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Eh

estudos históricos

65 Associativismo e
Movimentos Sociais

ISSN 2178-1494 | 2018


estudos históricos

EH65 Associativismo e
movimentos sociais

ISSN 2178-1494
Estudos Históricos, volume 31, número 65, set.-dez. de 2018. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas, 1988
Quadrimestral
Resumos em português, inglês e espanhol
Editada e distribuída pela Editora Fundação Getulio Vargas
ISSN: 2178-1494.
1. História 2. Historiografia 3. Periódicos 4. Ciências Sociais 5. Economia e Sociedade.
I – : Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas
CDD 981.005
CDU 981(051)

E-mail: eh@fgv.br
Endereço na internet: http://www.fgv.br/cpdoc/revista
Endereço postal: Fundação Getulio Vargas/CPDOC
Secretaria da Revista Estudos Históricos
Praia de Botafogo, 190, 14º andar, Rio de Janeiro 22.523-900 RJ
H estudos históricos 65|Associativismo e Movimentos Sociais
Rio de Janeiro, vol. 31, no 65, p. 321-520, setembro-dezembro 2018

Sumário

ASSOCIaTIVISMO E MOVIMENTOS SOCIaIS|325


ASSOCIaTIVISM aND SOCIaL MOVEMENTS
ASOCIaCIONISMO Y MOVIMIENTOS SOCIaLES
Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia, Ynaê Lopes dos Santos

Artigos

“TUDO PELO BRaSIL; TUDO PELa RaÇa”: a FRENTE NEGRa CaRIOCa |327
“EVERYHTING FOR BRaZIL; EVERYTHING FOR THE RaCE”: RIO DE JaNEIRO’S BLaCK FRONT
“TODO POR BRaSIL, TODO POR La RaZa”: La FRENTE NEGRa CaRIOCa
Petrônio Domingues

ASSOCIaTIVISMOS DE TRabaLHaDORES FaVELaDOS NO RIO DE JaNEIRO E EM BELO HORIZONTE (1954-1964) | 349


THE aSSOCIaTIVISM OF WORKERS FROM FaVELaS IN RIO DE JaNEIRO aND BELO HORIZONTE (1954-1964) 349
ASOCIaTIVISMOS DE TRabajaDORES RESIDENTES EN LaS FaVELaS DE RIO DE JaNEIRO Y BELO HORIZONTE (1954-1964)
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

ARCHITECTURES OF DEMOCRaCY: HOUSING MOVEMENTS aND PROGRESSIVE aRCHITECTS IN SÃO PaULO (1970-1990) |369
ARQUITETURaS Da DEMOCRaCIa: MOVIMENTOS DE MORaDIa E aRQUITETOS PROGRESSISTaS EM SÃO PaULO (1970-1990)
ARQUITECTURa DE La DEMOCRaCIa: MOVIMIENTOS DE VIVIENDa Y aRQUITECTOS PROGRESISTaS EN SÃO PaULO (1970-1990)
José Henrique Bortoluci

ASSOCIaTIVISMO FEMININO E PaRTICIPaÇÃO POLÍTICa: UM ESTUDO SObRE aS baSES SOCIaIS DE aPOIO À DITaDURa MILITaR
EM CURITIba (1964-1985) |389
FEMaLE aSSOCIaTIVITY aND POLITICaL PaRTICIPaTION: a STUDY ON THE SOCIaL baSES OF SUPPORT FOR THE MILITaRY DICTaTORSHIP IN CURITIba (1964-1985)
ASOCIaTIVISMO FEMENINO Y PaRTICIPaCIÓN POLÍTICa: UN ESTUDIO SObRE LaS baSES SOCIaLES DE aPOYO a La DICTaDURa MILITaR EN CURITIba (1964-1985)
Reginaldo Cerqueira Sousa

OPÇÃO PELOS PObRES: a PaSTORaL DE FaVELaS E a REORGaNIZaÇÃO DO MOVIMENTO DE FaVELaS NO RIO DE JaNEIRO
Na REDEMOCRaTIZaÇÃO |413
OPTION FOR THE POOR: THE aPOSTOLaTE OF THE SLUMS aND THE REORGaNIZaTION OF THE MOVEMENT OF THE SLUMS IN RIO DE JaNEIRO DURING THE REDEMOCRaTIZaTION
OPCIÓN POR LOS PObRES: La PaSTORaL DE FaVELaS Y La REORGaNIZaCIÓN DEL MOVIMIENTO DE FaVELaS EN RIO DE JaNEIRO EN La REDEMOCRaTIZaCIÓN
Mario Sergio Ignácio Brum
CaSa DOS aÇORES DE SÃO PaULO: IMIGRaÇÃO, aSSOCIaTIVISMO E RELIGIOSIDaDE |433
SÃO PaULO’S aZORES HOUSE: IMMIGRaTION, aSSOCIaTIVISM aND RELIGIOSITY
CaSa DE LaS aZORES DE SÃO PaULO: INMIGRaCIÓN, aSOCIaTIVISMO Y RELIGIOSIDaD
Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

“A CIDaDE FOI REPaRTIDa E NÓS NÃO FOMOS CONVIDaDOS”: aÇÃO COLETIVa E a CONSTRUÇÃO DE UMa NOÇÃO DE CIDaDE
NO COLETIVO DEbaIXO | 457
“THE CITY WaS SHaRED aND WE WEREN’T INVITED”: COLLECTIVE aCTION aND THE CONSTRUCTION OF a NOTION OF a CITY IN THE DEbaIXO COLLECTIVE.
“La CIUDaD FUE REPaRTIDa Y NO FUIMOS INVITaDOS”: aCCIÓN COLECTIVa Y CONSTRUCCIÓN DE UNa IDEa DE CIUDaD EN EL COLETIVO DEbaIXO.
Jonatha Vasconcelos Santos e Wilson José Ferreira de Oliveira

Contribuição Especial

ASSOCIaTIVISMO DE MORaDORES DE FaVELaS CaRIOCaS E CRIMINaLIZaÇÃO | 475


ASSOCIaTIVISM OF RIO DE JaNEIRO SLUM’S RESIDENTS aND CRIMINaLIZaTION
ASOCIaTIVISMO DE HabITaNTES DE FaVELaS CaRIOCaS Y CRIMINaLIZaCIÓN
Lia de Mattos Rocha

Entrevista

ENTREVISTa COM BORIS KOSSOV | 495


INTERVIEW WITH BORIS KOSSOV
ENTREVISTa COM BORIS KOSSOV
Concedida a Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

teses e dissertações

LISTa DE TESES E DISSERTaÇÕES DO PROGRaMa DE PÓS-GRaDUaÇÃO EM HISTÓRIa, POLÍTICa E BENS CULTURaIS (PPHPbC)
DO CPDOC/FGV DEFENDIDaS EM 2018 | 521
Editorial

Associativismo e movimentos sociais


Associativism and social movements
Asociacionismo y movimientos sociales

Bernardo Borges Buarque de HollandaI*,


João Marcelo Ehlert MaiaI*
Ynaê Lopes dos SantosI*

Editores

N esta edição de número 65, a revista Estudos Históricos traz aos leitores artigos relacio-
nados a um tema caro à tradição interdisciplinar, que é marca constitutiva do Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC): associativismo. No
campo das Ciências Sociais, tal conceito pode ser rastreado até os trabalhos clássicos de Alexis
de Tocqueville sobre as virtudes (e os perigos) da democracia norte-americana, passando por
obras seminais da sociologia política mais recente, como “Comunidade e Democracia”, de Ro-
bert Putnam. Entre os historiadores, as formas encontradas por homens e mulheres para produzir
vida em comum também foi tema crucial de pesquisa, em especial nas vertentes analíticas inspi-
radas pela obra seminal de E.P. Thompson sobre a formação da classe trabalhadora na Inglaterra.
A fertilização mútua entre História e Ciências Sociais tornou quase impossível delimitar com
precisão onde começam e terminam suas respectivas jurisdições sobre as artes da associação

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300001

I
Escola de CIências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) – Rio de Janeiro – Brasil.

*Professores da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) e Editores da Revista Estudos
Históricos (bernardo.hollanda@fgv.br; joao.maia@fgv.br; ynae.santos@fgv.br)

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 64, p. 325-326, maio-agosto 2018 325
Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Ynaê Lopes dos Santos

humana. Thompson, por exemplo, foi fonte recorrente para sociólogos interessados em trans-
formar o “fazer-se” específico estudado pelo autor em instrumento para decifrar processos
mais amplos de formação de classes nas sociedades capitalistas. E o conceito de “capital so-
cial”, por sua vez, percorreu itinerários complexos nos trabalhos de historiadores interessados
em desvendar redes e laços entre grupos, comunidades, irmandades e clãs.
Esses debates e cruzamentos teóricos estão bem representados no dossiê que o leitor
tem em mãos. Há artigos que retomam o clássico tema do associativismo dos grupos subal-
ternos, em especial dos trabalhadores, como no caso dos textos de Samuel de Oliveira sobre
trabalhadores favelados no Rio e em Belo Horizonte, durante a República de 1946, e de Mário
Brum sobre a Pastoral de Favelas e sua conexão com a Teologia da Libertação.  Elis Angelo e
Maria Izilda de Matos, por sua vez, revisitam as relações entre imigração e formas associativas
por meio de estudo sobre a Casa dos Açores de São Paulo. As variáveis étnico-raciais que
estruturaram as formas de ação coletiva no Brasil são abordadas no texto de Petrônio Domin-
gues, centrado na história da Frente Negra no Rio de Janeiro, evidenciando novas frentes de
investigação sobre a articulação entre raça, classe, cidadania e associativismo.
A cidade, como não poderia deixar de ser, figura com destaque em vários artigos, por
se constituir no espaço por excelência para a invenção de novas formas de vida em comum
de homens e mulheres. Pode-se aprender sobre esse associativismo urbano no texto de Lia
Rocha sobre a história recente da criminalização do associativismo nas favelas cariocas, no
artigo de José Bortolucci sobre as redes entre arquitetos e movimentos populares em São
Paulo no processo de redemocratização e no trabalho de Jonatha Santos e Wilson de Oliveira
sobre o Coletivo Debaixo e suas práticas comunicativas na esteira dos movimentos de 2013
em Aracaju. Finalmente, se o nexo entre democracia e associativismo parece ser tomado como
pressuposto em muitos debates, o artigo de Reginaldo Sousa nos permite repensar tal relação
ao investigar o associativismo feminino em apoio à ditadura civil-militar no Paraná.
Acreditamos que o conjunto de textos disponível nesta edição irá interessar não apenas aos
estudiosos do associativismo, mas a toda a comunidade de historiadores e de cientistas sociais
que veem na construção de formas de vida em comum não apenas um tema de pesquisa discipli-
nar, mas também um credo fundamental para o revigoramento de nossa combalida democracia.

Referência Bibliográfica

PUTNAM, Robert D. Comunidade e Democracia – a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: FGV, 2008.
THOMPSON, Edward. P. A Formação da Classe Operária Inglesa: A árvore da liberdade. vol. I, 2. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987.

326 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 64, p. 326-326, maio-agosto 2018
Artigo

“Tudo pelo Brasil; tudo pela raça”:


a Frente Negra carioca
“Everyhting for Brazil; Everything for the Race”:
Rio de Janeiro’s Black Front
“Todo por Brasil, todo por la raza”:
la Frente Negra Carioca

Petrônio DominguesI*

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300002

I Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju – SE, Brasil.

*Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). É Professor Associado do Departamento de História da Uni-
versidade Federal de Sergipe (UFS). (pjdomingues@yahoo.com.br)

Artigo recebido em 1º de junho de 2018 e aceito para publicação em 10 de setembro de 2018.

studos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 327-348, setembro-dezembro 2018 327
Petrônio Domingues

Resumo
A Frente Negra no Rio de Janeiro tinha por finalidade envidar esforços pela elevação social, política, cultural e moral
dos afro-brasileiros. Para tanto, animou ações coletivas, preconizou narrativas de igualdade, interveio na agenda
nacional, estabelecendo diálogos com setores da sociedade carioca. A pretensão deste artigo é reconstituir alguns
aspectos da trajetória dessa associação à luz de suas aspirações e formas de organização, luta e identidade.

Palavras-chave: Afro-brasileiro; Raça; Associativismo negro; Movimentos sociais.

Abstract
The Frente Negra (Black Front) in Rio de Janeiro aimed at working for the social, political, cultural and moral de-
velopment of Afro-Brazilians. In order to do so, it promoted collective actions, advocated equality narratives and
intervened in the national agenda by establishing dialogues with sectors of society in Rio. The purpose of the present
article is to retrace some aspects of this association’s path in light of its aspirations and means of organization,
struggle and identity.

Keywords: Afro-Brazilian; Race; Black associativism; Social movements.

Resumen
El Frente Negra en Rio de Janeiro tenía por finalidad hacer esfuerzos por la elevación social, política, cultural y moral
de los afro-brasileños. Para ello, animó acciones colectivas, preconizó narrativas de igualdad, intervino en la agenda
nacional, estableciendo diálogos con sectores de la sociedad carioca. La pretensión de este artículo es reconstituir
algunos aspectos de la trayectoria de esa asociación a la luz de sus aspiraciones y formas de organización, lucha e
identidad.

Palabras clave: Afro-brasileño; Raza; Asociatismo negro; Movimentos sociales.

328 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 328-348, setembro-dezembro 2018
“Tudo pelo Brasil; tudo pela raça”: a Frente Negra Carioca

Introdução

A os 15 dias do mês de fevereiro de 1932, às 21 horas, na sede da Sociedade Flor do


Abacate, à rua do Catete, 93, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, realizou-se
uma reunião da Frente Negra Brasileira (FNB), sob a presidência do capitão Francisco José
Gomes Guimarães e a secretaria de Mário Brandão e Luiz Corrêa de Melo, representantes da
Cruzada Nacionalista. Abrindo os trabalhos, Gomes Guimarães expôs o motivo da reunião e
passou a palavra para Ventura Bezerra da Silva, o representante da sede central da FNB da
cidade de São Paulo, que explicou os propósitos da “agremiação de homens pretos”, que
pretendia ter “diretórios em todos os estados” da Federação. Depois de falar da situação em
que se encontrava a “raça negra em todo o Brasil”, sofrendo “perseguição” e “preconceito”
em vários pontos do território nacional, Bezerra da Silva conclamou seus “irmãos de raça”
para que, unidos, fortes e coesos, formassem uma “grande barreira”, que teria por finalidade
“reivindicar direitos postergados da raça negra”. O orador terminou seu contagiante discurso
sob calorosa salva de palmas.
Em seguida, usou a palavra o jornalista Rimus Prazeres. Seu discurso, que foi “vibrantíssi-
mo”, representou um “protesto veemente contra o preconceito da cor”. Terminou fazendo um
apelo a todos os negros para que cerrassem fileiras na novel agremiação em vista de serem
“vencedores” na luta que ali se iniciava. Usaram ainda a palavra os senhores João Paiva,
Jayme Baptista de Camargo e Luiz Corrêa de Mello, este em nome da Liga Nacionalista. Na
parte final da assembleia, falaram Liberto Rodrigues, que se lembrou dos embates que se têm
travado para a “independência da raça negra”, e Mário Brandão, que fez um “brilhantíssimo
discurso”, enaltecendo a “raça negra” e trazendo o exemplo dos pioneiros da “liberdade da
sua raça”. Gomes Guimarães, antes de encerrar os trabalhos, pediu que fosse consignada em
ata a solidariedade da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens
Pretos do Rio de Janeiro. Nada mais havendo a tratar, o presidente convocou uma segunda
assembleia para o dia 25 de fevereiro, a fim de ser lida e aprovada a lei orgânica da FNB no
Distrito Federal e eleito seu diretório. Antes de encerrar a sessão, o presidente deu conheci-
mento à assembleia de um telegrama do padre Lucas, que, não podendo comparecer por estar
doente, hipotecava sua solidariedade.
O Diário de Notícias, que publicou os estratos da ata da assembleia, informou que a
sessão superou as expectativas, “[…] pois assinaram a lista de presença 264 pessoas, notan-
do-se delegações de várias associações e irmandades religiosas constituídas na sua maioria
por homens pretos. As discussões estiveram animadíssimas”.1 A partir dali, a Frente Negra
da capital da República se estruturou e empreendeu esforços pela ascensão social, política,

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 329-348, setembro-dezembro 2018 329
Petrônio Domingues

cultural e moral dos afro-brasileiros. Para tanto, promoveu ações coletivas, enfronhou-se nas
questões da agenda nacional, dialogou com setores da sociedade civil, tendo no horizonte a
denúncia do “preconceito de cor” e as retóricas de igualdade racial. Com base fundamen-
talmente nos relatos da imprensa, o escopo deste artigo é reconstituir aspectos da trajetória
dessa organização à luz de suas aspirações e formas de articulação e luta em prol dos direitos
e da cidadania.
Várias pesquisas já investigaram o associativismo negro em São Paulo no decorrer da
Primeira República (Butler, 1992; Pires, 2006; Seigel, 2009; Pinto, 2013); em contrapartida,
são escassos os trabalhos sobre essa temática para o estado vizinho. Por conseguinte, pouco
se conhece das experiências de associações negras com bases raciais no Rio de Janeiro até
a década de 1930 (Domingues, 2014). Por outro lado, se já existem diversos estudos sobre a
história da FNB de São Paulo (Oliveira, 2002; Domingues, 2005; Oliveira, 2006), não se pode
dizer o mesmo para a trajetória dessa organização na capital da República, daí a importância
do presente artigo. Pautar a história da Frente Negra no Rio de Janeiro é tratar de um assunto
ainda não explorado pelas pesquisas acadêmicas.

Quando um novo ator coletivo entra em cena

O ficialmente, a FNB — União Político-social da Raça — foi fundada em São Paulo no


dia 16 de setembro de 1931.2 Já no primeiro artigo de seu estatuto, a organização se
definia como representante da “[…] união política e social da Gente Negra Nacional, para
afirmação dos direitos históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no
passado e para reivindicação dos seus direitos sociais e políticos, atuais, na Comunhão Bra-
sileira”.3 A princípio, a entidade instalou-se em duas salas do Palacete Santa Helena — um
edifício existente na praça da Sé, centro da cidade —, mas, pelo grande número de adesões,
sua sede foi transferida, em fevereiro de 1932, para um espaço maior: um casarão na rua da
Liberdade, 196, onde permaneceu até o encerramento de suas atividades.4
O estatuto da FNB é o documento no qual se especificam as finalidades da entidade e
as regras norteadoras de sua organização e funcionamento. Podiam a ela se associar “todos
os membros da Gente Negra Brasileira de ambos os sexos”. Como “força social”, tinha por
objetivo “a elevação moral, intelectual, artística, técnico-profissional e física; assistência, pro-
teção e defesa moral, jurídica, econômica e do trabalho da Gente Negra”.5 No que se refere à
estrutura formal, ela era basicamente constituída pelo Grande Conselho, do qual participavam
o presidente, os conselheiros, o secretário-geral, e pelo Conselho Auxiliar ou Administrativo,
composto dos cabos e comissários. Durante sua trajetória, que se estendeu de setembro de

330 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 330-348, setembro-dezembro 2018
“Tudo pelo Brasil; tudo pela raça”: a Frente Negra Carioca

1931 até dezembro de 1937, a Frente Negra teve dois presidentes: Arlindo Veiga dos Santos,
que ocupou o cargo até junho de 1934, e Justiniano Costa, que antes exercera a função de te-
soureiro. Os recursos da entidade eram oriundos, sobretudo, das contribuições dos associados
e das “delegações” (sucursais da entidade em várias cidades e estados).
A FNB criou diversos departamentos para atender às questões ou necessidades especí-
ficas: departamento de instrução ou de cultura, que se encarregava da parte educacional e
mantinha uma escola primária; departamento musical; desportivo; médico; dramático; jurídico-
-social, de artes e ofícios e de imprensa, responsável pela publicação d’A Voz da Raça, o jornal
que funcionava como porta-voz da entidade.6 Mantinha, em sua sede, uma caixa beneficente,
um salão de beleza, barbeiro, bar, local para jogos e divertimentos, gabinete dentário, sem con-
tar um posto de alistamento militar. As mulheres assumiram diversas atribuições na FNB. Duas
comissões foram por elas criadas: as Rosas Negras, responsáveis pela organização de festivais
artístico-literários e bailes, e a Cruzada Feminina, cuja incumbência era realizar trabalhos assis-
tencialistas em vista da consolidação do campo educacional e cultural da entidade.
O número de associados superou todas as expectativas iniciais. Embora as estimativas
sejam bem divergentes — Michael Mitchell (1977) calcula 6 mil sócios em São Paulo e 2 mil
em Santos; um dos depoentes da pesquisa de Regina Pahim Pinto (2013) indica 30 mil, outro,
50 mil, sem especificarem, contudo, se em São Paulo ou no Brasil; já Florestan Fernandes
(1978) refere-se a 200 mil sócios —, as adesões à entidade muito provavelmente chegaram
à casa dos milhares, o que indica um alcance sem precedentes para uma organização dessa
natureza (Alberto, 2011). Fato é que ela incendeu seus membros de esperança e desfrutou
de relativo prestígio entre os negros, que a procuravam para resolver problemas relacionados
com analfabetismo, falta de moradia e emprego, discriminações raciais, violações de direitos
civis etc. (Taylor, 1978).
A FNB desenvolveu uma série de símbolos identitários: bandeira, hino, documento de
identidade, contendo foto e dados pessoais, e até uma milícia, uma espécie de batalhão para-
militar. Suas normas comportamentais e disciplinares eram bastante rígidas. Não se hesitava
em punir os associados que não lhes obedecessem. Seus dirigentes atribuíam a essa política
de austeridade o sucesso da entidade. Do ponto de vista político-ideológico, a Frente Negra
defendia um projeto nacionalista, de viés autoritário. Arlindo Veiga dos Santos, seu primeiro
presidente, não ocultava sua antipatia pela democracia liberal e tampouco seu ódio pelo co-
munismo (Malatian, 2015). Um representante da entidade chegou a ser recebido em audiên-
cia por Getúlio Vargas, conforme noticiou a imprensa.7 O “chefe do governo provisório” teria
atendido a algumas de suas reivindicações, como o fim da proibição de ingresso de negros na
guarda civil em São Paulo (Barbosa, 1998: 55).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 331-348, setembro-dezembro 2018 331
Petrônio Domingues

A FNB procurou se tornar uma “força política organizada”, que pleitearia, conforme
proclamava seu estatuto, “os cargos eletivos de representação da Gente Negra Brasileira,
efetivando a sua ação político-social em sentido rigorosamente brasileiro”.8 Com o tempo,
a agremiação enveredou sua atuação à luz do sistema político-institucional, tendo inclusive
movido uma campanha para obter o registro como partido político. Depois de um revés e
controvérsias jurídicas, o Tribunal Superior de Justiça Eleitoral lhe concedeu permissão para se
registrar como um partido legalmente reconhecido em 1936 (Andrews, 1998: 234).
Diversos eventos sociais eram patrocinados pela FNB, como: palestras, almoços, chás,
convescotes, excursões, recitais de poesias, apresentações teatrais e musicais (Butler, 1998:
115-116). Comemorava ainda várias datas, sendo as principais delas a Abolição da escravidão
— evento cuja programação incluía missa, romaria ao cemitério em visita aos túmulos dos
abolicionistas e sessões solenes — e a festa de aniversário da entidade, solenidade para a
qual compareciam representantes de delegações do interior e de outros estados, bem como
autoridades e personalidades.9
As fontes indicam que a FNB causou impacto no “meio negro”. Muitos indivíduos desse
segmento populacional se sensibilizaram com os problemas raciais por intermédio do trabalho
da agremiação. Os “frente-negrinos” se viam como sujeitos diferenciados. Havia de sua parte
um grande orgulho da entidade, cujas atividades e ações coletivas eram reputadas como de
fundamental importância para a luta da população afro-brasileira (Pinto, 2013).
Desde o primeiro artigo de seu estatuto, a FNB teceu um projeto ambicioso: “se irradiar
por todo o Brasil”.10 Com esse ímpeto, mantinha representantes tanto nas cidades do interior
de São Paulo quanto de outros estados. Esses delegados especiais eram escolhidos pelo pre-
sidente geral e representavam o Grande Conselho Central, devendo submeter-se a todas as
ordens emanadas da presidência geral. Consultando o jornal A Voz da Raça, percebe-se como
era constante o intercâmbio da sede central com as delegações do interior, de outros estados,
com pessoas do meio negro, com autoridades governamentais, bem como com pessoas liga-
das ao cenário social e político da época. A fama da entidade expandiu-se a vários estados e
até a países das Américas e da África (Domingues, 2013). Em 1936, contava com mais de 60
delegações distribuídas em São Paulo (capital e interior) e em outros estados (Minas Gerais,
Espírito Santo e Rio de Janeiro), além de servir de referência para o surgimento de associações
homônimas nas cidades de Salvador (BA), Recife (PE) e Pelotas (RS). Com efeito, é importante
frisar: as Frentes Negras Baiana, Pernambucana e Pelotense já foram objeto de pesquisas
acadêmicas (Bacelar, 1996; Silva, 2008; Silva, 2011), diferentemente da delegação da Frente
Negra na capital da República.

332 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 332-348, setembro-dezembro 2018
“Tudo pelo Brasil; tudo pela raça”: a Frente Negra Carioca

O “Partido dos Homens de Cor”

R io de Janeiro, 11 de fevereiro de 1932. O Diário da Noite publicou uma entrevista


com Ventura Bezerra da Silva, um membro do corpo diretivo da FNB, uma “grande
organização político-social da raça, fundada há pouco em São Paulo”, que já contaria com
“22.000 associados” nos quatro meses de existência. Segundo o jornal, o surgimento da
FNB causou “certa surpresa” e veio chamar a “atenção do povo, dos observadores dos fatos
e coisas inerentes à raça negra, que até hoje não teve uma organização forte de defesa de
seus interesses”. Na sede do Diário da Noite, o representante da Frente Negra declarou que
os fins da agremiação eram “sociais e políticos”, conforme rezava os estatutos. “É necessário
que se estabeleça uma nova ordem das coisas”, enfatizou, “que prevejam a igualdade dos
brasileiros sem exceção” e respeitem “nós, os da raça negra”. Sobre sua presença na capital
da República, o entrevistado sinalizou que sua missão ali era fomentar a mobilização da po-
pulação negra no sentido da criação da delegação da FNB. Para tanto, duas assembleias do
“partido” estavam agendadas. Nessas assembleias, os negros de São Paulo, Minas Gerais e
Paraná, por intermédio de seus representantes, iriam dizer a seus “irmãos de cor” do Rio de
Janeiro o que era a FNB.11
A partir dali, as articulações em prol da FNB no Distrito Federal ganharam espaço na
imprensa. Um dia depois da entrevista de Bezerra da Silva, o jornal A Noite divulgou que a
Frente Negra “está tratando de criar delegações nas cidades mais importantes do país. Está
no Rio uma delegação da FNB”.12 No dia seguinte, foi a vez de o Jornal do Brasil noticiar que
a agremiação, “por seus representantes, vem dizer aos seus irmãos de cor do Rio de Janeiro
— homens e mulheres intelectuais, operários, soldados e marinheiros — o que é a Frente Ne-
gra”. Ventura Bezerra da Silva, o “delegado especial” da agremiação, esteve na sede do jornal,
“entregando-nos os estatutos da FNB e o manifesto dirigido à gente negra brasileira”, ao
tempo em que fez um chamado geral: “Negros do Rio de Janeiro! Sentido! Tudo pelo Brasil!
Uno! Indiviso! Tudo pela raça. Tudo pela obra redentora da revolução.”13 O Correio da Manhã
também noticiou que “acaba de iniciar-se, no Brasil, um grande movimento associativo da
raça negra”. Tratava-se da iniciativa da FNB, que, fundada em São Paulo, “agora se consoli-
da”, com a formação de delegações em vários lugares, como no Rio de Janeiro.14
Para os dias 14 e 15 de fevereiro, às 20 horas, estavam previstas duas “grandes as-
sembleias” da FNB no Rio de Janeiro — uma na rua Conselheiro Galvão, 44, no bairro de
Madureira, e outra na rua do Catete, 93 —, a fim de “serem eleitas duas delegações centrais
na capital”.15 O Correio da Manhã publicou nota, informando a inauguração das “sedes” da
agremiação.16 No dia 22 de fevereiro, uma segunda-feira, foi empossada a diretoria da FNB de

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 333-348, setembro-dezembro 2018 333
Petrônio Domingues

Madureira, chamada “delegação suburbana”. Segundo as reportagens dos jornais, a “festa


cívica”, que se iniciou às 22 horas, teve uma “grande assistência”, constituindo “ruidoso
sucesso”. A ela compareceu a delegação que veio de São Paulo, presidida por Ventura Bezerra
da Silva. A diretoria da delegação da FNB, que tomou posse em Madureira, era composta por
“personalidades de destaque da raça negra em todo o subúrbio”: tenente Manoel dos Passos
Júnior, presidente; professor José Maria de Assumpção, secretário; capitão Anthero Augusto
Maia, tesoureiro, além dos seguintes conselheiros: sargento Theophilo F. de Camargo, Marinho
J. dos Santos, Sebastião Eugênio Crespo, Mahomed Sany Ad-iou, Antão Caetano de Oliveira,
Antonio Rodrigues de Souza, dr. Claudemiro dos Santos e Theodorico José de Lima. O “fim
desse movimento”, perorou Bezerra da Silva, era “defender a raça e o Brasil”. Seguiram-se os
discursos dos oradores, sendo encerrada a reunião à 1 hora da madrugada de terça-feira.17
Dois dias depois, 25 de fevereiro, uma quinta-feira, houve “sessão solene” para a posse
do “grande conselho” da FNB (na rua do Catete, 93), a “delegação urbana”, também cha-
mada “delegação distrital”. A “cerimônia cívica” teve início às 21 horas, sob a presidência de
Ventura Bezerra da Silva, o representante do órgão central de São Paulo. De maneira unânime,
os jornais informam que a “sede provisória” da delegação da FNB urbana foi instalada na rua
do Catete, 93, mas divergem quanto ao local da sede da suburbana. Se o Diário Carioca e o
Diário da Noite indicam como endereço a estrada Marechal Rangel, 89,18 A Batalha e O Jornal
apontam a rua Domingos Lopes, 207.19
Logo no início, o entusiasmo era grande, a despeito dos obstáculos de toda ordem e da
dificuldade de alguns setores da sociedade em compreenderem os objetivos da agremiação.
Em 25 de fevereiro de 1932, Austregésilo de Athayde — um jornalista e cronista respeitado —
publicou um artigo no Diário da Noite para desferir um ataque público à agremiação. “A ideia
de formar uma Frente Negra Brasileira é ridícula e terá de morrer por falta de ambiente.” Ela,
que nasceu em São Paulo, resultaria das “maquinações obscuras dos agentes moscovitas”,
que estariam recrutando “brasileiros inexpertos e ingênuos, que, sem o saber, servem de ins-
trumento às mãos de mercenários bolchevistas”. A partir dessa avaliação, Athayde aconse-
lhava, em tom paternalista: “os negros brasileiros recusem-se a colaborar com os inimigos do
nosso país”. No desfecho de seu artigo, o jornalista insistia: “Peço aos nossos patrícios negros
do Rio de Janeiro que se abstenham de dar mão forte a essa ‘frente’, que deseja apenas fo-
mentar discórdias num país […] exemplar pela ausência dessa irritante questão de raças.”20
Parte dos negros do Rio de Janeiro não acatou o pedido de Athayde. Talvez por entender,
conforme declarou Bezerra da Silva à imprensa, que o “problema do negro existe no Brasil e
seria em vão querer contorná-lo ao invés de resolvê-lo”.21 Ou mesmo porque aqueles sujeitos

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“Tudo pelo Brasil; tudo pela raça”: a Frente Negra Carioca

forjaram uma visão crítica a respeito dos limites da Abolição. “Nós somos a grande força
abandonada” — dizia o dirigente frente-negrino —, “a força dispersa de todos os tempos,
que há 43 anos vem sendo espezinhada, enganada por uma liberdade teórica e por uma
igualdade mentirosa e que agora se levanta para caminhar para frente, pela igualdade de seus
direitos”.22 Apesar desse tom de protesto do primeiro delegado da FNB no Distrito Federal, a
entidade, durante toda a sua existência, salientou que seus objetivos eram promover a união
do negro, sua elevação e completa integração na vida nacional. O problema do negro no
Brasil, ponderava Bezerra da Silva, era o da “integração absoluta, completa em toda a vida
brasileira, quer do ponto de vista social-político, econômico, operário, militar e religioso”.23
Esses objetivos eram reiterados quando se procurava defender a associação de acusações
como a de “fomentar discórdias”. Portanto, o princípio norteador da FNB do Distrito Federal
era integrar o negro à nação, e não criar divisões, como se lhe atribuíam.
Em termos de estrutura de funcionamento, ela era formada possivelmente pelo Grande
Conselho, do qual participavam o presidente, o secretário, o tesoureiro, o conselho fiscal, os
diretores e os conselheiros. Embora não haja informações acerca dos meios de que a entidade
dispunha para arcar com as despesas, é plausível que sua principal fonte de recursos provies-
se das mensalidades dos sócios e dos donativos recebidos. Reuniões periódicas da diretoria,
prestação de contas, realização de assembleias gerais ordinárias e extraordinárias, registradas
em atas e às quais compareciam também os associados, a fim de decidir sobre os assuntos
de interesse da Frente Negra, eis um pouco a rotina da agremiação.24 Sua rotina igualmente
se expressava nas atividades políticas e sociais, como confraternizações, atividades culturais
e recreativas, festas, sessões solenes, palestras, celebrações das datas cívicas e, sobretudo,
daquelas que diziam respeito à população afro-brasileira. Tais efemérides eram comemoradas
com eventos específicos.
Em meados de 1932, Ventura Bezerra da Silva comunicou seu desligamento da presi-
dência da delegação da FNB na capital da República. Para dar conta da obra que realizou à
frente da agremiação, prometia editar um relatório — intitulado “Uma raça que acorda” —,
documentado com fotografias.25 O relatório ilustrado, entretanto, ficou apenas no plano da
promessa, pois jamais veio à tona. Com o tempo, quem substituiu Bezerra da Silva na presi-
dência da Frente Negra foi Antônio Francisco Napoleão, que se transferiu de São Paulo espe-
cialmente para assumir a delegação carioca. Funcionário dos correios, no qual exercia o cargo
de diarista,26 Francisco Napoleão empreendeu um novo dinamismo à agremiação, investindo
em um trabalho de propaganda. Para tanto, geralmente percorria as redações dos jornais.
“Esteve ontem em nossa redação o sr. Antônio Francisco Napoleão, delegado da Frente Negra
de S. Paulo”, que em “ligeira palestra” referiu-se ao programa social que “tem por objetivo

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Petrônio Domingues

congregar em torno de seus princípios todos os representantes da raça, para a defesa e a


garantia dos direitos comuns”, noticiou O Jornal.27 Tal estratégia de propaganda e visibilidade
se repetia: “Antônio Francisco Napoleão é o delegado da Frente Negra Brasileira na capital da
República.” Ele “falou ao Diário da Noite. Veio apelar para os homens de sua raça no Brasil,
para que cerrem fileiras em torno da organização nascida em S. Paulo”. Em sua opinião, é
preciso que “todos se congreguem” para que “possamos elevar a nossa raça e dignificá-la,
evitando que o negro, abandonado, sem amparo, continue a viver vida miserável”:

Precisamos organizar-nos — prossegue Francisco Napoleão — para termos escolas em que


possamos ministrar aos indivíduos da nossa raça todos os elementos que o tornem apto a
vencer na luta pela vida. Necessitamos de organizações nossas que o amparem nos períodos de
dificuldades, nas enfermidades, na invalidez, para que não seja formado de pretos o regimento
de pedintes que enchem as nossas ruas, para que os pretos não engrossem as relações da
criminalidade, frutos ambos da situação de abandono em que a nossa raça tem vivido no Brasil.
[…] Eu apelo para todos os negros do Brasil. Todos os homens da minha raça devem unir-se
nessa cruzada, que ainda não foi compreendida e aceita como merece.28

Apesar de todo esse trabalho de propaganda e tentativa de sensibilização da opinião


pública, a Frente Negra ficou na mira do fogo cruzado de setores da imprensa. “Começou
em S. Paulo e estende-se já por alguns estados certo movimento de reivindicações racistas
da gente de cor que ameaça a nossa fraternal tranquilidade com possíveis consequências
desagradáveis”, era assim que o Diário Carioca começava seu editorial de 19 de janeiro de
1933. “No país que fez a abolição da escravaria, pelo modo que se conhece, não pode existir,
e não existe realmente, preconceito de raça. […] Não nos parece aconselhável, portanto, o
exagero de reivindicações desabridas”, avaliava a folha carioca.29 Cerca de um mês depois, um
editorial do Diário de Notícias também colocou em xeque a legitimidade de “certo movimento
de reivindicações racistas da gente de cor”:

De quando em quando, surgem no noticiário dos jornais referências à “Frente Negra”. […] O
espírito e a formação da nacionalidade são incompatíveis com as lutas derivadas da questão
da cor […]. A política do caldeamento, da absorção dos indivíduos de cor preta, vai a pouco a
pouco diminuindo o número deles, e dentro em época não muito remota, terão desaparecido sem
qualquer choque de maior importância. Nada nos aconselha a abandonar essa trilha, até mesmo
porque a experiência alheia, a dos Estados Unidos, por exemplo, demonstra, todos os dias, os
inconvenientes de orientação oposta. Não nos sorri, assim, a existência dessa “Frente Negra”.30

A antipatia de alguns jornais pela agremiação era porque esta impulsionava a discussão
do problema racial, um assunto considerado espinhoso, que poderia trazer riscos e consequên-
cias negativas para o país (Graham, 2010). Diante dos ataques, Antônio Francisco Napoleão,

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“Tudo pelo Brasil; tudo pela raça”: a Frente Negra Carioca

o segundo delegado da FNB no Distrito Federal, recorreu à imprensa reiteradamente para


explicar que a agremiação almejava promover a integração do negro na sociedade e trabalhar
em prol da comunidade nacional. Seu programa? “A coesão do elemento negro, para o mútuo
amparo, para a elevação cultural e moral”, na perspectiva de que, “por seu preparo, inteli-
gência, capacidade e desenvolvimento das energias da raça, possa demonstrar ao branco que
não é inferior, e que pode igualá-lo em todas as esferas de atividade”. Desse ponto de vista, a
finalidade da FNB era garantir a inserção do negro na nação em pé de igualdade, e não criar
separatismos ou cizânias, como se apregoava. Porém, Francisco Napoleão não perdia a opor-
tunidade de refutar o discurso corrente acerca das relações raciais: “Costumamos dizer, com
certo orgulho, […] que no Brasil não há preconceitos de raça nem de cor.” Mas “tal conceito
não expressa integralmente a verdade. Há, no Brasil, lugares onde se dá aos homens de pele
preta um tratamento desigual, que chega às vezes a ser desumano”.31
A Frente Negra Carioca, ao longo de sua existência, empreendeu diversas iniciativas
para atender a áreas ou demandas específicas, sendo uma delas a educacional. Havia uma
preocupação com o grave problema do analfabetismo entre as pessoas negras. Para enfrentar
esse problema, a delegação de Madureira criou uma escola, na rua Itauba, 37. A escola fun-
cionava na informalidade e, ao que parece, na medida em que foi se estruturando, despertou
a atenção dos órgãos de controle do poder público. Em setembro de 1933, o “Serviço de
Fiscalização e de Orientação do Ensino Particular” do Distrito Federal publicou um edital nos
jornais com “exigências a satisfazer”. No caso da Frente Negra, esta devia registrar “a escola
da Rua Itauba, n. 37, Madureira, bem como os respectivos professores”.32
Outra arena de atuação da entidade foi a da cidadania e direitos civis. Afora denunciar
ocorrências de preconceito e discriminação, ela também protestava contra tais atos. Arranjar um
emprego podia se constituir em um problema para o negro, mesmo para os mais qualificados,
que tinham suas potencialidades relegadas ou pouco reconhecidas. Mas as restrições podiam
atingir as ocupações mais humildes. Por isso, quando os jornais noticiaram que o “Monroe”33
demitiu alguns funcionários de baixo calão pelo fato de serem negros, houve manifestação pú-
blica por parte da principal organização de bases raciais do Rio de Janeiro: “Esteve ontem em
nossa redação um representante da Frente Negra Brasileira”, reportou A Manhã, “que veio
protestar contra a premeditada retirada dos contínuos e serventes pretos e mulatos do Monroe,
fato aliás já noticiado por nós”. Segundo “aquele representante da raça negra”, tratava-se “de
uma medida odiosa”, que vinha “demonstrar mais uma vez que o preconceito de cor é um fato
no Brasil”. A FNB, “de S. Paulo, embora sem nenhum apoio oficial, tem, entretanto, lutado pelas
reivindicações de classe. Aqui no Distrito Federal, também se tem trabalhado pela causa”.34

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Petrônio Domingues

A agremiação carioca chegou a atuar como uma espécie de sindicato dos negros. Quando
o engenheiro Arlindo Luz passou a dirigir a Central do Brasil logo após o “vencedor movimen-
to de outubro de 1930”, implementou uma reforma na companhia ferroviária que implicou a
dispensa de “elevado número” de funcionários; outros foram postos em disponibilidade.35 Um
dos atingidos pela reforma foi Arlindo Lourenço, um trabalhador negro que perdeu o emprego,
daí acionou a Frente Negra para defendê-lo daquela grande “injustiça”. Esta então assumiu
o caso. Em 1933, com a Central do Brasil já sob a direção do capitão Lima Câmara, a agre-
miação resolveu dirigir uma “fundamentada petição” ao diretor da companhia, pleiteando a
readmissão de Arlindo Lourenço, noticiou A Nação. O diretor da Central do Brasil, após ter sido
“convenientemente processado o pedido, exarou o seguinte despacho: Não há vaga”. A dire-
toria estaria empenhada, conforme as ordens do governo, em convocar os empregados “em
disponibilidade” e, quando estes fossem absorvidos, convocaria “os que foram dispensados
pelas restrições dos quadros, que a reforma Arlindo Luz operou”.36
Independentemente do desfecho, esse episódio sugere o impacto da FNB entre a popu-
lação afro-brasileira, que a procurava para resolver problemas relacionados com as injustiças
e violações de direitos. Acredita-se que algumas pessoas negras começaram a se conscientizar
dos problemas raciais pelo trabalho desenvolvido pela entidade. Mas, a despeito da repercus-
são que alcançou e do interesse que despertou, matérias veiculadas pela imprensa mostram
que a agremiação não conseguiu atrair para suas fileiras intelectuais negros da época, ou
aqueles que desfrutavam de certo prestígio social. Mais de uma vez, Antônio Francisco Na-
poleão fez apelos a Evaristo de Moraes e José de Sousa Marques37 para contribuírem com a
“raça”. Isso porque, caso eles “se interessem pela nossa causa”, postulava o delegado da
Frente Negra, “estou certo de que dentro em breve alcançaremos resultados satisfatórios”.38
Enquanto isso, o editorial do Diário Carioca desancava a agremiação: “Quem conhece os
costumes e as tradições do povo brasileiro, desde que o governo imperial aboliu a escravidão,
sabe como os pretos se integraram no meio social do país.” De acordo com a folha carioca,
“os pretos” do Brasil tinham até assumido posições de alto relevo social e político sem que
isso viesse a “melindrar os brancos” ou criar obstáculos de qualquer espécie à vida nacional.
As “Frentes Negras que se têm organizado por aí afora constituem um grande e futuro pe-
rigo para o Brasil, porque vieram criar aquilo que aqui não existe: o preconceito da cor”.39
Em momento oportuno, Antônio Francisco Napoleão aproveitou o espaço da imprensa para,
novamente, contestar o discurso corrente no tocante às relações raciais: a Abolição não colo-
cou o “elemento negro do Brasil em pé de igualdade com o branco. Tivemos simplesmente a
liberdade”. Ao passo que o “elemento branco era senhor de bens e riquezas, monopolizava
os postos de direção e os institutos de ensino, ficamos nós sem coisa alguma, em situação

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“Tudo pelo Brasil; tudo pela raça”: a Frente Negra Carioca

de absoluta inferioridade social”. Por outro lado, “embora dissimulado, há um preconceito


tremendo contra o preto”.40 O delegado da FNB no Distrito Federal ressaltava que, malgrado
as incompreensões, o objetivo da agremiação era integrar o negro na sociedade brasileira, e
não açular divisões ou mesmo o racismo às avessas.
A fama da Frente Negra estendeu-se ao interior do Rio de Janeiro. Embora as fontes con-
sultadas não permitam mapear sua distribuição pelo estado, foi possível identificar a presença da
entidade em duas cidades: São João de Meriti (na época, um distrito pertencente ao município
de Nova Iguaçu) e Petrópolis. No caso da Baixada Fluminense, uma reportagem do Diário de
Notícias, de fevereiro de 1933, dava conta de que a Escola Regional de Meriti, que atendia a uma
clientela oriunda de “famílias proletárias” e era dirigida pela educadora Armanda Álvaro Alberto,
desenvolvia um projeto educacional comprometido com as questões sociais, o que teria levado
a “Frente Negra de Meriti” a pedir-lhe a colaboração. “Sala de aula, biblioteca, tudo lhe será
franqueado”, disse Armanda Alberto ao repórter. “Então, os elementos negros mais progressis-
tas — entre eles muitas mulheres — subirão à noite, depois do dia afanoso do trabalhador — a
encosta íngreme da Escola Regional.”41 Já no que diz respeito à Frente Negra de Petrópolis, A
Manhã, de 31 de outubro de 1935, noticiou que dali a três dias, um domingo, às 16h, iria ocorrer
na praça da Liberdade, centro da cidade serrana, um “grande comício” em defesa das “liber-
dades populares”. Esse comício, dizia o jornal, “é apoiado por todos os elementos libertadores,
pelo Centro de Reivindicações Populares de Petrópolis e por todas as associações trabalhistas da
cidade e dos municípios vizinhos, assim como pela Frente Negra de Petrópolis, recém-criada”.42
Afora as delegações da Frente Negra do Distrito Federal e da “suburbana”, na capital, e
das de São João de Meriti e Petrópolis, surgiram, muito provavelmente, outras delegações da
entidade no estado.43 Sua mensagem ecoou no seio da população negra, contribuindo para a
revalorização de projetos, estratégias e retóricas identitárias. Pelo menos, foi possível apurar
que ela influenciou o surgimento de uma associação homônima, conforme se depreende de
nota divulgada pelo Jornal do Brasil, em 23 de setembro de 1933:

