para a França, Gilda,
Antonio Candido e Florestan eram os candidatos prováveis à sucessão,14 e é possível que uma
das razões para a não realização do concurso fosse evitar o enfrentamento interno e externo,
na eventualidade de candidatar-se alguém de fora da USP. Florestan obtivera até então os
títulos de mestre em ciências sociais/antropologia (Elsp, 1947) e de doutor em sociologia (USP,
1951), estava trabalhando com Bastide na pesquisa sobre preconceito racial da Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), fato que certamente
pesou na decisão sobre a sucessão, e era segundo assistente de Fernando de Azevedo na
cadeira de sociologia II.
Gilda era a primeira assistente de Bastide, tendo ingressado na cadeira em 1940, e havia
se doutorado em sociologia em 1950. Contra ela pesava sua condição feminina, dada a as-
simetria de gênero vigente a favor dos homens, e por isso suas chances eram reduzidas. Não
seria tão estranha, então, a pretensão eventual de Antonio Candido, esposo de Gilda, de ser
o escolhido, e suas credenciais o habilitavam com folga a pleitear o cargo em disputa. Tanto
quanto Florestan, mas em outras frentes, Candido compartilhara projetos e interesses comuns
com Bastide, sobretudo no plano da sociologia da literatura erudita e popular. Embora não
dispusesse do título de doutor em sociologia, era o único livre-docente entre os três – tal título
era, depois da cátedra, o segundo mais elevado na hierarquia do corpo docente da faculdade,
superado apenas pelo de catedrático.
Decidida a sucessão pela indicação de Florestan por Bastide no fim de 1952, consuma-
va-se também a vitória do sociólogo francês e do polo científico na queda de braço com o
polo institucional representado por Fernando de Azevedo, que teve que aceitar a decisão. A
disputa pela sucessão envolvia, assim, além dos pretendentes diretos ao cargo, os catedráti-
cos, que buscavam controlar esse processo, o que seria a posteriori explicitado por Florestan
em depoimento:

Éramos subordinados e uma espécie de auxiliares que [Fernando de Azevedo] via com muito
egoísmo. Ele não estava lá querendo que fizéssemos carreira. Ele próprio queria fazer nossa car-
reira, queria promover a nossa ascensão no curso, e esta era uma matéria na qual não se podia
mexer. Não posso contar alguns exemplos, para ilustrar, mas ele estava decidido que seríamos

382 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 382-388 maio-agosto 2019
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

professores, e quem nos levaria as cartas seria ele. Quer dizer, absorveu ambições que deveriam
ser nossas e isso, eu notei, chegava até a nos prejudicar, porque, é claro, nem eu nem Antonio
Candido somos pessoas de ambição destituída de valor. Tínhamos um senso de valor e havia
um conflito de geração. Essa relação que ele teve conosco era nitidamente amorosa, mas ao
mesmo tempo era uma relação de posse, que ditaria uma espécie de capacidade dele em decidir
o nosso destino. (1995: 191-192)

Florestan Fernandes faria, em 1953, sua livre-docência, possivelmente para dirimir qual-
quer dúvida na comparação entre as credenciais dos candidatos. Lembramos que De todo
modo, em 27 de novembro de 1952 seria transferidoe (Sacchetta, 1996)
Apesar de não ser possível comprovar a hipótese de que o desvio de rota no doutorado
de Antonio Candido tenha sido afetado por esses acontecimentos, ela ganha força se lembrar-
mos que a decisão se deu no calor da hora, sob a impacto da escolha de Bastide. Isso pode ter
acontecido mesmo que Antonio Candido não tivesse a pretensão explícita de assumir a cátedra
e que sua reação de mudar de objeto, por essa razão, tenha sido inconsciente. Vale lembrar a
continuidade direta que havia entre a tese sobre o cururu e o programa de Bastide, do qual Os
parceiros o afastaria. Além disso, a mudança o aproximaria do debate sobre o desenvolvimento
capitalista, que, desde o pós-guerra e a criação da Comissão Econômica para a América Latina
e o Caribe (Cepal), se constituiu como tema central das ciências sociais em toda a América
Latina. A intenção de se aproximar dessa discussão pode ter sido também uma motivação para
a mudança de objeto. Ao examinar as transformações da sociedade caipira diante do avanço da
economia de mercado, Antonio Candido enfrentou essa questão pelo avesso.
Nos anos seguintes ao doutorado de Antonio Candido (1954) e à nomeação de Florestan
como professor contratado (1955) à frente da cátedra de sociologia I, Fernando de Azevedo
se esforçaria para remediar a situação de Antonio Candido, para quem a posição de assistente
se tornara insuficiente. Esse foi um dos motes das cartas trocadas por Fernando de Azevedo e
Antonio Candido em 1957. Fernando de Azevedo propôs inicialmente a recriação da cadeira
de sociologia da educação,15 que acabou não vingando. Ele enviou a Antonio Candido uma
cópia do documento que redigiu no dia 7 de agosto de 1957, autorizado pelo Conselho do
Departamento de Sociologia e Antropologia, para ser enviado à Congregação da Faculdade.
Tal documento propunha duas medidas a serem tomadas visando à progressão da carreira de
Antonio Candido:

Certamente o nome mais indicado para essa disciplina [Sociologia da Educação], a ser criada, é
o Professor Antonio Candido. Não há, neste Departamento, duas opiniões a respeito. Mas, como
a criação de uma disciplina depende de lei e a marcha de um projeto de estatuto legal, por
maior empenho que se ponha em apressá-la, é sempre um pouco lenta, propõe o Conselho de

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 383-388, maio-agosto 2019 383
William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson

Professores do Departamento 1) a nomeação do Prof. Antonio Candido de Mello e Souza para


professor Cooperador da cadeira de Sociologia II, e 2) simultaneamente, a criação da disciplina
de Sociologia da Educação, para a qual será contratado o referido Professor por proposta deste
Departamento.

Antonio Candido respondeu a Fernando de Azevedo em carta datada de 12 de agosto.


Gostaríamos de destacar três pontos dessa carta. Antonio Candido (1) recusou o cargo de
professor cooperador em função da (2) expectativa de retomar a pesquisa sobre o cururu, que
havia sido interrompida em 1953, o que sabemos hoje que acabou não acontecendo, mas que
reforça a importância que ele atribuía a essa pesquisa, a despeito de ter ou não conhecimento
musical para concluí-la. Por fim, (3) aceitou a possibilidade de assumir a cadeira de sociolo-
gia da educação, o que também não se concretizaria. De qualquer forma, as cartas trocadas
demonstram o empenho de Fernando de Azevedo em solucionar em definitivo a situação
profissional de Antonio Candido, o que viria a acontecer pouco tempo depois.
Tal solução se concretizaria, como se sabe, no início da década de 1960, já com Antonio
Candido afastado da sociologia e lecionando na recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciên-
cias e Letras de Assis. Fernando de Azevedo foi quem articulou, no curso de letras da FFCL-
-USP, a criação de uma nova cátedra, a de teoria geral da literatura – depois teoria literária
e literatura comparada –, segundo consta em carta que enviou a Antonio Candido em 22 de
maio de 1959 (Anexo 1). Se essa interferência foi decisiva à criação da cátedra, não podemos
esquecer que articulações como essa foram frequentes durante a vigência do sistema de
cátedras. Devemos lembrar também que, no mesmo ano de 1959, seria finalmente publicada
A formação da literatura brasileira, que inscreveria seu autor no panteão da história literária
e da crítica brasileira, justificando com sobras sua necessária nomeação como catedrático,
depois de tanta reviravolta.

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Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

Anexo 1

S. Paulo, 22 de maio de 1959

M eu caro Antonio Candido,


Como sabe, por várias vezes tenho me entendido com os professores da Seção de
Letras sobre a criação, na Faculdade, de uma cadeira de Teoria Geral da Literatura. Nas con-
versas que tivemos, declarei expressamente que seria para v. a referida cadeira, cujo primeiro
provimento, em caráter interino, deveria ser por contrato, até a efetivação nos termos das leis
em vigor. Cadeira criada ad hominem. A ideia foi acolhida com a maior simpatia. Todos os
que ouvi; de acordo. Ficaram de ver qual dentre eles devia encarregar-se da elaboração da
proposta que seria apresentada por eles e assinada por todos nós. Mas parece que a iniciativa
não é o forte daquele grupo. Nem a iniciativa nem a rapidez nas decisões. Grupo sem líder...
Cada um fica à espera de que outro dê o primeiro passo.
V. compreende porque preferia que deles partisse a ideia desde a elaboração da pro-
posta. Razões de política interna. Não queria dar-lhes a impressão de invadir território alheio.
Como de lá, porém, estava custando vir a iniciativa, resolvi tomá-la, mas com as cautelas
necessárias. Eu redigiria, como o fiz, a proposição que seria subscrita por eles em primeiro
lugar e, a seguir, por nós do Departamento de Sociologia, pelos professores da Seção de Pe-
dagogia, do Departamento de Filosofia, do de História e pelos demais amigos comuns. Assim
a iniciativa, embora tomada por mim, passaria como da Seção de Letras, que se encarregaria
de apresentar a proposta, incumbindo-nos nós de defendê-la na Congregação. Não desejaria,
porém, dar início ao nosso trabalho sem antes ouvir v. sobre detalhes do texto de anteprojeto
de lei e sobre os termos de sua justificação. É o que submeto ao seu parecer, pedindo-lhe a
crítica e as alterações que julgar convenientes e v. fará, como obséquio especial a mim, com
a maior liberdade e franqueza. Comuniquei somente ao Cruz Costa e ao Ruy Coelho que ia
consultá-lo sobre o documento. Entendem os dois que assim devia agir.
Enquanto não for encaminhado por mim aos professores da Seção de Letras, dele ficam tendo
conhecimento, sob reserva, somente aqueles dois amigos e v. Já estou no fim de minha carreira e
caminhando mais rapidamente do que poderia pensar, para o de minha vida. Mas espero ter antes
a alegria de vê-lo novamente entre nós nesta Faculdade que é sua, e esse que continuará a servir,
com sua capacidade excepcional, ao ensino e à cultura, na especialidade de sua predileção.
Escreva-me logo.
Com um saudoso abraço do sempre seu,
Fernando de Azevedo
Mesma casa
Rua Bragança, 55 – S. Paulo

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William Santana Santos, Max Luiz Gimenes E Luiz Carlos Jackson

Notas
1 Em A sociologia da arte, Nathalie Heinich atribui explicitamente a Roger Bastide o papel de precursor da
“sociologia da arte de pesquisa”, constituída em torno de Pierre Bourdieu, ao mobilizar um “recorte moder-
no” que enfoca relações entre produtores, amadores e instituições, ultrapassando a disjuntiva entre arte e
sociedade, propondo o entendimento da “arte como sociedade” (2008: 63-64).
2 Para uma análise detida das relações entre Roger Bastide e os modernistas, em especial com Mário de
Andrade e Gilberto Freyre, ver Peixoto (2000).
3 Os trabalhos sobre cultura erudita foram realizados sobretudo por homens de origem elevada, ao passo que
os trabalhos sobre cultura popular foram feitos por homens com origem popular/média e mulheres.
4 Sobre o movimento folclorista, ver Vilhena (1997).
5 Sobre a origem familiar de Antonio Candido, ver Ramassote (2013).
6 O nome do grupo derivou da revista Clima, que editaram entre 1941 e 1944. Sobre a revista e o grupo, ver
Pontes (1998).
7 Sobre os dilemas de gênero enfrentados por Gilda de Mello e Souza e suas colegas de geração na FFCL-USP,
ver: Corrêa (1995), Arruda (1995), Pontes (2006), Spirandelli (2011) e Silva (2016).
8 Sobre a crítica de rodapé de Antonio Candido, ver Ramassote (2011) e Rodrigues (2018).
9 Além da tese Os parceiros do Rio Bonito, constituem esse conjunto os trabalhos “Opinião e classes sociais
em Tietê” (1947), “O nobre, contribuição para seu estudo” (1948), “Sociologia, ensino e estudo” (1949), “The
Brazilian Family” (1951), “Euclides da Cunha sociólogo” (1952), “A estrutura da escola” (1953), “Informação
sobre a sociologia em São Paulo” (1954), “A vida familial do caipira” (1954), “Papel do estudo sociológico
da escola na sociologia educacional” (1955), “L’état actuel et les problèmes les plus importants des étu-
des sur les sociétés rurales du Brésil” (1955), “Possíveis raízes indígenas de uma dança popular” (1956) e
“A sociologia no Brasil” (1957).
10 Em Psicanálise do cafuné, no capítulo “Dos duelos de tambores ao desafio brasileiro”, há uma discussão
sobre o processo de individualização que acompanharia essa passagem.
11 A favor dessa hipótese, vale mencionar que Antonio Candido registrou no Anuário da FFCL-USP (1939-
1949), publicado em 1953, que já em 1948 desenvolvia pesquisa sobre “Os meios de vida num grupo rural
do município de Bofete” (1953: 657).
12 Muitas mulheres foram preteridas por homens nas disputas pela cátedra até 1969, quando esse sistema foi
abolido. Pensando na cadeira de antropologia, Mariza Corrêa o qualificou como “patriarcal”: “Sistema hierár-
quico, o de cátedra era também patriarcal: se os titulares da cadeira foram todos homens, as assistentes eram
todas mulheres” (1995: 54). Em relação à FFCL, Maria Arminda do Nascimento Arruda resumiu a participação
das mulheres nos seguintes termos: “No período privilegiado por nós, 1939-1973, término do regime antigo, as
mulheres ganhavam visibilidade crescente, mas não galgavam o nível mais alto da carreira” (1995: 219).
13 É um dado instigante que os primeiros doutorados em sociologia tenham sido concluídos por mulheres.
14 Em carta a Fernando de Azevedo, datada de fevereiro de 1949, Roger Bastide manifesta preocupação com
sua substituição próxima e sinaliza a preferência por Florestan Fernandes. Em cartas posteriores, consultadas
no Arquivo do IEB-USP, o assunto não é mais tratado.
15 Os dois textos de sociologia da educação de Antonio Candido foram publicados em 1953 e 1955.

386 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 386-388 maio-agosto 2019
Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

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388 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 388-388 maio-agosto 2019
Artigo

Sociologias indígenas ioruba: a África,


o desconcerto e ontologias na
sociologia contemporânea1
Yoruba indigenous sociologies: Africa, disconcertment and
ontologies in contemporary sociology
Sociologías indígenas yorubas: África, desconcierto y ontologías
en la sociología contemporánea

Marcelo C. RosaI*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200004

1
Texto originalmente apresentado no 42º Encontro Anual da Assosiação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais (Anpocs). A versão submetida à revista se beneficia dos comentários críticos do Grupo de Trabalho Teoria Social:
Agendas, Desafios e Perspectivas. Agradeço às integrantes do Laboratório de Sociologia Não Exemplar da Universidade
de Brasília (UnB), a Antonádia Borges, por sua atenta leitura, e aos pareceristas anônimos. A pesquisa foi realizada com
recursos do Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
I
Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF, Brasil.

*Professor do Departamento de Sociologia da UnB e pesquisador bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.


(marcelocr@gmail.com). ORCID iD: http://orcid.org/0000-0001-8535-9570

Artigo recebido em 9 de março de 2019 e aceito para publicação em 05 de julho de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 389-408, maio-agosto 2019 389
Marcelo C. Rosa

Resumo
O texto busca reconstruir a história e a recepção internacional do debate africano centrado na noção de sociolo-
gias indígenas, liderado por Akinsola Akiwowo, no âmbito da Associação Internacional de Sociologia. Para além
de reconstituir os passos do próprio autor na construção e na apresentação de seu argumento, busca-se também
reconstruir os sentidos de sua interpretação nas discussões dominantes sobre teoria e geopolítica sociológica. Os
dois principais polos interpretativos seriam a constatação crítica de seu caráter ideográfico e limitado em termos
conceituais, de um lado, e a defesa geopolítica de sua importância por ter origem fora da Euroamérica, de outro.
Nenhuma das tendências considera, porém, o projeto bem-sucedido. Como conclusão, o texto propõe que uma
leitura mais profícua da contribuição das “sociologias indígenas” para a sociologia global se daria por meio de seu
reconhecimento como alternativa teórico-metodológica para a expansão do universo ontológico do pensamento
sociológico contemporâneo.

Palavras-chave: Teoria social; Sociologias indígenas; Teorias do sul, Sociologias do sul; Sociologia africana;
Ioruba.

Abstract

The paper aims to reconstruct the history and international reception of the African debates on the “indigenous
sociologies” lead by Akinsola Akiwowo in the International Sociological Association congresses and publications. The
reconstitution of its reception in the debates framed under the association of theory and geopolitics demonstrate
a polarization between: a) a critical appraisal of the limits of a supposed ideographic conceptual construction; b) a
geopolitical defense of initiative since it was assembled outside de Euro-Americas. Both perspectives though tend
to consider Akiwowo’s project as a failure for different reasons. The conclusion offers an alternative interpretation
of the contribution based on the reading of the project as a theoretical-methodological expansion of the available
ontological universe of the hegemonic sociological thought.

Keywords: Social theory; Indigenous sociologies; Southern Theories, Sociologies of the South; African socio-
logy; Yoruba.

Resumen
El texto busca reconstruir la historia y la recepción internacional del debate africano centrado en la noción de socio-
logías indígenas, liderado por Akinsola Akiwowo, en el marco de la Asociación Internacional de Sociología. Además
de reconstituir los propios pasos del autor en la construcción y presentación de su argumento, también se busca
reconstruir los significados de su interpretación en las discusiones dominantes sobre teoría sociológica y geopolítica.
Los dos polos interpretativos principales serían la observación crítica de su carácter ideográfico y limitada en térmi-
nos conceptuales, por un lado, y la defensa geopolítica de su importancia porque se origina fuera de Euroamérica,
por el otro. Ninguna de las tendencias, sin embargo, considera el proyecto exitoso. Como conclusión, el texto pro-
pone que una lectura más fructífera de la contribución de las “sociologías indígenas” a la sociología global sería a
través de su reconocimiento como una alternativa teórico-metodológica para la expansión del universo ontológico
del pensamiento sociológico contemporáneo.

Palabras clave: Teoría social; Sociologías indígenas; Teorías y sociologías del sur; Sociología africana; Yoruba.

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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea

Introdução

Q uase todos os debates sobre questões emergentes na sociologia contemporânea in-


ternacional ou transnacional citam os trabalhos de Akinsola Akiwowo associados ao
tema das indigenous sociologies (Connell, 2007; Dufoix, 2018; Maia, 2017; Bringel e Do-
mingues, 2017; Keim, 2008; Heilbron, 2014). Provavelmente por terem sido promovidos pela
própria Associação Internacional de Sociologia (ISA), os estudos do sociólogo nigeriano inspi-
rados na poesia oral ioruba se internacionalizaram, tornando-se uma porta de entrada para a
consideração de potencialidades e limites de sociologias feitas nos países do Sul.
A hipótese principal aqui apresentada é a de que críticos e defensores dessa noção, em
sua maior parte e com diferentes gradações, adotaram narrativas que mormente oscilam entre
a constatação crítica de seu caráter ideográfico e limitado (Sztompka, 2011; Archer, 1991;
Connell, 2007), de um lado, e a defesa geopolítica de sua importância por ter origem fora
da Euroamérica (Keim, 2008; Go, 2015; Rosa, 2016), de outro. Os argumentos dessas duas
ordens, segundo a posição aqui defendida, teriam deixado de lado a análise das implicações
ontológicas da contribuição e seus possíveis efeitos epistêmicos (Adesina, 2002) para uma
sociologia global, como procuraremos apresentar na parte final deste artigo.
A estrutura do texto busca combinar a reconstrução da história do debate africano sobre
as sociologias indígenas, de sua recepção, e oferecer uma possível opção para sua interpre-
tação, propondo uma alternativa teórico-metodológica para a expansão do fazer sociológico
contemporâneo com base na reinterpretação do debate.
Na primeira parte, apresento os esforços de Akiwowo no contexto de abertura recente da
sociologia, de modo geral, e da própria ISA, para contribuições não ocidentais ao mundo da
teoria. Tal abertura esteve centrada no uso do dualismo entre os termos indígena e universal,
ou, como fraseado por Adesina (2002), pela pretensão, mutuamente excludente, de uma for-
ma ideográfica – usada de maneira derrogatória – ou nomotética – utilizada de modo positivo
para descrever uma teoria geral – para a produção de conhecimento sobre a vida coletiva.
Na segunda parte, o texto propõe que as classificações das proposições de Akiwowo
foram, no âmbito da ISA, apresentadas e lidas por meio de termos geopolíticos tradicionais,
como ioruba, nigeriana e africana. Nessa seção, demonstro ainda que a recepção e a crítica
internacional produziram mudanças nos próprios argumentos iniciais do autor.
Na terceira parte, chamo a atenção para a leitura hegemônica desses textos como uma
busca por conceitos e definições estáveis e universais que deliberadamente rejeitam o descon-
certo e o desconforto ontológico.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 391-408, maio-agosto 2019 391
Marcelo C. Rosa

Na quarta parte, seguindo os argumentos de Verran (2012), Law e Lin (2017) e De la


Cadena (2015), defendo a postura teórico-metodológica de tomar o desconcerto como ponto
de partida epistemológico para a interpretação deste debate.
O texto se encerra buscando demostrar que os dualismos obliteram uma característica
fundamental dessa contribuição que esteve contida nas proposições ontológicas derivadas
do uso da poesia oral ioruba. Longe de serem só um produto da vida indígena nigeriana, as
questões descritas em seus textos básicos sugerem uma possível forma teórico-metodológi-
ca mais geral: descrever e criar ontologias por meio de princípios desconcertantes e pouco
permanentes, marcados pela multivalêcia e pela contradição coetânea. Diferente da própria
forma como Akiwowo se apresentou durante parte do debate da ISA, sua contribuição talvez
resida menos no conteúdo normativo da vida social e mais no modo inovador de lidar com
propriedades ontológicas fluidas.

Akinsola Akiwowo e a construção de uma reflexão


sobre a sociologia africana

C omo primeiro passo para apresentar este debate, procurarei recuperar as pistas deixa-
das pela obra de Akiwowo para a construção de uma narrativa da sociologia africana
e, posteriormente, ioruba. Os primeiros textos traçáveis do autor para o debate internacional
em inglês datam de década de 1960 e lidam com os dilemas das divisões étnicas e tribais no
Estado nigeriano recém-formado. O texto intitulado “The Sociology of Nigerian Tribalism” soa
como um representante clássico do tipo de intervenção sociológica que poderia ser encontra-
do em diversas partes do chamado sul global naquele momento.
Diante dos desafios locais para pensar a vida coletiva “moderna”, a sociologia clássica
europeia é convocada para fornecer coordenadas espaçotemporais nas quais se poderia clas-
sificar e hierarquizar a existência nacional africana ancorada em questões étnicas:

As there develops a common value system-an overriding national ideology-as jobs, money, and
the means of acquiring them become accessible to all, tribalism, most likely, will give way
to what Emile Durkheim calls the “collective unconscious”, and a National Way of Life.
(Akiwowo, 1964: 163)

No Brasil, com Florestan Fernandes; na Índia, com T. S. Madan; no México, com Gonzá-
lez-Casanova e Stavenhagen; ou na Malásia, com S. H. Alatas, a consolidação do Estado-na-
ção moderno e seu sistema de valores se erguia como problema intelectual dominante nas
ciências sociais naquele período. Nada seria mais adequado do que recorrer aos princípios
analíticos e classificatórios usados nas matrizes coloniais que forjaram sua vida coletiva e

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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea

colonizadora em torno do Estado. Compreendendo a sociologia no esforço universalista de


produção científica da vida comum, não foi estranho para esses autores e para Akiwowo a
fabricação metodológica global de parâmetros comparativos.

Por outro lado, pode ser que os nigerianos se dando conta dos absurdos e do preço alto do
tribalismo busquem melhores soluções por meio da criação de instituições que facilitem a cir-
culação elementos que ocupem os lugares de classe, status e poder, independentemente de sua
religião, clã ou dialeto. (Akiwowo, 1964: 163)

Como apresentado nas passagens selecionadas, o tempo social nigeriano é demarcado


pela presença ou não de certas instituições que incorporam o sentido da existência coletiva
moderna. Nesse movimento, tornou-se comum a pesquisa que investiga a sucessão tempo-
ral de instituições capazes de produzir sentimentos, valores, referências coletivas e relações,
exemplificados aqui no uso do contínuo religião/classe exposto por Akiwowo.
Essas instituições, portadoras dos valores modernos, foram cronologicamente classifica-
dos nas teorias sociológicas hegemônicas e tendem a ser apresentadas de forma sequencial
como um referencial existencial/ontológico global (Archer, 1991; Sztompka, 2011). O centro
analítico, focado na noção de Estado, seria a referência das existências consideradas moder-
nas num mundo descrito como em processo de racionalização e secularização, seja na Europa,
seja na Nigéria. Notemos, por exemplo, que nessas leituras aquilo que a sociologia associa
institucionalmente à religião surge sempre como residual.
Num debate publicado em 1974 sobre as sociologias do terceiro mundo, Akiwowo aponta
para os desafios de introduzir o contexto nacional na própria produção sociológica. Ele traz à
tona o problema de intelectuais estrangeiros serem protagonistas do ensino de sociologia em
seu país e sugere, entre outras coisas, que o valor então pago como salário a um estrangeiro
permitiria a repatriação de dois nigerianos formados na Euroamérica para avançar as ciências
sociais em seu país (Bengolea e Akiwowo, 1974: 417). Nesse debate compartido com intelec-
tuais ocidentais, sugere brevemente uma política em favor da indigenização das ciências sociais.
Em artigo de 1976 em publicação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco), o autor se aproxima outra vez desse debate usando a noção de men-
te cativa em diálogo com texto de Alatas (1974)1 publicado anteriormente no mesmo periódico:

Não existem sinais aparentes para demonstrar que os cientistas sociais africanos, como raras
exceções, deixarão de operar como mentes cativas, ou que as teorias e técnicas do modo de
conhecimento ocidental internalizado por eles será substituído por outros também validos, mas
autenticamente africanos (Akiwowo, 1976: 201)

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Marcelo C. Rosa

No mesmo texto, Akiwowo adverte sobre outro problema. O controle do Estado e seus
burocratas sobre a produção sociológica nas universidades africanas tenderia a postergar in-
definidamente a emergência de uma cultura acadêmica vibrante e independente (Idem: 201).
As contribuições posteriores de Akiwowo seguiram essa tendência, buscando refletir
sobre o papel dos cientistas sociais e da sociologia na Nigéria e em toda a África (1980).
Em capítulo de livro publicado também pela ISA, Akiwowo (1989), utilizando o trabalho do
queniano Ali Mazrui (1978) sobre agenda dos intelectuais africanos, apresenta a definição de
indigenização intelectual como um trabalho para reduzir a estrangeirização de ideias, concei-
tos, teorias e metodologias. Akiwowo defende, no entanto, que a noção deveria ser expandida
para utilizar ideias, valores, conceitos, mitos, história oral e cosmologias com suas sensibilida-
des para experiências sociais africanas no lugar daquelas importadas, mesmo quando estas já
não sejam vistas como estrangeiras pela comunidade acadêmica.
Segundo ele, a contribuição dessas fontes pouco usuais estaria mais próxima daquilo
que Mazrui (1978) denominou em inglês de derationalization, ou seja, o desenvolvimento
de um modo original e específico de embasar, argumentar e explicar fenômenos sociais. Para
Akiwowo (1989), sociólogos africanos deveriam primeiro se apropriar das principais ferramen-
tas da sociologia euro-americana – “endogeneizar”, nas palavras de Hountondji (1997), para
posteriormente desenvolver seu modo próprio de “desracionalizar” o modo hegemônico de
narrar a vida coletiva.
Desracionalizar, em linhas gerais, significaria a possibilidade de estudar e descrever a
vida coletiva fora do padrão lógico argumentativo que orienta a vida ocidental dominante
na sociologia internacional. Nessa proposta, sugerida por Mazrui (1978), a forma narrativa
estaria obrigatoriamente acompanhada da experiência existencial dos sujeitos. Nos termos
do debate contemporâneo, que será trabalhado na parte final deste texto, ela estaria ligada a
uma ontologia específica e a traços que se observam no uso do termo “sociologias indígenas”
como apontado a seguir.

A noção de sociologias indígenas como sinônimo


internacional de africano

P aralelamente aos textos mais gerais sobre o lugar da sociologia na África, podemos
observar, nas publicações traçáveis de Akiwowo no fim da década de 1970, a introdução
do conhecimento ioruba como fonte de inspiração teórico-conceitual. Em artigo que surgiu
primeiro como conferência, em 1979, e publicado em 1983, o nigeriano introduziu na sua
sociologia a análise da poesia oral ioruba/Ifa, que viria a ser o corpus analítico dos textos

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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea

posteriores associados às sociologias indígenas no âmbito internacional. Em outro texto pu-


blicado em 1981, chamado “Ontology of personality and motivation”, identifico pela primeira
vez o uso da noção de ontologia para expandir questões teóricas em termos de uma teoria da
motivação para a ação:

Aparentemente, apesar dos diferentes e intensivos estudos sobre a motivação nas sociedades
ocidentais, nenhuma teoria ou explicação ontológica foi encontrada para responder pelos di-
versos aspectos do tema. E a possibilidade de que esta teoria venha a ser descoberta parece
remota. (Morakinyo e Akiwowo, 1981:31)

Nesse texto, os autores procuraram elaborar uma noção contemporânea de pessoa na


cosmologia ioruba que não operaria pelo dualismo mente/corpo para compreender a agência
dos sujeitos, como nas versões ocidentais da sociologia e da psicologia.
Em suas publicações traçadas na pesquisa, o adjetivo indígena passa a ser sistematica-
mente utilizado quando os escritos passam a ser publicados pela ISA, na esteira do congresso
realizado na Cidade do México em 1982. Naquela edição, Akiwowo apresentou o trabalho
“Universalism versus Indigenization in Sociological Theory”, na seção “Novos desenvolvimen-
tos na teoria social”. Na versão do próprio Akiwowo (1988), que publica a introdução ao
número da International Sociology com tema de indigenization, o congresso no México havia
sido marcado por protestos de estudantes que faziam traduções, sem permissão oficial, do
francês e do inglês – únicas línguas oficiais da ISA na época – para o espanhol mexicano, em
busca da ampliação da própria disciplina.
A partir daquele momento, o esforço de tornar relevantes as contribuições de autores e
autoras de fora da Euroamérica passa a se fazer presente na ISA e se reflete em publicações
e discursos de seus presidentes com diferentes matizes (Archer, 1991 e Sztompka, 2011). É
importante notar que, em 1982, F. H. Cardoso é eleito presidente da ISA e, em 1986, escreve a
Introdução ao primeiro número da revista Internacional Sociology, criada pela instituição para
publicar artigos de pessoas motivadas pelas suas próprias tradicionais nacionais e culturais
(Cardoso, 1986: 1). O que não estava claro naquele momento era o lugar teórico das tradições
culturais e nacionais na sociologia internacional.
Acreditamos que a presença e a promoção de Akiwowo a condição de embaixador afri-
cano no Comitê Executivo da entidade entre 1974 e 1982 tenham levado para dentro da ISA
a ideia de internacionalizar por meio da noção de indigenização.
Se, em 1964, Akiwowo tendeu a encarnar os moldes sociológicos dominantes em seu
tempo para descrever os dilemas nigerianos, uma década depois, o autor, ao se tornar a
principal voz africana na ISA, iniciou a publicação de reflexões sobre possíveis características

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Marcelo C. Rosa

teóricas especiais das sociologias da região. Na passagem abaixo, ele revela desconforto com
uma indesejável dependência conceitual das sociologias africanas e sua posição diante da
produção universalista euro-americana.

Outro fator importante que dificulta a emergência de melhores paradigmas de sociedade na


África é a complete dependência dos sociólogos em geral dos conceitos e categorias desenvol-
vidos para explicar a vida social europeia e americana. Assim estas últimas são tratadas como
instrumentos universais para o conhecimento e explicação da vida social em várias sociedades
africanas (1980: 5)

No mesmo texto, no entanto, como ressaltam Adesina (2002), Lawuwyi e Taiwo (1990)
e Archer (1991), o autor oscila entre encontrar equivalentes dos termos “sociedade”, “grupos
sociais” e “processos sociais” da sociologia ocidental no vernáculo africano e encontrar ele-
mentos próprios que os diferenciariam da matriz ocidental.

Por que não utilizar conceitos africanos de sociedade, grupos sociais, processos sociais e seme-
lhantes, derivados de maneiras africanas de codificar a realidade, para chamar a atenção para
outros elementos característicos na matriz disciplinar da sociologia? (Idem: 6)

Em 1986, o volume 4 do primeiro número da International Sociology traz o texto de Aki-


wowo “Contributions to the Sociology of Knowledge From an African Oral Poetry”. Nele, o autor
deixa de lado a metarreflexão sobre a sociologia na África para introduzir empiricamente a poe-
sia oral ioruba como possível fonte conceitual e elemento de distinção epistemológica: “O artigo
apresenta um numero de proposições indutivamente inferidas da doutrina da criação contida na
poesia oral ioruba como um provável enquadramento teórico para a sociologia” (1986: 344).
De forma inovadora, pela primeira vez uma revista da ISA tinha cerca de metade dos
textos da poesia oral ioruba Ayajo Asuwada traduzidos para o inglês e, ao fim, apresentava
um glossário com 56 termos em ioruba. A inovação da forma e do conteúdo contribui para
o propósito de Akiwowo de criar um provável quadro teórico que fosse mais adequado (no-
motético) para compreender primeiro a vida coletiva ioruba e nigeriana e, depois, questões
consideradas mais gerais: “Proposições que, esperamos, possam estimular o sério interesse,
mesmo que crítico, de cientistas sociais nigerianos, em particular, e de antropólogos e soci-
ológos em geral. (1986: 353).
Para isso, o autor retoma um argumento dos anos 1970 sobre a relevância da tradição
oral no desenvolvimento das ciências sociais na África: “Entretanto, o modo de conhecimento
das ciências sociais e sua difusão não deveriam estar confinados à cultura dos livros. Deveria
ser possível apreender e difundir por meio das tradições orais de aprendizado que necesitam
ser desenvolvidas na África e exportadas par o extrangeiro.” (1979c :19).

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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea

O que pode ser observado é a projeção dos princípios de sociação da poesia ioruba para
a formação conceitual e analítica apropriada para a África nos moldes vernaculares criticados
por Adesina (2002), Lawuwyi e Taiwo (1990) e Archer (1991). Apesar de ter apresentado qua-
tro anos antes um paper com esse nome no México, em nenhum lugar do texto encontramos
o uso do termo “indígena”.2 Somente na Introdução ao número da International Sociology de
1988 é que o termo “indígena”3 aparece e é definido usando uma citação de aula inaugural
por ele proferida em 1978, na Nigéria: “A ideia é que a sociologia possa se beneficiar de ideias
locais contidas na literatura oral africana para atenuar os riscos de depender completamente
de conceitos e hipóteses ocidentais.” (1988:160).
A noção de indigenização, num contexto de descolonização tardio, surge ali próxima
daquela de endogenização desenvolvida posteriormente por Hountoundji (1997) para falar
da dependência teórica africana. Para Akiwowo, indigenizar teria o alcance microteórico que
serviria para explicar a vida coletiva local quanto a fatos sociais, ordem social ou realidades
sociais (Idem). Como descrito, em 1989, num capítulo de livro feito também para a ISA, o
autor se associa a Ali Mazrui (1978) na tentativa de uma definição mais precisa do processo
de indigenização das ciências sociais.
Os textos de 1986 e 1988 foram seguidos por duas críticas feitas por autores nigerianos
trazidas pela própria International Sociology em 1988 e 1990. O ponto central é a própria her-
menêutica da poesia oral segundo diferentes perspectivas na Nigéria. Em termos gerais e ociden-
tais, estabelece-se uma controvérsia sobre termos que orientariam uma relação específica entre
indivíduos e comunidades. Enquanto na versão de 1986 Akiwowo mencionava a necessidade
de princípios explanatórios para lidar com ideias e noções contidas na poesia oral, nas críticas
de Makinde (1988), Lawuwyi e Taiwo (1990) os termos em ioruba são tratados como conceitos.
Ao serem trabalhados nos moldes de conceitos sociológicos, a primeira conclusão é a de
que faltaria precisão aos termos escolhidos por Akiwowo. É na crítica de Lawuyi e Taiwo, que
ataca tanto Akiwowo quanto Makinde – o qual tentou esclarecer alguns termos usados por
Akiwowo –, que reside o tema central que inspira o presente texto. Para os autores, não há
precisão nos termos ioruba usados por Akiwowo, e isso, por definição, os tornaria não univer-
salizáveis no debate sociológico internacional:
“O conhecimento não é apenas um fenomeno transcendente, mas também uma noção
culturalmente delimitada que pode ser inutil para além do youruba ou das sociedades africa-
nas” (Lawuyi e Taiwo 1990: 71).
O problema central dos argumentos apontado pelos colegas nigerianos de Akiwowo foi
sua imprecisão, sobretudo quanto à descrição do princípio do asuwada que teria ao menos

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 397-408, maio-agosto 2019 397
Marcelo C. Rosa

três sentidos diferentes em seus textos. Em resposta publicada na mesma revista em 1991,
Akiwowo adota a noção de conceitos para falar dos termos da poesia ioruba e procura mos-
trar que não haveria tanta imprecisão em partes de seu argumento, pois o objeto seria uma
hermenêutica de poesia oral. Em termos sociológicos mais gerais, o problema de Akiwowo
reside em como tratar com precisão elementos que são constantemente produzidos e repro-
duzidos na oralidade.

Akiwowo se move com a crítica

Q uase uma década depois, um novo texto de Akiwowo na Internacional Sociology reto-
ma o debate com Lawuyi e Taiwo, dessa vez centrando a defesa da pertinência analí-
tica dos termos em ioruba justamente por sua fuzziness. Valendo-se dos argumentos de Bart
Kosko (1993) sobre o fuzzy thinking, Akiwowo passa a defender e a descrever a imprecisão
ontológica como a característica fundamental dos termos ioruba e de sua sociologia indígena.
Não haveria para o autor nigeriano estabilidade espaçotemporal na relação entre formas
de sociação mais individuais e mais comunitárias, aos moldes de Weber ou Durkheim, por
exemplo. Usando o termo consagrado por Fabian (1982), observamos uma aposta já tardia de
Akiwowo na coetaneidade ontológica entre o individual e o comunitário como meio de lidar
com a vida coletiva ioruba, que, nos termos sociológicos ocidentais, é imprecisa.
É possível depreender que o autor ainda busca, contraditoriamente, precisar o princípio
geral do asuwada como algo que poderia ser universalizado para a sociologia global com um
conceito único que abrangeria o coletivo e o individual. Nota-se aqui, mais uma vez, que o
próprio Akiwowo oscilava nos seus argumentos, a depender do debate em que se envolvia
– no âmbito da ISA, da Unesco ou dos debates nigerianos –, e que não conseguiu ir muito
além da armadilha sociológica de provincializar a própria contribuição quando contestado em
nível global.
Ao olhar de fora do debate que termina por desautorizar a noção de sociologia indíge-
na, porém, no texto de 1999 a poesia oral foi de novo por ele mobilizada, a fim de afirmar
dois pontos inovadores: a ambiguidade dos seres e a multivalência das realidades. Usando
de outra narrativa oral ioruba para se engajar com a noção de fuzzines, o autor se alimenta
das propagadas lições do sábio ou sacerdote Orunmila, que distribuía lições morais sobre a
natureza processual, não linear e não rígida da existência ioruba. Aqui vejo pontos nos quais
a teoria social em escala global poderia se inspirar e receber os efeitos deste trabalho com
mais abertura.

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Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea

Asuwada como conceito: a recepção geopolítica da


sociologia estabelecida

C omo ressaltado, as contribuições de Akiwowo oscilam entra o uso da poesia oral ioru-
ba para constituir uma proposta mais radical de independência teórica da sociologia
africana por vias epistemológicas e a busca conceitual por termos locais equivalentes àqueles
consagrados pela sociologia hegemônica ocidental.
No âmbito internacional, as conexões de leitura e recepção de Akiwowo e seus textos, no
universo de uma sociologia que tentava se tornar global a partir dos anos 1980, tiveram como
principal efeito a redução de seus argumentos à noção de asuwada como equivalente de con-
ceito sociológico. Foi apenas sobre a possibilidade de universalização de um termo classificado
geopoliticamente como de origem indígena africana que sua contribuição foi posta à prova. A
iniciativa foi recepcionada na sociologia internacional, na melhor das hipóteses, com uma re-
tórica exotizante e, não por acaso, confinada na armadilha da “sociologia indígena” e cobrada
por não gerar conceitos e teorias gerais. Vejamos, por exemplo, como o trabalho de Connell
(2007: 96) tentou abrir espaço hipotético para as chamadas sociologias do sul na África a
partir dos trabalhos de Akiwowo: “Let’s assume that I am trying to use the asuwada principle
and the concepts of ajobi and ajogbe in my sociological research in Australia” (2007: 96).
Num capítulo inteiro de seu livro para reconstrução do pensamento social africano e
em especial de Akiwowo, a autora vai buscar a precisão conceitual – já criticada por pares
nigerianos nos debates da ISA – que garantiria sua circulação global. O mesmo tipo de leitura,
mas com outro objetivo, pode ser observada na apreciação de Julian Go ao buscar promover
as teorias do Sul e pós-coloniais na teoria social e na sociologia: “O conceito do Asuwada
poderia ser a base para uma sociologia não baseada no ocidente”(2016: 148).
A expectativa de Connell e Go, ao considerar a possibilidade de testar a iniciativa de
Akiwowo como um avanço teórico nos moldes como o centro faz – na própria definição da au-
tora australiana –, era um conceito preciso ou utilizável na pesquisa aplicada, especialmente
em outras partes do sul global – um conceito que gerasse comunicabilidade global que acaba
por não acontecer em nenhuma das recepções aqui descritas.
Reed (2013) interpela criticamente o desenvolvimento do trabalho de Connell (2007) e,
sobretudo, esse modo geral de abordar e interpretar os trabalhos de Akiwowo.

Connell lida com a sociologia Africana a partir de pressuposições extremamente gerais –


pressuposições reminiscentes, ou talvez utilizáveis com contraponto para, os Manuscritos
Econômico-Filosóficos de 1844 que formam a espinha dorsal de tantos cursos de teoria
clássica (2013:165).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 399-408, maio-agosto 2019 399
Marcelo C. Rosa

Para o autor, a expectativa positiva é criada apenas para diálogos no nível de teorias de
longo alcance. Segundo ele, a busca ideal nesses casos deveria estar focada no que Merton
classificou como teorias e conceitos de médio alcance, típicas da sociologia contemporânea.
É preciso lembrar que o próprio autor havia classificado sua intervenção como microteórica
(Akiwowo, 1988:160).
Para a própria Connell, a solução encontrada para os limites das translações conceituais
gerais presentes na noção de asuwada levariam a seu abandono como possibilidade alterna-
tiva: “Eu não estaria assim usando uma sociologia indígena da Nigéria, mas construindo meu
próprio sistema sincrético, o que faria pouco sentido para outras sociólogas tanto na Austrália
quanto na Nigéria” (2007: 96).
Na perspectiva da autora, uma construção teórica com base nas concepções “indíge-
nas” localizadas no tempo, na língua, na experiência e no espaço seria por demais limitada
para compor um panteão teórico da sociologia global, porque encontraria barreiras culturais
demasiado fortes.
Como sugerido na Introdução, em especial entre comentadores não africanos, a presença
de Akiwowo e seus escritos é um gesto diplomático geopolítico no sentido mais tradicional
do termo. Entre entusiastas e céticos, o termo “sociologias indígenas” foi e tem sido utilizado
para demonstrar a capacidade ou a generosidade política de inclusão da África em debates
globais e universais, por isso credencia mais quem o menciona politicamente do que seu autor.
A apropriação de sua pesquisa e seu argumento, no entanto, são apresentados de forma a
não contribuir para a reconsideração da dimensão histórico-espacial disciplinar centrada na
Euroamérica nem para a ampliação de sua política teórica. Eles ocorrem limitados por aquilo
que Keim (2008) chamou de “arena dominante de competição”. Em suma, trata-se de um
argumento que não avança na transformação do espaço ou da política nessa área de conhe-
cimento, como sugere Latour (2016: 16) ao debater os limites da discussão geopolítica nas
ciências sociais.
No âmbito da arena dominante dos debates teóricos, a única porta de entrada aparente-
mente possível seria por meio da introdução de conceitos com muita elasticidade e comunica-
bilidade para considerar desafios empíricos que não tenha um equivalente já estruturado em
nosso corpus teórico disciplinar ocidental. A introdução da poesia oral e da existência instável
ioruba colocam dois elementos distantes demais do centro normal da sociologia global. A
falta de comunicabilidade dos termos ligados ao asuwada contribui, assim, para o desconcerto
da audiência internacional em lidar com uma possível teoria social que seria não facilmente
aplicável na pesquisa empírica.

400 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 400-408 maio-agosto 2019
Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea

O próprio avanço conceitual proposto por Akiwowo (1989) em relação a Mazrui (1978),
de desracionalizar as ciências sociais tendo como base ideias, valores, mitos, história oral e
cosmologias, terminou reduzido apenas à sua dimensão conceitual. Na arena dominante do
debate teórico da sociologia internacional, a qual o próprio Akiwowo e alguns de seus colegas
nigerianos adentraram, não existiu espaço para inclusão significativa da oralidade, valores e
experiências não lineares e racionalizadas nos termos euro-americanos.
Somente em seus leitores mais tardios e baseados no próprio continente, como Adesina
(2002), Omobowale e Akanle (2017) e Ademoyo (2009), é que se vislumbra a inquietação por
aprofundar os desafios epistemológicos presentes na proposta de Akiwowo. Nessa leva mais
recente de intepretação, permanece a crítica ao risco de uma sociologia vernacular apontado
por Archer (1991), mas acompanhado de um claro movimento de ressaltar a dimensão onto-
lógica do contexto da pesquisa: “Há um compromisso ontológico na sociologia do conheci-
mento de Akiwowo que permite a explanação de suas ideias sobre a popósito, a socialidade
humana, natureza e sociedade” (Ademoyo, 2009: 16).
Apropriando-se do termo “intervenção epistêmica”, cunhado por Adesina (2002),
Omobowale e Akanle (2017:49) recuperam o trabalho de Akiwowo procurando demonstrar
que a noção de asuwada se encontra ancorada numa ontologia normativa específica que
condiciona a ação no mundo em parâmetros pouco usuais na sociologia ocidental. Tendo a
ontologia ioruba como base normativa, os textos sobre as sociologia indígenas ensejariam
uma desejada “abertura epistêmica” para outras sociologias africanas e mesmo do sul global.
Tal abertura seria uma alternativa concreta à dependência epistemológica da disciplina em
relação às ontologias euro-americanas.
Enquanto os autores africanos acima buscam retomar essa abertura por uma volta aos
princípios sistêmicos presentes na noção de asuwada, gostaria de sugerir que as saídas en-
contradas no texto de 1999 podem conter outra fonte de ampliação e abertura epistemoló-
gica. Ao ser interpelado a lidar com a noção de fuzzy, Akiwowo introduz com mais clareza
a necessidade de levar em conta na sociologia a importância de lidar epistemologicamente
com ontologias processuais não lineares ou rígidas. O desafio empírico de lidar com trânsitos
ontológicos necessariamente imprecisos entre o bem e o mal, entre as existências físicas e
metafísicas como parte do coletivo que chamamos de social, sugere uma oportunidade inte-
ressante para a disciplina em nível global.
Como ressalta Akiwowo no texto de 1999, a condição ontológica dos objetos e suas
propriedades individuais mudam no decorrer de sua existência e de acordo com os coletivos
nos quais são envolvidos. Sem abrir mão de sua linguagem sistêmica, o autor afirma que elas
se adaptam segundo as mudanças nos propósitos gerais do asuwada.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 401-408, maio-agosto 2019 401
Marcelo C. Rosa

Gostaria de sugerir que, para além de uma definição conceitual do asuwada, o passo
mais importante de Akiwowo foi lidar epistemologicamente com objetos específicos de rea-
lidades nas quais são transformados continuamente. Por meio da incorporação da oralidade,
fonte por demais instável para a sociologia dominante, a transformação ontológica causa
desconforto e desconcerto para a ciência social hegemônica.

Desconcerto na apropriação do debate sobre a


instabilidade ontológica

A noção de desconcerto – disconcertment, em inglês –, da forma como foi apropriada


nos debates da área dos estudos sociais da ciência (STS), fornece boas pistas para
compreender os dilemas da produção e recepção do trabalho de Akiwowo. De modo específi-
co, as contribuições de Verran (1999) e seus desdobramentos nas obras de Law (2004), Law e
Lin (2017) e De la Cadena (2015) avançam na defesa de um lugar epistemológico/metodoló-
gico que considere o desconcerto empírico como um primeiro passo no avanço e na ampliação
do escopo ontológico e, portanto, teórico de nossas disciplinas.
De forma ampla, considero que as experiências desses autores contribuem para a com-
preensão dos limites e dos efeitos que o leque limitado de ontologias (modernas) de que
dispomos têm nos desdobramentos teóricos da sociologia contemporânea. O principal desses
efeitos-limite seria o procedimento de criar e estabelecer hierarquia analítica na descrição de
ontologias significativas. Para aquelas pouco controversas e produzidas como estáveis seria
dedicado o centro, e partir dele seriam inseridas comparativamente ontologias dependentes,
inferiores e imprecisas, seja no ocidente, seja fora dele.
Os trabalhos de Verran (1999, 2001 e 2012) são fundamentais na formulação do
enunciado deste artigo, porque apresentam etnograficamente o encontro entre uma pesqui-
sadora ocidental e seus conceitos com o mundo ontológico ioruba presente na teoria de
Akiwowo. Na Nigéria, ela exerceu a supervisão do ensino de matemática, e com base nessa
experiência descreve o processo de lidar cotidianamente com um método de ensino supervi-
sionado por brancos, mas que lidava com o modo cotidiano e adaptativo ioruba de quantificar.
Em Science and African Logic (Verran, 2001), a própria autora constata sua dificuldade
em lidar, enquanto esteve na Nigéria, na prática do ensino de matemática, com sua própria
experiência desconcertante. Apesar do desconcerto ter sido por ela corporificado, a experiên-
cia em si não teria a princípio resultado na produção teórica sistemática de um modo inovador
de ensino abarcando meios de quantificar ocidentais e ioruba. É com base numa reflexão a
posteriori que encontramos sua invocação para a prática teórica de “cultivating epistemic

402 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 402-408 maio-agosto 2019
Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea

disconcertment” (2012: 143). Ou seja, sua demanda pela incorporação do desconcerto num
momento anterior ou coetâneo da análise.
Em seu livro After Method (2004) e em textos mais recentes escritos com o colega
taiwanês Wen-yuan Lin, John Law sugere que uma possível solução para o dilema descrito por
Verran é tornar a própria experiência empírica desconcertante um ato performativo de teoria.
Cultivar o desconcerto seria uma chave teórico-metodológica para evitar a mera reprodução
das ontologias dominantes na teoria social.

Nós sugerimos que explorar as origens do desconcerto desta forma e os tornar discursivamente
confiáveis, é também performativo. Nossa conclusão é que o cultivo do desconcerto é uma
sensibilidade ou ferramenta crucial que contribui diretamente para irmos além da metafísica,
das subjetividades, e para formas organizacionais menos diretamente institucionais que repro-
duzem as tradições ocidentais hegemônicas de conhecimento (2011: 138)

A noção cunhada por Verran ganha contornos específicos quando se torna parte da
construção de uma narrativa sobre a política da terra nos andes peruanos e do dualismo que
marcou as análises que separaram a política indígena da política camponesa. Em Earth Beings,
De La Cadena (2015) retoma a noção de Verran e acrescenta:

Assim, ao invés de reconhecimento, o desconcerto epistêmico gera perplexidade e tem o po-


tencial para nos fazer pensar desafiadoramente o quê e como conhecemos. Não é raro que
o desconcerto seja minimizado; aquilo que o provocou é considerado negado, tornado banal
ou tolerado como uma crença. Mesmo que estas atitudes não representem uma conspiração
política, elas anunciam uma política ontológica que define o real (ou o possível). (2015: 276).

Para a autora, o ponto central é a pratica de convivência com as ontologias que cau-
sam perplexidade por meio da tolerância à sua existência, sem, no entanto, admitir que tal
existência possa ter implicações sobre o modo pelo qual a sociologia hegemônica entende o
mundo moderno e seus objetos. No caso do Peru, a relação indígena com a terra foi reduzida
aos termos ocidentais da noção campesinato e não teria ampliado o entendimento da relação
entre política e natureza, por exemplo. Assim como o trabalho de Akiwowo que foi limitado
ao asuwada.
Este é ponto central do que eu gostaria de chamar de “política ontológica” hegemôni-
ca na teoria social contemporânea. Uma política que permite a presença do estranho pela
tolerância, como o bom e necessário selvagem, sem que, no entanto, demonstre qualquer
engajamento pelo trabalho teórico-metodológico de sua construção e por sua ampliação do
que seria real ou possível.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 403-408, maio-agosto 2019 403
Marcelo C. Rosa

É justamente essa ampliação, movida pelo desconcerto, que daria lugar à formação por
parte de pesquisadoras/teóricas de terceiras categorias/ontologias multivalentes que não se-
riam simplesmente traduzidas de um lugar a outro. Para evitar a abertura de um debate vazio
sobre o verdadeiro sentido de um termo, De la Cadena se apropria da noção forjada por Vi-
veiros de Castro (2004) de um método de “equivocação controlada” para marcar que desen-
tendimentos e equívocos são a marca das diferenças e das heterogeneidades. A equivocação
seria elemento metodológico central para qualquer análise que tenha como base a oralidade
e suas instabilidades no tempo e no espaço.
Em vez de aceitar tomar a imprecisão e a heterogeneidade como fonte para um debate
sobre os limites ontológicos de conceitos sociológicos, os leitores estabelecidos preferiram
apostar na manutenção da precisão conceitual, construindo um flanco contínuo para a des-
construção de inovações vindas fora da desejada existência moderna homogênea.

Conclusão: desconcerto ontológico como limite


da teoria

C omo apontam num texto recente Omobowale a Akanle (2017), se as tentativas de


Akiwowo não tiveram nenhuma recepção concreta na sociologia internacional que
fosse diferente da exotização, na própria Nigéria elas também não produziram efeitos e sequer
são ensinadas. O ponto levantado pelos autores é muito simples: na Nigéria ou no Brasil, o de-
bate não é tido como teoricamente relevante, “talvez porquê esteja ainda por ser ‘autentica-
do’ ou aceito pela ciência social dominante na academia do mundo desenvolvido” (2017: 45).
Com o tema da autenticação, que, no caso da International Sociology, operou em duas
vias – nacional e internacional –, retomamos a questão geral deste texto. A sociologia global
em seus rincões teóricos preza pela aplicação conceitual e pela precisão de suas definições,
condições básicas para que qualquer estudo tenha comunicabilidade e ingresse no panteão
sem provocar desconcerto e desorientação no seu modo de argumentação.
Os trabalhos sobre as sociologias indígenas lançados internacionalmente pela ISA por
meio das publicações de Akiwowo comungaram dessas premissas e, durante a maior parte
do tempo, procuraram ser aplicáveis e precisos num contexto específico – motivo pelo qual
foi cobrado localmente, na ISA e nos fóruns internacionais. Como o próprio autor enuncia, um
dos dilemas estava em como estabelecer uma relação entre desafios indígenas e universalis-
mo teórico desejado pelo modo argumentativo da arena dominante, enquanto o outro foi a
incorporação da poesia oral como fonte.

404 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 404-408 maio-agosto 2019
Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto
e ontologias na sociologia contemporânea

Um ponto importante é que a literatura tem chamado de limites do universalismo apon-


tando para as escassas condições de comunicabilidade existencial como fonte primária do
desconcerto. O que procuro sustentar é que persiste um dilema sobre as ontologias – do meu
ponto de vista limitadas ao ocidente – nas quais deve se assentar a disciplina. O processo de
produção e circulação que consagrou certos autores e teorias como hegemônicos impele ao
bloqueio da comunicação bidirecional e à promoção de novas ontologias como ampliação de
nosso escopo analítico.
As ontologias indígenas ou não hegemônicas são produzidas como irrelevantes porque
seus efeitos na intepretação da orientação da ação no mundo moderno são considerados
também irrelevantes para quem produz teoria contemporânea. Uma boa parte da teoria que
lemos e produzimos não se submete ao desconcerto ontológico, porque não encontra, teórica
e empiricamente, outros mundos vividos que não sejam “modernos”. Como tenho ouvido em
alguns debates, nós, sociólogos, seríamos todos ocidentais/modernos, por isso nos interessaria
descrever os efeitos deste mundo.
Discordando desse tipo de argumento, este texto tem posição próxima àquela de Go
quando afirma que o projeto das sociologias indígenas “não é somente pela inclusão; por so-
mente ampliar o escopo. É sobre diálogo, se não substituição ou trasncendência” (2015:149).
Em termos da análise específica, defendo que o universalizável para a sociologia não
seria algo como o princípio conceitual do asuwada – se fosse feito aplicável –, mas a inovação
em considerar a instabilidade ontológica da oralidade como princípio metodológico organiza-
dor da teoria social. Mesmo que Akiwowo tenha tido que recorrer aos termos de Kosko para
dar legitimidade a seu texto, é na sua descrição da poesia oral ioruba que residiria sua inter-
venção epistêmica. A depender do contexto, da situação e das crenças de quem as descreve,
uma existência pode ganhar e perder propriedades que a tornem inclusive contraditória. Mais
do que o conceito em si, é a possibilidade epistemológica e metodológica de lidar com a mul-
tivalência e o trânsito processual ontológico que torna a proposta das sociologias indígenas
relevantes num projeto global de expansão.
A expansão ontológica, nos moldes sugeridos por Cadena (2015), contribuiria justamente
para aquilo que Adesina (2002) chamou de intervenção epistêmica. Voltando aos termos de Ma-
zrui (1978), citados por Akiwowo, a introdução de novas formas de existência em transformação
e contínua equivocação implicaria, por definição, o desenvolvimento de um modo original de des-
crever e organizar o mundo social. Avançando no diálogo entre essas duas tradições, a desracio-
nalização seria, no contexto da sociologia ioruba, o desenvolvimento de mode of gathering (Law,
2004) inovador que desafie os conjuntos ou os coletivos dos quais a sociologia atualmente dispõe.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 405-408, maio-agosto 2019 405
Marcelo C. Rosa

Para encerrar, defendo aqui a posição de que o desconcerto ontológico exemplificado


pelos usos e pelas leituras das sociologias indígenas não deve ser lido somente por sua apli-
cabilidade local, mas justamente pelo que ele poderia afetar nos desenvolvimentos futuros da
teoria sociológica. Longe de ser o único modo de fazer ciências sociais, cultivar o desconcerto
(Verran, 2012: 143) pode ser um caminho interessante para a produção ampliada de teoria
num mundo que conhecemos ainda muito pouco.

Notas

1 “O que acontece é um mero transplante do pensar. Novamente, eu não sugiro uma simples adaptação
simples de técnicas e metodologias, mas do aparato conceitual, dos sistemas de análise e da seleção dos
problemas” (Alatas, 1974: 695).
2 É importante notar que no número do International Social Science Journal de 1976, no qual figura um dos
textos de Akiwowo, outro autor nigeriano já utilizava os termos indigenous e indigenization.
3 No texto de 1989, Akiwowo cita um manuscrito não publicado de 1985 intitulado “Indigenous and universal
perspectives in theoretical sociology”.

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408 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 408-408 maio-agosto 2019
Artigo

Ciências sociais, diplomacia e


colonialismo tardio: a participação
portuguesa na Comissão de Cooperação
Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)
Social sciences, diplomacy and late colonialism: the Portuguese
participation in the Commission for Technical Co-operation in
Africa South of the Sahara (CCTA)
Ciencias sociales, diplomacia y colonialismo tardío: la
participación portuguesa en la Comisión de Cooperación
Técnica en África al Sur del Sahara (CCTA)

Frederico ÁgoasI*
Cláudia CasteloII*
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200005

Parte da pesquisa conduzida pelo autor para a elaboração deste artigo se beneficiou de uma bolsa de pós-doutorado da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).
I Universidade Nova de Lisboa – Lisboa, Portugal.
* Pesquisador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa (Cics-Nova-FCSH). (fagoas@fcsh.unl.pt). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7045-7688.
Parte da pesquisa conduzida por esta autora para a elaboração deste artigo foi cofinanciada pelo Fundo Europeu de
Desenvolvimento Regional (Feder), por meio do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (Compete)
2020, e pela FCT, no âmbito do projeto “Os mundos do (sub)desenvolvimento: processos e legados do império colonial
português em perspectiva comparada (1945-1975)”.
II
Universidade de Coimbra (CES-UC). Coimbra, Portugal.
* Pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC). (claudiacastelo@ces.uc.pt)
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001-7403-4404.

Artigo recebido em 10 de março de 2019 e aceito para publicação em 17 de junho de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 409-428, maio-agosto 2019 409
Frederico Ágoas e Cláudia Castelo

Resumo
Instituída no segundo pós-guerra, num contexto de crescente contestação ao colonialismo e como resposta das
potências coloniais europeias ao interesse científico das Nações Unidas e de círculos académicos norte-americanos
pela África, a Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA) revelou uma atenção particular
aos estudos sociais, estabelecendo uma agenda de pesquisas paralela à da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Com base nos arquivos diplomático e científico colonial, o artigo analisa
a atividade da CCTA naquele domínio e, sobretudo, a participação portuguesa nessas dinâmicas, determinando a
importância relativa do país na sua promoção e seus reflexos no campo das ciências sociais em Portugal..

Palavras-chave: Sociologia; Colonialismo; Portugal; CCTA; Unesco.

Abstract

Established in the second post-war period, in a context of growing opposition to colonialism and as a response of
the European colonial powers to the scientific interest of the United Nations and North-American academic circles
in Africa, the Commission for Technical Co-operation in Africa South of the Sahara (CCTA) paid particular attention
to social studies, establishing a research agenda parallel to that of the United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization (UNESCO). Based on the diplomatic and scientific colonial archives, the article analyzes the
activity of the CCTA in that domain and, above all, the Portuguese participation in these dynamics, determining the
relative importance of the country in their promotion and their reflexes in the field of social sciences in Portugal.

Keywords: Sociology; Colonialism; Portugal; CCTA; Unesco.

Resumen
En la segunda posguerra, en un contexto de creciente contestación al colonialismo y como respuesta de las poten-
cias coloniales europeas al interés científico de las Naciones Unidas y de círculos académicos norteamericanos por
África, la Comisión de Cooperación Técnica en África al Sur de Sahara (CCTA) reveló una atención particular a los
estudios sociales, estableciendo una agenda de investigaciones paralela a la de la Organización de las Naciones
Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (Unesco). Sobre la base de los archivos diplomáticos y científicos
colonial, el artículo analiza la actividad de la CCTA en ese dominio, y sobre todo la participación portuguesa en esta
dinámica, determinando la importancia relativa del país en su promoción y sus efectos en el ámbito de las ciencias
sociales en Portugal.

Palabras clave: Sociología; Colonialismo; Portugal; ACTC; Unesco.

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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)

Introdução

E m Portugal, a incorporação simultânea das ciências sociais na investigação científica e


no ensino superior coloniais remonta a meados da década de 1950, quando nesses do-
mínios vigoravam ainda os estudos jurídicos e a antropologia física. Cientes da ocorrência
pontual daqueles saberes em algumas instituições imperiais, ao longo da primeira metade
do século XX, ou do desenvolvimento precoce da investigação social numa das ex-colônias
portuguesas, a que nos referiremos adiante, queremos aqui destacar que é no decurso de
apenas dois anos são criadas as primeiras cadeiras de sociologia (1955) e de antropologia
cultural (1956) no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (Iseu), em Lisboa, e lançadas em
território africano as primeiras missões científico-sociais (1957) do Centro de Estudos Políticos
e Sociais (Ceps) da Junta de Investigações do Ultramar (JIU). No primeiro caso, trata-se da
instituição responsável pela formação dos funcionários administrativos do império colonial
português. No segundo, trata-se de um centro de pesquisas dependente do organismo central
coordenador da investigação científica nas colônias.
As missões do Ceps se ocupariam de temas como minorias étnicas do ultramar por-
tuguês, movimentos associativos na África, estudo da atração das grandes cidades e do
bem-estar rural, entre outros. Criado em 1956 para organizar essas tarefas, o Ceps seria
dirigido por um professor do Iseu, o qual passaria a assumir também a direção do próprio
instituto dois anos mais tarde. Aqui, as inovações curriculares referidas ganhariam corpo
com a reforma a que essa escola de quadros do Ministério do Ultramar seria submetida em
1961, passando a contar com cadeiras como metodologia das ciências sociais e sociologia
da informação, ou com um seminário de investigação sociológica, para além de introdução
à sociologia, que se tornava fixa – depois de ter sido incorporada como cadeira variável – e
de antropologia cultural, que prosseguia no elenco. No ano seguinte, os dois movimentos
culminariam na mudança do nome da escola, que passaria a se chamar Instituto Superior de
Ciências Sociais e Política Ultramarina.
No que toca à pesquisa científica, em particular, essas transformações começariam por
ser atribuídas à iniciativa individual de alguns dos protagonistas do processo (Pélissier, 1980:
33), para serem depois tratadas como subprodutos ideológicos da reação política dos altos
quadros coloniais à transformação do contexto geopolítico após a Segunda Guerra Mundial
(Gallo, 1988; Margarido, 1975). De forma mais ampla, o conjunto das inovações mencionadas
seria, entretanto, reportado a uma mudança de paradigma no domínio científico em questão
(Pereira, 2005) e à racionalização progressiva da administração colonial (Abrantes, 2012), na
qual podem de fato ser integradas a publicação do plano de “Ocupação científica do ultramar

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 411-428, maio-agosto 2019 411
Frederico Ágoas e Cláudia Castelo

português” pelo Ministério das Colônias, em 1945, e a reforma curricular da Escola Superior
Colonial (designação original do Iseu), em 1946. Em outro nível, as mesmas mudanças foram
ainda associadas ao crescente envolvimento dos professores do Iseu em fóruns coloniais de
cooperação científica – em especial na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do
Saara (CCTA), criada em 1950 pelas principais potências colonizadoras (Castelo, 2012) – e aos
apelos dos quadros coloniais ativos ou em formação a respeito da sua preparação científica
para governar e, no longo prazo, do seu estatuto profissional (Ágoas, 2012).
Com base nesse conjunto de pistas, que não se contradizem entre si, e assumindo a
transição paradigmática referida e a racionalização gradual do aparato governativo da ad-
ministração colonial (metropolitano e local), o presente artigo pretende aprofundar o estudo
da participação portuguesa na CCTA e da sua importância no desenvolvimento das ciências
sociais coloniais, a partir de 1950, no quadro de outras dinâmicas epistêmicas e institucionais
então em curso no mesmo domínio.
À margem das referências citadas, que tratam o assunto de forma exploratória, a
bibliografia sobre o tópico é praticamente inexistente. No seu livro mais recente, Valentim
Alexandre (2017) aborda a iniciativa diplomática que conduziu à participação de Portugal na
CCTA e o advento da investigação social portuguesa em meados da década de 1950, atri-
buídos aos mesmos motivos político-ideológicos e, mais especificamente, à defesa do império
colonial português.
Na historiografia internacional, o organismo tem sido quase sempre ignorado ou, quan-
do muito, apresentado como uma iniciativa duplamente falha, nos seus intentos técnicos e
políticos (Kent, 1992). Não obstante, a pesquisa por nós conduzida no Arquivo Histórico Di-
plomático e no Arquivo da Comissão Executiva da JIU permite especificar alguns dos motivos
políticos que deram corpo à CCTA – eles próprios relacionados ao avanço da investigação
social na África por parte de terceiros – e avaliar a importância dos mesmos motivos e das
recomendações emanadas daquele organismo no desenvolvimento das ciências sociais portu-
guesas no quadro da investigação colonial.
Em contrapartida, a mesma investigação permite ainda sugerir, de forma lateral, que a
participação portuguesa nesse fórum, em particular no que diz respeito à cooperação em maté-
ria de ciências sociais, assenta em iniciativas prévias de natureza análoga conduzidas de manei-
ra relativamente precoce na antiga Guiné Portuguesa e apontar alguns efeitos epistêmicos que
a cooperação internacional implicou no desenvolvimento das ciências humanas em Portugal.
De modo mais geral, o presente artigo visa ainda contribuir para discussões atualmente
em curso acerca da relação entre as ciências sociais e o colonialismo tardio. Da perspectiva

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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)

do processo de construção imperial, trata-se de perseguir a pista lançada pelo historiador


Frederick Cooper (2004) a respeito do papel das ciências sociais na elaboração de políticas de-
senvolvimentistas dirigidas às colônias no segundo pós-guerra, com base nos casos britânico e
francês. O caráter repressivo do desenvolvimentismo colonial português (Jerónimo, 2015) não
permite analogias diretas, mas está ainda por explorar a real importância da sociologia e da
antropologia no desenho das políticas coloniais durante o mesmo período. O presente artigo
não pode corresponder a esse desígnio, mas uma investigação nessa área deverá atender
necessariamente à ação da CCTA e de outras iniciativas similares. O mesmo se aplica quanto
à obtenção de um quadro geral e definitivo sobre tal questão.
Do ponto de vista da história das ciências sociais, trata-se de assumir a proposta do
sociólogo George Steinmetz (2017) para explorar o passado colonial da sociologia, na senda
da já longa tradição de estudos de antropologia acerca das relações dessa disciplina com o
colonialismo. Se essa última linhagem tem clara expressão em Portugal (Roque, 2001; Pereira,
2005), no caso da sociologia o tópico só foi abordado de forma preliminar e sem atender às
comunidades epistêmicas internacionais de cariz colonial que cultivaram esse saber (Ágoas,
2012). Em contrapartida, a primeira tentativa de integrar o desenvolvimento histórico da disci-
plina em Portugal no quadro de uma história global da sociologia não faz caso da sua vertente
imperial (Silva, 2016). Por fim, uma visão de conjunto da sociologia colonial europeia em
meados do século XX não pode permanecer restrita aos casos britânico e francês, como até
aqui, e deve integrar o caso de Portugal, tanto mais tendo em conta suas especificidades, em
particular a natureza autoritária do Estado Novo português (1933-1974).
No que se segue, começaremos por relatar, na primeira seção do texto, o processo de
criação da CCTA – ele próprio largamente por explorar, como dissemos – no quadro de outras
iniciativas análogas e concorrentes, para sublinhar depois, na segunda seção, a importância
relativa da cooperação em matéria de ciências sociais no âmbito daquela organização e o
papel específico – e destacado, diga-se desde já – de Portugal na sua promoção. Por fim, na
terceira seção recuperamos os contornos mais salientes da Conferência Interafricana de Ciên-
cias Sociais realizada em Bukavu, em 1955, como mais alta expressão da cooperação colonial
nesse domínio, para dar conta das recomendações daí emanadas em matéria de pesquisa
científica e relatar os ecos que tiveram em Portugal. Na conclusão, fazemos um breve balanço
da participação portuguesa nesse organismo e apontamos suas consequências institucionais
e epistêmicas sobre esse domínio específico, no quadro de outras iniciativas à época em curso
no campo da investigação social colonial.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 413-428, maio-agosto 2019 413
Frederico Ágoas e Cláudia Castelo

A cooperação técnica interafricana no pós-guerra

C riada em 18 de janeiro de 1954, a CCTA reunia os governos de Bélgica, França, Portugal,


da então recém-criada Federação da Rodésia e da Niassalândia, de Reino Unido e União
da África do Sul. O acordo assinado em Londres formalizava a constituição e as regras de ativi-
dade da comissão, que já funcionava desde janeiro de 1950 e tinha antecedentes no imediato
pós-guerra. Fruto da emergência de um “sentimento de comunidade de interesses” entre potên-
cias coloniais conscientes das ameaças externas e internas ao colonialismo (Vigier, 1954: 335),
o primeiro acordo franco-britânico de cooperação na África remontava a novembro de 1945.
Ao contrário dos modelos político-administrativos e dos interesses econômicos, as ques-
tões de natureza técnica para a resolução de problemas comuns viabilizavam o entendimento
entre os dois governos, que promoveriam nos anos seguintes várias conferências interterri-
toriais na África subsariana, nomeadamente sobre gado e medicina, e apelariam à participa-
ção de outros estados presentes na região. Esse processo de alargamento não foi isento de
tensões e negociações entre os dois parceiros iniciais e no interior de cada governo. Sabe-se,
por exemplo, que a inclusão de Portugal foi discutida pelos britânicos, sendo o Foreign Office
favorável, pois estava interessado na manutenção de boas relações com o velho aliado, e
o Colonial Office contrário, em razão do fraco desenvolvimento das colônias portuguesas e
do não reconhecimento de direitos políticos e sociais às suas populações africanas (Oliveira,
2007: 67-68). Já a inclusão da Bélgica foi mais pacífica, e, em fevereiro de 1947, ocorreram
conversações tripartites para a organização de conferências de cooperação técnica na África.
O memorando das conversações anglo-franco-belgas deixa claro o objetivo não declarado
publicamente: fazer face às iniciativas tomadas, em fins de 1946, pela Assembleia Geral das
Nações Unidas, que previam a realização de conferências dos povos dos territórios não autô-
nomos, bem como evitar a ingerência na gestão colonial do Comitê ad hoc então criado (Ale-
xandre, 2017: 95). Em 1948, na conferência interafricana sobre as tripanossomíases, quase
todos os países subsaarianos estiveram presentes.
Paralelamente, cientistas que trabalhavam na África, reunidos na Conferência Científi-
ca do Império organizada em 1946 pela Royal Society de Londres, também reconheceram
a necessidade de estabelecer um quadro de cooperação regional. Em 1949, essa vontade
conduziu à realização da Conferência Científica Africana, em Joanesburgo, com a presença de
pesquisadores que desenvolviam sua atividade em quase todos os territórios subsaarianos. Na
sequência dessa reunião e por acordo mútuo dos governos de Bélgica, França, Portugal, Reino
Unido, Rodésia do Sul e União da África do Sul, nascia, em novembro de 1950, o Conselho
Científico para a África ao Sul do Saara (CSA).

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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)

O conselho se constituiria como órgão independente de aconselhamento científico da


CCTA, a fim de favorecer a aplicação da ciência à solução dos problemas africanos. Seus
membros eram cientistas reconhecidos, escolhidos de maneira a que as principais disciplinas
científicas consideradas relevantes para o estágio de desenvolvimento da África tivessem a
devida expressão, e garantindo uma representatividade geográfica dos vários países da região.
Formalmente, pelo menos, os especialistas deveriam ser independentes dos respectivos gover-
nos, respondendo individualmente perante o conselho. O secretariado do CSA ficou instalado
em Bukavu, no Congo belga. Até sua fusão com o secretariado da CCTA, em janeiro de 1955,
seu secretário-geral foi Edgar Barton Worthington, zoólogo britânico que tinha colaborado
com o African Survey dirigido por Lord Hailey na década de 1930. Por incumbência do secre-
tariado conjunto, Worthington ficaria responsável pelo estudo Science in the Development of
Africa, publicado em 1958.
A CCTA foi, desde o início, entendida pelos membros fundadores como uma resposta ao
interesse crescente da administração norte-americana, das Organizações das Nações Unidas
(ONU) e de suas agências especializadas nos aspectos técnicos do desenvolvimento da África
– como a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a Organi-
zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Organização
Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) –, assim como uma
forma de as administrações coloniais se imporem como únicas e legítimas interlocutoras junto
daquelas, neutralizando qualquer desafio à sua autoridade (Kent, 1992; Oliveira, 2007: 72).
A promoção da cooperação técnica interafricana e a formação de uma frente unida contra as
pressões anticoloniais na ONU foram, portanto, agendas interligadas (Pearson-Patel, 2015:
216). Não obstante, e apesar das críticas às suas motivações políticas (Gruhn, 1971: 459-
460), a CCTA não foi um organismo monolítico. As discussões internas no seio da comissão
revelavam divergências entre a Grã-Bretanha e a França (Kent, 1992; Pearson-Patel, 2015).
A primeira pretendia aproveitar a assistência das organizações internacionais, mantendo-a
sob controle das potências soberanas na região; a segunda desejava que a CCTA fosse uma
barreira institucional efetiva ao contato direto das agências da ONU com as administrações
coloniais. Faltam estudos que foquem ou elucidem melhor a posição dos outros países-mem-
bros e que mostrem a CCTA na sua diversidade interna, e não apenas no confronto bilateral.
Antes de sua constituição formal, em 1954, a CCTA realizou diversas reuniões prelimina-
res em Londres, Lisboa, Bruxelas, Cidade do Cabo e Paris. Em 1952, o secretariado permanen-
te foi estabelecido em Londres. O primeiro secretário-geral foi o diplomata francês Paul-Marc
Henry, a quem coube um papel de destaque no período de formação da comissão. De acordo

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Frederico Ágoas e Cláudia Castelo

com seus próprios documentos, a CCTA se assumia como um organismo intergovernamental


cujo objetivo era disseminar o conhecimento científico e técnico na África subsaariana. Suas
funções consistiam em promover a ação conjunta e facilitar a assistência técnica com o intuito
de beneficiar todos os povos do subcontinente (CCTA, 1961:1).
Concretamente, competia-lhe: recomendar aos governos membros medidas para alcan-
çar essa cooperação; convocar as conferências técnicas decididas pelos governos membros;
supervisionar, do ponto de vista financeiro e geral, o trabalho das organizações colocadas sob
sua alçada; fazer recomendações aos governos membros para o estabelecimento de novas
organizações ou a revisão de disposições existentes para a cooperação técnica no quadro
da competência territorial da CCTA; fazer recomendações aos governos membros com vista
à formulação de solicitações conjuntas de assistência técnica a organizações internacionais;
aconselhar sobre todas as questões respeitantes à cooperação técnica que lhe fossem apre-
sentadas pelos governos membros. Seu orçamento resultava das contribuições de cada uma
das partes. Em termos de organização, a CCTA se reunia pelo menos uma vez por ano. Suas
recomendações e conclusões eram submetidas aos executivos nacionais por aprovação unâni-
me e para implementação nos territórios em causa. Gabinetes e comitês técnicos tratavam de
aspectos particulares da cooperação regional e interterritorial na África subsaariana. A partir
de 1955, o secretariado conjunto da CCTA e do CSA dispunha de uma sede em Londres e
outra em Bukavu, sendo dirigido por um único secretário-geral, assistido ali por um secretário-
-geral adjunto e aqui por um secretário científico (CCTA, 1956).
Ao longo da década de 1950, e para além das sessões anuais realizadas sobretudo na
Europa (Londres, 1954; Paris, 1955; Salisbury, 1956; Lisboa, 1957), a CCTA organizou diversas
conferências técnico-científicas na África, sobre assuntos específicos, como condições laborais,
bem-estar rural ou educação, e estabeleceu comitês regulares sobre tópicos científicos e técni-
cos, como cartografia, estatística, habitação, hidrologia, nutrição, entre outros. No âmbito do
CCTA, foram criados gabinetes interafricanos sobre solos e economia rural, epizootias, mosca
tsé-tsé e tripanossomíase, o instituto interafricano de trabalho – em competição com a OIT – e
o serviço pedológico interafricano, todos com sede na África – exceto o primeiro, instalado em
Paris. Estabeleceram-se ainda painéis de correspondentes em diversos domínios, como con-
servação da natureza, estradas ou geologia, e foram lançados projetos conjuntos, financiados
por um fundo comum para a pesquisa, o primeiro dos quais o atlas climatológico da África,
seguindo-se outros sobre migrações na África ocidental, absentismo e produtividade laboral,
contabilidade nacional na África, controle da peste bovina, entre outros.
Em 1957, Henry deu lugar a Claude Cheysson, também indicado pelos franceses. No
ano seguinte, foi criada, no âmbito da CCTA, a Fundação para a Assistência Mútua na África

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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)

ao Sul do Saara (Fama), como instrumento de intervenção técnica. Em 1959, a sede transitou
de Londres para Lagos, na Nigéria. A vaga de independências na África negra e a entrada
dos novos estados independentes na CCTA tiveram como consequência a africanização da
comissão, que perdeu, assim, o caráter inicial de “clube colonial” (Vigier, 1954: 349). Gana foi
o primeiro estado-membro africano negro a se tornar parte da comissão (1957), seguida por
Libéria (1958), Guiné (1959), Camarões (1960) e 17 outros países, em 1961.
A África do Sul, cuja política de discriminação racial e supremacia branca chocava fron-
talmente com os novos estados independentes, foi persuadida pelo secretário-geral Cheysson
a abandonar a CCTA às vésperas da 17ª sessão, realizada em Abidjan, em 1962. A Rodésia a
acompanhou. Portugal, por sua vez, viu seus delegados impedidos de participarem da sessão.
Assim, ficou decidido abandonar a designação “ao sul do Saara” e convidar os países do norte
do continente a se associarem, enquanto França, Bélgica e Reino Unidos passariam a mem-
bros assistentes. Cheysson pediu demissão do cargo, considerando que se devia nomear um
secretário-geral africano. A passagem de testemunho para Mamoud Touré não foi fácil, dadas
as rivalidades entre os vários países recém-entrados na CCTA. Em 1964, a comissão seria
integrada na Organização da Unidade Africana (OUA), criada em 1963, sendo-lhe atribuída
uma nova designação: comissão científica, técnica e de investigação. 

O lugar das ciências sociais na CCTA

E mbora a CCTA tenha coordenado atividades em diversas áreas do conhecimento, desde


cedo se mostrou particularmente interessada nas ciências sociais e na promoção de es-
tudos sobre trabalho, bem-estar rural, delinquência juvenil, habitação, migrações e educação.
A vertente social de sua agenda de pesquisa deve ser entendida no contexto da crise dos
impérios coloniais e de sua tentativa de relegitimação por meio de programas estatais de
desenvolvimento destinados a elevar o nível de vida das populações colonizadas, bem como
da internacionalização do desenvolvimento (Cooper e Packard, 1997: 7-9) e da rivalidade e
competição com a Unesco.
No início da década de 1950, era já evidente que esse órgão estava empenhado no es-
tudo das questões sociais na África. Em 1950, o departamento de ciências sociais da Unesco
contatou o Instituto Internacional Africano (IAI), de Londres, para levar a cabo uma investi-
gação sobre os efeitos sociais da industrialização naquele continente. O trabalho de campo,
coordenado pelo diretor do IAI e professor de antropologia da Universidade de Londres Daryll
Forde, se deu em Stanleyville, no Congo belga (The International African Institute, 1956). Além
disso, pelo menos desde 1952, a Unesco projetava a realização de uma conferência sobre as

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Frederico Ágoas e Cláudia Castelo

consequências sociais da industrialização e da urbanização entre as populações africanas, a


ter lugar na África. Franklin Frazier, sociólogo norte-americano e chefe da divisão de ciências
sociais aplicadas do departamento de Ciências Sociais da Unesco, lançaria, entretanto, a con-
vocatória da conferência que viria a ocorrer em Abidjan, entre 29 de setembro e 27 de outubro
de 1954. A CCTA considerava que aquelas diligências, feitas à sua revelia, fragilizavam sua
posição e pretendiam retirar crédito às suas iniciativas de cooperação entre os territórios da
África subsariana.
No fim de 1952, em visita à sede da Unesco, em Paris, o secretário-geral da CCTA pôde
comprovar que a agência da ONU não estava disposta a abdicar da própria agenda de pesqui-
sa social em relação à África.1 Um ano volvido, era já claro que, além de não aceitar a exclusiva
competência da CCTA na região, pretendia criar-lhe embaraços com o objetivo de destruí-la;
pelo menos para o governo português, que há muito procurava convencer – sem sucesso –
ingleses, franceses e belgas que era impossível colaborar com a Unesco.2
É neste contexto que, em fevereiro e março de 1953, se realiza em Kampala uma primei-
ra reunião de especialistas encarregados de planejar a investigação social na África. A pro-
posta ali avançada de vir a criar um correspondente científico interafricano naquele domínio
foi discutida na reunião de trabalho conjunta da CCTA e do CSA, em março de 1953, e na
oitava sessão da CCTA, que solicitou ao CSA que formulasse uma proposta mais específica.3
Na sua quarta sessão, realizada em Tananarive, o CSA propôs que a ligação interafricana para
a pesquisa social se apoiasse apenas na nomeação por cada governo membro da CCTA de um
ou mais agentes de ligação e na organização de um sistema de correspondência e troca de
informação por intermédio do secretariado do CSA, formando uma comissão. Entre os projetos
comuns de pesquisa social a desenvolver, apontavam-se, desde logo, o estudo do crescimento
da população em função dos recursos naturais e a análise dos problemas urbanos, em relação
com os novos grupos sociais e sua forma de governo, ou dos diferentes modelos de cidades e
vilas africanas, em função da evolução social.
No que se refere à conferência que a Unesco projetava, o conselho a considerava uma
duplicação das atividades programadas pela CCTA e não mostrou qualquer abertura para uma
colaboração entre as duas organizações. De fato, a CCTA só aceitaria enviar um observador. A
França, que fora abordada para acolher a conferência da Unesco num dos seus territórios na
África, deixou claro que só em 1954 ela poderia ocorrer. O CSA mostrava também preocupação
face ao interesse na África expresso por círculos acadêmicos norte-americanos, sobretudo
nos campos de antropologia e sociologia. Convidado a assistir à conferência organizada pela
Universidade de Princeton sobre a pesquisa regional na África, sob os auspícios da Fundação

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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)

Carnegie, de 14 a 16 de outubro de 1953, o secretário-geral da CCTA pôde sossegar os


governos signatários relativamente à postura dos círculos acadêmicos norte-americanos. O
movimento de curiosidade em volta dos problemas sociológicos africanos, que abrangia uni-
versidades, fundações privadas e organizações de investigação semigovernamentais norte-a-
mericanas, não punha em causa a posição da CCTA. O envio de pesquisadores norte-america-
nos para a África seria realizado em cooperação com os órgãos de investigação locais.4
Na sequência das recomendações do CSA, no fim de 1953, o secretariado da CCTA
avançou com a proposta da criação de um Comitê Consultivo Permanente para a Investigação
Social, a ser discutida na nona sessão.5 Face à inquietação crescente com a Unesco, do en-
contro sairia a recomendação urgente para a criação de um grupo de trabalho para a ligação
interafricana e de projetos conjuntos em matéria de ciências sociais, que se reuniu em Londres,
em 4 e 5 de março de 1954, para discutir que tipo de organização criar no domínio das ciên-
cias sociais e a eventual convocação de uma conferência sobre sociologia.6
O governo português, representado por J. M. Fragoso, secretário da embaixada de Portugal
em Londres, e Adriano Moreira, professor da Escola Superior Colonial e delegado do ministério
do Ultramar – em substituição a Mendes Correia, diretor daquela escola –, preconizou a criação
de um Instituto Interafricano de Ciências Sociais (ou de um departamento para a sociologia), a
ser instalado em Maputo, capital de Moçambique, sua colônia na costa oriental africana, dirigido
por um belga. A par da proposta, a delegação portuguesa distribuiu previamente um projeto de
estatutos e um memorando justificativo, no qual argumentava que só um organismo especializa-
do seria suscetível de dotar a comissão de meios próprios para enfrentar o interesse manifestado
por “entidades estranhas às responsabilidades africanas nas investigações acerca de vários as-
pectos das ciências sociais naquele continente”, como a OIT e, sobretudo, a Unesco.7
Portugal frisava que, ao contrário dos círculos acadêmicos norte-americanos, dispostos a
solicitar a cooperação dos órgãos científicos existentes na África, a Unesco apostava em igno-
rar a CCTA. Além disso, a conferência planejada pela entidade das Nações Unidas abordaria
“assuntos de considerável melindre e de fácil tratamento especulativo, deixa[ndo] perceber
propósitos não totalmente restritos aos aspectos técnicos e científicos”.8
Na ocasião, a delegação portuguesa lembrou ainda que já haviam sido recusadas pela
comissão duas propostas anteriores: a criação dos departamentos de saúde e de estatística. De
acordo com a posição expressa por Portugal, o primeiro teria evitado o estabelecimento da OMS
na África.9 O memorando francês, por seu turno, chamava a atenção para a intromissão de orga-
nizações americanas no continente africano e para a agenda da Unesco, propondo como medida
mínima a nomeação de um correspondente científico para as ciências sociais, embora mostrasse

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 419-428, maio-agosto 2019 419
Frederico Ágoas e Cláudia Castelo

abertura para aceitar a criação de um departamento de sociologia. Assim como a União da


África do Sul, defendia que o correspondente fosse subordinado à CCTA, e não ao CSA, dada a
incidência política dos assuntos a tratar.10 A falta de acordo final sobre a proposta portuguesa
se deveu à delegação britânica, que argumentou razões financeiras – o instituto custaria 10 mil
libras anuais –, insistindo que a CCTA não era uma organização dirigida contra qualquer outra
e que deveria atuar no plano estritamente científico.11 As delegações francesa e belga acabaram
por defender a criação de um órgão de cooperação de estrutura menos complexa que pudesse
estar em atividade no mês de setembro, durante a realização da conferência da Unesco.12
No relatório para o ministro do Ultramar, Adriano Moreira concluía que os países repre-
sentados na CCTA, e que estavam também ligados a ONU, Unesco e OIT, tinham “receio”
de criar qualquer organismo que se opusesse àquelas organizações. Foi “esse o perigo que
viram no Instituto que o Governo português propunha”.13 O grupo de trabalho aprovou por
unanimidade a organização de uma conferência interafricana de ciências sociais e a indicação
de Jacques Jérôme Pierre Maquet, antropólogo social belga do Institut pour la Recherche
Scientifique en Afrique Centrale (Irsac) e especialista em Ruanda, para dirigir a comissão que
deveria preparar a conferência.
O Comitê Interafricano de Ciências Sociais – ou Ciências Humanas, nos documentos em
francês – foi então instituído como um organismo permanente da CCTA, destinado “a favore-
cer e encorajar a consulta mútua, a ligação e a cooperação no domínio das ciências sociais” na
África subsaariana. Era constituído por seis membros, um por governo membro da comissão,
escolhidos de preferência entre os especialistas encarregados da coordenação da investigação
nos respectivos territórios. Cada governo membro estabelecia ainda a lista de especialistas
e pesquisadores de cada disciplina que podiam ser chamados a participar nas deliberações
do comitê (CCTA, 1955: 45-47). Na sua primeira reunião, em 1 e 2 de dezembro de 1954,
o comité decidiu proceder ao inventário dos conhecimentos atuais nos diversos domínios da
pesquisa relativos às ciências sociais que estão ligados ao desenvolvimento econômico da
África subsaariana, tendo em vista determinar as lacunas que existem nesses conhecimentos
(Henry, 1955). Os governos membros organizariam as delegações à Conferência de Ciências
Sociais com base nessa tarefa prévia.

A Conferência Interafricana de Ciências Sociais

C omo afirmamos na Introdução, a Conferência Interafricana de Ciências Sociais pode ser


considerada a mais alta expressão da cooperação científica nesse domínio, no âmbito
da CCTA. O encontro ocorreu entre 23 de agosto e 3 de Setembro de 1955, em Bukavu, no

420 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 420-428 maio-agosto 2019
Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)

território do Congo belga, associando um intenso programa acadêmico a uma agenda social
preenchida.14 Os trabalhos seriam dirigidos por uma comissão liderada pelo chefe da delega-
ção local, Frans M. Olbrechts, diretor do Museu Real da colônia, e copresidida pelos chefes das
comitivas francesa e britânica, Hubert Deschamps, responsável pelo setor de ciências humanas
no Office de la Recherche Scientifique Outre-Mer, e Audrey I. Richards, diretora do East African
Institute of Social Research. Da mesma comissão, fizeram ainda parte António Mendes Cor-
reia, como chefe da delegação portuguesa, seus homólogos estrangeiros e os seis presidentes
das várias seções da reunião.
No seu conjunto, as divisões instituídas davam corpo a uma concepção bastante eclética
de ciências sociais e humanas, contemplando disciplinas ou áreas científicas tão distintas
quanto demografia, geografia humana e economia política (secção I); etnologia, sociologia
e etno-história (II); antropologia física, psicologia e nutrição (III); linguística (IV); métodos de
administração (V); artes e tecnologia (VI). Entre os respectivos presidentes, importa destacar
Adriano Moreira à cabeça da seção V. Além dos restantes delegados, estivaram ainda presen-
tes, na qualidade de observadores, figuras como Daryll Forde, diretor do Instituto Internacional
Africano, como vimos; Pierre Gourou, professor da Universidade Livre de Bruxelas e observa-
dor da Academia Real de Ciências Coloniais; Melville Herskovits, professor de antropologia
da Northwestern University; Jean P. Lebeuf, chefe da seção de sociologia da OMS; Guy de La-
charrière, diretor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Unesco; e Prudence Smith,
jornalista da BBC (CCTA, 1955: V-XI).
Com os documentos de que dispomos, não é possível recuperar em detalhe o andamento
dos trabalhos, mas o inventário científico elaborado para o efeito pela comitiva portuguesa
e o documento final publicado pela CCTA nos permitem especificar, como pretendemos, as
orientações que serviram de base para as intervenções dos delegados portugueses e as reco-
mendações saídas do encontro.
Quanto àquele inventário, importa começar por referir, sem surpresa – no contexto da
investigação colonial portuguesa –, o desenvolvimento relativo e o caráter sistemático do
relatório referente à seção III, em particular no que concerne aos estudos de antropologia
física. Da mesma forma, cabe sublinhar o detalhe desproporcionado da exposição respeitante
ao estudo das artes tradicionais em Angola, tal como constava do relatório referente à seção
VI.15 No primeiro, de autoria de António Mendes Correia, dava-se conta de como todos os
territórios portugueses na África já haviam sido objeto de pesquisas naquele domínio e desta-
cavam-se os contributos das missões antropológicas de Angola e Moçambique. No segundo,
de autoria do biólogo António Barros Machado, avultavam as atividades do Museu do Dundo

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 421-428, maio-agosto 2019 421
Frederico Ágoas e Cláudia Castelo

e do seu conservador, José Redinha, no quadro da ação cultural da Companhia de Diamantes


de Angola, a que o próprio relator da exposição estava também associado, na dupla qualidade
de diretor de pesquisas biológicas do museu e de conselheiro científico da diamantífera.
Em qualquer dos casos, o panorama contrastava com os resultados apresentados às
outras seções da reunião, que não chegavam a disfarçar as lacunas da investigação portu-
guesa nas matérias correspondentes, como o próprio Mendes Correia sugerira que se fizesse
numa das reuniões do comitê interministerial da CCTA, que dava acompanhamento político à
participação do país nesse organismo e que reunia representantes dos ministérios do Ultramar
e dos Negócios Estrangeiros.16 Seja como for, pouco havia a se fazer a esse respeito, tal era a
discrepância entre os relatórios em causa e os inventários entregues por outras comitivas, de
que não nos ocuparemos aqui.17
Relativamente à seção IV (linguística), tudo parecia estar ainda por fazer, em particular
a organização e a publicação de dicionários e gramáticas elementares das diversas línguas
dos territórios africanos sob domínio português – isso sem prejuízo de alguns estudos de
caráter parcelar referidos pelo relator da seção, Rodrigo Sá Nogueira, subdiretor do Instituto
de Línguas Africanas e Orientais.18 No caso da seção I, o relatório redigido por José de Oliveira
Boléo, diretor-geral de Ensino do Ministério do Ultramar, era quase omisso a respeito da geo-
grafia humana, substituía o inventário de estudos de economia política pela exposição das
orientações vigentes no âmbito da política econômica colonial e, no que toca à demografia,
pouco mais apontava do que as perspectivas então abertas pela criação recente de um novo
organismo consagrado à “demografia do ultramar”.19
No que se refere à etnologia e à sociologia, em concreto, o cenário não era muito diferen-
te. A esse respeito, o relatório da seção II, que também incluía a etno-história, começava por
referir, para Angola, a publicação de alguns artigos assinados por um funcionário administrati-
vo, Mário Milheiros, e os trabalhos etnográficos do espiritano francês Charles Estermann. Para
Moçambique, referia-se um artigo apenas, de Mário Simões Alberto, publicado em 1953.20
Nesse domínio, como aliás em linguística e em demografia, a exceção (parcial, pelo menos)
era Guiné, em relação a qual se afirmava que “todas as tribos foram estudadas dos pontos de
vista etnológico e sociológico”.
O fato ficava a dever-se à ação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, criado em
1945 pelo governador da colônia, Manuel Sarmento Rodrigues, e cujo grande impulsionador
começara por ser o próprio relator da seção, o oficial de Marinha Avelino Teixeira da Mota. Na
sua exposição, pouco se acrescentava a respeito das atividades desse organismo, mas nem
por isso se deixava de fixar um programa preliminar para a investigação social no território.

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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)

“Importa agora desenvolver estes conhecimentos de ordem geral, a partir de bases menos
empíricas, considerando que o que se encontra realizado se deve em larga medida aos fun-
cionários administrativos.” Mais especificamente, tratava-se de “desenvolver os estudos de
sociologia”, a respeito de contatos culturais, migrações, vida urbana, níveis de vida e evolução
local face às transformações econômicas.21
As orientações gerais a esse respeito, todavia, ficariam a cargo de Adriano Moreira, na
qualidade de relator da seção V, consagrada aos métodos de administração. Na sua exposição,
o futuro diretor do Ceps e do Iseu começava por assinalar o desenvolvimento dos estudos con-
cernentes à questão político-administrativa para apontar depois baterias aos tópicos da mão de
obra e da destribalização, “um problema de ordem política da mais alta importância e ao mesmo
tempo um fenômeno de ordem social muito interessante” sobre o qual considerava necessário
intensificar os estudos sociológicos. Destacavam-se ainda os problemas da posição do posto
administrativo no quadro da vida tribal e da regulamentação das migrações, por conta das suas
consequências sobre a nacionalidade dos indígenas e como veículo de ideias subversivas.22
Quanto às recomendações que resultaram da conferência, reportavam-se essencialmen-
te à instituição de práticas de cooperação e à definição de tópicos de pesquisa. Acerca da
sociologia e da etnografia, assinale-se o incentivo à execução de monografias de grupos es-
pecíficos – selecionados em função da representatividade regional –, o estímulo à realização
de estudos sobre migrações interterritoriais – precedidos por inquéritos antropológicos nas
regiões de origem – e o incitamento à troca de informações sobre os métodos utilizados na
África para a aplicação de inquéritos urbanos (CCTA, 1955: 11-16).
Em termos institucionais, chamava-se a atenção para a necessidade de criar um corpo de
especialistas que pudesse suprir os objetivos dos governos em matéria de pesquisa científico-
-social e recomendava-se que as autoridades nacionais aumentassem os apoios financeiros
concedidos às instituições responsáveis pela formação nesse domínio (CCTA, 1955: 14). Em
contrapartida, a seção de métodos de administração sugeria que se criasse uma “ligação
permanente e estreita” entre os investigadores das ciências humanas, por um lado, e os go-
vernos e as administrações responsáveis pela acção social, por outro, “de maneira a sugerir as
pesquisas destinadas à solução de problemas urgentes e práticos” (CCTA, 1955: 33).
Na mesma seção, a sociologia ou a antropologia se viam ainda potencialmente impli-
cadas nos estudos destinados a apurar métodos e técnicas adequados aos contatos entre
a população e a administração local, nas pesquisas acerca dos regimes de propriedade, na
promoção econômica e social das massas rurais e nas futuras recolhas de direito costumeiro
(CCTA, 1955: 33-35). A mesma orientação seria estendida a domínios de estudo como a nutri-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 423-428, maio-agosto 2019 423
Frederico Ágoas e Cláudia Castelo

ção, no âmbito do qual se assinalava a necessidade de levar em conta os aspectos sociológicos


da produtividade, para além dos biológicos e dos psicológicos (CCTA, 1955: 23).
Os ecos do encontro chegariam depressa ao conhecimento dos mais altos círculos go-
vernativos da metrópole, em Lisboa. Em 2 de dezembro de 1955, António Mendes Correia,
Adriano Moreira, Rodrigo Sá Nogueira e José de Oliveira Boléo participariam de uma nova
reunião do comitê interministerial da CCTA destinada a apreciar os resultados da conferência.
Na qualidade de presidente da delegação portuguesa, o primeiro tomaria a palavra para dar
conta do relatório que submetera previamente ao ministro do Ultramar, no qual apontava
a manifesta insuficiência da “nossa capacidade investigadora”. Muito havia a fazer, dizia,
“[p]ara prestígio nacional e interesse de cultura e das populações”. Para além da concretiza-
ção urgente do diploma que criara os institutos científicos de Angola e Moçambique, instara
a tutela a providenciar a formação de “numerosos investigadores em muitas disciplinas” e
a aproveitá-los devidamente. Como afirmava, as carências do país nessa matéria não eram
compatíveis com as responsabilidades portuguesas na África e no restante do mundo. É certo,
acrescentava, que a reunião de Bukavu conseguira interpor “um dique às pretensões africa-
nas de certas entidades como a Unesco”, mas impusera o dever de encarar os problemas ali
identificados “num propósito de chegar a resultados satisfatórios”.23
Era essa também a opinião de Adriano Moreira, porventura formulada em termos mais
concisos: “Parece que se pretende aferir a idoneidade da ação colonial já não pela ocupação
do território nem pela ocupação científica do ponto de vista das ciências da natureza, mas
sim em face da ocupação científica do ponto de vista das ciências humanas.” Para o professor
do Iseu formado em direito, a conferência tornara evidente que, “no que respeita à África, se
acentua a tendência de cometer ao sociólogo e ao antropólogo o encargo de conselheiro da
administração – que na Europa cabe ao jurista”. Era, pois, necessário “cuidar da formação
urgente, nas nossas escolas, de um quadro de especialistas em sociologia e antropologia que
possam fazer a ocupação científica dos nossos territórios no domínio das ciências sociais”.
O corolário do seu raciocínio se impunha de forma espontânea: “No quadro dos nossos esta-
belecimentos de ensino, é hoje o Instituto Superior de Estudos Ultramarinos que pode servir
de base, mas remodelado, a esse objetivo.”24
Poucos meses depois, o mesmo comitê emitiria seu parecer definitivo sobre a matéria,
aprovado pelas tutelas. Em face das pretensões da Unesco, em particular, e de maneira a
consumar o alcance político da conferência, em geral, o documento consagrava o desígnio de
dar curso às recomendações dali emanadas e apontava ao governo português, como tarefas
prioritárias, a necessidade de formar um quadro de especialistas em ciências sociais, pôr em

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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)

funcionamento os Institutos de Investigação Científica de Angola e Moçambique, remodelar o


Iseu e, finalmente, proceder à criação de um Centro de Estudos Políticos.25

Conclusão

O s dados aqui reunidos não autorizam um balanço global da participação de Portugal na


CCTA, mas, no que toca à cooperação no âmbito das ciências sociais, é possível registrar
o empenho e a iniciativa das autoridades portuguesas. A esse respeito, a proposta portuguesa
de criação de um instituto interafricano de ciências sociais, com sede em Maputo, não deixa de
ser surpreendente, considerando as resistências da parte do Estado Novo português em relação
a essa forma de conhecimento e as desconfianças do regime relativamente a esse tipo de cola-
boração. Seja como for, as informações recolhidas permitem especificar alguns dos motivos polí-
ticos que animaram a CCTA, relacionados com o próprio avanço da investigação social na África,
por parte da Unesco e de cientistas norte-americanos, e com a intenção de lhes criar entraves.
Em outro nível, a incorporação progressiva da sociologia e da antropologia cultural no
currículo do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, nos termos avançados na Introdução,
parece de fato corresponder a orientações científicas daquela comissão e a recomendações
emanadas da Conferência Interafricana de Ciências Sociais, de 1955. O mesmo se pode dizer
dos objetos das primeiras missões científico-sociais do país na África – minorias étnicas, movi-
mentos associativos, atração das grandes cidades e bem-estar rural – e, em parte, pelo menos,
do Ceps da JIU, criado em 1956 para organizá-las.
Sem prejuízo disto, também é possível afirmar que a participação portuguesa nesse
fórum e os desenvolvimentos subsequentes que assinalamos assentam em dinâmicas epistê-
micas em curso, em particular no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, por via da integra-
ção do seu principal impulsionador na delegação àquela conferência, na qualidade de relator
da seção consagrada à etnografia e à sociologia – mais desenvolvidas naquele território, à
época, do que em qualquer outra colônia.
Em termos substantivos, é possível sugerir, para terminar, que a participação portugue-
sa nesse fórum desencadeou a academização progressiva de uma etnografia administrativa
timidamente iniciada em Moçambique e desenvolvida na Guiné, acelerando a transição pro-
gressiva do estudo acadêmico, quase sempre naturalista, da diversidade étnica dos territórios
portugueses na África para pesquisas relacionadas a problemas econômicos e sociais e com o
contexto cultural das populações do Império.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 425-428, maio-agosto 2019 425
Frederico Ágoas e Cláudia Castelo

Notas

1 Portugal, Arquivo Histórico Diplomático (daqui em diante, AHD), C.E47.P07.2410. Relações com agências
especializadas da ONU. Informação de serviço de Franco Nogueira (MNE), 14.11.1952.
2 AHD, C.E45.P06.2403. Sociologia – Comité Ciências Humanas. Ofício do secretário-geral da CCTA,
18.2.1954, e Apontamento de Franco Nogueira (MNE), 24.2.1954..
3 AHD, C.E45.P06.2403. Doc. CCTA (53)70, Proposal to Appoint an Inter-African Scientific Correspondent on
Sociology.
4 AHD, C.E45.P06.2403. CCTA - Memorandum a apresentar pelo governo português ao Grupo de Trabalho
sobre Sociologia, p. 2. Ver no mesmo maço, doc. CCTA (54)26, Memorandum received from the Portuguese
government – Sociology, 3.3.1954. Portugal, Universidade de Lisboa, Arquivo do Instituto de Investigação
Científica Tropical, JIU, Processo 532A (CCTA – Sociologia, Economia etc.) (daqui em diante, AIICT, Proc.
532A), v. 1, Doc. CCTA (53)76, Conférence de l’Université de Princeton sur la Recherche Régionale en Afrique.
5 AHD, C.E45.P06.2403. Doc. CCTA (53)70, Proposal to Appoint an Inter-African Scientific Correspondent on
Sociology.
6 AHD, C.E45.P06.2403. Ofício do secretário-geral da CCTA, 18.2.1954.
7 AHD, C.E45.P06.2403. CCTA – Memorandum a apresentar pelo governo português ao Grupo de Trabalho
sobre Sociologia, p. 1.
8 Idem, p. 2
9 AHD, C.E45.P06.2403. Ofício de Manuel Rocheta ao Embaixador de Portugal em Londres, Pedro Teotónio
Pereira, 26.2.1954.
10 AHD, C.E45.P06.2403. Doc. CCTA (54)24, Memorandum du Gouvernment français sur la Sociologie
(Groupe du Travail du 4 mars), 1.3.1954.
11 AHD, C.E45.P06.2403. Relatório de Adriano Moreira sobre a reunião do Grupo de Trabalho realizada em
Londres, em 4 e 5 de março, enviado ao ministro do Ultramar, 8.3.1954.
12 AHD, C.E45.P06.2403. Relatório do secretário da embaixada de Portugal em Londres, Fortunato de Almei-
da, de 5 de marco de 1955, sobre a reunião do Grupo de Trabalho sobre a ligação interafricana em matéria
de sociologia, 5.3.1955.
13 AHD, C.E45.P06.2403. Relatório de Adriano Moreira sobre a reunião do Grupo de Trabalho realizada em
Londres, em 4 e 5 de março, enviado ao ministro do Ultramar, 8.3.1954.
14 AHD, C.E46.P02.2436. CCTA – Documentos relativos à 1ª Conferência de Ciências Sociais, Bukavu, 1955.
Programme de la Conférence Interafricaine pour les Sciences Humaines – 1ère Session, 3.06.1955.
15 AHD, C.E46.P02.2436. Conférence Interafricaine sur les sciences humaines, Bukavu, Aout-Septembre
1955, Rapport présenté par la délégation portugaise. Section III e Section VI.
16 AHD, C.E46.P02.2436. Ata da 5ª Reunião Interministerial da CCTA, 27 de julho de 1955, p. 1.
17 Cf. inventários em C.E46.P02.2436.
18 AHD, C.E46.P02.2436. Rapport présenté par la délégation portugaise, Section IV.