Realiza-se, hoje, um grandioso festival artístico, promovido pela Frente Negra Brasileira, orga-
nizado pelo seu presidente Senhor Antenor dos Santos, na sede do Centro Cívico Quatro de
Novembro, sendo representado, no palco desse centro[,] o drama em um ato “O escravo” e a
hilariante comédia também em um ato “Cautela com as mulheres”, em que tomam parte os
amadores Rubem Maurcul, Regina Fonseca, Rosa Santos, Antenor dos Santos, Antônio Noronha,
Alberto Capella, Jacinto de Almeida, Maria Fraga, José de Araújo, Orlindo Amaral, José Rodri-
gues e outros. Haverá um ato variado na terceira parte do programa, devendo começar o espe-
táculo às 20 horas e 15 minutos e terminar às 24 horas. Nota – Essa sociedade carioca nada
tem que ver com a que foi fundada em São Paulo, por ocasião do movimento revolucionário.44

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Petrônio Domingues

A delegação da FNB no Rio de Janeiro mantinha intercâmbio com a sede da agremiação


em São Paulo. Havia uma correspondência regular. Além disso, ocorria um contato pessoal
mediante visitas mútuas, de autoridades da sede central à delegação do Rio, e do delegado
local à sede paulista. Em 21 de dezembro de 1934, O Radical noticiou que Antônio Francisco
Napoleão estivera na redação do jornal e comunicara sua viagem à capital bandeirante para
assistir, “como representante da Frente Negra Carioca, às festas de Natal organizadas com
a maior solenidade por aquela instituição”. Francisco Napoleão iria também apresentar ao
presidente da Frente Negra a leitura de sua última viagem de propaganda a Pernambuco,
onde “ficara demonstrado quanto foi eficiente a sua ação em favor da raça no grande estado
nortista, onde os negros do Leão do Norte ficaram conhecendo os laços de solidariedade que
os prendem aos seus irmãos do Sul”.45 Em maio de 1935, o mesmo O Radical informou que
a FNB, com sede em São Paulo, iria realizar um congresso com todos os seus delegados para
lançar um manifesto à nação. Participaria do evento o delegado da Frente Negra Carioca, An-
tônio Francisco Napoleão, que aproveitaria a oportunidade para relatar “as suas observações
feitas no Rio acerca do desenvolvimento da raça e campanha contra o analfabetismo que
promove a referida entidade rácica”. Francisco Napoleão ainda faria “revelações sobre os
progressos que tem observado com a ação da Frente Negra Brasileira nesta capital conforme
nos disse em sua visita que ontem levou a efeito à nossa redação”.46
A luta da agremiação não se resumiu em reivindicar um lugar no cenário social e cultural.
Se seu programa, per se, já tinha conotação política, essa conotação adquiriu mais efetividade
à medida que se constatou que a igualdade entre negros e brancos era apenas teórica, formal.
“Ainda que a lei, platonicamente, romanticamente, diga que todos os brasileiros são iguais”, pon-
tificou Francisco Napoleão em entrevista ao jornal A Noite, “ser negro é o bastante para eliminar o
homem de uma série de carreiras e misteres”.47 A entrevista do delegado da FNB repercutiu. Pelo
menos Luiz Costa a leu e, graças a ela, aderiu à agremiação: “diz o sr. Napoleão que ser negro é
bastante para eliminar o homem de uma série de carreiras e misteres. Grande verdade!”.48 A per-
cepção de que havia um descompasso entre a lei, que facultava aos negros a igualdade formal, e a
realidade vivida por esse segmento populacional, levou a FNB a afirmar a estratégia de se articular
politicamente. Acreditava-se que, sem política, o negro não conquistaria os espaços possíveis na
nação, ou seja, não conquistaria reconhecimento, direitos e cidadania (Mitchell, 2011: 191-192).
Várias iniciativas da Frente Negra Carioca expressam esse desejo de participar efetivamente da
vida política, local e nacional. Em outubro de 1932, a agremiação aderiu ao “cortejo trabalhista,
organizado pelo sindicato dos prepostos comerciais”. Sua diretoria chegou a enviar um ofício à
União dos Empregados no Comércio do Rio de Janeiro, comunicando-lhe que Isaltino Veiga dos
Santos, um dirigente da sede central de São Paulo, viria para tomar parte no evento.49

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“Tudo pelo Brasil; tudo pela raça”: a Frente Negra Carioca

A FNB buscou interferir diretamente nas questões conjunturais. Tomou partido e se po-
sicionou perante as forças políticas que atuavam na época. A agremiação apoiava o regime
que se instalou com a “Revolução de 1930” e o chefe do governo provisório, Getúlio Vargas.
Acreditava-se que o novo regime abriu novas perspectivas e novas oportunidades para o
negro (Levine, 2001). O surgimento da Frente Negra era um exemplo disso. O apoio da enti-
dade a Vargas se dava tanto pela afinidade de ideias, pois ambos defendiam o nacionalismo,
quanto pelos acenos que ele fez à população afro-brasileira, especialmente porque, conforme
assinalado, Vargas recebeu em audiência um representante da FNB de São Paulo e, a partir
dali, teria atendido a algumas das reivindicações que lhe foram feitas.
Quando, em 1936, a polícia negou a licença de funcionamento da sede da agremia-
ção no Rio de Janeiro sob o pretexto de que o país estava em “estado de guerra” por cau-
sa da “Intentona Comunista” (Rose, 2001), Antônio Francisco Napoleão disse à imprensa
que tal medida era despropositada, uma vez que a organização era “composta de gente
ordeira e trabalhadora, integrada definitivamente no apoio incondicional ao regime em
vigor”.50 Ao que parece, o delegado da Frente Negra, Napoleão, falava a verdade. Entre
15 e 17 de novembro de 1932, a agremiação participou do Congresso Revolucionário,
que ocorreu no Rio de Janeiro sob os auspícios da Legião Cívica 5 de Julho e reuniu diver-
sos segmentos da sociedade, civil e militar (sobretudo estratos do movimento tenentista),
dispostos a colaborar com o governo provisório de Vargas na “grande obra da revolu-
ção”.51 Para contribuir com o enclave, veio uma comitiva da FNB da sede central, em São
Paulo, com o intuito de apresentar uma “tese profundamente brasileira, encarando os
oportunos problemas” nacionais.52 Em março de 1936, o órgão de repressão do governo
Vargas prendeu no município de Santa Quitéria (MG) Claudino José da Silva, conhecido
como “perigoso agitador extremista”, que já vinha sendo procurado. Ao ser interrogado
pela polícia, o preso “declinou a sua qualidade de presidente da Frente Negra de Minas
Gerais”. Em função dessa notícia considerada bombástica, a reportagem d’A Noite procu-
rou Francisco Napoleão, que afirmou que Claudino não pertencia à entidade e tampouco
exercia nela qualquer posição, como teria alegado. Assim como o governo, a FNB “é con-
tra o comunismo e, por todas as formas, combaterá essa doutrina caótica e inadaptável
ao Brasil. Por isso mesmo”, disse Napoleão, “estranhei que o extremista preso em Santa
Quitéria se arrogasse essa qualidade”.53
No dia 12 de janeiro de 1937, o deputado Adalberto Corrêa, em sessão no Parlamento
Federal, valeu-se da tribuna para acusar Agamenon Magalhães, ministro do Trabalho e interi-
no da Justiça, de “simpatia pelos extremistas”, de acordo com “documentação” que supos-
tamente existia “na Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo”.54 Corrêa prometeu

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Petrônio Domingues

apresentar a documentação,55 o que nunca ocorreu. Seu gesto, entretanto, foi suficiente para
gerar uma forte reação dos aliados do governo.56 Francisco Napoleão, por exemplo, acorreu
aos veículos da imprensa para se posicionar na polêmica:

Venho tornar público, através d’A Noite, a irrestrita solidariedade da Frente Negra Brasileira com
o Sr. Agamenon Magalhães, ministro do Trabalho e interino da Justiça, absurdamente acusado
da tribuna da Câmara de cultivar simpatias pelos extremistas. A F.N.B., que combate e comba-
terá sempre qualquer extremismo, não podia calar sua repulsa a tais acusações intempestivas e
descabidas — conclui o sr. Antônio Francisco Napoleão.57

A percepção de que havia a necessidade de se posicionar e intervir nas questões da


agenda nacional levou a FNB a reafirmar a estratégia de se organizar politicamente. Seus
dirigentes apontavam a importância de o negro vir a se impor politicamente, como também
os caminhos para que tais objetivos se realizassem. Francisco Napoleão postulava que, para
“quebrar as barreiras que dificultam a existência do negro no Brasil em pé de igualdade
com o branco”, deviam-se “criar instituições de assistência e amparo mútuo aos negros e
formar o nosso partido político”, no qual “aceitaremos todos os brasileiros de boa vontade
e patriotismo, que queiram colaborar na obra de redenção do negro da servidão da falsa
democracia em que vivemos”.58 O negro devia ter autodeterminação, refregando com suas
próprias forças na edificação de associações em favor de seus direitos e, assim, não depen-
der dos brancos.
Essa feição política, de que aos poucos se revestiu a agremiação, desembocou na
formalização da FNB como partido político. “Organiza-se o partido dos homens de cor”,
manchetou A Noite em 1o de outubro de 1935. “A Frente Negra acaba de se converter em
partido político, direito que lhe foi reconhecido pela Justiça Eleitoral”, assinalou o jornal.59
Os negros teriam se cansado de ser preteridos no jogo político-eleitoral ou de servir apenas
para cabos eleitorais de candidatos brancos. Apesar de todo o empenho, a agremiação não
teve a oportunidade de passar pelo teste das urnas. Em fins de 1936 e nos primeiros meses
de 1937, definiram-se as candidaturas à sucessão presidencial nas eleições previstas para
janeiro do ano seguinte. Na última semana de agosto de 1937, quando a campanha andava
a todo vapor, Luís Costa, um representante da Frente Negra do Distrito Federal, contou ao
Jornal do Brasil que a agremiação não tinha “ainda se definido” sobre a “questão da su-
cessão presidencial”.60 Essa foi a última notícia encontrada sobre a Frente Negra. No dia 10
de novembro de 1937, Vargas liderou um golpe autoritário e instaurou a ditadura, batizada
de Estado Novo. Das várias medidas discricionárias adotadas, o governo proibiu a existência
de qualquer organização política (Rose, 2001; Fausto, 2006), o que levou ao fechamento da
FNB e de suas diversas delegações.

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“Tudo pelo Brasil; tudo pela raça”: a Frente Negra Carioca

Conclusão

P ara entender as ações coletivas, as retóricas raciais, as estratégias políticas e os projetos


identitários forjados pela população afro-brasileira, não se pode negligenciar o papel
desempenhado pelas associações negras nesse processo. Nas primeiras décadas do século
XX, floresceram diversas dessas associações, sendo a principal delas a FNB, nascida na capital
paulista em 16 de setembro de 1931 e que, em menos de seis meses, expandiu-se e abriu uma
delegação no Rio de Janeiro.
O associativismo negro já ocupava a esfera pública da capital da República, com seus
programas, arenas, narrativas e políticas raciais. Consultando os jornais do período, encon-
tramos notícias sobre a Congregação Beneficente dos Homens de Cor, que costumava come-
morar a Abolição da escravidão na data de 13 de maio,61 assim como nos deparamos com
a atuação da Associação dos Homens de Cor, que fora criada no Rio de Janeiro durante a
década de 1920 e procurou inscrever na agenda do estado a discussão sobre o problema da
“linha de cor” que afetava a população negra; em agosto de 1937, a associação participou
do debate público em torno do pleito sucessório para presidente da República.62 A despeito
dessas agências e ações coletivas, a Frente Negra Carioca se distinguiu como uma associação
em defesa dos afro-brasileiros na década de 1930.
Sua experiência histórica deve ser vista como uma tentativa de o negro se unir, tecer
laços de solidariedade e ter uma associação que advogasse por seus direitos. A Frente Negra
valorizava as ações no campo educacional. Por intermédio da educação, o negro vislumbraria
a possibilidade de obter reconhecimento dentro da sociedade e, assim, atenuar a discrimi-
nação e até mesmo erradicá-la. A esse respeito, a agremiação denunciava a existência de
preconceitos e discriminações raciais, como também se insurgia contra tais ocorrências.
Havia, por parte da Frente Negra, a expectativa de participação político-institucional. Sua
trajetória evidencia o propósito de levar o negro a ocupar espaços na sociedade e a travar de-
bates e embates para se tornar um verdadeiro cidadão. A necessidade de o negro pugnar por
um lugar no cenário brasileiro é amiúde lembrada e relembrada. Com esse espírito, a agremia-
ção buscou interferir diretamente nas questões conjunturais. Tomou partido e se posicionou
perante as forças políticas que atuavam na época.
Conhecer a Frente Negra do Rio de Janeiro é importante para compreender, ao menos par-
cialmente, as condições em que o negro carioca agenciou sua luta e as dificuldades que encon-
trou pelo caminho, mesmo porque essa entidade, na década de 1930, constitui parte intrínseca
dessa luta e com ela por vezes se confunde. Contudo, sua história ficou na sombra. Este artigo é
o primeiro passo no sentido de tirar essa pulsante experiência de associativismo negro do limbo.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 343-348, setembro-dezembro 2018 343
Petrônio Domingues

NOTAS

1 Diário de Notícias, p. 3, 16 fev. 1932.


2 Diário Nacional, p. 2, 19 set. 1931; Diário da Noite, p. 3, 18 set. 1931; Revista da Semana, p. 17, 12 dez.
1931.
3 2o Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de São Paulo – Capital.
Estatuto da Frente Negra Brasileira, inscrita sob o no 75, livro A, no 1, Registro Civil de Pessoas Jurídicas, em
5 de novembro de 1931.
4 Diário Nacional, p. 2, 4 mar. 1932.
5 2o Oficial de Registro de Títulos e Documentos… Op. cit.
6 Sobre o jornal A Voz da Raça, ver Silva (2003) e Lima (2011).
7 Correio da Manhã, p. 5, 20 jan. 1933.
8 2o Oficial de Registro de Títulos e Documentos… Op. cit.
9 Correio de São Paulo, p. 1, 13 maio 1935; Diário Nacional, p. 8, 14 maio 1932; Correio de São Paulo,
p. 6, 22 set. 1936.
10 2o Oficial de Registro de Títulos e Documentos… Op. cit.
11 Diário da Noite, 2. ed., p. 7, 11 fev. 1932.
12 A Noite, p. 4, 12 fev. 1932.
13 Jornal do Brasil, p. 8, 13 fev. 1932.
14 Correio da Manhã, p. 3, 13 fev. 1932.
15 A Noite, p. 4, 12 fev. 1932.
16 Correio da Manhã, p. 2, 14 fev. 1932.
17 Jornal do Brasil, p. 12, 23 fev. 1932; Diário Carioca, p. 8, 25 fev. 1932.
18 Diário Carioca, p. 10, 21 fev. 1932; Diário da Noite, 2. ed., p. 2, 22 fev. 1932.
19 A Batalha, p. 7, 25 fev. 1932; O Jornal, p. 11, 25 fev. 1932.
20 Diário da Noite, 2. ed., p. 1, 25 fev. 1932.
21 Ibidem, p. 7, 11 fev. 1932.
22 Idem.
23 Idem.
24 Jornal do Brasil, p. 7, 8 ago. 1933.
25 Jornal do Brasil, p. 8, 7 jun. 1932.
26 O Radical, p. 5, 7 jul. 1939.
27 O Jornal, p. 4, 16 set. 1934.

344 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 344-348, setembro-dezembro 2018
“Tudo pelo Brasil; tudo pela raça”: a Frente Negra Carioca

28 Diário da Noite, 4. ed., p. 1, 5 set. 1935.


29 Diário Carioca, p. 6, 19 jan. 1933.
30 Diário de Notícias, p. 2, 11 fev. 1933.
31 Diário da Noite, 4. ed., p. 1, 5 set. 1935.
32 Jornal do Brasil, p. 22, 6 set. 1933.
33 “Monroe” era o nome de um imponente palácio localizado na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro,
que nessa época sediava o Senado Federal.
34 A Manhã, p. 3, 1o jun. 1935.
35 O Paiz, p. 4, 19 dez. 1933.
36 A Nação, p. 13, 1o fev. 1933.
37 Evaristo de Moraes (1871-1939) era um rábula que se tornou advogado, tendo a vida marcada pelos
mais importantes movimentos político-sociais de sua época. Destacou-se pela erudição jurídica, embora tenha
escrito sobre diversos temas. Integrou a equipe do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio de Getúlio
Vargas, tendo sido o responsável pela lei de sindicalização de 1931. José de Souza Marques (1894-1974) era
um professor que se tornou figura pública no Rio de Janeiro. Era pastor da Igreja Batista e fundou, em 1929,
uma escola primária que se transformou no Colégio Souza Marques. Acumulou experiência ainda na carreira
política, tendo sido inclusive vereador pelo Distrito Federal em 1935.
38 A Manhã, p. 3, 1o jun. 1935; Diário da Noite, 4. ed., p. 1, 5 set. 1935.
39 Diário Carioca, p. 6, 6 jan. 1934.
40 A Noite, p. 1, 13 set. 1935.
41 Diário de Notícias, p. 6, 4 fev. 1933.
42 A Manhã, p. 3, 31 out. 1935. Sobre a relação da Frente Negra Brasileira com as forças políticas da esquer-
da e da direita na década de 1930, ver Graham (2014).
43 Quando o diário A Manhã repercutiu um metting que ocorreu em Barra do Piraí, cidade do interior do
Rio de Janeiro, no dia 5 de julho de 1935, informou que “um orador […] referiu-se à união dos negros, e na
necessidade de ser organizada a frente negra para defesa dos interesses dos homens de cor”. A Manhã, p.
2, 9 jul. 1935.
44 Jornal do Brasil, p. 15, 23 set. 1933. Essa mesma nota foi publicada no Diário Carioca, p. 4, 23 set. 1933
45 O Radical, p. 2, 21 dez. 1934.
46 O Radical, p. 6, 17 maio 1935.
47 A Noite, p. 1, 13 set. 1935.
48 A Noite, 2. ed., p. 1, 1o out. 1935.
49 Correio da Manhã, p. 3, 29 out. 1932; Diário de Notícias, p. 4, 29 out. 1932; O Jornal, p. 14, 29 out. 1932.
50 A Noite, p. 2, 25 jan. 1937.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 345-348, setembro-dezembro 2018 345
Petrônio Domingues

51 O Radical, p. 2, 16 nov. 1932.


52 Jornal do Brasil, p. 7, 15 nov. 1932; Diário Carioca, p. 3, 15 nov. 1932; Diário da Noite, p. 1, 14 nov. 1932;
O Radical, p. 1, 15 nov. 1932.
53 A Noite, p. 6, 24 mar. 1936.
54 Diário de Notícias, p. 2-3, 13 jan. 1937; Jornal do Brasil, p. 7, 13 jan. 1937.
55 Diário de Notícias, p. 4, 14 jan. 1937; Gazeta de Notícias, p. 2, 16 jan. 1937.
56 Diário de Notícias, p. 4, 15 jan. 1937; Gazeta de Notícias, p. 6, 17 jan. 1937.
57 A Noite, p. 2, 25 jan. 1937.
58 A Noite, p. 1, 13 set. 1935.
59 A Noite, 2. ed., p. 1, 1o out. 1935. De acordo com esse periódico, Francisco Napoleão pretendia “desde
logo arregimentar os homens de cor do Distrito Federal, para a incorporação de todos esses elementos ao
movimento social e às hostes partidárias”. A Noite, p. 1, 13 set. 1935.
60 Jornal do Brasil, p. 7, 25 ago. 1937.
61 Diário Carioca, p. 4, 13 maio 1933.
62 Jornal do Brasil, p. 7, 25 ago. 1937.

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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 347-348, setembro-dezembro 2018 347
Artigo

Associativismos de trabalhadores
favelados no Rio de Janeiro e em
Belo Horizonte (1954-1964)
The associativism of workers from favelas in Rio de Janeiro and
Belo Horizonte (1954-1964)
Asociativismos de trabajadores residentes en las favelas de Rio
de Janeiro y Belo Horizonte (1954-1964)

Samuel Silva Rodrigues de OliveiraI *

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300003

I
Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – RJ, Brasil.
*Pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), doutor em História, Política e Bens Culturais pelo
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas. Professor do Ensino
Técnico Integrado no Centro Federal Tecnológico Celso Suckow (CEFET-RJ); pesquisador no Programa de Pós-graduação de
Relações Étnico-Raciais (PPRER-CEFET-RJ). (samu_oliveira@yahoo.com.br)
Artigo recebido em 24 de maio de 2018 e aceito para publicação em 10 de setembro de 2018.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 349-368, setembro-dezembro 2018 349
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

Resumo
O artigo compreende a formação da União dos Trabalhadores Favelados (UTF) no Rio de Janeiro e a Federação dos
Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH) no contexto da experiência democrática (1945-1964), analisan-
do a formação das associações supralocais de moradores e a constituição da cultura e identidade política dos traba-
lhadores favelados no processo de urbanização brasileiro. A partir da pesquisa histórica sobre as favelas, a análise
constrói uma escala de comparação entre os associativismos do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte.

Palavras-chave: Trabalhadores favelados; Movimento de favelas; Experiência democrática.

Abstract
The article considers the formation of the Union of Workers from Favelas (União dos Trabalhadores Favelados - UTF)
in Rio de Janeiro and the Federation of Workers from Favelas of Belo Horizonte (Federação dos Trabalhadores Favela-
dos de Belo Horizonte -FTFBH) in the context of the democratic experience (1945-1964). Furthermore, it analyzes the
formation of supra-local resident associations and how the culture and political identity of favela workers has been
constituted in Brazilian’s process of urbanization. Grounded in historical research on favelas, the study’s analysis
makes comparisons between the associations in Rio de Janeiro and Belo Horizonte.

Keywords: Favela workers; Favela movements; Democratic experience.

Resumen
El artículo comprende la formación de la União dos Trabalhadores Favelados (UTF) en Rio de Janeiro y la Federação
dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH) en el contexto de la experiencia democrática (1945-1964),
analizando la formación de las asociaciones supralocales de residentes y la constitución de la cultura e identidad po-
lítica de estos trabajadores en el proceso de urbanización brasileño. Basado en la pesquisa histórica respecto de las
favelas, el análisis construye una escala de comparación entre los asociativismos de Rio de Janeiro y Belo Horizonte.

Palabras clave: Trabajadores residentes en las favelas; Movimiento de favelas; Experiencia democrática.

350 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 350-368, setembro-dezembro 2018
Associativismos de trabalhadores favelados no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte (1954-1964)

Introdução

A s associações de “trabalhadores favelados” ganharam destaque na política das déca-


das de 1950 e 1960. No Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, encontra-se a expressão
“trabalhadores favelados” nas petições aos órgãos legislativos e executivos, nos discursos
de partidos políticos, nos congressos organizados pelos movimentos sociais, em jornais e nas
mobilizações públicas de moradores em favelas. As práticas de associativismo e mobilizações
urbanas desse período possuem historicidades próprias, mas são comumente enquadradas no
senso comum e nas análises socio-históricas do período a partir da noção vaga e constante-
mente reatualizada do populismo (Gohn, 2000: 17).
As ortodoxias do populismo de direita e esquerda na interpretação da experiência de
democracia-liberal (1945-1964) homogeneízam um espaço de atuação que é complexo, produ-
zindo generalizações redutoras das lutas dos trabalhadores. Ao reduzirem comportamentos po-
líticos e sociais a posições fixas na estrutura socioeconômica, não compreendem que os traba-
lhadores se tornam atores dos processos históricos utilizando repertórios e gramáticas públicas
que estão disponíveis em diversos contextos para construírem sentidos distintos sobre as (in)
justiças na ordem capitalista. As ortodoxias do populismo enfatizam a “ausência de consciência
de classe” dos migrantes que estariam arraigados em um universo tradicional, “pré-político”,
quando, ao contrário, observam-se mediações complexas entre os grupos, partidos, a cultura
popular e as formas de associações na reinvenção de direitos (Ferreira, 2001; Gomes, 2001,
2002; Reis Filho, 2001; Capelato, 2001; Duarte & Fontes, 2004; Negro, 2004; Fortes, 2010).
Ao idealizar ou teorizar uma maneira homogênea de agir dos trabalhadores, essas in-
terpretações reforçam as leituras elitistas da história do Brasil, pouco atentas às formas de
organização e práticas sociais dos grupos subalternizados na sociedade. Nos anos 1980, Paoli
e Sader (1986) fizeram uma análise que ganha sentidos renovados no senso comum que vem
sendo produzido no século XXI: a partir da leitura da produção das Ciências Sociais e das
interpretações da história e identidade nacional, observaram a permanência de uma imagem
do “povo” e das classes populares como alteridade negativa do Estado e da sociedade. Se-
gundo os autores, “a visão de uma sociedade fragmentada e em decomposição diante dos
imperativos históricos de mudança social, esta representação do ‘povo’ e do ‘caráter popular’
brasileiro, inventou sua fórmula que fez eco por todo pensamento intelectual do século XX,
apesar da crítica que se fez aos seus termos” (1986: 42). O populismo é uma das categorias
que dialogam com essa matriz de interpretação elitista da história, constituindo-se como um
mito na cultura política brasileira — atualizado em diferentes conjunturas apesar das críticas
ao conceito (Gomes, 2002: 63-65).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 351-368, setembro-dezembro 2018 351
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

As histórias dos associativismos de trabalhadores favelados se inserem nas tradições de pro-


testo que configuram a política do período republicano de 1945 a 1964. Na historiografia do
período democrático, essas práticas de protesto são pouco enfatizadas, pois as análises priorizam
a construção das identidades políticas dos trabalhadores através da história dos partidos ou sindi-
catos. Quando as associações civis são analisadas, elas são reduzidas a contextos e conjunturas es-
pecíficas de cada cidade ou mesmo de uma localidade (bairro, região, favela etc.), como se fossem
únicas ou existissem deslocadas da formação da comunidade política nacional e desconectadas de
outras experiências urbanas. Neste artigo, analisa-se de forma comparada a trajetória dos associa-
tivismos articulados em torno da União dos Trabalhadores Favelados do Rio de Janeiro (UTF) e da
Federação de Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH) nas décadas de 1950 e 1960.
Diferentemente da maior parte da bibliografia da história das favelas que está centrada
em análises do Rio de Janeiro (Valladares & Medeiros, 2003), este artigo constrói uma escala
de comparação que incorpora a análise de Belo Horizonte e permite explicar a forma como
os movimentos de trabalhadores favelados se inserem em mudanças de repertórios de ação
coletiva e na formação de uma gramática pública sobre a reforma urbana no Brasil. Além
disso, em um campo de estudo que prevalece as análises da Sociologia Urbana, Antropologia
e Urbanismo, a análise desenvolvida neste artigo se vincula à História, que tem ampliado o
escopo de discussão sobre as favelas a partir dos anos 2000 (Knaus & Brum, 2013: 130-137).
Ao construir a escala de comparação, formou-se um corpus de documentos nas duas
cidades para permitir a análise conectada dos associativismos de “trabalhadores favelados”
do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. Os estatutos das associações, registros dos movimentos
de trabalhadores favelados na imprensa escrita, as estatísticas sobre favelas, os arquivos
compulsados das polícias políticas estaduais de Minas Gerais e Rio de Janeiro, os projetos de
lei apresentados nos legislativos municipais e leis de postura de cada cidade são cotejados
tendo em vista a compreensão comparada das associações de “trabalhadores favelados”.

Movimentos de “trabalhadores favelados” no Rio de


Janeiro e em Belo Horizonte

O s associativismos da UTF e FTFBH mostram a emergência de um movimento social que


reivindica a identidade de “trabalhadores favelados”. A expansão de direitos políticos
e sociais no período da experiência democrática (1945-1964) e as situações vividas em áreas
de pobreza urbana enredaram experiências individuais e coletivas de reivindicação de direitos.
Eram lutas que politizavam o processo de urbanização e a expansão da pobreza urbana nas
décadas de 1940 e 1960 (ver Tabela I).

352 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 352-368, setembro-dezembro 2018
Associativismos de trabalhadores favelados no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte (1954-1964)

Tabela I - Habitantes, domicílios e favelas em censos


no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte1
Rio de Janeiro Belo Horizonte
Nº de Nº de Nº de Nº de Nº de Nº de
favelas domicílios habitantes favelas domicílios habitantes
1948 105 34.064 138.837 –* – –

1950 58 −** 169.305 – − −

1955 − − − 23 9.343 36.432

1960 147 70.353 335.063 − − −

1965 − − − 79 25.076 119.799

* Não houve trabalhos de levantamento censitário nesse período.


** O dado não foi coligido no censo do referido ano.
Fonte: Oliveira, 2014: 121.

O crescente número de domicílios e habitantes em favelas evidencia a forma como a au-


toconstrução se generalizou nas transformações urbano-industriais experimentadas entre as
décadas de 1940 e 1960 nas duas cidades. O rápido crescimento das metrópoles e o aumento
do “déficit” habitacional, relacionado ao cenário de uma inflação em expansão e às formas de
regulamentação do mercado imobiliário, concorreram para a redução da oferta de moradias
de aluguel e o aumento da autoconstrução em periferias urbanas e favelas como forma de
morar nas cidades do Rio de Janeiro e Belo Horizonte (Guimarães, 1991, 1992; Abreu, 2003,
2010; Bonduki, 2004).
Nessa configuração social, as mobilizações de moradores de favelas politizavam o pro-
cesso de urbanização e o direito à cidade. As mobilizações dos moradores de favelas reivindi-
cavam a construção de melhores condições de moradia e lazer através de mutirões e petições
de “melhoramentos” (bicas de água, caixas de água, arruamento, escadas, escolas, postos
de assistência social etc.) aos órgãos do poder público, e se destacavam na luta contra os
despejos coletivos promovidos pelo poder público e por agentes imobiliários interessados em
construir moradias para as classes médias ou adquirir terrenos nas proximidades das áreas
identificadas como de ocupação informal. Esses associativismos se contrapunham aos pro-
jetos e normas urbanísticas que classificavam as favelas como “ilegais”. O Código de Obras
do Rio de Janeiro de 1937 e a Lei 572 de 1956 em Belo Horizonte proibiam quaisquer cons-
truções de melhorias urbanas pelo poder público nesses espaços, justificavam a repressão da

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 353-368, setembro-dezembro 2018 353
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

autoconstrução, e classificavam esses territórios como transitórios no processo de moderniza-


ção das cidades, definindo um status de ilegalidade urbanística à moradia em favela (Fischer,
2008: 44-49; Gonçalves, 2013: 117-122; Oliveira, 2014: 44-59).
Nesse cenário de politização do espaço urbano, a expansão dos associativismos e a
formação de federações, coligações ou “uniões” de trabalhadores favelados no Rio de Janeiro
e Belo Horizonte se relaciona à conjuntura de municipalização do jogo político na experiência
democrática. A Constituição de 1946 restabeleceu o princípio da autonomia municipal como
base para a organização política das cidades.
Após os anos da ditadura do Estado Novo, a redemocratização concorreu para o aumen-
to da competição eleitoral e da participação popular na esfera municipal. No Rio de Janeiro,
a reorganização para a Câmara Municipal do Distrito Federal e a eleição de deputados e
senadores para a Câmara Federal abriu espaço para as mobilizações de diferentes partes da
cidade reivindicando melhorias das condições de vida. Em uma cidade em que o prefeito era
escolhido pelo presidente da república, a reativação de práticas políticas reprimidas durante
o Estado Novo foi importante para a mobilização política do associativismo de moradores de
favelas diferentes matizes2. Em Belo Horizonte, os efeitos da constituição não foram diferentes.
Da data de fundação da cidade, em 1897, até 1946, a capital mineira teve a maior parte de
seus prefeitos escolhida pelo governador do estado. A redemocratização de 1945 foi experi-
mentada com a eleição de um prefeito e de uma Câmara de Vereadores — esta foi constituída
pela primeira vez em 1937, mas foi dissolvida em função da ditadura do Estado Novo (Silva,
1998: 42-50).
A municipalização da política e a expectativa de expansão da democracia no pós-guerra
foram acompanhadas pela luta dos partidos para formalizar bases políticas nos espaços ur-
banos. A pobreza urbana se tornara um tema de destaque e não foram poucos os políticos
classificados como “populistas” (“populares” e/ou “demagogos”) que tentavam se constituir
como “campeões” das favelas e dos subúrbios, representando demandas de “melhoramentos
urbanos”. Durante o período democrático, comunistas, trabalhistas, católicos e outros grupos
ligados a lideranças políticas locais fomentaram práticas associativas tendo em vista as dispu-
tas políticas nas cidades3.
A UTF e a FTFBH se diferenciavam de outras formas de mobilização por reunirem asso-
ciações de moradores de diferentes localidades em torno de objetivos comuns. Tentavam em
alguma medida romper com a política clientelista, que marcou o contato com políticos do
referido período, realizando passeatas, petições públicas, manifestos e congressos de traba-
lhadores favelados para reunir lideranças de associações, moradores de favelas e outros seg-

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Associativismos de trabalhadores favelados no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte (1954-1964)

mentos sociais interessados na pauta do direito à moradia e da reforma urbana. Trata-se de


uma mudança na estratégia que teve longo alcance na dinâmica da política urbana no final da
década de 1950 e início de 1960, ainda que não tenha conseguido unificar todas associações
de favelas em torno dos projetos das “uniões” e “federações”.
Entre março e abril de 1954, a UTF do Rio de Janeiro (então, Distrito Federal), constituiu-se
a partir das mobilizações dos moradores do Morro do Borel. Homens, mulheres e crianças
lutavam contra os despejos promovidos pela incorporadora imobiliária Borel Meuron Ltda.
A experiência ganhou evidência no espaço público e se expandiu para outras localidades;
quatro anos após sua fundação, em um panfleto da entidade, constava a reunião de cerca de
trinta e seis associações de moradores de favelas. As associações foram reprimidas pela polícia
política e a UTF chegou a ser fechada em 1957, mas se rearticulou em mobilizações contra o
despejo, sendo refundada sem a mesma expressão política anterior. Em 1959, constituiu-se
a Coligação dos Trabalhadores Favelados do Rio de Janeiro, em uma tentativa de rearticular
as mobilizações supralocais em vista do declínio da UTF. Em 1963, outra entidade se cons-
tituiu: a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara — uma instituição
que recuperava a experiência associativa anterior, mas estabelecia uma relação mais próxima
com poder público do estado da Guanabara (Boschi, 1987: 48-55; Lima, 1989:102-124; Bur-
gos, 2006: 28-34; Machado da Silva, 2002: 229-230; Pandolfi & Grynzpan, 2002: 242-244;
Fischer, 2008: 277-302; Gonçalves, 2013: 151-159; Amoroso, 2012: 91-119; Oliveira, 2014:
213-271; Pestana, 2016: 96-176).
Em Belo Horizonte, a FTFBH foi organizada em 1959. Tinha como exemplo a experiência
dos moradores da Vila dos Marmiteiros que lutavam pela moradia contra os despejos da Em-
presa Mineira de Terrenos Ltda. Essa experiência de resistência ao despejo ganhou evidência
no legislativo e executivo municipal, em jornais e discursos públicos. Em 1964, às vésperas de
ser fechada em função do Golpe de 1964 e de um inquérito organizado pela polícia política
do estado de Minas Gerais, contava-se cerca de cinquenta e cinco associações de moradores
ligadas à FTFBH. Em 1963, algumas de suas associações dissidentes formaram a Organização
dos Trabalhadores Favelados, mas a mesma não teve sucesso em se consolidar (Afonso &
Azevedo, 1987: 112-130; Somarriba, Afonso & Valladares, 1984: 35-44; Cunha, 2003: 52-70;
Oliveira, 2010: 25-59).
A mudança de estratégia na mobilização das associações de moradores foi também
experimentada nas associações de bairro. No Rio de Janeiro, nos anos 1950, foram fundadas
várias Sociedades de Amigos de Bairro, com a seguinte orientação: “reúnam os moradores do
seu bairro e salvemos a cidade” (Prezado Leitor..., 1958). Em 1959, essas entidades realiza-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 355-368, setembro-dezembro 2018 355
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

ram o seu IV Congresso de Amigos dos Bairros, tinham como objetivo a formação da Federa-
ção de Amigos de Bairros, mas tal proposta não foi concretizada. Entendiam que cada bairro
deveria trabalhar por conta própria seus problemas urbanos e que uma federação traria ques-
tões políticas prejudiciais às associações e seus embates (A Tijuca e a Federação..., 1959). Em
Belo Horizonte, em 1963, moradores de bairros e vilas se reuniram na Confederação Nacional
dos Trabalhadores da Indústria (CNTI) “a fim de estudarem a formação de uma Federação dos
Comitês Pró-melhoramentos desses núcleos”, anunciando a realização de um congresso de
moradores, para enviar uma “carta de reivindicações” à Prefeitura (Bairros e Vilas..., 1963).
Nesse mesmo ano, várias associações de bairro e favelas já haviam organizado manifestações
conjuntas contra o aumento das passagens de ônibus (Campanha dos Comitês..., 1963), mas
essa federação de comitês pró-melhoramentos também não chegou a ser criada, permane-
cendo como um projeto.
Na segunda metade da década de 1950, as estratégias de formar federações ou “uniões”
reunindo várias associações de moradores não foi algo particular ao Rio de Janeiro e a Belo
Horizonte. Elas se relacionavam com um quadro de mudança nas performances das associa-
ções de moradores nos conflitos políticos urbanos. Em São Paulo, criou-se a Federação das
Sociedades de Amigos de Bairros e Vilas de São Paulo (Fesab) no ano de 1954; no ano de
1959, há o registro de um evento que congregava as Sociedades de Bairros na cidade de Sal-
vador (Fontes, 2010: 276; Sociedades de Bairros..., 1959). Os repertórios de ação coletiva dos
moradores de favelas foram apreendidos em um processo amplo de imitação, diferenciação e
consolidação de estratégias de mobilização supralocal para disputar o jogo da política urbana
nos governos municipais.
Ao mesmo tempo que representavam uma alternativa ao clientelismo, as associações su-
pralocais constituíam vínculos entre as lideranças locais e moradores de favelas com projetos
de partidos de esquerda. As principais mobilizações da UTF e da FTFBH ganharam evidência
nos órgãos legislativos e nos períodos eleitorais tendo em vista a mobilização da esquerda.
No Rio de Janeiro, as eleições de 1954, 1955, 1958 e 1960 foram de destaque para a atuação
política dos trabalhadores favelados. Em Belo Horizonte, as eleições de 1958, 1960 e 1962
também foram momentos de mobilização e evidência no espaço público para o associativismo
de favelas ligado à FTFBH.
A UTF ganhou espaço na coluna Morros e Favelas (1956-1957) do jornal Imprensa
Popular — periódico vinculado ao Partido Comunista do Brasil (PCB) — e a FTFBH imprimiu
o jornal O Barraco — órgão da Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizon-
te (1962-1964) como suplemento e parte do jornal Binômio — impresso ligado ao Partido
Socialista Brasileiro (PSB). Esses veículos de comunicação não deixam dúvidas quanto à im-

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Associativismos de trabalhadores favelados no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte (1954-1964)

portância da expansão dos direitos políticos e do processo de formação de base dos partidos
de massa nos espaços urbanos na configuração dos associativismos em pauta, mas também
mostram o alinhamento da agenda de mobilização dos associativismos aos projetos e debates
da esquerda que enfocavam as reformas sociais na arena política nacional.
Além dos veículos de comunicação que difundiam a gramática da luta dos movimentos
de trabalhadores favelados, deve-se destacar a atuação dos “advogados das favelas” — ato-
res que faziam a mediação dentro e fora das favelas entre os interesses dos moradores e as
disputas político-partidárias. Personagens centrais dos movimentos de trabalhadores favela-
dos, eles articularam a atuação em ações jurídicas contra o despejo, organizaram mobilizações
junto aos moradores, formularam projetos de lei apresentados no legislativo local visando à
garantia do direito de moradia nas favelas, e foram porta-vozes da UTF e FTFBH. Os “advoga-
dos das favelas” da UTF e da FTFBH tiveram carreiras políticas distintas, mas eram ligados às
esquerdas e às mobilizações nacionalistas das reformas de base.
No Rio de Janeiro, Magarinos Torres Filho foi o personagem-chave na organização do
movimento de trabalhadores favelados. Sócio e “fundador nº 1”, e “secretário geral” da UTF,
o “advogado das favelas” era filho de jurista, morava no bairro da Tijuca (Rua Conde de Bon-
fim, nº 1.381), e era, possivelmente, membro do Partido Comunista do Brasil (PCB). Participou
da Associação de Juristas Democratas (1951), da Confederação Mundial pela Paz (1952) e do
Movimento Nacionalista Popular Trabalhista (1955-1956), empenhando-se nos debates sobre
a legalização do PCB e nas lutas nacionalistas. Durante o período em que atuou como advo-
gado das favelas, construiu uma forte aliança com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB): tentou
se eleger para o legislativo da cidade em 1958 e deputado em 1960 pelo Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB) quando não alcançou seu intento, e chegou a se eleger como suplente de
Leonel Brizola pelo estado da Guanabara em 1962.
A memória social sobre a atuação do “advogado das favelas” é dividida: na região do
morro do Borel e da Formiga, na Tijuca, tem-se o “mito do homem providencial” (Amoroso,
2012: 120-126), capaz de resolver os problemas e atuar em favor do bem comum da comuni-
dade; na favela da Maré, por outro lado, Magarinos Torres é o “demagogo” acusado de crime
em uma disputa de poder com movimentos associativos contrários a sua atuação no início
dos anos 1960 e visto como um inimigo diante das tentativas do governador udenista Carlos
Lacerda (1961-1965) em criar uma base política em diferentes comunidades (Amoroso, 2012:
134-140; Pestana, 2016: 233-252). Na década de 1950, Magarinos Torres se envolveu com
disputas pela representação dos “trabalhadores favelados” com outras figuras de peso como
Geraldo Moreira — político do PTB que tinha base política na Barreira do Vasco e na favela
do Jacarezinho (Fischer, 2008: 264-276; Oliveira, 2014: 253-270).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 357-368, setembro-dezembro 2018 357
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

Em Belo Horizonte, os “advogados da favela” foram Fabrício Soares e Dimas Perrin. O


primeiro foi deputado estadual em duas legislaturas pela União Democrática Nacional (UDN),
e, em 1958, rompeu com o udenismo, engajando-se nas lutas nacionalistas pela defesa do
petróleo e do minério. Nesse período, ele se aproximou do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e
do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), atuando junto ao movimento sindical e no movimento
da FTFBH. A partir de 1963, Fabrício Soares se afastou da FTFBH, e Dimas Perrim assumiu a
posição de “advogado das favelas”. Este foi operário, formou-se em advocacia em 1962, e era
comunista — como o PCB era ilegal, para atuar na política, filiou-se ao PTB de Belo Horizonte.
Entre 1963 e 1964, Dimas Perrin foi advogado da FTFBH e conquistou um mandato de ve-
reador. Tentou se eleger como “candidato dos favelados” nas eleições de 1962, conseguindo
uma cadeira suplente e assumindo a vereança em 1963 (Oliveira, 2014: 217-218).
Os advogados da FTFBH também conviveram com disputas e contendas políticas: em
1962, um dos avisos do jornal O Barraco alertava os moradores de favelas contra os “advo-
gados de última hora” que se transvestiam de defensores de favelas no período eleitoral com
objetivos demagógicos (Favela em Revista..., 1962).
Em contextos de mobilizações eleitorais, os associativismos de trabalhadores fave-
lados e seus advogados concorriam contra outros partidos políticos, ora sendo acusados
de “demagogos”, ora identificados como “autênticos” representantes dos interesses dos
moradores de favelas. A disputa ocorria não só pelos votos nas favelas, mas pela gramática
pública e o repertório de ação que evidenciava uma linguagem para expressar a luta por
direitos dos moradores.