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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa
na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)

19 Idem, Section I.
20 Idem, Section II.
21 Idem, Section II, p. 2.
22 Idem, Section V.
23 AHD, C.E46.P02.2436. Ata da 12ª Reunião Interministerial da CCTA, 2 de dezembro de 1955, p. 1.
24 Idem, p. 3.
25 AIICT, Proc. 532A, vol. 2, doc. 184. Conclusões finais do Comité Interministerial da CCTA sobre as reco-
mendações aprovadas na 1ª sessão da Conferência Interafricana de Ciências Sociais, em anexo ao ofício da
direção-geral de Administração Política e Civil do Ministério do Ultramar para a Comissão Executiva da JIU,
de 23 de abril de 1956.

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428 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 428-428 maio-agosto 2019
Artigo

Dois países, o mesmo dilema? Reflexões


sobre a democracia e o racismo nos
Estados Unidos e no Brasil
Two countries, the same dilemma? Reflections on democracy and
racism in the United States and Brazil
¿Dos países, el mismo dilema? Reflexiones sobre la democracia y
el racismo en Estados Unidos y Brasil

Gustavo MesquitaI*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200006

I
Fundação Getulio Vargas (FGV), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
* Pós-doutorando no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio
Vargas e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, com estágio na Vanderbilt University, Nashville,
Estados Unidos. (gustavormesquita@gmail.com)
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6460-495X

Artigo recebido em 10 de março de 2019 e aceito para publicação em 26 de junho de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 429-449, maio-agosto 2019 429
Gustavo Mesquita

Resumo
Roger Bastide e Florestan Fernandes atuavam em pesquisas sobre relações raciais financiadas por organizações
internacionais quando, na década de 1960, os Estados Unidos criaram ações afirmativas para responder à desigual-
dade racial. As conclusões dos sociólogos estimularam discussões acerca do mesmo problema no Brasil. Entendeu-se
naquela época que também temos um dilema, ou seja, uma democracia fracionada, excludente da população negra.
Discuto neste artigo a formação do pensamento sociológico de Bastide e Fernandes à luz de teses norte-americanas
de relações raciais, assim como o impacto desse pensamento no debate sobre racismo brasileiro.

Palavras-chave: Relações raciais; Sociedade de classes; Desigualdade; Direitos humanos.

Abstract

Roger Bastide and Florestan Fernandes carried out researches on race relations sponsored by international organiza-
tions when, in the 1960s, the United States created affirmative actions to respond to its racial inequality. Conclusions
from the sociologists enhanced discussions about the same issue in Brazil. The time has come for the understanding
that our democracy excludes the Negro population. It is analyzed in this article the formation of Bastide and Fer-
nandes’ sociological thought under American thesis of race relations, as well as the impact of this thought over the
debate on Brazilian racism.

Keywords: Race Relations; Class Society; Inequality; Human Rights.

Resumen
Roger Bastide y Florestan Fernandes actuaban en investigaciones sobre relaciones raciales financiadas por organiza-
ciones internacionales cuando, en los años 1960, los Estados Unidos creó acciones afirmativas para responder a su
desigualdad racial. Las conclusiones de los sociólogos estimularon discusiones sobre el mismo problema en Brasil.
Se entendió en aquella época que también teníamos un dilema, o sea, una democracia fraccionada, excluyente de
la población negra. Discuto en este artículo la formación del pensamiento sociológico de Bastide y Fernandes a la
luz de tesis estadounidenses de relaciones raciales, así como el impacto de este pensamiento en el debate sobre
racismo brasileño.

Palabras clave: Relaciones raciales; Sociedad de clases; Derechos humanos.

430 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 430-449 maio-agosto 2019
Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil

E m 1958, Florestan Fernandes publicou na revista Anhembi um balanço dos estudos ra-
ciais financiados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (Unesco).1 Tendo como amarra os avanços que a inserção do negro atingira no merca-
do de trabalho das democracias ocidentais, os exames vinculados à organização internacional
eram realizados por cientistas sociais oriundos não só dos Estados Unidos e da Europa, mas do
Brasil e de outros países igualmente chamados, nessa época, de subdesenvolvidos.
Um periódico científico, editado pela mesma organização numa espécie de rede transna-
cional, difundia mundialmente as mais novas pesquisas de relações raciais. Trata-se do Inter-
national Social Science Bulletin, que era tão importante quanto a revista The Unesco Courier,
também comprometida com a questão racial, para o esforço de divulgação das políticas que
essa organização desenvolvia em busca do entendimento global e da eliminação do racismo
nas democracias modernas.
As três revistas estavam comprometidas com a formação de uma interpretação da ques-
tão racial tida como capaz de apontar soluções para os problemas criados pelo fenômeno.
Em outras palavras, buscavam uma interpretação do tema do negro colocado à democracia
moderna. O vínculo entre democracia e racismo era pensado de forma abrangente, pois era
pertinente a qualquer país em que as relações raciais, carregadas de barreiras do preconceito,
representavam um entrave ao desenvolvimento da sociedade de classes e à subsequente
inserção do negro nesse sistema social.
Os artigos publicados nas revistas complementavam e divulgavam as pesquisas raciais
iniciadas pouco tempo antes em vários países, tendo o Brasil e sua intensa miscigenação como
ponto de referência. A urgência dessa nova produção científica em meio ao pós-Segunda
Guerra Mundial, viabilizada pelos programas da Unesco para o desenvolvimento das ciências
sociais em escala global, era alimentada pela consciência dos horrores cometidos durante o
período bélico, incluindo o holocausto, o racismo e a xenofobia (MAIO, 1997).2
Fernandes apresentou em Anhembi a contribuição dos sociólogos interacionistas, for-
mados na Universidade de Chicago, para o dossiê do International Social Science Bulletin
sobre a situação do negro nos Estados Unidos. Os artigos de Herbert Blumer, Franklin Frazier,
St. Clair Drake e H. J. Walker foram mencionados. O mais importante, porém, reside na ênfase
dada pelo sociólogo paulista ao artigo de Roger Bastide, publicado no mesmo número da
revista internacional.
Bastide participou do número com a introdução a respeito dos Estados Unidos e um
artigo especial preparado para esse dossiê. Mas o artigo não se refere à sociedade norte-
americana de maneira isolada. Ao comparar Estados Unidos e Brasil, Bastide abordou o lugar

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do negro na hierarquia social das duas sociedades. A conclusão do sociólogo, como vere-
mos adiante, veio acompanhada de uma crítica ao racismo brasileiro que indicava caminhos
possíveis para o reverso da moeda: o antirracismo, nascido, segundo ele, junto às aceleradas
mudanças urbano-industriais.
Fernandes valorizou a contribuição de Bastide, como seu texto mostra, porque o entendi-
mento do problema negro norte-americano foi incorporado nas reflexões do sociólogo francês.
Para esses sociólogos, o entendimento externo era significativo para a decifração do problema
negro brasileiro. As relações entre Brasil e Estados Unidos começariam no tratamento correto
do conceito de raça pelos pesquisadores de ambos os países. Notemos o que Bastide dissera
sobre isso: “A característica do presente [em relação à raça] é a progressiva transição da dinâ-
mica das relações raciais para a das relações humanas; cor agora é vista apenas como variável
numa situação geral, afetada por muitos outros fatores” (1957: 423).
No momento em que tal definição de relações raciais foi feita, era comum, para a com-
preensão da situação geral, o conceito de cor vir acompanhado de seu par: a ascensão social.
Nos anos 1950, as noções de cor e ascensão social formaram um par cujo poder de explicação,
à luz da psicologia social e da sociologia, se tornou diretriz endossada pela Unesco para os
estudos de relações raciais em curso naquele momento (Guimarães, 2009).
Os grupos de cor passaram a ser o mais importante dos fatores operativos da análise
histórico-sociológica das relações raciais no decurso da formação nacional. São o conceito de
raça com o qual Bastide e Fernandes fizeram suas pesquisas sob subvenção da Unesco. No
artigo em Anhembi, três anos depois das Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo,
o sociólogo paulista fez considerações sobre cor que combinam com as do francês, tecidas no
International Social Science Bulletin. Ele argumentou que a importância da cor – das cores
preta e parda, que compõem o grupo negro – reside em seu grande peso na análise de uma
situação social mais ampla. Esse conceito de raça era aplicado nas pesquisas da maioria dos
cientistas sociais, além dos norte-americanos, brasileiros:

A maioria dos especialistas tende a interessar-se pelo negro na medida em que ele pode
ser encarado como um dos fatores operativos em uma situação social mais ampla e com-
plexa. Só alguns cientistas negros se especializaram no estudo do negro propriamente dito.
(Fernandes, 1958: 105)

Ao retomar as teses das Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, Bastide,
em 1957, e Fernandes, em 1958, desenvolveram argumentos parecidos, ambos dando a en-
tender que a cor do negro interfere numa situação geral. Afinal, que situação é essa? A parce-
ria internacional das revistas nos ajuda a entendê-la. No balanço feito pelo sociólogo paulista

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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil

sobre os Estados Unidos, o sistema social igualitário – sistema de organização da sociedade


em igualdade de condições num regime democrático que garantisse tratamento igual às clas-
ses sociais – ocupou a discussão das teses selecionadas por ele ao pôr em questão a situação
em que a cor do negro se tornou um problema.
O problema não seria causado só pela segregação racial praticada pelo branco, mas
pelo comportamento desajustado do negro ao sistema social igualitário. Embora o desajuste
estivesse diminuindo, em decorrência das políticas de integração e da maior participação do
negro nas oportunidades de trabalho, ainda acometeria a situação das relações de classe,
atrasando a plena assimilação do negro pelo branco e a evolução das raças em classes, tão
somente classes sociais.
Ao sistema social igualitário – visto pela utopia racionalista de Fernandes como perfeito,
na medida em que a mobilidade das classes sociais resultaria no tratamento igual dos seres
humanos (Garcia, 2002) – as discriminações baseadas na cor ou na raça das pessoas são
disfuncionais. O comportamento do negro, atrasado, irracional diante da competição social,
desajustado do ponto de vista da democracia moderna, também é disfuncional. Esta dupla
disfunção, a do branco e a do negro, atrasa a modernização do sistema social e, se soluciona-
da, não mais daria sentido à situação mais ampla e complexa do problema negro.
Esse dilema desapareceria do sistema social se as relações entre brancos e negros, com
responsabilidade de ambos os lados, alcançassem a superação do obsoleto pensamento da
existência de raças. Assim, o dilema da situação de desigualdade na sociedade norte-america-
na cessaria, ao passo que o Estado nacional desenvolveria melhores “mecanismos de desinte-
gração social do regime de castas e processos alternativos de constituição de uma sociedade
de classes, sem barreiras raciais e étnicas” (Fernandes, 1958: 105-106).
Para Fernandes, a modernização se fazia necessária nos Estados Unidos tanto quanto no
Brasil. Bastide também afirmou que a sociedade norte-americana era composta por castas em
evolução para classes, sem distinções raciais no futuro. O dilema da democracia no país do
Norte, para esses sociólogos, tinha solução graças ao acúmulo de prescrições dos cientistas
sociais colaboradores da Unesco. Da situação mais complexa em que as relações raciais eram
o fator preponderante, passava-se agora para as técnicas de aprimoramento da democracia,
numa investida internacional a favor da eliminação do racismo por meio da ascensão social
do negro em regime igualitário com o branco.
Essas técnicas emergiram nos anos 1950, sendo apoiadas na tradição de estudos raciais,
graças à agenda acadêmica norte-americana, desenvolvida em centros como Columbia, Chi-
cago e Harvard.3 Mediante a rede transnacional de Bastide e Fernandes, na qual circulavam

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teses ao redor de impressos acadêmicos e jornalísticos, como International Social Science


Bulletin, The Unesco Courier, Anhembi e O Estado de S. Paulo, as técnicas de aprimoramento
do sistema democrático chegaram ao Brasil da mesma forma pela qual haviam ganhado uma
síntese, um programa liberal-reformador de antirracismo. Ocorre que, em 1944, An American
Dilemma foi lançado em Nova York.

A pesquisa nos Estados Unidos: emergência do dilema


americano

A pesquisa que resultou em An American Dilemma não teve uma origem tão discrepante
da dos outros estudos raciais patrocinados por fundações norte-americanas na pri-
meira metade do século XX, exceto algo particular no caminho seguido por Frederick Keppel,
presidente da Carnegie Corporation em 1937, para atender aos anseios de sua fundação. Nos
Estados Unidos, até a Segunda Guerra Mundial, era comum as grandes empresas privadas
exercerem filantropia aos negros por meio de suas fundações.
Essas fundações, no Norte ou no Sul, miravam políticas de melhoria da educação da
população negra. Mesmo realizada em escolas e faculdades próprias para negros, separadas
dos brancos, a educação era o foco da ação das fundações, e isso estava em acordo com algu-
mas associações negras, a exemplo da National Association for the Advancement of Colored
People (NAAPC).
A educação dos negros camponeses, visando à formação de uma classe trabalhadora
mais robusta, composta por operários e outras categorias mais bem qualificadas, inclusive
de melhores trabalhadores rurais, refletia a ação das fundações em resposta aos constantes
deslocamentos dos negros das fazendas do Sul para as cidades do Norte. A migração começou
com força já no século XIX, após a abolição, mas aumentou consideravelmente no século XX,
graças às transformações urbanas e tecnológicas decorrentes da Primeira Guerra Mundial.
Nos ardentes conflitos da Segunda Guerra, além da migração em massa para as gran-
des cidades, onde a maioria dos negros se aglomerava em guetos e outros bairros negros,
até as tropas do Exército ianque, que combatiam os inimigos de guerra nas regiões europeias
sob domínio nazista, foram divididas por critério de raça: negros para um lado, brancos para
outro. A honra nacional por terem sido os vitoriosos da guerra se limitou aos soldados bran-
cos. Aos negros, restou só a dádiva por terem sido convocados para lutar em nome de seu
país (Higham, 1997).
Ao notar a insuficiência da filantropia há décadas realizada pelas fundações norte-ameri-
canas, diante do agravamento dos conflitos raciais particularmente no Sul, onde a segregação
crescia em violência sistemática e se alastrava em regozijo do Jim Crow, Keppel admitiu que
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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil

mudar as estratégias filantrópicas da Carnegie era necessário, e assim convocou uma seleção
de intelectuais que pudessem orientar a mudança. Numa lista de 22 nomes, escolhera Gunnar
Myrdal para o projeto.4
O chefe da Carnegie sabia quão complexas ficavam as tensões raciais naqueles anos
de 1930, mas não pretendia eliminar a segregação ao mudar a forma de apoio à popula-
ção negra. Seu foco era fazer com que um intelectual apontasse mais efetivos sistemas de
filantropia, de modo que o racismo nos Estados Unidos diminuísse. Eis que o acaso mostra
sua face ao trazer Myrdal e seu conhecimento em engenharia social, uma área da ciência
ao mesmo tempo anticomunista e reformista, muito próxima dos ideais político-sociais dos
pioneiros da terceira via.5
Esperava-se certo avanço nas restrições que cercavam as discussões em torno do pro-
blema racial vivido nos Estados Unidos. Keppel dizia que tal discussão era tão carregada de
emoção de ambos os lados, dos intelectuais negros e brancos, de Norte a Sul, que apenas
um estrangeiro poderia chegar a uma interpretação suficientemente objetiva. Mas o acaso
alterou seus planos:

Depois de muito procurar por um estrangeiro objetivo para fazer o trabalho, Keppel inadvertida-
mente escolheu um cientista social que não acreditava na objetividade da ciência social e que
estava profundamente comprometido com a engenharia social. Myrdal, um forasteiro, não fazia
parte do mundo das Ciências Sociais norte-americanas e seu compromisso com a ciência sem
valores. Ele não precisava se submeter à revisão de seus pares. Foi a própria evasão de Myrdal
da ortodoxia que tornou os cientistas sociais hesitantes a desenvolver recomendações de políti-
cas para as relações raciais o que permitiria que o estudo tivesse impacto além do estrito mundo
acadêmico. (Cohen, 2014: 11-12)

Feita a escolha, Myrdal teve liberdade para desenvolver o projeto da Carnegie. Não
conheceu restrições ao estabelecer o escopo do projeto à sua maneira nem ao recrutar
extenso grupo de assistentes para auxiliá-lo na pesquisa. Ampliara o projeto original e não
recebera negativas de Keppel por causa disso. Numa tentativa de apaziguar a discórdia dos
cientistas sociais norte-americanos, já que não aceitavam a escolha do estrangeiro para um
projeto dessa envergadura, Myrdal selecionou um numeroso grupo de psicólogos sociais,
sociólogos e antropólogos para prestarem assistência ao levantamento de fontes e dados
pertinentes ao projeto.
Negros e brancos foram selecionados, a maioria das Universidades de Chicago, Colum-
bia, Northwestern, Fisk e Howard, embora os assistentes mais importantes, por terem con-
tribuído diretamente para o desenvolvimento da pesquisa, fossem pessoas da confiança de

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Myrdal, suecos como ele. É o caso de Richard Sterner, que, em nome da coordenação dos
cientistas sociais participantes do projeto, viajara para os Estados Unidos ao lado de Myrdal a
seu pedido (Southern, 1987).
Egresso da Escola Sociológica de Chicago, Arnold M. Rose ficou responsável pela coorde-
nação da equipe junto com Sterner. Ambos os assistentes acompanharam de muito perto o de-
senrolar da pesquisa de campo feita por Myrdal em alguns estados sulistas logo que chegara
ao país. A pesquisa de campo foi considerada decisiva, tanto quanto humanamente dramática,
posto que a aproximação dos estrangeiros com a realidade nua e crua do racismo segrega-
cionista do Sul os convenceu de que o problema para o qual a Carnegie buscava solução não
resultava apenas do comportamento do negro. Era mais do que isso. Tratava-se de um dilema
racial alimentado pelo branco. Seria, portanto, o racismo dos brancos, sua supremacia, o fator
determinante na criação de um conflito, danoso e persistente, entre o credo norte-americano
e a democracia dos e para os brancos.
Os objetivos do projeto foram ampliados depois dessa constatação, sem empecilhos ou
outras dificuldades impostas por Keppel, pois a ele interessava observar o limite ao qual Myrdal
chegaria depois de tomar conhecimento da situação de mal-estar civilizacional criada pela vio-
lência contra os negros do país. O dilema norte-americano, por conseguinte, passou a problema
central da investigação em curso. Nela, Myrdal aplicou a mesma metodologia não neutra, capaz
de reconhecer a ambivalência dos valores democráticos dos Estados Unidos, anteriormente
desenvolvida em sua obra econômica – ponto de partida para sua interpretação da questão
racial, entendida como problema negro. Tal compreensão foi suplementada com os dados dos
assistentes acerca da ambivalência do credo norte-americano, isto é, o choque entre a ordena-
ção do sistema democrático e as atitudes segregacionistas dos brancos contra os negros.
Arnold M. Rose recebeu a incumbência de terminar a redação de An American Dilem-
ma quando Myrdal tivera que retornar à Suécia, em 1943, antes da conclusão do projeto. A
pesquisa, graças ao trabalho complementar de Rose, tomou a forma final de An American
Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy, livro escrito quase por inteiro pelo
próprio Myrdal, cuja visão moral do dilema norte-americano era uma significativa diferença
em relação ao que havia sido dito, quer em chave culturalista, quer em chave marxista, sobre
as relações raciais naquele país.
Em suas mais de mil páginas, o livro enciclopédico trouxe um debate crítico com as teses
de cientistas sociais como Robert E. Park, Franklin Frazier, Franz Boas, Ashley Montagu, entre
outros. O sueco, ao rejeitar de novo o marxismo como modelo explicativo da desigualdade
racial nos Estados Unidos – como fizera na obra acerca do desenvolvimento econômico

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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil

mundial –, usou o princípio das causas acumulativas para explicar o distúrbio nos padrões
urbanos e rurais de vida dos negros.
O ponto fundamental consiste na tese de que um distúrbio no estágio inicial do equilí-
brio sistêmico não estimula reações compensatórias nem tende a restaurá-lo. Ao contrário, o
distúrbio produz mudanças que movem o sistema para longe de sua posição inicial. O padrão
de vida dos brancos, muito superior ao dos negros, é visto como um distúrbio para o sistema
igualitário norte-americano. O tratamento intensamente desigual dispensado ao grupo negro,
na mesma sociedade do grupo branco, é visto como movimento que afastou, ao longo da his-
tória, o equilíbrio do sistema para muito longe da democracia, criando desse modo um dilema,
que Myrdal começou a tese definindo:

O problema negro é um problema no coração do americano. É aí que a tensão inter-racial tem


seu foco. É aí que a luta decisiva continua. Tal é o ponto de vista central deste estudo. Nosso
estudo aborda as relações raciais em chave econômica, social e política, e no fundo nosso pro-
blema é o dilema moral do americano: o conflito nos valores morais presentes em vários níveis
de sua consciência e em seu cotidiano. O “dilema americano”, a que referimo-nos no título
deste estudo, é o atroz conflito entre, de um lado, os valores preservados no plano geral, que
chamaremos de “credo americano”, com o qual o americano pensa, fala e age sob a influência
dos mais altos preceitos nacionais e cristãos, e, de outro lado, as apreciações em níveis espe-
cíficos da vida individual e coletiva, nas quais interesses pessoais e locais; invejas econômicas,
sociais e sexuais; noções de prestígio social e padrão de conformidade; preconceito de grupos
contra pessoas em particular ou tipos de pessoas; e diferentes formas de desejos, impulsos e
hábitos dominam sua perspectiva. (Myrdal, 1944: XLVII)

O conflito interno no credo norte-americano, segundo Myrdal, corrompe o sistema democrá-


tico a tal ponto que chega a criar distúrbios quase irrecuperáveis para o sistema. A situação para-
doxal do negro depois da abolição – livre, mas desigual – seria um reflexo da falta de equilíbrio na
democracia. O autor resume a discussão ao argumentar que o padrão de vida dos negros se man-
teve, no pós-abolição, muito mais baixo do que o dos brancos: “De um lado, este padrão de vida
é mantido baixo pela discriminação dos brancos, enquanto, de outro lado, a razão de os brancos
discriminá-los [os negros] é parcialmente dependente do padrão de vida dos negros” (1944: 1066).
Problemas humanos, comportamentais ou estruturais, como pobreza, ignorância, supers-
tição, favelas, deficiências de saúde, aparência de sujeira, conduta desordenada, mau cheiro e
criminalidade, alimentavam a antipatia dos brancos em relação aos negros. O padrão de vida
dos negros, ou sua situação social, foi a chave de Myrdal para a análise do dilema norte-a-
mericano. Para estudá-lo, o time de cientistas sociais assistentes entrara em ação, fornecendo
dados e outras evidências sobre diversas variáveis de relações raciais.

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An American Dilemma analisou o padrão de vida dos negros em comparação com o do


branco com variáveis relacionadas a emprego, salário, habitação, lazer, alimentação, saúde,
educação, direitos civis, associativismo, ação coletiva etc. Trata-se de um estudo abrangente,
menos histórico do que sociológico, com mescla de elementos behavioristas, funcionalistas e
interacionistas, no qual prevaleceu a tese moral de que o negro era um problema do branco.
Isso significa que o negro, à medida de seu desenvolvimento social, deveria ser normalmente
assimilado pelo branco em seu estilo de vida, cultura e sistema democrático. O negro seria
funcional para a democracia se o branco o integrasse à cidadania norte-americana, como
acontecera com os outros grupos imigrantes.
A tese de Myrdal não demorou a encontrar boa acolhida entre os intelectuais dos Esta-
dos Unidos e de diversos outros países. O livro fizera estrondoso sucesso interna e externa-
mente. Foram mais de 100 mil cópias vendidas no mundo inteiro entre 1944 e 1965, ano de
sua segunda edição. O sucesso começou primeiro no meio intelectual de brancos e negros que
apostavam na agenda antirracista como solução do problema negro, assim como importante
fator de mudança social em direção à democracia moderna. Barber apontou a razão de o livro
ter sido bem recebido nos primeiros tempos:

A chave foi o impacto sobre a consciência nacional baseado na convicção de Myrdal de que as
ideias morais tinham força. Uma vez que uma mudança na direção positiva estivesse concluída,
as causas acumulativas proveriam a dinâmica com mais aprimoramentos (2008: 74).

De fato, o economista-sociólogo demonstrou, de forma consistente, a tese das causas


acumulativas, testando-a na análise empírica e explicando-a nas notas metodológicas apen-
sadas ao livro, porque as causas acumulativas interferem no equilíbrio do sistema de variáveis
socioeconômicas interdependentes e são a engrenagem da igualdade racial:

Entendemos que um movimento em qualquer uma das variáveis negras na direção dos ní-
veis brancos tenderá a diminuir o preconceito do branco. Ao mesmo tempo, o preconceito
do branco é responsável, direta ou indiretamente, pela mais efetiva manutenção dos níveis
baixos relativos às variáveis negras. É também nossa hipótese que, no todo, o melhoramento
de qualquer uma das variáveis negras tenderá a melhorar todas as outras variáveis negras e,
assim, indiretamente assim como diretamente, resultará num acumulativo e reforçado efeito
sobre o preconceito do branco. Um acréscimo no emprego tenderá a aumentar a renda; elevar
os padrões de vida; e melhorar a saúde, a educação, o comportamento e a obediência civil,
e vice-versa; uma melhor educação é capaz de aumentar as chances de empregos mais bem
remunerados, e vice-versa; e assim em todo o percurso através de nosso completo sistema
de variáveis. Cada uma das mudanças secundárias tem efeito sobre o preconceito do branco
(MYRDAL, 1944: 1066-1067).

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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil

Enquanto o impacto de An American Dilemma ultrapassava as fronteiras dos Estados


Unidos, sua tese era debatida pelos intelectuais do país com muito interesse. Durante os anos
1940 e 1950, a recepção do livro acontecera sobretudo no mundo acadêmico. Cientistas
sociais, economistas e historiadores norte-americanos, ligados principalmente à ideologia da
terceira via, foram favoráveis à tese das causas acumulativas.
Os positivos comentários de Schlesinger, Frazier e Du Bois na imprensa nacional, en-
fatizando a urgente necessidade moral de dessegregação racial na nação, são um indício
da recepção favorável de An American Dilemma. A importância do livro foi igualada à de
obras penetrantes na vida norte-americana, em especial Democracy in America, de Alexis de
Tocqueville, e The General Theory of Employment, Interest, and Money, de John Maynard
Keynes (Southern, 1987).
Southern narrou o percurso da influência do livro quando grassava mundo afora. Mem-
bros da direita republicana atuante no Congresso, numa espécie de contra-ataque, costuma-
vam negar a tese das causas acumulativas. Para isso, postularam o argumento de que o livro,
de maneira mais ampla, não tinha sustentação. Se emocionava os norte-americanos com sua
retórica sentimental sobre o credo democrático, desconhecia o modo de vida formado pelas
longas e singulares relações entre patrões brancos e trabalhadores negros – os senhores e os
escravos de outrora – no Deep & Old South. A ala de direita alimentaria polêmicas sobre o
livro desde o princípio, buscando obstaculizá-lo na esfera pública.
O impacto político, ao extrapolar os limites do mundo acadêmico, fez-se real a partir dos
anos 1960. Na corte suprema, nas escolas primárias, no movimento pelos direitos civis e em
muitas outras dimensões da esfera pública, o efeito da tese de Myrdal crescia na medida em
que era usada para justificar atitudes visando a mudanças raciais irreversíveis na sociedade
norte-americana.
Se a discriminação pelo branco passou a ser imoral e mesmo um pecado, prática in-
compatível com os ideais democráticos valorizados no pós-Segunda Guerra Mundial, a des-
segregação racial e a integração do negro na sociedade de classes, por meio do mercado de
trabalho, se tornaria o principal caminho defendido pelos adeptos da tese de Myrdal para
a agenda de antirracismo. Chegavam, assim, a vislumbrar uma solução do problema negro
acompanhada pelo desenvolvimento social e econômico do país (Southern, 1987).
Em “America Again at the Crossroads of the Negro Problem”, desfecho do livro, Myrdal
expôs a circunstância histórica oportuna para o desenvolvimento internacional do antirra-
cismo pela liderança geopolítica dos Estados Unidos no contexto do pós-Segunda Guerra
Mundial. Também presente em diferentes passagens da obra estava a tese explicativa da

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Gustavo Mesquita

desigualdade na sociedade de classes, ou seja, o sistema de variáveis interdependentes. Essa


tese, na passagem dos anos 1950 para os 1960, foi tida por muitos como capaz de prever
consequências do problema negro para o sistema social igualitário, assim como tendências
decisivas nas ações de eliminação do racismo.
Os intelectuais de esquerda não estariam mais desalentados em sua atuação contra o
racismo, tampouco estariam ilhadas as organizações negras em sua luta pela ascensão social.
Ambos os setores civis receberam apoio do Estado, da Justiça e dos governos eleitos. As polí-
ticas de ação afirmativa implementadas a favor da dessegregação racial foram apoiadas pelos
líderes do movimento nacional pelos direitos civis, sendo Martin Luther King Jr. o grande guia
do protesto não violento.
As mudanças raciais em curso nos Estados Unidos contaram com a defesa da Organi-
zação das Nações Unidas (ONU) e da Unesco, instituições das quais o casal Gunnar e Alva
Myrdal era administrador e líder intelectual. A tese de An American Dilemma e o programa
de antirracismo nele desenvolvido tiveram impacto na construção dessas mudanças pelos
sujeitos inconformados, de uma forma ou de outra, com as agruras e os sofrimentos gerados
pelo racismo nos Estados Unidos.6
Ao olharmos para o mundo acadêmico do Brasil, observamos que as políticas da Unesco
alargaram o elo dos cientistas sociais da Universidade de São Paulo (USP) com o pensamen-
to de Myrdal, constituído por frequentes diálogos com a tese central de seu An American
Dilemma. Um desafio estava colocado a esses cientistas sociais: era possível comparar as duas
sociedades diferentemente do pensamento de Gilberto Freyre?

A emergência do dilema brasileiro: diálogo


sociológico internacional

C omo sociedades de castas são formadas? Como ocorre a transição desse sistema social
para o de classes? Como raças entram em evolução para classes sociais e livram as
sociedades dos preconceitos antidemocráticos? Qual a função do negro e do branco nesse
processo social? O que, afinal, significam raça, casta, estamento e classe? Enfim, como se
operam tais conceitos teóricos na análise da discriminação racial no Brasil? Lado a lado com
a tradição formada principalmente pelos estudos interacionistas e culturalistas de Chicago e
Columbia, An American Dilemma trazia respostas a essas perguntas, dado seu volume enci-
clopédico de conceitos teóricos, métodos e técnicas em ciências sociais.7

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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil

Em São Paulo, a princípio, os cientistas sociais profissionais e em formação, ligados à


Escola Livre de Sociologia e Política (Elsp) e à Faculdade de Filosofia da USP, usaram o livro
em suas pesquisas sobre as relações raciais brasileiras desde o desenvolvimento do Proje-
to Unesco.8 Entender An American Dilemma lhes parecia essencial em termos do manejo
de conceitos teóricos universais e explicativos de processos histórico-sociais não restritos
aos Estados Unidos.
Assim aconteceu a recepção do livro no Brasil. Era uma leitura obrigatória, caso o pes-
quisador tivesse expectativa de desenvolver estudos de relações raciais sérios. Com a incorpo-
ração do pensamento de Myrdal, tornou-se possível fazer diagnósticos acerca do tratamento
historicamente dispensado ao negro resultante na desigualdade brasileira.
Embora os principais depoimentos de Fernandes (1977 e 1978a) em torno de sua for-
mação intelectual sejam bastante discretos ao nos revelar as inspirações teóricas que o ani-
maram, nossa pesquisa, mais acurada, encontrou um comentário em que ele reconhece a
importância decisiva de Myrdal para as ciências sociais. Em sua visão, o economista-sociólogo
sueco era um inovador homem de ciência:

Um homem que representa a tradição europeia, esse Myrdal, ele escreve um livro todo sobre
o elemento político na economia [referindo-se ao The Political Element in the Development
of Economic Theory, de 1953]. Um professor americano poderia escrever uma biblioteca toda,
uma enciclopédia para provar que não deve existir elemento político na ciência. Esse é um
contraste vigoroso. É por isso que o livro de Myrdal, An American Dilemma, aqueles apêndices
tiveram uma importância tão grande nos Estados Unidos, porque levaram a uma fermentação
nova (1978b: 26).

No momento em que o sucesso mundial de An American Dilemma era evidente, a fer-


mentação de teses inovadoras não acontecia apenas no mundo acadêmico dos Estados Uni-
dos. Em São Paulo, o ambiente intelectual era adequado à recepção absortiva do livro, graças
à crescente institucionalização das ciências sociais na Elsp e na Faculdade de Filosofia desde
os anos 1930. O modelo de ensino e pesquisa da Escola Paulista praticado nesse momento
estava inspirado no de Chicago, e os cientistas sociais de Chicago foram os que mais contri-
buíram para a pesquisa de An American Dilemma, a despeito dos demais centros norte-ame-
ricanos. Assim, podemos ver que a formação intelectual dos pesquisadores paulistas permitiu
a absorção da tese central de An American Dilemma, bem como de seu programa antirracista
proposto em bases liberal-reformadoras.
Os usos de An American Dilemma pelos paulistas, nos anos 1950, diferiram dos da
década anterior, apresentando tendência de crescimento. Esses intelectuais ainda eram os

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Gustavo Mesquita

principais apoiadores do livro no Brasil, mas seus usos pouco a pouco deixaram de ser ocultos
e começaram a ser mais pronunciados. Parece que falar sobre o racismo na década anterior
era algo mais arriscado e menos incentivado do que na década seguinte, quando os cientistas
sociais de São Paulo se sentiram confiantes para lançar uma antítese à interpretação da socie-
dade brasileira desenvolvida em Casa-grande & senzala.9
Quando, em 1953, entravam em fase de conclusão os inquéritos sobre valores, com-
portamentos e atitudes característicos das relações raciais no espaço paulista, Paulo Duarte
(1947) publicou uma nota introdutória a seus resultados em Anhembi. Longe do que afirmara
seis anos antes, em O Estado de S. Paulo, a respeito da cordialidade e da ausência de racismo
no Brasil, dessa vez os novos estudos do negro assumiram um caráter urgente.
O projeto da Unesco tinha importância à medida que esclareceria um problema cada
dia mais grave para a democracia brasileira: o tema negro. Essa investigação, todavia, não
tinha abrangência apenas nacional. Sua universalidade decorre, para ele, da oportunida-
de de compreender inconsistências, restrições e males que a temática negra, sub-reptícia
e ardilosamente, causa ao sistema democrático. Conhecer as causas dessa questão era,
assim, fundamental:

Foi assim que Unesco e Anhembi se encontraram unidas na realização de um mesmo trabalho
de alta significação universal, como seja uma análise objetiva mas feita em profundidade sobre
a vida da população negra do Brasil, país universalmente considerado como aquele que melhor
solução estava dando ao problema, entre todos os países brancos possuidores de importante
parcela de população de cor. (Duarte, 1953: 433)

A urgência do projeto da Unesco, elevada a um consenso entre os intelectuais colabora-


dores de Anhembi, era tamanha que em três anos os inquéritos foram concluídos.10 A meto-
dologia da pesquisa dos paulistas, contando com um time de psicólogos sociais e sociólogos
que aplicaram testes e questionários entre pessoas negras e brancas, entrou em harmonia com
os métodos da Escola de Chicago, como a observação participante, a história de vida, as en-
trevistas individuais e coletivas e os fóruns de debate com ativistas do movimento negro local.
Essa foi a mesma metodologia estabelecida por Myrdal para seus assistentes na pesquisa de
An American Dilemma.
Ao modo dos cientistas sociais ianques, os paulistas analisaram as principais variáveis
constitutivas do padrão de vida dos negros. A primeira conclusão a que chegaram é parecida
com a de Myrdal: há um círculo vicioso em São Paulo, resultante da discriminação racial, que
empurra o padrão de vida dos negros para baixo e não os deixa ascender livremente na escala
social (Bastide e Fernandes, 1959).

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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil

A ascensão social do negro e do mulato encontra barreiras raciais desde o século XIX,
na medida em que os indivíduos com tais cores tentam crescer na competição social, esfor-
çando-se para vencê-la em busca das melhores oportunidades no mercado. Lembremos que
o tema das pesquisas feitas em São Paulo reside na situação do negro na ordem competitiva,
fundante do sistema social igualitário. Isso significa que o interesse dos cientistas sociais, ao
contrário das sobrevivências africanas na cultura negra contemporânea, se concentrava na
inserção do negro e do mulato no mercado de trabalho. Tal questão era, na verdade, uma dire-
triz endossada pela Unesco e observada por Bastide, Fernandes e seus assistentes, igualmente
interessados no direcionamento da pesquisa dado pela organização internacional.
Se o preto e o pardo sofrem discriminação racial nas áreas modernas e industriais do país,
a ordem competitiva apresenta inconsistências de natureza estrutural. O problema negro seria de
estrutura social e merecia solução urgente. É a origem do problema a mesma dos Estados Unidos?
Ficou clara, nas Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, a tese nativa segundo a qual,
no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, há preconceito de marca, e não de origem. Desse modo,
o branco racista discrimina, antes de tudo, a cor ou o fenótipo das pessoas pretas e pardas, assim
como tudo o que essas cores representam simbolicamente, para ele, em termos negativos.
Nos Estados Unidos, numa comparação que exprime graus de intensidade dos racismos,
a discriminação é, sobretudo, de origem, atitude preconceituosa mais explícita e violenta por
causa de sua tendência à exclusão de todas as pessoas com origens étnicas e nacionais dife-
rentes da supremacia branca norte-americana (Nogueira, 1955).
O primeiro ciclo brasileiro de pesquisas raciais da Unesco chegara ao fim na virada da
década de 1950 para a de 1960, mas as obras dele resultantes ainda eram publicadas conse-
cutivamente. Em 1957, antes do definitivo encerramento do ciclo, Bastide chamou a atenção
para o dilema brasileiro no International Social Science Bulletin. Trata-se de uma das primeiras
vezes em que o racismo dos Estados Unidos foi comparado ao do Brasil de forma invertida,
em Brazil: An Interpretation, de Gilberto Freyre.

Myrdal falou do “dilema americano”. Talvez o conjunto de fatos e interpretações discutidos nes-
te artigo possam ser resumidos ao dizermos que há também um “dilema brasileiro”. O distúrbio
da estrutura social e o desenvolvimento das ideias democráticas estão tendendo a substituir o
velho paternalismo pela luta não mais por igualdade formal, mas agora econômica e racial.
Esta luta enseja consciência racial entre as pessoas de cor e discriminação entre os brancos [...]
No Brasil industrial, este dilema é revelado, neste momento, pela forma que a discriminação
assume [...] A grandeza do Brasil consistirá em sair de seu dilema passando do paternalismo
ao igualitarismo sem perder, na passagem, as qualidades de amor, de tolerância, de respeito
mútuo, que caracterizam seus filhos (1957: 512).

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Gustavo Mesquita

Bastide afirmou que, no Brasil, se vive um dilema similar ao norte-americano. Em termos


de racismo, é parecido, mas não idêntico, o que cria um drama humano, mal-estar e violência
menos intensos do que os existentes nos Estados Unidos. A diferença elementar entre os racis-
mos, para ele, se refere à escala de violência contra os negros. Enquanto nos Estados Unidos
os brancos excluíam os negros da democracia pelas armas do preconceito, da discriminação e
da segregação legalizadas, no Brasil os negros não eram violentados com leis de segregação
racial, mas havia, de fato, sub-reptício racismo à brasileira. O termo não foi dito nesse mo-
mento por Bastide, com essas palavras, embora sua reflexão já exprimisse o mesmo sentido.
A forma assumida pela discriminação do negro no Brasil, então se entendia, é a do
racismo à brasileira, um modo enganosa de manter o negro em seu lugar, com pouco status
e baixo padrão de vida. Antes mesmo do International Social Science Bulletin, essa foi a tese
desenvolvida por Bastide e Florestan nos artigos de Anhembi, logo depois reunidos nas Rela-
ções raciais entre negros e brancos em São Paulo.
As atitudes e os comportamentos de discriminação no Brasil atravessariam uma escala en-
tre 0 e X, na qual X significa abertura indefinida para a violência contra o negro, cada vez mais
exacerbada, próxima do racismo norte-americano. Mas ainda prevaleceria, mesmo nas maiores
metrópoles, uma forma enganosa de discriminação racial, diferente da dos Estados Unidos:

A um negro é negado um cargo não porque ele é negro – ele é informado que a vaga infeliz-
mente acabou de ser preenchida. A ele não é negada uma promoção na carreira profissional
– ele não é aprovado no exame médico. Esta solução, que não engana ninguém, obviamente
não pode durar (Bastide, 1957: 512).

O racismo velado não pode durar, senão o sistema democrático no Brasil não alcança o
equilíbrio necessário para acelerar a modernização. Não pode durar porque o racismo entrou
num círculo vicioso que atrasa a modernização. A transição completa para o sistema social
igualitário, preservando as características positivas da cultura brasileira, só estaria verdadeira-
mente completa com a solução do dilema brasileiro e nosso problema negro. As raças ainda
fazem sentido nas relações sociais, ao passo que, sociologicamente, o sistema social igualitá-
rio é incompatível com o pensamento racial – daí o fato de nosso dilema ter tido destaque no
ciclo de pesquisas da Unesco, sendo constante motivo de preocupação para cientistas sociais
e diretores da organização internacional.
Em 1964, Fernandes aprofundou o estudo da desigualdade brasileira com sua tese para pro-
fessor titular da USP: A integração do negro na sociedade de classes. Conquanto nativa, a interpre-
tação da questão racial continuou se valendo do argumento das causas acumulativas de Myrdal:

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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil

Como ex-agentes do trabalho escravo e do tipo de trabalho manual livre que se praticava na
sociedade de castas, o negro e o mulato ingressaram nesse processo [o de constituição da
ordem social competitiva] com desvantagens insuperáveis. As consequências sociopáticas da
desorganização social imperante no “meio negro” ou da integração deficiente à vida urbana
concorreram para agravar o peso destrutivo dessas desvantagens, aniquilando ou corroendo
até as disposições individuais mais sólidas e honestas de projetar o “homem de cor” no apro-
veitamento das oportunidades em questão. Desse ângulo, percebe-se com facilidade como a
degradação pela escravidão, a anomia social, a pauperização e a integração deficiente combi-
nam-se entre si para engendrar um padrão de isolamento econômico e sociocultural do negro e
do mulato que é aberrante em uma sociedade competitiva, aberta e democrática. (1965: 192)

A favelização do negro é aberrante, para ele, porque reproduz incessantemente o dilema


brasileiro, emergido ao mesmo tempo que nascera a sociedade de classes:

Delineia-se claramente, assim, o dilema racial brasileiro. Visto em termos de uma das comuni-
dades industriais em que o regime de classes sociais se desenvolveu de modo mais intenso e
homogêneo no Brasil, ele se caracteriza pela forma fragmentária, unilateral e incompleta com
que esse regime consegue abranger, coordenar e regulamentar as relações raciais. Essas não
são totalmente absorvidas e neutralizadas, desaparecendo atrás das relações de classes. Mas se
sobrepõe a elas, mesmo onde e quando as contrariam, como se o sistema de ajustamentos e de
controles sociais da sociedade de classes não contivesse recursos para absorvê-las e regulá-las
socialmente (Idem: 391).

Vendo a reprodução incessante do dilema brasileiro, que não permite que as relações de
raça se tornem relações de classe numa sociedade de classes democrática, resta a Fernandes
lançar, em A integração do negro na sociedade de classes, sua conclusão final, análoga à de
An American Dilemma, relativa aos Estados Unidos:

Essa explicação permite situar o problema do negro de uma perspectiva realmente sociológica.
Ele não constitui um “problema social” apenas porque evidencia contradições insanáveis no
comportamento racial dos “brancos”, porque traduz a persistência indefinida de padrões iní-
quos de concentração racial da renda, do prestígio social e do poder ou porque, enfim, atesta
que uma parcela considerável da “população de cor” sofre prejuízos materiais e morais incom-
patíveis com os fundamentos legais da própria ordem social estabelecida. Esses sintomas con-
duzem à superfície o mal crônico, que é mais grave e pernicioso. Trata-se das condições mínimas
de diferenciação e de integração normais de um sistema social. (1965: 392)

Perde o sistema social igualitário, perdem os cidadãos, perde a nação. As novas teses
brasileiras de relações raciais logo viajaram de volta para os Estados Unidos, graças a sua
rápida e eficiente difusão no mundo acadêmico daquele país. Em 1953, Richard Morse, então
professor de história das américas em Columbia, publicou um artigo no The Journal of Negro

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Gustavo Mesquita

History (1953). Fernandes foi aqui considerado um inovador cientista social que, desafiando
o imponente pensamento de Freyre, desenvolvia uma nova interpretação do Brasil: o dilema
brasileiro. Não continua o Brasil a ser pensado por cientistas sociais e historiadores de ambos
os países como um dilema nacional até nossos dias? Acredito que a história da sociologia
ainda tenha muito a dizer sobre essa questão.

Notas

1 Anhembi era identificada por seu criador, Paulo Duarte, como uma revista de cultura. Foi criada em São
Paulo, em 1950, em alinhamento ao ideário liberal dos pioneiros da USP, centrado fundamentalmente no
papel da ciência como orientação dos rumos da sociedade. Em seu apogeu, graças à tão profícua parceria
estabelecida com a Unesco, o periódico dera uma contribuição significativa para o debate contemporâneo
sobre relações raciais relativo não só ao Brasil, mas de forma universal. Artigos dessa natureza, produzidos,
por exemplo, pelos sociólogos Oracy Nogueira, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando
Henrique Cardoso, eram comuns em suas páginas. Entretanto, a revista teve de encerrar as atividades em
1962, em virtude de uma grave crise financeira (Hayashi, 2010).
2 O livro Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, organizado por Roger Bastide e Florestan
Fernandes, é só um exemplo das várias pesquisas raciais financiadas pela Unesco no Brasil entre os anos 1950
e 1960. Foi publicado pelo convênio Anhembi/Unesco, em 1955, e contou com monografias, além das dos
organizadores, de Oracy Nogueira, Virgínia Bicudo e Aniela Ginsberg. Em 1959, na segunda edição da obra,
inscrita na Coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional, foram excluídas as monografias dos outros
pesquisadores, com exceção de Bastide e Fernandes, e seu título foi encurtado para Brancos e negros em São
Paulo.
3 Representativa dessa tradição intelectual é a coletânea Race Relations and the Race Problem, organizada
por Thompson (1939), em que um conjunto de cientistas sociais, sob a liderança de Robert Park, abordou o
racismo do ponto de vista interacionista. A pergunta-chave do livro era: como a compreensão do conflito racial
pode auxiliar a integração da sociedade norte-americana?
4 Economista e sociólogo sueco, Myrdal já era um social-democrata fortemente anticomunista e reformista em
meados dos anos 1930. A primeira edição de seu livro The Political Element in the Development of Economic
Theory apareceu nessa época, exprimindo um economista crítico das leis naturais de Adam Smith e do utilita-
rismo de John Stuart Mill. Foi discípulo do também sueco Knut Wicksell, cujas lições em economia, em síntese,
giram em torno da importância da teoria monetária para o equilíbrio das nações. Myrdal buscou expor, ao longo
de sua trajetória, as falácias dos teóricos clássicos e tornar possível a introdução de premissas de valor, como
moralidade, crenças e costumes, na análise social e econômica. Ganhou o Nobel de Economia pelo conjunto da obra
em 1974 (Barber, 2008).
5 Arthur M. Schlesinger Jr., Eleanor Roosevelt, Walter Reuther e outros precursores do Americans for Democra-
tic Action (ADA), embrião do que mais tarde se tornaria a Unesco, além de intelectuais como Edward Franklin
Frazier, Gunnar Myrdal, Hanna Arendt, Ashley Montagu e Margaret Mead, foram importantes agentes do mo-
vimento internacional pelos direitos humanos. Apoiado pelo presidente Harry Truman, o movimento foi confi-
gurado em torno da ideia de third force, uma estratégia política não alinhada nem à esquerda nem à direita,
mas ao centro vital, tendo a defesa do desenvolvimento econômico como engendrador da liberdade. A agen-

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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a
democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil

da dos direitos humanos, por enfocar setores marginalizados da sociedade, pressupunha, desde o começo,
essa concepção político-ideológica. Ela era o caminho, diziam seus inventores, para as democracias ocidentais
evitarem a infiltração da ideologia comunista, especialmente nos países subdesenvolvidos (Cancelli, 2012).
6 A inconformidade à falta de democracia desconheceu consenso tão absoluto assim. Imediatamente, alguns
intelectuais se posicionaram contra a tese de Myrdal e rejeitaram seu programa de antirracismo liberal-refor-
mador. Foi o caso de Ralph Ellison e Carter Woodson, dois ativistas negros, e de Herbert Aptheker, membro
do Partido Comunista dos Estados Unidos. As críticas desses intelectuais tiveram em comum a rejeição do
reformismo presente no livro. Haveria um compromisso político de Myrdal com a modernização da socieda-
de americana, o qual se sobreporia à interpretação mais isenta da questão negra. A visão liberal do autor
resultaria de seu compromisso político-ideológico com os ideais de modernidade burgueses. Para ambos
os ativistas negros, o reformismo implicava a nociva negação da originalidade da cultura afro-americana,
ao passo que, para o comunista, Myrdal era um representante da classe dominante, cujas reformas liberais
atenderiam somente às prementes necessidades de mudança da ordem capitalista, tornando-a mais tolerante
com diferenças étnico-raciais (Ellison, 2003).
7 Estudos bem informados sobre a história das ciências sociais no Brasil e no exterior são encontrados em
Stocking, 1982; Oliveira, 1987; Miceli, 1989 e 1995; Cuche, 2008; Maia e Pereira, 2009; Brasil Júnior, 2013;
Meucci, 2015; Maio e Lopes, 2017.
8 No que toca à fração paulista, já na segunda nota de rodapé do projeto de pesquisa coletivo, escrito por
Florestan e revisado por Bastide, nota-se a onipresença de An American Dilemma e das obras clássicas de
Chicago, recomendadas como referência obrigatória no campo intelectual e usadas como fundamentação
teórica da pesquisa a ser desenvolvida (Bastide e Fernandes, 1959: 323).
9 Em 1948, em “A análise sociológica das classes sociais”, artigo aparecido pela primeira vez em Sociologia
– Revista didática e científica, editada pela Elsp, Florestan relativizou a significação do conceito de classes
sociais. Nessa relativização, porém, afirmou que a conceituação de Myrdal, desenvolvida nos apêndices de
An American Dilemma, era a mais próxima da realidade social, já que não definia classe só como condição
material, mas, paralelamente, como valores e crenças constitutivas das identidades (Fernandes, 1948: 112).
10 O problema negro recebeu tanta atenção no Brasil que Anhembi com frequência abordava o assunto.
Avanços científicos, com pretensão de universalidade, em torno do pensar e do equacionar a questão racial
em múltiplos países, logrados por cientistas sociais franceses, ingleses, mexicanos etc., foram trazidos à tona
pela revista em busca da instrução antirracista de seu público leitor. Evidência disso é o artigo “O racismo e
a ciência” (1954), no qual a crítica à discriminação racial identificada no Brasil foi feita à luz das conclusões
de Arnold M. Rose, em The Origins of Prejudice, e Michel Leiris, em Race et Civilisation. Esses sociólogos par-
ticiparam de um projeto mais amplo da Unesco, intitulado The Race Question in Modern Science, responsável
pelas novas dimensões do conceito de raça. Para uma análise transnacional da atuação da Unesco no campo
das relações raciais, ver Cancelli, Mesquita e Chaves, 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 447-449, maio-agosto 2019 447
Gustavo Mesquita

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Artigo

Ensaio e interpretação do Brasil no


modernismo verde-amarelo (1926-1929)
Essay and Brazil’s interpretation by verde-amarelo modernism
(1926-1929)
Ensayo e interpretación de Brasil en el modernismo verde-amarelo
(1926-1929)

Lorenna Ribeiro Zem El-DineI* 2

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200007

I
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro – RJ, Brasil.