A gramática da vida pública dos “trabalhadores


favelados” e a luta pelo direito de moradia

A s associações de “trabalhadores favelados” constituíram uma gramática pública para


reivindicar direitos e politizar as relações de classe no espaço urbano das duas cidades
brasileiras. Os associativismos civis na História e Ciência Política são, comumente, vistos como
grupos de pressão ou interesse econômico, sem historicizar e problematizar as performances e
repertórios de ação que lhes são próprias. Ocultar os repertórios de ação aprendidos e inven-
tados contribui para a incompreensão desses fenômenos, uma vez que esses são elementos
fundamentais na construção da identidade política de associações civis (Cefaï, 2001; Cefaï,
Mello, Veiga & Mota, 2011).
A UTF e FTFBH elaboraram associações modelares que articularam narrativas de luta em
comum e se transformaram em referências para o comportamento político dos trabalhadores

358 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 358-368, setembro-dezembro 2018
Associativismos de trabalhadores favelados no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte (1954-1964)

favelados. No Rio de Janeiro, a UTF difundiu um associativismo específico: os “Centros dos Tra-
balhadores Favelados” (CTF). Ainda que algumas entidades fossem fundadas com diferentes
nomes em seus estatutos — “Associações Pró-Melhoramentos”, “Centro Pró-melhoramen-
tos”, “Associação de Moradores”, procurava-se, no espaço público, dar certa unidade a essas
associações, reconhecendo-as como “Centro de Trabalhadores Favelados”, “diretório” da UTF,
“centros da UTF” ou “Centros de União”.
Esse enquadramento do associativismo civil levou à formação de narrativas políticas que
representassem as bases da solidariedade dos trabalhadores favelados. Isso ficou expresso,
por exemplo, na letra de um “hino” da UTF:

União dos Trabalhadores Favelados


Uma esperança nos nossos corações!
Todos unidos para a luta organizados
Em defesa de nossos barracões! (bis)

Nós já temos Centros de União


Não vivemos sem defesa nem à toa
Ombro a Ombro nós mostraremos à Nação
Que quem mora na favela é gente boa! (Mais Unidos..., 1955)

O hino foi composto por Rafael Carvalho, artista do Morro Salgueiro e membro do De-
partamento Cultural da UTF. Foi cantado na fundação de entidades, em shows de calouros
e outras ocasiões festivas organizadas pelas associações, e em uma manifestação da UTF na
Câmara Federal (Concentram-se..., 1955). O hino apresentava uma contraposição ao estigma
de classes perigosas, narrando que “quem mora na favela é gente boa”, que eram “unidos”
e “organizados”, que se identificavam como “trabalhadores”. As imagens difundidas no hino
se opunham à retórica da marginalidade social e ao estereótipo do malandro, usados para
estigmatizar os moradores em favelas.
Além disso, o hino identificava que o principal motivo da luta dos moradores era a defesa
“dos barracões”. Nesse mesmo sentido, as “lutas” do morro do Borel na iniciativa de fundar a
associação contra as tentativas de despejo tencionada por companhias imobiliárias eram tidas
como exemplares para as outras favelas cariocas. Nas palavras do jornalista Edmar Morel, o
Morro do Borel era o “quartel general” das favelas nesse período (Morel, 1955).
Em Belo Horizonte, as associações de moradores que participavam da FTFBH eram identi-
ficadas como “UDC” — União de Defesa Coletiva. Elas também tinham no registro civil vários
nomes (Associação Pró-Melhoramentos, Comitês de Defesa Coletiva, Associações de Defesa
Coletiva, Associação de Moradores), mas publicamente elas eram reconhecidas como “UDCs”.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 359-368, setembro-dezembro 2018 359
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

O reconhecimento do associativismo de defesa coletiva remetia à importância da luta


contra o despejo coletivo na Vila dos Marmiteiros (depois nomeada como Vila São Vicente de
Paulo). Em 1949, a primeira UDC foi criada na Vila dos Marmiteiros, e esse tipo de associação
cresceu para outras localidades nos anos 1950 e início de 1960, divulgando um discurso que
reconhecia a exemplaridade da Vila dos Marmiteiros e o significado daquela luta política. Em
1964, quando foi fundada a UDC da Vila Frei Josafá, uma liderança relembrou a origem do
movimento: ele “fez um ato de louvor aos moradores pela iniciativa que tiveram em organizar
uma diretoria para dirigir os destinos da vila”, dizendo que em Belo Horizonte surgiu essa
“iniciativa”, “daqui da Vila São Vicente” (Ata de Assembleia..., 1964). Por tanto, os modelos
de associações divulgados pela UTF e FTFBH são diferentes, sinalizando para histórias e nar-
rativas distintas, enraizadas nas histórias urbanas de cada cidade. Todavia, havia vários pontos
em comum na gramática pública dos movimentos sociais de trabalhadores favelados.
Através de mobilizações públicas, os movimentos sociais de trabalhadores favelados no
Rio de Janeiro e em Belo Horizonte reivindicaram o direito de moradia como um critério de
justiça social. Criticavam os “exploradores”, “grileiros”, “latifundiários urbanos” como perpe-
tradores de injustiças contra os “trabalhadores favelados”, por acumular terrenos no espaço
urbano e mesmo lucrar com o aluguel de barracos nas favelas. As trajetórias de “fundação”
das favelas, contadas por moradores antigos da localidade, eram apresentadas em jornais,
visando à reivindicação do direito de posse e usucapião. Ainda que as favelas tenham crescido
em um contexto de urbanização a partir dos anos 1940, as histórias narradas pelas associa-
ções falavam da “fundação” da favela por “primeiros moradores”, mostrando a legitimidade
da ocupação antiga do lugar. Esses discursos e formas de agir eram comuns nos associativis-
mos de favelas ligados à UTF e FTFBH.
Além disso, a Constituição de 1946 reconhecia a função social da propriedade privada
(art. 145), justificando a intervenção do Estado na economia em favor do “trabalhador e sua
família”. Esse ponto foi importante tanto para a UTF quanto FTFBH em suas mobilizações.
A invenção dos direitos trabalhistas na Era Vargas (1930-1945) condicionava o acesso aos
direitos à autorrepresentação do cidadão como “trabalhador” (Gomes, 2005; Fischer, 2008;
Oliveira, 2014). No Rio de Janeiro, em 1954, a UTF fez campanha para aprovação da “Lei de
Proteção dos Trabalhadores Favelados” na Câmara dos Vereadores que ampliava o direito de
moradia para as favelas, argumentando que:

Considerando que a Constituição estabelece um regime de igualdade para todos perante a lei,
não é justo, portanto, um distinguir, para preferência das atenções do poder público, entre os
logradouros habitados por munícipes ricos dos que são ocupados por trabalhadores pobres. (Lei
de Proteção..., 1954)

360 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 360-368, setembro-dezembro 2018
Associativismos de trabalhadores favelados no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte (1954-1964)

Em 1954, o anteprojeto de lei foi elaborado pelo advogado e secretário da UTF, Ma-
garinos Torres. Em um esforço de fazer valer a soberania popular no legislativo municipal,
o anteprojeto circulou como um panfleto e foi apresentado em festas e confraternizações
organizadas pelas associações coligadas à UTF. O primeiro comício para divulgação ocorreu no
dia 17 de outubro, no Morro do Borel. Diversas associações foram convidadas para o evento,
como se pode observar no convite:

Senhor Diretor,

A União dos Trabalhadores Favelados é uma associação que congrega mais de 40.000 favela-
dos e que vem dispensando esforços na defesa dos moradores e despejados das favelas, como
aconteceu nos morros de Santa Marta, Borel, Sto. Antônio, União e Dendê.
Promoverá a UTF, no morro do Borel, na Tijuca, dia 17 às 16:00 horas, uma festa de confrater-
nização com show e distribuição de prêmios aos favelados.
Temos a grata satisfação de convidar a diretoria, bem como os moradores da favela para parti-
ciparem desta festa, onde mais uma vez se irmanarão os favelados de todos os morros e favelas
da cidade. Ao término da festa, a União dos Trabalhadores Favelados dará conhecimento aos
favelados do anteprojeto de Lei das Favelas que apresentará à Câmara dos Vereadores em
benefício dos favelados.

Atenciosamente,
Dr. Magarinos Torres Filho
Secretário-Geral (Convite da..., 1954)

Essa mobilização se deu logo após as eleições ocorridas no dia 3 de outubro e pretendia
estabelecer uma pauta para ser debatida na nova legislatura na Câmara dos Vereadores. Ela
unia, sobretudo, políticos alinhados com a esquerda comunista e trabalhista. O comunista
Waldemar Viana — vereador eleito para a legislatura de 1955 a 1959 pelo Partido Republi-
cano Trabalhista (PRT) — e o deputado estadual comunista Roberto Morena (PRT) apoiaram
o anteprojeto e participaram de algumas reuniões e festejos que discutiam a Lei dos Traba-
lhadores Favelados que eram fartamente noticiados no jornal Imprensa Popular. No jornal
Última Hora, o secretário geral da UTF declarou que Getúlio Vargas protegia os “trabalhadores
favelados” e reivindicava a aprovação do anteprojeto como meio de “garantir a estabilidade
aos favelados, sempre ameaçados de despejo” e transformar “as favelas em bairros operários
residenciais”. O Última Hora publicou na íntegra o anteprojeto, apresentando-o como uma
iniciativa que traria “paz e sossego” aos trabalhadores (Paz e Sossego ..., 1954).
Entre outubro e dezembro de 1954, o anteprojeto foi apresentado em diversos tipos de
encontros. O desfecho final deveria ser a realização de um congresso com delegados e repre-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 361-368, setembro-dezembro 2018 361
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

sentantes das diversas favelas. Só após o congresso, imaginava-se que a “Lei das Favelas”
deveria ser apresentada à Câmara dos Vereadores, ou seja, a apreciação só ocorreria “depois
de submeter a mesma à aprovação dos trabalhadores favelados” (Lei de Proteção ..., 1954).
O fórum privilegiado para debater a proposta deveria ser composto pelas associações e pelos
moradores de favelas. Contudo, o Congresso não foi realizado e o projeto de lei não foi apre-
sentado ao legislativo municipal.
Apesar disso, a campanha pela aprovação da “Lei de Proteção dos Trabalhadores Fa-
velados” e os diversos protestos contra os despejos promovidos pela UTF interferiram nos
debates do legislativo, produzindo uma maneira diferente de enquadrar a questão das favelas.
Entre o final da década de 1950 e início dos anos 1960, houve outras iniciativas legislativas
que tensionaram o status urbanístico das favelas no Rio de Janeiro. Pelo Código de Obras de
1937 e pelas legislações urbanísticas do período, a favela tinha um status ilegal, justificando
o “desfavelamento” e a remoção dos moradores.
Em Belo Horizonte, o “advogado das favelas” Dimas Perrin apresentou o Projeto de Lei nº
132 na Câmara Municipal. Quando assumiu o mandato na Câmara dos Vereadores, ele apre-
sentou a seguinte proposta para a reforma da política de “desfavelamento” de Belo Horizonte:

Art. 1º Ficam transferidos ao Departamento Municipal de Bairros e Habitações Populares os ter-


renos pertencentes à Municipalidade e que, nesta data, se encontram ocupados por favelados.
(...)
Art. 3º As áreas faveladas serão devidamente urbanizadas pelo Departamento de Bairros e
Habitações Populares, após a aprovação das respectivas plantas pelo Departamento de Obras
da Municipalidade. (Câmara Municipal, 1963)

O projeto de Dimas Perin não passou pelo legislativo municipal: sofreu oposição da
bancada majoritária do prefeito Edgar Carone (1963-1965) e, após o Golpe de 1964, foi
considerado ilegal. Ele tinha como principal propósito alterar a finalidade do Departamento
Municipal de Bairros e Habitações Populares (DBHP). No projeto original do DBHP, o “desfave-
lamento” viria com a necessária limpeza do espaço urbano e transferência dos favelados para
habitações populares. A comissão de estudos que elaborou o projeto do DBHP, em 1955, tinha
franca participação de empresários do mercado imobiliário, que viam nas favelas um problema
estético e urbanístico. Diferente do propósito de “desfavelar” a cidade com a construção de
conjuntos habitacionais e casas populares, Dimas Perrin buscava estender bens e serviços às
favelas, urbanizando-as.
Reconhecendo a forte relação entre local de moradia e mercado de trabalho no processo
de formação das favelas, o projeto era uma resposta ao maior temor levantado com as políticas

362 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 362-368, setembro-dezembro 2018
Associativismos de trabalhadores favelados no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte (1954-1964)

habitacionais do período: a transferência para lugares distantes. Na justificativa do projeto


de lei, considerava-se ainda que o custo para a construção de conjuntos habitacionais para
a “extinção das favelas” era “elevadíssimo”, inviabilizando qualquer iniciativa que abarcasse
todos os moradores de áreas pobres; o mais correto seria a urbanização e a regularização da
propriedade. Propunha-se que os lotes ocupados por favelas fossem vendidos aos moradores
de acordo com as “condições financeiras de cada família, de modo que não ultrapassasse 5%
(cinco por cento) do salário mensal da mesma”. O valor das prestações pagas formaria um
fundo que seria reutilizado pelo DBHP na urbanização das favelas (Câmara Municipal..., 1953).
O texto do legislador priorizava o atendimento ao “trabalhador favelado”. Esse morador
deveria residir “no município pelo menos nos dois últimos anos ininterruptamente”, exercendo
durante o período uma “atividade profissional remunerada” e não tendo sido “proprietário de
imóvel nos últimos dez anos”. Segundo a justificativa do projeto, não se estavam doando lotes
aos pobres, mas garantido àqueles que trabalhavam e moravam em favelas o direito à moradia.
A lei tinha, por fim, excluir os indivíduos que não pudessem comprovar “atividade profissional
remunerada” (os “marginais”) e os agentes do mercado imobiliário que atuavam nas favelas
alugando barracos e o solo para moradores. Tentando evitar os exploradores de aluguéis, o
projeto de lei também estabelecia restrições no direito de venda e comercialização dos lotes,
indicando o DBHP como órgão principal na regulamentação desse mercado de casas.
Como advogado da FTFBH, o vereador apresentava uma proposta de reforma afinada
com as discussões das Uniões de Defesa Coletiva. Constituído como um projeto do movimento
de trabalhadores favelados, o projeto de Dimas Perim teve franco apoio da FTFBH. A Federa-
ção convocou assembleias que discutiam o projeto através de seu jornal e dos alto-falantes
das UDCs. Ademais, o movimento social usava as relações pessoais de parentesco e amizade
para garantir a divulgação das reuniões, como podemos observar no convite padrão distribuí-
do para os moradores:

FEDERAÇÃO DOS TRABALHADORES FAVELADOS DE BELO HORIZONTE


Temos o prazer de convidar o prezado amigo e sua digníssima família a comparecer em nossa
assembleia:
Dia 3 de novembro (domingo)
às 8,30 horas da manhã, na Secretaria de Saúde, para continuarmos a discussão do projeto
Dimas Perin, para vender a nós mesmos os lotes onde moramos nas favelas, para termos segu-
rança e tranquilidade.

Saudações
Francisco Nascimento
Pela Diretoria (Convite, 1963)

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 363-368, setembro-dezembro 2018 363
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira

Os projetos de lei da UTF e da FTFBH não chegaram a ser implementados como política
pública, mas se vinculavam à gramática articulada pelos movimentos de trabalhadores favela-
dos, estabelecendo mediações entre lugares de moradia de famílias pobres, partidos políticos
de esquerda do período e a luta pelo direito à cidade. Essa articulação presente nos movi-
mentos de trabalhadores favelados se relacionava com o contexto mais amplo de discussão
sobre a reforma urbana, na configuração da campanha pelas Reformas de Base que mobilizou
setores das esquerdas na passagem da década de 1950 e 1960.

Considerações finais

A expansão das favelas no processo de urbanização brasileiro e a dinâmica do associa-


tivismo de trabalhadores favelados têm levado a reflexões controversas na História,
Sociologia e Antropologia urbana. Na visão de alguns autores, as lutas da classe trabalhadora
no Brasil não conseguiram produzir a questão habitacional como parte do direito ao salário,
concorrendo para a fragmentação das reivindicações em classes e grupos distintos e na reivin-
dicação “melhoramentos” a partir de localidades diversas. Teríamos um movimento social ur-
bano “encapsulado” pelas disputas entre localidades e classes sociais, tanto fora como dentro
das favelas (Coelho, 1996; Machado da Silva, 1967, 2002; Leite & Machado da Silva, 2004).
A despeito da tendência para fragmentação e segmentação por classe e localidades urbanas,
o que surpreende na passagem da década de 1950 e 1960 é a formação de movimentos de
trabalhadores favelados que uniam várias associações em torno de uma gramática da vida
pública que colocava em questão a reforma urbana.
Na configuração da expansão de direitos políticos e sociais da experiência de de-
mocracia-liberal, os movimentos de trabalhadores favelados constituíram uma arena de
conflito, arregimentando os moradores e setores de uma esquerda anticapitalista contra
empresas imobiliárias e outros atores que almejavam o despejo dos moradores e controle
do espaço ocupado por favelas. Nessa arena de conflito, os associativismos da UTF e
FTFBH colocavam em evidência as desigualdades urbanas no capitalismo brasileiro e o
reconhecimento da autoconstrução como meio de acesso à moradia na cidade. Assim,
questionavam o pressuposto urbanístico que justificava o “desfavelamento” da cidade
com medidas de remoção dos moradores em favelas e colocavam em destaque a expecta-
tiva de urbanização desses territórios.
A despeito das distâncias e diferenças na configuração social e política do Rio de Janeiro
e de Belo Horizonte, existe grande pertinência na comparação entre os repertórios de ação
dos trabalhadores favelados. As formas de agir coletivamente não são inventadas em cada

364 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 364-368, setembro-dezembro 2018
Associativismos de trabalhadores favelados no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte (1954-1964)

contexto e momento de luta, mas se constituem em um processo de aprendizado coletivo de


performances que conformam estratégias de luta em acordo com as conjunturas e contextos
sociais e políticos experimentados (Tilly, 1995; Tarrow, 2009). Trata-se de uma gramática e
identidade política inventada e reivindicada por grupos de associações de moradores e que
foram recuperadas e relidas em diferentes momentos por outros atores sociais, como nos
movimentos populares da década de 1970 e 1980.

Notas

1 A tabela foi construída a partir da compilação de dados do censo de favelas da Prefeitura do Distrito Federal
(1948) e do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (1950 e 1960) para a cidade do Rio de Janeiro, e dos
censos de favelas de Belo Horizonte (1955 e 1965). Cf. Oliveira, 2014: 121.
2 Na década de 1890 até a formação do Estado da Guanabara em 1960, o chefe executivo do governo da
cidade era escolhido pelo presidente da república no Rio de Janeiro (DF) e a câmara de vereadores tinha
poderes limitados cf. Ferreira & Dantas, 2000.
3 Os comunistas e católicos se destacaram nessas contendas. Os Comitês Democráticos Populares criados
pelo Partido Comunista do Brasil (PCB) formaram bases sociais e lideranças importantes nas favelas e peri-
ferias urbanas. No Rio de Janeiro, para se contrapor aos comunistas, os católicos criaram a Fundação Leão
XII (1947), liderada por Dom Jaime Barros, e a Cruzada São Sebastião (1955), por Dom Hélder Câmara.
Essa atuação inspirou Padre Lage, Padre Viegas e parte dos democratas cristãos que também tentaram criar
associações e ações políticas em favelas de Belo Horizonte. Cf. Pandolfi & Grynszpan, 2002: 42-43; Oliveira,
2010: 31-43.

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368 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 368-368, setembro-dezembro 2018
Artigo

Architectures of democracy: housing


movements and progressive architects
in São Paulo (1970-1990)1
Arquiteturas da democracia: movimentos de moradia e
arquitetos progressistas em São Paulo (1970-1990)
Arquitectura de la democracia: movimientos de vivienda y
arquitectos progresistas en São Paulo (1970-1990)

José Henrique BortoluciI

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300004

1
Esta pesquisa foi financiada por bolsa Capes/Fulbright e pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Michigan.

I Fundação Getulio Vargas (FGV), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.

Doutor em Sociologia pela Universidade de Michigan e professor da Fundação Getulio Vargas (FSJ-FGV).
(jose.bortoluci@fgv.br)

Artigo recebido em 9 de Março de 2018 e aceito para publicação em 10 de Setembro de 2018.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 369-388, setembro-dezembro 2018 369
José Henrique Bortoluci

Abstract
From the late 1970s until the early 1990s, the issue of the right to housing in São Paulo’s peripheral neighborhoods
was pursued side by side with a questioning of the political character of design and construction techniques and an
attempt to reframe the construction site as a space of cooperation and political education. This article addresses how
this articulation between architects and urban social movements led to an innovation of organizational practices
within those movements, transformations in the field of architecture, and the local emergence of the idea of the
“right to architecture.”

Keywords: Housing movements; Architecture; Democracy; Political repertoire; São Paulo; Periphery.

Resumo
Entre o final dos anos 1970 e o início dos 1990, a temática do direito à moradia nos bairros periféricos de São
Paulo avançou em paralelo a um questionamento do caráter político do projeto arquitetônico e da construção, e a
uma tentativa de reconfigurar o canteiro como um espaço de cooperação e educação política. Este artigo investiga
como uma articulação entre arquitetos e movimentos sociais urbanos levou a inovações nas práticas organizacio-
nais desses movimentos, a transformações no campo de arquitetura e à emergência local da ideia de um “direito
à arquitetura”.

Palavras-chave: Movimentos de moradia; Arquitetura; democracia; Repertório político; São Paulo; Periferia.

Resumen
Entre el final de los años 1970 y el inicio de los años 1990, la temática del derecho a la vivienda en los barrios
periféricos de São Paulo avanzó en paralelo a un cuestionamiento del carácter político del proyecto arquitectónico y
de la construcción, y a un intento de reconfigurar el sitio de construcción como un espacio de cooperación y educa-
ción política. Este artículo investiga cómo una articulación entre arquitectos y movimientos sociales urbanos llevó a
innovaciones en las prácticas organizativas de estos movimientos, a transformaciones en el campo de la arquitectura
y al surgimiento de la idea de un “derecho a la arquitectura”.

Palabras clave: Movimientos por la vivienda; Arquitectura; Democracia; Repertorio político; São Paulo; Periferia.

370 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 370-388, setembro-dezembro 2018
Architectures of democracy: housing movements and
progressive architects in São Paulo (1970-1990)

Introduction

F rom the mid-1960s until the 1980s, critical intellectuals in Latin America discovered “the
subaltern”. In fact, they discovered several different forms of subaltern knowledge, subju-
gated practices, and popular repertoires of organization that shook traditional understandings
about the historical formation of the lower classes, their characteristic forms of agency, and
their potential role in social struggles. During this period, several radical experiments in critical
pedagogy (Freire, 2014), action research (Fals-Borda, 1991), theater (Boal, 2000), and other
cultural realms attempted to promote a dialogue with the experiences and knowledge of
subaltern social groups and, to a certain extent, to break the barriers that separated popular
cultural manifestations and elitist institutions, such as theater, cinema, and the university.
Although the main intellectual strands of thought that oriented these experiments with a
new political epistemology were developed in the 1960s, authoritarian regimes in the region
retarded their full development in different national contexts for at least a decade (Aparicio
and Blaser, 2008).
An analogous process happened to architecture in São Paulo from the late 1970s until
the early 1990s. An emergent program for low-income housing among progressive architects
in association with social movements and neighborhood associations challenged the previous
forms of engagement between urban professionals and low-income city residents, who had
historically been responsible for the production of the built spaces that they inhabited in the
city. In this period, the issue of the right to housing in São Paulo’s peripheral neighborhoods
was pursued side by side with a questioning of the political character of construction techni-
ques and an attempt to reframe the construction site as a space of cooperation and political
education. In this article, I address two central questions: What materials and construction
techniques were more conducive to the materialization of these emergent political ideas and
practices? How did these new materials and techniques affect those repertoires?
Methodologically, I do not intend to provide a detailed history of any specific housing
project, although most of my examples will come from two empirical cases: Copromo1 and
União da Juta2. Both complexes were built in a regime that combined self-build cooperative
construction, self-management, and collaborative design under the responsibility of Usina,
one of the technical offices in São Paulo that specialized in this type of project. My data was
gathered through life-history interviews with residents, housing activists, and architects who
worked in these two and other comparable housing projects from the same period (see appen-
dix 1), as well as archival research and several visits to several housing complexes.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 371-388, setembro-dezembro 2018 371
José Henrique Bortoluci

In the following sections, I briefly reconstruct the main elements of the political discours-
es and practices that emerged within the Brazilian left during the late 1970s through the
early 1990s and the core values and repertoire of the housing movement in São Paulo in that
period. Then, I show how architects attempted to develop new materials and techniques of
design and construction that would allow for the material articulation of the main elements of
that political repertoire. Finally, I analyze some of the negotiations and tensions between the
aspirations of the housing activists and architects.

Emergent social actors and the political repertoire of


participation

T he years between 1978 and 1988 were a period of intense political and intellectual
creativity. This creativity is expressed above all in the emergence of social movements at
the peripheries of the largest cities as well as in rural areas, the strengthening of labor unions
in the late 1970s and 1980s, the articulation of a progressive politics within the Catholic
Church under the growing influence of liberation theology, the flourishing of counter-hegemo-
nic artistic and student movements, and the dissemination of new research agendas among
progressive intellectuals.
New movements mobilized to tackle issues associated with the worsening of life con-
ditions in São Paulo’s peripheries. Of particular importance in São Paulo were the emergen-
ce of a movement against scarcity (“movimento contra a carestia”), movements of unem-
ployed workers, clubs of mothers that demanded the construction of day-care centers,
and movements for improvement of public transportation. Other movements demanded
the creation of a public health system or promoted mobilizations around issues of race,
gender, or sexual oppression. And, of course, several neighborhoods created associations
to push for the legalization of their land titles, for the improvement of urban infrastructure,
and — even more important for my purposes here — for the construction of new housing
units (Gohn, 1991).
Many of these movements were able to breach, if somewhat imperfectly, the traditional
divide between the factory and the neighborhood — a persistent split in the previous decades
in São Paulo, with rare exceptions (Fontes, 2008; Kowarick, 2000: 74). On many occasions, this
peak of activism favored the creation of multiclassist alliances (Kowarick, 1987), particularly
when specific areas of local or thematic activism connected with the national struggle against
the military regime — a process that lasted from the early 1980s until the approval of the new
constitution in 1988.

372 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 372-388, setembro-dezembro 2018
Architectures of democracy: housing movements and
progressive architects in São Paulo (1970-1990)

This experience of activism led to the dissemination of new collective experiences that
deeply impacted the lives of the individuals and communities that took part in them, represen-
ting a new dynamics of collective subjectification (Rancière, 1991). This new political repertoire
incorporated a new grammar of rights — and of citizenship as the right to have rights (Arendt,
1973; Gohn, 1991; Holston, 2009: 14). Finally, these movements developed or incorporated a
gamut of new contentious performances that manifested those new values: land occupations,
neighborhood meetings, religious ceremonies with political purposes, elaboration of draft arti-
cles to the new constitution, and collective housing construction, among others.

Housing movements and the right to housing

H ousing movements expanded dramatically at São Paulo’s peripheries from the late
1970s until the early 1990s. Actually, what emerged was an extensive articulation
of movements that addressed issues of the right to land and to housing, legalization of
irregular occupations, slum urbanization, democratization of construction processes, and
the management of housing programs — as well as the more traditional neighborhood as-
sociations (Gohn, 1991). This large “social movement industry” (McCarthy and Zald, 1977)
profited from (and also helped to induce) the opening of political opportunities in the Bra-
zilian political system throughout the 1980s, as well as from the election of state and local
government officials who were more attuned to those new forms of organization and ac-
cepted the opening of new political channels between the administration and the organized
sectors of civil society — such as governor Franco Montoro (1983-1987) and São Paulo’s
mayor Luiza Erundina (1989-1992).
These new movements represented a development of the traditional forms of popular
occupation of land and production of the city, but they also innovated in their claims, forms
of organization, and frames. Some of the movements that emerged in this context organized
occupations of public or private properties in São Paulo, mostly in peripheral neighborhoods.
These occupations were part of a larger strategy that involved attraction of the state’s and the
media’s attention, the demand for the construction of housing units in the occupied properties,
and a plan for the consolidation and expansion of those movements, since these occupations
attracted homeless families (or families who lived in precarious housing units) that could po-
tentially become part of those organizations.
One of the most important occupations took place in 1981 at Fazenda Itupu, a 0.63
square kilometer public empty lot in the southern region of São Paulo, which was carried out
by around 3,000 families. On the same day, those families also informally divided that land

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José Henrique Bortoluci

into around 2,000 housing lots — a practice that would be repeated in several occupations
after that, but which did not prevent their eviction by a police force of 3,000 officers (Sardi,
1987). This occupation received wide attention in the national media, and it became a forma-
tive event to several organizations throughout the metropolis (Gohn, 1991: 73).
Reginaldo Oliveira de Almeida (Didi)3, one of the main leaders of a series of occupa-
tions and self-build cooperatives in Osasco, a municipality in the western region of the São
Paulo metropolis, recalled the first phases of the struggle for the establishment of Copromo,
one of the earliest and most influential experiences of the housing movement struggle in
the region:

Low wages, very high rents in the 1980s… and there was this world of land here in front of us
that was said to be owned by Cohab... Then we went on and occupied that land. We called it
“invasion” at the time. We went there and occupied it all. We set up headquarters there, and
Cohab came with trucks and knocked it down. It was a hell of a bush this terrain, but we resis-
ted several demolitions of our headquarters. Then, after the fourth time they knocked it down,
I think, it was the carnival of 1986, then we decided to occupy it permanently… Father Ferraz,
who has passed away, this priest was the one who guided us the most, who helped and gave
us courage… About four thousand families occupied it... We were organizing the community
here, and we met Adão Pedreiro, who was killed in a movement activity in São Paulo. Then we
agreed that when we occupied here, they would occupy another piece of land in São Paulo. And
then the police would come, and we were determined to die, because we had nowhere else to
go. Either we stayed on the land or we died in police hands.

Didi’s description touches on the main conditions, performances, and discursive frames
that were part of the repertoire of housing activism in the 1980s and early 1990s in São Paulo.
First, he mentions the housing crisis that manifested in a growing housing deficit and a conti-
nuous rise of rent across São Paulo. This crisis was one of the consequences of the continuous
growth of the metropolis at a time of severe economic crisis and the failure of official programs
to meet this growing demand, especially after the closing of BNH in 1986. Moreover, Didi des-
cribes a common dynamic of struggle: the occupation of public land and the organization of
families to exert pressure on the state for the construction of houses. This organization usually
led to the creation of ties across the metropolis, with the coordinated action of organizations
that engaged in simultaneous land occupations — signaling a routine of exchange and lear-
ning, particularly among leaders of each local organization.
Furthermore, progressive members of the Catholic Church played a central role in helping
the movement to organize and to foster a general atmosphere of hope at the grassroots level.
Activists in different regions of the metropolis emphasize the role played by different bishops

374 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 374-388, setembro-dezembro 2018
Architectures of democracy: housing movements and
progressive architects in São Paulo (1970-1990)

and priests in organizing the movement. Several of these religious men and women also acted
as negotiators and brokers between the movements and the state.
Didi also mentions the symbolic struggle that took place at the linguistic level: the term
invasão (invasion) would soon be replaced by the term ocupação (occupation) in the vocabu-
lary of housing activists and their political allies to designate the initial phase of the struggle,
during which families squatted on the land that they claimed. Invasão denotes a violent and
illegitimate act and highlights the breaching of ownership rights, while ocupação connotes a
more legitimate act of claim making — for the right to housing, in this case. By framing their
actions as an occupation, housing movement leaders attempted to stress their demand for
participation in the emergent civil society and to put forth the claim that the right to housing
and to land should be seen as at least as important as the right to property. Finally, Didi poin-
ted to the violent and very frequent clashes with the state and the police, which could, in some
cases, lead to the death of activists, as in the case of Adão Pedreiro.
Housing movements were frequently organized in different hierarchical levels, from
local “origin groups” up to national organizations. The origin groups were responsible for
organization, political education, and communication with local families. Beyond that, a
regional sphere of the movement concatenated and coordinated the activities of origin
groups and cooperatives in a certain region of the metropolis. Finally, each of these regional
organizations was commonly associated with a larger movement (for example, the União
dos Movimentos de Moradia – UMM, or the Union of Housing Movements). These larger
organizations were part of a constellation of groups with different levels of articulation that
were active in the field of housing, right to land, and the right to the city broadly defined —
such as the Landless Workers Movement (MST), the National Movement for Urban Reform
(MNRU), the movements of tenement residents, and several slum dwellers’ organizations.
The three levels of the movement acted in coordination during land occupations and in
negotiations with the municipal or state governments. After a certain piece of land was
assigned for the collective construction of social housing, an association was formed, com-
prising members from different origin groups in a certain region. Families in all origin groups
accumulated points for participating in movement activities, such as protests, occupations,
and construction routines. These points would define when a family would be allocated to
one of the self-build associations. These associations were usually responsible for hiring a
technical office (“assessoria técnica”) that would help them define a project and coordinate
the construction work.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 375-388, setembro-dezembro 2018 375
José Henrique Bortoluci

Housing laboratories and the connection between


architects and housing movements

T his intensification of activism and organization at São Paulo’s peripheries did not go
unnoticed by progressive architects, who had been experimenting with new forms of en-
gagement with peripheral populations since the mid-1970s. In 1975, the São Paulo Architects
Union (SASP) promoted a first organized attempt to work with a community on the outskirts
of the city, in the working-class neighborhood of São Miguel Paulista. The leadership of the
union invited Joan Villà, a Catalan architect who lived in São Paulo, to take part in the pro-
ject. Villà had studied architecture at FAU-Mackenzie and, between the late 1960s and early
1970s, lived in Europe to escape persecution from the military regime, given that he had been
a militant in the Brazilian Communist Party. In Spain and Italy, he became acquainted with
the experiences of cooperatives of architects, many of which had anarchist inclinations. Those
cooperatives were influenced by autonomist ideas of workers’ self-management, which were
an important part of the constellation of the left in Europe at the time, after “autonomism”
became a philosophy and practice of activism (Alcoff and Alcoff, 2015; Eley, 2002). Villà had
the chance to get to know the work of architects in low-income communities in those coun-
tries. Along with Jorge Alfredo Carone and Alfredo Paesani, he formed the Cooperative of São
Paulo Architects Union. Villà described some of the challenges they experienced in the attempt
to approach those communities in the first phase of that experience:

I had a meeting with all the priests of the diocese.... What I was going to propose, and I was
hoping they’d accept, is that at Sunday masses for a month they would announce that we
would go there.... Here were the architects and the people who went to mass; [the priest] had
already announced that we would go that Sunday, and there were many people… architects
met people and organized the work; then in the evenings at the headquarters of the union,
which was on Avanhandava Street, I read everything and distributed the work. We got all sorts
of demands, from people who had a house about to fall owing to infiltration or because a small
stream invaded their plot.

However, that experience, one of the first institutionalized attempts to overcome the
huge geographical, cultural, and political distance between the field of architecture and the
struggles for housing at the peripheries, had very limited success. Villà comments on the rea-
sons for this initial failure:

Fundamentally, it failed because it was a very naïve thing.... None of the architects had ever set
foot in a place that was more than three or four kilometers away from Praça da Sé; the majority
lived in neighborhoods such as Pinheiros, Perdizes etc., etc. That is, they had no knowledge of

376 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 376-388, setembro-dezembro 2018
Architectures of democracy: housing movements and
progressive architects in São Paulo (1970-1990)

the periphery, not even through cinema… Initially, it meant entering a completely unknown
universe, and the other thing that I also saw very clearly was an absolute and complete unpre-
paredness to design with limited resources.

This “naiveté” that Villà describes shows the lingering effects of the spatial and social
division between architects (even progressive ones) and the population of São Paulo’s periph-
eries. A second reason for the relative failure of the experience, according to Villà, was the
fact that the cooperative was working with individual families and not with associations and
movements, as would become the common practice a few years later.
However, this pilot experience helped to shape other relevant movements of renovation
of architectural practice in the period. Some of the architects involved in the experience of the
cooperative, especially Jorge Caron and Villà, founded the architecture program at the Faculty
of Fine Arts (Faculdade Belas Artes) in 1979 — the third higher-education institution to offer
training in architecture in the city. At Belas Artes, Villà coordinated the housing laboratory star-
ting in 1982. This lab was the first experience of its kind in São Paulo. The lab was intended to
renovate the practices of design and construction within a context of lack of resources and in
direct contact with the neighborhood associations and the housing movements that had star-
ted to grow in the period. The faculty at the laboratory also included Nabil Bonduki, Antônio
Carlos Sant’Anna, Olair de Camilo, Ives de Freitas, and other younger architects who would
later work in technical offices that provided assistance for low-income communities. The lab
would be closed in 1985 by the school administration after a faculty strike that led to the firing
of Villà and other lecturers. At the time of its demise, the laboratory was involved in housing
projects in two different peripheral neighborhoods in the southern region of São Paulo: Grajaú
and Recanto da Alegria.
Vitor Lotufo, who worked at Recanto da Alegria, expresses this change of political perspec-
tive among progressive architects and the divergence from the previous dominant generation:

The major concern that existed with respect to public housing [in the 1960s] was industriali-
zation. I think the mentality at the time was that a house should be like a car. The more it was
produced, the more industrialized, the cheaper it would be, and more people would have access
to housing, right? And I think it’s a poor vision of housing. For us, the dominant motive was to
build with the people.

Similar principles were also being disseminated at the same time in other spheres of the
field of architecture in the city. At Mackenzie, for example, students throughout the 1980s had
growing contact with experiences of democratic planning, and some were deeply influenced
by lecturers who had worked with self-build cooperatives. One office that would be very active

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 377-388, setembro-dezembro 2018 377
José Henrique Bortoluci

in this area, Ação Direta (Direct Action – AD), was formed by Mackenzie graduates. Joel Felipe,
one of AD’s members, describes the general feeling that he shared with some of his colleagues:
these young professionals were not to work only for the reproduction of a “designer’s archi-
tecture” (“arquitetura de grife”), but they should also be involved in community organizatio-
nesd very frequent laiments. Then, dists and their political alliesn of a “e shared with some of
his coleagues that e deeply infl.
Popular building practices and materials motivated many of these attempts to develop
cheaper construction techniques, such as soil-cement (similar to rammed earth) and later ex-
perimentation with on-site prefabricated concrete blocks, which were further developed at
Unicamp, where Villà started to work in 1985 together with architects and engineers (such as
João Marcos Lopes and Yopanan Rebello) who would later open technical offices dedicated to
work with social movements and communities.
Influenced by this experience, the young engineer Guilherme Coelho visited Uruguay and
recorded on video the experience of these cooperatives. Coelho would drive around the peri-
pheries of the city, showing this video to neighborhood associations and new housing social
movements. This video and the discussions it fostered influenced the self-managed housing
project in Vila Nova Cachoeirinha, in which Coelho was involved, and many other projects on
the outskirts of São Paulo throughout the 1980s, when the screening of his video became
a typical “business card” in exchanges between progressive young architects and housing
movements (Baravelli, 2006). The Uruguayan experience influenced local discussions about
self-management, the development of cheaper and accessible construction techniques, and
the practice of association between architects and local communities in São Paulo. During
the 1980s and early 1990s, several housing movement leaders as well as architects involved
in this new modality of design and construction visited Uruguayan cooperatives to learn from
their experiences with autoconstruction and self-management.
One of the techniques that Villà and his colleagues developed at Belas Artes and later
at Unicamp was also inspired by what they observed at a construction site in Uruguay —
and, according to Villà, in the architecture of Eladio Dieste, the Uruguayan architect who was
known for a peculiar use of catenary arches and brick. The technique of ceramic blocks, deve-
loped by Villà and his associates, addressed the specific needs of construction in a situation in
which the workforce does not have deep familiarity with construction techniques, especially
with the use of concrete. Ceramic blocks were produced horizontally by pouring cement to
connect ceramic bricks; those blocks would then be lifted — often manually, if they were
small and light enough — and used in the construction of roofs and walls. Several housing

378 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 378-388, setembro-dezembro 2018
Architectures of democracy: housing movements and
progressive architects in São Paulo (1970-1990)

movements in the state of São Paulo heard of the “Unicamp model” and adapted it to their
local needs (Gohn, 1991). Earlier in their work at Recanto da Alegria, Villà, João Marcos de
Almeida Lopes, Roberto Pompéia, Vitor Lotufo, Nabil Bonduki, and Antonio Carlos Santanna
attempted to adapt a traditional technique of construction with rammed earth (soil mixed with
cement) that was cheap but that also took a significant physical toll on the members of the
community building those houses, who had to perform the tough work of ramming the mixture
to produce the soil-cement.
This new form of collaboration between architects and housing movements gained trac-
tion in the late 1980s with the creation of new offices (such as Usina, Fase, and Ação Direta).
Architecture journals such as Arquitetura & Urbanismo and Projeto slowly recognized the work
of those communities and architects. Also, a new progressive leadership was elected at São
Paulo Architects Union in 1987, many of whom had previous experience working with housing
movements.
This impact on the field of architecture accompanied a change in the practices of design
toward an inclusion of the workers and residents in the practices of planning and management
of the housing projects. This new politics encompassed an emergent “regime of legibility” that
contrasted with the previous ideology of design that previously dominated the field of archi-
tecture in São Paulo. Wagner Germano, from Usina, describes this process:

But the fact is that you have a construction site with people who have no experience in cons-
truction; a very large part of those people did not have specific training, did not have proper
skills to work in construction… So, the drawings had to be done in a way that a person with no
training in construction would be able to read.

Nevertheless, the use of easy-to-learn techniques and, in some cases, low-tech materials
was also accompanied by the preoccupation to lower the prices of construction, diminish the
physical toll, and speed up the construction process. Many of the technical offices suggested the
use of fabricated components, particularly the ones that demanded higher technical skills —
such as stairs.

Construction as an arena of articulation

T he combination of participatory design, self-management, and cooperative construction


became widespread in São Paulo’s peripheries from the mid-1980s through the early
1990s. Like many other social movements during the previous thirty years in different Latin
American contexts (Alcoff and Alcoff, 2015; Aparicio and Blaser, 2008), those construction si-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 379-388, setembro-dezembro 2018 379
José Henrique Bortoluci

tes became spaces for the “performance of community” by means of the manipulation of signs
(drawings, regulations, plans, spreadsheets) and materials (blocks, concrete, tools).
Isabel, a resident and activist who participated in the construction of União da Juta,
succinctly describes the collective construction process:

We came [on weekends], depending on the task force... We had task forces according to what
we had to do, like masonry, hydraulics, electric work... The hardest part of the construction was
the foundations because it’s hard work, and no one sees with naked eyes because it is all under
the ground. You dug the ditches, poured concrete, did everything, but nothing came out of it.
So, folks would get discouraged and say: “oh God, we will never end this,” but that is how it’s
done, in task forces, with people who opened the trenches, while others moved out the earth,
and others made hardware frames.

Wilton, a resident at Copromo and an experienced construction professional who worked


in several different self-build cooperatives, points out that a lot of the excitement with the
construction process stemmed from the residents’ perception that their work would be directly
converted into something of their own:

[The self-build cooperative] is great. It’s great because … you work with people, with these
humble people, and you can feel that person’s dedication. They come over on the weekend; they
know what they are doing. If they are digging or if they are carrying a bucket, if she’s leveling
the land, whatever they are doing, they say, “Oh well, this will be my house,” even though they
don’t know exactly where their apartment will be yet.

Several of my interviewees, both architects and activists, asserted, however, that the
benefits of collectively designing, managing, and building something that was to be their own
and the moments of exchange and learning that marked this process were balanced by a se-
ries of challenges. These hurdles stemmed from the arduous nature of the work itself, from the
lack of continuous assistance and the frequent conflicts with state agents, and the occasional
disputes between the movement’s leadership and architects working on certain projects.
Underneath all these limits and frictions, a controversy about the essence of this method
of construction and organization came up in a few interviews. In the statements of architects
and activists, the model of the self-build cooperative is sometimes described as a utopia and
sometimes as a “necessary evil”. Wagner Germano, an architect at Usina who worked with
several communities summarizes the later position:

So why the self-build cooperative [mutirão]? It’s not an option.... It’s the lack of an option.... We
always said: it would be nice if one day we could have … the community manage the resources.
So it would get the funding. Then it would hire the technical staff to make the project, and then

380 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 380-388, setembro-dezembro 2018
Architectures of democracy: housing movements and
progressive architects in São Paulo (1970-1990)

it would manage the construction work, hire workers, hire a contractor or a few little construc-
tion companies, maybe some cooperative of construction workers. Then people wouldn’t have
to spend weekends doing heavy work... So this intense contact of the families participating in
the collective construction process, meeting all weekends to work on the construction site… We
thought it was an opportunity for us to discuss some other things.

More frequently, both frames (“utopia” and “necessary evil”) were used interchangeably
by the same actor. For example, Isabel emphasizes the physical burden imposed by that kind
of work — one that was conducted mostly by women, many of whom were elderly, with no
previous experience in construction —, but she also highlights how that method of manage-
ment, construction, and organization generated a sense of community and empowerment:

When we construct as a self-build cooperative, it’s good because nobody knows where your unit
will be; you know it’s here, but you do not talk like this: “I will work because this is my place.”
No one knows. We knew we each had a unit, but we didn’t know exactly where, so no one could
be careless with the others because everybody wanted to finish their houses... It is very tiring;
those who don’t like to fight, to organize, they give up!

Beyond the strenuous nature of the work, Isabel’s testimony highlights one of the con-
flicts that took place in several different projects: the difficulty of maintaining solidarity and
assuring the continuous participation of all the future resident families. In order to guarantee
their participation, the movement leadership implemented several strategies, from informal
follow-up and political education to a system through which the leadership of each organiza-
tion attributed points to participation in cooperative activities, from construction to attendance
at meetings, town halls, and rallies.
Furthermore, the dominant narratives of housing activists emphasize the impact of this
method of construction and management for the constitution of strong social ties in those
communities that would remain active to a large extent for years after the conclusion of cons-
truction. Although it is certainly true that collaborative construction impacts certain aspects of
occupation — for example, there is ample evidence that the initial residents tended to stay
in those houses years after its initial occupation, at a much higher rate than in other forms of
social housing — there are also several testimonies that challenge the extent of this impact.
All my interviewees emphasized the strong connection among the future residents and the
concern with creating positive collective dynamics after occupation. But some mention that
those strong ties were not preserved after the conclusion of building. In other words, the alter-
native dynamics of construction seemed to have a mild impact on the dynamics of habitation.
This impact also seemed to vary depending on the social and urban context of each of these

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José Henrique Bortoluci

housing complexes. For example, when asked about the relationships within the community
after occupation, Wilton, from Copromo, says:

I’ll tell you something, that’s what the problem is. Because we were closer friends when we were
building than after living here. Because people now go in and out of their homes and say “hi,
good afternoon, good morning, good night”, and this is it.

In contrast, Didi, one of the main leaders of Copromo during construction and occupa-
tion, has a different perspective:

Because [the cooperative work] lowers the costs of living for those who are making it, everyone
can make it; then one values more what he did. Look, we are here in this neighborhood, which
is called “Terra é Nossa”;4 here and even in Copromo, there are no fights, no deaths, because
we’ve lived together one, two years, building together, doing something collective, so there is
mutual respect between people.

Many activists, as well as architects and scholars, argued that the methods of work and
the organization of the construction sites did not solve the problem of overexploitation of the
workforce (Carvalho, 2004; Oliveira, 2006). Some of the associations required that families put
in up to eighty weekly hours of work for construction and other activities (Gohn, 1991: 119),
tasks that could be painstakingly exhausting to many of those worker-residents.
Nevertheless, in contrast to the traditional process of self-construction organized at the
family level, this collective articulation represented a significant political opportunity for the
dissemination of a new language and new values of citizenship among those families. Many
of the activists and architects involved also considered the pedagogical construction site as a
space where at least a few of the future residents could develop technical skills that could lead
to new professional opportunities in the future — which seems to have been the case for at
least a small fraction of them, according to some of my interviewees.

The “right to architecture”

T his program for the built environment also corresponded to an attempt to forge a new
economy of dignity in which the “right to architecture” was to be incorporated as a hori-
zon. A major process of political conscientization and symbolic resistance in this new economy
consisted in reimagining what a house for a poor family should be and to attack the wides-
pread conception that those families would not be able to plan and manage the construction
of their housing.

382 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 382-388, setembro-dezembro 2018
Architectures of democracy: housing movements and
progressive architects in São Paulo (1970-1990)

According to my interviewees, as well as several documents on the politics of low-income


housing in the period, this conception of the poor family as a passive recipient of a house was
hegemonic among architects and engineers employed at housing agencies, such as Cohab
and CDHU. Many of the activists and architects involved in cooperatives enjoy telling stories
about the clash between their expectations and the beliefs and habits of those state agents.
As Isabel, for example, recalls:

We were organized and wanted decent housing, so we didn’t accept CDHU’s project... I remem-
ber to this day when our technical assistants brought the first project that was different from
CDHU’s, and we liked it.... [CDHU’s staff would say:] “The problem is that you came up with a
very large project. This is not for the poor; this is a project for rich people.” We replied, “We’ll
show that we can make it. We fought for it; we fought for our rights. It is not because we are
poor that we have no right to have a decent and good house.”

Wilton also recalls one of these encounters with a CDHU engineer:

Do you know what the guy told me? He said: “How do we, poor people like us, want to live in a
middle-class apartment?”... I turned to him and said, “So we have to live in matchbox? So we
have no right to live in a nice apartment?”

Every activist and architect I interviewed shared similar stories of clashes between “muti-
rantes” and state officials and employees. The strategy of confronting these firmly held notions
about how the poor should live attests that, at least in the case of the most active families, the
new repertoire deeply affected their notions of self-worth, dignity, and rights.
Activists and architects point out that many of the future residents themselves also sha-
red those conceptions about what constitutes appropriate housing for lower-class families.
The work of convincing public officials needed to be carried out in tandem with the process of
political education of the future residents in order to reconstruct the traditional view of what
“low-income housing” should look and feel like, how it should be built, and what spaces it
should occupy in the city. In this precarious situation, social movement leaders and architects
working with those movements did not initially find fertile terrain for a discussion about de-
sign, aesthetics, and environmental and material quality. These topics usually emerged during
the process of organization and after long discussions and town hall meetings of activist
families and architects.
Reginaldo Ronconi, an architect who had worked with cooperatives since his days as a
student at Belas Artes, shares one memory:

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 383-388, setembro-dezembro 2018 383
José Henrique Bortoluci

At Recanto da Alegria, I was discussing a window with Clotilde. We would expand her house,
build a new room. She had no money to buy a window, but I was there discussing with her
where we were going to place the window and that we would deal with the issue of money
later. We had to discuss where the opening would be — we would have to put the lintel, the
architrave.... She turns to me and says: “I don’t need this window here; this is only my room.”
“But how come you don’t need a window, Clotilde?” “Well, I don’t need it. Does a jaguar have
a window where it lives?”

In this exchange between Clotilde and Reginaldo, the political pedagogy involved in the
collaborative work of construction and design in this program becomes clear. The process of
designing and installing a window becomes a gateway for a discussion of rights, privileges,
and dignity. Discussing, designing, managing the funds, and later building a window worked
as a process of reimagining the human condition and the economy of dignity to which (and of
which) that individual was subject.
The concept of “the right to architecture” would be incorporated as part of the housing
policies during Luiza Erundina’s administration, when Ronconi, Bonduki, and other architects
who had previously been involved with self-build cooperatives took the lead in providing
resources and formulating the guidelines for social housing cooperatives (Bonduki, 2000).

Final remarks

S elf-build cooperatives were not seen by most of the activists and professionals involved as
solutions to all urban problems in a context of poverty and deficient state planning. They
were pragmatic solutions that called for the acceptance and transformation of traditional prac-
tices of self-construction, resignified by the collective organization of those families. They also
involved a political and semiotic resignification of what housing for low-income families shou-
ld “look like” and “feel like” and how it should be integrated into the city and in the context
of the new formation of rights that was germinating in Brazil at the time. This resignification
also involved the reconstruction of material practices of design and construction, providing a
new source for the renovation of the field of architecture.
Housing complexes built by collectively managed self-build cooperatives in association
with progressive architects were described by one key architect as “spaces of utopia” (Bonduki,
1986). It is important, nevertheless, to point out that this was a grounded utopianism (Aparicio
and Blaser, 2008), or a pragmatic utopia that involved the congregation of existing practices
and materials in spaces of limited prefiguration of new political practices — and, even more
important for most of the residents involved, a pragmatic process for the acquisition of a house.

384 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 384-388, setembro-dezembro 2018
Architectures of democracy: housing movements and
progressive architects in São Paulo (1970-1990)

It is not my purpose here to judge whether those architects and activists were able to fully
accomplish this program — and the testimonies throughout this article show that this is an
unsettled debate among them to our days. Nonetheless, even the most enthusiastic housing
activists and architects were aware that the historical conjuncture imposed several limits to
the advancement of that repertoire. Beyond the limited resources and the recurrent resistance
of state agents, the political repertoire of cooperation and the constructive and organizational
practices employed by the cooperatives had to live side by side with other practices and values,
such as the valorization of property, occasional violence within some families, gender oppres-
sion, and disputes for leadership within and among different social movement organizations.
It is important to point out that housing activism has changed considerably in São Paulo
since then. Successive municipal and state administrations during the 1990s disinvested from
programs that funded self-build cooperatives; moreover, during Paulo Maluf’s conservative
administration (1993-1996), many social movement leaders were persecuted, and several
housing projects remained unfinished until the early 2000s. Housing activism in São Paulo
also suffered from the growing shortage of publicly owned land that could be the target of
campaigns. Additionally, housing movements gradually diversified their geographic areas of
action and their repertoires of contention, focusing more on squatting in underutilized or
empty buildings in central regions.
More recently, a large federal program for low-income housing construction (Minha Casa
Minha Vida, or “My House My Life”) — implemented since the Workers’ Party Luiz Inácio Lula
da Silva’s second term in the presidency (2007-2010) — has been steadily increasing the
stock of low-income housing in most Brazilian cities, but in most cases under the same deve-
lopmentalist and quantitative logic of the program funded by BNH during the military regime.
This logic leaves aside crucial questions emphasized by housing activists and most progressive
architects and urban planners: access to urban infrastructure, efficient transportation, and,
last but not least, architectural and constructive quality. Only a very small percentage of the
program’s budget is committed to funding self-build cooperatives.
Despite the crisis that this program suffered in the last decades, it certainly left lessons
for present day progressive architects and activists. It entailed a critique of the dominant prac-
tices that established the parameters of the design and construction of low-income housing
in the previous decades. To use Walter Benjamin’s description of Brecht’s theater, activists and
architects involved in the assemblage of this program proposed a “functional transformation”
of the practices of architecture (Benjamin, 1998). Like Brecht’s theater, this emergent program
emphasized the moment of production as a crucial dimension of the politics of architecture.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 385-388, setembro-dezembro 2018 385
José Henrique Bortoluci

In this new theater, the audience was to be transformed into active collaborators, leading to a
rethinking of the enduring practices of performance and potentially to the transformation of
the of the spectators’ political perspectives. In Walter Benjamin’s words, Brecht’s theater was a
model for a progressive literature, because a writer’s production should be a model:

It must be able to instruct other writers in their production and, secondly, it must be able to
place an improved apparatus at their disposal. This apparatus will be the better, the more consu-
mers it brings in contact with the production process — in short, the more readers or spectators
it turns into collaborators. (1998: 98)

A very similar perspective on turning urban residents into collaborators in the process of
designing and building low-income housing inspired the individuals and groups that advanced
this emergent program in the peripheral neighborhoods of São Paulo.

Appendix 1. Interviews

Candido Malta (07/20/2011) – São Paulo


Caio Santo Amore de Carvalho (07/21/2011) – São Paulo
Giselda Visconti (08/28/2012) – São Paulo
Joan Villá (08/30/2012) – São Paulo
Roberto Pompeia (09/11/2012) – São Paulo
Yopanan Rebello (08/13/2012) – São Paulo
Sérgio Ferro (09/25/2012) – São Carlos
João Marcos de Almeida Lopes (10/02/2012) – São Carlos
Joel Felipe (10/03/2012) - Santo André
Geraldo Puntoni (10/10/2012) – São Paulo
Vitor Lotufo (10/18/2012) – São Paulo
Flávio Villaça (10/22/2012) – São Paulo
Hugo Segawa (10/29/2012) – São Paulo
Wilton da Costa Lima (10/31/2012) – Osasco
Arnaldo Martino (10/31/2012) – São Paulo
Ruth Verde Zein (11/09/2012) – São Paulo
Marina Heck (11/13/2012) – São Paulo

386 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 386-388, setembro-dezembro 2018
Architectures of democracy: housing movements and
progressive architects in São Paulo (1970-1990)

Tiago Cavalcante Guerra (12/17/2012) - Guarulhos


Wagner Germano (08/29/2013) – São Paulo
Reginaldo Ronconi (08/29/2013) – São Paulo
Reginaldo Oliveira de Almeida (Didi) (09/10/2013) – Osasco
Isabel (09/11/2013) – São Paulo
Veronica (09/11/2013) – São Paulo
Pedro Jacobi (10/02/2013) – São Paulo

(Endnotes)

1 A housing complex with one thousand units divided into fifty-five-story buildings. The lot was initially oc-
cupied in 1987, and negotiation with public authorities lasted until 1991. Construction took place between
1992 and 1998, when the units were occupied. Construction was financed partly by CDHU, the state housing
agency (680 units), and partly by the residents themselves (320 units).

2 A housing complex of 160 units, part of a larger complex where other associations also coordinated the
initial occupation of the property as well as the planning and construction of the housing units. Fazenda da
Juta, initially a private terrain, was occupied in the 1980s, and several organizations were formed to negotiate
the purchase of the terrain. Associação de Construção União da Juta (Construction Association União da Juta)
was part of the larger Housing Movement Association “Leste 1”, which coordinated most of the struggle for
housing in part of the eastern region of São Paulo. Negotiation with the state administration took place in
1992, and construction lasted from 1993 to 1998.

3 All remaining quotes in this article are from interviewees, unless specifically noted.
4 “Our Land”, a neighborhood next to Copromo, also built after the occupation of an empty lot by the resi-
dents’ cooperative in the 1980s.

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388 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 388-388, setembro-dezembro 2018
Artigo

Associativismo feminino e participação


política: um estudo sobre as bases sociais
de apoio à ditadura militar em Curitiba
(1964-1985)
Female associativity and political participation: a study on the
social bases of support for the military dictatorship in Curitiba
(1964-1985)
Asociativismo femenino y participación política: un estudio sobre
las bases sociales de apoyo a la dictadura militar en Curitiba
(1964-1985)

Reginaldo Cerqueira SousaI*

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300005

I Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba – PR, Brasil.

* Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente é Professor Magis-
tério Superior da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. (ihuararuna@yahoo.com.br)

Artigo recebido em 1º de junho de 2018 e aceito para publicação em 10 de setembro de 2018.

tudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 389-412, setembro-dezembro 2018 389
Reginaldo Cerqueira Sousa

Resumo
O presente artigo analisa as bases sociais de apoio à ditadura militar no Brasil (1964-1985). Partiu da hipótese de
que a ditadura foi possível porque encontrou grupos e indivíduos dispostos a colaborar com o poder estabelecido a
partir de 1964. O estudo deu ênfase à participação política das mulheres organizadas em associações femininas de
caráter religioso, cultural e cívico. Importante atuação foi a da União Cívica Feminina Paranaense na preparação e
articulação das mulheres a favor da intervenção das Forças Armadas. Elas realizaram atividades cívicas com o obje-
tivo de fortalecer a ideia da presença dos militares como necessária para a manutenção da ordem e da preservação
dos valores morais e cristãos.

Palavras-chave: Associativismo feminino; Ditadura militar; Civismo.

Abstract
The present article analyses the social bases of support for the military dictatorship in Brazil (1964-1985). It started
from the hypothesis that the dictatorship was possible because it found groups and individuals willing to collaborate
with the established power, from 1964. The study emphasized the political participation of women organized in
female associations of religious, cultural and civic character. Important performance was that of the União Cívica
Feminina Paranaense in the preparation and articulation of women in favour of the intervention of the armed forces.
They performed civic activities with the objective of strengthening the idea of the presence of the military as neces-
sary for the maintenance of order and the preservation of the moral and Christian values.

Keywords: Female associativity; Military dictatorship; Civics.

Resumen
Este artículo analiza las bases sociales de apoyo a la dictadura militar en Brasil (1964-1985). Surgió de la hipótesis
de que la dictadura fue posible porque encontró grupos e individuos dispuestos a colaborar con el poder establecido,
a partir de 1964. El estudio dio énfasis a la participación política de las mujeres organizadas en asociaciones femeni-
nas de carácter religioso, cultural y cívico. Importante actuación fue la de la União Cívica Feminina Paranaense en la
preparación y articulación de las mujeres a favor de la intervención de las Fuerzas Armadas. Realizaron actividades
cívicas con el objetivo de fortalecer la idea de la presencia de los militares como necesaria para el mantenimiento
del orden y de la preservación de los valores morales y cristianos.

Palabras clave: Asociativismo femenino; Dictadura militar; Civismo.

390 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 390-412, setembro-dezembro 2018
Associativismo feminino e participação política:
um estudo sobre as bases sociais de apoio à ditadura militar em Curitiba (1964-1985)

Introdução

A historiografia especializada em ditadura militar, sobretudo a que surgiu após a abertura


política, caracterizou-se pela produção de estudos com ênfase no binômio dominação/
resistência, uma chave de leitura sobre o período ditatorial brasileiro que deu pouca atenção aos
segmentos da sociedade que colaboraram com as Forças Armadas. O fato está ligado à política
de anistia e ao processo de redemocratização do Brasil a partir do final da década de 1970.
O ambiente político propiciado pela redemocratização projetou no horizonte do país um
modelo de sociedade democrática centrado na hegemonia do discurso coletivo e do consenso
social (Teles, 2009). Como resultado, prevaleceram, nas pesquisas produzidas durante essa épo-
ca, as temáticas “revolução” e “revolta”, fomentando uma literatura voltada para o sistema
repressivo e as resistências (Falcon, 1997). Nesse momento, a resistência tornou-se o tema re-
corrente nos estudos sobre a ditadura e passou a significar aqueles que se impuseram contra os
grupos dominantes, agora ligados a um denominador comum: a construção da nova república.
O elemento silenciado do período militar, que foi o apoio da sociedade civil à ditadura,
deve ser compreendido dentro desse projeto de conciliação e esquecimento durante o proces-
so de redemocratização do Brasil. Entretanto, lembramos um dos estudos pioneiros no tema,
o de René Dreifuss (1981), dedicado à análise da participação de civis, mais especificamente
das elites sociais e políticas, na preparação e na execução do Golpe. Nos últimos anos, novas
pesquisas acadêmicas surgiram com o intuito de problematizar essa visão e mostrar o quão
complexa era a relação entre a sociedade e a ditadura. Destacamos o trabalho de Maria José
de Resende (2001) sobre os mecanismos de legitimação social durante a ditadura militar, e a
publicação de Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat (2010) acerca do apoio e da par-
ticipação de civis, e de organizações sociais, na preparação do Golpe de 1964, bem como na
consolidação do regime militar.
Esses estudos encontram-se amparados em Pierre Laborie (2010), para quem a atitude e
o comportamento de indivíduos e grupos são marcados por ações ambivalentes e por situações
simultâneas de proximidade e distanciamento de acordo com as circunstâncias históricas do
momento, configurando-se como uma “zona cinzenta”, ou o pensar duplo. Nessa perspectiva,
os estudos sobre a colaboração, o consentimento e o apoio na política buscaram entender as
atitudes de personagens situados nesses espaços nebulosos de apoio aos regimes autoritários.
No quadro da produção historiográfica sobre o período ditatorial, outros trabalhos de-
monstraram que a ditadura não se sustentou apenas pela habilidade dos militares e dos
políticos que os apoiaram. Tais análises enfatizaram que o processo político de 1964 não foi
um Golpe arquitetado apenas pelas Forças Armadas, mas contou com a participação de civis

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 391-412, setembro-dezembro 2018 391
Reginaldo Cerqueira Sousa

e com o amplo apoio da sociedade. Lucia Grinberg (2009, 2010), por exemplo, chamou a
atenção para a posição política e as contradições que caracterizaram o Aliança Renovadora
Nacional (Arena), entre 1965 e o fim da década de 1970, quando havia apenas dois partidos
na legalidade. O outro era o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), um partido de oposi-
ção à ditadura.
Nesse trabalho, a autora criticou a tese de que o Arena teria sido formado por antigos
membros da União Democrática Nacional (UDN) e sustentou a ideia de que o partido canali-
zou os elementos mais conservadores da sociedade brasileira. Evidenciou, por meio de análi-
ses das correspondências entre os arenistas, que havia uma ampla participação de mulheres
e de homens, nos vários municípios do território nacional, mobilizada pelo partido. Muitos
desses correligionários exaltavam o discurso anticomunista, perseguiam e denunciavam aque-
les considerados comunistas e diziam ser a “revolução de 1964” o marco fundador do Arena.
É oportuno dizer que essa produção historiográfica lançou luz a outros modos de
interpretar o período ditatorial brasileiro. Podemos observar um sinal dessa mudança nos
debates em torno da terminologia e de conceitos usados para pensar esse que foi um dos
períodos mais sombrios da recente história brasileira. Golpe militar, golpe civil-militar, ditadura
militar, ditadura civil-militar, regime militar, regime civil-militar estão no quadro das tipologias
recorrentes entre alguns pesquisadores da área. Estudos como os de Daniel Aarão Reis (2014)
consideraram a presença de civis e o apoio destes aos militares quando do Golpe que derru-
bou o presidente João Goulart, donde a opção pelo termo Golpe civil-militar. Para Carlos Fico
(2017), o Golpe, de fato, foi civil-militar, no entanto, com os dispositivos de controle, criados e
aprimorados a partir de 1967, o regime passou a ser controlado inteiramente pelos militares.
Foi esse o momento em que, para Adriano Nervo Codato (2004: 12-13), o Golpe político-mi-
litar, de 1964, concretiza-se como regime ditatorial-militar em 1968, com o Ato Institucional
no 5 (AI-5).
No que diz respeito à historiografia que trata da participação política feminina, é inte-
ressante chamar a atenção para o fato de que, ao se referirem aos movimentos de mulheres,
esses estudos deram atenção às mobilizações de grande repercussão política, como foi o caso
das “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, no início dos anos 1960 (Simões, 1985;
Sestini, 2008; Cordeiro, 2009; Presot, 2010). Evidenciaram o importante papel que as mulhe-
res tiveram nas ações que levaram à derrocada do governo de João Goulart e sua mobilização
política nas organizações de base.
Boa parte das associações femininas pesquisadas por essas historiadoras teve seu nas-
cimento nos principais centros urbanos do Brasil e no contexto de radicalização das posições

392 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 392-412, setembro-dezembro 2018
Associativismo feminino e participação política:
um estudo sobre as bases sociais de apoio à ditadura militar em Curitiba (1964-1985)

políticas durante o governo de João Goulart. Para Dharana Pérola Sestini (2008), organizações
como a União Cívica Feminina de São Paulo (UCF-SP), a Campanha da Mulher pela Democra-
cia (Camde), do Rio de Janeiro, e a Liga da Mulher Democrática (Limde), de Belo Horizonte,
foram organizadas e patrocinadas pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e pelo
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) com o intuito de desestabilizar o governo de
João Goulart. Essas associações tiveram o apoio da Igreja Católica, do setor empresarial, de
políticos e dos militares. Inspiradas na Doutrina de Segurança Nacional, criada pela Escola
Superior de Guerra (ESG), essas associações fizeram uma forte campanha anticomunista, le-
vantaram a bandeira dos valores cristãos da família, da pátria e da nação. A primeira Marcha
foi em São Paulo e, depois dela, outras manifestações ocorreram em todo o país com o mesmo
propósito (Presot, 2010). Em Curitiba, ao contrário da maioria dessas manifestações, como
veremos, a mobilização teve como mote o ensino.
Ao analisarmos essa historiografia, percebemos que a participação das mulheres deu-se,
de forma mais intensa, no momento pré-Golpe e apenas nos primeiros anos da ditadura
militar. Já a relação entre as associações femininas e o governo militar, durante a ditadura, foi
pouco pesquisada.
Neste artigo, propomos a ampliação do foco de análise das associações femininas e sua
relação com o regime militar. Nossa intenção é demonstrar que o apoio dessas associações
aos militares se deu no momento do Golpe, em 1964, com as mobilizações em grande escala,
e continuou com a promoção de atividades como o civismo. A mudança de estratégia tinha a
intenção de consolidar as bases de apoio social para a manutenção da ditadura militar. Neste
artigo, analisaremos a participação política da União Cívica Feminina Paranaense (UCF-PR) e
suas estratégias, ao longo da ditadura, para a promoção de valores morais e cívicos em con-
sonância com a ditadura militar.

A UCF e a promoção do civismo

E m novembro de 1963, uma reunião de mulheres, em Curitiba, decidiu pela criação da


UCF-PR, inspirada na UCF-SP. Um de seus princípios, segundo o estatuto da instituição,
era promover a educação cultural, moral e cívica da sociedade dentro das normas da civiliza-
ção cristã.1 A UCF-PR reuniu mulheres das classes mais abastadas de Curitiba e foi dirigida por
Rosy Pinheiro Lima e Dalila de Castro Lacerda.
Rosy Pinheiro Lima (1914-2002) nasceu em Paris, França. Em Curitiba, estudou no Giná-
sio Paranaense e no Colégio Nossa Senhora de Lurdes, uma importante instituição católica de
formação das elites curitibanas (Nicolas, 1954: 459). Formou-se em bacharel em direito pela

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 393-412, setembro-dezembro 2018 393
Reginaldo Cerqueira Sousa

Universidade Federal do Paraná (UFPR) e fundou, em 1933, o Centro Paranaense Feminino de


Cultura (CPFC), importante espaço de participação política e social feminina que contava com
a presença de mulheres da elite de Curitiba.
As participantes do CPFC eram esposas de líderes políticos, de oficiais militares, de em-
presários e industriais. É interessante notar que o Centro investia no processo de emancipação
intelectual, artística e moral da mulher ao mesmo tempo que fortalecia o modelo de feminili-
dade e de mulher devotada à família e ao lar (Seixas, 2011). Eram mulheres que dominavam
as letras e divulgavam sua produção intelectual em revistas criadas pela própria associação
para dar base a seus conhecimentos. Boa parte dessa produção abordava a história da cidade,
elementos que exaltavam os símbolos nacionais, como a bandeira, e o papel das mulheres na
educação dos filhos e na condução da família.2
Rosy Pinheiro Lima, além de doutorar-se em direito,3 atuou como advogada na área do
direito civil da família e assumiu, em 1945, a secretaria da UDN e o Departamento Social do
partido, em Curitiba. Pela UDN, foi eleita para a Assembleia Legislativa, tornando-se a primeira
mulher a assumir um cargo de deputada estadual. Nos anos 1960, como representante da
Camde, fundou associações cívicas femininas no Paraná, no Rio Grande do Sul e em Santa
Catarina. Organizou as manifestações públicas contra João Goulart e articulou as associações
femininas e cristãs para apoiarem os militares. Para Rosy Pinheiro Lima, a Marcha realizada em
Curitiba, diferentemente das que ocorreram em São Paulo, foi contra a tentativa de interven-
ção do governo, com a implantação de livros nas escolas públicas e privadas.
Dalila de Castro Lacerda (1909-2004) era filha de militar e membro de uma tradicional
família paranaense. Ela nasceu em Ponta Grossa (PR) e foi casada com Flávio Suplicy de
Lacerda. Na década de 1960, o esposo assumiu a reitoria da UFPR e, logo após o Golpe, foi
nomeado ministro da Educação e ficou conhecido como o defensor do ensino de moral e civis-
mo nas escolas. Em 1953, a convite do bispo de Curitiba, Dalila participou da criação da Liga
das Senhoras Católicas (LSC). Essa associação surgiu no contexto de crescimento urbano e
industrial e de expansão do comunismo. Por essa razão, a Igreja incentivou a criação de grupos
de mulheres com o intuito de fortalecer os ideais cristãos e combater o avanço das ideologias
revolucionárias e as mudanças da vida moderna. O medo do comunismo fez a Igreja defender
a política da ordem, da sociedade perfeita, do não radicalismo e da obediência. Por isso, con-
vocou as mulheres para formarem associações femininas cristãs.
A UCF-PR foi o ponto de interseção entre as mulheres que participavam do CFPC e da
LSC, arregimentando mulheres dessas associações e de outras associações cristãs. Elas organi-
zavam seu tempo, entre o trabalho e o lar, para realizarem atividades de natureza filantrópica.

394 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 394-412, setembro-dezembro 2018
Associativismo feminino e participação política:
um estudo sobre as bases sociais de apoio à ditadura militar em Curitiba (1964-1985)

Tinham capacidade de mobilizar seus pares, principalmente as lideranças políticas, para captar
recursos que financiavam a maior parte das atividades que realizavam. Durante a ditadura
militar, uma parcela desses recursos provinha dos parlamentares paranaenses em Brasília.4
A trajetória dessas mulheres foi marcada por uma firme inserção no espaço público, por seu
desempenho intelectual e formador de opinião e, sem dúvida, pela defesa do comportamento
moral, em particular aqueles referentes ao papel da mulher como esposa e mãe de família.
A UCF-PR atuou praticamente durante todo o período do regime militar e exerceu ati-
vidades públicas em diferentes áreas. Uma delas era a educação. Por meio dela, buscou-se
formar cidadãos cumpridores das normas, das leis e aptos para o trabalho. As atividades volta-
das para a formação profissional desejavam formar, além de mão de obra, bons pais, homens
provedores da família e zelosos no cuidado com os filhos. Elas também afastavam os jovens
do uso de entorpecentes. Como pano de fundo, a educação para o trabalho visava a indivíduos
comprometidos com os laços familiares e cônscios dos deveres de cidadão.
Uma maneira de fortalecer esses valores era pela promoção do civismo com a valorização
dos símbolos pátrios, sobretudo nas instituições públicas de ensino. Para as mulheres da UCF-
-PR, a escola, além de ser um importante instrumento de agregação social, era vista como um
espaço propício para disseminar o sentimento patriótico. Nesse sentido, apoiar e promover ati-
vidades, entre os alunos, sobre a temática da pátria era a maneira segura de aproximá-los, cada
vez mais, da vida militar. Era uma forma de criar um vínculo entre o Exército, o povo e a nação.
Foi essa a proposta do concurso de redação sobre o Dia do Soldado realizado nas esco-
las, promovido pelos militares da 5a RM/DI, em parceria com a UCF-PR.5 Objetivava incentivar
na juventude o respeito e a celebração das datas cívicas nacionais.6 O evento contou com
o apoio das secretarias de Educação e mobilizou os alunos para a produção de textos que
expressassem a importância do Exército para o país. A estratégia pode ser entendida como
uma maneira de distanciar os alunos dos problemas políticos do país usando conteúdos que
valorizavam os símbolos nacionais e a idealização da nação. As datas cívicas, quando promo-
vidas entre os mais jovens, articulavam vínculos sociais e reforçavam na memória o elo com
o passado nacional.
As atividades organizadas pelas mulheres da UCF-PR também incluíam a distribuição,
nas escolas, de símbolos nacionais e de livros com os conteúdos voltados para o mesmo tema.
Entre estes, a bandeira nacional e cópias do Hino Nacional eram recorrentes por serem consa-
grados como as representações da identidade nacional.7 A doação desse material era acom-
panhada de palestras instrutivas aos estudantes sobre o modo adequado de se comportar no
ritual de hasteamento da bandeira e na hora de cantar o Hino Nacional. Uma formalidade que
exigia do aluno reverência, postura corporal e disciplina.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 395-412, setembro-dezembro 2018 395
Reginaldo Cerqueira Sousa

Ao mesmo tempo que organizava essas atividades, a UCF-PR era convidada, pelo go-
verno do Paraná, para compor a comissão organizadora dos eventos comemorativos do ses-
quicentenário da Independência. As mulheres organizaram vigílias em solenidade aos restos
mortais de d. Pedro I, que esteve em passagem por Curitiba em 1972. O evento, em pleno
momento de repressão e de censura, foi marcado pelo clima de comoção e de ufanismo. D.
Pedro I era aclamado herói da Independência, e sua imagem, naquele momento, emergiu
como configuração simbólica de valorização do sentimento cívico.
Uma das ações de maior destaque da UCF-PR foi, em 1964, a organização e a condu-
ção das manifestações públicas contra o Executivo federal. Arregimentou lideranças políticas,
econômicas e religiosas, como os empresários da Associação Comercial do Paraná (Acopa), os
religiosos da ala tradicional da Igreja Católica, os políticos da UDN e do Partido Democrático
Cristão (PDC) para formar, juntamente com os militares, a oposição a João Goulart. A ação
culminou em uma movimentação popular conhecida como “Marcha a Favor do Ensino Livre”.

Mulheres nas ruas: a Marcha a Favor do Ensino Livre

A conjuntura política de 1961 foi marcada por incertezas entre o setor empresarial. Na
época, o diretor da Acopa, Oscar Schrape Sobrinho, que também era o proprietário das
Impressões Paranaenses e o líder do Sindicato das Indústrias Gráficas, via com preocupação a
posse do presidente João Goulart. O motivo era o receio que havia entre os empresários em
relação às teorias marxistas sobre a produção. Para eles, a implantação dessa ideia no Brasil
faria do Estado o árbitro dos negócios econômicos, travando a livre-iniciativa, a concorrência
e a liberdade de pensamento. Por essa razão, a Associação Comercial fez campanhas contra o
comunismo e deu apoio financeiro às atividades educativas de caráter anticomunista.
Essa ação aproximou a Acopa do Ipes. Cogitou-se a possibilidade de se criar uma sede do
Instituto no Paraná para cuidar da formação dos empresários e abordar temáticas não somente
sobre a dimensão econômica, mas também sobre questões políticas que naquele momento eram
consideradas pelo setor como impasse para o desenvolvimento do país (Oliveira, 2004: 33). Com
a liderança da UCF-PR, a associação organizou a Marcha a Favor do Ensino Livre, a versão, em
Curitiba, da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. A partir da orientação liberal, o discur-
so da Acopa baseava-se na livre-iniciativa com a defesa das liberdades individuais, entre elas a
liberdade religiosa e a de expressão, mas, como pano de fundo, estava em jogo o livre-mercado.
Na tarde do dia 24 de março de 1964, a multidão concentrou-se no centro da capital
e dirigiu-se até o palácio do governo para protestar contra o “livro comunista” nas escolas.
Provavelmente, era uma tarde fria e nublada, típica dos dias de outono, em Curitiba. Aproxi-

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Associativismo feminino e participação política:
um estudo sobre as bases sociais de apoio à ditadura militar em Curitiba (1964-1985)

madamente 30 mil pessoas reuniram-se munidas de cartazes, faixas com dizeres do tipo “Só
queremos um livro — a Constituição do Brasil”.8 Com o terço e guarda-chuva nas mãos, mu-
lheres, homens e jovens percorreram as ruas do centro da capital gritando palavras de ordem
a favor da democracia, da família e contra João Goulart.
Diferentemente do que ocorreu em São Paulo, a Marcha em Curitiba tinha como mote
a oposição ao projeto do Ministério da Educação (MEC) de criar um livro único nas escolas
públicas e privadas. Sobre a manifestação, a imprensa expressou o seguinte:

Não foram, apenas, 30 mil pessoas [que] participaram da grande manifestação coletiva, defron-
te ao Palácio Iguaçu, contra a estatização do ensino e de livros didáticos passíveis de críticas
democráticas. […] Entendemos, realmente, que toda a imagem [da] população da Capital es-
teve, indiretamente, tomando parte nesse acontecimento. Não fossem impedimentos pessoais
de milhares de conterrâneos, certamente, o número seria, acentuadamente, elevado, porque a
índole da gente desta cidade se inclinou, batendo palmas, à iniciativa oportuna e meritória. Os
curitibanos não se expressaram, tão somente, contra a encampação dos colégios particulares e
contra o livro único. Rebelaram-se, notadamente, contra o sentido dessas medidas, que repre-
sentam forma de garrotear a liberdade, num de seus pontos mais sensíveis: a formação cultural
da mocidade. Com uma só escola, encampada que fossem os estabelecimentos, não teríamos
direito de opção, de escola, mas aprenderiam as gerações jovens, somente, o que fosse do
interesse dos senhores do Estado. Seria a precipitação pelos caminhos diversos de nossa índole
e a desassistência integral aos nossos pendores cristãos, pelo que, visivelmente, chegaria num
futuro bem próximo.9

Como podemos notar, a matéria dá ênfase nos principais elementos da pauta da UCF-PR
e das instituições cívicas envolvidas nas manifestações públicas. Entre esses grupos, havia o
receio da estatização. O avanço da agenda reformista do governo causou certa insegurança
em alguns segmentos da sociedade, uma vez que vislumbraram em tais propostas mecanis-
mos de controle por parte do Estado. O processo seria, para os segmentos mais conservadores,
impasse para a livre-concorrência no mercado. O medo da estatização decorria também do
fato de o Estado poder interferir na vida dos indivíduos, comprometer a organização familiar
e orientar a sociedade para a laicidade total.
Outro elemento que estava em pauta era a liberdade. Essa era uma ideia atrelada à
leitura do liberalismo clássico feita por esses movimentos. Defendiam-se, no caso, as liberda-
des individual e religiosa. Em um país em que a história fora profundamente marcada pela
tradição religiosa arraigada no catolicismo, era inconcebível por parte das associações civis
femininas a ideia de não poder expressar um credo, uma vez que se acreditava que o comu-
nista não professava nenhuma crença e não respeitava os valores do catolicismo referentes à
família e à ordem.

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Reginaldo Cerqueira Sousa

Outro receio das elites era a encampação das escolas privadas. Acreditavam que o go-
verno federal iria se apossar das instituições privadas de ensino, fazendo delas um ponto de
ensino e de ideologização comunista.10 O fato desagradou não somente os pais de alunos,
que, na ocasião, organizaram-se nas associações de pais e mestres, como o chefe da Igreja na
capital, o arcebispo d. Manuel da Silveira d’Elboux. O arcebispo não tardou em incentivar as
instituições da Igreja a engrossarem o coro dos descontes, que, juntamente com as mulheres
da UCF-PR, saíram às ruas da cidade.
Também para o mercado gráfico, a proposta do governo causaria problemas. Esse era o
segmento econômico mais interessado em que o projeto do MEC sobre o livro didático não
fosse aprovado pela população. A Revista Panorama, de propriedade do empresário Oscar
Schrape Sobrinho, publicou uma matéria sobre a “encampação”, abordando aspectos que
considerava nocivos à juventude. Segundo a matéria:

Encampadas as escolas virá a doutrinação. Virão os livros únicos, os professores autômatos, a


juventude teleguiada — feita manada, massa amorfa. Disto está convencida a opinião pública
que repele e repudia os propósitos e as manobras comunizantes do ensino em nossas escolas.
É lamentável que o Ministério da Educação, de quem depende a formação da nossa juventude,
aprove e favoreça tais propósitos, inclusive divulgando e mandando adotar como livro único de
História um compêndio em que a figura imortal de Caxias aparece como “defensor de oligar-
quias e latifúndio”.11

Cabe salientar que, em Curitiba, boa parcela das escolas privadas pertencia às institui-
ções católicas. Era uma rede de ensino responsável pela formação dos jovens filhos da classe
média e das elites curitibanas. Há indícios de que as manifestações públicas contrárias a João
Goulart eram também encabeçadas pelas associações de pais e ex-alunos dessas escolas,
em concordância com as lideranças religiosas e com apoio do arcebispo. O medo era de que
o Estado pudesse controlar essas instituições e iniciar um processo de ideologização com a
inculcação de valores contrários ao catolicismo. Mais ainda, colocava-se em risco, de acordo
com o que se pensava na época, a autonomia das escolas privadas e se causariam problemas
para o mercado da área.
Fica clara a recusa à noção de interferência do Estado quando este afetava os interesses
econômicos na área da educação e da indústria gráfica. Isso foi feito de maneira que as pes-
soas percebessem as consequências dos erros como fruto do próprio governo. Por essa razão,
sua análise não aprofundada dos fatos parte do pressuposto da ameaça e do medo, como se
toda a sociedade, a partir da inserção do Estado na vida cotidiana, pudesse se tornar a instân-
cia máxima para responder às necessidades impostas pelo governo.

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Associativismo feminino e participação política:
um estudo sobre as bases sociais de apoio à ditadura militar em Curitiba (1964-1985)

Outros jornais também discutiam o assunto ao seguir duas frentes. Uma se preocupava
em relação ao conteúdo, considerado ideologicamente a favor do governo, e outra levava em
conta os custos da educação, que limitavam o acesso dos alunos mais pobres ao ensino:

A medida é considerada, com justa razão, como de cunho nitidamente comuno-nazifascista.


[…] o decreto é perigoso de ser aplicado porque a comissão encarregada de editá-los deverá
preparar os textos com a posição ideológica dominante no governo, como ocorrido com outras
comissões que editam livros oficiais.

[…] se a comissão resolver editar os livros com o único objetivo de levar aos alunos conheci-
mento e colocar um ponto final nos preços elevados, proibitivos a muitos e promover o baratea-
mento do ensino proibindo a substituição dos livros adotados, então o governo terá alcançado
uma vitória […].12

As críticas eram direcionadas à comissão criada pelo governo de João Goulart para
analisar e selecionar os livros didáticos. Nota-se que havia uma preocupação em relação aos
conteúdos que seriam ensinados aos estudantes das instituições escolares, pois eles refletiam
questões de caráter ideológico e político. No entanto, as críticas deixam transparecer a situação
da educação e do ensino no Brasil em razão dos altos custos e da falta de acesso de muitos
jovens ao ensino, que privilegiava apenas alguns setores e garantia o lucro da indústria gráfica.
Para sanar essa desigualdade, o governo de Goulart promoveu a democratização do livro
didático, que foi incluído no projeto de reforma do ensino apresentado no 1o Plano Nacional de
Educação, elaborado em 1962 por Anísio Teixeira. Visava, entre outros fatores, a enfrentar os
problemas na educação. Seu foco era o do aumento dos investimentos na área para ampliar o
número de matrículas e o acesso das crianças à escola, garantir aos jovens o acesso ao ensino
profissional e qualificar tanto as instituições de ensino quanto os professores em sala de aula.
Essa perspectiva provocou reações entre as elites, os grupos conservadores e os setores da
área do ensino privado. Sobre o “livro único”, vale uma ressalva. O livro de história fora escrito
por Nelson Werneck Sodré, provavelmente a partir de seus cursos no Instituto Superior de Estu-
dos Brasileiros (Iseb). Recontava o processo de formação da sociedade brasileira contrariando
os mitos da história tradicional. Tal história pautava-se por uma perspectiva linear de tempo,
em que os grandes nomes emergiam como ilustres figuras construtoras da identidade nacional.
A proposta de Sodré era a de apresentar as transformações políticas e econômicas da
sociedade brasileira. Deslocou, de forma didática, o olhar para os problemas brasileiros, prio-
rizando uma visão materialista, com ênfase na perspectiva econômica. Nela, os grupos hege-
mônicos e as oligarquias representavam um impasse para o desenvolvimento social do país.
Por isso sua crítica às grandes figuras da história do país.

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Reginaldo Cerqueira Sousa

Ao deslocar a análise para uma base materialista, os processos e as tensões eram o foco
da análise do historiador. Não diferente da visão tradicional de história, também estabeleceu
uma temporalidade linear para a história do Brasil, com processos que começavam com a
colonização, o Império, até chegar ao período republicano. Nessa lógica, o olhar para o es-
cravo, para o colonizado e para o trabalhador lutando contra as grandes forças hegemônicas
importava mais nessa concepção de história.
Os protestos contra o “livro único” foram uma das estratégias das elites para desviar a
atenção e evitar os debates públicos para o problema mais amplo da educação brasileira. O
país tinha índices baixíssimos de matrículas para crianças em idade escolar, e a maioria dos
jovens estava fora do ensino médio.13 O índice de analfabetismo era grande, sem contar o
ensino superior: apenas 1% da população frequentava os bancos das universidades.
As associações cívicas femininas, para quem a valorização dos símbolos da pátria e da
nação era formas de agregar os cidadãos, entenderam a proposta de história como uma afron-
ta aos símbolos, heróis e espaços responsáveis pela consolidação da história nacional. Dessa
maneira, entende-se a reação da UCF-PR quando os nomes consagrados da história oficial,
como os da princesa Isabel, de Duque de Caxias e do marechal Deodoro, foram “profanados”
e retirados do panteão dos heróis.
A ascensão dos militares ao poder significou alívio para as associações responsáveis
pela organização das Marchas. A princípio, respondeu aos interesses das elites empresariais
e políticas, das classes médias urbanas atuantes nas mobilizações públicas. A intervenção
das Forças Armadas foi saudada por esses segmentos, e a imprensa não tardou em publicar
matérias com a participação da população, mas com destaque para a liderança das mu-
lheres, importante para a efetivação do Golpe. O jornal católico Voz do Paraná publicou a
seguinte matéria:

Aquele mar humano formou-se espontaneamente, pelo natural desembocar de afluentes vários,
surgidos nas mais diversas fontes. E formou-se de súbito, quase por milagre, ao simples apelo
de um grupo de mulheres e organizações femininas que percebiam com extrema argúcia o
sentimento do povo.14

É interessante notar que a matéria apresenta o ato público da Marcha como um evento
espontâneo, quase de inspiração divina, como milagre, uma espécie de ação transcendente
que denota aprovação espiritual. Uma maneira de dizer que Deus estava a favor do povo nas
ruas; portanto, uma forma legítima de ação. Embora considerasse o papel das mulheres impor-
tante, a referência que faz ao apelo delas pelo movimento deixa expressa a ideia de que sua
ação caracterizou-se como algo sem pretensões, no sentido do desprendimento.

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Associativismo feminino e participação política:
um estudo sobre as bases sociais de apoio à ditadura militar em Curitiba (1964-1985)

Aqui, acreditamos ser possível fazer uma ligação com a visão da mulher como portadora
de elementos considerados intrínsecos à natureza feminina, como o cuidado e a sensibilidade
diante dos problemas causadores de sofrimento, valores disseminados pela tradição católica.
A Marcha apenas consagrou tais sentimentos (Sestini, 2008). As mulheres estavam cientes de
suas obrigações para com o lar, contribuindo para o desenvolvimento da nação sem, contudo,
ameaçar a ordem familiar ou perder as virtudes e os papéis sociais a ela atribuídos.