*Doutora em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro,
Brasil. (lrzedine@gmail.com). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4055-8733.

Artigo recebido em 10 de março de 2019 e aceito para publicação em 5 de julho de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 450-468, maio-agosto 2019 450
Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)

Resumo
Este artigo analisa publicações da vertente Verde-amarela/Anta do modernismo paulista, entre os anos de 1926 e
1929, no jornal diário Correio Paulistano. Discute a hipótese de que as proposições de Cassiano Ricardo, Menotti
Del Picchia, Plínio Salgado e demais participantes do grupo, para o estudo do Brasil e dos brasileiros, devem ser
analisadas tendo em conta, além do discurso de valorização da intuição estética, seus diálogos com os ensaios de
interpretação nacional na tradição brasileira e latino-americana, os quais os verde-amarelos teriam considerado
como forma adequada de aproximação com o discurso científico sobre a realidade brasileira.

Palavras-chave: Modernismo; Interpretação do Brasil; Ensaio; Movimento Verde-amarelo/Anta; Relações raciais;


José Vasconcelos.

Abstract

The article analyzes authors of the group Verde-amarelo/Anta, a trend of paulista modernism. Cassiano Ricardo,
Menotti Del Picchia, Plínio Salgado published articles on the newspaper Correio Paulistano between 1926 and 1929.
I argue they understood Brazil and Brazilian people through the Brazilian and Latin American tradition of nation
essays, as Alberto Torres and José Vasconcelos. Those essays were a part of the historical and sociological culture of
the early twenty century. Then I conclude that the authors had a more complex relationship with scientific discourse
than the historiography of the modernism admit, beyond the aesthetic intuition and an anti-scientific discourse.

Keywords: Modernism; Interpretations of Brazil; Essay; Verde-amarelo/Anta movement; Races relations; José
Vasconcelos.

Resumen
Este artículo analiza publicaciones de la vertiente Verde-amarela/Anta del modernismo paulista, entre los años 1926
y 1929, en el diario Correio Paulistano. Sostengo la hipótesis de que para analizar las proposiciones de Cassiano
Ricardo, Menotti Del Picchia, Plínio Salgado y demás participantes del grupo, para el estudio de Brasil y de los
brasileños, se debe tener en cuenta, además del discurso de valorización de la intuición estética, sus diálogos con
los ensayos de interpretación nacional en la tradición brasileña y latinoamericana, que los verde-amarelos habrían
considerado como forma adecuada de acercamiento con el discurso científico sobre la realidad brasileña.

Palabras clave: Modernismo, Interpretación de Brasil; Ensayo; Movimiento verde-amarelo/anta; Relaciones


raciales; José Vasconcelos.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 451-468, maio-agosto 2019 451
Lorenna Ribeiro Zem El-Dine

Introdução

A naliso neste artigo a apologia dos ensaios de interpretação nacional por parte da ver-
tente verde-amarela/anta do modernismo paulista, manifestada em artigos publicados
no Correio Paulistano, entre 1926 a 1929. Argumento que a valorização da intuição, em de-
trimento dos processos analíticos do conhecimento, embora uma marca reconhecida do grupo
de Plínio Salgado, Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo (Jardim, 2016),1 não significou um
contraponto irremediável a formas reflexivas de apreensão da realidade. A meu ver, a tensa
relação dos verde-amarelos com o discurso científico terminaria por respaldar a tradição en-
saística nacional e latino-americana, aqui compreendida como parte da cultura historiografia
e sociológica brasileira das primeiras décadas do século XX.
Considero nesta análise a importância de situarmos o modernismo de São Paulo no pa-
norama das mudanças ocorridas no cenário intelectual brasileiro do início do século XX e de
nos lembrarmos dos caminhos pelos quais se deu a institucionalização das ciências sociais em
distintos contextos nacionais (Lepenies, 1996; Martins, 2003), considerando as tensões entre
os literatos e os cientistas, que permearam o processo de especialização dos saberes no Brasil
(Sá, 2006). Com base nesse enfoque, apesar da marca anti-intelectualista verde-amarela, a
participação desse grupo na interpretação do país, tarefa que os intelectuais dos anos 1920
estabeleceram como fundamental, pode, enfim, ser examinada.
Investigo as publicações verde-amarelas como discursos que não só defenderam a prer-
rogativa do artista como intérprete da brasilidade, mas também tencionaram outras perspec-
tivas a partir das quais se produzia conhecimento sobre o Brasil e os brasileiros. Ao chamar a
atenção para polêmicas e reflexões que reverberarão nos desdobramentos do modernismo em
ensaios de caráter sócio-histórico de maior fôlego, publicados na década seguinte,2 cogito a
inclusão da reflexão dos verde-amarelos sobre o ensaísmo no escopo de uma “sociologia mo-
dernista” ou como parte da “floração” que antecede o “canteiro sociológico” mais abundante
dos anos 1930 (Martins, 2013: 61) e, consequentemente, também a inclusão do grupo no rol
dos chamados intérpretes do Brasil.
A eleição dessa perspectiva tem em vista que, nos últimos anos, a pesquisa em he-
merotecas digitais brasileiras como a da Biblioteca Nacional, a abordagem transnacional e
o interesse da historiografia sobre a formação de redes intelectuais implicam novos vieses
para uma história intelectual do modernismo. Acerca dos verde-amarelos, em periódicos dos
anos 1920, vem sendo possível mapear desde referências conhecidas a obras de brasileiros
como Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna e Roquette-Pinto até citações mais
dispersas a autores latino-americanos, como o uruguaio José Enrique Rodó e os peruanos

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Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)

Francisco Garcia Calderón e José Carlos Mariátegui, ou ainda mais sistemáticas, como no
caso de José Vasconcelos (El-Dine, 2017; Coelho, 2018). Além disso, é possível notar o
contato que tiveram com obras como as do alemão Hermann Keyserling e as do norte-ame-
ricano Waldo Frank, que nos anos 1920 e 1930 elegeram a América Latina como objeto de
suas reflexões e construíram sólidas redes intelectuais no continente ( Berriel, 1987; Lino,
2009; Faria, 2013).
Como escritores contumazes em periódicos e revistas, os verde-amarelos se inseriram
cada qual de um modo particular nos debates internos ao modernismo, bem como repisaram
a forma periodística do ensaísmo hispano-americano (Skirius, 2006: 12). Suas publicações
reagiram aos debates intelectuais e aos acontecimentos da época, transitando sobre o terreno
comum da percepção da decadência do legado cultural europeu e da crise da ordem liberal
no período no entreguerras. De fato, foi também interpelando esse contexto intelectual e a
própria crise do regime republicano brasileiro que os verde-amarelos e seus pares se voltaram
para o estudo do passado nacional e do brasileiro, produzindo intepretações do país que tanto
se acercaram quanto deslocaram os padrões científicos estrangeiros .
Ao mesmo tempo, não se pode esquecer que, como editores da revista literária Novíssi-
ma (1923-1926), Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia ensaiaram uma aproximação com
escritores latino-americanos, chegando a reunir um grupo eclético de colaboradores, do qual
participaram o mexicano Federico Gamboa, os uruguaios Juana de Ibarbourou e Vítor Perez
Petit, e os argentinos Alfonsina Storni, Lorenzo Stanchina, Manuel Galvéz, Nicolás Olivari e
Benjamín de Garay (Guelfi, 1989: 43).3
Inicialmente, analiso o lugar da crítica aos cientistas e aos procedimentos da ciência na
conformação do verde-amarelismo e de seus contrapontos aos pares modernistas. Em segui-
da, argumento queos verde-amarelos elegeram a tradição ensaística brasileira e latino-ame-
ricana como base teórica de seu movimento, numa tentativa de se diferenciarem de outras
correntes do modernismo, e chamo a atenção para suas leituras de Alberto Torres. Por fim,
sugiro uma relação entre ensaio e a interpretação do Brasil e dos brasileiros proposta pelos
verde-amarelos, tendo em vista seus diálogos com a obra de José Vasconcelos.
Ao longo do artigo, procuro observar a interlocução dos verde-amarelos com outros
modernistas e intelectuais da época, especialmente com Graça Aranha, Oswald de Andrade e
Mário de Andrade, a fim de estabelecer o contexto de suas reflexões.

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Lorenna Ribeiro Zem El-Dine

A ciência e o projeto verde-amarelo no interior do


modernismo paulista

E ntre fins do século XIX e começos do XX, em meio ao processo de especialização do


conhecimento no Brasil, a prerrogativa da interpretação nacional foi disputada por
literatos e cientistas. As transformações resultantes da crise da cultura bacharelesca e do
modelo intelectual “polivalente”, figura que transitava pelos diversos saberes, foi, muitas
vezes, representada nos discursos dos cientistas e de outros atores intelectuais da época
pela oposição entre diletantismo e saber prático (Sá, 2006). Além disso, um pouco mais
tarde, a mesma oposição serviu aos verde-amarelos para assinalarem o contraponto entre
os velhos e os novos atores do cenário intelectual brasileiro, num contexto em que os mo-
dernistas de São Paulo, já distribuídos em diferentes correntes, tencionavam cada vez mais
os limites entre arte e política.
Nos anos finais da década de 1920, os verde-amarelos se referiram com frequência ao
que havia de mais concreto na discussão sobre as fronteiras entre literatura e ciência, isto é,
a separação dos espaços de reconhecimento e sociabilidade intelectual. Cassiano Ricardo
criticou a recorrência com que a Academia Brasileira de Letras (ABL) vinha substituindo os
“homens de letras” pelos “homens de ciência” ou “de poucas letras” ( 25 out. 1926). No
ano seguinte, Menotti Del Picchia, que foi um participante ainda mais contumaz desse debate,
criticou a frequência com que os médicos vinham se metendo em departamentos alheios aos
de suas especialidades. Na sua visão, era uma afronta que os médicos, após conseguirem êxito
em sua profissão, se entregassem nas horas vagas a uma “artificiosa manufatura de sonetos”,
com os quais se ofereciam ao recebimento das “glórias acadêmicas”, rebaixando o “valor
superior da arte” (7 abr. 1927).
Além de um sintoma das transformações pelas quais passava o campo intelectual brasi-
leiro, há nessa crítica de Menotti Del Picchia um argumento que se desdobra na rejeição à arte
como passatempo e ao artista enclausurado em sua torre de marfim. Nesse sentido, boa parte
da retórica do grupo será empreendida na convocação dos intelectuais da época ao conheci-
mento da realidade nacional. Tal como outros intelectuais de seu tempo, que escreveram sob
o impacto da Primeira Guerra Mundial, da crise do modelo civilizacional europeu e do ideário
liberal, bem como do agravamento da crise política brasileira, que foi interpretado como a
falência do regime republicano nos moldes em que foi instituído na virada para o século XX,
os verde-amarelos consideraram diagnosticar e solucionar os problemas nacionais como uma
missão geracional.4 Paradoxalmente, foi esse mesmo tema que pavimentou o caminho para a
adesão dos verde-amarelos ao discurso científico.

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Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)

No verso disso, entretanto, o contraponto ao modo de conhecer da ciência foi uma moe-
da corrente, seja nas críticas dos verde-amarelos ao passadismo literário, seja nos seus emba-
tes com outros modernistas. Nesses casos, o argumento divergente seria construído sobre a
negativa aos modelos europeus e à replicação de fórmulas artísticas que consideraram equi-
valentes aos procedimentos sistemáticos da ciência. Para os verde-amarelos, possivelmente
imbuídos de ecos da crítica romântica à invasão da ciência a territórios alheios aos seus, havia
certo parentesco nos processos que tornavam os parnasianismos, mas também modernistas
como Oswald de Andrade e Mário de Andrade, muito teóricos, ao passo que a poesia nacional
deveria ser espontânea e traduzir sinceramente a realidade brasileira.5 Por essa razão, segun-
do Cassiano Ricardo, a “revelação do Brasil” era prerrogativa da poesia e da sua expressão
sentimental “mais concreta e mais pura” que a linguagem dos cientistas (11 jan. 1927).
Nessa interpretação, aliás, os verde-amarelos coincidiriam com o ponto de vista de Graça
Aranha, para quem os processos analíticos da ciência produziam um entendimento fragmen-
tário da realidade nacional (Jardim, 2016: 25). Para Cassiano Ricardo, por exemplo, o artista
se distanciava da pátria se a tomasse por seu objeto de estudos, ao passo que sua subjetivi-
dade projetada sobre o mundo exterior seria um reflexo da realidade nacional. A seu ver, a
arte era capaz de captar por si só a essência nacional, e o processo de criação realizava uma
fusão harmoniosa entre o artista e a pátria, dispensando a mediação dos processos científicos
(Velloso, 1983: 48).
Em meados de 1925, os verde-amarelos se referiram à poesia Pau Brasil como um “dolo-
roso experimentalismo científico”. Nas palavras de Cassiano Ricardo e Plínio Salgado, Oswald
de Andrade se inspirara no trabalho dos “fisiologistas”, que “costumam tirar certas partes do
cérebro dos animais, para ver se eles andam, sentem, gritam”, e estaria fazendo o mesmo com
o estilo brasileiro “ainda em ensaio, a ver se ele exprime alguma coisa” (Hélios, 28 set. 1925).
Apesar da convergência dos modernistas em torno do tema da brasilidade, ocorrida espe-
cialmente a partir de 1924 (Jardim, 2016), cada vez mais as diferenças entre os verde-amarelos,
Oswald de Andrade e Mário de Andrade se aprofundaram. Graça Aranha foi isolado por parte
do grupo paulista, e Sergio Buarque de Holanda escancarou as divergências entre os diversos
grupos do movimento com a publicação de O lado oposto e outros lados, em 1926. De todo
modo, Oswald de Andrade e os verde-amarelos se mantiveram afinados no entendimento de
que a intuição seria o caminho mais adequado à apreensão da brasilidade, ao passo que Mário
de Andrade privilegiaria a pesquisa sistemática da cultura nacional (Ibidem: 73; 81; 95).
Por outro lado, considerando que os discursos desses escritores foram se constituindo
uns contra os outros (Ricupero, 2018: 896), muitas vezes parecem ser tênues os limites no tra-

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Lorenna Ribeiro Zem El-Dine

tamento de questões como a crítica aos estrangeirismos e à erudição, comumente desdobrada


numa apreciação ambivalente do legado europeu, e a valorização do índio na construção do
discurso nacional, para ficarmos apenas na apreciação dos debates entre Oswald de Andrade
e os verde-amarelos.
Em relação ao mal-estar brasileiro com a influência estrangeira, Oswald de Andrade,
na fórmula antropofágica, ao tomar o ato de devorar o que vinha de fora como definidor do
Brasil, teria apresentado uma “solução diferente” da “denúncia da importação de ideias e
instituições produzidas na Europa” (Ricupero, 2018: 875), que esteve tão a gosto dos ver-
de-amarelos. Além disso, embora a metáfora da alimentação também tenha sido empregada
também por esses escritores, seu uso serviu para denunciar o excesso de erudição e de estran-
geirismos entre os brasileiros que, na expressão de Cassiano Ricardo, seriam mais “ruminantes
de cultura” do que homens de ação (Ricardo, 07 set. 1926).
A metáfora descreveria, portanto, uma suposta doença do brasileiro, e não a terapêutica
da “absorção dos ingredientes desejáveis de um corpo estrangeiro para o enriquecimento do
organismo devorador”, como no sentido pretendido por Oswald de Andrade, segundo Netto
(2004: 98). De qualquer maneira, é curioso encontrar o tema do canibalismo num texto de
Plínio Salgado, Carta antropófaga, de 1927, um pouco antes do aparecimento da Revista de
Antropofagia, em 1928, e cogitar que Oswald de Andrade tenha encontrado ali uma inspira-
ção para seu manifesto (Johnson, 1988; Cuccagna, 2004; Ricupero, 2018).
Sobre a importância que esses escritores deram à herança indígena como definidora
da brasilidade, a Antropofagia destacou a violência do índio como caminho de integração
à cultura nacional. O índio foi representado como o antropófago que devora a cultura do
colonizador, seleciona para si alguns elementos e lhes dá um novo sentido, brasileiro, en-
quanto os verde-amarelos valorizaram a passividade do índio, que se teria deixado absorver
pelo colonizador, para viver subjetivamente na alma nacional (Jardim, 2016: 99, 103 e 121).
Conforme o Manifesto Nhengaçu, de 1929, o nacionalismo brasileiro era sem preconceitos
porque o índio atuava como o mediador dos conflitos, aplainando as arestas de um povo
formado pela intensa imigração e reunião de indivíduos procedentes de diversas nacionali-
dades (Picchia et. al. 1929).
Já nessa época e depois, na década de 1940, quando Cassiano Ricardo releu esse tema,
durante a polêmica com Sérgio Buarque de Holanda sobre o sentido da cordialidade brasileira,
o índio verde-amarelo evoca o “bom selvagem” e descreve o brasileiro como “homem bom”
e cordial, “no sentido de ‘homem síntese’”, que teria sido cunhado por José Vasconcelos, em
La raza cósmica, em 1925 (Ricardo, 1959: 34).

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Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)

Imaginação e realidade no pensamento brasileiro

A pesar de a intuição ter sido apontada pelos verde-amarelos como o caminho mais
adequado para a interpretação do Brasil, a partir de 1926, o ensaio se firmaria cada
vez mais como um caminho interpretativo que dava conta desse aspecto. Foi esse o rumo indi-
cado em Literatura e política, quando Plínio Salgado sugeriu um descolamento com relação ao
modernismo literário e a reconfiguração das bases intelectuais do verde-amarelismo, fazendo
alusão à tradição ensaística brasileira:

Sentir-se-á nestas páginas a impressão que me tem ficado da obra de Alberto Torres, das pon-
derações de Tavares Bastos, do nosso pensamento nacional que, com feições contrastantes,
espelha-se na literatura social e política de Oliveira Vianna, Pontes de Miranda, Licínio Cardoso,
Roquette-Pinto, Tristão de Athayde, Jackson de Figueiredo [...]. Também será observada a in-
fluência dos depoimentos e comentários de Euclides da Cunha (1927: XI-XII).

Nesse livro, Plínio Salgado convoca os intelectuais a estabelecerem as bases da nacio-


nalidade e não deixa de fora os homens de ciência, aos quais estenderia a obrigação de olhar
para a realidade nacional com olhos brasileiros. As referências à tradição ensaísta brasileira
e latino-americana se tornaram mais frequentes a partir desse contexto. Menotti Del Picchia,
em 1959, se lembrou da parceria com o historiador Alfredo Ellis Junior, que, como “erudito
do grupo revolucionário”, contribuiu para equacionar “problemas políticos, históricos, sociais
e filosóficos sugeridos pelo movimento”, assumindo o “trabalho de disciplinar, através de
ensaios expositivos, os intuitos da cruzada renovadora do pensamento nacional”. Em resumo,
segundo Picchia, as suas “investigações de caráter histórico” teriam oferecido material “para
os estudos do grupo combativo” (apud Ellis, 1997: 24).
A primeira edição de Raça de gigantes (1926) integrou a coleção lançada pela editorial
Hélios, de Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia.6 Segundo a propaganda que foi veiculada
por essa editora, o livro de Alfredo Ellis Junior apresentava “uma reconstituição antropo-so-
cial do paulista, desde os primeiros séculos do povoamento, com focalizações sintéticas e
analíticas dos fenômenos psicológicos e sociais do planalto paulista, desde o bandeirismo
até a implantação das lavouras de café”.7 A relação destacada do texto da editora previa
a colaboração entre os processos de conhecimento da arte (“focalizações sintéticas”) e da
ciência (“analíticas”), sinalizando, nesse caso, que os saberes das ciências humanas e sociais
são aliados da construção de conhecimento sobre a realidade brasileira.
Dando conta dessa articulação entre modernismo e ensaísmo, Candido Motta Filho es-
creveu que Graça Aranha sintetizara o pensamento de Alberto Torres, quando “disse que a
história do Brasil era a história da nossa imaginação” (1927: 27). Motta Filho escreveu um

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Lorenna Ribeiro Zem El-Dine

ensaio sobre Alberto Torres, Alberto Torres e o tema da nossa geração (1931), que foi publi-
cado primeiro nos rodapés do Correio Paulistano, entre 1927 e 1928, e, mais tarde, impresso
pela Schmidt Editor-Rio, com prefácio escrito por Plínio Salgado. Nesse texto, Plínio Salgado
apresentou a si e a Motta Filho como porta-vozes de “uma geração sacrificada”, que começou
a exercer sua crítica sobre a República, notando “o contraste entre as realidades da Nação e o
espírito que animava a sua Constituição e as suas leis” (Salgado, 1931: II), ao mesmo tempo
que se familiarizavam com as realidades brasileiras estudadas pelas obras de Oliveira Vianna
e Alberto Torres.
Alberto Torres, na visão de Motta Filho, havia sido um político discreto, mas profundo,
além de um sociólogo com “visão pragmática das coisas brasileiras” (1931: 17-20). Suas
ideias coincidiam com as de pensadores como Tavares Bastos, Joaquim Nabuco e Euclides da
Cunha e estariam em contraponto ao alheamento de intelectuais como Rui Barbosa. Segundo
Motta Filho, para Alberto Torres, o brasileiro estava acostumado à “força apaziguadora” da
imaginação, costumava adiar a verdade e não conseguia impor sua personalidade nacional,
por isso precisava urgentemente substituir a imaginação por uma visão da realidade brasileira
(Ibidem: 28-29). Alberto Torres não aceitava o espírito catedrático europeu, observava e falava
com consciência americana e brasileira, e “o que ele diz, na observação local dos problemas
nacionais, está hoje generalizado e aceito pelas mais potentes autoridades sociológicas do
mundo” (Ibidem: 48).
Essa leitura de Candido Motta Filho evoca sentidos paradoxais dessa época, que conci-
liava a afirmação da cultura local, o questionamento do legado europeu, mas também a fami-
liaridade com autores que produziram da Europa críticas à cultura ocidental e que, buscando
referenciais culturais externos ao velho continente, voltavam as atenções para outros cenários
no mundo, como Ásia, África e América Latina. Considerando-se o contexto modernista, cabe
lembrar que a crítica à cultura ocidental também foi uma questão central para a Antropofagia
e que, desde o lançamento da poesia Pau Brasil, em 1924, Oswald de Andrade negou várias
vezes a identificação com o primitivismo europeu (Ricupero, 2018: 882 e 891).8
No capítulo “A terra e sua gente”, Motta Filho cita o A decadência do Ocidente, de
Oswald Spengler, e ressalta uma de suas premissas: a de que a vitalidade de um povo de-
pendia de sua convivência harmônica com a terra e de sua compreensão sobre os caracteres
geopolíticos de sua conduta (1931: 47). Além disso, afirma ter se convencido da semelhança
“entre o modernismo da civilização da América e o processo da civilização” no Egito antigo
(Ibidem: 67), depois de ler um artigo do crítico de arte alemão Wilhelm Worringer, O america-
nismo da civilização egípcia, que teria sido publicado na Revista do Ocidente, em 1926.

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Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)

Motta Filho argumenta que o Egito, antes da civilização americana, por conta de suas
características geográficas, teria deparado com a necessidade de “criar uma personalidade
inédita com a absorção de raças e gênios contrastantes” (Ibidem). Também na América, diante
da mesma urgência, existiria “uma força oculta que faz esquecer ao estrangeiro seu país de
origem”, conforme o adágio egípcio: “o estrangeiro que bebe a água do Nilo esquece o seu
país Natal” (Ibidem: 67-68).9
Diante disso, para Motta Filho, a solução para o problema racial no Brasil não passava
pela discussão sobre “raças puras e outros bizantinismos de civilizações extenuadas” (Ibidem:
68). Alberto Torres, segundo Motta Filho, “não se impressionava por ver algumas populações
interiores atacadas de moléstias tropicais”; ele as compreendia como “feridos de uma refrega
e também como atestado de que havia uma luta séria e dramática. Mas nunca degeneração”
(Ibidem: 69). Há aqui uma coincidência com os discursos médico-sanitaristas da época, para
os quais o brasileiro do interior não sofria de mácula racial, mas estaria abandonado pelas
elites políticas republicanas (Lima e Hochman, 1996).
Em todo caso, Motta Filho diria que o pessimismo em relação ao brasileiro que era dis-
seminado por ensaios como o Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado, que retratava o Brasil
e os brasileiros “em ‘pose’ de tristeza e de desânimo”, reproduzia, na realidade, um “ponto
de vista ocidental”. Conforme afirmava, Graça Aranha era “menos civilizado que o Sr. Paulo
Prado”, pois considerava o trabalho e a alegria do brasileiro (30 nov. 1928).

Um programa de estudos para a interpretação do Brasil

A ssim, o debate que ficara restrito ao campo das artes e à aquisição de um estilo nacio-
nal se voltava para a elaboração de um programa, baseado na obra de Alberto Torres
e de outros ensaístas, para a “observação local dos problemas nacionais”. A primeira coisa a
ver era o profundo abismo existente entre os chamados dois brasis. A relação entre o litoral e
o interior do país, constantemente retomada pelos ensaios históricos e sociais do Brasil, nas
primeiras décadas do século XX (Lima, 1999), foi também destacada por Plínio Salgado, em
Literatura e política.
O escritor idealizou o interior como um lugar onde os traços autênticos da cultura brasi-
leira estariam resguardados da ameaça dissolvente do cosmopolitismo do litoral. Entretanto,
apesar da ênfase sobre um suposto “mal urbano”, Salgado sugeriu uma aliança entre aquelas
duas tendências: “o Sertão deve dar à Cidade a sua alma e receber desta os benefícios da civi-
lização. Uma e outro devem respirar [...] numa atmosfera de tradições históricas e aspirações
comuns” (1927: 83).

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Em 1927, Plínio Salgado escreveu que, a seu ver, o Facundo (1845) do argentino Do-
mingo F. Sarmiento tomava outro sentido: “Eu via o homem brotar da Terra e avançar para
a cidade. Eu via a grande cortesã [...] invadida, por uma manada de antas arrasadoras do
cosmopolitismo” (19 mai. 1927). Alguns meses antes, ele publicou que Sarmiento, ao visitar o
túmulo de Facundo Quiroga, teria afirmado que o “sangue bárbaro” deste pulsaria sempre em
sua pátria, “atenuado pela civilização”, porém com “toda a sua força nativa” (23 jan. 1927),
o que, na sua visão, era um dado mais importante que o próprio livro escrito por Sarmiento.
Além disso, alertou que o Brasil não deveria repetir o erro do país vizinho, que teria se
tornado “uma nação rica, mas sem traços expressivos de originalidade” (8 fev. 1927). Ao
contrário da Argentina, o Paraguai seria um exemplo mais edificante, porque “soube conservar
a sua feição, mais fiel a terra e à raça” (Ibidem). Era necessário ouvir “o aviso formidável de
Euclides da Cunha e o exemplo argentino, que Sarmiento estampou no seu Facundo”, a fim
de “preparar uma grande nacionalidade americana” (21 jul. 1927).
A relação ambígua entre a atração pela cultura europeia e a tentativa de deslocamento
dos padrões culturais eurocêntricos seria retomada nos anos seguintes. Em 1928, Menotti
Del Picchia comemorou a prosperidade econômica das pequenas cidades do oeste paulista e
seus desdobramentos, que permitiam neutralizar o exílio interno do brasileiro (21 abr. 1928).
Cassiano Ricardo celebrou, no ano seguinte, a ampliação das estradas de ferro e de rodagem,
das “estações radiotelegráficas e da telefonia automática”, chamando a atenção para a pos-
sibilidade de o país, por meio do incremento das comunicações, conhecer e tomar posse da
própria cultura, bem como, pelos mesmos instrumentos, se abrir ao influxo externo e se tornar
menos exilado do mundo (27 mai. 1928). Em ambos os casos, embora a modernização tenha
sido vista como uma oportunidade para projetar valores “autênticos” da cultura brasileira, sua
celebração suaviza a ideia de uma oposição irremediável ao cosmopolitismo.
As referências continentais ganharam maior projeção nessa época. Menotti Del Picchia,
lembrando novamente Facundo, interpretou as sucessivas revoltas militares que tencionavam
o regime republicano brasileiro desde sua implementação e as interpretou como repetições de
um “fenômeno americano”, o caudilhismo (6 jul. 1927). A apreensão do Brasil sob um parâ-
metro continental foi reforçada, na mesma época, pela releitura de O sonho da raça (1924),
de Alarico Silveira. O texto se referia à mítica descida dos tupis do interior do continente, dos
territórios da Bolívia e do Peru, até o litoral brasileiro, uma migração que explicaria a nostalgia
do bandeirantismo histórico pelo Oeste, e que teria sido reeditada no anseio da época pela
interiorização. Tal narrativa, pela óptica de Alarico Silveira, acenava para os laços culturais,
autóctones, mais fortes que as artificiais divisões territoriais entre os países sul-americanos
(nov.-dez. 1924).

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Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)

Num sentido próprio e conectado com o tema racial, O sonho da raça reiterava a im-
portância do espaço e do território para o encontro com um sentido brasileiro e americano.
A interiorização e o urgente encontro com a “terra” foram temas recorrentes de Cassiano
Ricardo, em 1926 e 1927, incluindo suas notas “impressionistas” sobre a obra de Edgard
Roquette-Pinto, que lembram a leitura de Candido Motta Filho da obra de Alberto Torres.
Nelas, Cassiano Ricardo destacaria: “O que nos falta, disse Roquette Pinto, é conhecer o que
se tem descoberto e conquistado. O que nos falta, direi eu, é compreendê-lo na sua imensa
significação. É penetrá-lo nas suas fontes de riqueza. É investigá-lo nas suas condições de
vida” (14 set. 1927).
A obsessão de Cassiano Ricardo pelo “sertão” dividiu espaço com a idealização da po-
pulação mestiça do interior. Ele ressaltou, em publicações no Correio Paulistano e em Martim
Cererê (1928), a importância das três raças na história paulista e brasileira, mas sob o ponto
de vista de uma hierarquia de funções (Moreira, 2001). No que diz respeito ao negro, Ricardo
se distanciou tanto da negativa de Alfredo Ellis Junior, em Raça de gigantes (1926), a respeito
da pouca participação do negro na sociedade bandeirante, quanto da opinião de Ellis Junior,
de que teria sido precária a adaptação fisiológica do negro às condições ambientais de São
Paulo (1928: 44). Assim, o ponto de vista de Cassiano Ricardo terminaria ficando mais próxi-
mo do de Alberto Torres, que, conforme Candido Motta Filho destacava à época, considerava
ser “uma superstição essa a de afirmar a degeneração do negro entre nós” (1931: 69).
Já Menotti Del Picchia afirmou que a solução do problema racial brasileiro dependia
exclusivamente da “plasmação étnica”, nas condições especificas do clima e do ambiente
brasileiro. Acerca disso, atestava que a “mistura bizarra” entre “o luso, o preto e o índio”,
“sob o nosso sol”, havia formado “um tipo tão prodigioso de energia física e de iniciativas,
que conseguiu desbravar, fixar-lhe as fronteiras, possuir e defender uma das pátrias geografi-
camente maiores do mundo” (26 ago. 1926). Com esses argumentos, rechaçava a adoção de
políticas imigratórias pelo estado de São Paulo, contrapondo-se às que haviam sido propostas
por Alfredo Ellis Junior, na condição de deputado estadual, e pelo sociólogo Oliveira Vianna,
em 1926, as quais propunham a adoção de critérios raciais para a seleção dos imigrantes
(El-Dine, 2016). Conforme Menotti Del Picchia se justificava: “Precisamos de braços e todos os
braços são bons, quando são sadios moral e fisicamente, e estão habituados ao trato da terra”
[...], “o que se deverá evitar [...] será [a] entrada de elementos defeituosos ou pouco sadios,
rebeldes à disciplina social, perigosos, portanto, à ordem do agregado” (26 ago. 1926).10
Os pontos de vista de Alfredo Ellis Junior e Oliveira Vianna, por ultrapassarem esses
cuidados, ao ver de Menotti Del Picchia, ilustravam uma “forma puramente lírica” de tratar

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Lorenna Ribeiro Zem El-Dine

o tema da imigração no Brasil (Ibidem). Ao reprovar determinadas linhas de interpretação da


questão racial pelo ensaísmo da época, Picchia demonstrava conhecer o debate racial e euge-
nista na época, porém fazia um aceno aos intelectuais mais afinados com o discurso científico,
endossando outro tipo de interpretação histórica, a qual enalteceria as três raças formadoras
da população brasileira (El-Dine, 2017: 250).

A miscigenação e o ensaísmo latino-americano

O intelectual e ensaísta mexicano José Vasconcelos foi referência recorrente nas publi-
cações de Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e Plínio Salgado. As primeiras men-
ções à sua obra mais famosa, La raza cósmica (1925), foram contemporâneas da discussão
acerca da proposta de Plínio Salgado de elegerem um totem nacional quando, em 1927, os
verde-amarelos assumiram o nome de Movimento da Anta, coroando a preferência de Plínio
Salgado por símbolo indígena (El-Dine, 2017).
Além do discurso otimista acerca da miscigenação no continente americano, que, segun-
do José Vasconcelos, formaria um mestiço cósmico e seria a síntese de todas as raças anterior-
mente existentes (Ascenso, 2013), é provável que suas posições ambivalentes em relação à
ciência tenham chamado a atenção do grupo paulista. Segundo José Vasconcelos, “la historia
empírica, enferma de miopía, se pierde en el detalle” e “cae en la puerilidad de la descripción
de los utensilios y de los índices cefálicos y tantos otros pormenores, meramente externos que
carecen de importancia si se les desliga de una teoría vasta y comprensiva” (1948: 15). Diante
disso, propunha uma fórmula que faria sentido aos verde-amarelos: “Ensayemos, pues, expli-
caciones, no con fantasía de novelista, pero sí con una intuición que se apoya en los datos de
la historia y de la ciencia” (Ibidem: 15-16).
Tal como a obra de José Vasconcelos, a simbologia da Anta representou a evocação de
passado mítico e um aceno na direção do futuro. Mais do que se ater à realidade antropo-
lógica do brasileiro, Plínio Salgado pretendeu elaborar um discurso nacional condizente com
um país que seria o berço do “homem síntese” idealizado por José Vasconcelos. A escolha da
Anta se justificava por sua referência à raça, que, na visão de Plínio Salgado, soube deixar-se
assimilar pela mestiçagem e desaparecer, abrindo o caminho para o futuro sugerido pelo
intelectual mexicano.
A partir de 1926, os verde-amarelos viram São Paulo como o cenário ideal para a reali-
zação daquela tese, considerando o grande afluxo de imigrantes que a cidade recebia e sua
exposição à influência subjetiva do tupi (Picchia et. al. 1929). O papel visionário do indígena,

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Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)

segundo os verde-amarelos, que soube desaparecer no contato com o colonizador mas se


manter vivo na alma do brasileiro, a fim de realizar o destino nacional (Ibidem), lembra a fi-
losofia da história de José Vasconcelos, embora o indígena nas publicações do grupo paulista
pareça ocupar o lugar da raça ibérica em La raza cósmica.
Para José Vasconcelos, a história da humanidade era a sucessão de distintas civilizações
que florescem e decaem até o aparecimento de uma civilização definitiva. Em cada uma das
civilizações anteriores, houve a predominância de um tipo racial, respectivamente, o índio,
o negro, o mongol e, finalmente, o branco, cujo predomínio se estendia desde a civilização
grega até a contemporânea, havendo passado pelos impérios formados pela estirpe ibérica e
anglo-saxã no continente americano.11 Cada um daqueles quatro tipos raciais, depois de cum-
prirem a missão a que estavam predestinadas, tendiam ao desaparecimento. No entanto, a
missão reservada ao branco era criar condições técnicas para a reunião de todas aquelas raças
existentes, que então se mesclariam até formar uma raça mestiça no continente americano.
Com isso, uma nova civilização povoaria os trópicos, alcançando o último estágio de desenvol-
vimento da humanidade, que José Vasconcelos chamou de estágio estético (1948: 33).
Com base nesse quadro, José Vasconcelos afirmava que, embora os anglo-saxões hou-
vessem contribuído para o desenvolvimento científico com potencial para unir reunir diferen-
tes raças e povoar todos os continentes, os povos de origem ibérica teriam a vantagem da
maior propensão à mescla inter-racial e não desenvolveram, como os Estados Unidos, um ideal
de pureza racial que resultou na eliminação do índio e na separação do negro (Ibidem: 26-27;
29). O preconceito desses povos com relação à mestiçagem teria sido traduzido em falsas
premissas científicas, com as quais justificavam sua ascendência sobre os países americanos
de origem ibérica.
A preocupação de José Vasconcelos com a afirmação da parte ibérica do continente
frente aos Estados Unidos, contudo, não encontrou paralelo entre os verde-amarelos – mesmo
entre Menotti Del Picchia e Candido Motta Filho, que, diante da sugestão de Plínio Salgado
sobre a Anta, propuseram que a herança europeia fosse homenageada pelo símbolo da Loba
(Picchia, 12 jan. 1927; Motta Filho, 20 jan. 1927). Além disso, embora Plínio Salgado tenha
assinalado a incapacidade europeia de sondar os “desígnios da Espécie”, chegando com isso
a uma formulação muito próxima à de José Vasconcelos, nas suas correções à perspectiva
científica, o ibérico foi incluído nesse diagnóstico. Na sua interpretação, ao contrário dos por-
tugueses, que teriam descoberto o Brasil por acaso, os tupis migraram para o litoral porque
tiveram a “profunda intuição” do “segredo político do futuro e do destino do continente
sul-americano” (Salgado, 1926: 42).

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Lorenna Ribeiro Zem El-Dine

Considerações finais

T al como nos comentários de José Vasconcelos, mencionados há pouco, o programa ver-


de-amarelo expôs uma disputa pelo direito ao discurso do conhecimento. De forma um
pouco esquemática, é possível dizer que, se, por um lado, os ensaístas brasileiros, como Alber-
to Torres, motivaram os verde-amarelos para o elogio da objetividade e a busca do Brasil Real
e presente, por outro lado, José de Vasconcelos os fizera mirar o futuro e continuar valorizando
a intuição. Ao fim, como se pode notar pelo Manifesto Nhengaçu de 1929, a concepção de
Plínio Salgado de que o brasileiro teria herdado do indígena a predisposição para o contato
harmonioso com todos os povos se impôs (Picchia et. al. 17 mai. 1929).
O futuro projetado por José Vasconcelos, em 1925, assume contornos mais restritos, na
acepção de uma “uma grande nação”, a brasileira, que integraria “todas as nossas experiên-
cias históricas, étnicas, sociais, religiosas e políticas. Pela força centrípeta do elemento tupi”
(Ibidem). Ao mesmo tempo, segundo o manifesto, o nacionalismo brasileiro era essencial-
mente sentimental e uma não filosofia, que seria a continuação do seu destino histórico, sem
imposições temáticas e imperativos ideológicos, tidos como elementos externos à brasilidade.
Por essa razão, segundo os verde-amarelos, “podemos destruir nossas bibliotecas, sem a me-
nor consequência no metabolismo funcional dos órgãos vitais da nação” (Ibidem).
A denúncia da “tirania das sistematizações ideológicas” resulta, paradoxalmente, na
imposição da fórmula do “ser brasileiro” e na interpretação do país sob um ângulo pessoal
ou da “própria determinação instintiva” (Ibidem). Numa espécie de balanço do modernismo
desde 1922, os autores do manifesto propõem o encerramento das discussões literárias, em
favor da produção e da ampliação do movimento modernista, e lamentam que os escritores
tenham sido até então seu próprio público. Assim, faziam o convite à sua geração de “produzir
sem discutir. Bem ou mal, mas produzir. [...] escrever sem espírito pré-concebido, não por mera
experiência de estilos, ou para veicular teorias” (Ibidem).
Nos fins da década de 1920, o verde-amarelismo se constituiu em debate com outras
correntes do modernismo e na discussão sobre aos erros da República, considerando diag-
nóstico euclidiano dos dois Brasis, e do sertão marcado pelo abandono, mas também pela
autenticidade, e o do litoral, portador da civilização e dos riscos da imitação. Os verde-ama-
relos resolveriam esse tema, propondo uma síntese entre o litoral e o sertão, bem como,
com base nas leituras da obra de José Vasconcelos, uma nova raça, miscigenada. Com essas
reflexões, chamei a atenção para a aproximação do verde-amarelismo com o ensaísmo, espe-
rando sugerir possibilidades de leitura e de reconhecimento de trechos menos transitados pela
historiografia do modernismo paulista. Ao mesmo tempo, procurei destacar uma face menos
caipira dos verde-amarelos, tomando-os como atores do cenário intelectual dos anos 1920,
os quais, como outros atores de seu tempo, elegeram seus interlocutores e os mobilizaram na
elaboração de um discurso sobre a brasilidade.

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Ensaio e interpretação do Brasil no
modernismo verde-amarelo (1926-1929)

Notas

1 A denominada vertente verde-amarela do modernismo paulista se formou em meados de 1925, em contra-


ponto à poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade. O Correio Paulistano, ligado ao PRP, partido tradicional das
elites cafeicultoras de São Paulo, foi o principal veículo de divulgação da ideologia verde-amarela. Além de
Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e Plínio Salgado, reuniu ainda Candido Motta Filho e Alfredo Ellis Junior,
cujas obras integraram a “coleção brasiliana” da editorial Hélios, de Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia,
coleção que reuniu poesias, estudos históricos e ensaios sobre o Brasil, e assinaram o chamado Manifesto
Nhengaçu Verde-Amarelo (1929). Agenor Barbosa, Oliveira Vianna, Alarico da Silveira e Raul Bopp, que pos-
teriormente se reuniu com Oswald de Andrade na Revista de Antropofagia, também foram próximos do grupo.
2 Faço referência a Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre; a Raízes do Brasil (1936), de Sérgio
Buarque de Holanda; e a Marcha para Oeste (1940), de Cassiano Ricardo, entre outros. Por outro lado, con-
sidero também que, a partir dos anos 1930, foi mais frequente o investimento dos verde-amarelos na escrita
ensaística, o que resultou em livros como A crise da democracia: pesquisa de políticas e sociologias contem-
porâneas (1931), de Menotti Del Picchia, Alberto Torres e o problema da nossa geração (1931), de Candido
Motta Filho, Pequeno ensaio de bandeirologia (1959), de Cassiano Ricardo, entre outros.
3 Ainda que a relação com a Novíssima tenha sido equivalente à que estabeleceram com outros periódicos
paulistas da época, é interessante que a publicação tenha procurado o estreitamento desses vínculos, inclu-
sive nomeando o tradutor argentino Benjamim de Garay como representante da revista nas repúblicas sul-a-
mericanas (Novíssima, mar.-abr.1924: 2). Cabe ressaltar Manuel Gálvez como um escritor mais identificado
com a direita argentina e, em contrapartida, Nicolás Olivari como autor ligado ao grupo de Boedo, à esquerda.
4 O nacionalismo, a produção de diagnósticos e receituários para a nação e suas intercessões com os sentidos
de moderno, modernidade e modernismo, nos começos do século XX e especialmente nos anos 1920, foram
estudados por Luca (1999), Motta (1992), Oliveira (1990), Velloso (2003), entre outros.
5 A discussão sobre sinceridade é ampla e pode ter matrizes diversas. A esse respeito, ver Trilling (1971) e
Milnes e Timothy (2010).
6 Ao que parece, a editorial Hélios funcionou entre 1926 e 1928 e seu catálogo foi além de títulos dos par-
ticipantes do verde-amarelismo, incluindo Os romances do exílio (1927), de Oswald de Andrade, Pathé-Baby
(1926), Brás, Bexiga e Barra Funda (1927) e Laranja da China (1928), de Antônio de Alcântara Machado.
7 Exemplar disponível na Série Antropologia, Subsérie Raça, Dossiê Estudos de Populações do Arquivo de
Edgard Roquette-Pinto da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro.
8 Cabe investigar se, no Brasil, essa desestabilização do Ocidente como referencial cultural hegemônico
coincidiu com a expressão de um orientalismo invertido, como ocorreu no contexto intelectual argentino do
mesmo período, segundo Bergel (2015), e se teria implicado também aqui uma sensibilidade prototerceiro-
-mundista.
9 Em Marcha para Oeste (1940), Cassiano Ricardo usa uma metáfora semelhante ao escrever sobre o ca-
minho paulista da Serra do Mar, cuja travessia faria os portugueses esquecerem os preconceitos trazidos da
Europa.
10 No que recorda o ponto de vista do antropólogo Edgard Roquette-Pinto, quando consultado por O Jornal
sobre a imigração japonesa: “Por princípio julgo muito vantajosa toda imigração espontânea que nos traga
gente sadia, trabalhadora, ordeira, de apreciável nível cultural, seja qual for a sua origem. [...]. Que nos im-

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Lorenna Ribeiro Zem El-Dine

porta que conservem aqui a sua religião, o seu idioma, [...] se é gente disposta a obedecer às nossas leis e às
nossas autoridades, se é gente que vai trabalhar na lavoura, levando para os nossos campos uma educação
social e higiênica” (2 maio 1924).
11 Essa perspectiva de um sentido histórico como sucessão de civilizações, que repetem períodos de ascen-
são, apogeu e declínio, cabe ressaltar, se tornou bastante conhecida nos países latino-americanos com a cir-
culação de A decadência do Ocidente (1918), de Oswald Spengler, que, como visto, não passou despercebido
aos modernistas verde-amarelos.

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468 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 468-468 maio-agosto 2019
Artigo

Quando novos conceitos entraram em


cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate
brasileiro sobre movimentos sociais
When new concepts came on the scene: the intellectual history of
“populism” and its influence on the genesis of the Brazilian debate
on social movements
Cuando nuevos conceptos entraron en escena: historia
intelectual del “populismo” y su influencia en la génesis del
debate brasileño sobre movimientos sociales

José SzwakoI*1
Ramon AraujoII*2

Para Maria Célia Paoli, in memoriam

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200008

I
Universisdade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.

* Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e Pró-Cientista UERJ. Organizou “Ensaios de História
Intelectual do Paraná” (Ed. UFPR) e “Movimentos Sociais e Institucionalização” (EdUERJ). (zeszwako@hotmail.com)
ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4764-6533.
II
Universisdade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.

**Doutorando em Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. (ramontorresaraujo@gmail.com)


ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-9448-6405.

Artigo recebido em 11 de fevereiro de 2019 e aceito para publicação em 26 de junho de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 469-499, maio-agosto 2019 469
José Szwako e Ramon Araujo

Resumo
O texto segue a trajetória da produção de F. Weffort sobre o chamado “populismo” e mostra seus efeitos no debate
dos “movimentos sociais urbanos” e também dos “novos personagens em cena” , defendendo uma história inte-
lectual centrada em ideias e nas tensões entre intelectualidade e expectativas políticas. A observação de inflexões e
continuidades na tese populista permite chegar a dois resultados. A miríade de conceitos que marcou, em parte, a
gênese da discussão brasileira sobre movimentos sociais nasce como crítica e adesão à herança weffortiana. Além
disso, o artigo mostra que os novos conceitos não se gestam em algo como um “campo acadêmico”, e sim nascem
de inspirações e influências daquele conjunto de intelectuais e das apostas por eles forjadas em seus núcleos na
sociedade civil (o Cedec, no caso) ou nas relações com outros atores civis e partidários.

Palavras-chave: História intelectual; Movimentos sociais; Redemocratização.

Abstract

The text follows the trajectory of F. Weffort’s production of so-called “populism” and shows its effects in the debate
of “urban social movements” (JA Moisés) and also of the “new characters on the scene” (MC Paoli and E. Sader),
defending an intellectual history centered on ideas and tensions between intellectuality and political expectations.
The observation of inflections and continuities in the populist thesis leads to two results. The myriad concepts that
marked, in part, the genesis of the Brazilian discussion of social movements are born as criticism and adherence to
the Weffortian heritage. Moreover, the article also shows that the new concepts are not created in an “academic
field”, but are born of the inspirations and influences of that group of intellectuals and the bets they forge in their
nuclei in civil society or in relations with other civil and partisan actors.

Keywords: Intellectual history; Social movements; Redemocratization.

Resumen
El texto sigue la trayectoria de la producción de F. Weffort sobre el llamado “populismo” y muestra sus efectos en
el debate de los “movimientos sociales urbanos” (JA Moisés) y también de los “nuevos personajes en escena” (MC
Paoli y E. Sader), defendiendo una historia intelectual centrada en ideas y en las tensiones entre intelectualidad y
expectativas políticas. La observación de inflexiones y continuidades en la tesis populista permite llegar a dos resul-
tados. La miríada de conceptos que marcó, en parte, la génesis de la discusión brasileña sobre movimientos sociales
nace como crítica y adhesión a la herencia weffortiana. Además, el artículo muestra que los nuevos conceptos no
se gestan en algo como un “campo académico”, sino que nacen de inspiraciones e influencias de aquel conjunto
de intelectuales y de las apuestas por ellos forjadas en sus núcleos en la sociedad civil o en las relaciones con otros
actores civiles y partidarios.

Palabras clave: Historia intelectual; Movimientos sociales; Democratización.