As mulheres da UCF-PR e a consolidação


da ditadura militar

L ogo após o Golpe, a preocupação da UCF-PR mudou para a promoção de atividades


informativas e de esclarecimento sobre a intervenção das Forças Armadas. A associação,
em solidariedade com os demais movimentos femininos, enviou uma nota favorável à escolha
do general Humberto de Alencar Castelo Branco à Presidência da República. Do mesmo modo,
não tardou em solicitar a aprovação de leis para combater, com eficácia, o comunismo. Foi
mobilizando a imagem da família como núcleo formador da sociedade, o valor moral feminino
como reduto da bondade, o apego aos sentimentos pátrios de amor à nação e a seus símbolos
que as mulheres conseguiram adesão e apoio da população a seu movimento.
Os setores da sociedade dos quais emergiram os protestos anti-Goulart tinham a cons-
ciência desses aspectos políticos do país. Em particular as mulheres, que, movidas por um sen-
timento de amor e de proteção, sentiram-se responsáveis pela condução dos rumos da nação.
Munidas de um patriotismo, muitas vezes alavancado pelo apego aos símbolos nacionais, e
de um sentimento religioso católico arraigado em uma concepção tradicional de família, as
mulheres dividiam suas ações entre o espaço do lar e o da ação política. As mulheres, em mui-
tos casos irmãs, esposas ou filhas de lideranças políticas, de militares ou de representantes do
setor empresarial, assumiram a frente das manifestações públicas, conseguindo a participação
de um número grande de pessoas, unidas pelo símbolo religioso do rosário.
Elas transportaram para a vida pública os cuidados considerados próprios do espaço pri-
vado da família e do lar. Nessa perspectiva, uma das motivações refere-se à convicção religio-
sa. Consolidou-se um sentimento de patriotismo que fortaleceu, pela via do símbolo religioso
do rosário, um mecanismo de defesa, de proteção ou de cuidado, sentimentos associados ao
universo feminino.
Não há dúvidas de que a tomada do poder pelos militares fora recebida com entusiasmo
pelas associações cívicas femininas. Elas se empenharam na mobilização da população por
meio de passeatas e de marchas, em defesa da família, pelas ruas das cidades do país. O

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Reginaldo Cerqueira Sousa

intuito não era outro senão a desestabilização do governo do presidente João Goulart para
abrir caminhos à intervenção das Forças Armadas na política com o Golpe já arquitetado pelos
militares e pelas lideranças civis dos partidos políticos, como a UDN, pela grande imprensa e
pelo segmento empresarial.
Para tanto, uma série de atividades, palestras e ações públicas foi realizada, objetivando
o esclarecimento das pessoas acerca da importância do papel dos militares no processo de
regeneração da nação. Em Curitiba, a UCF-PR promoveu debates, conferências cívicas e pales-
tras proferidas por líderes políticos e parlamentares conhecidos por seu anticomunismo e seu
combate às esquerdas. Um desses convidados foi o deputado federal pelo Partido Social De-
mocrático (PSD), Armando Falcão. À época, o parlamentar declarou-se abertamente contrário
à posse de João Goulart na Presidência da República, além de ter sido um importante aliado
dos militares. Segundo o relatório da UCF-PR:

No seu primeiro ano de existência atuou intensamente a favor do Governo Revolucionário,


ora reunindo as entidades democráticas do Paraná para um apelo a uma ação conjunta, ora
promovendo conferências cívicas no grande auditório em fase de construção do Teatro Guaíra
(lotado), trazendo oradores como os então deputados Armando Falcão e João Calmon. O atual
ministro Ney Braga era governador do estado, e Ivo Arzúa Pereira, o prefeito, ambos a dar-lhe
inteiro apoio.15

Nas conferências, Armando Falcão exortava a ação dos militares na defesa de uma nação
que se achava à beira do abismo com o governo de Goulart. Enalteceu a atitude das Forças
Armadas, julgando-a necessária para levar adiante a revolução que salvaria o país do caos e
da anarquia, promovidos pelos agentes internos comunistas presentes em toda a sociedade.
Além disso, defendeu a prisão dos subversivos — para ele, os verdadeiros inimigos da demo-
cracia — como solução para preservar os interesses da nação e as instituições políticas.
A visão de que o país caminhava mesmo para um abismo, pela decadência política e mo-
ral, era compartilhada pelas lideranças religiosas mais conservadoras da Igreja Católica, por
alguns políticos e, mais ainda, pelas mulheres da UCF-PR, que insistiam, assim como fazia a
grande imprensa, na presença de comunistas nas diferentes esferas do governo, corrompendo
o país e causando danos às liberdades democráticas (Napolitano, 2014). Com a intenção de
eliminar da administração pública e do governo esse perigo, a União Cívica enviou uma nota
de expurgo ao presidente da República em exercício, Ranieri Mazzili, que, naquele momento,
era deputado federal pelo PSD paulista.
Em 1964, Mazzili presidia a Câmara dos Deputados federais e, de acordo com a Cons-
tituição, era o próximo na linha de sucessão para assumir a Presidência da República. Na

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Associativismo feminino e participação política:
um estudo sobre as bases sociais de apoio à ditadura militar em Curitiba (1964-1985)

madrugada do dia 2 de abril de 1964, após João Goulart ter sido deposto, Mazzili assumiu
interinamente o cargo de presidente da República. No entanto, seu poder era apenas formal,
pois o controle do país estava, na verdade, nas mãos do autodenominado Comando Supremo
da Revolução. Respeitando a burocracia política e a hierarquia na sucessão do poder, as mu-
lheres enviaram a nota, apoiada por outras associações femininas de Curitiba, que cobrava
das autoridades a eliminação dos comunistas do Brasil. O texto afirmava que:

Nesta hora de grave e dramática do Brasil, recolocados pelas gloriosas Forças Armadas no
caminho das liberdades fundamentais, espera de Vossa Excelência no sentido de prosseguir
incansavelmente expurgo postos e cargos administrativos todos os maus brasileiros compro-
metidos com a corrupção e comunismo. Lembramos a Vossa Excelência, ainda, escolha os seus
auxiliares e ministros processar-se comum acordo com as forças responsáveis pela volta do
Brasil à liberdade e da democracia.16

O discurso enfatizava a necessidade de o governo agir com maior rigidez em relação a


seus opositores. A nota também reforçava a crença na capacidade das Forças Armadas em
regenerar a sociedade e estabelecer a ordem social, conforme se pensava na época. Cobra-
va-se uma espécie de limpeza moral e política, começando pela identificação, perseguição e
detenção das pessoas consideradas subversivas. Vale ressaltar que as mulheres acreditavam
que esse seria o caminho viável para evitar o aprofundamento da crise política, econômica e
moral pela qual passava o Brasil nos anos iniciais da década de 1960.
Junta-se a isso a preocupação com a presença dos comunistas, que achavam estar in-
filtrados no governo e na sociedade, de modo geral. Para tanto, somando-se às associações
cívicas de São Paulo e Rio de Janeiro, elas engrossaram o apoio do general Castelo Branco à
eleição para a Presidência da República. Cobravam, do mesmo modo, medidas para apressar
a aprovação de projetos que condenavam as práticas identificadas como subversivas.
Com esse intuito, enviou-se uma nota ao Congresso Nacional, em nome das mulheres e
de toda a sociedade paranaense, a favor dos militares e se posicionando favorável ao combate
do comunismo. No texto, elas apoiavam,

[…] incondicionalmente manifestos da União Cívica Feminina Paulista (UCF-SP), a Campanha


da Mulher pela Democracia (Camde), apelam ao Congresso Nacional pela eleição do íntegro
general Humberto Castelo Branco para a presidência da República assim como pedem urgência
na aprovação do projeto de Mendes Morais sobre a repressão ao comunismo.17

Podemos observar que havia, para alguns setores da sociedade, uma reação ou repúdio
às forças políticas e morais que afetavam o funcionamento e a ordem no país. Partiam, por-
tanto, do pressuposto de que o problema seria solucionado na medida em que esse mal fosse,

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Reginaldo Cerqueira Sousa

pela repressão, expurgado do Brasil. O próprio termo “expurgar” denotava não somente uma
ideia de eliminação, mesmo pelo uso da violência; fazia uma referência negativa àquele que,
dotado de impureza, precisava ser removido do convívio social para preservar a pureza do
grupo. Tal postura fica evidente quando outra imagem, positiva e possuidora de integridade,
era oferecida agora na figura de um militar como alternativa para o enfrentamento do mal.
O texto demonstra ainda que os militares dificilmente encontrariam obstáculos, em al-
guns segmentos da sociedade no que se refere à intervenção. As notas de apoio enviadas ao
Congresso Nacional e aos militares deixavam claro o apoio às Forças Armadas. Desejavam,
inclusive, que o governo promulgasse leis capazes de frear o avanço de grupos ou pessoas
considerados nocivos à sociedade.
Observa-se tal visão na defesa da censura nas artes. Embora outras formas de cercea-
mento tivessem ocorrido na imprensa, por exemplo, as mulheres da UCF-PR centraram sua
ação no combate ao que consideravam imoralidade no teatro, sobretudo no momento em que
os textos dramáticos passaram a abordar e a tomar como referência a crítica aos padrões de
comportamento aceitos como normas pela sociedade.
Para as mulheres, o teatro nacional estava se tornando um veículo inicial e condutor da
desagregação pela institucionalização, pela arte cênica, da pornografia e da lascívia.18 Por
isso, fizeram campanhas na imprensa para proibir a apresentação de peças e de espetáculos
considerados nocivos à sociedade e à família.19 Na ótica das mulheres, a pornografia não
passava de um sintoma de subversão social, sendo o fator responsável pela degeneração
cultural do Brasil.
Para elas, a tarefa do Estado não seria outra senão a de tomar todas as medidas neces-
sárias para que fossem preservados os valores de matriz católica, a democracia, o direito, a lei.
Somente dessa maneira seria possível a consolidação de uma nação saudável, harmônica e de
respeito às instituições sociais. Nota-se a manifestação do desejo de se prolongar, de forma
mais rígida e eficaz, o processo de limpeza política e moral iniciado em 1964. As associações
cívicas femininas foram favoráveis a esse processo, dele participando vigilantes, com apreço
pela ordem social.

O regime deve continuar: as mulheres, o silêncio sobre


a violência e a distensão política

A intervenção militar foi necessária para salvaguardar a democracia e a nação, protegen-


do-as daqueles que tentavam usurpá-las. Tal tendência traçou uma compreensão dos
grupos que apoiaram os militares apenas como agentes mobilizadores das massas, o caso das

404 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 404-412, setembro-dezembro 2018
Associativismo feminino e participação política:
um estudo sobre as bases sociais de apoio à ditadura militar em Curitiba (1964-1985)

“Marchas” — importantes porque se configuraram em campos de disputas simbólicas e de


visões políticas pautadas por uma postura conservadora de mundo —, e não levou em consi-
deração o fato de esses segmentos sociais e indivíduos, de forma espontânea, terem, no de-
correr da ditadura, uma participação política mais ativa em prol da defesa do governo militar.
Uma dessas práticas pode ser observada quando o país dava os primeiros sinais de
abertura política. Preocupada com o futuro do regime, Dalila de Castro Lacerda divulgou uma
circular às mulheres da União Cívica, convocando-as, mais uma vez, a apoiarem o regime
militar. Eis o conteúdo da carta:

Ao comemorarmos o Ano Internacional da Mulher, é justo que levantemos nossas vozes em


defesa da Família, da qual somos parte insubstituível.
A hora presente é grave para toda a humanidade. E, embora desfrutemos em nosso País um
clima de aparente tranquilidade, não podemos deixar de expressar a nossa grande preocupação
diante dos acontecimentos que se sucedem.
Como decorrência da crise internacional, vemos e sentimos o reflexo na economia dos nossos
lares, o que propicia justificada aflição a todos quantos dependem do seu trabalho para o sus-
tento de suas famílias, mormente os de menor poder aquisitivo.
O próximo dia 31 de março registra o 12o aniversário da Revolução Brasileira, resultante da
reação popular contra a subversão e a improbidade implantadas no País, estimuladas e alimen-
tadas pelo governo de então.
Nos idos de 1964 saímos às ruas, em quase todas as cidades brasileiras, em protesto ao desca-
labro, clamando aos Céus pela salvação do Brasil que caminhava precipitadamente para o caos.
A memória popular é efêmera e o seu juízo complacente. Daí, porque, [sic] decorridos 12 anos,
caírem no esquecimento os erros, os crimes perpetrados contra o povo, os quais determinaram
o movimento revolucionário de 1964.
Bastou o Governo acenar com o processo de distensão e os abusos se evidenciam por todos os
rincões da Pátria.
Porque desejamos a Nação realmente livre, para ser desfrutada por todos os compatriotas indis-
tintamente, valemo-nos da oportunidade em que comemoramos o 12o aniversário da Revolução
Brasileira, para conclamar todos a unir esforços em favor do bem comum. Por isso, solicitamos a
todas as Congêneres da União cívica Feminina Paranaense que promovam campanhas de âmbito
municipal, estadual e federal, de modo a reavivar nas mentes de todos os que assistiram o quase
desmoronamento da nacionalidade, bem como alertem aos mais jovens, que na época não tinham
ainda condições para avaliar a ameaça de que fomos alvo, para se unirem em torno do legítimo
representante da Revolução, que é o General Ernesto Geisel, ínclito Presidente da República.
Sugerimos, a exemplo do que já estamos realizando, um trabalho de esclarecimento da popula-
ção, através das mulheres de todos os níveis sociais e culturais, para [que] se mantenham fiéis
aos princípios cristãos que nortearam e orientaram a Revolução de 1964.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 405-412, setembro-dezembro 2018 405
Reginaldo Cerqueira Sousa

Nosso apelo encontra eco no lema adotado este ano pela Igreja para a Campanha da Fraterni-
dade: “Caminhar Juntos”.
Sim, caminharemos juntos, todos os brasileiros sem distinção de credo, sob a proteção de Deus,
para construirmos já um país verdadeiramente livre e profundamente humano.
Para tanto, é mister que nos congreguemos dentro desse espírito de união fraterna, repelindo
ideologias estranhas, que não condizem com os nossos anseios e Nação independente, demo-
crática e cristã.
Pela União Cívica Feminina Paranaense.
Dalila de Castro Lacerda. (Lacerda, 1976)

Doze anos após o Golpe, o medo era o de que as forças subversivas pudessem retornar
ao país e ameaçar as crenças que tanto preservaram e pelas quais saíram às ruas naqueles
dias nebulosos. Havia, segundo Cowan (2014), a partir da segunda metade da década de
1970, discursos que circulavam entre alguns segmentos religiosos e políticos da época que
diziam que o país estaria entrando em uma espécie de crise de moralidade e que, por isso,
era preciso criar mecanismos para barrar os avanços que poderiam surgir com as promessas
democráticas.
O documento faz também menção ao general Ernesto Geisel. Lançado como candidato
à Presidência em 18 de junho de 1973, Geisel assumiu, um ano depois, a chefia do Executivo
federal, no qual permaneceu até 1979. Para Marcos Napolitano (2014: 229-254), seu gover-
no foi marcado por ambiguidades. Anticomunista convicto, fez uso da censura para controlar
a oposição. Perseguia opositores de esquerda ao mesmo tempo que patrocinou a indústria
cultural, em que uma parte da cultura de esquerda obteve espaço. Durante seu governo,
ocorreram mortes violentas de militantes de esquerda, cassações de mandatos políticos e o
fechamento do Congresso. Estima-se que 39 opositores do regime foram desaparecidos e 42
foram mortos pela repressão.
A crescente violência do Estado e a limitação à participação política faziam também cres-
cer a oposição ao arbítrio do Estado. Em diferentes setores da sociedade, movimentos políticos
organizavam-se, exigindo maior participação política e a retomada do processo democrático.
Essa participação de setores da sociedade cobrando liberdade e democracia também elevou
a preocupação dos segmentos mais conservadores, que enxergaram no processo os fatores
de risco para a manutenção da ordem e da harmonia social, que, para tais setores, haviam
sido conquistados a partir de 1964. A carta da senhora Dalila se situa nesse ambiente político
nacional, marcado pelo desejo de redemocratização. Novamente, a UCF-PR pretende ser o
movimento catalisador das energias que motivaram a participação das mulheres: defesa da
família e da pátria sob os cuidados de Deus.

406 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 406-412, setembro-dezembro 2018
Associativismo feminino e participação política:
um estudo sobre as bases sociais de apoio à ditadura militar em Curitiba (1964-1985)

A imagem de Geisel, na lógica da UCF-PR, estava dissociada do arbítrio e da violência


que era praticada, na ditadura militar, contra a sociedade. Menciona-se a crise econômica
mundial como fator de desarranjo financeiro no país e nas famílias brasileiras, mas não como
algo também decorrente do modelo econômico assumido pelos militares, que acelerou o con-
sumo apenas de um setor da sociedade. O fato de não haver referência à violência política não
significa que as mulheres das associações, em algum nível, não tinham conhecimento sobre
a censura ou sobre a repressão aos opositores da ditadura. Acreditamos que as mulheres
da UCF-PR não estavam alheias a essas questões. É possível dizer que, em algum nível, elas
conheciam o que estava acontecendo no país em relação à violência praticada pelo Estado.
Um documento encontrado nos arquivos do CPFC é um indício de que algumas informa-
ções, no âmbito da política, circulavam entre essas mulheres. Como vimos, elas estabeleciam
vínculos com diferentes associações femininas e compartilhavam o mesmo espaço público. O
documento contém o discurso proferido pelo líder do MDB, Freitas Nobre, na Câmara dos De-
putados Federais, um ano após a cassação do mandato do deputado Alencar Furtado, em 30
de julho de 1977, pelos militares. Esse político exerceu, por três vezes, o mandato de deputado
pelo Paraná. Foi também um dos poucos do MDB, partido de oposição à ditadura, a destacar-
-se como doador de recursos financeiros às associações femininas. Em um telegrama, enviado
a uma dessas associações, Alencar Furtado agradeceu o apoio que recebeu em virtude de sua
escolha como o líder da bancada de seu partido no Congresso.20
Em relação ao documento, as questões que gostaríamos de destacar referem-se ao pro-
cesso de cassação de políticos, à violência agravada pela promulgação do AI-5 e à censura
política. Ao referir-se a Alencar Furtado, o líder do MDB, Freitas Nobre declarou:

Nascido, politicamente, na esquerda democrática que se organizara à margem da UDN, Alencar


Furtado fez de toda sua vida pública um exemplo que não será apagado.
O golpe do AI-5 consagrou-o perante o povo, e os levantamentos de opinião pública realizados
por fontes insuspeitas que manuseamos reafirmam o conceito popular e democrático de sua luta.
Não o vemos apenas hoje, como líder sacrificado, mas procuramos nas tradições melhores de
nossa história pública. […] Arrancar um líder de suas funções, especialmente numa estrutura
bipartidária, é arrancar o coração, a peça nobre, o centro propulsor da nossa vida parlamentar.21

O texto é elucidativo no que diz respeito às configurações políticas do período ditatorial


brasileiro. Configurando-se dentro dos inúmeros protestos feitos à opinião pública contra a
violência, apresenta uma leitura dos males que as leis arbitrárias como o AI-5 causaram à
sociedade e à liberdade de expressão. Como se tratava de uma das associações apoiadas pelo
deputado Alencar Furtado, a informação de sua cassação foi do conhecimento das mulheres.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 407-412, setembro-dezembro 2018 407
Reginaldo Cerqueira Sousa

Também tiveram notícia do processo de censura que pesava sobre alguns meios de comunica-
ção e a repressão contra os movimentos políticos contrários aos militares.
Janaína Martins Cordeiro (2009: 152-164), ao analisar a memória elaborada pelas mu-
lheres da Camde, uma associação que se caracterizou pelo apoio ao Golpe e à ditadura,
demonstrou que, a partir das crescentes denúncias sobre a repressão e a violência praticadas
contra os opositores do regime, houve uma desilusão, por parte das mulheres dessa associa-
ção, com os rumos tomados pela “Revolução de 1964” e um distanciamento delas em relação
aos militares. Em seguida, construiu-se outra memória no sentido de desvincular a adesão
dessas mulheres aos governos militares.
No caso da UCF-PR, essa relação não se deu apenas em um momento específico durante
a ditadura militar. Mesmo após as denúncias de violência e repressão, a União Cívica não
deixou de apoiar os militares. Esse apoio à ditadura permaneceu de diferentes maneiras, pelo
menos até a década de 1970. Isso ficou perceptível no desejo de mobilização, entre as mulhe-
res da UCF-PR, com o intuito de preservar a presença dos militares no comando do país para
evitar a anarquia, o caos e a crise moral. A abertura política representava esse risco.

Conclusão

A formação de associações cívicas foi um desses meios em que a presença das mulheres
foi decisiva. No início da década de 1960, surgiram por todo o país uniões cívicas for-
madas por mulheres de classe média e alta com o intuito de arregimentar mulheres, esposas
e mães de família dedicadas para a prática do civismo a partir da promoção do sentimento
patriótico. O civismo foi um campo de atuação política das mulheres e um instrumento de
ação contra o governo de João Goulart. A retórica da democracia e o discurso da defesa do
lar foram um dos elementos, aqui já mencionados, para dar sentido às manifestações públicas
das Marchas. Nesse sentido, o civismo apresentou-se como uma arma, um escudo em defesa
da nação contra o comunismo.
Outra questão importante foi demonstrada pela análise da documentação. Ela ampliou o
olhar sobre a participação das associações femininas para além das mobilizações de mulheres
na política em grande escala, tendo sua relevância ao apontar que a relação entre as associa-
ções femininas e a ditadura militar deu-se em distintas modalidades. Estas foram motivadas
por interesses variados, fossem eles relacionados com a proteção da família e da pátria, fos-
sem eles atrelados à preservação dos valores morais contra todos os comportamentos imorais.
As mulheres demonstraram confiança nos militares apoiando um modelo de governo mais
centralizador e capaz de impor a ordem.

408 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 408-412, setembro-dezembro 2018
Associativismo feminino e participação política:
um estudo sobre as bases sociais de apoio à ditadura militar em Curitiba (1964-1985)

Por fim, estudar a participação das associações femininas na política durante o contexto
da ditadura militar significa entender que ela se deu segundo interesses e visões de mundo
compartilhados pelas mulheres. A defesa da família, da religião cristã e da democracia pode
ser lida como símbolo mobilizador e catalisador de energia política que deu força aos movi-
mentos que eclodiram na primeira metade da década de 1960 e às ações que reforçaram o
apoio aos militares durante a existência do período de exceção no Brasil. Portanto, sua partici-
pação foi ativa e dinâmica na medida em que avançava institucionalmente a ditadura militar.

Notas

1 Estatuto da União Cívica Feminina Paranaense. Curitiba, 1963.


2 CPFC. Panorama Cultural. Comemoração de seu Jubileu de Ouro 1933-1983. Curitiba, 1983. p. 8.
3 A tese “A mãe e o direito civil” foi publicada pelo Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, em 1937.
4 Ofício do Gabinete do 4o secretário da Câmara dos Deputados. Centro Paranaense Feminino de Cultura.
Deputado Alípio Carvalho. Brasília, 1971; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura. Visconde do Rio
Branco 1717. Deputado Braga Ramos, 1978; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura. Visconde do
Rio Branco 1717. Deputado federal Paulo Pimentel, 1988; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura.
Visconde do Rio Branco 1717. Senador Afonso Camargo, 1982; Telegrama Centro Paranaense Feminino de
Cultura. Visconde do Rio Branco 1717. Deputado Braga Ramos, 1979.
5 A 5a RM/DI foi o braço do Exército brasileiro no Paraná. Garantiu o sucesso do levante dos militares contra
João Goulart na região Sul. Serviu como barreira às resistências que poderiam surgir a partir do Rio Grande
do Sul e de Santa Catarina.
6 UCF-PR. 1o Concurso de redação sobre o Dia do Soldado. Curitiba, 1966.
7 UCF-PR. Relatório de atividades. Curitiba. UCF, 1972. 3 p.
8 Povo e governo do Paraná: liberdade do ensino. Panorama, Curitiba, ano XIV, n. 142, mar. 1964.
9 A passeata. Gazeta do Povo, Curitiba, 25 mar. 1964.
10 Reforma sim, mas não subversão: a palavra do episcopado do Paraná. Gazeta do Povo, 21 mar. 1964.
11 Povo e governo do Paraná: liberdade do ensino. Op. cit.
12 Livros didáticos: decreto do governo. Voz do Paraná, Curitiba, 1o mar. 1964.
13 Na época, de acordo com os dados da FGV Cpdoc, apenas 46% das crianças até 11 anos de idade esta-
vam matriculadas.
14 A resposta do povo. Voz do Paraná, Curitiba, domingo, n. 402, 29 mar. 1964.
15 UCF Paranaense. Paranaense: o que é o que faz?. Diário do Paraná, Curitiba, 14 nov. 1975.
16 CPFC Livro de Ouro (1968-1991). Relatos, fotografias, recortes de jornais e revistas. [19-], [s.p.].

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 409-412, setembro-dezembro 2018 409
Reginaldo Cerqueira Sousa

17 Ibidem.
18 Ibidem.
19 Censura corta os imorais. Gazeta do Povo, nov. 1967.
20 Telegrama Centro Paranaense Feminino de Curitiba. Visconde do Rio Branco 1717. Deputado Alencar
Furtado, 1974.
21 Freitas Nobre. Câmara dos Deputados, 1978.

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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 411-412, setembro-dezembro 2018 411
Artigo

Opção pelos pobres: a Pastoral de Favelas


e a reorganização do Movimento
de Favelas no Rio de Janeiro na
redemocratização
Option for the poor: the Apostolate of the Slums and the
reorganization of the Movement of the Slums in Rio de Janeiro
during the redemocratization
Opción por los pobres: la Pastoral de Favelas y la reorganización
del Movimiento de Favelas en Rio de Janeiro en la
redemocratización

Mario Sergio Ignácio BrumI*

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300006

I
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.

* Professor permanente no Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas da


UERJ. Pós-doutor em Planejamento Urbano pelo IPPUR-UFRJ. Doutor e Mestre em História PPGHIS-UFF.
(mariobrum@yahoo.com.br)

Artigo recebido em 1º de junho de 2018 e aceito para publicação em 10 de setembro de 2018.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 413-432, setembro-dezembro 2018 413
Mario Sergio Ignácio Brum

Resumo

Neste artigo, analisamos o papel da Pastoral de Favelas na reorganização do movimento comunitário de favelas do
Rio de Janeiro a partir de um debate interno da Igreja Católica, que, sob forte influência da Teologia da Libertação,
aplicou na pratica a decisão das II e III Conferências Episcopais Latino Americana, em que a Opção Preferencial pelos
Pobres passou a nortear a ação da Igreja, inclusive na criação das pastorais. No Rio de Janeiro, a Pastoral de Favelas
marcou uma geração de ativistas, moradores de favelas ou não, que encontraram nela um acolhedor guarda-chuva
para que pudessem ter uma atuação no movimento comunitário tida por eles como mais questionadora das estru-
turas da sociedade e com objetivo de transformação dessas estruturas através da conscientização e da mobilização
dos moradores de favelas.

Palavras-chave: Pastoral de Favelas; Movimento comunitário; Favelas; Teologia da Libertação;


Redemocratização.

Abstract
In this article, we analyze the role of the Pastoral de Favelas in the reorganization of the community movement of
favelas in Rio de Janeiro from an internal debate of the Catholic Church, which, under the strong influence of the
Liberation Theology, applied into practice the decision of the II and III Episcopal Conferences in Latin America, in
which the “Preferential Option for the Poor” began to guide the action of the Church, including the creation of
pastoral care. In Rio de Janeiro, the Pastoral de Favelas marked a generation of activists, slum dwellers or not, who
found in it a welcoming umbrella so that they could have a role in the community movement considered by them
as more questioning of the structures of society and with transformation of these structures through the awareness
and mobilization of slum dwellers.

Keywords: Pastoral de Favelas; Community movement; Favelas; Liberation Theology; Redemocratization in


Brazil.

Resumen
En este artículo analizamos el papel de la Pastoral de Favelas en la reorganización del movimiento comunitario de
favelas de Río de Janeiro a partir de un debate interno de la Iglesia Católica que, bajo fuerte influencia de la Teología
de la Liberación, aplicó en la práctica la decisión de las II y III Conferencias Episcopales Latinoamericana, en que la
Opción Preferencial por el Pobre pasó a orientar la acción de la Iglesia, incluso en la creación de las pastorales. En Río
de Janeiro, la Pastoral de Favelas marcó una generación de activistas, moradores de favelas o no, que encontraron en
ella un acogedor paraguas que pudieran tener una actuación en el movimiento comunitario tenida por ellos como
más cuestionadora de las estructuras de la sociedad y con objetivo de transformación de esas estructuras a través
de la concientización y movilización de los habitantes de las favelas.

Palavras clave: Pastoral de Favelas; Movimiento comunitário; Favelas; Teologia de la Libertad; Transicion
Democratica em Brasil.

414 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 414-432, setembro-dezembro 2018
Opção pelos pobres: a Pastoral de Favelas e a reorganização do Movimento de Favelas
no Rio de Janeiro na redemocratização

Introdução

O período da Redemocratização do Brasil na virada das décadas de 1970 para 1980


trouxe significativas mudanças na relação entre o Estado e as favelas. A urbanização
ao invés da remoção se consolidava como política de Estado, nos vários níveis de governo,
através de vários programas e ações. Os moradores de favela, por seu turno, viveram os im-
pactos dos novos tempos através de uma efervescência no movimento comunitário que viu
surgir novas lideranças, (re)criando novas bandeiras e formas de mobilização, a ponto dessas
novas lideranças acreditarem que surgia nesse período um “novo associativismo”. Ou ainda,
para alguns, a retomada de um processo interrompido a partir do forte clima de repressão
que se abateu sobre o país, principalmente a partir do Ato Institucional n.º 5, período também
que coincide com o II Congresso da Fafeg, em 1968, quando muitas lideranças atribuíram um
potencial transformador ao movimento de favelas.
A essas lideranças, somaram-se vários agentes externos, como muitos ligados à Pastoral
de Favelas, que também tinham o II Congresso da Fafeg como uma referência de modelo de
movimento comunitário a ser resgatado após os anos de repressão e atrelamento ao Estado
que viviam as associações.
A fala de uma liderança da Maré, na época um seminarista que chegou à favela no início
da década de 1980, é representativa desse momento:

A associação de moradores era controlada pela Fundação Leão XIII, e seu administrador era
Waldemar, homem altamente conservador, que cooptava as lideranças para impedir que a co-
munidade se organizasse. Começamos a discutir com aquela população de jovens a partir da
Opção Preferencial pelos Pobres, adotada pela Igreja, e a produzir massa crítica sobre os pro-
blemas da Maré.

Sobre o conjunto da Maré, Ernani afirma: “Já havia lideranças, associações de moradores,
só que muito conservadoras, cooptadas pelo poder público e pela Fundação Leão XIII”.1
Na dissertação de Eliana Sousa Silva2, outra liderança da Maré que viveu esse momento —
a qual nos interessa aqui pelo seu caráter “autobiográfico”—, é descrito o caráter desse
associativismo a partir de suas experiências à frente da Associação de Moradores e Amigos
da Nova Holanda:

Prioriza-se a mobilização dos moradores e a pressão permanente dos órgãos públicos, através
das ações coletivas de impacto, como passeatas, atos públicos […] Palavras como participação,
mobilização, dignidade e luta são emblemáticas do período […] firma-se uma concepção de
movimento combativo, crítico ao Estado e agressivo em relação às políticas clientelistas.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 415-432, setembro-dezembro 2018 415
Mario Sergio Ignácio Brum

No livro Favela: Resistência pelo direito de viver, a jornalista Guida Nunes traça um
histórico das lutas dos favelados desde seus primórdios, tendo colhido depoimentos dos pro-
tagonistas dessas lutas. Nesse livro, ao abordar o período que estamos tratando, ela o intitula
emblematicamente de “Reinício da luta”.3
Abordamos aqui uma organização que cumpriu papel preponderante nesse movimento,
a Pastoral de Favelas, a partir dos seus bastidores, no que levantamos no arquivo da própria
Pastoral, documentos guias, atas de reuniões, jornais e coletamos depoimentos de alguns dos
atores que participaram diretamente da Pastoral de Favelas. Além disso, buscamos também
compreender alguns debates da Igreja Católica no Brasil e na América Latina que serviram de
inspiração para a Opção Preferencial pelos Pobres, que marcou parte da Igreja nesse período
e que acabou por marcar profundamente o movimento de favelas no Rio de Janeiro.

Favelas: da remoção à urbanização

E ntre 1969 e 1973, a política de segregação espacial da cidade tomou proporções inédi-
tas, removendo os favelados das áreas centrais da cidade, particularmente na valorizada
Zona Sul, e transferindo-os para terrenos vazios na periferia, a algumas dezenas de quilôme-
tros do centro da cidade e de seus antigos empregos. Esse período pode ser caracterizado
como a “Era das Remoções”, quando foi implementada uma política sistemática de erradica-
ção das favelas.
Esse período trouxe uma mudança drástica na relação entre Estado e favelas. Principal-
mente a partir de 1969, no contexto ditatorial, a remoção, ameaça sempre presente na vida
das favelas, pôde ser executada com força total, garantida por uma repressão nunca vista
antes. O poder do voto, que anteriormente havia sido utilizado pelos favelados através de
diversas estratégias de sobrevivência, estava bastante enfraquecido, e os favelados veriam
drasticamente reduzidas suas margens de manobra para se contraporem aos interesses envol-
vidos na erradicação das favelas.
À repressão exercida pelo Governo Federal, somam-se diversos mecanismos de controle
do governo estadual na Guanabara, até pela centralização e as diversas medidas interventoras
que o primeiro exercia sobre os estados em geral, e na “oposicionista” Guanabara, ex-capital
da República, mas ainda caixa de ressonância política e cultural do Brasil, em particular. Em
1967, o governador Negrão de Lima publica o decreto no 870, de 15 de junho de 1967, que
pôs as associações de moradores sob controle do Estado. O decreto determinava a unicidade
de representação em cada favela e que todas as atividades, estatuto, eleições, balanço finan-

416 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 416-432, setembro-dezembro 2018
Opção pelos pobres: a Pastoral de Favelas e a reorganização do Movimento de Favelas
no Rio de Janeiro na redemocratização

ceiro, deveriam ser submetidas à apreciação Secretaria de Serviço Social do governo estadual.
As associações também deveriam solicitar a autorização para reparos nos barracos e impedir
a construção de novos. Caso algum dos pontos acima não fosse cumprido pela diretoria da
associação, a Secretaria poderia intervir diretamente nela, nomeando uma junta governativa.
Nos planos originais das autoridades federais e estaduais, seriam removidas todas as
favelas do Rio de Janeiro até 1976. Antes da meta ser cumprida, porém, o órgão executor
(CHISAM_ Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de
Janeiro) foi extinto, em setembro de 1973. O saldo foi de mais de 175 mil moradores de 62
favelas (remoção total ou parcial) removidos para novas 35.517 unidades habitacionais em
conjuntos, estando a maioria nas Zonas Norte e Oeste. A maior parte das favelas removidas se
localizava na Zona Sul, tendo sido removidas as da orla da Lagoa e do Leblon: as favelas da
Catacumba, Jóquei Clube, Ilha das Dragas e Praia do Pinto (Brum, 2012: 106).
No entanto, um editorial do Jornal do Brasil revelou a forma como a favela era tratada
por parte da sociedade e a cobrança para que o programa tivesse um fôlego maior para remo-
ver todas as favelas de, ao menos, parte da cidade. Isso se deu quando a avenida Niemeyer,
que ligava os bairros do Leblon e São Conrado, na Zona Sul, foi interditada e a passagem pas-
sou a ser feita obrigatoriamente pela Rocinha. De acordo com o jornal, “em conseqüência, a
visão do que tem sido este governo piorou bastante. Evidencia-se a olho nu a incapacidade de
atacar o problema das favelas com a disposição requerida, pelo menos daquelas localizadas
em pontos incompatíveis com o progresso da cidade.”4

A Pastoral de Favelas e a “reorganização” do movimento


comunitário

P assado o ímpeto remocionista por parte do Estado, no final de 1977, mais uma vez a
remoção voltaria a assustar os favelados, dessa vez no Vidigal. A favela, localizada na
avenida Niemeyer e contando com uma vista privilegiada para o oceano Atlântico, recebeu
a visita de alguns funcionários da Fundação Leão XIII, que avisaram sobre a remoção. Os
moradores procuraram os órgãos do Estado para saber exatamente o que se passava, quando
souberam informalmente que havia um projeto de construção de prédios no local.
Apesar do desânimo de alguns, os moradores se mobilizaram com o apoio da Pastoral
de Favelas e, com essa mobilização, conseguiram fazer com que o caso chegasse à imprensa,
momento em que o secretário de obras do município afirmou que a remoção seria devido aos
riscos de desabamento na favela. Como as festas de fim de ano se aproximavam, os mora-
dores conseguiram adiar a remoção. Soube-se também que os planos eram de transferir os

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 417-432, setembro-dezembro 2018 417
Mario Sergio Ignácio Brum

favelados para o conjunto Antares, em Santa Cruz, a mais de trinta quilômetros de distância
do local. Finalmente, no dia marcado para a remoção, com a Fundação Leão XIII tendo mobi-
lizado o aparato da Comlurb e da polícia de choque, os advogados conseguiram uma liminar
para impedir a remoção e depois uma medida cautelar a favor dos favelados. O despacho do
juiz afirmava que os favelados já estavam no local há mais de vinte anos e que não havia risco
iminente de desabamento. No fim, os favelados conseguiram permanecer no local5.
Essa luta no Vidigal é considerada o marco inicial da Pastoral de Favelas, entidade fun-
damental para o movimento comunitário das favelas cariocas no período que se inicia a partir
da Abertura Política no fim dos anos 19706. Alguns padres e demais pessoas leigas já vinham
promovendo reuniões com grupos de favelados no período anterior ao episódio do Vidigal, a
exemplo do que ocorriam com diversos outros segmentos que voltavam a se organizar no fim
da Ditadura a partir das Comunidades Eclesiais de Base.
Apesar de não ter tido muitas vitórias, o período correspondente ao II Congresso da
Fafeg era lembrado por alguns padres e alguns favelados como um período de lutas e exemplo
a ser seguido pela organização e mobilização que as favelas tinham conseguido.
Desde 1976, o padre Ítalo Coelho vinha promovendo reuniões com antigas lideranças
faveladas na Zona Sul do Rio, afastadas pela repressão que se abateu sobre esse movimento.
Conforme o depoimento do padre Mario Prigol (de 1973 até 2006 à frente da Igreja Nossa
Senhora da Salete, no Catumbi), incentivador da Pastoral desde seu começo, suas origens
passam também pelas organizações operárias ligadas à Igreja, como a Ação Católica Operá-
ria (ACO), sendo a Pastoral uma consequência dessa linha de ação desenvolvida por alguns
setores da Igreja7.
Segundo o padre Mario, grupos da Igreja que há tempos atuavam no movimento social,
começaram a criar as equipes de base, embriões das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base),
no início do década de 1970, sendo essa a forma desses grupos ligados à Igreja de realizarem
uma “militância” orgânica sem despertar a atenção da repressão, o que já havia atingido
setores da Igreja, como o próprio padre Mario, preso em 1970:

Já existiam grupos que refletiam a Bíblia e, na medida em que você reflete, você percebe que
certas coisas não podem ser aceitas pelo Evangelho. Por exemplo: você ser proibido de lutar
pela melhoria na fábrica; lutar para ter água, esgoto na favela; lutar para você ter a luz. Então,
todas essas lutas eram populares. […] E todas essas lutas populares eram valorizadas dentro
da Ação Católica Operária. 8

Também a agente da Pastoral, Ana Maria Noronha, explicou que a Pastoral era fruto de
toda uma linha de atuação que a Igreja vinha desenvolvendo no período anterior:

418 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 418-432, setembro-dezembro 2018
Opção pelos pobres: a Pastoral de Favelas e a reorganização do Movimento de Favelas
no Rio de Janeiro na redemocratização

Antes de 64, já havia alguma organização, mas depois passou, porque ninguém podia traba-
lhar, fazer reuniões e tudo mais. Um grupo de padres e leigos resolveu que era tempo de abrir
espaço, já que era mais fácil convidar os moradores das comunidades para que viessem discutir
os seus problemas.9

A compreensão da mudança de postura da Igreja Católica nos leva a uma rápida discus-
são sobre as mudanças ocorridas na Igreja Católica no Brasil e no mundo durante a década de
1970. No Brasil, embora grande parte da alta hierarquia da Igreja tenha se posicionado a favor
da deposição de João Goulart em 1964, no qual várias organizações católicas leigas partici-
param de sua articulação, o distanciamento entre a Igreja e o regime se daria gradativamente
conforme foram ficando mais evidentes as constantes violações de direitos humanos por parte
deste e os custos sociais do Milagre Econômico no início da década de 1970. Diversos docu-
mentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil com críticas ao regime e à situação do
país vão deixando mais claro esse distanciamento10, demonstrando assim que os setores mais
progressistas, mais enfáticos em suas críticas, foram ganhando um espaço maior dentro da
Igreja, indo ao encontro de muitos católicos leigos que cobravam uma postura mais incisiva
por parte dela e, em sua visão, mais de acordo com os princípios cristãos.
Padre Mario conta que:

Nesses congressos, como também nas CEBs e depois na PO [Pastoral Operária], em todos esses
movimentos, a gente tinha que partir da realidade operária, e da realidade popular. Se você não
tem água no bairro, você vai ficar lá esperando o quê? […] A gente conseguiu fazer com que a
CNBB passasse a assumir uma posição firme.11

Isso abriu o caminho, junto a outros fatores, para o crescimento da Teologia da Liberta-
ção no Brasil, a partir principalmente da II Conferência Episcopal Latino-americana realizada
em 1968 na cidade de Medellín, na Colômbia, reforçada em 1978, na III Conferência Episco-
pal Latino-americana em Puebla, no México, quando a Igreja faz a Opção Preferencial pelos
Pobres como sua prática em um continente marcado por profundas desigualdades.
A Teologia da Libertação, corrente da Igreja Católica, surgiu no início da década de
1960, inspirada a partir do Concílio Vaticano II, realizado em 1962, sob o impacto dos
movimentos de libertação e de diversos movimentos “culturais” que ganharam força no
período como a da “Teoria da Dependência”, a pedagogia de Paulo Freire, entre outros. A
Teologia da Libertação prega uma Igreja mais voltada à realidade social, pois considera que
a construção do reino de Deus anunciada por Jesus se faz na terra, assim entendido como
um reino de paz e solidariedade entre os homens, criticando então uma Igreja ritualística e
descolada da realidade.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 419-432, setembro-dezembro 2018 419
Mario Sergio Ignácio Brum

Para a Teologia da Libertação, os pobres ocupam posição central na construção desse


reino, por isso a ênfase em sua atuação e mobilização, pois ela

considera o pobre como sujeito, protagonista da história, da transformação da sociedade e da


Igreja. Com sua prática, sua fé, sua experiência de Deus, se faz sujeito mesmo da teologia. Nes-
te caso, atribui-se muita importância aos movimentos populares, ao grito do povo, à reflexão
orgânica das CEBs, junto dos quais o teólogo capta os temas, elabora-os, testa-os.” (Libânio,
1992: 153)

Assim, as Comunidades Eclesiais de Base nada mais são de que a forma de levar a Igreja
aos pobres e trazê-los para participar ativamente dela. “Tratar-se-ia de redescobrir os pobres
que já estão na Igreja, aos milhares, dando-lhes então a palavra e o lugar privilegiado a que
têm direito. Não é outra a função das comunidades de base” (Souza, 1979: 85).
Tanto Libânio quanto Souza fazem a ressalva que o predomínio de posições progressistas
quanto à análise da realidade latino-americana (ou nacional) e pelas orientações a seguir se
deve menos a uma posição majoritária de uma determinada tendência e mais ao peso das ex-
periências concretas já existentes, como no caso das diversas ações de Pastoral desenvolvidas
pela Igreja no Brasil.
Vemos, então, que a Pastoral encarna esse novo momento da Igreja, diferenciando-se,
como dissemos acima, das ações anteriores da Igreja nas favelas em aspectos fundamentais,
fruto também da conjuntura da falta de direitos políticos e civis da época.
O documento da Arquidiocese do Rio de janeiro Moradia do pobre no Rio de Janeiro12
é esclarecedor quanto aos novos princípios que guiam a ação da Pastoral. Na avaliação das
ações anteriores da Igreja nesse campo, há breves menções sobre os êxitos obtidos por cada
instituição, não deixando de reconhecer, no caso da Cruzada São Sebastião, em que pesem os
vários aspectos positivos, que esta “tem ainda alguma coisa do paternalismo das ações ante-
riores”. Da mesma forma, em documento produzido na XIX Assembleia Geral da CNBB, que
destaca a questão da habitação popular no Rio de Janeiro e as ações da Igreja nessa área, a
Fundação Leão XIII é apenas citada, sem ter sido feito nenhum balanço, negativo ou positivo,
sobre sua atuação13.
É importante para a compreensão da ação e princípios da Pastoral de Favelas, deixar
mais claro qual era o entendimento da questão do solo urbano e da posse da terra que pre-
valecia na Igreja nessa época. No documento produzido a partir da assembleia da CNBB em
198214, é criticada a especulação imobiliária, a concentração de renda e a “a falta de instru-
mentos jurídicos claros para coibir a especulação imobiliária devido a interesses poderosos.”
O documento aponta ainda que, sendo a população de baixa renda relegada ao seu próprio

420 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 420-432, setembro-dezembro 2018
Opção pelos pobres: a Pastoral de Favelas e a reorganização do Movimento de Favelas
no Rio de Janeiro na redemocratização

destino e, como a moradia é “uma necessidade”, os pobres buscam suas próprias saídas com
criatividade, luta, esforço e união. A partir de diversos documentos da Igreja (encíclicas como
a Popolorum Progresio, por exemplo) a cidade deve ser entendida como espaço da solidarie-
dade cristã e da vida em comunidade. O direito de propriedade, então, deve estar subordinado
ao bem comum, sendo a moradia um direito universal e “requisito da vida verdadeiramente
humana”. Assim, esse documento aponta que “consciente, cada vez mais, da capacidade do
povo em resolver seus próprios problemas, a Igreja incentiva-o a resolver e participar de todas
as decisões que lhe dizem respeito, apoiando as diversas formas de organização e mobilização
populares, tais como os movimentos de defesa dos favelados.”
Uma matéria publicada na revista Veja em 1980 relata essa efervescência política vivida
dentro da Igreja. A matéria mostra casos da atuação da Igreja em disputas de terras urbanas
e rurais, entrevistas com agentes e com membros da hierarquia da Igreja favoráveis ou contra
essa atuação. Neste trecho, podemos ter uma noção sobre como esse processo era vivenciado
como uma espécie de extrapolação das atribuições da Igreja que, de modo geral, é o tom da
matéria: “Agentes de Pastoral — essas palavras começam a emergir com freqüência cada vez
maior nas atividades da Igreja católica no país e, quando emergem, quase sempre se pode ter
uma certeza, não é de reza que se está tratando.”15
Focando a atenção na Arquidiocese do Rio de Janeiro, na época encabeçada pelo Cardeal
Dom Eugênio Sales, grande entusiasta da ação pastoral, no documento Moradia do pobre… a ati-
vidade da Pastoral é considerada como “de apoio e defesa dos moradores das habitações pobres”,
voltada para a “solução dos problemas de fixação do Homem à terra, através do problema da atua-
ção relacionada com os direitos de propriedade, posse e habitação das camadas de menor renda.”
Também são reveladoras as análises sobre a favela que pudemos apreender das deli-
berações de um seminário promovido pela Arquidiocese (Problema Habitacional da População
de Baixa Renda do Rio de Janeiro) realizado no Sumaré em 1979. Desse encontro, saíram as
seguintes considerações:

[...] que as favelas são uma realidade ditada pela lei do possível e não mito ou ficção; que a
maioria da população favelada é constituída de trabalhadores e seus dependentes, trabalha-
dores esses contribuintes de impostos e taxas, como quaisquer outros cidadãos brasileiros; que
a conotação de ‘marginal’, atribuída ao morador de favela não procede, uma vez que favelado
e favela são parte integrante do sistema econômico, social e político da cidade e do país; que
existem, entre os moradores das favelas, redes de relacionamento e vizinhança, com alto nível
de interação, que possibilitam trabalhos em conjunto, viabilizando soluções para alguns de seus
problemas; que as favelas diferem entre si, devendo portanto, cada uma delas ser considerada
na sua especificidade.” (Ver documento Moradia do Pobre...)

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 421-432, setembro-dezembro 2018 421
Mario Sergio Ignácio Brum

Padre Mario diz que houve resistências dentro da Igreja ao tipo de atuação que a Pas-
toral se propunha:

Tinham certas associações religiosas que combatiam até a gente. Mas, eu fiz ver a todos os
padres e vigário que, enquanto a Igreja ficava só nas paróquias… enquanto os padres ficavam
só nas sedes paroquiais, que havia todo um trabalho de outras lideranças que não eram cristãs.
Então, dentro disso, a gente conseguiu que o cardeal aprovasse todo o projeto da Pastoral de
Favelas. E esse projeto exatamente procurava valorizar o máximo a ação de pessoas de cada
comunidade. […] Em 1976, o cardeal Dom Eugênio assumiu e nomeou o Padre Ítalo como as-
sessor, e mais ainda, havia toda uma liderança de favelados leigos. Então, nós estávamos, como
paróquias, assumindo a luta das favelas.

Outra mudança de orientação que podemos ver nos documentos da Igreja desse período
é que, além da ênfase na posse da terra por parte dos favelados, a urbanização das favelas é
considerada um dever do Estado, o que difere das ações anteriores que atribuíam principal-
mente ao favelado a responsabilidade pelas melhorias nas casas e favelas, sendo que eram
ainda admitidas as remoções, em maior ou menor grau, sendo o Estado ainda o responsável
em encaminhar as políticas de desapropriação ou compra das áreas em que as favelas estão
localizadas. Cabe ressaltar que, em todos os três documentos, a política de remoções é critica-
da: “O grandioso projeto de extinção das favelas vai se demonstrando ineficiente para resolver
o problema da moradia das famílias de baixa renda”16 ou ainda “a política de remoção não
atingiu seus objetivos”17. A Igreja passa só a admitir a remoção onde não for viável a urbani-
zação, e mesmo assim, a favela deveria ser transferida para uma área próxima, com a garantia
de que seus moradores seriam partícipes de todo o processo, com cada família optando pela
solução que melhor lhe coubesse.

A redemocratização: o estado acena com a urbanização

A lém das transformações ocorridas na Igreja, o período de surgimento da Pastoral se ca-


racteriza também por certa indefinição nas políticas do Estado, em seus diversos níveis,
para as favelas, em que este emitia sinalizações contraditórias.
A gestão Chagas Freitas no governo estadual (e de sua corrente política na prefeitura, já
que o prefeito na época era indicado pelo governador), se por um lado se pautara por obras
pontuais nas favelas até então, foi a que criou a Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Social, durante a gestão de Israel Klabin na Prefeitura do Rio, para ser o órgão municipal de
políticas para as favelas18, iniciando um ambicioso programa de urbanização na Rocinha19.

422 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 422-432, setembro-dezembro 2018
Opção pelos pobres: a Pastoral de Favelas e a reorganização do Movimento de Favelas
no Rio de Janeiro na redemocratização

Do mesmo modo, o governo federal, que poucos anos antes era o responsável pelo pro-
grama de remoção de favelas, iniciou, através da Light, o Programa de Iluminação de Favelas,
bem como lançou o Programa de Erradicação da Sub-habitação (Promorar), conhecido como
Projeto Rio, que erradicaria as palafitas da Maré e urbanizaria as favelas da área.
As remoções, no entanto, ainda que tenham deixado de ser uma ação sistemática de
governo, permaneceram como uma ameaça esporádica, como no caso do Vidigal, promovi-
da por órgãos do governo estadual e da prefeitura. Ou ainda, como o temor de vários mora-
dores da área da Maré quanto ao que consistiria exatamente o Projeto Rio e a erradicação
das palafitas.
De qualquer forma, havia uma “nova” postura, ainda que não homogênea, dos órgãos
de Estado quanto à política para as favelas, acenando, naquele momento, para a urbanização
dessas áreas.
Essa nova postura do Estado, em conjunto com o momento de efervescência política
próprio da Abertura Democrática, esse mesmo estimulado pela ação da Igreja, fez com que
este período (1976-1980) seja o que tenha sido criado o maior número de associações de
moradores (Diniz, 1984: 32). Junto a isso, a vitória no Vidigal também serviu como estímulo
à participação de outras associações nos fóruns da Pastoral de Favelas, que tendo começado
sua ação na Zona Sul, logo a ampliou para a Zona Norte e Leopoldina.
A questão da posse da terra se mostrava a maior preocupação da população favelada,
ainda sob o impacto do período remocionista que rondava essas comunidades como um fan-
tasma. Por isso, em 1978, a Pastoral, baseada no episódio da Vidigal, onde a assistência jurí-
dica20 foi fundamental para o desfecho favorável aos favelados, criou o Serviço de Assistência
Jurídica, conduzido por advogados ligados à Igreja, como Sobral Pinto, Bento Rubião, Eliana
Athayde, entre outros, como forma de auxiliar as comunidades na luta pela posse da terra.
O Serviço de Assistência Jurídica era entendido como fundamental em uma época em
que uma das principais lutas da sociedade, incluindo a Igreja, como vimos acima, pautava-se
pela volta ao Estado de Direito. Acrescentando ainda que, para a Igreja, a forma de atingir seus
objetivos se caracterizava pela busca do entendimento e da solidariedade21 como princípios
cristãos, daí a busca tanto de conversações com as autoridades governamentais22 como a uti-
lização, de maneira mais ampla possível, de instrumentos legais para resolução dos problemas
das comunidades. O que não descartava a mobilização e organização dos favelados, por parte
da Pastoral, através de suas associações de moradores, pois “à medida que as organizações
se fortalecem, surge o poder de reivindicação comum, a garantia da permanência, do uso, da
posse e propriedade do solo.”23.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 423-432, setembro-dezembro 2018 423
Mario Sergio Ignácio Brum

Esse deve ser entendido também como o sentido (além de toda a parte prática) do
Serviço de Assistência Jurídica da Pastoral de Favelas. Em um encontro realizado no segundo
semestre de 1979, que reuniu os advogados ligados à Pastoral e membros da Arquidiocese,
um dos entendimentos é de que

O povo não inicia sua luta de esperança, senão através de ações concretas em função dos
interesses mais imediatos de suas necessidades primeiras. Só através destas ações, o homem
absorve e entende a força de sua união, a luta pela justiça, a busca de um mundo novo. Só
assim ele começa a sentir motivação para o seu caminhar.24

Ainda no mesmo documento, a mobilização das comunidades através de suas organi-


zações fica mais clara: “Foi unânime a constatação da necessidade de uma atuação viva das
comunidades e, sempre que possível, através de seus órgãos representativos.”25.
O Serviço de Assistência Jurídica pode ser entendido como o núcleo “orgânico” da Pas-
toral em seus primeiros anos. Esse funcionava de duas formas: através do serviço de pronto-
-socorro e do serviço preventivo26. O pronto-socorro se pautava pela ajuda emergencial, “rea-
gente”, em questões de ameaça de remoção por parte do Estado ou despejo por supostos (ou
não) proprietários dos terrenos onde as favelas estavam, como nos casos da Rocinha, Vidigal,
Morro dos Cabritos, Santa Marta, Lagartixa, Morro da Matriz etc.27 Para os agentes à frente
da Pastoral (os “não-favelados”, como padres, advogados, jornalistas, aos quais chamaremos
aqui de “apoiadores”) esse tipo de serviço não excluía a mobilização da comunidade, mas ao
contrário, “serve para despertar nos destinatários da medida, e na comunidade em geral, a ne-
cessidade de se organizarem”28, considerando ainda que a entrada do advogado da Pastoral
seria “sempre feita através da associação de moradores ou qualquer organização similar”29.
Até 1981, o pronto-socorro já havia sustado 17 ações de despejo.30
Já a atividade preventiva se pautava em estudos sobre a questão habitacional, através
de seminários (como os do Sumaré); encontros com vários segmentos da sociedade, desde os
próprios favelados, intelectuais, estudantes etc., e com diversos órgãos, governamentais ou
não, que se relacionassem à questão.31
A mobilização das comunidades se dava através da participação em assembleias da pas-
toral, reuniões com as associações de moradores e, conforme o decidido no Encontro de Ad-
vogados em 1979, para o serviço ser implantado, era necessário “formar comissões jurídicas
da própria comunidade, se possível, com assistência de advogado, senão só com os próprios
moradores”32 nas favelas sob o raio de ação da Pastoral. Podemos ver que a montagem dessas
comissões jurídicas era, para os advogados do Serviço de Assistência Jurídica da Pastoral, a
melhor forma de atingir os objetivos de despertar e organizar as comunidades para lutarem

424 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 424-432, setembro-dezembro 2018
Opção pelos pobres: a Pastoral de Favelas e a reorganização do Movimento de Favelas
no Rio de Janeiro na redemocratização

pelos seus direitos, ou seja, “Despertar e incentivar a conscientização comunitária é o ‘algo


mais’ inserido no trabalho das Comissões Jurídicas”33.
Essas comissões eram compostas pelos favelados e funcionariam como embriões de
organizações comunitárias. Entre suas atribuições, estavam: o levantamento de como esta-
va a questão da posse da terra em cada favela, a assessoria às associações de moradores
ou a criação destas onde não houvesse, e a disputa onde elas estivessem sob a influência
do chaguismo, como podemos ver em documento da Pastoral quando se refere ao caso do
Cantagalo: “após muitas idas e vindas, realizadas as eleições e empossada a nova diretoria,
agora representativa dos interesses da comunidade […] na área dominava um grupo que se
constituiu em diretoria perpétua, a partir de uma junta governativa designada pela F. Leão
XIII há dez anos”34. Assim como no Cantagalo, em outras favelas (como Catumbi, Rocinha,
dentre outros), foram organizadas chapas de oposição que exigiam das juntas governativas
que fizessem uma prestação de contas e convocassem a eleição para uma nova diretoria35. Em
três anos, a Pastoral havia organizado comissões jurídicas em 33 favelas (ou conjuntos habita-
cionais). Sempre no intuito de mobilizar o maior número de pessoas possível, essas comissões
eram eleitas em assembleias realizadas nas favelas36.
Um dos trabalhos realizados no ano de 1980 pelas comissões jurídicas, agentes e pelas
associações de moradores (onde havia), em cerca de 100 comunidades no Rio de Janeiro, foi
o levantamento detalhado de cada favela quanto ao número de moradores, à posse da terra,
à oferta de serviços públicos, o nível de organização comunitária, entre outros aspectos37.
De 1981 até 1986, a Pastoral contaria com o apoio financeiro da Fundação Ford. A verba foi
usada para seu serviço jurídico, capacitação de lideranças, para custear os agentes pastorais,
para sua estrutura administrativa e para o jornal Favelão, que também serviu para articular
as várias iniciativas locais de imprensa popular feitas pelos favelados, que tinham no Favelão
espaço para publicar notícias de suas comunidades38. O fim desse financiamento acabou por
dificultar o trabalho da Pastoral.
Quanto aos agentes da Pastoral, segundo Ana Maria Noronha, eram lideranças das pró-
prias favelas, sendo ela a única “de fora”: “Ao todo são dez os líderes que trabalham conosco,
dois de cada vicariato39, que levam e trazem as coisas importantes de cada comunidade,
visitando, animando as reuniões e assembléias, incentivando a comunidade, e contribuindo,
assim, para uma tomada de consciência.” 40
Além da intenção de apoiar a organização comunitária, o que podemos apreender dos
documentos da Pastoral41 é a constante ressalva quanto à possibilidade de atuação das or-
ganizações comunitárias conquanto estejam de fato em consonância com os objetivos da

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 425-432, setembro-dezembro 2018 425
Mario Sergio Ignácio Brum

Pastoral, o que significava, entre outras coisas, que as associações deveriam ter autonomia em
relação ao Estado, e especificamente naquela conjuntura, estarem afastadas da influência do
chaguismo, que mantinha o controle de várias associações de moradores.
Padre Mario conta que o objetivo da Pastoral era:

Fortalecer esses grupos que se organizavam, as lideranças de favelas. […] e, na medida do


possível quando houvesse eleição, eles se lançavam candidatos. […] Então, as lideranças, aos
poucos, foram recuperando as associações evitando viver naquele domínio do Estado (de que
tem que ter o documento de bons antecedentes, etc. […] A Pastoral de Favelas não quis criar
problemas com o governo. […] Sempre lutava para que a associação voltasse a ser ativa e
assumisse a liderança na favela. Então, a luta na Pastoral de Favelas era fazer com que cada
associação voltasse a lutar abertamente pelos direitos dos moradores. Nesse sentido, a Pastoral
de Favelas nunca foi contra a luta da associação, pelo contrário. Fortalecia mais, mas que fosse
realmente livre. […] Que realmente buscasse discutir os problemas e formasse a liderança da
associação de acordo com as lideranças mais autênticas de cada favela.

Assim, em uma assembleia da Pastoral do Vicariato Norte42, vemos que as queixas mais
comuns dos participantes eram quanto à oferta de serviços públicos em suas favelas, parti-
cularmente quanto à água, sob responsabilidade da Cedae (Companhia Estadual de Água e
Esgotos do Rio de Janeiro). A essa queixa, acrescentaram que “alguns presidentes estão liga-
dos a políticos, prejudicando assim toda a comunidade”. Após o debate de como encaminhar
essa questão (indo a CEDAE para reclamar e fazer um abaixo-assinado), mais adiante, na ata,
está escrito: “Sabemos que qualquer reivindicação que quizermos (sic) fazer tem que haver
antes de tudo a união […] se o povo não pressionar as autoridades e fazer (sic) uma
conscientização de sua comunidade, será difícil resolver os problemas” (grifo nosso). Na as-
sembleia seguinte, a questão seria novamente tratada de forma ainda mais clara: “Conversou-
-se sobre problemas das favelas, vendo primeiramente o problema da ‘politicagem’, pois em
algumas comunidades entraram ‘políticos’, que estão atrapalhando a vida da comunidade.”43
No entanto, é feita adiante, na ata, a ressalva de que “o trabalho da associação é um trabalho
político e ninguém deve ter medo disso.”
Quando das discussões sobre as formas legais de garantir a posse da terra por parte dos
favelados, o documento da CNBB44 faz dura crítica aos políticos, atribuindo a estes a razão das
dificuldades de modificar as leis que regem esta matéria, pois “a classe política […] entende
com clareza que, a partir do momento no qual a ‘situação de favor’ não mais existir, cessará
imediatamente seu poder de barganha. É por isso que ela bloqueia qualquer tentativa possi-
velmente eficaz de solucionamento do problema.”

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Opção pelos pobres: a Pastoral de Favelas e a reorganização do Movimento de Favelas
no Rio de Janeiro na redemocratização

Podemos comprovar, através de seus depoimentos, o papel que a Igreja, fosse através da
Pastoral de Favelas, fosse através das paróquias locais, desempenhou para que muitas lide-
ranças despertassem para luta comunitária. Como vemos na Rocinha, através do depoimento
de Chica da Rocinha, a mobilização da comunidade era incentivada pelo padre: “O padre
Cristiano mobilizou muita gente; convidava para as reuniões, onde discutíamos os problemas
da comunidade. Primeiro, eram as obras da capela; depois os problemas de luz, saúde, sanea-
mento e educação. Tínhamos um grupo que se reunia todas as segundas-feiras à tarde, para
discutir a questão da saúde…” 45
Parte do papel que a Pastoral cumpriu na reorganização do movimento comunitário das
favelas cariocas se deve ao fato dos demais canais de mobilização popular, como os partidos
de esquerda e sindicatos, estarem prescritos ou sob severas restrições ao seu funcionamento.
Motivo pelo qual a Pastoral de Favelas, sob o “guarda-chuva” acolhedor da Igreja Católica,
serviu como meio dessa militância de esquerda ter uma atuação orgânica, ou voltar a tê-la,
como foi o caso de muitas das antigas lideranças comunitárias. Do mesmo modo, isso explica
o apoio que a Pastoral recebeu de diversos segmentos, que coadunavam com as bandeiras
que a Igreja Católica no Brasil vinha empunhando, como vimos acima. Para Itamar Silva:

A Pastoral de Favelas era um espaço muito forte de articulação política. Naquele período, era
claramente o único espaço de articulação que existia. Como só havia dois partidos, a Arena e
o MDB, a Pastoral abrigava todas as tendências. Depois, quando se abriu o leque, a gente foi
identificando quem era MR-8 [Movimento Revolucionário Oito de Outubro], quem era Conver-
gência Socialista, quem era isso, quem era aquilo. Foi possível mapear. Mas antes, a Pastoral era
um espaço em que todos estavam metidos como ativistas.46

Todos esses elementos que discutimos acima: a importância que a Pastoral (e a Igreja)
atribuía à mobilização popular; as críticas a um determinado tipo de político cuja atuação,
baseada no clientelismo, atrelava e “imobilizava” as organizações populares, impedindo-as
de cumprirem seu papel como instrumento de libertação das camadas pobres da sociedade;
a significativa participação de militantes de esquerda, direta, como no caso das lideranças co-
munitárias, ou indireta, como no caso de pessoas oriundas de outros segmentos da sociedade
que apoiavam a Pastoral, se revelou na disputa pela FAFERJ, a Federação das Associações de
Moradores de Favelas do Rio de Janeiro, na primeira metade da década de 1980. A disputa
por essa entidade, nos primeiros anos da década de 1980 foi bem acirrada, chegando mesmo
a haver um racha na FAFERJ. De um lado, lideranças mais ligadas ao MDB e a Chagas Freitas,
à frente do governo do Estado e tendo controle da prefeitura do Rio. Do outro, lideranças
que estavam ou estiveram vinculadas à Pastoral de Favelas, muitas já filadas a partidos de

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 427-432, setembro-dezembro 2018 427
Mario Sergio Ignácio Brum

esquerda como o PT ou o PDT. Em jogo nessa disputa, estavam tanto os rumos do movimento
comunitário das favelas cariocas, quanto num âmbito mais geral, a disputa política de projetos
para o país. (ver Brum, 2006).

O esvaziamento da Pastoral

E ssa “desmobilização” pode ser percebida também no esvaziamento da Pastoral de Fa-


velas no decorrer da década de 1980, tanto na menor presença de pessoas nas reuniões
quanto no peso das associações que participavam. Os documentos relativos à Pastoral de Fa-
velas fornecem preciosas indicações do processo que o movimento comunitário viveu durante
o período com que estamos lidando. A partir de meados da década de 1980, o “enfraqueci-
mento” da Pastoral começa a ser tema de debate. É atribuído, inicialmente, ao fim do financia-
mento da Fundação Ford, em 1986, ao Serviço de Assistência Jurídica47 (e consequentemente
à infraestrutura da Pastoral), como aparece escrito no documento de avaliação da Pastoral do
ano de 1987: “o trabalho da Pastoral de Favelas prosseguiu com vistas à redução de algumas
atividades, em virtude do projeto que vinha sendo implementado com o apoio da entidade
financiadora.”48. A percepção de um enfraquecimento da Pastoral passa a ser mais debatida
com o passar dos anos, sendo um tema constante em seus fóruns49. Chegando ao ponto em
que, em 1996, é convocada uma reunião do Vicariato Sul da Pastoral que tem como um dos
pontos de pauta a “reestruturação da Pastoral nas comunidades da Zonal Sul”50.
Um dos pontos frequentemente levantados em seus fóruns é sobre qual seria o novo
papel da Pastoral, nesse “novo momento político”51 com um Estado que vinha atendendo
a algumas demandas do movimento comunitário, particularmente às das favelas com maior
poder de pressão, ou seja, as que tinham um movimento comunitário organizado, de modo
que muitas associações passaram a ter seus próprios canais de articulação com os órgãos do
Estado, “dispensando” a participação nos fóruns da Pastoral. Representativo desse momento
é uma das “questões políticas” tratadas em uma reunião da Pastoral no Vicariato Oeste:
“Como o poder influencia as pessoas que passam a assumir a direção de algum trabalho.”52
Vale dizer também que parte desse enfraquecimento da Pastoral se deve ao fato de que
o “momento político” mudara, o guarda-chuva acolhedor da Pastoral não era tão necessário
quanto fora na época da Ditadura Militar, havendo agora outros meios com os quais o movi-
mento comunitário podia se organizar, inclusive, no próprio aparelho do Estado.
Através das fontes documentais, vemos que vai aumentando de proporção o caráter reli-
gioso da Pastoral, quase “ignorado” nos seus primeiros anos e, mesmo quando era posto, era
sempre relacionado à luta política, típica da influência da Teologia da Libertação. Assim, em

428 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 428-432, setembro-dezembro 2018
Opção pelos pobres: a Pastoral de Favelas e a reorganização do Movimento de Favelas
no Rio de Janeiro na redemocratização

um “Encontro de Agentes da Pastoral de Favelas” realizado em 1993, os objetivos da Pastoral


são apresentados em dois itens: “1- Buscar o Reino de Deus e buscar o homem; 2- Desco-
berta de Deus na vida dos homens e descoberta dos homens na vida de Deus”. Fechando os
objetivos, temos: “A Pastoral de Favelas busca evangelizar.”53 É preciso deixar claro que isso
não significa dizer que a Pastoral abandonou seu trabalho político, ou que o lado religioso
não existisse anteriormente, uma vez tendo se engajado nas manifestações contra a Chacina
de Vigário Geral, em 1993; contra a Revisão Constitucional, no mesmo período54; e também
contra a ação do exército nas favelas do Rio de Janeiro na Operação Rio, em 199455. Chama a
atenção, analisando apenas os documentos, que esse lado religioso praticamente inexpressivo
em um momento anterior, passou a ocupar cada vez mais espaço em seus fóruns e materiais.
Em anos mais recentes, durante a preparação da cidade para os Grandes Eventos, a Pas-
toral de Favelas volta ter maior presença de moradores de favelas em seus fóruns e ações. Não
à toa, justamente o período em que as favelas vivem novamente a ameaça (e cumprimento)
das remoções. Na Vila Autódromo, Canal do Anil, Horto, Araçatiba e diversas outras favelas da
cidade, a Pastoral se fez presente, mediando negociações com autoridades, no apoio jurídico
ou mesmo em ações diretas, como passeatas e atos de resistências às remoções.

NOTAS

1 Depoimento de Ernani da Maré em PANDOLFI, Dulce & GRYNSZPAN, Mario A favela fala: depoimentos ao
CDPDOC. Rio de janeiro: Ed. FGV, 2003.
2 Eliana Sousa Silva. O movimento comunitário de Nova Holanda na busca do encontro entre o político e o
pedagógico. Dissertação de Mestrado em Educação. Rio de Janeiro, PUC-Rio, 1995.
3 Guida Nunes foi repórter do jornal O Dia, na coluna Comandos em Ação, que cobria favelas, subúrbios e
bairros da periferia metropolitana do Rio de Janeiro, e acompanhou as demandas e mobilizações dos mora-
dores de favelas do Rio de Janeiro, publicando dois livros sobre o tema.
4 “Panorama da Rocinha” Jornal do Brasil, 2 e 3 ago. 1970.
5 Relato da jornalista Guida Nunes em seu livro.
6 Na pesquisa desenvolvida por Eli Diniz (1984) com 103 associações de moradores de favelas do Rio de
Janeiro entre 1980 e 1981, as reuniões com representantes da Igreja Católica (incluindo a Pastoral) figurava
como a segunda principal atividade das associações, só superada pelos trabalhos comunitários (mutirões).
7 Depoimento do Padre Mario Prigol à Mario Brum em 20 e 22 de abr. 2005. A entrevista está disponível no
LABHOI-UFF.
8 Idem.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 429-432, setembro-dezembro 2018 429
Mario Sergio Ignácio Brum

9 Depoimento (escrito) de Ana Maria Noronha sobre a Pastoral de Favelas na III Semana de Estudos Maria
Augusta Albano. Movimentos Populares no Brasil. Coleção Temas Sociais, n. 193, CBCISS, Rio de Janeiro,
1985. p. 110-111.
10 São os seguintes documentos: Comunicação pastoral ao povo de Deus (1976) e Exigências de uma ordem
política (1977), que tiveram ampla repercussão no país, e também os documentos de episcopados regionais
do Brasil: Eu ouvi os clamores do meu povo. Documento de Bispos e superiores religiosos do Nordeste (1973)
e Marginalização de um povo. Grito das Igrejas. documento de bispos do Centro-oeste (1973).
11 Depoimento do Padre Mario Prigol à pesquisa em 20 e 22 de abr. 2005.
12 Moradia do pobre no Rio de Janeiro. Cadernos de Pastoral n.1 Arquidiocese do Rio de Janeiro- Secretaria-
do de Pastoral, Rio de Janeiro, 1979.
13 Propriedade e Uso do Solo Urbano — Situações, experiências e desafios pastorais Documento da XIX
Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Itaici-SP, 1981.
14 Solo Urbano e Ação Pastoral. Documento da 20ª Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil. Itaici-SP, 1982.
15 “Evangelho político”. Revista Veja, 24/09,1980.
16 Propriedade e Uso do Solo Urbano…
17 Solo Urbano e Ação Pastoral…
18 A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social foi criada em 1979 (Decretos 2290 e 2291 de 20 de
setembro de 1979), seguindo a recomendação do Unicef de criar instituições voltadas especificamente para
o combate à pobreza nos municípios. Adiante, neste capítulo, trataremos de maneira mais aprofundada do
papel da SMDS nas favelas cariocas e particularmente para o seu movimento comunitário.
19 A primeira ação da SMDS foi um programa-piloto de urbanização da Rocinha, com ênfase no saneamento
básico. Ver: Proposta para ação nas favelas cariocas. SMDS / Unicef. Rio de Janeiro, 1980. Fonte: Biblioteca do
Instituto Pereira Passos (a partir daqui: BIPP).
20 Cabe registrar que nos documentos da Pastoral são usados indiscriminadamente tanto os termos Assistên-
cia Jurídica quanto Assistência Judiciária.
21 “Serviço Jurídico — sempre prestado na mesma perspectiva de respeito à verdade, justiça, amor, liberda-
de, visando ajudar ‘a transformar o homem em agente de sua própria libertação’ (Puebla).” Ata do Encontro
de Advogados / Secretariado da Pastoral, 1979. Fonte: Arquivo da Pastoral de Favelas (a partir de agora APF).
22 Como no episódio do seminário “Problema Habitacional da População de Baixa Renda do Rio de Janeiro”,
que reuniu além dos advogados da pastoral, autoridades eclesiásticas e lideranças faveladas, as autoridades
dos órgãos governamentais ligados à questão habitacional, representantes de construtoras e técnicos. Ver
Moradia do pobre…
23 Propriedade e Uso do Solo Urbano…
24 Ata do Encontro de Advogados. Secretariado da Pastoral, 1979. Fonte: APF.
25 Idem.
26 Serviço de Assistência Jurídica – Pastoral Social. Secretariado Arquidiocesano de Pastoral. 1980. Fonte: APF.

430 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 430-432, setembro-dezembro 2018
Opção pelos pobres: a Pastoral de Favelas e a reorganização do Movimento de Favelas
no Rio de Janeiro na redemocratização

27 Serviço de Assistência Judiciária. Pastoral Social – Secretaria Executiva – maio/agosto de 1978. Fonte: APF.
28 Id. ibid.
29 Ata do Encontro de Advogados. Secretariado da Pastoral, 1979. Fonte: APF.
30 Propriedade e Uso do Solo Urbano…
31 Entre as ações “preventivas” do Serviço de Assistência Jurídica, fruto desses encontros com diversos
setores, está o surgimento do projeto de Usucapião Urbano, que era, para a Pastoral, uma das maneiras das
favelas conseguirem, por vias legais e com auxílio das autoridades, a posse da terra. Esse projeto foi uma
das principais bandeiras da Pastoral de Favelas, enquanto a questão da posse da terra foi o grande fator
mobilizador, o que deixaria de ocorrer posteriormente, conforme trataremos adiante. De qualquer forma,
na Constituição de 1988, foi aprovada a redução do prazo para aquisição de propriedade por usucapião de
20 para 5 anos, como defendia a Pastoral. Ver Propriedade e Uso do Solo Urbano… e Pastoral de Favelas.
Documento de 1989. Fonte: APF.
32 Ata do Encontro de Advogados. Secretariado da Pastoral, 1979. Fonte: APF.
33 Relatório do 2º Encontro de Advogados e Comissões Jurídicas das Comunidades de Base. Secretariado da
Pastoral, 1980. APF.
34 Relatório da Secretaria Executiva do Serviço de Assistência Judiciária – agosto/setembro de 1979. APF.
35 Ver diversos documentos no APF e também Nunes (Op. cit.).
36 Relatório do 2º Encontro de Advogados e Comissões Jurídicas das Comunidades de Base. Secretariado
da Pastoral, 1980. APF.
37 As fichas preenchidas desse levantamento estão no Arquivo da Pastoral de Favelas, consistindo em interes-
sante fonte para análise da realidade das favelas cariocas no início da década de 1980.
38 Proposta de renovação do financiamento à Fundação Ford. 1986. Fonte: APF.
39 A Pastoral dividia sua atuação através dos vicariatos, que eram: Sul, Norte, Leopoldina, Suburbano e Oeste.
40 Depoimento (escrito) de Ana Maria Noronha sobre a Pastoral de Favelas.
41 Como os da nota 30 e 33, por exemplo.
42 Ata da 36ª Assembleia da Pastoral de Favelas. Secretariado de Pastoral, Pastoral de Favelas, Vicariato
Norte. 25 de jun. 1981. Fonte: APF.
43 Ata da 37ª Assembleia da Pastoral de Favelas. Secretariado de Pastoral, Pastoral de Favelas, Vicariato Nor-
te. Sem constar a data, ocorrida entre 25 de junho (a anterior) e 31 de agosto (data marcada para a posterior)
de 1981. Fonte: APF.
44 Propriedade e Uso do Solo Urbano…
45 Depoimento de Francisca Honorata (Chica da Rocinha) (Pandolfi & Grynszpan, 2003).
46 Depoimento de Itamar Silva (Pandolfi & Grynszpan, 2003).
47 Com o fim do financiamento ao Serviço de Assistência Jurídica da Pastoral, vários advogados que ali
atuavam criaram, em 1986, a ONG Bento Rubião, homenagem ao advogado que havia falecido pouco antes,
transformada, em 1996, na Fundação Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião. Há versões que

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 431-432, setembro-dezembro 2018 431
Mario Sergio Ignácio Brum

dizem que houve um desentendimento entre os advogados e D. Eugênio Sales quanto ao rumo da Pastoral.
No entanto, não conseguimos reunir maiores informações sobre o assunto. Sabe-se que mesmo estando na
Fundação Bento Rubião, o vínculo desses advogados com o trabalho da Pastoral permaneceu, como comprova
a presença deles em diversos eventos da Pastoral que pudemos observar nos documentos desta.
48 Documento [sem título] de avaliação do trabalho da Pastoral de Favelas no ano de 1987. Fonte: APF.
49 Por exemplo, Relatório da Assembléia de Pastoral de Favelas do Vicariato Sul de 17 de fevereiro de 1989
e documento [sem título] sobre a Pastoral de Favelas. 1989. Fonte: APF
50 Convite distribuído às comunidades para reunião do Vicariato Sul da Pastoral de Favelas de 28/04/1996.
Fonte: APF.
51 Documento [sem título] de avaliação do trabalho da Pastoral de Favelas no ano de 1987”… Fonte: APF.
52 Ata da reunião do Vicariato Oeste - Coordenação Arquidiocesana da Pastoral de Favelas. 4 de dezembro
de 1985. Fonte: APF.
53 Relatório do Encontro de Agentes da Pastoral de Favelas no Sumaré. De 5 a 7 de março de 1993. Fonte: APF.
54 Questionários de avaliação do ano de 1993 do Encontro da Pastoral de Favelas. 28 de novembro de 1993
Fonte: APF.
55 Ata da reunião de Coordenação da Pastoral de Favelas. 16 de março de 1995. Fonte: APF.

Referências bibliográficas

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432 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 432-432, setembro-dezembro 2018
Artigo

Casa dos Açores de São Paulo: imigração,


associativismo e religiosidade
São Paulo’s Azores house: immigration, associativism and
religiosity
Casa de las Azores de São Paulo: inmigración, asociativismo y
religiosidad

Elis Regina Barbosa AngeloI*

Maria Izilda Santos de MatosII**

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300007

I
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo – SP, Brasil.

*Pós-doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora Adjunta nos cursos de Bachare-
lado em Turismo da UFRRJ, na Licenciatura em Turismo no Consórcio CEDERJ/ EaD e no Programa de Pós-graduação em
Patrimônio, Cultura e Sociedade, PPGPACs da UFRRJ. (elis@familiaangelo.com)

II
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo – SP, Brasil.

** Pós-doutora pela Université Lumiere Lyon, França e Doutora em História pela Universidade de São Paulo. Atualmente é
Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. (mismatos@pucsp.br)

Artigo recebido em 24 de maio de 2018 e aceito para publicação em 10 de setembro de 2018.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 433-456, setembro-dezembro 2018 433
Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

Resumo
Esta investigação focaliza as experiências dos imigrantes açorianos na cidade de São Paulo, em particular sua prá-
tica associativa na Casa dos Açores de São Paulo (Casp), observando sua historicidade, o cotidiano, as atividades
recreativas e assistenciais, além das ações voltadas para a manutenção das tradições, memórias, religiosidade e
festividades, como a do Divino Espírito Santo, um dos ícones desse grupo de imigrantes.

Palavras-chave: Casa dos Açores de São Paulo; Imigração; Associativismo; Sujeitos históricos.

Abstract
This research focuses on the experiences of the Azorean immigrants in the city of São Paulo, in particular, their as-
sociative practice in the Casa dos Açores de São Paulo (Casp), observing their historicity, daily life, recreational and
assistance activities, as well as actions aimed at maintaining the traditions, memories, religiosity and festivities such
as the Divine Holy Spirit, one of the icons of this group of immigrants.

Keywords: São Paulo’s Azores House; Immigration; Associativism; Historical subjects.

Resumen
Esta investigación se centra en las experiencias de los inmigrantes azorianos en la ciudad de Sao Paulo, en parti-
cular, su práctica asociativa en la Casa de las Azores de Sao Paulo (Casp), observando su historicidad, el cotidiano,
actividades recreativas y asistenciales, además de acciones dirigidas al mantenimiento de las actividades tradiciones,
memorias, religiosidad y festividades como la fiesta del Divino Espíritu Santo, uno de los iconos de ese grupo de
inmigrantes.

Palabras clave: Casa de las Azores de São Paulo; Inmigración; Asociativismo; Sujetos históricos.

434 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 434-456, setembro-dezembro 2018
Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

Um território1 açoriano: Vila Carrão (SP)

A presença de açorianos no Brasil pode ser localizada em vários estados (Maranhão,


Bahia e Rio de Janeiro), com destaque para Santa Catarina e Rio Grande do Sul, nos
quais o contingente foi mais significativo.2 Em São Paulo, as referências aos açorianos são ime-
moriáveis, enfatizando a presença de famílias da ilha de São Miguel em fazendas na região de
Ribeirão Preto (de propriedade de Martinho Prado Jr.), também em Descalvado, Mogi Mirim,
Campinas e Piracicaba — estes se deslocaram nos anos finais do século XIX.
O fluxo de açorianos para São Paulo se manteve constante no século XX, sendo in-
tensificado a partir das décadas de 1950 e 1960 pelas novas possibilidades da expansão
econômica e urbana3 (Angelo e Matos, 2008). Na cidade, eles se instalaram na Vila Carrão
(zona Leste da cidade), nas redondezas das ruas Dentista Barreto, Água Funda e Luzia da
Conceição Moraes, que ainda hoje apresentam um número elevado de ilhéus e seus des-
cendentes (Matos, 2013).
O estabelecimento dos açorianos se deu, na maioria das vezes, por oportunidades de tra-
balho, como as do Cotonifício Guilherme Giorgi,4 no qual ocupavam a maior parte dos postos.
Além dessa ocupação, esses imigrantes se dedicaram às ocupações em setores técnicos espe-
cializados, fazendo-se presentes em padarias, armazéns, floriculturas, feiras livres e açougues,
participando de forma ativa e garantindo a visibilidade na comunidade da Vila Carrão.
Gradativamente, estabeleceu-se um sistema de atração que funcionava por redes;5 os
recém-chegados ou os que eram chamados tinham indicações para a inserção na fábrica:

Primeiro veio meu tio, minha tia e duas primas, e depois nós viemos, ah… o meu pai e mi-
nhas duas irmãs, depois a minha mãe e quatro filhas, e depois ainda mais um tio, que morou
na nossa casa… O meu pai e as minhas duas irmãs, quando chegaram aqui, o meu tio já
tinha arrumado um serviço na tecelagem de Guilherme Giorgi, que geralmente [era] onde
todos trabalhavam… Meu pai trabalhou sempre em indústria e nessa tecelagem, na Coto-
nifício Guilherme Giorgi, [que] chamava. E trabalhava também fazendo horta, todo pedaço
de terra que ele via. Tinha um campo aí do Guilherme Giorgi que eram tudo casa, sobrados,
apartamentos, que tinha ali, que os portugueses se juntavam ali naquele pedaço de terra e
cultivavam ali. E isso, e o meu pai trabalhava de noite na fábrica e durante o dia ele pegava
as verdurinhas dele, botava num carrinho de mão e ia vender na feira. (Depoimento de Maria
de Lurdes Arruda Paz, 2 /nov. 2006)

A cidade de São Paulo crescia em diversas direções, incluindo a zona Leste, área com
presença destacada do setor industrial e de uma mão de obra imigrante. Nesse contexto:

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 435-456, setembro-dezembro 2018 435
Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

O crescimento urbano definira o zoneamento social de São Paulo. As áreas baixas, de várzeas
e periféricas ao centro, sujeitas às diversas catástrofes naturais, e onde o preço da terra, por
consequência, era menor, destinavam-se à instalação industrial e à habitação proletária, proxi-
midade que rebaixava o custo de transporte da força de trabalho, desse modo imediatamente
acessível. […] o Brás sofreu, talvez mais que qualquer outro bairro da Capital, uma brutal
intervenção humana no ambiente natural que dotou-o, [sic] da noite para o dia, das qualidades
e mazelas de outra singular natureza: a da sociedade industrial. Justamente ali ergueram-se,
[sic] durante as quatro últimas décadas do século passado, os equipamentos mais avançados
produzidos pela indústria contemporânea, desde a implantação da malha ferroviária, capaz de
transportar mercadorias e força de trabalho de um lado para o outro, cobrindo grandes distân-
cias em muito menos tempo, até as primeiras fábricas de médio e grande porte da Capital pau-
lista, principalmente as do setor têxtil, constituindo-se, assim, num polo de atração irrefutável
para imigrantes […]. (Verona, 1999: 15-16)

Os imigrantes estabeleciam relações na dinâmica do crescimento urbano, em um cotidia-


no marcado por atividades de trabalho e de lazer. O Cotonifício, de certa forma, foi o primeiro
elo entre os açorianos e seus conterrâneos, pois, ao atraí-los para o Brasil por meio de redes
de amigos e parentes, também fortaleceu laços de amizade, conterraneidade, parentesco e
vizinhança, especialmente nos bairros operários. Assim, pode-se dizer que o trabalho foi um
dos motes da constituição dessas redes de colaboração e vínculos de trabalho e sociabilidade.
Muitos dos que vieram por cartas de chamada tinham parentes ou conterrâneos que auxilia-
vam no estabelecimento na cidade; já outros, que haviam vindo sós, encontraram vínculos no
bairro e na fábrica.
O desejo de organizar uma associação surgiu diante da necessidade de apoio e auxílio,
não só na procura por trabalho, mas também na inserção na sociedade de acolhimento, seja
no que se refere à educação, saúde, cotidiano e religião, seja nas práticas de sociabilidade que
se formavam. Pode-se perceber a concentração de esforços e cooperação entre os sujeitos
históricos que a conceberam, constituindo-se a partir do anseio de compartilhar as relações de
sociabilidade e agrupar os conterrâneos que vieram para o Brasil em busca de oportunidades.6
Nesse contexto, a Casa dos Açores foi uma iniciativa de membros da comunidade de açoria-
nos, visando a preservar expressões culturais e tradições (música, festas, gastronomia, saberes
e religiosidade), tornando-se uma forma de demarcar seu espaço/território.
Assim nasceu a proposta da organização da Casa dos Açores, que, ao ser institucionali-
zada (receber a conotação de instituição), foi regulamentada por meio “de elementos regu-
ladores, normativos e cultural-cognitivos, que, juntos com atividades associadas e recursos,
fornecem estabilidade e significado à vida social” (Scott, 2008: 48).
A esse respeito, tem-se seu primeiro estatuto:

436 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 436-456, setembro-dezembro 2018
Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

CAPÍTULO I – Da Denominação, Fundação e Fins


Artigo 1o
A CASA DOS AÇORES DE SÃO PAULO, fundada aos 22 de junho de 1980, é uma pessoa jurídica
de direito privado, com personalidade distinta de seus sócios sem fins lucrativos, com sede e
foro nesta cidade, à Rua Dentista Barreto, No 1282, Vila Carrão, e tem por finalidade:
I – Promover, anualmente, a Festa do Divino Espírito Santo, que realizar-se-á em sua sede;
II – Promover e divulgar a cultura, as tradições e os costumes açorianos;
III – Promover o congraçamento de todos os açorianos, familiares e associados;
IV – Promover periodicamente reuniões de caráter social, cultural e recreativo e afins, em har-
monia com o disposto nos itens anteriores;
V – Manter uma biblioteca educacional;

VI – Fomentar a prática desportiva, bem como manter o intercâmbio com órgãos e entidades
análogos, nacionais e internacionais. (Casa dos Açores de São Paulo, 1995: 2)

Esse estatuto levou algum tempo para ser efetivado, pois as ideias e ações de associati-
vismo foram sendo construídas gradativamente, articulando elementos capazes de agregar os
açorianos à Casa, também estratégias de aproximação com o governo dos Açores e de outros
imigrantes de diversas localidades pelo mundo na diáspora açoriana.
O Governo Regional das Comunidades dos Açores7 assume, entre suas missões, a de arti-
cular as Casas da comunidade açoriana espalhadas pelo mundo, mantendo laços e reavivando
a memória e as identidades.8 A Casa dos Açores de São Paulo mantém elos com o governo dos
Açores, recebendo apoio e ajuda na organização de atividades.
Em sua trajetória, a Casa concentrou ações que extrapolam as premissas de sua fun-
dação, enfrentou desafios similares aos de outras instituições, uma vez que a “[…] função
original das casas regionais de agregar os imigrantes e atuar como lugares de memória tem se
perdido em muitas situações pela simples questão da sobrevivência das Instituições” (Oliveira,
2014: 16).
Os açorianos que trabalhavam no Cotonifício Guilherme Giorgi se reuniam para contar
histórias e rememorar a terra natal, além de outros momentos de encontro na fábrica, igreja e
festejos de rua, como nas festas juninas. Nessas ocasiões, emergiu o desejo de fundar uma ca-
pela para glorificar o Espírito Santo. Assim, pode-se dizer que, entre outros elementos, a Casa
se originou do anseio dos açorianos de alocar as festividades e seus símbolos, especialmente
a Festa do Divino Espírito Santo e a do Senhor Santo Cristo dos Milagres, que são devoções
muito difundidas nas ilhas.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 437-456, setembro-dezembro 2018 437
Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

Nesse sentido, destaca-se que os movimentos de associativismo tinham função relevante


na legitimação da cultura e da religiosidade. Além disso, o intuito associativista9 buscava a
formação de um território que possibilitasse fortalecer traços culturais diluídos no processo
de deslocamento e pelos ocultamentos na metrópole de São Paulo, marcada pela diversidade
cultural, com a presença de muitos grupos de imigrantes e migrantes.
Sobre a criação da Casa dos Açores, o sr. Manuel de Medeiros (3/6/2008), um dos que mais
se envolveram nessa empreitada, rememora quando os açorianos da Vila Carrão se reuniam
para debater as possibilidades de fundar uma associação açoriana. O depoente destaca como
os envolvidos na fundação enfrentaram dificuldades quanto à falta de apoio, espaço e recursos
financeiros. Assim, inicialmente se estabeleceram na garagem do sr. José Vitorino de Arruda, na
Rua Zodíaco, onde começaram a celebrar a Festa do Divino. Aos poucos, foram inserindo novos
sujeitos ao grupo e formaram uma primeira diretoria, tendo como presidente o sr. Manuel de
Medeiros, um agente da construção e disseminação da cultura açoriana na cidade.