470 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 470-499 maio-agosto 2019
Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

A essência das massas trabalhistas e populistas é, antes,


a consciência de massa que a consciência de classe.
Ianni, 1968

Os que duvidavam (ou ainda duvidam) da capacidade


dos trabalhadores de se organizarem politicamente
estão sendo obrigados a reconhecer que o PT
é hoje uma realidade nacional.
Lula, 1982

Introdução1

A partir de fins dos anos 1970, as ciências sociais brasileiras viveram uma reviravolta
cognitiva que, embora discreta, deixou marcas até hoje insuspeitas. O povo, ou melhor,
suas histórias, lutas, associações e experiências entravam na agenda de pesquisa de histo-
riadores e cientistas sociais do Brasil sem data para sair. Não mais as massas, mas o povo,
o que incluía operários, classes populares, movimentos populares ou urbanos – personagens
dotadas de razão, cuja ação tinha sentido próprio. Foi nessa atribuição de racionalidade que
consistiu aquela reviravolta. Todo um desconforto intelectual com o dito atraso e a alegada
falta de consciência dessas personagens, supostamente manipuladas por figuras e sindicalis-
mos populistas, foi criticado, e sua história, desde então, recontada.
Essa mudança cognitiva ficou selada na tensão entre duas obras: Quando novos perso-
nagens entraram em cena (Sader, 1988) e A arte da associação (Boschi, 1987). Entre ambas
as publicações e antes delas, desfilaram categorias de análise e acusação como nacionalismo,
basismo, elitismo, politicismo, espontaneísmo e autonomismo, que demarcavam uma oposição
entre as análises e nos legaram um debate sobre movimentos sociais.
Este texto faz uma história intelectual dessas ideias e heranças,2 de suas forças e apostas,
que conformaram esse espaço de reflexão com objeto próprio de análise, de forma a demons-
trar a emergência de novos conceitos por meio de rupturas e continuidades face à herança do
debate populista nas análises dos movimentos urbanos e dos novos personagens.
Nosso estilo de história intelectual se inscreve em dois registros: um negativo e outro
positivo. Quanto ao primeiro, opõe-se àquela sociologia contextualista centrada em biografias,
estratégias e investimentos institucionais, mais propriamente, à versão da história das ciências
sociais no Brasil na ponta desse contextualismo (cf. Miceli, 1989),3 para colocar no centro

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José Szwako e Ramon Araujo

da análise modos de pensar ou famílias de argumento (Brandão, 2005). A ênfase aqui recai
sobre as disputas de ideias e ideais textualmente expressos e entendidos como forças sociais
reflexivas (Bastos e Botelho, 2010), bem como sobre debates e embates distinguidos por em-
préstimos e cortes intelectuais operados entre linhagens e grupos – sendo grupos, debates e
conteúdos organizacionalmente mediados (Santos, 2017).
As ressalvas àquele contextualismo são de duas ordens interligadas: a dissociação, a
nosso ver, inapropriada entre vida política e vida intelectual, e uma teleologia implicada em
suas categorias fundamentais e mais amplamente aceitas. A verve biográfico-estratégica do
contextualismo impede que se reconheça a conexão íntima, complexa e tensa entre política
e produção intelectual (Pecaut, 1990), com prejuízo para a compreensão dos conteúdos em
jogo na análise de uma produção desse naipe. Além de flertar com um tipo de utilitarismo
de classe e simbólico (Bastos e Botelho, 2010), a ênfase na economia das estratégias e dos
recursos investidos em conversões institucionais disciplinares carrega, ao desligar política e
pensamento, um impensado teleológico em cujo horizonte parecem estar noções correlatas à
bourdiesiana de “campo”.4
Para o que aqui nos interessa, tal postura é apreensível nas análises que, tendo coroado
um modo específico e paulistano de prática de pesquisa, confundiram a história desses agentes
não só com instauração da ciência verdadeira e puramente sociológica – porque em tese de-
satrelada da ação política e do Estado, estilo e estigma atribuídos a cariocas –,5 mas também
com o ápice e centro de um tal campo da disciplina sociológica.6 Essa saga das instituições e
dos heróis da ciência institucionalizada cobra preço alto na autocompreensão de nossas ciên-
cias sociais e dos ritmos dessa história. Exemplo disso tem sido o volume do esforço de revisão
necessário para criticar e desfazer a periodização imposta aos autores do pensamento brasileiro
e seus supostos ensaísmo e caráter pré-científico (Santos, 2017; Schwarcz e Botelho, 2011)
No contexto histórico que nos cabe neste artigo, tal teleologia tem implicações não me-
nos graves, pois, da segunda metade dos 1970 até o fim da década seguinte, dois processos
transcorrem ao mesmo tempo: nossa última redemocratização e a robusta institucionaliza-
ção da pesquisa em ciências sociais. Uma vez fortalecidos os programas de pós-graduação,
com associações concorrentes e solidárias pela instituição de posições e identidades, essa
institucionalização seria prova de que, após décadas de saga, conquistamos nosso mercado
simbólico próprio, um espaço real e relativamente autônomo, com lógicas e disputas próprias,
padrões, métodos e interesse sui generis. Enfim, um campo para chamar de nosso – tornado
retrospectivamente doxa: “[nos] anos 1970/80, uma parte do campo intelectual brasileiro,
composta por cientistas sociais vinculados à esquerda, passou a dedicar-se ao estudo dos
movimentos populares” (Perruso, 2010: 250).

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

A menção à esquerda trai certa pureza do campo e denota não uma distância acadêmica,
e sim conexões refletidas em vínculos de natureza político-ideológica. Partindo do entendi-
mento hifenizado da atividade intelectual como político-intelectual, a postura interpretativa
aqui proposta não poderia nutrir uma categoria como a de campo, que, por definição, subli-
nha autonomia e processos de autonomização. Tomamos antes estilos e modos de pensar
academicamente informados como atalhos entre política, intelectuais e suas apostas. Trata-se
de destacar, nesta versão da história de nossas ciências, os diferentes “modos intelectuais de
se relacionar com a realidade que subsumem até mesmo os mais lídimos produtos da ciência
institucionalizada” (Brandão, 2005: 236).
Assim, autores, debates e textos são aqui lidos por sua filiação ou lógica acadêmica e,
ao mesmo tempo, por seus laços com organizações civis e partidárias envolvidas em outras
arenas intelectuais de disputa,7 não raro em variadas e permanentes formas de relação com
a universidade.
Para uma história intelectual dedicada à parte dos autores e das obras que, nas dinâ-
micas da transição democrática, passou da crítica ao populismo ao elogio à racionalidade
popular, importa ainda a questão dos ritmos de institucionalização das ciências sociais. “Po-
demos tomar a abertura democrática (1985) para demarcar o início de uma terceira fase
[...] de especialização, na qual esse processo avançaria muito no interior de cada uma das
disciplinas” (Jackson e Barbosa, 2017: 230). Se, como pressupomos, vidas intelectual e política
andam pari passu, a demarcação de uma fase por atributo exterior e cronológico das regras
estatais do jogo recoloca a excessiva ênfase no aspecto propriamente universitário de nossa
produção, desligando-a mais uma vez da ação e da luta políticas. Como veremos, a produção
das ciências sociais e da história foi uma das principais forças em disputa nas lutas políticas e,
sobretudo, discursivas travadas ao redor da redemocratização e por ela.
Nesses termos, embates e debates sobre quem eram os atores (se populares, sindicais,
partidários etc.) e processos relevantes para forjar ou barrar a reconstrução democrática se
encontravam, em 1985, já um tanto vertebrados, encontrando síntese posterior na oposição
Sader/Boschi, e a tensão disciplinar entre ciência política, antropologia e sociologia teve na
gênese do debate sobre movimentos sociais um de seus momentos mais férteis. Tais momen-
tos, contudo, não foram marcados só pelo progressivo estabelecimento de fronteiras disci-
plinares cada vez mais claras (autônomas?), como também por apropriações de insights e
categorias de áreas vizinhas, nas interlocuções entre as três áreas das ciências sociais e delas
com a história e com certa filosofia pós-marxista, permeados por empréstimos entre autores
e grupos afinados por apostas político-normativas (e partidárias) relativamente convergentes.

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José Szwako e Ramon Araujo

Subjacente à crítica desse contextualismo, vive-se uma história intelectual centrada em


ideias e conteúdos, em compartilhamentos e disputas de sentido. Trata-se aqui de entender,
com base em variados topoi, “de que modo a realidade social aparece estruturada na percep-
ção dos analistas sociais? Particularmente, como [eles] veem o desdobrar da disputa política”
(Santos, 2017: 147). A filiação a tal postura pretende duplo ganho heurístico. Evita, de saída,
encerrar a produção intelectual de outrora em rótulos anacrônicos ao dispor o desenvolvimen-
to das ciências sociais em plano analítico seguido, com continuidades e descontinuidades,
àquele do pensamento social e político brasileiro sem relegá-lo ao ensaísmo ou à ideologia.
Da mesma forma, permite destacar dilemas e desafios recorrentes ao longo da história e
quadros interpretativos a respeito da luta e da agenda políticas, que compõem parte central
dos valores de dada cultura cívica, seus grupos e classes. Do ponto de vista metodológico,
inspira-nos uma história intelectual remetida a controvérsias e disputas, voltada a padrões
de interpretação, seus conteúdos e raciocínios – não raro divorciados em aparência, porém
cognitivamente íntimos (Santos, 2017).
Análises e ideias, no entanto, fazem mais do que falar sobre o social e o político; elas
ultrapassam o espaço das representações a respeito dos conflitos. Como forças reflexivas ins-
titucional e organizacionalmente mediadas, os modos intelectuais de operação são “formas
de pensar que contêm modelos de sociedade e de Estado distintos e práxis relativamente di-
ferenciadas” (Brandão, 2005: 259). Isso significa que a produção intelectual, em geral, veicula
apostas e aspirações sobre o social e o político, todo um leque de expectativas que carregam
uma tensão vital entre o ser e o dever ser, a coisa e o modelo.
Nossa análise proposta é assim de veia simultaneamente cognitiva e politizada. Este
estilo de história de ideias e ideais intelectuais, “ao abrir mão de uma compreensão limitante
e autonomizada de ‘campo acadêmico’, observa a disputa pela interpretação [...] dos movi-
mentos sociais na redemocratização como índice das disputas mais amplas pelos rumos e
significados dessa mesma redemocratização” (Szwako, 2012: 188).
A hoje célebre afirmação de Francisco Weffort em Por que democracia? é sintomática do
laço político-intelectual e de apostas e disputas então em jogo.

Queríamos ter uma sociedade civil, precisávamos dela para nos defender do Estado monstruoso
à nossa frente [...], se não existisse, precisaríamos inventá-la. Se fosse pequena, precisaríamos
engrandecê-la [...]. É evidente que, quando falo aqui de “invenção” ou de “engrandecimento”,
não tomo estas palavras no sentido de propaganda artificiosa. Tomo-as como sinais de valores
presentes na ação política, e que lhe conferiam sentido exatamente porque a ação pretendia
torná-los uma realidade” (1989 [1983]: 518).

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

Esse elogio à sociedade civil e a aposta nela constituíram, porém, um dos últimos mo-
mentos da história intelectual aqui recontada. Antes disso, foi preciso consagrar a tese popu-
lista, aceitar e criticar parte de seus pressupostos, para apenas daí, com essa dupla adesão e
crítica, ser capaz de ver ação, sentido razoável e certo simbolismo nas ações e nas mobiliza-
ções das classes populares. Vejamos, pois, como categorias e nuances do chamado populismo
se cristalizaram como um dos pilares do debate contemporâneo sobre movimentos sociais.

Sobre populismo: debates e dois tempos de análise em


Weffort

E mbora o populismo como tema e objeto de preocupação de nossas ciências sociais ante-
ceda as décadas de 1960 e 1970, tendo ocupado parte da agenda dos isebianos e seus
dilemas expressos nos Cadernos do Nosso Tempo (Gomes, 2001; Hollanda, 2012), a reflexão
mais influente e sistemática sobre o tema encontrou em Weffort seu mais importante teórico
no Brasil (Gomes, 2001: 29). As raízes teóricas e as gerações de intelectuais que inspiraram
a produção de Weffort à época são várias. De um lado, situava-se a produção de sociólogos
então ligados à Universidade de São Paulo, como Simao, Lopes e Rodrigues – entre outros,
como Touraine, em diálogo com a sociologia uspiana –, cujas pesquisas em geral tratavam
das relações entre classe operária, formas sindicais de organização, Estado e desenvolvimento.
De outro, as críticas dirigidas por Oliveira, Conceição Tavares e Serra a certo economicismo do
pensamento cepalino também influenciaram Weffort.8 Além desses, antes mesmo da criação
do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a interlocução prolongada com Car-
doso, Singer e Ianni também deixou marcas recíprocas9 nas teorizações sobre o populismo.
A primeira dessas marcas pode ser vista em Política e revolução social no Brasil (1965),
que teve Ianni como organizador e contou com contribuições de Cohn, além dos próprios
Ianni, Weffort e Singer. Na obra se encontram alguns dos principais temas que, por longo
tempo, rondarão a imaginação acadêmica sobre o Brasil pós-1930. À massa despolitizada
(Singer, 1965: 70) correspondem políticos e partidos clientelistas e burgueses, cujo exemplo
mais completo teria sido Vargas e sua política de clientela, sobretudo com o proletariado
urbano pós-1930, imaturo, haja vista que a notável experiência de um proletariado emigrante
europeu havia se dissolvido nas transformações da estrutura demográfica e ocupacional da
classe (Ianni, 1965: 35).
Assim, em plano político ou social – este determinando aquele – se dá a continuidade da
solução de compromisso herdada do Estado Novo, e no pós-1945 os componentes marginais
da classe operária, que formam a massa, permanecem disponíveis para a manipulação política

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José Szwako e Ramon Araujo

pelo populismo (Cohn, 1965). Disponibilidade, imaturidade, falta de consciência e massifica-


ção são algumas das noções que permeavam o dicionário explicativo do marxismo uspiano.
Esses pensamentos reúnem pistas de como uma parte do imaginário acadêmico interpretava
não só o passado do país e nele a desventura das classes trabalhadoras (e malgré tout sua po-
tência revolucionária),10 mas também como aquele passado pesava, de modo mais ou menos
irremediável, em 1961 e 1964.11
É com referência aos dilemas políticos pré e pós-1964 que os três principais escritos do
primeiro Weffort, para dizê-lo de algum modo, serão aqui lidos. Embora sua redação date de
1963, “Política de massas” foi originalmente publicado junto com os artigos de Singer e Cohn
em Ianni (1965). Já os outros dois, “Estado e massas no Brasil” e “O populismo na política
brasileira”, saíram em 1964 e 1967, para os públicos argentino e francês, respectivamente.
Juntos, os três ensaios correspondem à primeira parte do livro homônimo O populismo na
política brasileira, publicado apenas em 1978.
Os textos da segunda fase de Weffort tratam da produção posterior a 1968, em parti-
cular Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco (1972), Origens do sindicalismo
populista no Brasil (1973) e as três partes de Democracia e movimento operário (1978b;
1979a; 1979b). Note-se, porém, que a divisão entre um primeiro e um segundo Weffort não
pressupõe qualquer padrão de ruptura ou continuidade entre esses dois tempos de análise –
padrão, de resto, a ser textualmente averiguado. Tal caracterização segue nossa hipótese de
que a produção intelectual é bem compreendida por referência não a um campo alheio à po-
lítica, mas a discussões, tensões e temporalidades político-intelectuais nas quais se enredam
os autores, seus ideais e grupos.
A concepção de populismo que atravessa os textos de Weffort da década de 1960 está
alinhada pelo par “crise de hegemonia” e “política de massa”. Bem ao modo de O 18 Brumá-
rio, desde o varguismo, a dupla incapacidade política, tanto burguesa quanto proletária – de
dominar politicamente as demais classes ou de se contrapor à dominação burguesa –, teria
tido como efeito a subordinação e a adesão das massas populares, então recém-urbanizadas,
a um chefe. No centro desse arranjo, setores urbanos e grupos agrários dominantes estabe-
lecem uma situação de compromisso na qual, apesar da liquidação da lógica oligárquica do
pré-1930, nenhum grupo detém exclusivamente o poder político (1978: 53-ss).
Embora haja nuances e ambiguidades implicadas no chamado pacto populista, todo o
período entre 1930 e 1964 é descrito como um momento no qual o líder era o Estado, que,
como tal, entrava “em contato direto com os indivíduos reunidos na massa” (1978: 28).12
Para um só e mesmo fenômeno, que se institucionaliza e, desde 1945, se alastra, vários rótulos.

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

Ademarismo, queremismo, janismo e janguismo são versões nuançadas da mesma lógica po-
pulista – incluindo o sistema partidário –,13 sendo que a crise e o golpe de 1964 são, nesse
diapasão, o esgotamento daquele pacto, seu colapso, como dizia Ianni.
O estatuto dado aos setores urbanos ou às massas populares no raciocínio da tese po-
pulista é ambivalente. Por um lado, a manipulação por parte do líder político em relação a
elas nunca foi absoluta, pois dinâmicas e trocas entre líder e massa permitiram também a ca-
nalização e a expressão de insatisfações populares (1978: 70-ss). Assim, porquanto nenhuma
classe encontra respaldo direto no Estado, o chefe político depende, nessas condições de uma
espécie de vazio político, da legitimação das massas. No entanto, por outro lado, a emergência
política dos setores urbanos e de seus interesses é resumida à “submissão a um senhor, a uma
chefia que lhe é imposta pelas condições da luta política que [...] se move pelos interesses de
outras classes” (1978: 30). Quer dizer, a massa se expressa politicamente apenas na medida
em que, e porque, é politicamente manipulada – as massas “são a raiz efetiva do poder”, mas
nessa mesma condição não passam de massa de manobra (1978: 60).
Apesar da posição ambivalente na equação manipulação-canalização, é o primeiro lado
do par que tira nuance e dá o tom da adjudicação dos setores urbanos na tese weffortiana.
Longe de destacar a vocalização de preferências, a ênfase na descrição das massas recai
sobre deficiências e ausências de várias ordens. Dadas a industrialização e a urbanização
vividas no país, o contingente de população vinda do campo experimenta condições de
escassez e insatisfatórias de vida e trabalho que lhes colocam numa situação de disponibili-
dade política (1978: 60).
Nessa configuração modernizada, a massa é sinônimo de vários setores urbanos, de in-
divíduos reunidos e de múltiplas formas de situação ecológica que, juntas, tendem a dissolver
os vínculos com os padrões tradicionais sem chegar a formar propriamente uma classe graças
àquela composição social heterogênea – fator que, por sua vez, impede tanto uma ação polí-
tica quanto uma identidade de classe homogêneas:

É particularmente notória [a heterogeneidade] quando nos referimos àquelas classes que teo-
ricamente deveríamos designar como proletárias, em via de proletarização ou assimiláveis ao
proletariado: operários industriais, agrícolas, operários-urbanos não industriais; trabalhadores
urbanos por conta própria ou rurais não-assalariados; pequenos assalariados do comércio e dos
serviços, etc. Entre esses diferentes setores (e no interior de cada um deles) são notáveis as dife-
renças com relação a condições de vida, relações de trabalho, situação ecológica [...]. Ademais,
é duvidoso que se possa tomar qualquer desses setores, como um grupo politicamente homo-
gêneo com a possível exceção dos operários industriais no que se refere ao comportamento
sindical (Weffort, 1978: 80).

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José Szwako e Ramon Araujo

É dessas múltiplas faltas que se valem o populismo e o populista, pois as relações massa/
líder são predominantemente individuais, e nelas o conteúdo de classe não se manifesta de
modo direto (1978: 81). Sob a tutela do líder carismático, a massa mostra seu irracionalismo
(1978: 37). Assim, sem formação nem perfil de classe, sem conteúdo nem consciência de clas-
se, a massa urbana brasileira é, para retomar Marx, nosso saco de batatas. Nesse diapasão, ao
reivindicar discursivamente o povo, como se ouve nos apelos populistas, diz-se que o Estado
encobre as contradições de classe, age como suposto árbitro das diferentes classes, impedindo
a identificação dos interesses reais das classes populares (1978: 55 e 81) e reivindicando a
representação de um social nacional unificado.
De modo inverso, a relação mantida pela fração mobilizada dos trabalhadores com o Es-
tado, nos sindicalismos ou em associações populares, é lida como uma sorte de anexo, já que
os trabalhadores seguem tanto as regras dos seus líderes quanto o destino destes, a exemplo
de 1964 (1978: 19; 57).
Esse diagnóstico negativo do pacto populista e dos setores urbanos nele pode ser mais
bem compreendido se inserido no bojo de suas disputas político-intelectuais, isto é, das apos-
tas teórico-políticas e dos adversários com e contra os quais se situa a tese populista. Con-
quanto não seja em qualquer momento explicitada, a aposta subjacente à produção dos
textos da década de 1960 tem lógica revolucionária – condições estruturais (herança rural,
heterogeneidade, disponibilidade etc.) levaram à conformação de massas com potencial, no
máximo, para uma revolução individual (1978: 84).
O populismo é a forma política e ideológica que conduz à traição (1978: 35) da vocação
revolucionária irrealizada e projetada, para dizê-lo de algum modo, sobre uma não classe. É
com referência a tal aposta, impossibilitada pelo pacto populista, que ganha sentido o tom
crítico dirigido à situação de compromisso entre frações de classes e a um caráter de anexos
do Estado atribuído aos sindicalismos.
Os adversários intelectuais dessa aposta são nítidos: os assim chamados ideólogos do
nacionalismo (1978: 16).14 Ou seja, os intelectuais do Instituto Brasileiro de Economia, Socio-
logia e Política (Ibesp), posteriormente agrupados no Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(Iseb), eram acusados de fazer uma exaltação nacionalista do povo, confundindo o sentido
real da participação das massas (1978: 16). Classe e povo são os epítomes categoriais da
forma pela qual cada um dos lados dessa disputa interpretativa empreendeu seu prognóstico
do cenário sociopolítico brasileiro pré-1964. No horizonte de paulistas e cariocas, duas apos-
tas operavam como atalho entre teoria e política: luta de classes e revolução, de um lado, e
aliança de classes e progresso, de outro (Ferreira 2001b; Hollanda, 2015).

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

Se, no entanto, essas intepretações divergiam no nível prognóstico de qual era o hori-
zonte em disputa e de como chegar até ele – se pela aliança de classes ou pela sua superação
–, no âmbito diagnóstico as coisas não parecem tão simples, pois boa parte da produção
carioca, tanto no Ibesp quanto no Iseb,15 teve também o populismo como alvo (Gomes, 2001).
A leitura, por exemplo, da falta de uma mentalidade classista que caracteriza as gerações de
trabalhadores com tradição de luta poderia ser atribuída a Weffort ou a qualquer uspiano de
boa cepa da mesma geração, porém é de autoria de Ramos (1961: 56). É igualmente da massa
que se trata nos Cadernos do Nosso Tempo – esse conglomerado multitudinário de indivíduos,
essa expressão confusa e primária de aspirações instintivas (Ibesp, 1954: 142).
O diagnóstico weffortiano, como vimos, não está muito longe das conclusões de seus
adversários, para quem a “massa é pura amorfia” (Hollanda, 2015: 629). Mas não é só quanto
ao déficit de racionalidade da massa que cariocas e paulistas compartilham traços de seus
respectivos diagnósticos. Soma-se a isso uma crítica comum dirigida ao moralismo das bases
eleitorais e da retórica de representantes populistas. Enquanto teóricos do Ibesp criticam a
limitação da mentalidade moralista instrumentalizada por legendas como Partido Democra-
ta Cristão (PDC) e Partido Socialista Brasileiro (PSB), segundo a qual “tudo depende de os
homens que dirigem os acontecimentos serem considerados bons ou maus” (1954: 152),
Weffort enfatiza a função mistificadora do moralismo na produção ideológica, sintetizado na
fórmula o tostão contra o milhão, da campanha de Jânio Quadros para a prefeitura de São
Paulo (1978: 36-ss).
Como se nota, a tese do populismo expressada nos textos da década de 1960 extrai, das
relações tecidas em sua configuração político-intelectual, as chaves cognitivo-políticas pelas
quais interpreta pré-1964 e 1964. Ao mesmo tempo que compartilha com seus adversários
acusados de nacionalistas parte do diagnóstico de mazelas e faltas das massas brasileiras,
Weffort as enquadra na moldura de um marxismo de corte estrutural, à la Ianni e Singer, colo-
cando, porém, crise de hegemonia/situação de compromisso no centro da análise.
Ainda que a ideia de manipulação seja eventualmente matizada,16 apontando para al-
guma ambiguidade do pacto populista, as massas nele pressionam e participam, mas não
passam de oposições domésticas (1978: 23; 43). Em função talvez da apropriação singular de
O 18 Brumário, a produção de Weffort carrega distintiva estadofobia17 – no populismo, o Esta-
do é concebido como entidade independente; ideologias (nacionalistas, desenvolvimentistas)
alimentam o mito de um Estado do povo, sem diferenciações de classe; e, quando em 1961
esse arranjo começa a ruir, todos, à esquerda e à direita, se orientam pela crença num Estado
superior e soberano (1978: 64-65).

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José Szwako e Ramon Araujo

Se não é exclusiva da reflexão weffortiana, essa noção de Estado entendido como enco-
brimento de contradições, divisões e representação (mítica) invertida da dominação de classe
fez, e segue fazendo,18 escola no pensamento uspiano contemporâneo.
Em contraste com os textos dos anos 1960, a produção weffortiana da década seguinte
opera uma inflexão na qual o primeiro plano da análise é tomado não mais pelo pacto po-
pulista, mas por seus atores, por escolhas e aporias desses atores, bem como pelo seu papel
como operadores da reprodução ou da superação daquele pacto. A análise das greves de
1968 dá exemplo eloquente disso, pois “os movimentos de Contagem e Osasco represen-
tam, em graus diferentes, um mesmo processo de ruptura interna do sindicalismo populista”
(1972: 87). Sem prejuízo das estruturas, a ênfase nos atores, tanto em Origens do sindicalismo
populista quanto em Democracia e movimento operário,19 é central nesse segundo Weffort,
para quem a análise histórica requer a das conjunturas nas quais o movimento social realiza
suas opções (1973: 69). Passa-se, assim, a criticar as visões que obscurecem “as margens de
liberdade e, portanto, de responsabilidade dos protagonistas pelo rumo tomado pelos acon-
tecimentos” (1978b: 9).
Coerente com tal inflexão, a análise agora conjuga os pares massa/líder e situação de
compromisso/crise hegemônica com a ação de partidos, sindicatos e trabalhadores na confec-
ção daquele compromisso e na sua ruína em 1964. Poucos agrupamentos escapam à crítica.
Udenistas, liberais, nacionalistas de esquerda e de direita, tenentistas – todos são escrutina-
dos, mas são os “comunistas [que] sofrem nas mãos de Weffort” (Reis, 2001: 368).
A proeminência agora dada a atores e escolhas é circunscrita por uma reflexão de fun-
do sobre sua orientação política. Contra economicismos e sociologismos (1973:70), o autor
não vê escolhas como epifenômenos do populismo ou das ideologias nacionalistas; ele as
vê, antes, como índice de liberdade e autonomia dos sindicalismos, bem como de seu grau
de dependência/independência. “[C]omo poderia haver liberdade efetiva para os sindicatos
sem desligamento do Ministério do Trabalho?”, indaga-se Weffort (1973: 85), enxergando no
pós-guerra uma contradição, pois o que o Partido Comunista Brasileiro (PCB), por meio do
Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT), “buscava não era a autonomia das organiza-
ções em nome dos interesses da classe operária, mas um pouco mais de liberdade para melhor
servir aos interesses políticos do governo”.
No que tange à interlocução e à crítica, ao mesmo tempo que segue a acusação de
nacionalistas sobre os intelectuais do então extinto Iseb, rebaixado a aparelho ideológico de
Estado (1978b: 10), as trocas e as inspirações mudam. Enquanto sobrenomes como Souza,
Schmmiter e Lamounier passam a comparecer positivamente no diagnóstico de Weffort, a

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

inspiração sociológica uspiana fica deslocada, em boa medida, por causa daquela inflexão que
não acolhe mais o recurso à ideia de atraso. A explicação da tragédia do movimento operário
deve ser procurada menos no atraso da classe operária que numa orientação persistente por
parte de seus pretensos dirigentes em apoiar-se nesse atraso para suas próprias manobras
políticas (1973: 71).
A que tragédia Weffort se refere? Tendo ido do populismo a seus atores, do regime aos
sindicatos, o autor destacou em veia enfática o papel do PCB e de seus dirigentes nos rumos
e nos destinos do sindicalismo brasileiro. Especialmente no pós-guerra, os comunistas teriam
se subordinado a Vargas, à sua institucionalidade dita fascista corporativa e, adiante, a seus
herdeiros políticos. Aos olhos de Weffort, o PCB deu nada menos que vida à estrutura sindical
oficial (1973: 83). A caracterização do laço entre comunistas e poder político alterna entre
colaboração de classes, aliança e adesão por parte dos primeiros, sendo considerado partido
da ordem (1973: 80; 1979b: 16).
No que concerne à ideologia, a relação com os soviéticos não seria suficiente para expli-
car a disposição dos dirigentes comunistas a agir em nome da ordem e da tranquilidade, aper-
tando o cinto em momentos de impulso grevista. Era um reformismo dos líderes, com certo
viés de classe, que explicaria o não questionamento do Imposto Sindical – pedra de toque da
heteronomia no quadro weffortiano – e sua ação mais orientada para fins e funções políticas
do que econômicas. A situação trágica do sindicalismo residia, enfim, em que a liderança
comunista era vista como “incapaz de organizar a classe operária de maneira autônoma”
(Weffort, 1973: 81).
É com Participação e conflito industrial que o recurso à autonomia ganha peso em We-
ffort. Deslocada a ideia de atraso, nas greves de 1968, “o movimento operário não pode ser
visto apenas como dependente da história da sociedade, mas também como sujeito de sua
própria história” (1972: 10). Contagem e Osasco lhe trazem pistas de uma luta operária além
do sindicalismo populista, por sugerirem esboços de formas alternativas, bem como orien-
tação e organização; por sugerirem uma atitude de independência em face do Estado e das
empresas (1972: 11).
Contagem fora exemplo de irrupção espontânea das massas operárias. A análise situa
tanto greves organizadas quanto espontâneas num mesmo continuum e dentro de condições
mais amplas que lhes preparam, a fim de sublinhar que a ação grevista, numa conjuntura dada
e limitada, no caso mineiro

não foi prevista ou proposta quer pelas direções e “oposições sindicais”, quer pelas organiza-
ções de esquerda. Ela ocorreu como um ato espontâneo da massa operária e sua espontanei-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 481-499, maio-agosto 2019 481
José Szwako e Ramon Araujo

dade terminou por impor-se mesmo àqueles que [...] tentaram controlar, coordenar ou dirigir
os acontecimentos.
[...]
Do ponto de vista das questões de organização, as greves espontâneas são sempre relevantes
[...] porque indicam que as organizações (corporativas ou políticas) existentes são inadequadas
ou insuficientes. Neste sentido, a espontaneidade operária representa, no essencial, um impulso
para novas formas de organização. Da mesma maneira, a greve espontânea pode ser vista
como representando uma forma embrionária da consciência social dos operários que no ato da
greve abandonam sua costumeira posição de submissão e assumem uma atitude de resistência
coletiva aos grupos dominantes. (1972: 22-24)

Assim, Participação e conflito industrial traz uma embocadura que não apenas circuns-
creverá, de modo analítico, a produção posterior de Weffort, como também inspirará a cogni-
ção (e a aposta) de toda uma geração de intelectuais. Junto com os índices de autonomia e
independência, emerge a questão da espontaneidade dos operários e de sua consciência, não
mais a falta dela, mas sua forma embrionária. Contagem e Osasco davam vazão àquela cog-
nição estadofóbica. Enquanto no primeiro caso há uma espontaneidade quase pura, no outro
é por vontade das organizações sindicais, por meio das comissões de fábrica – via participação
de base (1972: 52) –, que eclode a greve. Esse último caminho organizacional, contudo, não
macula seu potencial porque o sindicato de Osasco foi esboçando a própria concepção política
sobre a sociedade e o Estado, terminando por representar para os operários, mais do que um
sindicato, seu modo de expressão política.
A medida da análise aqui não está nos resultados imediatos de cada greve, mas na
política dos envolvidos, incluindo-se negociação e repressão estatais. No caso mineiro, o perfil
autêntico e espontâneo da massa de trabalhadores e do movimento grevista fora refreado por
organizações comprometidas com a perspectiva do sindicalismo oficial. No caso paulista, onde
o sindicato era central, a greve fora resultado da consciência nutrida pelas comissões de fábri-
ca e de suas contradições internas. Recusando, à conclusão, uma ruptura entre independência
sindical e herança corporativa, Weffort rejeita também a noção de que Osasco e Contagem
seriam meros desvios de um padrão populista; afirma, antes, que ambos gestaram embriões
de organização autônoma (1972: 90-92).
A crítica ao chamado sindicalismo populista e aos comunistas do PCB depois feita por
Weffort (1973; 1978b) se dá à luz desse autonomismo. No entanto, o ano de 1978 traz uma
reconfiguração político-intelectual capital. Se, de um ponto de vista mais amplo, a distância
entre 1978 e 1973 coincide com o início da distensão e de maior liberdade política e civil no
país, do ponto de vista das relações e das tensões intelectuais, é marcada pela saída, em 1976,
de Weffort do Cebrap e por seu papel central na formação do Centro de Estudos de Cultura

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

Contemporânea (Cedec), cuja aposta era “perceber no presente os germes da mudança para
uma sociedade democrática, articulada e participante” (Comissão Editorial, 1978, s/p). Na raiz
desta aposta, o autonomismo. “Não há movimento operário independente sem democracia, e
não há democracia sem movimento operário independente” (Weffort, 1978b: 7). É evidente o
peso do argumento weffortiano na Revista de Cultura Contemporânea e no Cedec, que reunia
nomes como Chaui, Sader e Moisés. Aquela estadofobia, por exemplo, ecoa obliquamente na
Apresentação inaugural da revista:

Nosso ambiente [brasileiro] de criação da cultura esteve quase sempre ligado à expansão das
funções estatais, contribuindo para favorecer um estilo de trabalho intelectual cujo protótipo
mais recente é o tecnocrata [...]. Cumpre, nos dias que correm, criar as condições para o desen-
volvimento da visão crítica do passado e do presente. (1978, s/p)

Traduzindo: criticar, na teoria e com efeitos na prática, o ‘passado populista’ foi a pri-
meira missão autoproposta pelos intelectuais à gênese do Cedec. O texto que abre o primeiro
volume da Revista de Cultura Contemporânea se autocompreende como ‘ajuste de contas’.
“A questão [das relações entre democracia e movimento operário] é do presente, da história
que se está fazendo e da que se tem para fazer, mas também é do passado” (Weffort, 1978b:
7). Autonomista e alternativo-democrático – era essa o duplo fundamento da visão de Wef-
fort sobre movimentos e momentos de reorganização sindical e, logo adiante, partidária que
marcaram o fim daquela década. Autonomista porque crítica da suposta ausência de uma
perspectiva própria em relação ao problema da organização sindical (1978: 12).
Em tom antipecebista, ele denuncia também o imediatismo e o instrumentalismo dos
comunistas, que teriam, ressoando Coutinho, dificuldade em aceitar ideais de liberdade e
democracia como valores (1979a: 11). Contra um instrumentalismo da esquerda, cabia ao
sindicalismo emergente forjar uma alternativa de esquerda que fosse além das exigências
conjunturais (1979a: 10). Nessa via de mão dupla20 que, entre 1978 e 1979, se tornaram os
laços entre reflexão intelectual e autoimagem dos operários, os quais, em conjunto, deram
vida ao Partido dos Trabalhadores (PT), a expectativa weffortiana era que, dada aquela mobi-
lização e incorporada a crítica do passado, o que se pode pretender é que se tenha uma nova
concepção de democracia a criar (1979b: 12), de maneira autônoma.
Democrática, articulada e participante era o tripé ideal da sociedade projetada pelos ce-
dequianos. Nessa aposta, o eixo participacionista foi central e transparece na reação às críticas
à participação e ao conflito industrial, segundo as quais essa análise seria simplista porque
espontaneísta.21 Em resposta, Weffort afirma que o então Movimento Democrático Brasileiro
(MDB) e os sindicatos oficiais eram organizações extremamente limitadas e que a participação

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José Szwako e Ramon Araujo

dos trabalhadores nelas não esgotava a questão da representação sindical, cujo dilema era
criar alternativas organizatórias (1976: 154).
Informada pelos eventos ditos espontâneos de Contagem e Osasco, bem como informan-
do a autoimagem de atores e mobilizações de fins dos 1970, a análise weffortiana trazia mais
do que um ideal de sociedade; trazia um ideal de relação entre Estado e sociedade marcada
pelo autonomismo, não mais pelo populismo – vivia aí, na inspiração em Weffort, na aposta
do Cedec e nas suas trocas com grupos civis e políticos então em cena, uma das raízes intelec-
tuais do longevo ideário da democracia participativa no país (Teixeira, 2017).
A história intelectual da reflexão weffortiana nos mostra que ênfases e luzes sobre
o populismo mudam pari passu a filiações e pontes intelectuais, acadêmicas ou não, com
grupos não só da sociedade civil, mas também de justaposições e tensões deles com a
sociedade política. Por volta de 1964, a reflexão se centra nas ausências sociológicas de
massa que impediriam a realização de uma imaginada vocação revolucionária de classe no
bojo do dito regime populista. Na inflexão rumo às escolhas, aquela deficiente não classe
deixa de ser o aspecto central para dar vez a atores, à sua consciência e à sua autonomia, ou
à falta delas.
Em seu conjunto, indo do regime ao sindicalismo populista, a produção de Weffort per-
correu caminho igual e paralelo ao de outros acadêmicos e grupos de intelectuais da esquer-
da paulista que, nos 1970, foram das macrodeterminações a conjuntura, atores e política
(Lahuerta, 2001). Não sem ironia, a descoberta da política veio, em Weffort, impregnada de
uma recusa do Estado; uma renitente estadofobia costurava suas análises com efeitos longe-
vos dicotomizantes: Estado versus sociedade civil – um “Estado forte das grandes burocracias
públicas, aliado ao grande capital estrangeiro e nacional, que impõe uma autoridade pratica-
mente ilimitada sobre a sociedade civil” (1979b: 12). Contra aquele Estado maldito e herdado,
uma virtuose civil.
Tal cognição operava um paralelismo entre regimes autoritário e populista, bem como
acachapava toda a história política e sindical, de 1945 a 1964, num rótulo comum e inde-
vido.22 Seja como for, o enquadramento weffortiano se impôs além da universidade, influen-
ciando autores e atores que foram a um só tempo acadêmicos, civis e partidários, reverencian-
do-os na medida em que respondessem àquele autonomismo e à correspondente sociedade
civil pretensamente autônoma, mas igualmente redentora (Lahuerta, 2001: 73). Vejamos, pois,
como essas análises, ênfases e lógicas de interpretação permearam a gênese do debate bra-
sileiro sobre movimentos sociais.

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

O conflito no centro da análise: herança e inovação


em Moisés

A trajetória da produção inicial de Moisés segue de perto a reflexão weffortiana. “Esta


obra”, diz Fernandes no Prefácio a Moisés (1978),23 “retoma não só as linhas de
trabalho, mas a terminologia e as preocupações teóricas de Weffort” (1978: 11). Além de
aprendiz e interlocutor de Weffort, Moisés esteve com ele não só na Universidade de São
Paulo (USP), no Cebrap e na gênese do Cedec, como também nos esforços de constituição e
vertebração do PT nos anos 1980 (cf. Keck, 1991). A publicação das reflexões aqui analisadas,
Greve de massa e crise política e A revolta dos suburbanos,24 veicula, além do parentesco
entre ambos, expectativas e desafios vividos à origem do Cedec.
Ao colocar como questão norteadora o que chama de recuperação das tradições de
lutas das classes populares, Greve de massa e crise política gira ao redor dos processos pelos
quais essas classes foram capazes de se afirmar como atores históricos com vontade própria
(Moisés, 1978: 19). As greves de 1953 em São Paulo servem assim como objeto da análise his-
tórica, cujo “objetivo [é] indicar de que forma a História, isto é, o movimento real dos homens,
modifica a estrutura” (1978:42). Na elaboração do problema, a inspiração weffortiana – seja
na seleção de 1953 como conjuntura, seja na centralidade da questão da espontaneidade –
lida como “sintoma de uma expressão histórica, da parte das classes populares”, a demandar
direção política (Moisés, 1978: 20). Assim, seu problema teórico-político é o da tradução dada
à ação espontânea, algo nada menos do que central ao movimento operário, se ele quiser se
transformar em ator real na cena política.
Entre dilemas de consciência e organização, entre Lucáks e Gramsci, a greve é entendida
como conflito entre classes. De modo interessante, não obstante traga um panorama das
conjunturas política e econômica (1978: 71-80), o desenrolar do evento entre março e abril
de 1953 é reconstruído no detalhe, dia após dia, sem subsumi-lo àquele panorama. Disparada
pelo Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Têxtil e seguido dos metalúrgicos, a greve em
poucos dias chegava a novas categorias: marceneiros, carpinteiros, trabalhadores de cerveja-
rias e indústria de tinta. Na Praça da Sé, palco do conflito, digladiavam inúmeras vezes forças
repressivas e grevistas, com vários feridos e presos.
Enquanto Vargas, seu gabinete, os partidos da base, governo estadual, Delegacia, Tri-
bunal Regional do Trabalho e empresas propunham, todos em diferentes ritmos, negocia-
ções sem sucesso, a organização grevista se dividia, por fora dos sindicatos e em paralelo à
liderança comunista, entre piquetes, comissões e um Comitê Central da Greve, chegando, no
vigésimo dia, à formação de um Comitê Intersindical de Greve. Um ciclo operário de protesto

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José Szwako e Ramon Araujo

se alastrava país afora – da capital à grande São Paulo, passando pelo interior paulista e
espicaçando noutras capitais.
A solução do conflito seguiu dupla lógica: institucional, sob a pena do Tribunal Regional
do Trabalho, e extrainstitucional, sob a lógica da solidariedade e da radicalidade operárias,
expressadas tanto na adesão e nos momentos mais tensos do confronto quanto na condição
imposta pelo líder grevista de que os prisioneiros políticos fossem soltos, como o foram. Além
de terem conseguido fazer, na marra, uma greve legalmente proibida, os trabalhadores logra-
ram uma reforma no gabinete de Vargas, levando João Goulart ao Ministério do Trabalho, e
também, como desdobramento do Comitê Intersindical, uma institucionalidade que duraria
ao menos até 1964.
Essa reconstrução de Moisés é sui generis pelo esforço narrativo dedicado ao conflito
e seus atores. À conclusão, porém, duas tendências sintetizam tudo. Uma delas é ligada aos
trabalhadores com tendência espontânea à radicalização e sem liderança definida; a outra,
ligada ao desempenho extremamente ambígua do PCB, no seu papel de estimular e controlar
os trabalhadores (1978: 92-93). Mais uma vez, a tese populista e a razão autonomista compu-
nham a chave pela qual era lido o caso. A despeito de veicular possibilidades de uma política
clara de organização autônoma em relação ao Estado, a greve, em razão daquela ambiguida-
de, teria resultado no fortalecimento do populismo (Idem: 93-94).
No seminário de 1977, todavia, junto com seus pares cedequianos, a potência e a es-
pontaneidade vistas em 1953 lhe ensinavam algo mais fundamental, caro à aposta do Ce-
dec quanto ao papel dos trabalhadores na transição: que as relações entre espontaneidade
e direção política são “fundamentais para definir as funções de representação de qualquer
partido que se proponha a liderar a classe operária” (Moisés, 1978: 151). Diante de Moisés,
de seus inspiradores e interlocutores, era esse era um dos desafios teórico-políticos então
postos e autopropostos.
Naquele mesmo ano do seminário, o Cedec abria sua primeira coleção de livros com a
publicação de Contradições urbanas e movimentos sociais, organizado por Moisés, no qual
vinha a lume A Revolta dos suburbanos, ou “Patrão, o trem atrasou” (Moisés e Martinez-
-Alier, 1977). Na apresentação, lê-se que, entre os textos publicados,25 a reflexão de Moisés
e Martinez-Alier era a mais fiel às preocupações intelectuais do Cedec (Weffort, 1977: 10).
Acusando parte das ciências sociais de elitismo, esse Weffort em nada lembra aquele das
faltas da massa tal como caracterizada nos 1960 e se questiona, no ritmo daquela inflexão,
por que a espontaneidade popular era lida só em termos negativos como instinto ou falta
de organização.

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

É contra tal visão elitista que se dirige a análise dos episódios de quebra-quebras e
depredação de ônibus e trens nas capitais carioca e paulista, em especial entre 1973 e 1975.
Analogamente à análise de 1953, após um panorama dos acidentes e dos incidentes, bem
como de feridos e mortos em quase uma década, a dinâmica das revoltas ocupa o núcleo da
análise, na qual são (o)postos os atores: usuários, rebelados; o Estado e seus agentes, que
reagem para conter os acontecimentos; e as empresas e seus trabalhadores.
Longe de serem protestos cegos, essas revoltas não se reduzem à mera destruição dos
meios de transporte; são, antes, dirigidas contra o Estado, respondendo a anseios coletivos
(Moisés e Martinez-Alier, 1977: 30). Quer dizer, a massa é dotada de razão. “Essa massa po-
pular não é um aglomerado casual de pessoas [...]. Não existe organização prévia, mas existe
uma identidade de condição e de propósito [...]. Esse sentimento de identificação se manifesta
em formas diversas de solidariedade” (1977: 41). Massa – note-se – racional, solidária e
prenhe de simbolismo. Antecipando Melucci, a dupla vê nos eventos e nos depoimentos revol-
tosos a natureza simbólica desses movimentos (Idem: 33-ss). Na resposta de um presidente
militar, por exemplo, veem a fabricação de um povo como interlocutor válido do Estado.
A revolta dos suburbanos foi reconhecido por sua veia pioneira (Machado e Ribeiro,
1985). Moisés e Martinez-Alier inovaram conceitualmente ao entrar no debate dos movi-
mentos sociais urbanos, marcando a gênese do Grupo de Trabalho homônimo na Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em 1979. Saem Lu-
cáks e Gramsci, entram Castells, Lojkine, e com eles as relações entre capitalismo e contradi-
ções urbanas (Moisés e Martinez-Alier, 1977: 44-53), para inquerir o peso dessas últimas no
acirramento da reprodução das relações de produção.
Se bem que elogiada por seu pioneirismo, essa análise foi também criticada por se fixar
na polarização Estado versus sociedade, negligenciando a variedade de formas assumidas pe-
las relações entre protestos e movimentos sociais, de um lado, e representantes e instituições
estatais, de outro (Santos, 1981). A herdada estadofobia levava a uma apreciação “um pouco
pobre [do Estado], definido apenas como inimigo autoritário ou a mira contra o qual se movia
a sociedade civil” (Cardoso, 1983: 321).
De signo urbano, a qualificação do conector operante entre Estado e sociedade civil
deixou marcas indeléveis no debate brasileiro sobre movimentos sociais desde seu nasci-
mento. Se não rompeu com aquela herança, os deslocamentos trazidos por A revolta dos
suburbanos nos permitem ao menos notar que o fim dos anos 1970 está analiticamente a
anos-luz da noção de manipulação e alienação das massas; antes, tratava-se de ver racio-
nalidade na revolta, mais uma vez e ainda à espera de direção, pois a espontaneidade era

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José Szwako e Ramon Araujo

encarada pela via da organização das massas (Moisés e Martinez-Alier, 1977: 57). Assim,
diante de intelectuais e núcleos como o Cedec e Moisés, emergiam mobilizações e persona-
gens que, ao contrário de um elitismo, lhes traziam promessas, apostas, e, com elas, novos
conceitos e categorias.

Novos conceitos em cena: crítica e adesão à tese


populista em Paoli e Sader

O ciclo de greves operárias de 1978 marcou profundamente a transição democrática e


a produção intelectual brasileira, representando para as ciências sociais – incluindo
história e historiografia – uma ruptura (Paoli, Sader e Telles, 1983; Sader e Paoli, 1986), de
modo a deslocar consensos e erigir novas descobertas. Não à toa, na esteira da descoberta da
política vinha também a sociedade civil:

Descobriu-se, por exemplo, que o operariado brasileiro não é nem nunca foi atrasado e irra-
cional, embora possa ser conservador; que a sociedade civil não é propriamente fraca nem
o Estado brasileiro propriamente seu promotor (...); que o campesinato brasileiro não é uma
sobrevivência, mas uma produção viva deste capitalismo (...); que as formas de resistência ope-
rária não se fazem em sindicatos, mas se aprendem na própria fábrica; que os povos indígenas
não estão destinados a desaparecer (...) – em suma, que os dominados existem, têm voz própria
(...), longe de serem alienados e passivos. (Paoli, 1987: 54)26

O ciclo de 1978 não cabia mais na chave da negatividade supostamente distintiva de


nossa classe operária (Sader e Paoli 1986: 49) – imagem, como vimos, difundida por parte
predominante da sociologia brasileira. A herança weffortiana nessa reviravolta é dúplice. Paoli
e Sader, em Sobre classes populares ou na parceria com Telles em Pensando a classe operária,
argumentavam que as greves e o pós-1978 mostravam sujeitos com impulsão própria, distan-
ciando os trabalhadores da pecha de heteronomia e alienação (1986: 56; 60).
Nesse movimento teórico rumo a novas faces e dimensões da vida operária, a produção
de Weffort – ou seja, aquele segundo, o de Contagem e Osasco – significou um ponto de
inflexão (Paoli, Sader e Telles, 1983: 148) que o distanciava da sociologia das faltas e falhas
de classe. Participação e conflito industrial foi elogiado por questionar a imagem do atraso
atribuída a trabalhadores, sendo capaz de ver sua mobilização espontânea coletiva.
A interlocução com Weffort, contudo, não esteve isenta de críticas, em especial por parte
de Paoli. Contrária à tese de Origens do sindicalismo populista, a socióloga argumenta que
as lutas operárias pré-1964 podem não ter se pautado por ideais revolucionários nem de
conquista do Estado, mas

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

tocaram no ponto essencial da experiência vivida de classe: [elas] tornaram visível e pública
suas condições de trabalho e vida, fizeram circular as experiências reprimidas, ocuparam o
espaço da produção, reatualizaram a reivindicação social negada pelos patrões e prometida
pelo Estado. (1987: 97)

A crítica a Weffort nos permite observar um desvio de monta em relação àquela renitente
estadofobia: “Imbricados na ideologia, no Estado, empurrados para a sombra, paralisados
na concepção vigente, os trabalhadores viveram experiências e formularam interesses no
interior disso tudo” (1986: 98-99). É a influência thompsoniana que ressoa nessa concepção
de experiência e das dimensões fenomenológicas de classe que “não se esgota[m] na ideo-
logia, ou nas lógicas e necessidades da produção e do poder, embora as suponham” (Paoli,
1987: 58). Em diálogo com outros críticos,27 Paoli (1988) chegava à conclusão de que as
leis trabalhistas não concorriam com uma classe imaginada; antes, constituíam uma cultura
de classe assentada no eixo dos direitos e da sua reivindicação. Sujeitos, cultura, sentidos,
direitos, cotidiano, subjetividade, identidade, imaginário – o debate guinava da estrutura à
experiência (Sader, 1988: 37). Pelas mãos de Paoli e inúmeros outros, um leque categorial
entrava em cena com insights capitais não só no debate dos movimentos sociais, mas tam-
bém na história social brasileira.28
Todas essas categorias veiculam a recusa de um raciocínio típico da nossa imaginação
sociológica – a heterogeneidade deixava de ser jugo e obstáculo a uma classe lida por viés
trop estrutural para ser tida como constitutiva da sociedade brasileira e de suas desigualdades
e manifestações de classe nos atores populares. “[Os] movimentos sociais ensinaram que a
dominação não é um pacote pronto que dominados indiferenciados engolem” (Paoli, 1987:
56). Ou seja, na implicação análoga em Sader, os manipulados também manipulam (1988:
110). Heterogêneos e dotados de agência – era assim que Paoli e Sader viam trabalhadores
e movimentos.
À raiz dessa postura interpretativa, suas inspirações se situam em meio a três tendên-
cias cruzadas. Nutrem-se, em primeiro lugar, da interlocução com achados e avanços antro-
pológicos e historiográficos, respectivamente, na USP e no Museu Nacional, bem como na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade Federal Fluminense (UFF).29
Também se nutrem da pluralização e das pugnas então vividas pelo marxismo, cujo exemplo
da descoberta por parte da intelectualidade brasileira da política e da sociedade civil era só um
caso num conjunto mais amplo de críticas (britânicas, em especial) a certa moda estruturalista.
Por fim, e de modo mais importante, tem uma de suas raízes em Chaui e na crítica democrática
de Lefort e Castoriadis de repensar o marxismo e as esquerdas sob o risco de recair no lado
de lá do par socialismo ou barbárie.