A Casa dos Açores de São Paulo foi criada em 22 de junho de 1980 por um grupo de açorianos
residentes na Vila Carrão e funcionava inicialmente numa garagem à Rua Zodíaco, cedida pelo
açoriano José Vitorino de Arruda. Neste dia formou-se a primeira diretoria, tendo como presi-
dente o empresário/engenheiro Manuel de Medeiros. Em novembro de 1981, a sede foi trans-
ferida para uma antiga casa adquirida na Rua Dentista Barreto, 1.282. O projeto de construir
a nova sede mobilizou as mais de 50 famílias que participaram da organização da Casa com
doações em dinheiro e com trabalho. (Freitas, 2006: 166)

A concepção da Casa foi articulada por diálogos entre conterrâneos, que, sabendo da
existência de outras instituições, procuravam reproduzir essas experiências. Alguns membros
da comunidade já estabelecidos no bairro e com contatos nos Açores (especialmente na Ilha
de São Miguel) trouxeram para a cidade símbolos da tradição10 religiosa e buscaram uma
retomada das práticas deixadas quando da partida das ilhas.

O primeiro a dirigir a Casa foi o empresário/engenheiro Manuel de Medeiros, que ocupou a pre-
sidência durante cinco gestões, de 22/06/1980 a 11/07/1987. O segundo, Manuel Henrique Fa-
rias Ramos, ficou no cargo de 11/07/1987 a 9/07/1989, e o terceiro, Manuel Pereira Arruda, de
9/07/1989 a 6/7/1991. O quarto presidente, Antonio Mendes Cardoso Sequeira, ficou na presi-
dência duas gestões, de 28/8/1992 a 24/06/1995. O sexto presidente foi Elisiário dos Santos Filho,
que ocupou o cargo durante duas gestões, de 22/06/1996 a 29/06/2000. (Freitas, 2006: 167)

A Casa dos Açores traz entre seus principais objetivos a função social e cultural, a pro-
moção de eventos (visando a angariar fundos para a manutenção das atividades e da própria
Casa) e o desenvolvimento do que chama “identidade cultural”, dando particular atenção à

438 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 438-456, setembro-dezembro 2018
Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

Festa do Divino Espírito Santo, considerada importante elo com as origens. Em depoimento do
Senhor Manuel de Medeiros (3/6/2008), percebe-se a importância das festividades desde os
primórdios da criação:

Já estávamos construindo a Casa dos Açores. Então, foi a primeira festa que foi feita em frente
à Casa dos Açores, foi a minha. Foi legal. Geralmente, tudo que se faz lá eu sou geralmente o
pioneiro, tudo leva meu apreço, tudo que eu puxo o negócio pra ver se aquele está mais sério
que o anterior. Porque a gente estava na frente das casas dos mordomos, estava muito ruim,
não dava pra fechar a rua, então não se tinha mais controle. Então, eu passei em 82, eu passei
justamente pra Casa dos Açores, onde se faz os festejos, e dali pra frente foi sempre na Casa
dos Açores. E como objetivos, a Casa dos Açores de São Paulo visa reunir os açorianos, os seus
descendentes e todos os simpatizantes da região, bem como manter e propagar a cultura, o fol-
clore e os usos e costumes dos Açores. O objetivo maior da entidade é a realização a cada ano
da Festa do Divino Espírito Santo, de acordo com os rituais e calendário da região da Bretanha
na Ilha de São Miguel.

Durante a construção da sede, estreitaram-se os vínculos entre os sujeitos históricos que


participaram diretamente das obras (com trabalho e/ou financiamento). Desse modo, consti-
tuíram-se memórias capazes de fomentar atividades e fortalecer laços de amizade, união e
identificação. O esforço se justificava no sentido da construção de um território pensado para
manter “viva” a religiosidade, o companheirismo, as tradições familiares e as concepções de
vida de seus antepassados. Fortaleceria ainda o elo com os Açores e com os conterrâneos
estabelecidos em São Paulo, favorecendo a manutenção da memória e da cultura que tives-
sem um denominador comum nas relações sociais e religiosas da crença e devoção ao Divino
Espírito Santo.
Apesar das dificuldades, a missão de abraçar a cultura açoriana e buscar identificação,
união, motivação e manutenção de vínculos entre os membros do grupo foi assumida. Além
de cultivar as tradições açorianas, a Casa propiciava sociabilidade e reencontros de amigos,
conterrâneos e parentes, buscando manter conexões com as origens por meio das festas
religiosas, atividades e eventos programados. A empreitada da construção contou com apoio
coletivo, organização de tarefas e atividades executadas pelo grupo em um esforço que forta-
leceu ações, ampliando desejos e lapidando os objetivos associativos.

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Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

Imagem 1 – Construção da Casa dos Açores de São Paulo

Fonte: Acervo da Casa dos Açores de São Paulo.

A 24 de julho de 1979, alguns idealistas da colônia açoriana de Vila Carrão reuniram-se com
a finalidade de fundar uma associação açoriana, onde todos os açorianos e seus descendentes
pudessem reunir-se para um bate-papo agradável e recordar a terra distante. Era necessário
encontrar um lugar para a sede, pois precisávamos de uma capela para a festa do Espírito Santo,
que já era celebrada desde 1975. Assim, a 22 de junho de 1980, é fundada a Casa dos Açores,
numa humilde garagem sita à rua Zodíaco, cedida com tanto carinho por um açoriano, sr. José
Vitorino de Arruda, e forma-se a primeira diretoria, tendo como primeiro presidente o enge-
nheiro Manuel de Medeiros. Finalmente, a 21 de abril de 1986, é oficialmente inaugurada esta
instituição, com a presença de João Bosco Mota Amaral, presidente do Governo Regional dos
Açores da altura, do exmo. e revmo. d. Luciano Mendes de Almeida, bispo da Região Episcopal
Belém, que presidiu a Eucaristia e abençoou a casa. Presentes também estiveram Manuel de
Medeiros, presidente, e toda a diretoria, assim como grande parte de associados e convidados.
(Depoimento de Antonio Tavares Arruda, 21 jan. 2018)

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Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

Imagem 2 – Inauguração da Casa dos Açores de São Paulo

Fonte: Acervo da Casa dos Açores de São Paulo.

Diferentemente das associações mutualistas e de socorros mútuos,11 as casas e associa-


ções regionais12 de estrangeiros surgiram em momento em que os imigrantes necessitavam de
auxílio para inserção na sociedade de chegada.

Apesar de seu caráter recreativo, um dos objetivos mais respeitados pelas associações portu-
guesas — inclusive pelas Casas Regionais — é a orientação e introdução dos novos imigrantes
no mercado de trabalho e na vida urbana (a maioria dos portugueses vem de áreas rurais). Por
outro lado, elas pretendem reproduzir no Brasil símbolos e padrões culturais característicos de
Portugal ou das regiões portuguesas que representam. (Seyferth, 1990: 67)

Essa forma de associativismo deve ser entendida como uma troca, mas também como
prática política, pois se inscreve em uma arena de tensões permanentes, relações de domina-
ção, negociações e trocas (Rocha-Trindade, 2010).
Nesse processo de constituição, foram diversas as ações culturais, sociais e religiosas,
destacando-se entre as atividades mais relevantes a organização do grupo folclórico, das
festas religiosas, das atividades de lazer, de recreação e de comensalidade. Dessa forma, me-
diante esse conjunto de ações, a Casa dos Açores foi inscrevendo sua marca no bairro e na
cidade, praticando e divulgando costumes, tradições e hábitos açorianos.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 441-456, setembro-dezembro 2018 441
Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

A instituição promove um conjunto de iniciativas e eventos gastronômicos, com pratos e produ-


tos típicos dos Açores, palestras, exposições e outros eventos, com primazia para as artes, como
teatro, dança, música e sessões de poesia. O ápice dos seus eventos culturais são as semanas
culturais, que ocorrem a cada ano, envolvendo, para além da comunidade, escolas e alunos da
região. A cada ano se adota um tema em torno de qual se desenvolve toda a sua programação,
por meio de dança, teatro, exposição de trabalhos, palestras e afins. O tema adotado normal-
mente enseja aspectos comuns entre Brasil e Portugal, e, não raro, temas que envolvem o pla-
neta, nações e demais comunidades emigradas do estado de São Paulo. Portanto, considera-se
que a Casa dos Açores de São Paulo tem desenvolvido um trabalho de divulgação dos Açores
(aos mais variados níveis) junto a estudantes do ensino universitário e ensino básico através da
dinamização de sessões de esclarecimento e concursos variados, sendo de mencionar o con-
curso “Açores, Natural, Naturalmente e Brasil Florão da América”, iniciado na Semana Cultural
de 2012, que envolveu um concurso de redações sobre a temática, no qual participaram várias
escolas, e um quiz para apuramento do vencedor. Este concurso teve como prêmio uma viagem
de uma semana aos Açores, que ocorreu em novembro de 2013 e foi organizada pela Direção
Regional das Comunidades. (Depoimento de Antonio Tavares Arruda, 21 jan. 2018)

As atividades organizadas ocorriam em colaboração e buscavam agregar interesses co-


letivos. Desse modo, foi criado um calendário anual, que estabelece os eventos de entreteni-
mento para associados e colaboradores, proporcionando formas de inter-relação com visitan-
tes, convidados e outros interessados em participar das festividades. Emblemático é o caso
das Festas do Divino, durante as quais ocorrem quermesses, com a presença dos associados
e de um público externo que também participa dos festejos. Outras festas também atraem
visitantes, como os jantares da “Noite de Malassadas” e as bacalhoadas, bem como os bingos
promovidos para angariar fundos para a organização das atividades da Casa.

Experiências e ações: manutenção da associação e festa


do Divino Espírito Santo

A s experiências coletivas foram estreitando elos entre os integrantes da Casa, particular-


mente os articulados nas celebrações, ações festivas, gastronômicas e nos eventos de
cunho religioso. Na Vila Carrão, os açorianos constituíram seu território, deixando marcas de
suas tradições pelas ruas desse bairro.13 Na sede e no entorno da Casa dos Açores, realizam-se
festas e quermesses, e de lá saem as procissões (Divino Espírito Santo), cujo trajeto corta a
avenida Conselheiro Carrão, uma das mais importantes da área.
Os depoimentos referendam essa territorialidade e rememoram as experiências sobre
a fundação da Casa dos Açores, os sujeitos históricos envolvidos, as práticas cotidianas14 na
associação e as formas de celebrar. Quando recuperam suas histórias, os açorianos narram-nas

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Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

com o coração; apesar de recriá-las sob suas próprias perspectivas, tratam das memórias como
algo fundamentado em um passado que, mesmo distante, engloba boa parte de suas vidas.

Eu fiz uns versinhos aqui para a Casa dos Açores. Então, tem até uma parte da minha vida…
Meu namoro, como é que eu cheguei a morar aqui. Para falar a verdade, não ficou com ninguém.
Porque aquilo é uma coisa minha, eu fazia e me sentia emocionada, eu li, até hoje não consigo
ler para os outros, eu só leio pra mim, então, aquilo era uma coisa que vinha de dentro, que me
recordava… O que eu escrevo, parece que eu estou começando a viver de novo, entendeu? Então,
aquilo, pra mim, é muito estimado. (Depoimento de Maria Joana Rezende Rodrigues, 2 out. 2008)

As reminiscências reconstroem elos entre o passado saudoso e as melhores memórias,


que se encontram formatadas em bons e maus momentos. Embora façam parte de uma histó-
ria total, as pessoas acabam selecionando aspectos de que gostam de lembrar.

Antes da fundação da Casa dos Açores de São Paulo, neste mesmo local havia um clube, e, se
me lembro, chamava-se “Lusitano”, onde as festas juninas eram organizadas. Faziam os arraiais
enfeitados com “bambu” e bandeirolas de papel colorido. O evento atraía muitos casais de
namorados e jovens para as brincadeiras. Depois é que veio a Casa dos Açores de São Paulo,
que, de certa forma, formalizou todo o ritual e toda a cerimônia com relação às atividades do
Divino Espírito Santo. A casa foi fundada na década de 80 do século passado. A partir de então,
o culto ao Divino Espírito Santo, no dia de Pentecostes, tomou vulto e alcança o sucesso que é
hoje. (Depoimento de Henrique de Arruda Soares, 7 jul. 2008)

Quando relata suas lembranças de infância, o sr. Henrique enfatiza as festas juninas, que,
segundo ele, eram realizadas no mesmo local onde hoje está instalada a Casa dos Açores.
Já ao rememorar o estabelecimento da Casa, referências à Festa do Divino emergem a todo
momento, e nessas lembranças o espaço-tempo da festa representa uma forma de ligar-se
ao passado por “lugares de memória” que possibilitam recordações dos tempos de infância,
dos momentos mais relevantes, como as festas juninas e as brincadeiras sempre presentes na
formação das memórias (Nora, 1993: 9).

É com estima que são realizadas as celebrações e festas aqui no Brasil. Tanto dedicadas ao
Senhor Santo Cristo dos Milagres, à Nossa Senhora de Fátima, onde estão presentes nas nossas
cerimônias religiosas. Por não haver espaço suficiente na sede da Casa dos Açores, obtemos
autorização e apoio da nossa prefeitura regional para ocupação da via pública. No dia 13 de
maio, dedicado a Nossa Senhora de Fática, é rezada a missa. É em um único dia de dedicações,
então são lembrados e se fazem presentes na procissão do Divino Espírito Santo. As imagens
do Senhor de Santo Cristo e a de Nossa Senhora de Fátima, e do Espírito Santo, representado
pelas sete coroas e [pela] Bandeira do Divino, estão sempre presentes nas cerimônias religiosas
e festas. Faço questão de ser um membro para carregar o andor do Senhor Santo Cristo e de

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Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

Nossa Senhora de Fátima. Este ano de 2008 não carreguei, por me encontrar lá nos Açores.
(Depoimento de Henrique de Arruda Soares, 7 jul. 2008)

Percebe-se a produção de sentidos dada às experiências vivenciadas, às memórias cons-


tituídas e reforçadas pelos marcos escolhidos da origem que conformaram representações da
comunidade imaginada15 em terras distantes.

Na articulação entre ação (fazer histórico) e representação (reprodução social) reside a possibi-
lidade de recuperar analiticamente a dinâmica das relações sociais, afirmando o caráter criativo
dos universos simbólicos que se concretiza nos modos como se inserem em campos de práticas.
Desse modo, a cultura é sempre processo, em constante reatualização. Todo e qualquer ato
dos sujeitos de ações significantes corresponde à dinamização do universo cultural: reposição,
reelaboração ou alteração dos sentidos existentes. (Garcia, 1996: 6)

Nos Açores, as festividades, celebrações e comemorações religiosas passam por proces-


sos históricos de ressignificação. Da mesma forma, as festividades e celebrações na cidade
de São Paulo promovidas pela Casa também precisam ser observadas em sua historicidade,
atentando para as diferenciações, sendo exemplar a questão dos bodos,16 que na capital pau-
lista adquiriram cunho filantrópico, feitos em prol de hospitais, clínicas e demais instituições
do bairro da Vila Carrão e de suas adjacências.

Imagem 3 – Almoço na Casa dos Açores de São Paulo

Fonte: Casa dos Açores de São Paulo, 2016.

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Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

Nesse sentido, alguns sujeitos acompanham os formatos e as ressignificações da Casa e


de seus próprios objetivos e significados ao longo dos anos, como menciona em depoimento
dona Ilda Maria Salvador dos Reis (2008), ao comentar sobre sua vinda para São Paulo, sua
relação com o trabalho fabril e o papel da Casa dos Açores:

É muito importante. Ajudo no que eu posso. Não sei se eu ajudo muito como elas porque eu vim com
13 anos, aí entrei na fábrica; então, chegava em casa e minha mãe já tinha tudo pronto. Então, não
fazia muita coisa. Aí, agora, nós vamos fazendo; alguma coisa a gente pega, mas outras… Que nem
a malassada… Não é fácil. O ponto dela no amassar é difícil. O difícil não é o amassar, é o ponto
dela que é difícil de pegar. Eu gostaria que mais açorianos frequentassem. Não é só açoriano quanto
brasileiro. A Casa tá aberta pra todos. Mas nós temos açorianos ainda muito retraídos, com receio de
vir, sabe? Eu acho que isso não podia acontecer no nosso meio. Eu gostaria que viesse mais. Principal-
mente os filhos dessas… [refere-se aos filhos das mulheres que frequentam a casa e que fazem parte
do grupo folclórico]. Mas aí acho que é uma coisa que vem de casa, porque, se você incentiva seus
filhos desde pequeno e… A minha filha mais velha, ela não sabia o hino brasileiro, mas o português
ela sabia quando ela entrou na escola, acho que isso não é certo, mas eu a ensinei pelo que eu sabia.
Ela sabia cantar o hino nacional português, o brasileiro eu não sabia, então eu não ensinava.

Sobre sua função na Casa dos Açores, ela ajuda na elaboração das malassadas, prato
típico açoriano. Em sua fala, também destaca a importância da transmissão para os filhos da
manutenção das tradições, atribuindo sentido de continuidade do grupo e fortalecendo os
vínculos com o imaginário da infância e da terra natal. Quanto à associação e sua frequência,
faz um apelo para que outros envolvidos se interessem pela participação e por partilhar as
tradições e memórias ali inscritas.
Em outros momentos de seu depoimento, observam-se as articulações com as origens,
o momento da partida, a cidade de acolhimento e suas transformações, construindo, recons-
truindo e reforçando representações, experiências, práticas e elos entre o passado e o presente.
Dessa forma, observa-se que as identidades culturais passam por transformações constantes,
não estando fixadas em um passado essencializado, mas estando sempre sujeitas ao contínuo
“jogo” da história, da cultura e do poder (Hall, 2000).
Destacam-se entre as proposições dos mentores e diretores da Casa dos Açores possi-
bilitar encontros entre os açorianos das diversas ilhas e as gerações de seus descendentes,
buscando identificar os que migraram das ilhas e seus descendentes, bem como agregar bra-
sileiros que possam contribuir para a associação. Nota-se que manter e divulgar as atividades
da Casa dos Açores assume uma dimensão de luta para a preservação desse território para
outras gerações, que nem sempre se interessam pela história de seus antepassados.

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Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

Ao longo dos anos, as experiências coletivas ganharam destaque, fomentando o ingresso


de associados, além de efetivar a missão da agremiação, que é manter o elo com os Açores,
suas tradições e manifestações culturais. Na trajetória da investigação, foram realizadas visitas
à Casa dos Açores,17 especialmente em momentos de festividade, em particular da Festa do
Espírito Santo, podendo-se perceber a importância para a comunidade das atividades de-
sempenhadas no âmbito do sagrado. O culto do Divino Espírito Santo e a festa em louvor a
ele tornaram-se símbolos da açorianidade.18 Essa devoção religiosa encontra-se presente no
cotidiano em práticas de sociabilidade e comensalidade, também nos momentos celebrativos,
e tem sido perpetuada pelos açorianos em suas vivências nas diásporas (Angelo, 2017).
Nas festividades, observa-se que os sentidos da devoção ao Espírito Santo vinculam-se às
tradições do cristianismo, sua construção simbólica encontra-se nos textos bíblicos, que desta-
cam a composição da Santíssima Trindade com o Pai (Deus), o filho (Jesus) e o Espírito Santo.
Na fé católica, uma das representações do Espírito Santo é em forma de pomba branca,
significando pureza, espiritualidade e iluminação, com referência a Pentecostes, momento por
excelência para celebração do Divino. A festa de Pentecostes ocorre no quinquagésimo dia
depois da Páscoa e é considerada um dos maiores acontecimentos da fé cristã, depois do
Natal e da Páscoa.
As celebrações da Festa do Divino têm ancestralidade na cidade de São Paulo. Eram
comemoradas na região central da cidade, na Capela do Espírito Santo (rua Frei Caneca). O
festejo era realizado no bairro da Bela Vista e percorria outros bairros, chegando até a Barra
Funda, onde havia muitos devotos. Os peditórios e ajutórios realizados de porta em porta vi-
savam a angariar fundos a serem doados para carentes da cidade. Ao longo dos trajetos, eram
feitas as folias, envoltas em danças, músicas, repentes e outras manifestações.

A festa profana constava comumente dos clássicos leilões de prendas, levantamento do indefec-
tível “pau de sebo” e do “mastro”, do Divino com as tradicionais salvas de “roqueira”, queima
de rojões e “fogueiras” que a sinonímia indígena converteu em “caiera” finalizando com o in-
substituível “cateretê” entre a caipirada, e baile à europeia para os convidados mais grados do
festejo, terminando tudo em opípara ceia para todos, na “casa do império”, e farta distribuição
de gêneros alimentícios aos pobres. (Freitas, 1985: 169-170)

Historicamente, a Festa do Divino foi constantemente recriada, algumas vezes por causa
das restrições da Igreja e do Estado,19 controles que levaram à alteração de costumes, incluin-
do interdição das atividades de esmolar e também manifestações profanas do festejo, gerando
a extinção de alguns elementos e a incorporação de novas práticas de religiosidade e culturais
(Freitas, 1985).

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Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

Imagem 4 – Folias e foliões do Divino na Casa dos Açores de São Paulo

Fonte: Casa dos Açores de São Paulo, comemoração dos 31 anos de folias.

Os imigrantes trouxeram entre suas tradições celebrações que foram recriadas na socieda-
de de acolhimento (Jurkevics, 2005: 75), como o culto ao Divino e sua festa, além das folias e
foliões do Divino, algo reinventado em São Paulo. Com o estabelecimento dos açorianos na Vila
Carrão e adjacências, a festividade religiosa foi retomada (década de 1970), sendo vista como
um elo identitário entre compatriotas, forma de reforçar as tradições e a religiosidade, sendo
incorporados elementos da cultura açoriana, incluindo a festa e tudo o que nela se insere, como
a culinária, os alimentos, as orações, a procissão, a coroação, entre vários outros aspectos.
No entanto, cabe esclarecer que, na maioria das vezes, as festas recriadas se baseavam
em tradições das áreas rurais das ilhas e eram reconstituídas em um contexto diferenciado de
uma metrópole, trazendo a necessidade de adaptações, implicando práticas distintas.
Conforme os relatos, nas últimas décadas, as atividades festivas do Divino foram se con-
centrando na Vila Carrão, e há mais de 40 anos a celebração religiosa inicia-se no domingo de
Páscoa, 50 dias antes do domingo de Pentecostes.

Recuamos no tempo, estamos em 1975. Alguém, movido pela devoção ao Espírito Santo, vai
aos Açores e de lá traz a primeira bandeira (já tinha a coroa). Este alguém chama-se Manuel
Correia. Nesse mesmo ano, tem lugar a primeira Festa do Espírito Santo. Ele e a Antoninha vão
falar com o padre Tiago para lhe explicarem como tudo é feito nos Açores. No domingo de Pen-
tecostes levam de carro os símbolos do Espírito Santo (coroa e bandeira), e na missa das 10h é
feita solenemente a primeira coroação, tendo sido o hino do Espírito Santo tocado por disco. No
fim das cerimônias, organiza-se uma pequena procissão e volta-se à casa do primeiro mordomo,
o sr. Manuel Correia. No segundo ano, o mordomo foi o sr. Toninho do Ipiranga. Nesta festa
já há império, com sortes, domingas e banda de música. Tudo isto despertou nos açorianos o

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Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

amor e o carinho, há tanto tempo adormecidos, pelo Espírito Santo. A partir daqui muitas outras
famílias maravilhosas se reuniram para continuar esta tão querida devoção. (Depoimento de
Antonio Tavares Arruda, 21 jan. 2018)

Após sua criação, a Casa dos Açores de São Paulo passou a encabeçar as celebrações,
participando ativamente da promoção do evento por intermédio de seus associados e da
arrecadação de fundos ao longo do ano.

Já estávamos construindo a Casa dos Açores. Então, foi a primeira festa que foi feita em frente
à Casa dos Açores, foi a minha. Foi legal. Geralmente, tudo que se faz lá eu sou geralmente o
pioneiro, tudo leva meu apreço, tudo que eu puxo o negócio pra ver se aquele está mais sério
que o anterior. Porque a gente estava na frente das casas dos mordomos, estava muito ruim,
não dava pra fechar a rua, então não se tinha mais controle. Então, eu passei em 82, eu passei
justamente pra Casa dos Açores, onde se faz os festejos, e dali pra frente foi sempre na Casa
dos Açores. (Depoimento de Manuel de Medeiros, 3 jun. 2008)

A cada ano, a festa é organizada por um casal diferente, os “mordomos da festa”, escolhidos
e anunciados ao final do festejo anterior, momento em que já se iniciam os preparativos das come-
morações para o ano seguinte. Nesse sentido, buscando angariar recursos e articular a comunida-
de, são organizados encontros religiosos, gastronômicos e festivos, como terços do Divino Espírito
Santo, quermesse da festa, coquetel dos colaboradores, aniversário dos Açores, Revelando São
Paulo (com a participação do grupo nas atividades no parque da Água Branca), Semana Cultural
Açoriana, Natal. Nessas ocasiões, são servidos pratos como bacalhoada, massa sovada, cordeiro
assado e cozido açoriano, além de se apresentarem grupos folclóricos, entre outras atividades.
A Festa do Divino Espírito Santo, para a comunidade de açorianos da Vila Carrão, é
considerada uma festa luso-açoriana, com práticas religiosas e profanas, reunindo atividades
como a reza diária dos terços durante sete semanas, alternando-se as rezas cantadas por
homens e mulheres, nas quais é mantida a relação sagrada com os princípios dogmáticos do
catolicismo, como seu calendário litúrgico, além de elementos novos, como o agradecimento
pelos alimentos durante as atividades. As rezas, por sinal, mantêm elos com as práticas das
ilhas, especialmente as de São Miguel e da Ilha Terceira, de onde veio a maioria dos açorianos.

Os terços são cantados à moda da Bretanha, Ilha de São Miguel. De igual forma, têm referência
nesta ilha os demais procedimentos e/ou atividades da festa, tais como: as sortes; a folia com
sua indumentária e cantoria típicas; a procissão; a missa da coroação; as linguiças e morcelas;
as malassadas; a massa sovada etc., tudo isto fazendo parte desta importante festa, num gran-
de processo de catalisação, que inclui também o culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres e à

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Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

Virgem de Fátima, cujas imagens acompanham, ano a ano, a procissão do Divino, num grande
festival de fé e de religiosidade, tipicamente açoriano. No encerramento do ciclo destes festejos
é realizada uma grande festa de rua, à qual acorrem algumas dezenas de milhares de pessoas.
Além de juntar toda a comunidade açoriana do bairro de Vila Carrão, as festividades agregam
também açorianos dispersos pela cidade de São Paulo e municípios vizinhos, constituindo-se,
assim, no grande encontro anual da comunidade açoriana na cidade de São Paulo. (Depoimento
de Antonio Tavares Arruda, 21 jan. 2018)

As datas e os locais onde se realizam as rezas e os demais rituais da festa são previamen-
te determinados. Os símbolos do Divino (coroa e bandeira) são levados para diferentes casas
sorteadas a cada ano, sempre no último domingo de festa, conhecidas como “as domingas do
Divino”. Também nessas ocasiões ocorrem as Folias do Divino, feitas de improviso por repen-
tistas que recolhem doações e cantam em agradecimento à comunidade.
No dia de Pentecostes, às 9h30 da manhã inicia-se a procissão, saindo da Casa dos
Açores em direção à Igreja de Santa Marina,20 também na Vila Carrão, onde se realiza a missa
em louvor ao Divino Espírito Santo. Durante o ritual religioso, sete crianças são coroadas e
realiza-se o rito de bênção aos presentes em nome do Divino Espírito Santo.
As festividades continuam com a apresentação de grupos folclóricos, que alegram os visitan-
tes com as antigas cantigas portuguesas e açorianas. Comidas típicas da gastronomia açoriana
compõem a celebração, com destaque para as linguiças, alheiras, massas sovadas, malassadas e
morcelas, além do vinho dos Açores, que são vendidos em barraquinhas durante as festividades.
Mesmo diante das mudanças ocorridas na cidade e na trajetória dos membros da
comunidade (com o deslocamento de alguns para outros bairros), os açorianos reconhe-
cem a importância e a necessidade da manutenção das tradições, reconstruindo de forma
resistente elos entre o passado e o presente. Assim, a Festa do Divino se tornou um marco
identitário,21 além de ser uma forma de garantir o vínculo com os Açores. Essa também é
uma luta política de assentamento, significância e reconhecimento social; por mais que se
reelabore ao longo dos anos, do mesmo modo, fornece subsídios para o enfrentamento dos
diversos grupos no mosaico cultural.
A festa, os sujeitos históricos envolvidos e a representação cultural pertencente a esse
grupo fizeram com que os traços da cultura açoriana, modificados e transformados, manti-
vessem reminiscências. Pensar a cultura como uma arena de aspectos conflituosos é tentar
imergir nos significados do cotidiano desse grupo imigrante, verificando as experiências viven-
ciadas, as memórias, as festividades e a religiosidade dessa comunidade.

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Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

Considerações e possibilidades

A preender cultura em movimento é tarefa complexa e desafiadora; tentar recuperá-la


perpassa por questões de ocultamento, por questionamentos sobre um processo mo-
vediço e sem contornos definidos, pois “a cultura em sua essência apriorística é um processo
dinâmico, incessante de construção e reconstrução de invenção e reinvenção” (Flores, 2000:
13). Particularmente, a festa é momento de reconciliação; tanto o âmbito do sagrado como o
do profano são condensados e unidos em harmonia (Berger, 1973).
Contudo, as gerações dos descendentes de açorianos não têm os mesmos padrões
dos primeiros imigrantes. Observar movimentos intergeracionais permite perceber a carên-
cia de compreensão de certos significados das tradições e de seus momentos celebrativos
de cunho religioso22 e também revela conflitos entre permanências, manutenções, trans-
formações e abandono das tradições, uma vez que estas são plásticas e aceitam inovações
(Bosi, 1987).
A Casa dos Açores, com o intuito de manter as identidades e fomentar os laços com a
terra natal e o passado, busca a conscientização dos jovens; no entanto, vem enfrentando
diminuição gradativa de seus membros e de suas atividades. Um dos pontos críticos é o en-
velhecimento e a perda dos associados, que, com o avançar da idade, diminuem sua partici-
pação. Para se manter como instituição, procura motivar os jovens descendentes a participar
das atividades, bem como abre-se ao ingresso de membros de origem não açoriana, além das
ações de apoio estrategicamente implementadas pelo Governo dos Açores.23
Como elemento associativo, a Casa, desde sua intenção de criação, posiciona-se como
um lugar de manutenção das identidades, em que se traz de volta o passado, ressignifica-se
o presente e ponderam-se atitudes para que o futuro seja possível tanto nas ações inter-
culturais com o Governo dos Açores quanto na organização dos associados e na integração
dos grupos, seja nas atividades gastronômicas, religiosas ou sociais. O fortalecimento se dá,
em grande medida, pelas gerações em interação, sociabilidade que já se mantém há mais
de meio século.
Em sua trajetória histórica, a Casa dos Açores se constitui em um território de luta pelas
identidades, de luta pelo espaço e mesmo de luta pela diversidade acoplada nos sentidos da saga
imigrante açoriana, tornando-se uma possibilidade para pesquisas em vários temas como açoria-
nidade, memórias da migração, cultura e patrimônio, identidade diaspórica, formação de redes
transnacionais, comunicações virtuais, política cultural, formas de organização comunitária, além
de permitir observar diferenças entre essa comunidade e outras inseridas em contextos diversos.

450 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 450-456, setembro-dezembro 2018
Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

Essa luta foi implementada pelos sujeitos históricos que se deslocaram dos Açores e
construíram com suas próprias mãos a Casa dos Açores, criando a associação para que pudes-
sem manter as memórias e tradições, dando continuidade às festas do Divino.
Contudo, ainda existem múltiplas outras histórias para serem contadas e diversificados
processos de deslocamentos para serem desvendados. Novas investigações e interpretações
poderão contribuir para reverter invisibilidades, cooperando no desvelar de memórias e his-
tórias da e/imigração. A inclusão de uma perspectiva do associativismo (da experiência da
Casa dos Açores de São Paulo) poderá ser favorável para recuperar as experiências desses
sujeitos históricos.

NOTAS

1 Deve-se destacar a noção de territorialidade, identificando o espaço como experiência individual e coletiva,
no qual a rua, a praça, a praia, o bairro, os percursos estão plenos de lembranças, experiências e memórias
(Rolnik, 1992).
2 Na historiografia portuguesa, alguns pesquisadores, como Carlos Cordeiro e Artur Boavida Madeira, dis-
correm sobre os lugares no Brasil e as conjunturas de vinda, incluindo assentamentos e distribuições para os
estados do Maranhão, da Bahia, do Pará, de São Paulo e de Minas Gerais, além de contínuas propostas que
absorviam as necessidades que incentivaram os processos de saídas (Cordeiro e Madeira, 2003).
3 Verifica-se que, no século XX, os maiores picos de saída foram nos anos 1902, 1906, 1911, 1920, 1956,
1958, 1970 (sendo o maior em números) e 1975 (Cordeiro e Madeira, 2003).
4 O Cotonifício Guilherme Giorgi foi a indústria que mais admitiu açorianos e seus descendentes, na maioria
das vezes arregimentados por cartas de chamada de parentes e conterrâneos.
5 Ver trabalhos de Ramella (1995), Tilly (1990) e Truzzi (2008).
6 Sobre o fluxo migratório da primeira metade do século XX, surgiu um novo tipo de movimento associa-
tivista, movido também pelo desejo de preservação da identidade e da memória, distinto das associações
portuguesas (Oliveira, 2014).
7 O Conselho Mundial das Casas dos Açores foi formado pelos membros constituintes das Casas dos Açores
de todo o mundo e efetivado por meio da Declaração da Horta, de 12 a 15 de novembro de 1997, sob o
patrocínio do Governo Regional dos Açores, por meio do Gabinete de Emigração e Apoio às Comunidades.
8 Vários são os propósitos do governo dos Açores no que se refere à manutenção das identidades, como a criação
de práticas inclusivas, projetos de promoção da interculturalidade e outros (Diário da Lagoa, 16 dez. 2015).
9 O associativismo se relaciona com o núcleo familiar, a herança imigrante e com uma ideia de acolhimento
dos patrícios (Nogueira, 1998).
10 A categoria tradição se refere aqui à “tradição inventada”, ou seja, “um conjunto de práticas de natureza
ritual ou simbólica que visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica continuidade em relação ao passado” (Hobsbawm e Ranger, 1997: 9).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 451-456, setembro-dezembro 2018 451
Elis Regina Barbosa Angelo e Maria Izilda Santos de Matos

11 As associações mutualistas e de socorros mútuos se proliferaram com o capitalismo no Brasil diante das
dificuldades cotidianas de trabalho e de vida (Fortes, 1999; Luca, 1990).
12 As casas regionais representam manifestações culturais e identidades dos imigrantes e estão apoiadas
em referências geográficas a partir de festas, símbolos, imagens, saudosismo da terra natal e outros sentidos
(Sousa, 2005).
13 Cabe destacar a importância de se incluir a rua como território de vivências e memórias. Nos depoimen-
tos, ela é referenciada como espaço material e também como espaço social, local de residência e convivência,
exposição, procissão e festa; lugar de trocas, comércios, intercâmbios, reuniões e solidariedade; também de
exclusão, manifestação e revolta (Garden, 2006: 5-17).
14 A categoria cotidiano parte da concepção de conjunto de operações singulares de indivíduos, sociedades
e identidades. Nesse sentido, os sentidos de práticas cotidianas passam a valorizar as “artes do fazer” dos
sujeitos e dos sentidos (Certeau, 2008).
15 A expressão comunidade imaginada foi cunhada por Benedict Anderson e se relaciona com uma
abordagem antropológica de nação. Assim, o autor definiu nação como comunidade política imaginada impli-
citamente limitada e soberana (Anderson, 2008).
16 “Vodos ou bodos são entendidos como tradicional distribuição de comida aos pobres” (Abreu, 1999: 39).
17 A Casa dos Açores, ao buscar criar e recriar laços com seus compatriotas, com a comunidade luso-brasi-
leira e com o público em geral, promove eventos e atividades, algumas tendo como fim angariar fundos para
as práticas celebrativas e caritativas.
18 Açorianidade deve ser aqui entendida como um sentimento aflorado sobre as raízes que vai além do
simples bairrismo, pois condensa a solidariedade e a união dos sujeitos oriundos do mesmo lugar. São aqueles
que constituíram um estado de ser do “homem açoriano”, com destaque ao e/imigrante que busca preservar
suas raízes ilhoas (Nemésio, 1932).
19 As proibições pelas quais passaram as Festas do Divino se apoiavam na profanação de objetos sagra-
dos, como é o caso das folias, que traziam em seu formato a dança e a música com as imagens de santos e
padroeiros. Desde o século XVII que se estabeleceram regras para as festividades, proibindo-se profanações.
20 A Paróquia Coração Eucarístico de Jesus e Santa Marina, fundada em 8 de dezembro de 1946, faz parte
da história da Vila Carrão e dos açorianos que vivem no bairro. Em sua maior parte, as atividades religiosas
propostas pelos açorianos contam com o apoio do pároco e/ou são realizadas nessa igreja.
21 A Festa do Divino da Vila Carrão consta do Calendário Turístico Oficial da cidade de São Paulo (assim
como as celebrações de outras comunidades de imigrantes).
22 A religião como núcleo firme da convivência impregnou as manifestações da vida social e, nesse sentido,
as festas e manifestações religiosas transformaram-se em reunião social, sobretudo nas regiões rurais, dos
engenhos e fazendas isoladas. Nesse momento, tanto o sagrado quanto o profano se uniram em fé e diversão
(Wernet, 1987: 24-25).
23 “A estratégia de eventos da Casp tem mudado. Reduziram-se os eventos de almoços e jantares na sede,
que ensejam muito trabalho e pouco retorno financeiro, para uma participação em eventos externos de
grande porte, tais como o Revelando São Paulo, eventos em escolas e de outras comunidades emigradas. Esta
estratégia deve ser ampliada, na medida em que vem apresentando melhores resultados” (Depoimento de
Antonio Tavares Arruda, 21/1/2018).

452 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 452-456, setembro-dezembro 2018
Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

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454 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 454-456, setembro-dezembro 2018
Casa dos Açores de São Paulo: imigração, associativismo e religiosidade

Depoimentos orais

Antonio Tavares Arruda, 60 anos. São Paulo, 21 jan. 2018.


Henrique de Arruda Soares, 68 anos. São Paulo, 7 jul. 2008.
Ilda Maria Salvador dos Reis, 78 anos. São Paulo, jun. 2008.
Manuel de Medeiros, 61 anos. São Paulo, 3 jun. 2008.
Maria de Lurdes Arruda Paz, 73 anos. São Paulo, 2 nov. 2006.
Maria Joana Rezende Rodrigues, 78 anos. São Paulo, 2 out. 2008.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 455-456, setembro-dezembro 2018 455
Artigo

“A cidade foi repartida e nós não


fomos convidados”: ação coletiva e a
construção de uma noção de cidade no
Coletivo Debaixo
“The city was shared and we weren’t invited”: collective action
and the construction of a notion of a city in the Debaixo
Collective.
“La ciudad fue repartida y no fuimos invitados”: acción colectiva
y construcción de una idea de ciudad en el Coletivo Debaixo.

Jonatha Vasconcelos SantosI*

Wilson José Ferreira de OliveiraII**

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300008

I
Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju – SE, Brasil.
*Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. (vasconcelos.jonatha@gmail.com)

II
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre – RGS, Brasil.
**Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Associado 3 da
Universidade Federal de Sergipe (UFS), no Departamento de Ciências Sociais (DCS), no Programa de Pós-graduação em
Sociologia (PPGS) e no Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA). (etnografia.politica@gmail.com)

Artigo recebido em 1º de junho de 2018 e aceito para publicação em 10 de setembro de 2018.

tudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 457-474, setembro-dezembro 2018 457
Jonatha Vasconcelos Santos e Wilson José Ferreira de Oliveira

Resumo
Este artigo tem o objetivo de analisar o processo de construção de uma noção de cidade pelo Coletivo Debaixo e sua
atuação em torno da pauta do “direito à cidade” entre os anos de 2013 e 2016 em Aracaju. Para isso, analisamos
os fanzines publicados pelo coletivo para a difusão da causa. Nesse sentido, o trabalho demonstra o processo de
tradução local elaborado pelo Coletivo em torno da ideia de uma cidade enquanto problema social e um espaço
político cuja disputa pode ser através do uso da ocupação cultural.

Palavras-chave: Coletivo; Direito à cidade; Ocupação cultural; Movimentos sociais.

Abstract
This article aims to analyze the process of constructing a notion of a city by the Coletivo Debaixo and its work on the
“right to the city” agenda between 2013 and 2016 in Aracaju. For this, we use as empirical reference the fanzines
published by the collective for the diffusion of the cause. In this sense, the work demonstrates the local translation
process elaborated by the collective around the idea of a city as a social problem and a political space whose dispute
can be through the use of cultural occupation.

Keywords: Collective; Right to the city; Cultural occupation; Social movements.

Resumen
El artículo tiene el objetivo de analizar el proceso de construcción de una noción de ciudad por el Coletivo Debaixo
y su actuación en torno a la pauta del “derecho a la ciudad” entre los años de 2013 y 2016 en Aracaju. Para ello,
utilizamos como referencial empíricos los fanzines publicados por el colectivo para la difusión de la causa. En este
sentido, el trabajo demuestra el proceso de traducción local elaborado por el colectivo en torno a la idea de una
ciudad como problema social y un espacio político cuya disputa puede ser a través del uso de la ocupación cultural.

Palabras clave: Colectivo; Derecho a la ciudad; Ocupación cultural; Movimientos sociales.