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José Szwako e Ramon Araujo

Por um lado, no âmbito do pensamento marxista revisado, a necessidade de reconhecer e


afirmar a heterogeneidade criativa das formas de manifestação do conflito social era corolário
da crítica lefortiana à figura stalinista do uno. Vem daí, do imperativo de um social já heterogê-
neo e de seu caráter constitutivamente cindido, o elogio de Chaui (1979) à cultura popular, ela
própria dividida e ambígua, resistente e conservadora, sem uma essência dada a priori, mas
prenhe de potencial para invenção democrática. Por outro lado, face à transição, a crescente
liberdade política e o retorno de exilados reabriam o leque de alternativas e estratégias pelas
quais as esquerdas, acadêmicas e partidárias, então descobrindo a sociedade civil, iriam se
relacionar com os movimentos sociais. Porém, à diferença de Moisés, que via protestos e mo-
vimentos no registro da falta de organização e da necessidade de direção, a aposta elaborada
por Chaui e Sader, e na esteira deles, consistia na crítica do vanguardismo (Garcia, 1988: 319).
A seus olhos, não faltava nada aos movimentos sociais, que não estavam à espera de
um partido ou líder iluminador. O respeito à reivindicação de autonomia dos movimentos era
lido como condição para, via partido, realizar sua potência democrática – sob risco de, do
contrário, bloqueá-la (Chaui, 1988: 14). Não deixa de ser irônico que esse grupo (Sader, em
especial) tenha levado a fama de autonomista no debate ulterior, mesmo que, no Cedec e no
PT, sua visão sim autonomista fosse bem mais matizada e muito menos espontaneísta do que
visões correntes e concorrentes.
É nesse feixe de dilemas que a obra-prima de Sader se inscreve. Considerando os mo-
vimentos sociais como reconfigurações de classe na cena pública, o autor se afasta daquele
diapasão das contradições urbanas, pois “não se pode deduzir orientações e comportamentos
de condições objetivas dadas” (Sader, 1988: 42). Esse é um avanço analítico de peso que,
por sua vez, requer noções como identidade, experiências e sujeitos coletivos (43-56). Essa
inovação categorial, contudo, não implicou uma alternativa à tese populista. A atribuição da
novidade a certos atores dependeu da adesão àquela versão acachapante de Weffort. “Uma
comparação com padrões existentes no período 1945-64 (...) ajudaria bastante na compreen-
são do problema [da autonomia]”; diz ele, dos trabalhadores organizados, “[que] ganhavam
sentido através do discurso estatal (...) dominante, getulista. Ou, então, (....) através da unifi-
cação operada pelo partido [comunista]” (Sader, 1988: 198).
Longe de ser pontual, há uma linha argumentativa sub-reptícia que faz as vezes de pano
de fundo histórico taken for granted costurando toda a obra. Em fins dos anos 1970, “anun-
ciava-se o aparecimento de um novo tipo de expressão dos trabalhadores, que poderia ser
contrastado [...] com o populista, após 1945” (1988: 36-37). No pré-1964, a esfera pública
não era, para Sader, o lugar de constituição de sujeitos auto-organizados, mas de uma massa

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

indiferenciada. Seria possível pensar a identidade dos trabalhadores como formada pelo getu-
lismo, porém ela expressa sua subordinação a um projeto exterior.
Assim, a adjudicação heterogênea da sociedade civil e de atores dotados de agência
caberia a poucos. Novos personagens produzem sentidos, enquanto velhos ganham sentido
alheio. Alguns, tidos erroneamente como manipulados, são capazes de elaborar suas experiên-
cias e identidades, ao passo que outros seriam de fato manipulados.30
O peso da tese populista na primeira geração do debate sobre movimentos sociais não
pode ser subestimado. ‘No período populista...’ é a forma textual pela qual autores operaram
a clivagem novos/velhos. Naquele passado imaginado, “as relações clientelistas desenvol-
veram-se em sua forma clássica, na política de favores, [e nele] as creches entram como
equipamento de assistência” (Gohn, 1985: 153-154). Os movimentos no campo tampouco
escaparam. “Até 1964, observa-se a história de uma luta pela tutela política do sindicato
camponês ainda incipiente, entre o populismo, o PCB e a Igreja Católica” (Scherer-Warren,
1987: 44). Entre os excluídos da novidade, as Sociedades de Amigos de Bairro foram as que
mais sofreram, resumidas a clientelismo e participação controlada na chave autonomia versus
cooptação (cf. Jacobi, 1983).31 Já os “novos movimentos se caracterizam por suas lutas para
romper com os esquemas populistas do passado” (Scherer-Warren, 1987: 42).
Note-se, porém, que a adesão à tese populista não ficou restrita a teóricos que queriam
ver novidade nos movimentos de então. Mesmo os críticos do chamado autonomismo parti-
lhavam da leitura acachapante daquele padrão socioestatal de interação pré-1964.32 Enrique-
cido por novas categorias e dividido entre autonomistas e institucionalistas, nascia o debate
sobre movimentos sociais enraizado no solo comum do passado populista.
Feitas as contas, a interpretação do pré-1964 de O populismo na política brasileira se
tornava, ao longo dos 1980, hegemônica (Santanna, 1998), na universidade e fora dela. Face
a esse sucesso político-intelectual, aquela invenção de uma sociedade civil (Weffort, 1988
[1983]) pode ser agora entendida. Parecia politicamente necessário inventar uma redenção
civil pela conjuntura autoritária e contra ela, ao mesmo tempo que a compreensão do histórico
de lutas e atores era intelectualmente obliterada por um raciocínio estadofóbico que acacha-
pava nuances do conflito social num antigetulismo quase declarado ou lhes esganava no an-
tipecebismo. Desse ‘passado’, desse vazio suposto e imposto pela análise, nascia a autocom-
preensão de nossa sociedade civil – virtuosa... Se o esforço historiográfico posterior mostrou
adequadamente, a nosso ver, limites e erros dessa tese, ela precisa ser, ainda assim, entendida
na sua história, ou seja, no rol de apostas e disputas das quais fez parte e saiu, goste-se ou
não, vencedora. A força da herança de Weffort mostra mais que uma dupla hermenêutica.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 491-499, maio-agosto 2019 491
José Szwako e Ramon Araujo

Além de ter interpelado a autoimagem do novo sindicalismo e do petismo nascentes, informou


várias apostas gestadas dentro e fora do Cedec, dentro e fora do PT, sobre sentidos, limites e
atores de nossa redemocratização, tendo tornado o passado populista um pilar fundante do
debate das ciências sociais brasileiras quando parte delas passou a ser cognitivamente apta a
ver, com novos conceitos, ‘novos’ personagens.

Duas conclusões

A primeira ordem de consequências extraídas de nossa análise diz respeito às contri-


buições de uma história intelectual centrada na tensão entre ideias e política para a
compreensão de nossas ciências sociais. Ao desatrelar a atividade intelectual de departamen-
tos e programas de pós-graduação, uma sociologia das ideias e dos intelectuais deu acesso
a enraizamentos e efeitos das disputas político-intelectuais frente a atores e grupos civis e
político-partidários. Analiticamente, opera-se a crítica ou o deslocamento de noções como
a de campo acadêmico, que reproduz o equívoco de tomar o desenvolvimento teórico pelo
desenvolvimento institucional (Santos, 2017: 129).
No quadro de uma história intelectual que persegue categorias e lógicas, com suas he-
ranças e inflexões, é central a posição ocupada pela noção de aposta. Defronte a horizontes
políticos, não restritos à transição,33 os cientistas sociais se nutrem de processos, eventos
e atores, para neles ver potências e fazer suas apostas. No caso específico da análise dos
movimentos, contudo, Chaui e Sader não falam em aposta; preferem dizer “promessas”, que
demandam interpretação e não devem ser julgadas (Chaui, 1988: 16). Ora, não foi somente a
ação dos novos personagens que lhes trazia promessas; foram esses intelectuais, assim como
tantos outros, em diversos núcleos civis e partidários, que projetaram suas apostas sobre
aqueles e outros personagens.
A dupla hermenêutica das ciências sociais é, afinal, dupla. As formas de identificação dos
próprios atores se espelhavam, como se espelham, nas categorias dos autores. Eles o sabem.
Contra teorias que sujeitavam trabalhadores, criticaram a sociologia do ‘atraso’ que “colou-se
ao real que nomeou” (Sader e Paoli, 1986: 41).34 Na revista do Cedec, Weffort disse e repetiu
que a questão do populismo era um ajuste não só pretérito dele e do próprio público (o novo
sindicalismo) que lhe inspirava e nele se inspirou. Promessas e apostas, desgostos e expectati-
vas – nada disso é acessível a noções universitarizantes e disciplinarizantes da vida intelectual.
Nestes termos, o contexto da história das ciências sociais não é um campo, e sim laços
entre intelectuais e grupos organizados, na universidade e fora dela, em suas reciprocidades e

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

descontinuidades, que operam como mediações, configurando o solo da vivência e da formu-


lação de dilemas, problemas e apostas político-intelectuais.
A segunda ordem de consequências do caso analisado diz respeito à gênese do debate
de movimentos sociais que pode, por sua vez, inspirar uma agenda de pesquisa. De modo aná-
logo ao sentido assumido alhures (Alonso, 2009), a marca de nascença do debate brasileiro
foi o abandono de uma versão negativa do protesto e da mobilização, passando, notadamente
em Moisés, a uma leitura positiva dos atributos de racionalidade e solidariedade de movimen-
tos e episódios de convulsão social.
Na obra de Paoli e Sader, a emergência de categorias inovadoras e intermediárias espe-
lha e aprofunda o ritmo em que vinha a descoberta da política, dos atores e das conjunturas,
cujo início remontava a pesquisas no Cedec e, pouco antes, no Cebrap. Traço não menos
interessante nessa gênese é a afluência de várias disciplinas e abordagens de maneira a con-
tribuir para o incremento dos conceitos em cena. Da filosofia à história social, entre psicanálise
e antropologia, deslocando e reorientando os marxismos, viam-se empréstimos e inovações
teóricas, mais uma vez, inacessíveis a um olhar centrado em campos autônomos ou relativa-
mente autônomos.
Numa relação dúplice, a crítica aos limites de Weffort quanto ao sindicalismo entre 1945
e 1964 parece ter sido contornada pela hegemonia da tese populista, compartilhada não só
pelos dois lados do debate movimentalista, mas também, no âmbito do debate sindical, por
analistas mais céticos ao novo sindicalismo.35 Seja como for, aquela estadofobia renitente
ganhou destinos diferentes. Na história social do trabalho e dos trabalhadores, parece ter sido
bem mais matizada e criticada do que nas análises dos movimentos sociais, por sua vez, divi-
didas entre autonomismo e institucionalismo. O fato de essa herança bipartida ter tal história,
no entanto, não nos obriga a reescrevê-la nos mesmos termos.
Se, por força da tese weffortiana, a aversão ao Estado marca tal gênese, reservando o
novo apenas a atores e mobilizações enquadrados por aquela cognição, e se parte da pugna
teórica se inspirou nas reivindicações de autonomia em voga, essas não são razões para se-
guir hoje mimetizando categorias nativas a obstaculizar as análises (Lavalle e Szwako, 2015).
Enfim, todo esse conjunto de disputas e cenas que envolveu intelectuais, livros, artigos, pe-
riódicos, associações civis e acadêmicas, partidos e Estado pode informar uma agenda e uma
história renovada das relações entre ciências sociais e redemocratização, com a condição de
se manter disposto a aproximar, e não afastar, intelectuais e política.

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José Szwako e Ramon Araujo

Notas

1 Agradecemos aos pareceres anônimos de Estudos Históricos e, em especial, a A. M. Cardoso, A. Brasil, C.


Lynch e C. Buarque, pela interlocução decisiva, e deixamos claro que somos responsáveis por possíveis equí-
vocos no texto. Agradecemos também pela gentileza e pela paciência de Rosangela Salles e Eunice Castelao
no acesso a documentos.
2 Não partimos de uma abordagem como a da história dos conceitos nem visamos, portanto, fazer uma histó-
ria do conceito de populismo, assim como não almejamos o debate atual sobre populismos e neopopulismos.
Para excelentes contribuições nesses temas, ver Jasmin e Feres Jr. (2006) e Laclau (2013).
3 Contextualismo e textualismo delineiam estilos de pensar a produção intelectual com focos e ênfases dis-
tintos, porém complementares, que afastam duas “abordagens que poderiam ser designadas como sociologia
dos intelectuais e história das ideias” (Jackson e Barbosa, 2017: 237).
4 Parte do trabalho de extirpar conteúdos políticos das lógicas de produção intelectual é analiticamente ope-
rada por noções (autonomizantes) afins à de campo. Veja-se, por exemplo, o peso dado à ideia de mercado
cultural no caso da USP, completamente estadualizada e sem prejuízo da autonomia acadêmica (Miceli, 2001
[1989]:106). Para uma crítica a tal concepção, ver Pecaut (1990: 18).
5 Ver, em especial, Toledo (1977).
6 Pelo prisma autonomizante, F. Fernandes teve como fito erigir o campo da disciplina sociológica (Arruda,
1995: 145).
7 Para uma análise de campos apartados que interagem, ver Perruso (2010: 260-ss).
8 Especialmente nos 1970, cf. Kaysel e Mussi (2017).
9 Cf. “Havia algo de comum [...] entre estes autores [Ianni e Weffort]: o ataque metódico contra as tradições
trabalhistas e seus sócios menores, os comunistas do PCB” (Reis, 2001: 364).
10 A resiliência do autoritarismo e o reconhecimento avançado de que o regime não contradizia a moderni-
zação econômica e social fizeram com que, apenas durante os anos 1970, na esteira de Fernando Henrique
Cardoso e seus colegas cebrapianos, as teses revolucionaristas fossem revistas, matizadas ou descartadas.
Uma pista do teor revolucionário das teses uspianas dos 1960 pode ser vista na ideia de que a conjuntura
econômica ao redor de 1964 “só admite três saídas: a) deflação; b) reformas revolucionárias da estrutura
econômica; c) uma combinação das precedentes. Se a classe operária, liderando as massas, assumir o poder,
efetuar-se-ão mudanças para novas transformações que acabarão por levar o país ao socialismo” (Singer,
1965: 123).
11 “Os capítulos que compõem esta obra foram redigidos durante o segundo semestre de 1963. Os aconte-
cimentos políticos do corrente ano [1964], especialmente os idos de março e abril, inserem-se perfeitamente
no quadro das intepretações aqui desenvolvidas” (Ianni, 1965: s/p).
12 “O populismo, nestas formas espontâneas [no caso, formas ideológicas do janismo], é sempre uma forma
popular de exaltação de uma pessoa que aparece como a imagem desejada para o Estado” (Weffort, 1978:
38) [Grifo no original].
13 Ver Weffort (1978: 57-58).
14 Em nota, refere-se a “análises globais disponíveis sobre o Estado brasileiro [que] são marcadas frequen-

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

temente por uma acentuada intenção normativa (pensamos particularmente nos trabalhos de Hélio Jaguaribe
e de Guerreiro Ramos)” (Weffort, 1978: 66).
15 Para uma ideia de certa continuidade intelectual do Ibesp e do Iseb, ver Schwartzman (s/d).
16 Weffort (1978: 84-85).
17 Lynch (2011: 35).
18 Seria possível, seguindo Botelho (2007), sugerir hipoteticamente como essa estadofobia constitui proble-
ma central de uma sequência da sociologia política brasileira, na qual as interpretações do Weffort da década
de 1960 se alinham cognitivamente tanto à produção de Marilena Chaui nos tempos da transição democrá-
tica quanto à de Francisco de Oliveira no que concerne aos governos Lula.
19 Texto publicado na Revista de Cultura Contemporânea, dividido em três trechos complementares e corres-
pondentes a Weffort (1978b, 1979a e 1979b).
20 Santanna (1998: 24).
21 Siqueira e Fernandes (1976: 51 e 54).
22 Indevido é a conclusão a que leva os críticos da tese populista. Ver Gomes (2001) e Ferreira (2001).
23 Embora a publicação de “Greve de massa e crise política” date apenas de 1978, o conteúdo empírico
central do livro, sobre os eventos de 1953, ganhou a primeira redação em 1971, tendo uma primeira versão
publicada em 1976, na Revista Contraponto, e, sob forma avançada, no terceiro capítulo do livro (Moisés,
1978: 67-94). Já o quinto capítulo (123-152) traz observações e contribuições à outra versão do texto discu-
tida, em 1977, em seminário do Cedec (Moisés, 1978: 123).
24 “A revolta dos suburbanos ou ‘Patrão, o trem atrasou’” (Moisés e Martinez-Alier, 1977).
25 Entre eles, “Acumulação monopolista, Estado e urbanização”, no qual o diagnóstico de F. de Oliveira
dá pistas daquela cognição dicotomizante: “As formas do conflito social são novas. As classes populares,
soldadas pela dialética da reprodução ampliada do capital, já não se dirigem ao Estado; dirigem-se contra o
Estado” (Oliveira, 1977: 75).
26 Não obstante tenha sido apresentado no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional e rapidamente publicado numa série dessa mesma instituição em 1982, “Os trabalhadores urbanos
na fala dos outros” saiu em livro apenas no fim da década de 1980 – não por acaso, organizado por um
antropólogo. Ver Leite (1988).
27 Citando expressamente “Burguesia e trabalho” de A. C. Gomes.
28 Chalhoub e Silva (2009). Como nosso foco neste texto recai sobre o peso da tese populista no debate de
movimentos sociais – e também por motivos de economia textual –, não temos como lidar com a importância
inequivocamente relevante da história social do trabalho para o desenvolvimento de agendas e categorias
analíticas de nossas ciências humanas e para a crítica a Weffort.
29 Quanto à antropologia, referências obrigatórias na interlocução e no dissenso interpretativo eram E.
Durham e R. Cardoso, enquanto José Sérgio Leite Lopes foi interlocutor privilegiado de Paoli. Quanto à histo-
riografia, ver Movimento operário brasileiro 1900/1979, em especial o texto de por H. Hirata que, como Paoli,
questionou as conclusões de Weffort.

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José Szwako e Ramon Araujo

30 Especificamente quanto à noção de manipulação, Ideologia e populismo, de G. Debert (2008 [1979]),


não por acaso inspirado pelos insights da antropologia e da virada linguística, nuançou o chamado discurso
populista ao mostrar que a diferentes noções de povo correspondem diversos políticos populistas. Embora não
trate de movimentos sociais, essa obra é também exemplo da reviravolta conceitual que atravessava nossas
ciências sociais e da posição então destacada da produção weffortiana nelas.

31 A reconstrução da trajetória da produção de P. Jacobi, ao longo da década de 1980, poderia nos mostrar
uma inflexão interna e rica, que passa inicialmente de uma postura autonomista a uma autocrítica de tom
institucional e interacionista.

32 “À diferença da mobilização que caracterizou os anos pré-1964, aquele ano [1978] parecia inaugurar um
interesse generalizado pelos valores democráticos” (Boschi, 1988:13).

33 Na contramão da autoimagem uspiana, veja-se uma análise das relações entre sociólogos, ação política e
laços com a política estadual em Romão (2006).

34 “O conhecimento dos discursos sobre a sociedade e a história assume importância fundamental porque
condiciona o próprio objeto que nomeia, entranhando-se em seu acontecimento” (Sader e Paoli, 1986: 41).

35 Almeida, 1983.

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498 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 498-499 maio-agosto 2019
Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo”
e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

TEIXEIRA, Ana C. Para além do voto: uma narrativa sobre a democracia participativa no Brasil (1975-2010).
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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 499-499, maio-agosto 2019 499
Artigo

Amar um autor: os marxistas nas


universidades brasileiras e os
“intérpretes do Brasil”1
To love an author: Marxists in Brazilian universities and the
“interpreters of Brazil”
Amar a un autor: los marxistas en las universidades brasileñas
y los “intérpretes de Brasil”

Lidiane Soares RodriguesI*

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200009

1
A pesquisa que embasa este artigo foi parcialmente financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A coleta dos dados depen-
deu do envolvimento de numerosos marxistas, sem os quais esta pesquisa não teria sido possível. Às agências e a eles,
nosso principal agradecimento.
I
Universidade de São Paulo, (USP) São Paulo – SP, Brasil.
*
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Adjunta do Dpto. de Ciências Sociais da
UFSCar. (lidianesrgues@gmail.com), ORCID iD: https://orcid.org/ 0000-0003-2011-9888

Artigo recebido em 10 de março de 2019 e aceito para publicação em 26 de junho de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 500-529, maio-agosto 2019 500
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

Resumo
Os marxistas que atuam em universidades brasileiras responderam a um questionário com 59 perguntas. Uma delas
indagava: “Por quais autores/intérpretes do Brasil você tem mais interesse?” Com base nas respostas a essa per-
gunta, elaborou-se um ranking com suas predileções por determinados autores. Este artigo se propõe a identificar
o princípio gerador da dupla escolha dessa lista: a dos marxistas por esses intérpretes e a desses intérpretes pelos
marxistas. Para tanto, realiza uma caracterização sociológica dos respondidos e dos respondentes, assim como da
representação que os segundos compartilham a respeito dos primeiros.

Palavras-chave: Sociologia Histórica das Ciências Sociais; Sociologia dos Intelectuais; História do Marxismo;
Pensamento Social e Político Brasileiro; Universidades.

Abstract

Marxists working in Brazilian universities have answered a questionnaire with 59 questions. One of them asked:
“Which authors/interpreters in Brazil are you most interested in?” Based on the answers to this question, a ranking
was prepared with the predilections for certain authors. This article aims to identify the principle that rises from
the double choice of this ranking: that of Marxists for certains “interpreters” and that of certains “interpreters” for
Marxists. To this end, it carries out a sociological characterization of the respondents and the respondents, as well as
the representation that the latter share about the former.

Keywords: Historical sociology of social sciences; Sociology of intellectuals; History of marxism; Brazilian social
and political thought; Universities.

Resumen
Los marxistas que trabajan en las universidades brasileñas respondieron a un cuestionario con 59 preguntas. Una de
ellas preguntó: “¿En qué autores/intérpretes de Brasil te interesa más?” A partir de las respuestas a esta pregunta,
algunos autores elaboraron una clasificación con sus predilecciones. Este artículo propone identificar el principio que
genera la doble elección de esta lista: la de los marxistas por estos intérpretes y los intérpretes por los marxistas. Para
ello, realiza una caracterización sociológica de los citados y los encuestados, así como la representación que estos
últimos comparten sobre los primeros.Palabras clave: Sociología histórica de las ciencias sociales; Sociología de los
intelectuales; Historia del marxismo; Pensamiento político y social brasileño; Universidades.

Palabras clave: Teoría social; Sociologías indígenas; Teorías y sociologías del sur; Sociología africana; Yoruba.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 501-529, maio-agosto 2019 501
Lidiane Soares Rodrigues

“Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos


conhecer por ouvir dizer, quando lidos de fato, mais
se revelam novos, inesperados, inéditos.”
Italo Calvino

Os marxistas nas universidades brasileiras e os


“intérpretes do Brasil”2

N a identificação de indivíduos com autores se encontra um dos princípios elementares


da organização de disciplinas como filosofia e estudos literários. Como se caracteri-
zam por práticas textuais eruditas – leitura vertical, explicação e comentário, estabelecimento
de texto original, traduções etc. –, dirigidas a autores em torno dos quais seus praticantes
vão se agregando, elas ensejam um espaço formado por kantianos, hegelianos, machadianos
e outros. Em algumas configurações interdisciplinares, observa-se fenômeno idêntico – por
exemplo, entre os pesquisadores da área de pensamento social e político brasileiro (Botelho e
Schwarcz, 2011) e entre marxistas (Boito e Motta, 2012). No caso dos últimos, a centralidade
da categoria “autor” é reforçada pelo fato de serem unificados por um (Karl Marx) e de se
diferenciarem por meio de diversos, como Gramsci, Lukács, Althusser, entre outros (Rodrigues,
2011, 2016 b e 2019).
Embora a categoria “autor” já tenha sido discutida, tendo suas funções colocadas em
suspenso, sendo questionada em sua ilusória estabilidade e recebendo o decreto de faleci-
mento (Barthes, 2004; Foucault, 2001a, 2001b e 2008; Chartier, 2014b; Bourdieu, 2006),
sua eficácia é tangível na vida social das ideias (Sapiro e Santoro, 2017).3 Assim, torna-se
instigante investigar a produção social da predileção por autores subjacente à lógica de orga-
nização das configurações disciplinares e interdisciplinares que encontram neles seu princípio
de unificação e segmentação. Eis o propósito do presente artigo.4
Alguns marxistas que atuam em universidades brasileiras responderam a um questioná-
rio com 59 perguntas, sendo uma delas “por quais autores/intérpretes do Brasil você tem mais
interesse?”.5 Eis os nove nomes mais bem colocados:

502 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 502-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

Autores/Intérpretes %
1. Florestan Fernandes (f1) 22,9%
2. Caio Prado Júnior (f1) 20,9%
3. Ruy Mauro Marini (f2) 3,5%
4. Carlos Nelson Coutinho 3,3%
5. Celso Furtado 3,2%
5. Ricardo Antunes 3,2%
6. Antonio Candido 2,7%
7. Sérgio Buarque de Holanda 2,5%
8. Jacob Gorender 2,2%
9. Francisco de Oliveira 2,1%
9. José Paulo Netto 2,1%

Este artigo se propõe a identificar o princípio gerador da dupla escolha desse ranking: a
dos marxistas pelos “intérpretes” e a desses “intérpretes” pelos marxistas. Para tanto, realiza
uma caracterização sociológica dos respondidos e dos respondentes, assim como da represen-
tação que os segundos compartilham a respeito dos primeiros.
Importa uma consideração prévia, de ordem teórica. Optou-se por adotar o enquadra-
mento analítico da sociologia da cultura de Pierre Bourdieu e, simultaneamente, tomar dis-
tância do emprego de seu conceito de “campo”, aliando-se ao refinamento hodierno de sua
teoria, proposto por expoentes de sua herança intelectual. Essa atitude cautelosa considera as
peculiaridades do mercado de bens simbólicos, indissociável dos sistemas de ensino nacionais
em países de desenvolvimento capitalista periférico e tardio, com frágil poder geopolítico e
econômico no espaço transnacional do intercâmbio econômico e cultural (Novais e Cardoso,
2009; Miceli, 2005 [1972], p. 125-156).
Foram inseridas, nas operações analíticas em ato, as reflexões subjacentes a essa conduta
mais refletida e crítica ao uso indiscriminado da palavra “campo”, que tem colaborado para a
perda do poder explicativo desse conceito. Para tanto, adotou-se a sugestão de Gisèle Sapiro,
segundo a qual, do conceito de campo, vale reter a ideia de “espaço de relações estruturado/
estruturante”, orientando os agentes em sua luta uns contra os outros, uns com os outros,
uns pelos outros – em detrimento de uma propriedade definidora deles: a autonomia (2013).
É essa propriedade que a prática cultural de países periféricos coloca permanentemente
em questão, e sua operacionalização não pareceu profícua aos achados empíricos da enque-
te que embasa este artigo. Assim, supor que exista um “campo (autônomo) do marxismo”
seria despropositado, por tudo que se exporá abaixo. Em contrapartida, a competição por

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 503-529, maio-agosto 2019 503
Lidiane Soares Rodrigues

trunfos investidos de valor próprio e sentido, no meio dos marxistas, dotados da capacidade
de segmentar e hierarquizar, legitimamente, os próprios agentes do processo de segmentação
e hierarquização, só pôde ser realçado pelo emprego das noções do polo restrito e ampliado
do “mercado dos bens simbólicos” (Bourdieu, 2003) e da dominação simbólica com base na
“crítica da razão escolástica” (Bourdieu, 2001).
Essas noções pontilham a obra de Bourdieu desde sua juventude, porém o presente tra-
balho mobiliza suas análises de maturidade, período em que sua atenção se dirige não apenas
para os mecanismos determinantes do polo “dominante” da dominação simbólica (Bourdieu
e Passeron, 1975), mas também para o papel ativo exercido pelos agentes dominados no
trabalho de sua própria dominação (Bourdieu, 2002; 2015, p. 569-588). Essa perspectiva é
basilar para a análise a seguir.
Por fim, a crítica à razão escolástica precisa ser sublinhada, já que também toma posi-
ção em relação ao estado das discussões. Este trabalho tenciona propor uma alternativa à
oposição entre análises internalistas e externalistas que disputam o enquadramento da vida
intelectual (Rodrigues, 2017a; Jackson e Praxedes, 2017). Para tanto, partiu-se da evidência
de que a vida das ideias comporta dimensões não racionais e afetivas, de modo a eleger tal
dimensão como objeto e empenhar-se em compreendê-la. Retoma-se esse ponto nas consi-
derações finais.

Preliminares

A uscultar as motivações das respostas acima pressupõe delimitar o que a pergunta


coletou. É um ledo engano supor que ela mensure os autores mais lidos. O que ela
apreende, ao contrário, é a crença no dever de lê-los – sentimento de obrigação que antecede
a leitura, podendo ou não conduzir a ela. Por isso, a presente análise trata de uma dimensão
não intelectual da vida intelectual. A despeito dos graus distintos de conhecimento, tanto os
eleitores mais informados quanto os menos compartilham sentidos atribuídos aos autores,
posto que estejam imersos no espaço autorreferenciado do marxismo.6
Os dois primeiros lugares se distinguem dos demais (f2) pela capacidade de integra-
ção no espaço, evidente na concentração das respostas (43,8%), na distância porcentual
entre o 2º e o 3º lugares e na dispersão que os sucede.7 Para este exame, consideramos
os 277 indivíduos que elegeram os autores no topo do ranking – isto é, 43,8% dos 632
respondentes selecionados, entre áreas de formação nas quais o termo “intérprete” as-
sume sentido estável.8

504 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 504-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

Os respondidos: sociodiceia personificada

A apreciação do ranking constatou que os autores induziram a leitura uns dos outros. Os
localizados da terceira à nona posições trabalharam pelo acréscimo de valor simbólico
dos autores mais citados que do eles por meio de intervenções destinadas a isso (Netto, 1987;
Coutinho, 2000; Antunes, 1998; Saviani, 1994; Oliveira, 2003; Konder, 1989; Candido, 1996;
Gorender, 1987). Do mesmo modo que eles induziram leituras de Florestan Fernandes e Caio
Prado Jr., o primeiro o fez em relação ao segundo (Fernandes, 1988, 1989, 1991ª e 1991b).9
Importam as circunstâncias de produção desses textos, que condicionaram a fatura e a recep-
ção de seus conteúdos.10
Os artigos de Florestan Fernandes sobre Caio Prado Jr. e os dos autores da f2 que tratam
de ambos foram produzidos a propósito de homenagens – aniversário de nascimento, faleci-
mento ou cerimônia de consagração em vida. Os autores são liberados, pela natureza desses
eventos, de certas convenções às quais os acadêmicos são submetidos regularmente. Neles,
permite-se – e mesmo se requer – o afrouxamento do compromisso com referências biblio-
gráficas e factuais precisas, daí a “citação de memória”, tanto da obra quanto das lembranças
do autor incensado.11 A autoridade simbólica de que os autores são investidos ao comentar
uns aos outros torna impensadas e impensáveis as operações de seleção; enquadramento e
articulação de sentido; classificação, apreciação e hierarquização daqueles(as) fragmentos
biográficos/citações avulsas.12
Do mesmo modo que os paratextos secundários enquadram textos principais, tornan-
do-os inteligíveis segundo os padrões do meio a que se destinam, os escorços biográficos
– presentes em depoimentos, entrevistas, obituários, conferências – enquadram trajetórias.
Os textos menores sobre os autores induzem leituras dos textos maiores dos autores, por
meio da inculcação da crença no valor deles, do dever de lê-los, de categorias classifica-
tórias (prévias) e, sobretudo, de um protocolo de indagações obrigatórias.13 As práticas de
incensamento são dotadas de uma capacidade extraordinária de capilarizar certa represen-
tação dos autores e de suas obras. É precisamente o que se observa nos textos menores de
Florestan Fernandes sobre Caio Prado Jr.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 505-529, maio-agosto 2019 505
Lidiane Soares Rodrigues

Caio Prado Jr., segundo Florestan Fernandes


1) Ascese: “pensava que iria encontrar (na casa de Caio Prado Jr.) um ambiente luxuoso,
requintado, de ostentação. Nada disso! [...] uma vida simples, moderada, espartana ornava o
caráter [...] não recorria [...] ao prestígio de classe, pois já tinha renegado a classe. [...] O dever
estava acima dos prazeres mundanos e do êxito passageiro. Ser forte e não ceder mesmo nas
pequenas coisas não era uma virtude – era uma obrigação mínima!” (1989: 39)
2) Fidelidade e traição de classe: “Acho que a coisa mais difícil que fiz foi permanecer
fiel à minha origem de classe” (1991b).
“Há pouca contradição no fato de eu ter ficado marxista. Minha história de vida en-
caminhava-me naturalmente nessa direção. Não obstante, porque me tornei assistente e
mais tarde catedrático da Faculdade de Filosofia, fui visto como um ressentido. [...] Já com
Caio houve uma quebra de lealdade, uma ruptura com a classe a que ele pertencia. [...]
Ele poderia ter sido ministro do Estado, chefe de Estado, (mas) jogou tudo isso fora, [...]
converteu-se em um traidor da classe. Só para comparativos: se não ficasse marxista, eu
teria me acomodado às compensações da ascensão social, castrando-me como pessoa. [...]
Caio não. Ele partiu do tope, fez o movimento inverso e no momento em que não havia crise
moral no seio da classe dominante. Ao contrário, a classe dominante estava solidamente
implantada no poder. [...] revolucionário convicto, que adere com armas [...] aos inimigos
da grande burguesia (1989, p. 34).
“Nunca lhe perguntei nada sobre sua ruptura total com sua classe” (1991a).
3) Como alguém se torna comunista e marxista? “Por um idealismo revolucioná-
rio, ele se tornou um ativista altamente qualificado da antielite [...]. Recebeu portanto, uma
incompreensão rancorosa e uma exclusão ritual da alta sociedade, contra a qual se ergueu
como um apóstata. Outros repetiram seu feito. No entanto, nem tal deserção nem tal ousadia
continham o mesmo significado” (1989, p. 33). “Se a proposição do enigma está correta, a
resposta procede de uma ruptura moral interior. (...) quem poderia ser, dentro de nosso cos-
mos cultural, mais marxista? (1991a). “Ele teve de vencer resistências psicológicas, barreiras
sociais e conflitos humanos que lhe devem ter sido muito dramáticos. [...] foi além e espatifou
todas as concepções, os valores e suas próprias raízes, em uma transgressão [...] inquietações
devem ter sido tormentosas (...) a transformação é, ao mesmo tempo, tão penetrante quão
definitiva” (1989: 33)
4) O que é/deve ser, intelectualmente, um marxista? “A sua coragem [...] para
admirá-lo ainda mais dentro e acima de sua produção como historiador, geógrafo, economista,
cultor da lógica e da teoria da ciência, homem de ação e político representativo” (1991 a).

506 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 506-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

“Estabelecia uma síntese, que na esfera acadêmica seria entendida como uma fusão entre
história, economia, geografia e sociologia. [...] tinha em mente que [...] uma relação recíproca
entre teoria e prática, conhecimento e transformação da realidade” (1988: 6)
5) Ser/dever ser de um marxista, os sacrifícios sem recompensas: “Imaginem
o que aconteceu com Caio. A intrepidez [...] suportou equilibrada e serenamente as duas
espécies de sanção (da classe com que rompeu, do Partido que não o reconheceu). [...] A sua
coragem e o seu orgulho o preparavam para repelir as afrontas dos esbirros e a repressão
policial. Fazia o seu aprendizado de intelectual revolucionário e descobria como eram tratados
os de baixo e os que se viam banidos da legalidade por pertencerem ao PCB. Venceu, e as
provas da vitória estão em sua carreira de militante, em sua fidelidade ao PCB e à causa de
sua renovação. Essas provas valem tanto ou mais que seus méritos de historiador e suas cre-
denciais de porte excepcional” (1989, p. 35). “O PCB [...] Representava uma promessa digna
de fé, endossada por gente responsável, egressa do tope da pirâmide e do núcleo do sistema
de poder. A revolta de Caio carregava consigo pois, uma carga explosiva e o expunha a todos
os ódios, a todos os estigmas, a todas as perseguições ou difamações”. (1989: 34-35)
6) O que é/deve ser, institucionalmente, um marxista? Acadêmico destituído
de academia: “[...] a ditadura constrangeu a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras a per-
der a presença direta e ativa de uma mente fecunda” (1999, p. 11). “Por nós, ele teria ficado
como professor [...] Sérgio (Buarque de Holanda) se aposentara contra a nossa vontade (e)
só Caio poderia sucedê-lo e substituí-lo, à altura dos padrões mais exigentes da investigação
histórica (1989, p. 28-29). “[...] Ele reaparece com todo o brilho, como expressão legítima
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras [...] e da qual tornou-se um mestre sem ter sido
um professor de carreira” (1999, p. 11). “Caio representava o seu espírito e sustinha os seus
avanços” (1989: 32).
7) No PCB – livre no espírito, obediente na prática: “(em Evolução política do
Brasil, 1933) dá suas respostas aos membros da classe social dominante e ao PCB [...] para
afirmar-se em toda a plenitude como um intelectual revolucionário livre, pronto avançar na
conquista da revolução social e na emancipação dos excluídos, porém dotado de uma facul-
dade própria de submeter-se à disciplina e às orientações partidárias” (1991). “Caio, dentro
de seu estilo objetivo, procedeu a uma análise de situações históricas distintas em termos
comparativos e dela ousou tirar conclusões divergentes das que eram defendidas e impostas
pelo PCB. [...] essa qualidade de enfrentar até o fim, até o fundo uma pergunta intelectual
que exige extrema coragem e pode custar sacrifícios imprevisíveis, Caio possui em uma escala
admirável e rara entre os intelectuais brasileiros” (1989: 38).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 507-529, maio-agosto 2019 507
Lidiane Soares Rodrigues

Na representação acima, ressaltam-se as explicações da ação – em particular da adesão


ao comunismo e ao marxismo (3) – motivada por ousadia, coragem, em escala admirável e
rara – opondo-se implicitamente à covardia –, firmeza, intrepidez – opondo-se implicitamente
ao titubeio, à frouxidão de convicções. O ponto de partida social avaliado pelo ponto de che-
gada político (2) sustenta a apreciação da fidelidade de Florestan Fernandes e da traição de
Caio Prado Jr. às respectivas classes de origem e a depreciação da ascensão social (castração).
Há um trabalho de recompensa simbólica de escolhas antecipadamente representadas
como pouco compensatórias (5), por meio da exaltação dos atributos necessários para supor-
tar os sofrimentos da anomia anunciada: nem apoio em sua classe, nem inserção profissional,
nem reconhecimento partidário (1, 3 e 6). Há um reforço de crenças compartilhadas, sobretu-
do no sentido da entrega desinteressada ao trabalho intelectual que desconhece fronteiras e
visa ultrapassar limites (4 e 6).
Por meio desse investimento na vida do espírito, há a conversão da derrota em vitória
(5), valorizada em sua dimensão sacrificial (7). Os elementos de uma sociodiceia coletiva se
encontram cristalizados na representação dos autores no topo do ranking, conduzida por Flo-
restan Fernandes, que conjuga a de Caio Prado Jr. à dele próprio.14 A resultante é um modelo
gerador de condutas exemplares para um marxista.15 Tenha origens elevadas ou rebaixadas
na estratificação social, ele é desencorajado das disputas temporais por prestígio e poder, seja
no universo acadêmico, seja no espaço partidário, sendo compensado prévia e simbolicamente
pelos esforços que orientará para o âmbito propriamente intelectual e científico, desvencilha-
do de limites (e pertencimentos) disciplinares.16
Há três dimensões da sociabilidade nas representações compensatórias: o pertencimento
acadêmico e a expectativa de reconhecimento, com certeza de frustração; o pertencimento
partidário, sem plena identificação; e as origens socioeconômicas.17
Os biógrafos/especialistas/marxistas em Florestan Fernandes são impelidos a tomar posi-
ção sobre as classificações conflitantes – o acadêmico e o político –, indagando-se a respeito
da passagem de um ao outro, e dificilmente percebem os modos distintos de articulação des-
ses polos ao longo da trajetória dele. Já os biógrafos/especialistas/marxistas em Caio Prado Jr.
se veem impelidos a indagar como foi possível ser ele tão obediente no partido e tão criativo
na vida intelectual,18 e dificilmente percebem quanto sua obediência e criatividade são deve-
doras de sua classe e da cultura comunista dos anos 1930-1960.
Esses sutis deslocamentos de perspectiva realçam as conexões de sentido construídas
pelos fragmentos. Elas caracterizam uma metamorfose simbólica digna de nota, porém só evi-
denciada por uma reconstituição alternativa, orientada por outras indagações, como veremos
na última seção.

508 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 508-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

A seguir, apresentamos as bases materiais que dão suporte à crença na representação


acima, isto é, a morfologia dos respondentes. Trata-se de caracterizar a relação entre as pro-
priedades relevantes dos autores e as propriedades eficazes do espaço social dos marxistas,
com o objetivo de compreender o princípio gerador das respostas.

Os respondentes: anatomia de uma predileção autoral

P osto que as dimensões mais problemáticas da experiência dos marxistas em questão


consistam no pertencimento acadêmico, no pertencimento partidário e em suas origens
socioeconômicas, elas serão caracterizadas de maneira objetiva.
No que tange ao pertencimento acadêmico, todos os respondentes pertencem ao siste-
ma universitário, pois sua participação na pesquisa se condicionava ao atendimento de três
critérios: identificar-se como marxista, trabalhar como professor e/ou estudar em universidade
pública ou privada e, se estudante, estar em nível de pós-graduação – mestrado, doutorado
ou pós-doutorado.19 A bibliografia pertinente, entrelaçada a indícios colhidos em terreno, e
algumas respostas do questionário permitem situá-los, aproximada e tendencialmente, em
posições dominadas, do ponto de vista dos poderes temporais.
Os marxistas exercem efeitos no espaço. Eles são dotados de visibilidade promovida por
pertencimentos múltiplos que alargam sua superfície de circulação – práticas disciplinares ou po-
líticas, não necessariamente partidárias, como convocação à assinatura de manifestos e presença
em manifestações, aparições nas mídias, em eventos editoriais etc. Essa atuação é mais tangível
pelas reações que suscita entre os concorrentes.20 As respostas a duas perguntas são expressivas:

Você percebe alguma discriminação na universidade/faculdade/


%
departamentoemquetrabalhaouestudaemrelaçãoaomarxismo?
Sim 82,0
Não 18,0
Total 100,0

Você enfrentou dificuldades por se identificar


%
ou ser identificado como marxista?
Sim 78,1
Não 21,9
Total 100,0

Densos e dotados da capacidade de instar reações – o que é digno de nota num meio
intelectual como o brasileiro, no qual o silenciamento consiste na estratégia de disputa por

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 509-529, maio-agosto 2019 509
Lidiane Soares Rodrigues

excelência contra os adversários que se pretendem eliminar –, os marxistas constituem um


polo dominado, intelectual e institucionalmente, no conjunto das ciências sociais e das hu-
manidades. Isso se evidencia tanto por sua ausência nos espaços de poder monopolizados
pelas elites da política científica quanto pelo perfil acadêmico, sociológico e político delas,
tendencialmente inverso ao deles.
A caracterização dos grupos geracionais situados nos organismos estatais e privados, de
avaliação, fomento e financiamento do ensino e da pesquisa, é constituída de ex-militantes
de extrema esquerda, alguns oriundos do comunismo, convertidos, em função de diversos
condicionantes, ao campo científico e às convicções políticas liberais, opostas às dos marxistas
(Rodrigues, 2017a; Rodrigues e Hey, 2017b; Keinert, 2011; Canêdo, 2009; Miceli, 1995). Por
conseguinte, no que tange ao universo acadêmico, eles se encontram submetidos a regras
que não formulam e não dispõem de capitais que os permitam disputar a formulação delas.
Os efeitos práticos disso são tangíveis em algumas respostas – eles consideram importante o
exercício de poder temporal, contudo raramente o alcançam.

Você considera importante assumir cargos? %


Não 9,9
Sim, é fudamental 62,5
Sem resposta 27,5
Total 100,0

Quais cargos você já assumiu? %


Pró-reitor ou cargos em pró-reitorias 1,8
Diretor de faculdade ou instituto 1,8
Chefe ou vice de departamento 1,3
Coordenador ou vice de pós-graduação 3,3
Coordenador ou vice de graduação 0
Comissões para seleção para ingresso na pós-graduação 10
Comissões de periódicos da faculdade ou departamento 10,7
Comissões para distribuição e bolsas de pós-graduação e/ou iniciação científica 11,9
Bancas de seleção de concurso docente 25,6
Outros/Nenhum 33,6
Total 100,0

A decalagem entre o reconhecimento da importância do exercício do poder temporal e


a capacidade de exercê-lo é notável. Enquanto 62,5% responderam sim à primeira pergunta
acima, apenas 8,2% já ocuparam postos de poder mais elevados em suas instituições – pró-
-reitorias, diretorias, chefias e coordenação de programas de pós-graduação.21

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Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

Torna-se compreensível a eleição de figuras que, segundo Florestan Fernandes, pa-


deceram de destituições análogas. Os dois autores se sacrificaram para a elaboração de
uma obra de imenso valor espiritual, “importante, pioneira e clássica nas ciências sociais
na América Latina” (Fernandes, 1989, p. 32); “depurado, como marxista e historiador, (...)
propõe-se uma ambição ciclópica” (1991a) – não foram/não são compensados com postos
seguros (“tornou-se mestre sem ter sido professor de carreira” (1999, p. 11); “o sonho
abortou” (1989, p. 29); e, tampouco dotados de poder temporal, recursos sem os quais os
méritos intelectuais jamais são convertidos em reconhecimento simbólico (Bourdieu, 1984,
p. 138-ss). Situados no topo deste ranking, são incensados por um segmento do campo aca-
dêmico em posições dominadas, analogamente destituídas de glória e repleta de sacrifícios.
Eis um dos eixos da eleição.
No que tange à esfera político-partidária, os marxistas se comportam de modo análogo
ao caracterizado em relação à acadêmica. São ativos e efetivos, o que é igualmente tangível
pela capacidade de suas intervenções suscitarem reações diversas e, sobretudo, midiáticas
(Rodrigues, 2018b), bem como reconhecem a relevância institucional partidária. No entanto,
tendem a se situar fora do exercício efetivo da política ou a se localizar em posições domina-
das à esquerda da esquerda, para empregar uma categoria nativa. Quanto ao pertencimento
partidário, o questionário constatou as seguintes predileções e filiações.

Os marxistas e os partidos políticos


Base: 277 respondentes eleitores do topo (dentre
Base: 988 respondentes
os 632, pertencentes às disciplinas selecionadas)
Preferência % Filiação % Preferência % Filiação %
Nenhum 27,8 Nenhum  68,6 Nenhum 30,2 Nenhum 72,1
PSOL 18,8 PCB 7,2 PSOL 20,9 PT 6,8
PT 17,0 PT 6,9 PT 15,2 PSOL 6,4
PCB 16,2 PSOL 5,8 PCB 13,7 PCB 4,5
PSTU 11,6 PSTU 5,4 PSTU 8,2 PC do B 3,5
Consulta
2,5 PC do B 2,2 PC do B 4,7 PSTU 3,3
Popular
Consulta Consulta Consulta
PC do B 2,2 1,4 1,5 1,1
Popular Popular Popular

Observação: as organizações partidárias com menos de um indivíduo foram eliminadas da tabela. Por economia
expositiva, indicamos a similaridade da distribuição proporcional, entre a base dos 277 indivíduos em foco e os
988 respondentes, mas suprimimos a das demais, que apenas repetiriam a constatação de que as tendências gerais
colhidas pela pesquisa se encontram reproduzidas. Efetivamente, há princípios de coesão que unificam o espaço, e
o topo desse ranking pôde documentá-lo de modo compacto.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 511-529, maio-agosto 2019 511
Lidiane Soares Rodrigues

Dos 277 respondentes 27,8% afirmaram não ter preferência por partidos. Os que
afirmam ter alguma preferência se concentram, de modo equilibrado, entre PSOL, PT, PCB e,
em menor proporção, PSTU. Já no que diz respeito à filiação partidária, a proporção quase
se inverte. Enquanto 68,6% afirmam não ser filiados a partido algum, 27,5% se concentram
entre PCB, PT, PSOL, PSTU e PC do B – havendo ainda uma distribuição muito dispersiva do
restante. Como a tabela indica, a proporção invertida, em termos de filiação/preferência, do
conjunto dos 988 indivíduos, é reproduzida entre os 277. Tudo se passa como se a propor-
ção de indivíduos filiados a partidos correspondesse ao dobro de indivíduos cuja predileção
partidária não passa à prática política partidária efetiva.
A morfologia torna compreensível a eleição de figuras que, segundo Florestan Fer-
nandes, tiveram uma atividade partidária sem grandes recompensas e ao custo de grandes
sacrifícios, como ruptura total com sua classe, ódio, estigma, perseguição, difamação. A
relação problemática dos respondentes com os partidos aos quais poderiam se filiar e aos
quais se esperaria que devotassem alguma predileção é refratada na relação problemática
dos autores respondidos com o sistema partidário. A visibilidade política dos marxistas con-
trasta com seu exíguo engajamento partidário, um achado contraintuitivo desta pesquisa.
As posições e as tomadas de posição dos marxistas, nos sistemas partidário e univer-
sitário, tornam inteligível a escolha dos dois autores no topo do ranking, caracterizados nos
termos de Florestan Fernandes. A posição duplamente dominada predispõe à identificação
com “heróis vencidos” em sentido duplo: acadêmico e partidário. Vencidos porque não
obtiveram glórias equivalentes a seus méritos e heroicos porque incensados por pares em
posições homólogas. Observa-se a natureza recíproca dessa eleição.
No que concerne à terceira dimensão problemática, a fim de caracterizar de modo
enxuto o perfil socioeconômico dos respondentes e as assimetrias em operação nesse meio,
enfatizando o capital cultural de origem, tomou-se a escolaridade materna dos respon-
dentes como indicador expressivo. Em seguida, eles foram segmentados segundo posse/
destituição do diploma de pós-graduação, na linhagem materna; e posse/destituição de um
diploma de graduação universitária,22 chegando-se a uma divisão em três frações, distribuí-
das da seguinte maneira:

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Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

Trata-se de uma estrutura piramidal. No topo, apenas 8,7% dos indivíduos apresentam
um percurso escolar idêntico ao da mãe. No meio, encontra-se uma camada de 26,4% que ul-
trapassou a etapa mais longeva de escolaridade materna. Na base, uma imensa maioria, 65%,
representa a primeira geração de universitários de sua família materna. No espaço constituído
pelos respondentes, essa parcela é 7,47 vezes mais densa do que o topo e 2,46 vezes mais
densa do que a camada média.
Os polos extremos dessa estratificação, em detrimento das camadas e dos valores mé-
dios, comandam a dinâmica das trocas simbólicas, como se à heterogeneidade das origens
culturais observada nas trajetórias dos dois autores favoritos dos marxistas correspondesse a
das frações mais determinantes do ethos do espaço – que, juntas, conformam 73,7%. Nas
representações simbólicas mais recorrentes do grupo, os extremos – ousadia, firmeza, intre-
pidez, coragem – correspondem a um princípio de apreciação atitudinal e de depreciação da
satisfação, típica das camadas médias, com a ascensão social (castração).
A possessão/despossessão observada acima é tributária parcial da morfologia mais am-
pla das universidades brasileiras e do sistema de pós-graduação vigente no país.23 Interessa
a esta análise, contudo, que as assimetrias engendrem operações específicas de eufemização
simbólica de um atrito potencial entre mais e menos investidos/destituídos de capital cultural
– por exemplo, a depreciação da acomodação à ascensão socioeconômica, acima destacada,
como fiadora da integridade de princípios morais e ideológicos.
A ascensão socioeconômica se formou numa base sobre a qual se ergueram os argumen-
tos de justificativa para a expansão recente do ensino superior no plano dos investimentos
públicos e dos estímulos para os indivíduos se dedicarem aos estudos (Costa, 2012). Há uma
particularidade nesse meio, espécie de “cultura do contra”, avessa a valores médios, condutas
medianas, classes médias e conjunto de conotações que ela implica, sendo mais digno, seja a

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 513-529, maio-agosto 2019 513
Lidiane Soares Rodrigues

decadência do topo, seja a fidelidade às bases da pirâmide – exercida por indivíduos originá-
rios de uma ou de outra (Candido, 1978).
A seguir, tenciona-se evidenciar, por meio de uma reconstituição alternativa, orientada
por outras indagações, a metamorfose da determinação em liberdade, operada na represen-
tação que Florestan Fernandes faz de Caio Prado Jr. Assim, certa modalidade de interesse
desinteressado ficará patente.

O feiticeiro e sua magia: a alquimia das trocas


simbólicas entre marxistas

A fim de provocar algum estranhamento nas leituras marxistas desses autores, propo-
mos um excurso biográfico comparativo das trajetórias de Florestan Fernandes e de
Caio Prado Jr.,24 adotando como eixos: o espaço social da cidade de São Paulo, entre o nas-
cimento do mais velho e o falecimento de ambos (1907-1995); seus trunfos e handicaps; o
leque limitado de escolhas face ao fechamento das oportunidades político-partidárias para as
elites dirigentes em descenso – inércia da trajetória familiar herdada por Caio Prado Jr. –; o
leque limitado de escolhas abertas face à abertura do dinamismo acanhado da modernização
para as camadas remediadas – percurso de ascensão econômica, sem plena integração social,
de Florestan Fernandes.
Em perspectiva objetivante, daí resultam duas carreiras simetricamente invertidas no que
tange a seus pontos de partida e à orientação possível da ação, determinadas pelas condições
em que foram obrigados a escolher/renunciar.
No período da vida intelectual produtiva dos dois, São Paulo era o epicentro da mo-
dernização econômica do país, e a produção cultural e científica da cidade foi impactada
pela mobilidade social e pela imigração ligadas a esse processo histórico (Arruda, 2001;
Pontes, 1998).
O autor que ocupa o primeiro lugar, Florestan Fernandes, tem origens modestas: é filho
de uma imigrante portuguesa, empregada doméstica, e nem sequer conheceu seu pai. Seu
percurso ascensional foi inteiramente dependente da oportunidade aberta pela criação da
Universidade de São Paulo (USP), em 1934. O trabalho de construção institucional de uma
nova ciência, a sociologia, significou para ele a superação de sua penúria, conferindo-lhe
identidade e grupo de referência (Arruda, 1995; Pontes, 1998; Gemignani, 2002). Por isso,
abriu mão das ambições de participação política que tanto marcam os intelectuais brasileiros
– paulistas, em particular (Limongi, 1987).

514 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 514-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

Ao se formar em ciências sociais, a dúvida a respeito do destino mais seguro o levou a


transitar aqui e acolá, entre a entrega de produtos farmacêuticos e os trotskistas, tentando
chamar a atenção do grupo Clima, que não lhe notou, até ter alguma segurança de que
a Faculdade de Filosofia, Ciências Sociais e Letras (FFCL) da USP o abrigaria e o remune-
raria. Seu engajamento efetivo na política – o trotskismo nos anos 1940 e o PT nos anos
1980 – ocorreu na fase de indeterminação no início do percurso e na de afrouxamento dos
compromissos no final dele.
Seus temas e o modo de elaboração de suas ideias foram determinados pela competição
com os pares em regime acadêmico, cujos exemplos cabais são uma leitura de Marx subordi-
nada ao dever de construção institucional da sociologia (Rodrigues, 2016a); os estudos sobre
A integração do negro na sociedade de classes (Fernandes, 2008 [1964]; 1976), concebidos
contra a tese da democracia racial (Maio, 1999); e o “arremate de uma reflexão” (Arruda,
1996), isto, é A revolução burguesa no Brasil, escrito em resposta às teses gestadas por seu
próprio núcleo na FFCL-USP (Rodrigues, 2011: 200-205; Martins, 2006: 157).
A colaboração com os interlocutores políticos decorre desse percurso e dessas teses,
porém não os orienta. A evidência de que fosse chamado de “professor”, quando eleito de-
putado constituinte pelo PT, é singela e expressiva a esse respeito (Rodrigues, 2010, 2017 a).
Sistematicamente, o inverso é observado no caso de Caio Prado Jr., que viveu livre das
constrições econômicas que limitaram as escolhas do primeiro colocado, dispondo de capital
social, material e cultural indisponíveis a Florestan Fernandes. Na qualidade de filho de uma
família abastada e decadente de fazendeiros do café, seus investimentos no campo cultural
– sobretudo no ramo editorial, em expansão – foram uma resposta ao risco de descenso eco-
nômico que atingiu esse estrato privilegiado das elites dirigentes paulistas.
Ele recebeu uma educação condizente com a dos homens de seu grupo e se preparou
desde cedo para o exercício da vida política partidária: estudou com professores particulares;
adolescente, viveu um ano na Inglaterra; formou-se em direito pela tradicional Escola do Largo
São Francisco, celeiro dos destinados ao exercício da política (Venancio, 1977; Adorno, 1988).
Nas décadas de recomposição das elites dirigentes, entre 1920-1945, os canais geracionais
sucessórios entraram em crise e seu destino foi, como o de tantos outros, bloqueado (Rodri-
gues, 1996; Miceli, 2000, 2001).25 Não por acaso, portanto, como tantos jovens bem-educa-
dos, acabou por engrossar as fileiras do PCB, ao qual aderiu em 1932, aos 25 anos, após breve
passagem pelo PD, segmentação interna da elite anteriormente agrupada no PRP.
No PCB, manteve-se numa posição de obediência política ao comitê central, em particu-
lar a Luiz Carlos Prestes, combinando-a com uma insubordinação imaginária e conformada.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 515-529, maio-agosto 2019 515
Lidiane Soares Rodrigues

Sempre em desacordo com as teses oficiais do partido, editava os próprios livros e os de


amigos, críticos ao partido.26 Seus temas preferenciais foram os do PCB, e é na oposição aos
pares do partido que foi elaborando suas tomadas de posição. Essa orientação é evidente
na fatura de Evolução política do Brasil, escrito já em controvérsia com os comunistas, por
ocasião de sua adesão, porém também, por motivos opostos, em seu livro mais rente ao
regramento da fatura acadêmica, como se configurava na seção de história e geografia da
FFCL-USP (Rodrigues, 2013).
Formação do Brasil contemporâneo é redigido numa fase de recuo estratégico da vida
política, em que o PCB e o próprio Caio Prado Jr. são perseguidos e estão em semiclandes-
tinidade. Outro exemplo confirma a lógica da ação intelectual orientada para e pela esfera
política. Tendo chegado enfim à prática para a qual foi educado – exercício efetivo da política,
quando eleito deputado estadual –, abandonou a redação dos diários políticos, assim como
o projeto de continuar Formação, em favor da dedicação absoluta a estudos que embasavam
seus projetos de lei (Rodrigues, 2018c). Em suma, seus livros mais afinados com a fatura
acadêmica são concebidos em momentos nos quais era prudente se afastar da esfera política,
ao contrário de Florestan Fernandes, que, uma vez na esfera política, abdicava da fatura aca-
dêmica, principal orientação das obras.
Enquanto o primeiro colocado é filho de uma imigrante e apresenta um trajeto de ascen-
são social e conduta intelectual orientada pelo incipiente campo científico, o segundo é um
enraizado de família tradicional, apresenta um trajeto de descenso social e se orienta intelec-
tualmente pelo campo político. A militância partidária não é definidora das escolhas iniciais
que conduzem o primeiro, da fase de indeterminação à de envelhecimento social, mas deter-
minam as escolhas iniciáticas do segundo nesse mesmo percurso. Observe-se a movimentação
no espaço político e intelectual, do ângulo de gargalos e oportunidades, e a representação dos
autores se modifica inteiramente. Eles se transformam de “intelectuais livres” em “agentes
determinados”, observada também na terceira dimensão problemática: as origens.
Com relação à fidelidade e à traição de classe, ambos se revelam mais fiéis sociologica-
mente ao destino coletivo de seus estratos do que deixa entrever os rituais de ruptura acima
expostos. Nos momentos em que as trajetórias foram desafiadas por avalanches econômicas e
políticas, o pertencimento de ambos às suas origens se evidenciou, a despeito da mobilidade.
Os recursos de que se vale Caio Prado Jr., seja nos momentos de perseguição e clandesti-
nidade do PCB, seja em suas prisões – ele viaja para a Europa, acionando o capital social
familiar para defendê-lo –, são indicadores disso. Por outro lado, a posição distanciada da
configuração intelectual dos cientistas sociais brasileiros nos anos 1970 e 1980, ocupada por

516 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 516-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

Florestan Fernandes, consiste num indicador indefectível de que sua ascensão social não foi
acompanhada de plena integração nesse espaço (Rodrigues, 2010).
Enquanto eles circulavam entre o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap),
o Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj) e os Estados Unidos, Florestan
Fernandes foi para o Canadá, dando prosseguimento a um isolamento que já se configurava
na crise institucional da FFCL-USP (Keinert, 2011; Miceli, 2001 e 1993; Rodrigues, 2018a).27
O sistema de oposições objetivas observado nas características invertidas – de origem e
de orientação da ação – dos dois autores tem contrapartida na composição sociológica dos
respondentes – a base massiva contrasta com a fração mínima de escolaridade prolongada
equivalente à da mãe. Eis a base da metamorfose elaborada por Florestan Fernandes e talvez
razão última da orquestração da sensibilidade e das crenças.
Sufocando os valores médios (ascensão, castração, ponderação, hesitação) e exaltando
as atitudes extremas (ousadia, coragem, intrepidez) que enfrenta extremos (perseguições, di-
famação, estigma), Florestan Fernandes se dirige ao topo e à base dos respondentes, saciando
suas demandas simbólicas. Ele é o agenciador mais importante da refração operada pelo
espaço entre as propriedades sociais dos respondentes e dos respondidos, por meio de uma
terceira operação: a metamorfose de um acadêmico em político (ele próprio) e de um comunista
disciplinado num intelectual livre e acadêmico (Caio Prado Jr.), evidente no contraste entre a
reconstituição acima e a que ele elaborou.
A constatação de oximoro de Pierre Bourdieu, segundo o qual “a ilusão da liberdade é
determinante dos intelectuais” (2015, p. 458), torna-se precisa para o caso da representação
de Caio Prado Jr. como um “intelectual revolucionário livre, pronto avançar na conquista da
revolução social e na emancipação dos excluídos, porém dotado de uma faculdade própria de
submeter-se à disciplina e às orientações partidárias” (Fernandes, 1991), isto é, sua ação de
tudo independe, emanando da própria vontade.
A articulação dos três elementos, correspondentes às três dimensões problemáticas des-
tacadas do sistema de representações exposto inicialmente, completa o sistema das crenças
deste espaço: a crença na fidelidade do primeiro lugar a seu grupo de origem – em decalagem
com a evidência objetiva de ter se desprendido dela, embora não tenha sido integrado aos
grupos dirigentes –; na ruptura do segundo com o grupo de origem – em decalagem com
a evidência objetiva de ter dependido inteiramente dos recursos dela, embora não tenha se
mantido integrado a ela; no desinteresse de ambos pelos interesses materiais e pela consa-
gração mundana.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 517-529, maio-agosto 2019 517
Lidiane Soares Rodrigues

A imersão dos respondentes num meio movido pela interlocução entre agentes oriun-
dos dos polos da estratificação social, denegando ambições e valores médios em favor de
extremos, parece central para a compreensão disso. O interesse em fazer valer como valor o
desinteresse é correlato à ruptura e à fidelidade de classe observada na morfologia do grupo.
No topo, há alguma ruptura, pois os indivíduos estão “traindo” sua destinação social ao não
se associarem a grupos dirigentes e dominantes nos partidos, nas universidades e na base,
nesta por motivos inversos.
É preciso compensar, portanto, o desencaixe entre o ingresso num espaço no qual são
estrangeiros – posto que o destino social familiar não previra seu ingresso na universidade
e na pós-graduação –, mantendo-os fiéis às suas origens, na medida em que se situam em
posições a elas equivalentes na lógica própria do espaço institucional (marxistas/dominados).
Essa experiência parece não ser exclusiva do meio marxista em análise. Segundo Chris-
tophe Charle, a tomada de posição socialista entre frações dos alunos da École Normale
Supérieure no fim do século XIX consistia numa acomodação ao desajuste de que padeciam: a
decalagem entre o ponto de origem (popular) e o de chegada (entre as elites). As práticas – de
agremiação, de leituras coletivas, de militância – promoviam vínculos e solidariedade mútua
entre indivíduos estrangeiros ao universo dos normaliens, carentes de integração nele (Charle,
1990, p. 99-100).
É possível aventar similitude entre essa experiência e a que vimos caracterizando. É evi-
dente que, ao reunir os indivíduos com origens socioeconômicas discrepantes e heterogêneas,
num espaço cujos contornos não são institucionais, em estrito senso – o marxismo não é uma
disciplina, não emite diploma, não tem percurso regular, em etapas, para a formação –, o
problema da coesão do conjunto se apresentaria. Talvez, por meio da alquimia das trocas sim-
bólicas, as demandas de integração dos indivíduos e da configuração coletiva se satisfaçam.
Afinal, é notável que o modus operandi das representações dos autores seja capaz de conferir
sentido à ação e razão à desrazão, estabelecendo as crenças e reforçando o valor delas, estrei-
tando vínculos entre aqueles que nelas se reconhecem.

Considerações finais

A s dimensões problemáticas da experiência dos marxistas se encontram equacionadas


na sociodiceia personificada pelos autores do topo do ranking, como representados
por Florestan Fernandes. Sustentamos que tal representação exerça efeitos múltiplos, com-
preensíveis por dois fatores correlatos: a autoridade simbólica do comentador/indutor junto
aos marxistas e a sensibilidade do meio ao conteúdo por ele veiculado. Assim, este artigo se

518 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 518-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

empenhou em desvendar um dos impensados das disciplinas e das configurações aludidas,


organizadas em torno de autores, como filosofia, estudos literários, PSPB e marxismo: a ana-
tomia do interesse por um autor/intérprete, as condicionantes da eleição de um autor.
O princípio gerador das respostas exprime demandas simbólicas do meio satisfeitas por
esses autores. Ambos personalizam a metamorfose da necessidade em virtude. A heteroge-
neidade do espaço, que recruta em polos tendentes aos extremos dos capitais econômicos e
culturais, dando vazão a eles em detrimento das camadas médias e dos valores medianos, é
compensada pela unificação simbólica em torno do princípio de inversão de classe e de inde-
pendência institucional/material nos dois casos, considerando-os tanto separadamente quan-
to na dupla que compõem, pois os princípios que orientam a indução de Florestan Fernandes,
seja de si mesmo, seja a biografia/obra de Caio Prado Jr., são os mesmos.
As origens e a posição problemática – dos respondidos e dos respondentes – nos sis-
temas partidário e universitário é esteio máximo de pureza do desinteresse e da liberdade.
A necessidade feita virtude se torna alicerce da crença no desinteresse (dos bens materiais)
interessado (nos bens espirituais), propriedade definidora, por excelência, dos espaços de
produção simbólica (Bourdieu, 1996: 246-ss).
Dito de modo simples, tratamos da morfologia do amor que autores e obras nos des-
pertam. Se o empenho for situado, porém, nas controvérsias em torno da vida intelectual, ele
assume alguma complexidade, haja vista que o pressuposto da aposta analítica consiste no
reconhecimento de experiências não intelectuais, dignas de análise própria, subjacentes à
lógica da vida intelectual. Tentou-se, portanto, formular uma problemática que dispensasse a
afanosa disputa entre internalistas e externalistas, já que se tratou também de experiências
que antecedem o ingresso na vida do espírito e nessa polêmica, isto é, como (e por quê) as
pessoas se interessam pelos autores. Importa uma reflexão a respeito disso, pois o empenho
deste artigo é tributário de controvérsias cumulativas.
A problemática, o objeto e a abordagem enfatizaram dimensões fundamentais para o exa-
me da dinâmica dos espaços de produção cultural em geral – produtos, produtores simbólicos
e suas clientelas, distribuídos em polos de circulação restrita e ampliada (Bourdieu, 1996: 246-
316; Bourdieu, 2003b). Realçá-las permite, a título de sugestões finais, situar a interpelação
desta pesquisa junto a algumas tendências da bibliografia sobre intelectuais e política no Brasil.
Sem colocar a qualidade dela em questão, apresentaram-se alternativas às polarizações
autoexcludentes: internalistas x externalistas (Jackson e Praxedes, 2017), argumento político
x argumento sociológico (Rodrigues, 2017 a); linhagens de ideias x construção social das

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 519-529, maio-agosto 2019 519
Lidiane Soares Rodrigues

linhagens (Brandão, 2007; Miceli, 2000). O tratamento da eficácia social da categoria “autor”
(Sapiro e Santoro, 2017) e o cruzamento do ranking de predileções dos marxistas com obser-
vações de terreno em seus eventos se revelaram profícuos para isso.
A despeito de rivalizarem em torno dos quadros analíticos mais legítimos para a análise
dos intelectuais brasileiros, os pesquisadores presos às referidas oposições estão em acordo
impensado a respeito das escolhas obrigatórias que conformam seus estudos (Charle, 2006).
Tanto internalistas/inclinados ao argumento político quanto externalistas/inclinados ao argu-
mento sociológico convergem, em primeiro lugar, na escolha por casos de figura dominantes,
que ocupam a hierarquia superior das leituras prestigiadas e são incensados.
Assim, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre são os protótipos no polo interna-
lista, enquanto os artífices disciplinares, como Florestan Fernandes ou José Arthur Giannotti,
se tornam o protótipo dos externalistas (Arruda, 1995; Rodrigues, 2011). Em segundo lugar,
os dois polos tendem a eliminar o vetor público, como indutor das práticas de seus casos de
figura, dando atenção preferencial para a interlocução (internalistas) e a competição (exter-
nalistas) intrapares do polo restrito. Os estudos sobre a atuação dos acadêmicos no âmbito
editorial, contudo, têm mostrado sob duplo constrangimento, do perfil dos pares e da sua
clientela simbólica – alunos e leitores (Rodrigues, 2018 a; 2018d; 2018e).
Em terceiro lugar, os dois lados das oposições recíprocas se dividem quanto à eleição do
processo de profissionalização disciplinar (internalistas) ou aos tempos longínquos de regime
não disciplinar como objetos principais (externalistas), deixando a desejar alguma sistemati-
zação dos nexos entre os tempos pretéritos e o momento presente.
Devedor dos debates entre essas posições, o presente trabalho promoveu uma inversão
destas três tendências: dedicou-se ao estudo de um segmento denso, situado em margens
dominadas do campo acadêmico – em detrimento do privilégio de “casos de figura” domi-
nantes –, situado no presente em curso; construiu o argumento investigando os nexos entre
os conteúdos das mensagens, as posições, as estratégias dos produtores delas e as demandas
simbólicas da clientela simbólica disputada por eles – esforçando-nos para operacionalizar o
programa inscrito na releitura bourdieusiana da sociologia da religião weberiana (Bourdieu,
2003); tratou de um segmento que não recebeu o enquadramento das teorias da diferencia-
ção, talvez por se caracterizar justamente pela oposição à divisão do trabalho intelectual,28
isto é, postulou como válida a análise em termos de divisão social do trabalho de dominação
também para agentes e grupos que não se definem como construtores de “campos discipli-
nares autônomos”.29

520 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 520-529 maio-agosto 2019
Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

Ponderadas as experiências históricas, a vida intelectual comporta avanços e recuos nos


processos de institucionalização, disciplinarização, profissionalização e autonomização da ati-
vidade intelectual, e tanto a desprofissionalização quanto a heteronomização são estratégias
à disposição de agentes interessados nelas (Charle, Jean-Pierre, 2016b; Hauchecorne, 2016;
Sapiro, Heilbron, Boncourt e Schögler, 2017). Ainda que não tenha sido o principal alvo da
análise, inclinações heterônomas foram colocadas em relevo, em oposição à visão de um cres-
cente e irreversível processo de autonomização e profissionalização do trabalho acadêmico
– no mais, insustentável, face à nova morfologia universitária e às demandas carreadas por
ela (Rodrigues, 2018b).

Anexos

1) Ranking de autores, considerando os 988 respondentes, até a 12a posição (69,7%).

Respostas %
1º Florestan Fernandes 214
2º Caio Prado Junior 159
3º José Paulo Netto 6,9
4º Carlos Nelson Coutinho 5,3
5º Ricardo Antunes 4
6º Demerval Saviani 2,9
7º Ruy Mauro Marini 2,7
8º Francisco de Oliveira 2,5
9º Celso Furtado 2,4
10º Leandro Konder 2
11º Antonio Candido 1,8
12º Sérgio Buarque de Holanda 1,8
Total 697%

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Lidiane Soares Rodrigues

2) Escolaridade dos pais dos 277 respondentes (dados desagregados).

Escolaridade
Pai Mãe
Base: 277 respondentes Base: Base: 277 respondentes Base:
do topo (%) 988 (%) do topo (%) 988 (%)
Analfabeto 1,8 2,6 1,4 1,7
Fund. Incom. 28,2 26 23,1 22,7
Fund. Compl. 9 8,8 10,5 10,1
Médio Incom. 3,2 5 4,7 5,0
Médio Comp. 18,8 16,9 20,2 21,3
Superior Incom. 3,6 5,5 4,7 5,6
Superior Comp. 25,3 25,2 26,4 24
Pós-graduado 9,4 9,3 8,7 9,2
Não sei 0,7 1,9 0,4 0,5

Notas

1 A coleta dos dados foi realizada em conjunto com Profa Dra Paula Marcelino. Agradeço por discutirem comi-
go este trabalho, em diferentes etapas da elaboração, a Frédéric Lebaron, Johan Heilbron, Laurent Jeanpierre,
Horacio Tarcus, Sergio Miceli, Marcelo Ridenti, Maria Alice Rezende de Carvalho, Ana Maria Almeida, Ana
Paula Hey, Edson Farias, Graziela Perosa, Bernardo Ricupero, Luiz Carlos Jackson, Armando Boito Jr. Também
sou grata aos pareceristas anônimos de diversas publicações e das agências mencionadas, cuja exigência
de rigor tem sido acompanhada de generosidade e estímulo. Por fim, agradeço aos desafios lançados pelos
presentes nessas ocasiões, aos quais tento responder com este artigo. Como de praxe, declaro que assumo
inteira responsabilidade pelas conexões de sentido apresentadas.
2 Trabalho financiado pelo CNPq e pela Fapesp. Ocultam-se informações para manter anonimato
3 O leitor ligará esta discussão à ideia de “função autor”, elaborada por Michel Foucault (2001a, 2001b,
2008), e esse é decerto o ponto de partida, por se tratar de uma das concepções mais comuns entre nós: a
proposta de colocar em suspenso a crença na delimitação e na estabilidade das categorias “autor” e “obra”.
A retomada dessa discussão por Roger Chartier também orienta este trabalho (2014 a, 2014b, 1990, 2002;
Chartier, Bourdieu, Darnton, 1985).
4 O fenômeno se processa de tal modo que o espaço social – dos “especialistas em autores” – e o dos temas/
autores (simbólico) se tornam homólogos. O campo filosófico francês já foi estudado por meio desta aborda-
gem (Soulié, 1995), em que se baseia este artigo.
5 Convém esclarecer que a pergunta era aberta e permitia até três respostas. O ranking acima e a análise a
seguir consideram apenas a primeira, a mais propícia para apreender a estrutura do espaço (Bourdieu, 2003).
Ao todo, obtivemos 988 respondentes, que compõem o banco da pesquisa. Em vez de segregarmos a exposi-
ção da coleta dos dados, optamos por apresentá-la conforme a necessidade dos argumentos.

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Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

6 A análise se limita às práticas e aos artefatos produzidos para e pelos marxistas, daí empregarmos a noção
de “espaço autorreferenciado”.
7 Entre os 988 indivíduos, havia 128 nomes diferentes; entre os 632 selecionados para este exame, 97. Não é
possível discutir essa multiplicidade, mas vale uma observação, a fim de justificar a análise do topo do ranking:
a dispersão a partir do terceiro lugar indica a diversidade dos “marxismos” e a divergência de parâmetros
compartilhados de excelência num sistema universitário de centralização problemática. No topo, portanto,
encontra-se a dimensão de unificação do espaço.
8 Antropologia, arquitetura, ciências sociais, direito, economia, filosofia, geografia, história, letras. A noção
de “intérprete” não tem os mesmos significado e peso em todas as áreas, portanto a necessária seleção das
que evidenciam mais proximidade na atribuição de sentido ao termo. Para chegarmos a isso, consideramos as
disciplinas como espaços sociais e cognitivos (Heilbron; Bokobza, 2015; Renisio, 2015; Fabiani, 2006; Abbott,
2000) e nos embasamos nos estudos sobre a gênese social da “academização” da obra de Karl Marx (Almei-
da; Cavalieri, 2018; Rodrigues, 2011).
9 Ainda que a ordem sequencial do ranking não seja o objeto principal em análise, é válido assinalar que os
estudos parciais já realizados indicam o papel de comando exercido por Florestan Fernandes no conjunto do
escalonamento. Ocultam-se referências para preservar o anonimato.
10 As exceções são: Celso Furtado, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Ruy Mauro Marini, que não
participam do círculo de recíproco reconhecimento na qualidade de autores-comentadores dos outros autores
do ranking. Avaliando a fração de autores coincidente com o cânone do PSPB – estabelecido pela observação
dos autores mais presentes em suas atividades, além do site Biblioteca Virtual do Pensamento Brasileiro –,
distinguimos aqueles que parecem ser específicos dos marxistas: os três primeiros. Infelizmente, a economia
do artigo impede de explorar as afinidades entre o PSPB e o marxismo.o mesmo modo, no topoo do ranki-
mente ao sentido atribuilos 988 indivtrajetorias dos autores e no mesmo modo, no topoo do rankio mesmo
modo, no topoo do rankimente ao sentido atribuilos 988 indivtrajetorias dos autores e no mesmo modo, no
topoo do rankilternativa a ela sentido neles que evidencia a : ue elas - ponto inteliglocuo com PSBolanda.
Do mesmo modo, no topoo do ranki.
11 Há duas exceções. Carlos Nelson Coutinho produziu o referido texto para o site Gramsci e o Brasil (Cou-
tinho, 2000), e a coletânea sobre Celso Furtado é constituída de paratextos não orais, mas de escritos – pre-
fácios, apresentações e introduções – concebidos por Francisco de Oliveira (2003). Apesar das diferenças, a
função de “enquadramento” é similar.
12 Realizamos observações em eventos e jamais presenciamos alguém indagar a respeito da precisão sobre
citações textuais. Isso não significa que a clientela/plateia não seja um fator ativo na orientação do palestrante/
depoente, e sim que, liberada das convenções acadêmicas para propor suas conexões, sua clientela/plateia as
aceita ou rejeita segundo outros princípios, igualmente liberados delas. A “autoridade sobre os autores” pode se
fundamentar em vários vínculos – familiares, pessoais, político-partidários etc. O título de um dos textos utilizados
é indicativo da força simbólica da amizade como fiadora de autoridade: “A visão do amigo” (Fernandes, 1989).
13 A respeito dos aparatos e das hierarquias textuais, ver Genette, 2009; Mollier, 2009; Chartier, 2014.
14 Empregamos “sociodiceia” na acepção de Pierre Bourdieu (2003a): narrativas que sistematizam a história
coletiva e conferem sentido às experiências constitutivas de uma configuração.
15 Mais preciso seria afirmar para um “marxista homem”. A evidente virilização dos atributos, eivados de
conotações bélicas e fálicas, corresponde à homogeneidade de gênero dos autores. Trata-se de um ponto que
não se pode explorar devidamente neste artigo, porém tampouco deixar de assinalá-lo.

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Lidiane Soares Rodrigues

16 A diferenciação dos dois tipos principais de poderes e de reconhecimento – o espiritual e o temporal, re-
ferindo-se, respectivamente, ao domínio dos conteúdos propriamente intelectuais e ao controle das condições
materiais e institucionais que viabilizam as práticas (Bourdieu, 1984: 138-ss) – é fundamental no argumento
e retomada adiante.
17 Argumentar em favor da correção indiscutível do que afirma Florestan Fernandes para explicar a vigência
dessas representações implicaria supor que a crença nelas depende apenas da consistência das ideias, e não
das disposições daqueles a que elas se destinam. Os atributos incensados seriam destituídos de sentido e o
ranking seria outro, caso fossem outros os respondentes. Em contrapartida, os fragmentos mobilizados são
verídicos; não se trata de invenção arbitrária.
18 A título de exemplares desse tipo de pertencimento aos protocolos estabelecidos pelo gerenciamento de
Florestan Fernandes, consultar, para o caso de Caio Prado Jr.: D’incao, 1989; Martinez, 2008; Secco, 2008;
Pericás, 2016; Ricupero, 2000; e, para Florestan Fernandes: D’incao, 1987; Martinez, 1998. Em perspectiva
diversa: Rodrigues, 2018c, sobre Caio Prado Jr.; e Arruda, 1995; Gemignani, 2002, sobre Florestan Fernandes).
19 Os critérios se subordinaram aos propósitos iniciais da pesquisa: a) recusa de qualquer definição prévia ou
normativa de marxismo e consequente interesse em todos que se identificam com ele (Tarcus, 2007, p. 29);
b) constatação de que o marxismo atual depende de práticas eruditas e acadêmicas opostas às do campo
político em que emergiu (Rodrigues, 2011; Gouarné, 2013; Tarcus, 2007; Boito; Motta, 2012; Hubmann, 2012;
Schöttler; Grandjonc, 1993), havendo interdependência e concorrência entre os polos mais “academizados”
(Elias, 1982) e os mais “partidários”. A permeabilidade dos sistemas universitário e partidário foi apreendida
pelo escrutínio de preferências e filiações partidárias, as quais se apresentam abaixo. Por fim, selecionar pro-
fessores e alunos de pós-graduação se justifica em virtude dos compromissos e do peso que a identificação
assume nessas posições, diferentemente do que significaria em fases mais indeterminadas da trajetória.
20 Não ignoramos a possível distorção das respostas. Para contornar o viés, nós as consideramos em face
a outras experiências, confirmando a evidência de que são capazes de suscitar efeitos expressivos disso no
espaço (Cf. episódio público: Boschetti, s/d; Carta aberta à Capes).
21 A primeira pergunta foi respondida por docentes e discentes; a segunda, apenas por docentes. No banco
de dados, eles se distribuem, respectivamente, em 43,3% e 56,7%.
22 Opinamos por segmentar os indivíduos segundo os critérios de possessão/destituição materna de pós-
-graduação, pois: a) todos os respondentes alcançaram esse nível educacional – portanto, mede-se até onde
foram além do ponto a que a mãe chegou); b) dada a raridade do título no polo materno, opinar por ele torna
mais evidente a assimetria.
23 Como nosso esforço neste artigo se dirige à dinâmica interna do espaço, entendemos não haver prejuízo
ao argumento acima, a impossibilidade de precisar a proporção de indivíduos de primeira geração familiar/
materna, no sistema de alunos e diplomados da pós-graduação. Pelo mesmo motivo, adotamos uma clivagem
própria, em detrimento daquela mais usual na sociologia da educação – primeira geração de graduados, e
não filhos de mães pós-graduadas).
24 Insistimos, sem o objetivo de corrigi-las, senão de realçar seus princípios de enquadramento.
25 Ressalte-se a distância interpretativa: “Ele partiu do tope, fez o movimento inverso e no momento em
que não havia crise moral no seio da classe dominante. Ao contrário, a classe dominante estava solidamente
implantada no poder” (Fernandes, 1989: 34).
26 Infelizmente, não dispomos de espaço para dar os exemplos disso, mas as biografias os relatam bastante,
ainda que os alinhave sob a tutela dos princípios de Florestan Fernandes e não destaquem que sua posição

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Amar um autor: os marxistas nas universidades
brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

no espaço social chancelava vínculos ideológicos com o PCB e de amizade com configurações liberais e anti-
varguistas, por exemplo.
27 Seria possível voltar aos sete itens acima e rearranjar seus sentidos com base nesse escorço. Por exem-
plo, a austeridade ascética de Caio Prado Jr., sendo factualmente verossímil, talvez corresponda às práticas
econômicas de restrição orçamentária de camadas em descenso, premidas pelos deveres de manutenção de
um estilo de vida que se tornou oneroso e que, ao mesmo tempo, não pode ser abandonado (Miceli, 2000:
22-63; Trigo, 2001).
28 O mesmo problema foi encontrado por Eric Brun no estudo sociológico dos situacionistas, e uma alterna-
tiva analítica idêntica foi desenvolvida por ele (Brun, 2014).
29 Tal como é a tendência na sociologia brasileira do campo acadêmico, salvo exceções dignas de nota, seja
por orientarem suas atenções aos cientistas sociais como frações dominadas no campo do poder e prestando
serviços aos aparelhos de Estado (L’estoile; Neiburg; Sigaud, 2002; Hey; Rodrigues, 2017a; Hey, 2008), seja
por abordarem novos flancos de escrutínio, notadamente o das assimetrias globais (Silva, 2017; Maia et. al.,
2016; Bringel; Domingues, 2017; Rodrigues, 2017b, 2018a).

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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 529-529, maio-agosto 2019 529
Artigo

Um regime de transição: o papel


do IHGSP no curso de história da
Universidade de São Paulo (1934)
A transition regime: the role of the IHGSP in the History course
of the University of São Paulo (1934)
Un régimen de transición: el papel del IHGSP en el curso de
historia de la Universidad de São Paulo (1934)

Aryana CostaI* 1

DOI: : http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200010

I
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern), Mossoró, Brasil.

* Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Departamento de História/FAFIC/UERN),


Mossoró, Brasil. (aryanacosta@gmail.com). OCID iD: http://orcid.org/0000-0003-0208-778X

Artigo recebido em 23 de janeiro de 2019 e aprovado em 5 de julho de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 530-548, maio-agosto 2019 530
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)

Resumo
Este artigo busca compreender, por meio das atas da revista do IHGSP, o interesse de membros desse instituto na
composição do quadro docente e nos debates sobre saberes e currículos do curso de geografia e história, inaugu-
rado em 1934 na USP. Nesse intuito, usamos o caso de Plinio Ayrosa para identificar as práticas que esses novos
professores levaram consigo para a universidade. Assim, foi possível problematizar uma memória institucional já
estabelecida que apaga esses sujeitos da história do curso e que, consequentemente, limita sua dimensão na história
da historiografia brasileira.

Palavras-chave: IHGSP; USP; História da historiografia; Curso de história; Plinio Ayrosa.

Abstract

This article studies, through the records of the IHGSP Journal, the engagement of this Institute’s members in the
configuration of the faculty of the Geography and History course installed in USP in 1934, and in the debates over
its contents and curricula. The case of Plinio Ayrosa was useful in identifying the practices these new professors were
bringing to the university. It was thus possible to reopen the discussion on an already established institutional me-
mory which erases these figures from the history of the course and, as a consequence, diminishes their participation
in the history of Brazilian historiography.

Keywords: IHGSP; USP; History of historiography; History course; Plinio Ayrosa.

Resumen
Este artículo busca comprender el interés de miembros del IHGSP en la composición del cuadro docente y en los
debates sobre saberes y currículos del curso de geografía e historia, inaugurado en 1934 en la USP, a través de las
actas de la revista del instituto. En ese sentido, usamos el caso de Plinio Ayrosa para identificar las prácticas que
esos nuevos profesores llevaron consigo a la universidad. Así, fue posible problematizar una memoria institucional
ya establecida que apaga a esos sujetos de la historia del curso y que, consecuentemente, limita su dimensión en la
historia de la historiografía brasileña.

Palabras clave: IHGSP; USP; Historia de la historiografía; Curso de historia; Plinio Ayrosa.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 531-548, maio-agosto 2019 531
Aryana Costa

Introdução

O curso de geografia e história na Universidade de São Paulo (USP) foi criado em 1934.
Em entrevistas, as memórias de seus docentes e ex-alunos sobre sua fundação e seu
funcionamento constroem uma clivagem entre dois grupos de professores, divididos entre
inovadores e tradicionais, no que se refere aos diferentes entendimentos acerca de teoria e
metodologia da história e também da metodologia de sala de aula. Por um lado, ressaltam a
inovação trazida pela experiência e pela produção dos professores franceses Fernand Braudel
e Jean Gagé, os primeiros a ocuparem a cátedra de história geral da civilização. Por outro
lado, atribuem os rótulos de “conservadores” e “tradicionais” ao trabalho dos professores
brasileiros que ocuparam as cátedras de história da civilização brasileira e etnografia brasileira
– Afonso Taunay e Alfredo Ellis Junior –, bem como língua tupi-guarani, Plinio Ayrosa.
As narrativas de origem do curso remetem em especial ao lugar ocupado pelos professo-
res franceses e sua posição de centralidade e importância na consolidação do saber histórico e
geográfico, ao passo que oblitera a participação dos professores brasileiros e de suas questões
e interesses no processo de disciplinarização desses saberes. Motivados por essa separação, a
proposta deste artigo é compreender a fundação do curso de geografia e história na USP, por
meio de debates e articulações ocorridas no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo (IHGSP), instituição a que pertenciam os professores brasileiros do curso, como um dos
lugares precípuos do debate sobre história e geografia no Brasil.
Assim, este artigo se volta para a etapa anterior ao início do curso apresentado pelos
Anuários da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), para aquela que corresponde à
concepção e à organização dos saberes numa configuração curricular. Enfoca especialmente
o debate em torno da disciplina de etnografia brasileira e língua tupi-guarani, presente nos
três anos da grade curricular, o que denota sua relevância. Nas atas da Revista do Instituto
Histórico Geográfico de São Paulo (RIHGSP), encontram-se debates e articulações ocorridos no
primeiro semestre de 1934 entre membros dessa instituição e as autoridades governamentais
paulistas para a implantação desse curso.
Por meio da análise dessas atas, é possível construir outra narrativa desse início que
complementa aquelas que já conhecemos e que pertence também a essa história, mesmo que
referente a um período imediatamente anterior ao início das aulas. Neste artigo, é proposto
que as décadas de 1930 e 1940, quando a primeira geração formada pela universidade ainda
se encontrava num processo de convivência entre os regimes de produção historiográfica
nacional e estrangeira já existentes, foram igualmente um período de convivência entre dife-
rentes entendimentos sobre a atuação de um profissional de história.

532 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 532-548 maio-agosto 2019
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)

O ihgsp dentro de cada um

O IHGSP foi fundado em 1894, e sua organização e seus propósitos eram muito pare-
cidos com os do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Em 1932, a ad-
missão de sócios se fazia por indicação – era necessária uma proposta assinada por três ou
mais sócios efetivos, que deveria conter os dados pessoais do candidato e seus méritos. Era
obrigatória também a apresentação de “um trabalho científico” sobre assunto de história ou
geografia “precipuamente” de São Paulo (RIHGSP, 1933-1934: 469-469). Esse conjunto seria
apreciado pela comissão de admissão de sócios e pela comissão técnica respectiva – caso
fosse um trabalho de história do Brasil, de São Paulo, de geografia ou de etnografia –, que
emitiriam pareceres a serem aprovados em assembleia.
No período aqui retratado – o início da década de 1930 –, o IHGSP vinha sofrendo com
deficiências orçamentárias, por ter deixado de receber as subvenções do governo do estado
pelos anos consecutivos de 1929, 1930 e 1931. O volume 29 de sua revista, referente a 1931,
por exemplo, não pôde ser publicado por falta de verba. Em 1932, ano conturbado por causa
da Revolução Constitucionalista, o instituto contava com 156 sócios (RIHGSP, 1931-1932:
118). Em 1934, porém, já somava 206 sócios, e, em 1935, 222. A turbulência dos três primei-
ros anos da década de 1930 parece ter se arrefecido a partir de 1933, mas os relatórios não
deixam de ter um tom negativo. Não obstante a procura por filiações aumentasse, o que deno-
ta uma constância no interesse pelo instituto, os volumes de sua revista continuavam saindo
com atraso – o de número 30 não saíra no prazo –, e ainda não havia instalações adequadas
para seu museu e seu arquivo.
Apesar da resolução do estatuto de 1932 de não envolvimento em questões políticas (RIH-
GSP, 1933-1934: 481), os membros não deixavam de lançar mão de seus estreitos contatos
com o poder público para tentar resolver a situação financeira. Em 1936 e 1937, parcerias e
convênios com a prefeitura e o governo do estado foram estabelecidos para que o instituto exer-
cesse atividades de restauração e publicação de documentos e para conseguir uma nova sede.
Em nome da história de São Paulo, o IHGSP compunha comissões e promovia celebrações para
comemorações de datas, como as relativas ao quarto centenário da fundação de São Vicente.
Pouco citados nas memórias de alunos e professores, Afonso Taunay, Plinio Ayrosa e
Alfredo Ellis Junior, os três professores brasileiros que compuseram o quadro docente no início
do curso de história e geografia da USP, foram sócios desse IHGSP. Como já dito, Taunay e
Ellis Junior ocuparam a cadeira de história da civilização brasileira, e Ayrosa, a de etnografia
brasileira e tupi-guarani. Todavia, recorre-se pouco a essas figuras na construção da memória
do curso e da universidade.1

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 533-548, maio-agosto 2019 533
Aryana Costa

O silêncio em relação a esses sujeitos é tributário do anacronismo com que nós,


historiadores, por vezes tratamos a história da profissão. Os olhos de hoje buscam as ori-
gens daquilo que é reconhecido como legítima prática acadêmica atual, “demarcando o seu
terreno em relação aos estudos empreendidos anteriormente, como os do IHGSP, tidos como
‘pré-científicos’, dos quais era preciso distanciar-se para sua afirmação institucional” (Ferreira,
2002: 174). Isso, somado à centralidade que a historiografia francesa adquiriu na produção
historiográfica brasileira, reforça o desinteresse em relação àqueles que ainda circulavam e
encontravam seu prestígio em outras redes, que inclusive gestaram e deram forma ao currículo
de história na USP de 1934, como veremos.
Nascido em 1876, em Santa Catarina, Afonso Taunay teve sua formação escolar no Rio
de Janeiro. Era filho do Visconde de Taunay, que também havia se enveredado pelas letras,
e de Cristina Teixeira Leite Taunay. Formou-se em engenharia civil pela Escola Politécnica do
Rio de Janeiro, em 1900. Trabalhou na Politécnica de São Paulo. Seu casamento com Sara de
Souza Queiroz, de uma tradicional família paulistana, abriu caminhos nos círculos ilustres do
estado. Em 1911, foi eleito sócio do IHGB; em 1917, nomeado diretor do Museu Paulista, e,
em 1929, para a Academia Brasileira de Letras. Assumiu a cadeira de história da civilização
Brasileira na USP entre 1935 e 1937, quando, por uma legislação federal, precisou se des-
compatibilizar de um de seus cargos. Escolheu ficar no Museu Paulista.2 Seus livros de história
versam sobretudo sobre a história de São Paulo, sendo referenciado frequentemente como o
“historiador das bandeiras”.
Alfredo Ellis Junior nasceu em São Paulo, em 1896.3 Foi aluno de Taunay no Colégio
São Bento e se formou pela Faculdade de Direito, em 1917, seguindo a carreira de promotor
público (Monteiro, 1994: 80). Escreveu para o jornal Correio Paulistano e também para o Jor-
nal do Commercio, cujos artigos deram origem aos seus dois primeiros livros: O bandeirismo
paulista e o recuo do meridiano (1924) e Raça de gigantes (1926). Ellis participou da Liga de
Defesa Paulista por ocasião da guerra de 1932; escreveu livros didáticos nas áreas de história,
geografia, estatística, biologia e higiene; e deu aulas em ginásios da capital. Antes de entrar
para a universidade, Raça de gigantes foi reeditada com o título Os primeiros troncos paulis-
tas, pela Companhia Editora Nacional. Substituiu Taunay na cadeira de história da civilização
brasileira, em 1938, tornando-se catedrático em 1939, ao defender a tese Meio Século de
bandeirantismo, também publicada pela Editora Nacional.
Plinio Marques da Silva Ayrosa nasceu em São Paulo, em 1893. Estudou na Escola Poli-
técnica do Rio de Janeiro, formando-se engenheiro civil em 1920, com uma especialização em
Berlim. Escreveu para vários jornais até entrar, em 1934, para os quadros da nova Faculdade

534 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 534-548 maio-agosto 2019
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)

de Filosofia, Ciências e Letras. Antes disso, já havia publicado Primeiras noções de tupi, em
1933, e organizado e prefaciado o Dicionário português-brasiliano e brasiliano-português, em
1934. Tornou-se catedrático da cadeira de etnografia e língua tupi-guarani em 1939, com a
tese Dos índices de relação determinativa de posse no tupi-guarani. Também foi membro da
Academia Paulista de Letras (1940) e de vários outros institutos históricos do país – da Bahia,
de Pernambuco, do Rio de Grande do Norte, do Rio Grande do Sul e de Sergipe. Fez parte da
comissão de redação da Revista de História quando esta foi fundada, em 1950. Faleceu em ju-
nho de 1961.4Os três já faziam parte do IHGSP no momento da fundação do curso de história
e geografia. Taunay, o mais velho, tomou posse em 1912. Ellis Junior, em 1927, e Ayrosa, em
1928. O pertencimento à mesma associação propiciou o convívio e o engajamento comum em
solenidades e comissões, o que provavelmente lhes permitiu inclusive carregar essa identidade
coletiva para a própria faculdade. Antes de pertencerem à USP, eram pesquisadores não só no
sentido cronológico, mas no simbólico – o título de professor na universidade era mais um no
rol da experiência que já traziam.
A carreira desses sujeitos seguiu, pois, a lógica inversa de prestígio acadêmico dos tem-
pos atuais: o reconhecimento como estudiosos veio antes da atividade como professores. Cir-
culavam num ambiente em que uma identidade paulista já vinha sendo construída no seio das
letras históricas (Ferreira, 2002: 22) e que implicava uma série de atividades comuns exercidas
no IHGSP, as quais serviam como definidoras de sua identidade historiadora.
Por exemplo, para Taunay, em seu discurso de posse, “entre os mais elevados títulos de
associação científica de que nos devemos orgulhar no Brasil, figuram certamente os diplomas
do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em magno destaque” (1914: 89). Nesse
mesmo breve discurso, ele se dedica a traçar um paralelo entre o espírito dos primeiros pau-
listas e aquele do instituto, ambos imbuídos da missão de construir uma história nacional. Do
mesmo modo que os bandeirantes foram os responsáveis pelo feito de moldar o país, a mais
nobre tarefa a que o instituto podia se preocupar era “com as questões nacionais, dedicando
aos assuntos brasileiros tanta atenção quanto aos regionais. É que o inspira a tradição: assim
também nunca São Paulo coube dentro das suas fronteiras” (1914: 89. Grifo nosso).
O IHGSP incorporava ele mesmo o prolongamento da raça de gigantes, tarefa que não
era pequena. Cabia-lhe continuar, por meio da história de São Paulo, a história nacional.5
No mesmo ano da posse de Taunay, em outubro de 1912, também tomava posse no
IHGSP George Dumas. Figura presente no cenário intelectual brasileiro desde a primeira dé-
cada do século XX, Dumas teve participação importantíssima no posterior recrutamento de
professores para a USP em 19346 junto a Theodoro Fernandes Sampaio. Era Júlio de Mesquita

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 535-548, maio-agosto 2019 535
Aryana Costa

Filho – proprietário do jornal O Estado de São Paulo e que tomou posse no IHGSP no fim de
1933 – quem iria primeiramente para a Europa prospectar professores para a recém-criada
USP (Petitjean, 1996: 263). Mas, não podendo ir, fez a ligação entre Theodoro Sampaio e
Dumas (Ferreira, 2005: 230).
Segundo Dumas, numa carta a Jean Marx, diretor do Services d’Oeuvres Françaises à
l’Étranger (Sofe), “ele (Theodoro) conhece poucas pessoas ou não conhece ninguém, e se nós
queremos ganhá-lo a todo custo, trazê-lo para a nossa influência, é indispensável cercá-lo em
Paris de pessoas que ele admira e colocá-lo em contato direto com eles” (Idem: 266).
É Theodoro Sampaio, membro fundador do IHGSP, em que pronunciou discursos, necro-
lógios e fez parte da comissão de etnografia – no mesmo período em que Taunay transitava
pelas comissões de história de São Paulo ou de história do Brasil –, professor da Escola Po-
litécnica, geógrafo, estudioso da língua tupi-guarani e nomeado o primeiro diretor da FFCL,
quem vai à França e à Itália no primeiro semestre de 1934 para articular a contratação dos
professores estrangeiros que deveriam ocupar as cátedras recém-criadas na FFCL.
Vê-se que as pessoas que farão parte do curso de história e geografia circulam pelo
mesmo espaço já ao menos nas duas décadas que antecedem o decreto de criação da USP,
compartilhando ali um ethos acerca do exercício do historiador, um conjunto de interesses e,
igualmente importante, uma rede de sociabilidades. Tanto que algumas das atividades promo-
vidas e praticadas pelo instituto ao longo dos anos 1920 e no início dos anos 1930 ganharão
continuidade na estrutura do curso, em especial aquelas que tratam dos estudos indígenas,
assunto de grande interesse dos seus membros.

Uma nova função: professor

A área de etnografia e de língua tupi-guarani é um dos elementos de continuidade


entre a “velha” e a “nova” instituição. Há uma identificação criada entre o IHGSP e
a responsabilidade pela manutenção dos estudos e da existência da língua tupi-guarani. Em
1925, Spencer Vampré, professor da Faculdade de Direito que viria a ser incorporada à USP,
já sugeria ao instituto a criação de um curso para seu estudo. Em 1933, cria-se um no Centro
do Professorado Paulista. Dessa vez o curso é regido por Plinio Ayrosa, já sócio do instituto à
época, e recebe um voto de louvor do IHGSP pelo “interesse demonstrado na cultura da língua
tupi e, também, pela circunstância de se valer para isso, dos conhecimentos do nosso distinto
primeiro secretário” (RIHGSP, 1933-1934: 391). Plinio Ayrosa, futuro professor da USP, permi-
te vislumbrar como esse investimento do IHGSP refletiu na configuração do curso de geogra-
fia e história, e é essa conexão que será exemplificada neste tópico.A posse de Ayrosa como

536 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 536-548 maio-agosto 2019
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)

professor catedrático da USP é tida como o reconhecimento da missão original do instituto.


Plinio de Barros Monteiro explora essa identificação no discurso de homenagem a Plinio
Ayrosa quando este é aprovado como catedrático na cadeira de etnografia brasileira e tu-
pi-guarani. É assim que se descobre que a própria existência da cadeira no curso da FFCL
é obra do IHGSP:

Além disso, Srs. consócios, cumpre-me fazer-vos cientes de uma coincidência de alta relevância
para este Instituto, no concernente à criação da cadeira de Etnografia Brasileira. Ao iniciar-se
a vida desta instituição, o seu primeiro presidente lançava um apelo aos sócios para que
se dedicassem ao estudo do tupi-guarani; e, quarenta e quatro anos mais tarde, revivendo
essa mesma ideia, porém querendo dar-lhe feição mais prática, empenhou-se o nosso atual
presidente perpétuo, Sr. Dr. Torres de Oliveira, junto ao então interventor deste Estado, o Sr.
Armando de Sales Oliveira, para que, entre as matérias professadas na Faculdade de Filosofia,
figurasse a língua tupi-guarani. A vitória que tão honrosamente coube a um destacado sócio
deste cenáculo, no concurso que acaba de realizar-se, é motivo de júbilo para este Instituto,
que tanto trabalhou para que o cultivo da língua tupi-guarani se tornasse uma realidade.
(RIHGSP, 1939: 186-187. Grifo nosso)7

Desde sua posse, em 1928, Ayrosa parece ter uma presença bastante querida no IHGSP.
Em fevereiro daquele ano, seu nome é aprovado para integrar o quadro de sócios do instituto.
Em agosto, toma posse. Naquele momento, o presidente do instituto, José Torres de Oliveira,
revela que Ayrosa não era um estranho:

O Sr. presidente, dando posse ao membro recipiendário do sodalício, diz não ser. S. S. um des-
conhecido nesta casa de trabalho que é o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, onde
houve sempre quem o acompanhasse com carinho no seu curso brilhante de Engenharia na
Escola do Rio de Janeiro, colimado na obtenção do prêmio de viagem à Europa, e também na
sua vida jornalística. (RIHGSP, 1938: 309).

Ayrosa teria vida bastante ativa no instituto. Entre suas atividades estavam a partici-
pação nas comissões de trabalho – dividiu-se entre a comissão de redação da revista e a
de etnografia – e na organização dos festejos comemorativos para o Quarto Centenário da
Fundação de São Vicente, com Taunay e Alberto Penteado; a organização da biblioteca do
Instituto em 1929; a indicação para primeiro secretário – e diretor da biblioteca e mapoteca
do Instituto – em 1932; e, em 1933, a leitura de vários estudos ao final das sessões sobre
termos de origem tupi no vocabulário brasileiro. Em suas próprias palavras, ficamos sabendo
que Ayrosa era um “burro de carga.” Ele assim relata seu envolvimento, em especial em 1932,
nas atividades do Instituto:8

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 537-548, maio-agosto 2019 537
Aryana Costa

Imagine V. que andei trepado em escadas vertiginosas pregando bandeiras e retratos pelas
paredes do nosso salão nobre depois de ter escrito mil e uma notícias para os jornais fazendo a
“propaganda” dos “pândegos”. Durante o dia todo numa luta com convites, com arrumações
de salas, com telefonadas. [...] Logo após, secretariando a sessão com ares soberbos de histo-
riador, quando não tinha de me postar junto à máquina de projeção para pôr na tela os docu-
mentos dos conferencistas. Cada vez mais me convenço de que sou positivamente um “bicho”,
um sabe-tudo, um esplêndido “burro de carga”. Na hora do aperto ninguém sabe fazer nada.
O Ayrosa convida, o Ayrosa escreve notícias, o Ayrosa substitui fusíveis queimados, o Ayrosa
recebe as personalidades mais ou menos “atenentadas”, o Ayrosa fala, o Ayrosa projeta diapo-
sitivos e, por fim, o Ayrosa fecha o Instituto lá pelas 24 horas... Enfim, cada um desembaraça a
meada do destino como pode (Guimarães, 1982: 8. Grifo nosso)

Em junho de 1934 – portanto, já com a USP decretada e Theodoro Sampaio em missão


para garimpar professores estrangeiros –, José Torres de Oliveira comunica, para regozijo do
instituto, a “notícia, ainda não confirmada, da nomeação do primeiro secretário, dr. Plinio
Ayrosa, para reger a cadeira de tupi-guarani, recentemente criada na Universidade de São
Paulo” (RIHGSP, 1940: 231). Em outubro, a notícia é confirmada:

O sr. presidente declara que está confirmada a notícia, em tempo levada ao conhecimento do
Instituto, da provisão do consócio dr. Plinio Airosa na cadeira de tupi-guarani da Universidade
de S. Paulo. Adiantou o dr. José Torres de Oliveira que o ato do governo paulista foi recebido
com gerais aplausos e que ele, pensando interpretar o sentimento dos confrades do Instituto,
havia endereçado ao sr. dr. Marcio Pereira Munhoz, interventor federal interino, um telegrama
nos seguintes termos: “O Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, cheio de júbilo pela pro-
vimento do seu digno primeiro secretário, dr. Plinio Airosa, na cadeira de tupi-guarani, criada
pela clarividência do dr. Armando de Sales Oliveira na Universidade de S. Paulo, apresenta a v.
exa. calorosas felicitações por esse ato acertado, com que são tão justamente aquilatados a
atividade patriótica, o talento e a cultura geral e especializada do ilustre paulista, nosso pre-
zado consócio. Deus guarde a v. exa.” [...] Falou, ainda, o sócio efetivo dr. Plinio Airosa, para
agradecer ao Instituto o interesse tomado pela criação da referida cadeira e também a maneira
como havia recebido a notícia da sua nomeação para regê-la. Declarou que a sua maior alegria
não provinha tanto do fato de ser escolhido para professor de uma matéria, que constituíra a
preocupação de tantos espíritos de escol em nossa terra mas principalmente, da sua criação
pelo governo, satisfazendo assim uma velha aspiração do grande Visconde de Porto Seguro,
Francisco Adolfo de Varnhagen. (1940: 248. Grifo nosso)

A nomeação de Ayrosa é uma conquista do instituto, de suas relações pessoais e de um


projeto político de história que buscava afirmar o papel de São Paulo na construção de uma his-
tória nacional, para o que a área dos estudos etnográficos era fundamental, pois, para estudar
São Paulo, era preciso estudar seus antecedentes, “a raça de gigantes.” Tendo sido a cadeira
de etnografia e tupi-guarani articulada pelo seu presidente, a nomeação de um consócio era

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Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)

mais do que esperada. Ayrosa era, então, o nome dos estudos em tupi-guarani da instituição,
conhecido de Armando Sales de Oliveira, e sobretudo no ano precedente ao da criação da USP
figura recorrente nas atas das sessões. A definição para essa cadeira é anterior à de Taunay,
sócio mais antigo e que veio a ocupar a cadeira de história da civilização brasileira.
Na correspondência trocada com seu amigo Archimedes, vê-se a confirmação do signifi-
cado político que teve a campanha pela instituição dos estudos da língua tupi:

Meu bom Archimedes.


Recebi, satisfeitíssimo, as suas felicitações por motivo da minha indicação para servir como
professor de tupi. Satisfeitíssimo, não propriamente por ter sido eu o escolhido, mas, por ter sido
alguém, o que significa a vitória da campanha. [...] Com o início regular do curso, em março
próximo, veremos quais são as disposições da nossa gente a respeito dessa inovação realmente
sensacional...
Um jornal paraguaio disse há pouco que “don Plinio Ayrosa quedará en la história de la lengua
guarani como él primeiro professor que tuve el mondo”, oficialmente, etc., etc. Essa glória de
ser o número 1, para nós colecionadores de Revistas e de Caretas, acho altamente sedutora!
(Guimarães, 1982: 15)

A coincidência levantada por Plinio Monteiro em seu discurso em homenagem à posse


de Ayrosa como catedrático – de haver sido criada uma cadeira para os estudos sobre tupi –
serve para inscrever a experiência do curso de história e geografia como uma extensão dos
esforços do instituto, o que faz, aliás, com que não seja só uma coincidência. É o instituto
espraiando seu saber-fazer pelas novas instituições que surgiam. A expectativa na formação
desse futuro profissional no curso da FFCL é condizente com a preocupação do IHGSP em
demarcar uma identidade regional (Ferreira, 2002: 130). As ações do IHGSP incluíam um
esforço para estimular as pesquisas sobre etnografia e etnologia indígenas (Idem: 138), que
teriam a função de buscar os elementos indígenas que constituíram uma história paulista,
composta pela ação civilizatória portuguesa e pelas qualidades guerreiras das populações
nativas.9
As palavras do próprio Ayrosa são um bom indicativo de como via esse conjunto de
circunstâncias. Sem perder de vista a (falsa) modéstia que às vezes aparece nos discursos
proferidos, ele, em público, comemora a conquista não pela sua indicação, mas pela criação da
cadeira, ato político que classifica como extensão das aspirações de Varnhagen, aparentemen-
te levado a cabo pelo presidente do instituto junto a Armando Sales de Oliveira.10
A modéstia com que agradece as congratulações é deixada de lado, no entanto, na sua
correspondência pessoal. Ayrosa repete junto a Archimedes seu contentamento com o resul-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 539-548, maio-agosto 2019 539
Aryana Costa

tado da campanha – “satisfeitíssimo não propriamente por ter sido eu o escolhido, mas por
ter sido alguém, o que significa a vitória da campanha” – e se permite deliciar-se na glória de
ser o “primeiro professor de língua tupi do mundo”.
A criação dessa cadeira na universidade é indicativo de quanto, desde o discurso inau-
gural de seu primeiro presidente, o instituto “estava certo” em insistir na salvaguarda dos
estudos em língua tupi. Sua ocupação é feita por um indivíduo a quem o IHGSP vinha acom-
panhando mesmo antes de entrar como sócio – “não ser S. S. um desconhecido nesta casa de
trabalho que é o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo” – e que, uma vez lá dentro,
desempenhou mais de uma função, ou seja, a quem o instituto poderia dizer, de fato, que era
um de seus filhos.
Essa era uma via de mão dupla. Tanto o instituto podia reivindicar Ayrosa quanto este
reivindicava o instituto. Seu currículo publicado no Anuário da FFCL de 1934-1935 mostra
que seu vínculo de maior expressividade são as academias a que pertence. Entre elas, o maior
cargo é o de secretário-geral ocupado no IHGSP:

Bacharel em letras pelo antigo Ginásio Ciências e Letras e graduado em engenharia pela Escola
Politécnica do Rio de Janeiro.
Obteve o primeiro prêmio de literatura, instituído pelo Jornal do Brasil em 1917 e direito ao
prêmio de viagem à Europa para aperfeiçoamento de estudos. Encarregado de um Curso de
Tupi no Centro do Professorado Paulista. Secretário Geral do Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo e membro dos Institutos Históricos do Rio Grande do Norte, Baía e Santa Catarina.
Membro titular da Société des Americanistes de Paris, da Société de Linguistique de Paris e da
Academia Paulista de Letras. (Anuário 1934-1935: 329)

Quando entra para o quadro de professores da recém-criada FFCL, Ayrosa carrega con-
sigo, como marca maior, sua identidade como pesquisador da língua tupi chancelada pelo
seu pertencimento ao Instituto Histórico e Geográfico. É essa lógica de produção que se verá
presente nas suas proposições para a cadeira.
Aqui talvez valha a pena retomar ainda a questão das redes de sociabilidades. Como
já visto, Theodoro Sampaio foi o elemento de ligação entre São Paulo, Itália e França para
a montagem do quadro docente da universidade. Quando morre, em 1937, o IHGSP decide
promover homenagens ao seu sócio fundador, escolhendo como um de seus oradores jus-
tamente Plinio Ayrosa. O texto depois publicado rende reflexões de duas ordens – uma que
reforça o argumento sobre as relações pessoais como regime de legitimação para produção
historiográfica do período, e a criação da USP como sua extensão, e outra que dá a ver a ideia
de historiador que Ayrosa tinha.

540 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 540-548 maio-agosto 2019
Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)

A fama de Sampaio vem de seus trabalhos como engenheiro, mas também de seu inte-
resse pelos estudos em história, geografia e em língua tupi-guarani. O nível da proximidade
entre os dois (Sampaio e Ayrosa), porém, é o que aqui nos interessa. A figura que definiu
os professores estrangeiros que viriam para São Paulo foi de uma grande proximidade com
Ayrosa, que chama Sampaio de grande amigo (RIHGSP, 1937, p. 273) e de saudoso mestre
(Idem: 276). Perto da morte de Sampaio, Ayrosa o levou para passear em São Paulo, e um dos
lugares a que o acompanhou foi a FFCL. “Levei-o à Faculdade de Filosofia e tentei levá-lo à
presença do Dr. Armando Sales de Oliveira, a quem, pouco antes, elogiara entusiasticamente
pela criação da cadeira de tupi-guarani em nossa Universidade” (Idem: 277).
Sendo seu mestre, Theodoro serve como pretexto para Plinio Ayrosa definir as
qualidades de um bom historiador. Em verdade, Ayrosa define a atividade de fazer trabalhos
históricos, pois, assim como ele mesmo, Theodoro, Taunay e Ellis Junior, nenhum deles é de-
finido naqueles tempos somente como historiador. Suas formações são das mais díspares
(engenharia e direito), e a definição que mais circula entre eles é a de “estudiosos”. De modo
que a competência de Theodoro é estabelecida por sua diligência, humildade e, especialmente,
afinco nos estudos:

Sua vitória inconteste, a sua vitória positiva no campo das pesquisas históricas e no penum-
broso ambiente vasto da linguística ameríndia, ele a atingiu graças ao próprio esforço, graças
à sua tenacidade e, sobretudo, graças ao equilíbrio mental que soubera estabelecer desde os
seus verdes anos de juventude.
Ao contrário de muitos historiadores contemporâneos, nunca se aventurou a conclusões históri-
cas sugeridas por documentos e estudos fragmentados, como nunca julgou os vultos históricos
à luz exclusiva de seu critério pessoal. (Idem, p. 274)

Ayrosa leva para a faculdade essa pressuposição do que deveria ser o fazer historiográ-
fico, que vinha de seu convívio com pessoas que tinham a mesma bagagem. O texto para o
Anuário da FFCL do “primeiro professor de língua tupi no mundo” falando sobre a orientação
geral do curso se preocupa principalmente com as condições de pesquisa. A tarefa que arroga
para a cadeira é, primeiro, a de organizar material de pesquisa para os estudos em etnografia
e tupi-guarani no país. Como não havia, naquele momento, obra que conseguisse dar conta
do estado da arte etnográfica no país, devia a cadeira “ocupar-se principalmente na coleta
imediata do vastíssimo material de que se há de servir, tentando fixar, na caótica literatura
especializada, as linhas diretoras de sua conduta” (1934-35: 142).
Ayrosa queria construir um “edifício etnográfico nacional” (Idem: 143), pois até então só en-
contrara obras que se confinavam a “minúsculas áreas étnicas” que “esquadrinham minúcias não
raro ridículas de um dado grupo social que o acaso pôs ao alcance de suas vistas” (Idem: 141).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 541-548, maio-agosto 2019 541
Aryana Costa

Assim é que os primeiros passos da cadeira, sua função na FFCL, seriam necessariamente os de

reunir o quanto se encontre esparso pelas vastas bibliotecas nacionais e estrangeiras, capaz
de servir ao seu ideal construtivo [...]. Logo após, ou concomitantemente se for possível, com
a mesma largueza e tolerância, arrecadar e canalizar, para os museus brasileiros, as sobras
documentais etnográficas [...] que ainda não hajam deixado se esgueirar para o estrangeiro.
(Idem: 143)

Ayrosa arrola ainda, como tarefas da cadeira,

a criação de um Museu etnográfico segundo os princípios científicos modernos; a formação


de uma biblioteca especializada, servida por fichários práticos e racionais; a organização de
uma bibliografia minuciosa não só de etnografia brasileira como das ciências e artes conexas;
a formação de um arquivo de fotografias, mapas, filmes cinematográficos, discos gramofônicos,
etc.; a organização anual de uma série de conferências a serem realizadas por especialistas e
membros das missões, religiosas ou não, empenhadas na catequese dos atuais indígenas do
Brasil; publicação de obras inéditas, reimpressão de esgotadas e clássicas, e tradução das es-
trangeiras consideradas indispensáveis ao estudo de nossa etnografia; inclusão nos programas
dos cursos pré-universitários, diretamente ligados à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
pelo menos, de noções de antropogeografia, de pré-história e de sociologia e, finalmente, a
publicação de um boletim de Etnografia que mantenha em íntimo contato os alunos com as
produções modernas, servindo como vulgarizador de trabalhos acadêmicos, estimulador de es-
tudos e de tendências mentais aproveitáveis. (1934-35: 147-148. Grifos nossos)

As atividades listadas constituem exatamente a mesma série de atividades previstas


no estatuto de 1932 do IHGSP – e pelas quais, como primeiro secretário, o próprio Ayrosa era
responsável:

Art. 1.0 – O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (...) tem por finalidade promover o
estudo, seu aperfeiçoamento, e a divulgação da história e da geografia precipuamente de São
Paulo.
§ único - Para consecução de sua finalidade, o Instituto:
a) realizará sessões ou assembleias gerais, ordinárias e extraordinárias, para os sócios; especiais
para a diretoria e uma sessão magna anual;
b) manterá uma biblioteca e mapoteca;
C) manterá um arquivo e museu;
d) manterá correspondência e permuta de publicações com as sociedades congêneres, nacio-
nais e estrangeiras;
e) manterá a publicação de uma revista;
f) promoverá excursões e festas cívicas. (RIHGSP, 1933-1934: 467. Grifos nossos)

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Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)

A preocupação com as funções de ensino-aprendizagem da cadeira vem por último, o


que se reflete também no seu programa de cátedra no Anuário. Depois de estabelecidas as
condições para a formação de “ambiente propício às pesquisas e aos estudos sérios” (Anuário
1934-35: 144), “restam duas palavras” a falar sobre a atuação externa da cadeira – porque
todas as outras eram do que Ayrosa chama de âmbito interno –, sobre “a orientação que
dará aos seus cursos acadêmicos regulamentares” (Idem: 145), que amadureceriam com o
desenvolvimento das atividades internas. Ayrosa, assim como outros professores no Anuário,
reconhece a formação precária dos alunos e, por isso, acredita que é preciso começar pelas
noções de etnografia geral para só então “estudar a etnografia indígena brasileira sem neces-
sidades de se deter em minúcias” (Idem: 146).
A parte de tupi-guarani é abordada separadamente. Ayrosa tece considerações sobre as
contribuições e os limites de dois dos principais documentos com que se poderia trabalhar: os
dicionários de Padre Anchieta e Montoya. De novo, a preocupação de Ayrosa é com a prepa-
ração de material adequado para os estudos de tupi-guarani. Isso para responder aos que se
perguntavam se o curso ensinaria os alunos a falarem tupi: “O plano essencialmente cultural
da nossa Faculdade jamais comportaria um curso com finalidades práticas, isto é, em que se
cuidasse de ensinar a falar esta ou aquela língua, este ou aquele dialeto” (Anuário, 1934-35:
150. Grifo do autor). A finalidade da faculdade, no texto de Plinio Ayrosa, era bastante seme-
lhante à das instituições a que pertencia: organizar o conhecimento para a continuidade de
sua produção.
Ayrosa e Taunay entraram na faculdade pertencentes a um habitus que pressupunha
quase exclusivamente o estudo (ou a pesquisa) e afinados com os propósitos iniciais para a
universidade: a de uma instituição para a alta cultura e estudos desinteressados. Esses sujeitos
são reconhecidos como “estudiosos/pesquisadores”, e não como “professores”. É por isso até
que seus textos para os Anuários destoam tanto daqueles de seus colegas estrangeiros que
mencionam a preocupação com a formação de professores como finalidade da Faculdade de
Filosofia.11 Suas considerações se dirigem aos problemas de coleta, organização, seleção e
produção de material para a pesquisa histórica. Pertencem a uma mesma geração, comparti-
lham de uma “memória comum de grupo”,12 e é essa dinâmica que carregam consigo quando
dentro da universidade.
É dentro desse entendimento de geração que se pode interpretar a clivagem entre os
“catedráticos brasileiros tradicionais” e seus descendentes na USP. A universidade começou
por reunir duas gerações diferentes, pois, apesar de convivendo no mesmo tempo e espaço,
vinham de experiências distintas – a estrangeira compartilhava um passado de formação e
prática institucional diferente da nacional.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 543-548, maio-agosto 2019 543
Aryana Costa

Por terem se formado no quadro das “letras históricas”, no entanto, o tipo de pesquisa
que produziam não encontrou validade dentro das novas regras geradas pelo campo acadê-
mico. Essa clivagem não passava despercebida nem pelos professores nacionais. Embora para
a posteridade tenha sobrevivido a imagem de que resistiam aos professores estrangeiros, o
próprio Ayrosa reconhece sua importância e, sobretudo, a diferença entre eles. Em depoimento
para O Estado de São Paulo, ele discorre sobre o ensino de história e geografia na Faculdade
de Filosofia logo em 1935:

Não foi por vaidade tola ou por luxo que a Faculdade contratou, na Europa, professores dos
mais afamados: não foi para desdenhar dos professores que aqui vivem que chamou outros do
estrangeiro. Em S. Paulo não havia ainda um centro de irradiação cultural organizado, nem um
centro de formação intelectual sistematizado. Os professores estrangeiros vieram exatamente
para nos ajudar a formar esse centro. Trazem-nos os mais avançados métodos de ensino e re-
fletem, aqui, as mais altas conquistas das ciências e das letras europeias. Ora, só quem vive no
ambiente culto e severo das universidades europeias pode transmitir os segredos, os detalhes,
os pequeninos nadas que arcabouçam o prestigio e a eficiência das velhas universidades. Eles
não vieram apenas dar aulas: vieram organizar programas, montar laboratórios, sugerir normas
de ensino, corrigir falhas que nos passavam despercebidas, criar ambiente propício a novos es-
tudos, transmitir-nos, enfim, um pouco de alma universitária. A Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras abre as suas portas a todos os que queiram receber uma cultura sadia e moderna, livre
e desinteressada, e que, com razão, lamentavam a falta, em S. Paulo, de um grande centro de
estudos e pesquisas.
O governo paulista deu-nos o que pedíamos. (13/02/1935: 5. Grifos nossos)

É interessante perceber a divisão nas tarefas. A diferença entre as duas gerações era
a alma universitária que os estrangeiros tinham e que ainda precisávamos criar. Havia dois
regimes de produção coabitando um mesmo espaço. “Sobreviveu” aquele que deu forma
à organização universitária. Essa institucionalização produziu uma terceira geração,13 cuja
identidade nascia dependente desse arranjo que instituía um novo tempo do trabalho (seriado
em anos) e novas formas (coletivas) de produção. Os alunos do curso, por sua vez, passaram
a formar um grupo inédito, com sua própria memória compartilhada sobre o que deveria ser
a produção de história e a formação de historiadores, cujo fator de agregação viria a ser a
ligação com os professores estrangeiros.

Conclusão

A bibliografia sobre a fundação da USP costuma abordar o papel do grupo do jornal O


Estado de São Paulo, pois foi das fileiras de intelectuais, políticos e empresários que o
compunham que saiu o projeto da universidade e de sua Faculdade de Filosofia. Mas, além

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Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)

disso, todos os nomes dos intelectuais brasileiros que constam das primeiras articulações para
a fundação da universidade constam também na lista de sócios do IHGSP: George Dumas, Ar-
mando Sales de Oliveira, Júlio de Mesquita Filho, Theodoro Sampaio. No entanto, ao instituto
é dada pouca importância nesse início de história, ainda que com três de seus sócios como
professores de história.
Melhor talvez seria dizer que não é que o IHGSP esteve “presente” na fundação desse
curso, e sim que o curso de história e geografia foi uma espécie de atividade paralela desses
homens que se propuseram a organizar uma universidade em São Paulo. Falar em “presen-
ça” do IHGSP nas origens do curso dá a entender que este já nasceu como algo definido,
independente e com identidade própria, quando o que se propõe aqui é salientar o caráter de
transição dessa fase na produção historiográfica em São Paulo.
A criação do curso de geografia e história na USP não significou de imediato uma
diminuição no reconhecimento profissional e do papel que o instituto exercia na escrita da
história de São Paulo e, portanto, “da história nacional”. O apelo de seu presidente junto ao
interventor para a criação de cadeiras no novo curso não foi a única ação empreendida junto às
autoridades. Ao contrário. Nos anos imediatamente posteriores à criação do curso, em vez
de um declínio nas atividades do instituto, percebe-se a continuidade das suas boas relações
com a esfera política – houve iniciativas de transferência para uma sede própria construída
pela prefeitura de São Paulo em 1936 (RIHGSP, 1937, v. 32) e um convênio com o governo do
estado para restauração, tradução, catalogação, encadernação e publicação de toda a docu-
mentação presente na Repartição de Estatística e no Arquivo do Estado, por meio do projeto
de lei 2.800, de 28 de dezembro de 1936.
Recebendo as devidas subvenções do estado, até a publicação do volume 32 de sua re-
vista, em 1937, o instituto publicaria seis volumes de documentação: cinco dos “documentos
interessantes para a história e costumes de São Paulo” e mais um de ordens régias, o que lhe
rendeu notícias elogiosas na imprensa (RIHGSP, 1937, v. 32).
O silenciamento do IHGSP nessa história acontece por uma abordagem anacrônica, que
procura enxergar naqueles primórdios aquilo que já estamos acostumados a definir como
“universidade”, “acadêmico”, “profissional” – que é a parte daqueles que “venceram”,
dos que se estabeleceram, em detrimento do que à época era tido como parâmetro para
reconhecimento, a exemplo desses homens que circulavam nesses meios (IHGSP, Academia
Paulista de Letras, Museu Paulista, IHGB etc.) e que também estiveram lá no início de tudo.
Como algo novo, a ser desenhado no seu devir, as atividades de historiador nas décadas
de 1930, 1940 e até meados de 1950 ainda se encontravam no interstício entre um regime

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 545-548, maio-agosto 2019 545
Aryana Costa

“antigo” e um “novo”, que caminhava para definir suas regras de funcionamento, reconheci-
mento, legitimidade e autonomia. Saindo das práticas “amadoras”, via de regra individuais e
ditadas pelo ritmo do próprio indivíduo que estava produzindo, agora era preciso compartilhar
as formas e os fazeres desse saber com terceiros, não mais pelo meio físico que eram os livros,
mas sob novos arranjos: uma grade horária, um espaço físico, uma continuidade no tempo.
O surgimento da USP e o campo de produção de história são aqui considerados tendo
em vista essas condições. Não só as práticas do fazer história se encontravam em processo de
adequação às novíssimas “restrições” de tempo, espaço e sociabilização que a instituição da
universidade produziu, mas a identidade de historiador profissional estavam em busca de um
formato. Sendo um período de transformações para várias das atividades do campo intelectual,
o curso de história e geografia que nasce em 1934 não foge desse quadro. Os modos de ser
historiador e fazer história dos institutos históricos se encontram plenamente no seu nascimento.

Notas

1 Antonio Celso Ferreira ressalta a falta de estudos sobre a “historiografia produzida em São Paulo, princi-
palmente a do IHGSP e a das primeiras décadas dos estudos uspianos, quando passaram por esta instituição
figuras como Afonso de Taunay e Alfredo Ellis Jr., vindos da primeira agremiação” (2002: 174, nota de rodapé
2). Desde 2002, é possível verificar um incremento no número de obras. Vide, por exemplo, Um metódico à
brasileira, de Anhezini (2011); Teorias raciais e interpretação histórica: o Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo (1894-1940), de Mahl (2001); Os documentos interessantes para a história e costumes de São Pau-
lo: subsídios para a construção de representações, de Mendes (2011); e Subsídios para a história da educação
no Brasil: um estudo da eevista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, de Pereira (2013).
2 Os dados biográficos de Afonso Taunay foram retirados de Karina Anhezini (2011).
3 Os dados biográficos de Ellis Junior foram retirados do artigo de John Monteiro (1994). Conferir também o
Capítulo 4 de Roiz (2012).
4 Os dados biográficos de Ayrosa foram retirados de Drumond (1961 e 1964).
5 Ferreira (2002) discute o projeto de história local/história nacional do IHGSP, analisando as práticas e os
temas a que se dedicaram seus associados.
6 Desde 1908, Dumas havia sido indicado pelo Groupement des Universités et Grandes Écoles de France pour
les relations avec l’Amérique Latine para a divulgação das obras dessa organização (Petitjean, 1996: 260). “A
grande figura nesse processo de recrutamento foi o já mencionado Georges Dumas. Profundo conhecedor da
realidade brasileira e amigo de membros da elite do país, Dumas tinha excelente trânsito entre as autoridades
diplomáticas francesas e, ao mesmo tempo, uma inserção importante no campo intelectual e acadêmico
francês. O fato de ser normalien e professor da Sorbonne lhe franqueava o acesso a uma rede de nomes
respeitados, espalhados por diferentes instituições francesas” (Ferreira, 2005: 231).7 A criação da cadeira
de etnografia e tupi-guarani não é o único movimento do IHGSP em relação às questões indígenas nesse
período. No relatório de 1933, a diretoria comunica que conseguiu, com sucesso, a inclusão de sua proposta

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Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso
de história da Universidade de São Paulo (1934)

“para que figurasse na nova Constituição Brasileira direitos civis e políticos em benefícios dos nossos índios”
(RIHGSP, 1933-1934: 418).
8 O trecho é retirado da coletânea de correspondências trocadas entre Ayrosa e Archimedes Pereira Guimarães.
9 Não à toa, segundo Ferreira (2005), uma das grandes controvérsias dentro do instituto se deu em torno da
filiação linguística da tribo guaianá (p. 141-149). Após a confirmação de que era dos tupis, e não dos tapuias,
que os guaianás descendiam – reafirmando, pois, a dignidade dessa descendência –, “estava desobstruído,
portanto, o caminho para o resgate das várias contribuições dos indígenas tupi, de um modo geral, à civili-
zação paulista” (p. 143). Tanto Ferreira (2002: 143) quanto Schwarcz (1993: 130) destacam a presença rele-
vante de estudos etnogeolinguísticos e antropológicos, respectivamente, na produção do IHGSP. Essa preocu-
pação se estendeu à primeira proposta de formação acadêmica de historiadores e geógrafos em São Paulo.
10 Que toma posse como consócio em agosto de 1936. As conexões entre as pessoas ligadas à criação do
curso estão se dando por volta desse momento. Além de Armando Sales, lembremos que Júlio de Mesquita
Filho, outro cabeça no projeto da USP, havia sido eleito para o quadro do IHGSP quatro meses antes da criação
da universidade.
11 A função de formar professores só vai ser assumida, por um motivo bastante prático, diante da necessida-
de urgente de aumentar as matrículas na faculdade em 1935, pois 80% dos alunos de 1934 não se rematri-
cularam, e somente 123 se inscreveram para o novo ano letivo. Somando o total de alunos inscritos, a FFCL
se encontrava com 12 alunos a menos do que no primeiro semestre. Para sanar essa ausência de interessados
na faculdade, que estava apenas em seu segundo semestre de funcionamento, Fernando de Azevedo recorreu
ao comissionamento de professores primários e secundários, que, após aprovação no exame vestibular, seriam
dispensados de suas funções didáticas para fazer o curso na FFCL (Limongi, 1988: 190).
12 “Entendida enquanto testemunho de como um conjunto de homens experimentou um certo ‘tempo’.
Falar de geração nessa perspectiva é falar de relações entre “pessoas” de um mesmo grupo (que podem ou
não ter a mesma classe de idade) e é falar também de relações entre gerações, pois há uma nítida dinâmica
contrastiva nesse processo” (Gomes, 1996: 41).
13 “A noção de geração deve, portanto, transcender a manifestações ‘externas’, resultando de um trabalho
de memória comum de grupo, que identifica sua vivência e a transmite aos seus sucessores que não a com-
partilharam” (Gomes, 1996: 41). Nesse caso, a “geração” de Taunay e Ayrosa não “consegue” transmitir sua
vivência aos seus sucessores, pois a lógica a que pertenciam – e que também estavam eles mesmo criando,
especialmente depois da década de 1940 – já era a de outra instituição.

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548 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 548-548 maio-agosto 2019
Artigo

History of the “human sciences” and


Wallace’s scientific voyage in the
Amazon: notes on historiographical
absences
História das “ciências humanas” e a viagem científica de Wallace
na Amazônia: notas sobre ausências historiográficas
Historia de las “ciencias humanas” y el viaje científico de
Wallace en Amazonia: notas sobre las ausencias historiográficas

Victor Rafael Limeira da SilvaI* 1

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942019000200011

I
Universidade Federal da Bahia (Ufba), Salvador (BA) Brasil.
*
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências, Universidade Federal da Bahia (Ufba),
Salvador, Bahia / Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), Feira de Santana, Bahia. (v.limeiradasilva@gmail.com).
ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-0728-394X

Artigo recebido em 10 de março de 2019 e aprovado em 5 de julho de 2019.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 549-563, maio-agosto 2019 549
Victor Rafael Limeira da Silva

Resumo

Este ensaio analisa uma bibliografia historiográfica particular com o objetivo de abordar a divergência entre história
e história da ciência. Defendo que a ausência da história das ciências humanas na historiografia da ciência expande a
distância entre a história da ciência e outras disciplinas dos estudos históricos. Para ponderar essa hipótese, analisarei
a historiografia sobre a viagem científica de Alfred Russel Wallace na Amazônia (1848-1852), argumentando que a
omissão da dimensão etnográfica dessa expedição expõe aspectos importantes para compreender a natureza da tal
dissensão e seus efeitos na construção da história das ciências humanas.

Palavras-chave: Historiografia; História da ciência; História das ciências humanas; Wallace; Amazônia;
Etnografia.

Abstract

This essay analyses a particular historiographical bibliography with the aim of addressing the divergence between
history and history of science. I argue that the absence of the history of the human sciences in the historiography of
science expands the distance between the history of science and other disciplines of historical studies. To ponder this
hypothesis, I will analyse the historiography of Alfred Russel Wallace’s scientific voyage in the Amazon (1848-1852),
arguing that the omission of the ethnographic dimension of this expedition exposes important aspects to understand
the nature of such dissension and its effects on the construction of the history of the human sciences.

Keywords: Historiography; History of science; History of the human sciences; Wallace; Amazon; Ethnography.

Resumen
Este ensayo analiza una bibliografía historiográfica particular con el objetivo de abordar la divergencia entre historia e
historia de la ciencia. Sostengo que la ausencia de la historia de las ciencias humanas en la historiografía de la ciencia
amplía la distancia entre la historia de la ciencia y otras disciplinas de los estudios históricos. Para reflexionar sobre
esta hipótesis, analizaré la historiografía del viaje científico de Alfred Russel Wallace en la Amazonia (1848-1852),
argumentando que la omisión de la dimensión etnográfica de esta expedición expone aspectos importantes para
comprender la naturaleza de tal disensión y sus efectos en la construcción de la historia de las ciencias humanas.

Palabras clave: Historiografía; Historia de la ciencia; Historia de las ciencias humanas humanidades; Wallace;
Amazonia; Etnografía.

550 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 550-563 maio-agosto 2019
History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences

Introduction

T he isolation of History of science in the Historical Studies is a well-debated theme.


Thomas Kuhn (1977) even defended that this “tension” defines the very discipline’s
identity. Those who sought to appraise this gap focused so much on the isolation that it was
constructed as “the cause” of itself and not evaluated as a possible “result” of other issues;
one of these is the opacity of the history of the human sciences, which is an unexplored topic
even among the densest analyses of the schism.
I support the idea that the history of the human sciences’ non-place expands the distance
between History of science and History tout court. I intend to approach the schism in a
somewhat different way from how it was scanned so far: exploring a particular historiographical
bibliography to verify implications of this absence in the isolation of the History of science in
the Historical Studies.
An overall approach to the “history of the human sciences” would be impossible, since
it is constituted by small-scale studies and even claiming that they are part of a single field
is not a simple task. Thus, in order to produce effective analyses, I shall limit my scope to
the 19th century Ethnology and Anthropology, knowledge fields very close to what would be
now regarded as “human sciences” and yet not reducible to this category because of their
emergence as an offshoot of both biological sciences and philological studies.
The historiographical sample from which I am going to ponder my hypotheses is about
the Amazonian scientific voyage of the British naturalist Alfred Russel Wallace (1823-1913).
A hundred and seventy years ago (1848) Wallace began his collecting journey along with the
naturalist-collector Henry Walter Bates (1825-1892), who remained in the field for eleven
years, while the former concluded his journey in 1852 with a tragic return to England, caused
by a shipwreck that destroyed most of his personal collections.
This essay does not deal with this collecting voyage itself, but with the historiography that
painted its image. Regarding this enterprise, historians evidenced, for instance, Wallace’s first
systematised speculations about species distribution and riverine barriers to migration and also
his ideas of the role of divergence of varieties and mimetism to evolution, topics that have led
scholars to realize impacts of the expedition to many fields of knowledge in the 19th century.
Nevertheless, these achievements are not equally applicable for inquiries into the relevance
of Wallace’s voyage to the Victorian “sciences of man”, and even less, if one thinks about the
receptions of his ethnography in early Brazilian Anthropology and Ethnology from the same period.
This essay intends to raise questions regarding this gap, which results from a scission
between fields of knowledge, which until the beginning of the 20th century dramatically differed

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 32, nº 67, p. 551-563, maio-agosto 2019 551
Victor Rafael Limeira da Silva

from current academic human sciences, and whose epistemological grounds and sets of practices
cannot be understood as based in the a priori of the “two cultures” thesis (Snow, 1959).
I will argue that the undervaluation of the ensuing ethnography from Wallace’s
expedition results from two other aspects, which are rooted in the historiography of science
and demonstrable in the Wallaceanna.1 The first regards the limitation of History of science to
the “natural sciences”, expressing an ahistorical view of the “human sciences” as a category
that puts historians and historians of science in paradoxical situations. The second concerns
the double displacement that the history of the human sciences requires: it depends on the
harmonisation between “diachrony” and “synchrony” and claims a radical historicisation of
the very object, man, which humanities have usually taken for granted.
This essay is arranged in a section of historiographical analysis and a section of general
statements. The works to be analysed are classified in sets: A) Works that deal directly with Wallace’s
Amazonian journey; B) Works that deal indirectly with Wallace’s Amazonian journey and; C) Works
on Wallace’s anthropological views that deal directly/indirectly with Amazonian ethnography. Sets
C and B initiate the discussion in order to show that the fragmented image of the voyage usually
presented derives from similar absences in the more specialised literature of Set A.

A symptomatic picture of a Wallaceana historiography

T his section is dedicated to analysing a part of the Wallaceana historiographyana. In


order to have these specific sets of texts, I considered not only their direct or indirect
reference to Wallace’s Amazonian voyage or to his anthropological thought, but also their re-
levance to the discussion. The criterion of relevance was based on bibliometric considerations,
choosing the most cited among the works of greatest reference. The terms searched in order
to classify the texts are Brazil, Amazon, Natives, Indigenous, Savages, Anthropology, Ethnology
and Ethnography. The texts that evidence most of the references are the ones that will receive
more reasonable considerations.

Works on Wallace’s anthropological views that deal


directly/indirectly with Amazonian ethnography

S mith (1972), Kottler (1974), Degler (1991), Browne (1992), Camerini (1993), Seaward
and Fitzgerald (1996), Fichman (2001), Knapp et al. (2002), Horta (2003), Smith (2004),
Vetter (2006), Caso and Gutiérrez (2007), Moreira (2009), Ellen (2011), Kuklick (2011), Bick-
erton (2014) and Ferguson (2015) are part of Set C, which includes works that omit most or

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History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences

all of the above-mentioned terms and/or do not articulate them mutually. For this reason, they
have no utility for historiographical analysis, but illustrate how the absence in Set A of inquir-
ies into Wallace’s ethnographic data may reflect on the appropriation of the historical image
of this scientific journey in other works that may seek to deal with it. Brotman (2001), Lyons
(2009), Benton (2010), Lowrey (2010) and Flannery (2018) also compose Set C, but amidst
the tending absence referred to allow to make brief notes.
Brotman (2001) has one of the few works dedicated to Wallace’s connection with Victorian
Anthropology, which has as material the naturalist’s collected data and speculations regarding
the human perceptions of sound. Lyons (2009), in turn, composes the narrow group of works
about Wallace’s evolutionary science in its relationship with Anthropology and Spiritualism,
but just anticipating some questions responded more densely by Sera-Shriar (2018).
Benton (2010) brings Wallace’s experiences with Amazonian and Malaysian2 natives to
the core of the debate with Darwin on human evolution and sexual selection. As for the
Amazonians, he focuses only on Wallace’s own impression of the people in a “state of
nature”. While Lowrey (2010) proposes a reading specifically on Wallace’s legacy to British
Anthropology, but the naturalist’s interaction with Amazonian natives, unfortunately, consists
of only a paragraph.
More recently, Flannery (2018), in one of his chapters, resumes the discussion about the
recurrent disagreements between Wallace and Darwin concerning humankind in evolution.
The allusions to the naturalist’s field experience are limited to the journey in Malaysia and
without connection between ethnographic productions and Ethnology, or Anthropology as
scientific fields.

Works that deal indirectly with Wallace’s Amazonian


journey

G eorge (1964), Raby (2001), Fichman (2004) and Beccaloni and Smith (2008) compose
Set B of the analysed historiography.
George (1964) elaborates explanatory schemes of the naturalist’s main ideas and draws
general pictures of the reception to his thought in the 20th century. The expeditions to Brazil
and Malaysia are treated as a single block and although emphasising Wallace’s studies about
native languages, she restricts it to the material collected in the Asian islands from 1854.
Raby (2001) combined a good recovery of the naturalist’s personal records with his
letters, main texts and cross-sources from other scientists. The title he gave to Chapter Three,

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Victor Rafael Limeira da Silva

“Apprenticeship on the Amazon”, indicates exactly the interpretive model of the “failure” of
Wallace’s Amazonian voyage. It would not be a question of taking the term “apprenticeship”
literally or not to consider that in fact, this journey was quite amateurish if compared to the
expedition in Asia, but it would be important to point out how the repetition of this thesis
reached the 2000s practically intact.
Fichman (2004) unleashed a series of articles that analyse specific dimensions of
Wallace’s thought, among them are his contacts with Natural Theology, Spiritualism and social
reformist ideas. As for Wallace’s passage in Brazil, the historian maintains a similar position
to the previous ones, briefly exploring Wallace’s contact with the natives, although no longer
defending the thesis of the “failure” of this expedition.
The collection organized by Beccaloni and Smith (2008), having as subtitle “The
Intellectual Legacy of Alfred Russel Wallace”, undervalues his legacy to sciences such as
Ethnology and Anthropology. Even in the texts in which Wallace’s social and political thought
are topically addressed, the connection of his ideas with these specific fields of 19th century
science is left to the reader’s own interpretation, limited by descriptions of the naturalist’s
achievements within the natural sciences. The only exception seems to be Ted Benton’s chapter
that describes Wallace’s contacts with native groups, however, not proposing or indicating his
contributions for the development of the British anthropological tradition.

Works that deal directly with Wallace’s Amazonian


journey

B eddall (1969), Ferreira (1990), Knaap (1999), Camerini (2001), Moreira (2002), Egerton
(2012), Lima (2014), Van Wyhe (2014), Vetter (2010, 2015) and Hemming (2015) repre-
sent Set A of the selected historiography.
Beddall (1969) was one of the first to abandon monumental interpretations of the history
of the evolutionary triad Darwin-Bates-Wallace. However, what she set out to do about the
history of the Wallace-Bates’ Amazonian expedition was basically to underreport its scientific
results in relation to those from Wallace’s Asian journey.
Ferreira (1990) does not extrapolate the “nucleus” of scientific discussion of the early
Darwinian-Wallacean collaborations: varieties, mimetism, geographical distribution and
migration. Thus, Wallace and Bates’ observations and speculations concerning native groups
from the Amazon basin are reduced to a superficial description of local characters highlighted
in their narratives (Wallace, 1853; Bates, 1873), not seeming to imply for the theoretical
project that Wallace began to delineate in the middle of the Amazon rainforest.

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History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences

In Knapp (1999) there is not an integrated understanding of ethnography-scientific


collecting-knowledge production, with the exception of Botany, her main topic. Wallace’s
ethnological propositions are not discussed and is noteworthy the a priori scission between
scientific fields that underestimates the implication of these ideas for the theoretical
groundwork for the theory of evolution by natural selection.
Camerini’s (2001) aim is to systematise reading clues for those interested in knowing the
most remarkable aspects of the naturalist’s field experiences within the biological sciences. As
for Wallace’s dedication of his entire last trip in the Upper Rio Negro observing and recording
the native groups, she only points out that his interest in native human populations was similar
to his curiosity about insects and plants.
Moreira (2002) has importance because it highlights the process of knowledge
construction linked to the exchange of information with natives, but reduces such collaboration
to the scope of Botany and Zoology, without mentioning the scientific interest in the native
groups themselves and in their ways of living. This view also applies to Egerton (2012), who
articulates important aspects to reflect upon the natives’ collaboration to theory development,
although no reference is made to Ethnology or Anthropology in this work.
Lima (2014) presents the network of relations which Wallace used with a view to
optimising his journey in the northern provinces of Brazil. The allusions to Wallace’s ethnography
are sparse and rather aim at pointing out the collection of “natural” data than the interaction
itself as a part of the knowledge production in the areas of the study of man.
Van Wyhe (2014) brought up a controversial debate about the history of the Wallace-
Bates joint expedition. His central aim is to put under evaluation the assertion that this voyage
was thought and carried out under the conscious search for a solution to the problem of the
origin of species. In addition to the view of this voyage only as a means of making a living, the
author does not consider the implications of their joint work in increasing knowledge about
interesting human groups for the British anthropological thought.
Jeremy Vetter systematically studied Wallace’s Anthropology. Vetter (2010), which
presents Wallace’s tenuous relationship with Anthropology and Ethnology at the British
learned societies, is a notable example. In this article, field experiences are defined as essential
starting points, but his limitation is the almost inexistent data from the Amazonian voyage.
Hemming (2015) analyses the field work of the British triad Bates-Spruce-Wallace. A
notable feature is the look he proposes about the interaction of these travellers with riparian
indigenous groups and inhabitants of the deep Amazon forest. However, not taking this
contact under the theme of Ethnology and Anthropology as scientific fields that have benefited

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Victor Rafael Limeira da Silva

from the collecting along with the native populations, and as an intrinsic part of knowledge
production in the 19th century Natural History.
In the works of Set C about which there were more themes to discuss besides absences,
the analysis demonstrates how flagrant is the issue I seek to review. All of these are works
that somehow direct their interests towards Wallace’s conceptions and legacy to areas of
knowledge closely related to the Anthropology and Ethnology from the 19th century, what
further confirms the sharpness of the absence.
The undervaluation of the scientific inquiries into man states that the problem is not
only broad and complex, but also recurrent. I take this problem, in part, as a longer reflection
of misunderstandings about the history of scientific fields emerged from the late 18th century
“epistemological shift”, from which 19th century “sciences of man”, such as Philology,
Sociology, Psychology, History and Anthropology originated (Foucault, 1970).
The main of these misreadings is the relevance given to the argument of the “intrinsic
reflexivity” of the human sciences as a criterion of demarcation with the natural sciences
(Mazlish, 1998). This demarcation view leads to disregard that the “self-knowledge” that
results from human sciences is what changes the subject, and not the “knowledge” itself
that changes people and not nature (Smith, 2005). The opacity of fields such as 19th century
Anthropology and Ethnology is a direct product of this demarcation argument, which imposes
natural sciences as an interpretive model for the history of scientific fields mistakenly assumed
to have proper forms of understanding only from the 20th century as academic disciplines.

Conclusive thoughts

I t is well known to historians of science that the hybrid condition of their discipline places
them in difficult positions within the knowledge community. In the case of the history of
the human sciences, this ground is even more contested because besides lacking a dominant
narrative pattern, this field is located at the intersection of three others: History of science,
Intellectual history, and History of ideas (Smith, 1997a: 23).
Many possible causes for the distance between historians tout court and the History of
science have been raised and debated: the omission of historical literature about science in
historians’ academic formation; the restriction of historians’ interest to scientific programmatic
texts; the view of the histories of science and technology as a single process; the disputes as
to whether the “nucleus” of science could be historically or sociologically comprehended; and
an increasingly restricted pattern of expertise within knowledge fields (Gavroglu, 2007: 60-63;
Kuhn, 1977: 132-151; Shapin, 1992).

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History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences

According to Thomas Kuhn (1977: 158-161), all the causes could be confronted and
even overcome with the progressive diversification and expansion of the History of science,
although the central root of the problem would be hardly cut off. For him, the consolidation
of the “two cultures” discourse is the fundamental basis of the major quarrel between the
History of science and the Historical Studies.
With the changes that led to the construction of the scientific History in the 1930s under
the Annales’ model, historians began a quest to keep pace with the academic and social
development of the natural sciences. In his reflections concerning the “humanisation of the
humanities”, historian François Dosse (2018) exemplifies how the process of scientificisation
of History by the founding fathers of the Annales School distanced the field from science, at
the same time that sought to take its new references from it.
Changes such as those occurring in Physics in the early 20th century were felt by historians,
mainly by the shift of perspective regarding the “referent observer”. But the direction that they
took was towards the scientific models still under the principles of classical Physics, such as
Durkheimian Sociology, thus leading to structuring and deterministic constraints in the view of
science advanced among them (Dosse, 2018: 454-455).
This is exactly what Kuhn (1977: 157) refers to when he says that historians “too have
tasted the forbidden fruit of the tree of knowledge”. Not being the “unscientific” rhetoric of
classical humanities interesting anymore, History defined itself as scientific, which would have
made its role ambiguous in seeking to historicise sciences. Since History itself is one of the
scientific disciplines, when historians are led to analyse past sciences, they feel a shift in their
métier, as if they are swerving themselves to practices concerning Epistemology.
From the causes listed above, Steven Shapin (1992) draws attention to the debate
between the views of the “nature of science” as being determined in a sociocultural way or
epistemologically isolated from the surrounding context. For him, one of the most striking
reverberations of the “two cultures” problem took place in the issue of “internalism/
externalism”, which marked the historiography of science until the late 1980s.
Being a debate that Shapin considers little seriously explored, its consequences would
benefit from the crystallisation of the notions that guide the radical distinction between
humanities and natural sciences in the academic behaviour. From the question of research
funding to the literature offered in university courses, a massive influence of the “authority”
of science could be perceived in a perspective very close to the Positivism from the early
20th century. Thus, instead of favouring integration among the fields, this influence would

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Victor Rafael Limeira da Silva

fuel hostilities resulting from a vision of science embraced by the humanities, but today little
defended by the scientists themselves.
According to Shapin (2010: 378), the major strongholds of “belief in the existence,
coherence and power of the Scientific Method” are found in departments of the human
sciences, not in those of the natural sciences. This assertion is not only corroborated by what I
pointed out from Dosse (2018) about the constitution of the scientific foundations of History in
the early 20th century, but also by other historians of science, such as Peter Dear (1995: 153),
for whom internal inconsistencies in theoretical communication within historiography result
from what he classifies as a “reestablishment” of the division internalism/externalism, this
time under the old binary pair nature/culture.
Differently from the approach that the Annales’ Scientific History maintained with
Social Sciences in its objectivist and structuring perspective (Dosse, 2018: 305), the new
historiography of science, resulting from the influence of Kuhn’s theses upon British and
French Sociology and Anthropology of Knowledge, renounced master narratives and turned
increasingly to the particular and contingent. This turn made room in the historiography of
science for the application of the “principle of symmetry” from the Bloorian Sociology of
Scientific Knowledge, and later of the “generalized symmetry” principle from Bruno Latour and
Michel Callon’s Anthropology of Science (Ibid.: 441-442).
At this point that Shapin (1982) calls “sociological reconstruction” of the historiography
of science, one finds clues to think of the possibilities of overcoming the opacity of the history
of the human sciences in the specialised historiography, as well as its implication for the wide
schism between History and History of science.
This movement would have fomented a radical historicism in the approaches to science,
leading to the consideration of all agents in the development of scientific knowledge beyond
the human (Dosse, 2018: 442). In the case of the human sciences, for which the human is both
a means and an end, this radical historicism would produce approaches to past scientific ideas
and actions through the terms of its own epoch, avoiding the application of Whiggish notions
in the study of the history of these disciplines.
The prominence of ahistorical views about the humanities, largely as a result of the
updating of Whiggish vices, has kept the double isolation of the history of the human sciences
off the list of points to be highlighted in the debate regarding the distance between History
and History of science. Taking into account that the history of sciences, such as Ethnology and
Anthropology, have not hitherto held a prominent position in theoretical and historiographical

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History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences

debates, it could emerge with less biased possibilities to reduce part of the distance between
History and History of science.
Two main aspects can be mentioned in this regard. The first is that, for historians, the
category “human sciences” is both “ahistorical” and describes a “strange” field located in a
transdisciplinary space. This notion derives from the fact that, for History, its creative process is
based on the act of finding within selected events narrative structures to explain them, whereas
historians of science must impose a narrative form to its object of study. Thus, while History
believes that the “verifiability” of its work is given by a “transparent” narrative construction
and not by analyses of ideas and concepts, History of science engages directly with theory,
since its own object is the reflexive construction of systems of sense (Smith, 1997a: 27).
The second is that the rejection of “disciplinary history” is a ground for historians’
misunderstanding about science’s historical dimensions. What they consider as amenable to
historical analysis are science’s “external” relations and not the “internal” ones that give
it its own development, quite distinct from the general context. The exception seems to be
solely the history of the arts, literature and music, with which historians have long been
engaged. Thus, agreeing with Kuhn (1977: 152-155), historians’ resistance would not be to
science itself, nor to all kinds of disciplinary history, but only to those that require certain
epistemological shifts.
The history of the human sciences exemplifies the way in which these two aspects
are manifested. It would not be suggested that this field could lead historians to an actual
approximation with History of science because its themes are more familiar than, for example,
history of Physics or Chemistry, but by being academically established it would lead historians
to overcome some barriers, which prevent them from acquiring a better understanding of the
métier of historians of science and human sciences’ own historicity.
One of the barriers results from the very constitution of the human sciences. Unlike the
natural sciences, their “object” occupies a simultaneous place of “subject-object”, being this
ambiguity, for instance, denser in the case of Anthropology; and while studying its object,
these sciences modify it by the very process of self-knowledge. Thus, the history of the human
sciences would be a narrative of the human self-creation and a reflexive investigation not
only about how the past human sciences studied “human nature”, but also about how, at
the same time of the quest to understand “human nature”, these sciences change it radically
(Smith, 1997b).
This operation would overcome the gap between “Academic History” (the voice of the
past) and “Philosophical History”, the self-reflexive voice with which we understand ourselves

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as historical beings. According to Smith (1997a: 13), such a dichotomy has generated the
division between writing history with and without theory punctuated earlier. This bipartition
would derive from one of the dimensions of the consolidation of Academic History: the
structuring of its method based on the strict notion of “diachrony”.
Rejecting “synchronic” analyses usually employed by disciplinary histories, which seek
to understand relations between ideas, concepts, and theories contemporary to each other,
History claims its share of “scientificity” conquered by notions such as “verified past” that
would guarantee “neutrality” and “objectivity”. As Kuhn (1977: 156-157) pointed out,
historians perceive their craft as similar to the sciences that History of science studies; sharing
this “scientificity” would prevent them from accepting two preconditions for reducing the
schism between the fields: that only by comprehending itself as “narrative” History could
radically historicise science and that the history of the human sciences would lead historians to
understand that this field, unlike the history of the natural sciences, is part of the very process
of knowledge production in the sciences it studies. Therefore, to understand how the human
sciences modified the “human” is to “denaturalise” the “human nature”, which humanities
and social sciences take as their object.
The theme of the historiography about Wallace’s scientific voyage in the Amazon was
taken as a pretext to illustrate and enrich the debate. As a scientist who produced knowledge
in an integrated way in almost every scientific area, the historical literature about him clearly
exemplifies how the history of the human sciences is perceived as a mere incorporation of
the object - man - into the natural sciences. Having realized that the opacity of the history of
Anthropology and other “sciences of man” from the 19th century implicates both historians
and historians of science, the possibilities of dialogue multiply, since overcoming this absence
would require a joint work of the entire historiographical community.

Notes

1 As I will call from now on the texts that explore the life and work of the British naturalist. The term is used
by the Alfred Russel Wallace Fund to designate a diverse set of objects, honours and species named after him.
2 Between 1854 and 1862, Wallace was on a second important scientific expedition, this time in the Malay
Archipelago.

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History of the “human sciences” and Wallace’s scientific
voyage in the Amazon: notes on historiographical absences

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