458 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 458-474, setembro-dezembro 2018
“A cidade foi repartida e nós não fomos convidados”:
ação coletiva e a construção de uma noção de cidade no Coletivo Debaixo

Introdução

A trajetória dos estudos sobre movimentos sociais e formas de protestos e contesta-


ção tem se debruçado sobre diversos problemas teóricos e metodológicos e originado
agendas de pesquisa bem variadas. Dentre estas, cabe destacar as que se referem às opor-
tunidades e aos constrangimentos para a ação coletiva, à caracterização dos repertórios de
ação, aos modelos de organização, ao desenvolvimento de redes de movimentos sociais e
aos processos de construção de atores engajados (Alonso, 2009; Gohn, 2014; Diani, 1992;
Diani, Della Porta, 2006; Oliveira, 2010, 2013). Diante disso, a análise do processo de criação
e difusão de “enquadramentos interpretativos” da ação coletiva tem recebido uma atenção
renovada recentemente, sendo articulada com questões relativas à apreensão de uma gramá-
tica ou das “gramáticas políticas” das mobilizações e lutas coletivas (Benford, 1997; Benford,
Snow, 2000; Silva, Cotanda, Pereira, 2017). Em consonância com essa renovação do interesse
pelo estudo das “gramáticas políticas” das mobilizações coletivas, este artigo se volta para a
análise das lutas pelo “direito à cidade”1. Nesse sentido, a questão que está no centro de nos-
sa preocupação consiste em compreender como determinados grupos sociais — a exemplo
de movimentos sociais, ONGs, partidos políticos, empresas etc. — criam narrativas que identi-
ficam e propõem soluções para problemas sociais que afetam a cidade. Para isso, utilizaremos
como material empírico alguns fanzines — pequenas revistas criadas e divulgadas de forma
alternativa e independente por grupos marginalizados em relação ao mercado editorial e de
circulação hegemônico — produzidos pelo Coletivo Debaixo da cidade de Aracaju.
As ferramentas metodológicas utilizadas para recompor a noção de cidade elaborada
pelo grupo foram os fanzines publicados durante o período de atuação do coletivo (os anos
de 2013 e 2016) e que possibilitam ter acesso a certas narrativas públicas sobre a noção
de cidade compartilhada pelos integrantes do coletivo. Além disso, algumas informações ad-
quiridas através de entrevistas semiestruturadas, publicações catalogadas em perfis virtuais,
conversas informais e observações diretas realizadas durante os eventos promovidos pelo
coletivo, ainda que não utilizadas diretamente no artigo, contribuíram para a recomposição do
enquadramento interpretativo elaborado pelo grupo. É importante ressaltar que o pluralismo
metodológico tem sido um desafio enfrentado por diversos autores que analisam os movi-
mentos sociais e, em especial, as ocupações no espaço público. O estudo de Alviso-Marino
(2015) sobre as mobilizações no Yemen é um exemplo de como a noção de “seguir o objeto”
na busca pela compreensão das ocupações exige um olhar para os repertórios mobilizados, os
processos de ressignificação política do espaço, os modos como os grupos representam suas
ações nas redes sociais virtuais, as trajetórias que são construídas a partir das ocupações etc.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 459-474, setembro-dezembro 2018 459
Jonatha Vasconcelos Santos e Wilson José Ferreira de Oliveira

Assim, ainda que este artigo tenha como foco analítico as narrativas no intuito de compreen-
der os enquadramentos elaborados pelos atores, outros tipos de fontes de material empírico
acompanharam a construção do texto.
Tal Coletivo era composto por uma grande maioria de estudantes universitários e seus
integrantes possuem alguns traços semelhantes que possibilitam uma caracterização social
de seu perfil do grupo: em primeiro lugar, o envolvimento em expressões artísticas con-
sideradas marginais como o punk e o hip-hop; em segundo o engajamento em partidos
políticos, movimento estudantil e outros movimentos sociais mais alinhados à partidos de
esquerda como o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e o Movimento Não Pago; em
terceiro, a crítica às estruturas de poder oficiais como os partidos políticos — baseados em
experiências de engajamento anterior — a partir das ideias de manipulação, profissionali-
zação e burocratização da política.
O Coletivo iniciou um conjunto de ações intituladas Sarau Debaixo que acontecia
toda terceira terça-feira do mês, entre os anos de 2013 e início de 2017, com intervenções
artísticas e políticas embaixo de um viaduto localizado em uma área central e de muita mo-
vimentação da cidade. A partir disso, ele construiu toda uma narrativa de luta pelo “direito à
cidade”2 a partir de várias pautas relacionadas aos problemas da cidade, como a mobilida-
de urbana, o genocídio da juventude negra e a presença dos corpos femininos e transexuais
na cidade. A diversificação das pautas fazia referência não somente aos diversos fatores que
compõem a cidade enquanto um problema público, mas também à rede de colaboração do
Coletivo que foi composta por coletivos LGBT, midiativistas, grupos de hip-hop localizados
na periferia da cidade e os acontecimentos sociais locais e nacionais que incluíam novas
questões para as pautas. Sendo assim, a vinculação do Coletivo Debaixo com esses grupos
também contribuiu para um processo crescente de diversificação da pauta mais geral do
“direito à cidade”.
O ato de ocupar mensalmente o viaduto José de Carvalho Déda, mais conhecido como
viaduto do DIA, por estar localizado no Distrito Industrial de Aracaju, ocorria através de um
uso não negociado do espaço do viaduto — uma das características de intervenções ou ocu-
pações que ocorrem sem a aprovação prévia de instâncias do Estado –, constituindo para eles
uma dessas demonstrações de que é preciso se apropriar de uma cidade repartida e privatiza-
da. O local escolhido era estratégico e simbólico: o viaduto do DIA, que fica localizado entre
duas avenidas principais e ao lado de um dos terminais de ônibus mais movimentados no ho-
rário em que ocorria o Sarau Debaixo, um supermercado e o maior teatro local, o Teatro Tobias
Barreto. Entre esses espaços, o Sarau Debaixo ocorria em um estacionamento não utilizado, e

460 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 460-474, setembro-dezembro 2018
“A cidade foi repartida e nós não fomos convidados”:
ação coletiva e a construção de uma noção de cidade no Coletivo Debaixo

a escolha do Coletivo em mobilizar esse espaço era simbólica à proporção em que resgatava
um dos locais mais utilizados para a contestação nas manifestações de junho de 2013, mas
também por considerarem um espaço sem “função social”. Além do Sarau Debaixo, outros re-
pertórios de ação mais simbólicos foram utilizados pelo Coletivo como a produção de vídeos e
materiais impressos, nos quais, através da poesia, da música e da encenação teatral, também
construíram uma narrativa sobre a cidade.
Na cidade de Aracaju, semelhante ao que estava ocorrendo em outras cidades do
país, alguns acontecimentos e situações que antecederam a emergência do Coletivo De-
baixo contribuíram para o processo de mobilização dessa noção de cidade pelo grupo.
Primeiro, os debates que ocorreram em torno da causa pública das condições e gratui-
dade do transporte público através, primeiramente, do Movimento Passe Livre e depois
do Movimento Não Pago, e a participação de alguns militantes no Fórum Social Mundial
de 2005, que constituiu um marco importante para as pautas do transporte público.
Segundo, a circulação dos idealizadores do Coletivo Debaixo nos movimentos de Sarau,
que ocorreu em várias capitais do Brasil. No caso dos integrantes do Coletivo analisado,
o Sarau Bem Black, que ocorria em Salvador, foi uma referência importante para a cons-
trução do Sarau Debaixo em Aracaju. Terceiro, os confrontos entre os manifestantes e os
agentes policiais durante o ciclo de protesto de 2013. E, por fim, a reivindicação pelo
aumento da oferta do número de locais destinados ao lazer gratuito frente ao processo
de crescimento de espaços e opções privadas.
É importante destacar ainda que, diante do crescimento da organização da reivindicação
a partir de diversos olhares — como a presença dos corpos indesejados nos espaços públicos,
a luta pela moradia nos centros urbanos através de ocupações de espaços não utilizados ou
a disputa pela destruição de referências patrimoniais para a construção de empreendimentos
e do processo internacional de luta pelo direito à cidade –, esta pesquisa busca compreender
como uma causa mais geral (e até mesmo nacional) é traduzida e apropriada localmente
por determinado grupo. Semelhante a outros movimentos locais que surgem posteriormente
(tais como: o Ensaio Aberto, o Coletivo Entre Becos, o Cultura da Periferia e o Arte na Praça),
o Coletivo Debaixo constitui uma expressão local dessa pauta mais ampla da reivindicação
do espaço público. E, diferentemente de outros modelos de ação coletiva que atuam nessa
mesma causa, o Coletivo Debaixo — assim como os demais citados — são caracterizados
principalmente por um perfil de atores engajados, a utilização de repertórios e narrativa es-
pecífica e que se distingue de outras formas de reivindicação do direito à cidade, como, por
exemplo, a luta pela moradia.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 461-474, setembro-dezembro 2018 461
Jonatha Vasconcelos Santos e Wilson José Ferreira de Oliveira

Enquadrando a cidade nos fanzines: enquadramentos,


narrativas e fatos de uma cidade em disputa

E m uma análise sobre os “portadores figurativos do significado” que compõe um protesto


e outros tipos de ação coletiva, James Jasper (2016) elenca alguns elementos que ajudam
a compreender o universo dos significados e das gramáticas construídas, como, por exemplo,
as máximas e provérbios, as piadas, os hinos e slogans, os enquadramentos, as identidades
coletivas, os personagens, as narrativas, os fatos, as regras e leis e as ideologias. Paralelamente
a isso, utilizamos o conceito de enquadramento forjado inicialmente por Goffman (2012) e
apropriado nos estudos sobre os movimentos sociais por Benford (1997), Benford e Snow
(2000). A ideia central na utilização de ambas as propostas de análise é ampliar o escopo de
possibilidades para a compreensão do processo de construção dos quadros interpretativos a
partir da análise dos fanzines.
Esses “portadores figurativos do significado” são responsáveis por mobilizar sentimen-
tos, manipular interpretações e propor uma série de regras e formas de identificação e ações
individuais e coletivas. Ainda que utilizemos o termo “manipulação”, o autor destaca que o
acionamento desses elementos — que constituem a dimensão simbólica e gramatical de uma
ação coletiva — não ocorre necessariamente através de princípios racionalistas e estrategis-
tas. Se, por um lado, a estratégia pode ser um princípio de mobilização desses significados, por
outro, aspectos morais e emocionais também orientam a adoção ou restrição no uso desses
elementos simbólicos3.
A crítica à noção de estratégia, por vezes empresarial, da elaboração e difusão de en-
quadramentos interpretativos para mobilizar possíveis atores engajados e/ou popularizar uma
determinada demanda enquanto modelo majoritário de usos das narrativas dos problemas
públicos e dos símbolos tem dificultado a análise de outros modelos de apropriação das
emoções (Benford, 1997; Benford, Snow, 2000). No fundo, a ideia utilizada neste artigo é a de
que a estratégia é um tipo de mobilização desses recursos, mas que ocorre paralelamente, por
exemplo, à mobilização de símbolos e narrativas que estão relacionadas com experiências de
vida marcadas por relações de violência e desigualdade da/na cidade.
Os fanzines (figura 1) foram produzidos pelo Coletivo Debaixo paralelamente ao período
de existência do Coletivo e de suas ações de reivindicação e luta pelo direito à cidade entre
os anos de 2013 e 2016. A proposta dos fanzines era a da possibilidade de “dar voz” aos
“poetas da cidade”, aos “trabalhadores da cultura” e/ou aos “poetas marginais”, todos esses
termos utilizados pelos integrantes do grupo para se referirem a uma produção específica den-
tro do universo da poesia. Através dos fanzines, foram publicadas várias poesias de jovens que

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“A cidade foi repartida e nós não fomos convidados”:
ação coletiva e a construção de uma noção de cidade no Coletivo Debaixo

já produziam e outros que começaram a praticar essa forma de narrativa a partir do contato
com o evento realizado mensalmente pelo coletivo, o Sarau Debaixo.

Figura 1 – Fanzine produzido pelo Coletivo Debaixo

Fonte: Ilustração Alan Britto – Coletivo Debaixo, Aracaju – SE.

Os fanzines do Coletivo Debaixo se tornaram não somente um dos meios de divulgação


de poesias marginalizadas em um circuito hegemônico de literatura, mas também um dos
modos do Coletivo difundir aquilo que o grupo compreendia como “cidade”, “ocupação”,
“política”, “ação contestatória”, “violência na cidade”, “desigualdade na cidade” etc.

O quadrado de Pirro: uma cidade desigual, limpa e repartida


A higienização da cidade
Não é feita
Varrendo rua,
Mas sim,
Varrendo gente
Pra onde
O roteiro turístico não passa
E nem vai passar.
Mas essa gente é
Muito mais que isso

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 463-474, setembro-dezembro 2018 463
Jonatha Vasconcelos Santos e Wilson José Ferreira de Oliveira

Pare pra ouvir


Ela vai te contar
(Poesia retirada do fanzine publicado em maio de 2015)

A expressão “quadrado de Pirro” se popularizou em Aracaju a partir da intervenção do


engenheiro militar Sebastião José Basílio Pirro, que projetou, entre o final do século XIX e
início do XX, a reconstrução do centro da cidade a partir de um quadrado de 32 quadras com
110 metros para cada rua. Isso construiu a imagem do centro de Aracaju que, vista de cima,
parece um tabuleiro de xadrez. Todo esse processo foi construído com o interesse de moder-
nizar e reservar um espaço para o centro comercial de Aracaju.
No entanto, esse projeto de modernização, para os integrantes do Coletivo Debaixo, constitui
um dos marcos históricos de higienização do espaço público. O processo de higienização é interpre-
tado fundamentalmente enquanto um processo violento de segregação que aparece, por exemplo,
na poesia anteriormente citada: a higienização não ocorre varrendo rua, mas varrendo gente. Antes
do trecho destacado, a poetisa também registra alguns aspectos do modo como narra a cidade:

[...] que a cidade, meus queridos...


não é só coisa linda não
pode ter certeza é muita contradição
E para torná-la menos visível
quem tem poder faz quase o impossível...
mas é pra manter os debaixo
afastados, viu
pra que sua visita seja bem confortável
Vale bater em um camelô
pra que desocupe a via, pois,
pra projeto belíssimo de cidade
qualquer discordância é rebeldia.
(Poesia retirada do fanzine publicado em maio de 2015)

As noções de “contradição”, “projeto belíssimo”, “afastar os debaixo” e de “rebeldia”


anunciam aquilo que está na base da concepção de cidade e de ação política de luta em torno
da causa. Como destacamos acima, as contradições para o Coletivo Debaixo, e que é evi-
denciada nesse poema do fanzine, constitui umas das qualidades utilizadas pelo grupo para
definir aquilo que chamam de “cidade desigual”, na qual os atores menos favorecidos, “os

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“A cidade foi repartida e nós não fomos convidados”:
ação coletiva e a construção de uma noção de cidade no Coletivo Debaixo

debaixo”, são afastados para zonas periféricas. E é essa “desocupação das vias” que promove
e permite um projeto de belíssima Aracaju.
É necessário salientar que, além das experiências de vida desses atores, a presença de
um estudante do curso de Geografia da Universidade Federal de Sergipe e sua expertise tam-
bém contribuíram para a construção da crítica à cidade enquanto espaço de segregação.

Uma cidade de múltiplas violências e poucos direitos

N o caso da luta pelo direito à cidade no Coletivo Debaixo e utilizando o fanzine


enquanto referencial empírico para a identificação de uma narrativa, percebe-se
que as noções de cidade, todas como um problema social, são fragmentadas a partir das
diversas experiências individuais. A noção de desigualdade aparece no tópico anterior en-
quanto demarcada por um espaço segregado. Agora, entramos em alguns outros elemen-
tos, relacionados com o anterior, e que constroem uma narrativa paralela de uma cidade de
múltiplas violências e poucos direitos.

A rua é minha ou não é, até quando vou ter que ficar nessa de ficar andando depressa, da
pressa eu tô cansada isso de andar de cabeça abaixada, de precisar tá acompanhada por um
outro cara ou pro cara de pau poder me respeitar. [...]
A rua é nossa, a cidade é nossa, vou de cima a baixo, vou de bike, mas me dói muito saber que
tem mulheres que saem e não voltam, pois encontram no caminho quem lhes faça mal.
(Poesia retirada do fanzine publicado em março de 2015)

Nessa edição do fanzine de março de 2015, uma poetisa (e também integrante do Co-
letivo Debaixo) inclui uma nova perspectiva de luta pelo direito à cidade. Neste caso, através
da ideia de um espaço público violento e agressivo com as mulheres. As violências simbólicas
como o assédio sexual e a constante autovigilância em torno da possibilidade de ser violen-
tada ou as violências físicas representadas pelas agressões sofridas pelas mulheres no espaço
público fundamentam o diagnóstico elaborado com o protagonismo dos coletivos de mulheres
sobre a cidade. Ao reivindicar as ideias de que “a rua é nossa, a cidade é nossa” e vincular
essa pauta com as violências de gênero experimentadas no espaço público ao andar de bi-
cicleta e às dificuldades em ter que circular no espaço público em qualquer horário, a poesia
relaciona as problemáticas em torno da presença do corpo feminino na cidade.
As poesias a seguir trazem outras dimensões dessa noção de cidade violenta através de
uma narrativa construída a partir de uma ideia fundamental que é a retirada das pessoas dos
espaços públicos frente ao aumento da violência, como também a pauta amplamente reivin-

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 465-474, setembro-dezembro 2018 465
Jonatha Vasconcelos Santos e Wilson José Ferreira de Oliveira

dicada por diversos grupos em torno do debate da urbanidade e dos movimentos negros; o
genocídio da população negra.

Construímos monumentos sobre a paisagem/ erguemos muralhas, criamos o lado de dentro/


espessam-se os muros e põe-se blindagem
[...]
Acuados num canto/ açoitados nas costas nuas/ acuados, nos perguntamos tanto/ quem nos
tirou as ruas.
(Poesia retirada da edição 14 do fanzine publicado em abril de 2015)
É muita gente de PRETO/ Matando gente PRETO/ Mas no fundo tudo é PRETO/ Por conta do
navio NEGREIRO/ Que ancorou no mangue PRETO/ Subiram pro morro todos os PRETOS [...]
Como quando mandaram recolher todos os mendigos PRETOS/ Da cidade mais limpa.
(Poesia retirada do fanzine publicado em abril de 2015)

As ideias de que estamos “acuados” e de que nos retiraram as ruas, o direito de estar nas
ruas, como também a concepção de que “recolher todos os mendigos pretos”, matar gente
preta nos morros com população negra é a base da narrativa do grupo. Aqui, a violência é
interpretada como um modo institucional de justificar a “limpeza da cidade”.
Essa concepção de cidade é aquilo que os estudos sobre os enquadramentos identificam
enquanto os frames de diagnósticos que, paralelamente aos frames de prognósticos e motiva-
ção, compõem uma tríade dos core framing talks (Benford, Snow, 2000).

Os quadros de ação coletiva são construídos em parte como aderentes do movimento que
negociam uma compreensão compartilhada de alguma condição ou situação problemática que
eles definem como precisando de mudança, fazem atribuições a respeito de quem ou o que é
culpado, articular uma alternativa de arranjos, e induzem outros a agir em conjunto para afetar
a mudança. (Benford, Snow, 2000, p. 615, tradução do autor)

Articulado a ideia de “portadores figurativos de significado” em Jasper (2016), os frames


de diagnósticos, prognósticos e motivações podem ser comparados à noção mais geral de
enquadramentos. Para o autor, os enquadramentos são “um tipo de metáfora subjacente que
inclui o diagnóstico de um problema, sugere soluções e, com sorte, motiva a ação” (Jasper,
2016, p. 73). Nessa definição, o autor inclui as três noções do core framing talnks de Benford
e Snow (2000) sintetizadas na ideia de enquadramento.
Se as noções de cidade enquanto espaço de múltiplas violências, desigual e segregada,
compõem o frame de diagnóstico identificados em algumas poesias do fanzine publicado pelo
Coletivo Debaixo, e várias outras poesias podem nos mostrar algumas outras interpretações

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“A cidade foi repartida e nós não fomos convidados”:
ação coletiva e a construção de uma noção de cidade no Coletivo Debaixo

da cidade enquanto um problema social, as poesias do fanzine também apontam para alguns
prognósticos e motivações para a construção de ações coletivas.
Nesse sentido, a definição de Blumer (1971) sobre as construções dos problemas sociais
enquanto um “processo de definição coletiva e não um conjunto de condições sociais obje-
tivas existentes independentemente” nos ajuda a compreender o processo, destacado aqui a
partir da ideia de enquadramento, de mobilização de recursos simbólicos e ações contestató-
rias para a construção da cidade enquanto um problema social.
No próximo tópico destacamos como a concepção desse problema social específico e os
processos de reivindicação se tornam, para o Coletivo Debaixo, uma oportunidade de construir
modelos de resolução desse problema através da ocupação cultural da cidade.

A ocupação cultural do espaço público enquanto


prática de contestação

Imagina como a cidade seria diferente se mensalmente duas bandas daqui se apresentassem de
graça no Atheneu, se a cada segunda-feira um espetáculo teatral ou de dança se apresentasse no
final de linha do Augusto Franco. Se na terça-feira fosse dia de cinema ao ar livre no Bugio, na quarta
um recitam em baixo da Aracaju-Barra [ponte, grifo do autor] e assim por diante ocupando a cidade
com cultura. Dá pra imaginar o quanto isso mexeria direta ou indiretamente com a vida das pessoas?
(Texto de integrante do Bagaceira Talhada retirado do fanzine publicado em março de 2015)

No tópico anterior, destacamos o que os estudos sobre os enquadramentos interpretati-


vos identificam enquanto os frames de diagnóstico. Agora, ainda baseado em textos publica-
dos nos fanzines publicados pelo Coletivo Debaixo e em algumas entrevistas publicadas em
sites eletrônicosIII, analisamos os frames de prognóstico e de motivação. Os frames de prog-
nóstico se referem ao momento posterior ao diagnóstico do problema em que os diferentes
grupos identificam as possíveis soluções e motivações para a construção de uma ação coletiva.
No entanto, antes de destacar o prognóstico, é necessário salientar que o blog Bagaceira
Talhada foi fundamental para a divulgação do Sarau Debaixo e do Coletivo Debaixo. Além
disso, o blog — que também era um coletivo de midiativista — compunha um dos parceiros
da “rede de colaboradores”, termo utilizado por alguns integrantes do Coletivo Debaixo para
se referir ao modo mais horizontalizado que estabelecia com outras organizações e que carac-
terizava a dinâmica do “coletivo” enquanto um modelo organizacional.

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Jonatha Vasconcelos Santos e Wilson José Ferreira de Oliveira

O texto retirado do blog Bagaceira Talhada nos ajuda a compreender a escolha dos mo-
delos de ação coletiva construídos por parte desses coletivos culturais que se inserem nessa
pauta. A partir disso, a ideia de “ocupar a cidade com cultura” enquanto uma representação
da discordância dos modos tradicionais de organização da cidade emerge como modelo de
contestação utilizado pelo Coletivo Debaixo. Sendo assim, a ocupação seria não somente o
frame de prognóstico como também o repertório de ação contestatória mobilizado pelo grupo.

Existem várias representações do ‘concreto acomodado’ da cidade por ali: o maior teatro da
capital, vizinho do viaduto, que nasceu para ser o templo sagrado da cultura sergipana é, na
verdade, carente de algo que lhe preencha com sustância; sem falar do ritmo frenético do coti-
diano das pessoas que passam por ali, tudo precisa ser rápido, geométrico e sem contato. Sendo
assim, aquelas estruturas rígidas de cimento caracterizam o nosso espaço divergente, o nosso
espaço na luta de ressignificar uma cidade que se esqueceu de nós, o nosso espaço de retomar
com arte, onde poesia, música, rima, grafite, teatro, dança e cinema estejam no comando das
coisas. (PRATA, 2015, p. 1)

A ideia de ocupar a cidade com cultura é central no prognóstico dos atores engajados,
principalmente no que se refere à construção de modelos de ação contestatória. A concepção
de que o espaço público é composto por “estruturas rígidas de cimento” de “concreto acomo-
dado” e a possibilidade de criar um espaço diferenciado (as ocupações culturais e os saraus
são alguns exemplos) com novas regras de dominação, ainda que seja momentaneamente,
constitui um dos modos de ressignificação dos espaços.
Alguns estudos têm revelado como o processo de reivindicação da cidade ocorre para-
lelamente ao uso da ocupação enquanto o modelo de ação mobilizado pelos grupos dentro
e fora do Brasil (Maricato, 2013; Dechezelles, Olive, 2017; Combes et al. 2016). A disputa do
espaço público acontece a partir de múltiplas práticas paralelas às ocupações; entre elas, o
que buscamos destacar neste artigo é a construção de uma narrativa sobre a cidade. Com
isso, é possível ir além da constatação internacional sobre esse universo de constatação e
compreender como tais questões são traduzidas, ainda que esteja vinculada a questões inter-
nacionais em um nível local.
Paralelamente à construção de novos espaços dentro da cidade que resultam, por exem-
plo, das ocupações organizadas por esses coletivos, esses grupos trazem em suas narrativas
a ideia da cidade enquanto um “espaço divergente”, um “espaço de luta”, um espaço a ser
“retomado” no qual a arte “esteja no comando das coisas” e não os projetos de higienização
e modernização ou a violência destacada anteriormente. Com base nesse prognóstico já res-
saltado, emerge um conjunto de ocupações em Aracaju, região metropolitana, e em algumas

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“A cidade foi repartida e nós não fomos convidados”:
ação coletiva e a construção de uma noção de cidade no Coletivo Debaixo

cidades do interior do estado. Todas com um discurso semelhante: a ideia de que é preciso
retomar a cidade. Esse enquadramento também vai sendo adaptado a partir dos diversos
contextos e dos grupos que se apropriam dele. Por exemplo, alguns grupos focam na ideia de
que é preciso criar espaços de lazer na periferia e outros de que a pauta principal é a democra-
tização da cultura. No entanto, diante dessa diversidade de propostas de pauta, a centralidade
na ideia de que a cidade é um direito permanece nas mobilizações.
A partir disso, as ocupações são um modelo de contestação por onde se materializam
essas indignações. No caso do Sarau Debaixo, o coletivo inicia uma rotina de ocupação men-
sal por onde vários outros atores e grupos como juventudes partidárias e movimentos sociais
experimentam essa forma de se fazer política. É importante ressaltar que, ainda que tenhamos
focado a análise em algumas dinâmicas locais, como mostra Maricato (2013) e Harvey (2012)
há, em níveis nacional e internacional, um conjunto de experiências semelhantes. Inclusive,
como já salientamos anteriormente, a própria trajetória do Coletivo Debaixo e a idealização
do Sarau a partir de alguns contatos anteriores de atores com o “movimento de sarau”4 já
explicitam a relação entre esses “ocupas”5.
Em suma, buscamos destacar neste tópico que é a concepção da cidade enquanto um
espaço de disputa política, muito presente na ideia de ação contestatória no Coletivo Debaixo,
que compõe o discurso motivador na construção de ações contestatórias como o Sarau Debai-
xo e várias outras experiências de ocupação do espaço público.

Conclusão

A proposta deste artigo foi analisar os processos de construção de gramáticas de contes-


tação pelos movimentos sociais. Assim, a importância deste artigo se relaciona à com-
preensão, no âmbito dos coletivos que reivindicam o espaço público, dos elementos simbólicos
que compõem a narrativa da cidade enquanto um problema social e, a partir disso, constroem
uma demanda. Este trabalho pretende ir além dos estudos recentes sobre os movimentos
sociais em disputa nesta pauta, que enfatiza dois aspectos relevantes: a ressignificação física
dos espaços através da construção de uma rotina de contestação e a relação entre as causas
estruturais das desigualdades urbanas e a emergência das ações coletivas. Isso porque nossas
reflexões sugerem que a relação entre as experiências de vida e a pauta mais ampla do “di-
reito à cidade” é uma chave analítica para compreender o processo de diversificação do que
tem sido mobilizado desde a tradicional luta pela moradia no Brasil. Todavia, elas estão arti-
culadas também às mobilizações de grupos e coletivos de mulheres, feministas e/ou LGBT que
reivindicam a igualdade na mobilidade dos corpos, como também dos jovens periféricos que

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Jonatha Vasconcelos Santos e Wilson José Ferreira de Oliveira

exigem uma cidade cuja violência não atinja exclusivamente a população negra e periférica e
os equipamentos (como praças ou parques) também sejam implantados nas zonas periféricas.
Diante do amplo e fragmentado arcabouço teórico dos estudos sobre enquadramento in-
terpretativos no campo de pesquisa sobre os movimentos sociais6, a proposta deste artigo foi
a de perseguir alguns materiais públicos produzidos pelo Coletivo Debaixo para compreender
o modo como o grupo “enquadrou” a cidade na construção desse processo de reivindicação.
O material empírico utilizado foi quase que exclusivamente os fanzines produzidos entre 2013
e 2016, período de mobilização do coletivo, e uma entrevista publicada em site eletrônico.
A partir dos conceitos de frames de diagnóstico, prognóstico e motivação, reunimos al-
gumas narrativas que são pertinentes ao Coletivo Debaixo na construção de uma concepção
da cidade enquanto um problema social. A dupla categorização da cidade caracterizada, de
um lado, pela segregação e higienização e, de outro, pela violência à grupos vulneráveis (as
mulheres, os jovens negros e os LGBT), está na base do frame de diagnóstico que fundamenta
e justifica a necessidade de um conjunto de ações e medidas organizadas pelo grupo. Já o
frame de prognóstico elaborado pelo coletivo mobiliza a “metáfora” da cidade enquanto um
espaço divergente e de disputa política.
No entanto, é importante destacar que os quadros interpretativos não são elaborações
eminentemente individuais, e sim produtos sociais. Essa é uma das críticas que Benford (1997)
e Benford, Snow (2000), ambos expoentes da análise dos frames nos estudos sobre movimen-
tos, fazem ao desenvolvimento a partir de uma revisão “de dentro” desse campo de inves-
tigação. Para esses autores, os estudos dos frames na sociologia da ação coletiva utilizaram
critérios individuais e demasiadamente “psicologizantes” para a explicação dos fenômenos
sociais. Parte disso ocorre através da abertura à interdisciplinaridade com a área da Psicologia
Social — inclusive a relação com outros campos de estudo é uma reivindicação presente na
análise de frames — e, com isso, a dimensão coletiva tornou um elemento secundário no
estudo dos quadros interpretativos.
A segunda crítica elencada por Benford (1997) e outros autores como Mathieu (2002)
e Cefaï (2009), estes últimos vinculados ao pragmatismo francês, é que a teoria dos enqua-
dramentos interpretativos elaborou, ao longo do desenvolvimento da proposta, um arcabouço
teórico bastante vinculado a uma visão estratégica e utilitarista da ação coletiva. Em parte,
isso é uma consequência da concentração das pesquisas em investigar como as lideranças
criavam enquadramentos com capacidade de mobilizar possíveis atores engajados e/ou di-
fusão e popularização das causas. Diante dessa crítica, este artigo busca dialogar com esse
desafio teórico e empírico através da compreensão do enquadramento não somente enquanto

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“A cidade foi repartida e nós não fomos convidados”:
ação coletiva e a construção de uma noção de cidade no Coletivo Debaixo

uma possibilidade de disputar uma causa, a reivindicação do direito à cidade, mas também
como uma forma dos atores estabelecerem sentido para o engajamento nesse tipo de mobi-
lização. Para isso, como buscamos demonstrar através das narrativas identificadas nos fanzi-
nes, os sentimentos de violação de direitos na circulação do espaço público constituem um
dos elementos que unem os enquadramentos coletivos e as experiências de vida dos atores.
Sendo assim, para além de uma visão estratégica, o artigo buscou compreender os elementos
simbólicos que compõem os enquadramentos e, através da vinculação dos atores às molduras
elaboradas pelo coletivo, possibilita o engajamento.
Em diálogo com isso, buscamos demonstrar que os frames elaborados no Coletivo De-
baixo estão relacionados a alguns “fatos”. Os fatos no esquema dos “portadores figurativos
de significado” em Jasper (2016) correspondem às interpretações que os atores e grupos
criam a partir de uma realidade empírica e introduzem enquanto um elemento da narrativa.
Sendo assim, os frames são interpretações e narrativas coletivas onde é possível também en-
contrar traduções individuais para o mesmo enquadramento. O exemplo da presença de uma
reivindicação do direito à cidade a partir da condição de um jovem negro ou uma mulher é
um dos modos em que percebemos o cruzamento entre as histórias de vida individuais e um
enquadramento coletivo, que é o “direito à cidade”. No caso do Coletivo Debaixo, é bastante
evidente como as poesias e outros tipos de intervenção sobre o “direito à cidade” e as violên-
cias de gênero são demarcadas por experiências femininas de vida na cidade.
Sendo assim, são fundamentais para compreender a emergência dos frames as motiva-
ções para a ação e os processos de engajamento, as conexões entre fatos empíricos relativa-
mente diversificados, tais como a luta em torno da mobilidade urbana através da campanha
contra o aumento da tarifa protagonizada em Aracaju pelo movimento Não Pago, o debate
promovido por um professor universitário com o título de “Desobediência Civil e Transporte
Público”7, os intensos conflitos entre instâncias policiais e os manifestantes que reivindicavam
o direito de protestar e “ocupar” as ruas e as experiências de vida dos integrantes e idealiza-
dores do coletivo em outros movimentos de ocupação em Salvador como Sarau Bem Black,
entre outros.
Em artigo recente sobre o desenvolvimento da perspectiva das análises de frames e a
recepção dessa abordagem nos estudos sobre os movimentos sociais no Brasil, Silva (et al.
2017), destaca a capacidade da teoria do enquadramento para a problematização de alguns
temas de pesquisa bastante ideologizados como a relação entre movimentos sociais e as
mídias e as disputas internas e externas em torno das narrativas sobre questões, pautas e/
ou problemas sociais. Em consonância com isso, entendemos que os estudos dos quadros
interpretativos também são fundamentais, paralelamente a alguns princípios etnográficos dos

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 471-474, setembro-dezembro 2018 471
Jonatha Vasconcelos Santos e Wilson José Ferreira de Oliveira

estudos pragmatistas sobre as gramáticas e justificações (Cefaï, 2007, 2009; Oliveira, 2015),
para a imersão do pesquisador na busca pela compreensão das concepções políticas compar-
tilhada por grupos.
Além disso, nos últimos anos, os estudos sobre movimentos sociais e a luta pelo direito à
cidade têm analisado a relação entre os “novos” tipos de reivindicação do espaço público en-
quanto diferentes experiências de um ciclo global de protestos (Maricato, 2013; Dechezelles,
Olive, 2017; Combes et al. 2016). Diante desse cenário, a perspectiva adotada neste artigo
se insere em uma abordagem que busca compreender as traduções locais desses “problemas
globais”. Nesse sentido, a proposta de realizar uma imersão etnográfica permitiu compreen-
der o processo de construção de um conjunto de concepções compartilhadas pelo grupo sobre
política, ação contestatória e “direito à cidade”. E, a partir da crítica realizada por Benford
(1997) às abordagens individualistas e “psicologizantes” dos enquadramentos, demonstra-
mos como essas molduras interpretativas são elaboradas paralelamente a um conjunto de ex-
periências individuais presentes nas histórias de vida que motivam o engajamento, e também
aos acontecimentos coletivos como debates sobre formas de rebeldia e mobilidade urbana, a
difusão da ocupação do espaço público enquanto modelo de ação contestatória e, por fim, a
participação nas manifestações de junho de 2013, acompanhada dos enfrentamentos entre
os policiais e os movimentos sociais.
Portanto, ainda que o artigo problematize o processo de construção dos enquadramen-
tos interpretativos em torno da luta pelo direito à cidade, o cenário de mobilizações após o
fim do Coletivo Debaixo contribui para uma ampla agenda de pesquisa como a investigação
do processo de difusão de um modo de contestação, o desenvolvimento de novos enquadra-
mentos e a apropriação dessa narrativa da cidade por outros coletivos com diferentes perfis
de atores, a transformação desse tipo de ação contestatória em política pública através do
projeto Ocupe a Praça recentemente desenvolvido pela prefeitura de Aracaju e como cada
uma dessas ocupações passam a ser consideradas enquanto espaços de representação polí-
tica tendo em vista que as juventudes partidárias se apropriaram da ocupação enquanto não
somente repertório de contestação mas também espaço de socialização política.

472 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 472-474, setembro-dezembro 2018
“A cidade foi repartida e nós não fomos convidados”:
ação coletiva e a construção de uma noção de cidade no Coletivo Debaixo

NOTAS

1 Este artigo é resultado de uma dissertação apresentada sob o título “As manifestações de junho de 2013
pra gente não acabou”: um estudo sobre as formas de contestação no Coletivo Debaixo em Aracaju (Santos,
2017).
2 É necessário salientar que a expressão “direito à cidade”, por vezes, também é utilizada paralelamente ao
uso teórico elaborado por Lefebvre (2001), autor responsável pela criação do termo que acaba de completar
50 anos.
3 Ver as críticas do autor sobre a ausência das dimensões da emoção na teoria da ação coletiva (Jasper, 2010;
Jasper, Goodwin, 1999).
4 A utilização de entrevistas ocorreu devido ao pouco material em que podemos identificar prognósticos na
luta pelo direito à cidade nos fanzines.
5 O “movimento de sarau” é a forma como os atores identificam o circuito de Saraus por várias cidades do
Brasil.
6 O termo “ocupas” tem sido utilizado por alguns militantes para se referir às ocupações.
7 Ver a crítica de Benford (1997) ao desenvolvimento das análises de frames.
8 Ver a matéria em <http://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/2013/07/quatro-homens-sao-detidos-durante-
-manifestacao-em-aracaju.html>.

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474 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 474-474, setembro-dezembro 2018
Contribuição Especial

Associativismo de moradores de favelas


cariocas e criminalização
Associativism of Rio de Janeiro slum’s residents and criminalization
Asociativismo de habitantes de favelas cariocas y criminalización

Lia de Mattos RochaI*

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942018000300009

I
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.

* Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro e Coordenadora do CIDADES – Núcleo de Pesquisa Urbana. (liarocha08@gmail.com)

Artigo recebido em 1º de junho de 2018 e aceito para publicação em 10 de setembro de 2018.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 475-494, setembro-dezembro 2018 475
Lia de Mattos Rocha

Resumo
Neste artigo, articulo diversos momentos de trabalho de campo qualitativo em favelas cariocas para investigar as
dinâmicas de negociação entre os dirigentes de associações dessas localidades e os agentes civis e militares do
poder público, notadamente durante o Programa de “Pacificação” de Favelas, iniciado em 2008. Argumento que o
silenciamento e o rebaixamento da crítica dos moradores são operados através da desqualificação desses, e nessa
operação, a criminalização é um elemento fundamental. Concluo discutindo como silenciar, disciplinar e criminalizar
compõem o repertório do governo dos pobres nas periferias urbanas e seus efeitos para a democracia.

Palavras-Chave: Favela; Associativismo; Criminalização; Segregação; Militarização.

Abstract
In this article, I associate several moments of qualitative fieldwork in Rio de Janeiro’s slums to investigate the
negotiation dynamics between the leaders of associations from these localities and the civil and military agents
of the public authority, notably during the “Program of Pacification of the Slums”, initiated in 2008. I argue that
the silencing and demotion of the critics of the residents are operated through their disqualification and, in this
operation, criminalization is an important element. I conclude the article discussing how the act of silencing,
disciplining and criminalizing compose the repertoire of poor people’s government in the urban peripheries and their
effects on democracy.

Keywords: Slums; Associativism; Criminalization; Segregation; Militarization.

Resumen
En este artículo se analizan diversos momentos de trabajo de campo cualitativo en favelas cariocas para investigar
las dinámicas de negociación entre los dirigentes de asociaciones de esas localidades y los agentes civiles y militares
del poder público, especialmente durante el Programa de “Pacificación” de Favelas, iniciado en 2008. Argumento
que el silenciamiento y el descenso de la crítica de los habitantes son operados a través de la descalificación de esos,
y en esa operación la criminalización es un elemento fundamental. Concluyo discutiendo cómo silenciar, disciplinar
y criminalizar componen el repertorio del gobierno de los pobres en las periferias urbanas y sus efectos para la
democracia.

Palabra clave: Favela; Asociativismo; Criminalización; Segregación; Militarización.

476 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 476-494, setembro-dezembro 2018
Associativismo de moradores de favelas cariocas e criminalização

E m 2012, quando realizava trabalho de campo1 em uma favela da Zona Norte da cidade
do Rio de Janeiro, onde tinha sido instalada uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP)
no ano anterior, participei de uma reunião na qual estavam presentes representantes militares
e civis do projeto de “pacificação”, de outros órgãos públicos e das associações de morado-
res do local. O tema da reunião era a coleta de lixo na localidade, primeira ação estatal que
seria realizada ali após a entrada da UPP. Nessa oportunidade, presenciei a tentativa desses
dirigentes locais de não apenas auxiliar na execução da política específica em tela, mas de dis-
cutir o sentido do programa de “pacificação”, as possibilidades concretas de fim do “cerco”
a que os moradores estavam submetidos pelos grupos de traficantes varejistas de drogas e a
necessidade de execução de muitas outras politicas públicas, como o saneamento. Contudo,
essas tentativas de alargar o escopo da conversa foram impedidas pelos agentes públicos que
estavam organizando a reunião, com a justificativa de que aquele não era o foco no momento.
Um dos presidentes de associação de moradores presente fez então uma fala dura, acu-
sando o programa das UPPs de ser apenas uma fachada, ineficiente, pois ainda permaneciam
na favela pessoas ligadas à quadrilha de traficante de drogas local, não apenas comerciali-
zando drogas, mas também ameaçando moradores. Disse ainda que ele mesmo, por ser gestor
de um serviço público local, tinha sido coagido por esses traficantes a empregar alguns deles
e seus parentes no serviço e que os policiais da UPP nada tinham feito para protegê-lo dessa
ameaça. A denúncia foi ouvida com constrangimento pelos presentes, inclusive por outros
representantes de associações, e, logo em seguida, a reunião foi encerrada. Alguns meses de-
pois, fui informada por interlocutores do campo que esse presidente tinha “desaparecido” da
localidade e agora era foragido, procurado pela Polícia Civil, inclusive com recompensa para
quem fornecesse informações sobre ele ao Serviço do Disque-Denúncia. Dois anos depois, os
jornais anunciaram sua prisão por tráfico e associação para o tráfico de drogas. Segundo a
matéria de jornal, os policiais civis que realizaram a prisão disseram ainda que ele utilizava a
sede da associação para o comércio de drogas, que empregava traficantes e seus familiares
em um programa da prefeitura e “induzia moradores contra a UPP da comunidade”2.
Nessa mesma favela, ainda em 2012, um comerciante local, presidente da Associação
Comercial da localidade, foi assassinado. A entidade que ele presidia tinha sido criada após a
instalação da UPP e com o apoio do comandante desta. Esse comerciante teria sido apresen-
tado em diversas ocasiões públicas pelo comandante da UPP como uma nova liderança local,
sem relação com os comerciantes de drogas que ali atuavam. Ele teria ainda protagonizado
diversos eventos que celebravam a aproximação dos moradores com a polícia “pacificadora”,
como um casamento “comunitário”, com festas públicas organizadas pela associação co-
mercial com o apoio da UPP. Segundo os moradores ouvidos por Sousa (2017), ele teria sido

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Lia de Mattos Rocha

assassinado por traficantes de drogas porque era “amigo da UPP”3. Após seu assassinato, foi
criada uma medalha com seu nome, que o comandante da UPP local concedia aos policiais
“que se destacassem na promoção de projetos e iniciativas que vão ao encontro da consoli-
dação da paz e da ‘pacificação’” (Sousa, 2017: 75).
Este longo relato de campo introduz a questão que busquei discutir neste artigo: a crimi-
nalização de lideranças comunitárias de favelas do Rio de Janeiro, no contexto do Programa
de Pacificação que se iniciou em 2008, atingiu 38 favelas cariocas e hoje encontra-se em
estágio de extinção gradual.4 Essa política consistiu em um conjunto de iniciativas estatais,
com o apoio de entes privados, que tinha por objetivo inicial “levar a paz” e “recuperar a so-
berania do estado” às favelas do Rio de Janeiro (nos termos do discurso oficial), classificadas,
nessa lógica, como territórios sem a presença estatal,5 Sua ação mais concreta, contudo, foi a
instalação de bases para atuação local chamadas de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora),
com a presença ostensiva e permanente de policiais militares. As UPPs também prometiam
uma nova forma de policiamento, baseada no policiamento comunitário.
Quando foi iniciado, o programa das UPPs despertou grande interesse por parte dos cida-
dãos do Rio de Janeiro, já que o problema da violência urbana sempre foi um tema “quente”
no estado, conformando, inclusive, um enquadramento discursivo-prático (ou uma gramática,
como indica Machado da Silva, 2010) que localiza pessoas e territórios dentro de uma certa
hierarquia social e, no limite, define quem tem e quem não tem certos direitos. Enquanto a
maioria dos moradores da cidade formal (ou do “asfalto”, como dizem os cariocas) viram com
esperanças a proposta inovadora de ação policial, os moradores de favelas oscilaram entre
receber com esperança o programa, duvidar da real intenção dos governantes e silenciar com
medo de represálias.
Para pesquisadores da área de estudos urbanos, criminalidade e policiamento, o tema da
UPP tornou-se uma agenda obrigatória de pesquisa. Dessa forma, coordenei e participei de di-
versos projetos de pesquisa que buscavam identificar o que havia de novidade nas UPPs e que
efeitos elas teriam sobre a vida dos favelados e de todos os moradores da cidade e do estado.
Meu foco de interesse foi os efeitos das UPPs sobre o tecido associativo das favelas, consi-
derando que, em pesquisas anteriores (Silva; Rocha, 2008; Rocha, 2008; 2013), concluí que
a contiguidade com os traficantes varejistas de drogas representava um impedimento para
a ação coletiva dos moradores dessas localidades. Assim, pelo menos enquanto hipótese, as
UPPs representariam a possibilidade de reconfiguração de um tecido associativo comunitário
esgarçado pelo cerco imposto pela repressão policial de um lado e a submissão ao tráfico de
drogas de outro. No entanto, observamos após mais de seis anos de pesquisa que o “legado”

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Associativismo de moradores de favelas cariocas e criminalização

do projeto de “pacificação” foi a disseminação de um dispositivo securitário, que chamamos


de militarização (Leite et al, 2018), em que o governo das populações moradoras de favelas é
exercido (por instituições estatais e paraestatais) através de procedimentos de disciplinariza-
ção, conversão moral, vigilância, silenciamento, criminalização, repressão e extermínio. E que,
portanto, a “pacificação” não potencializou a “tomada de voz” (Freire, 2008) pelos moradores
de favelas no espaço público, mas, sim, seu controle e contenção.
Dessa forma, e a partir das minhas inquietações de pesquisa, argumento neste artigo que
a militarização como elemento ordenador da vida social teve como efeito o aumento do si-
lenciamento dos moradores de favelas a partir da criminalização e da desqualificação de suas
lideranças. Cabe ressaltar que o momento atual de “crise” das UPPs não significa que esse efeito
estaria se diluindo; pelo contrário, afirmo que é fundamental analisar o projeto não como um
“fracasso”,6 mas compreender que efeitos produziu e o que permanece após essa experiência.
Acredito que esses resultados permaneçam, e é o que pretendo discutir ao final deste artigo.

Do “controle negociado” ao “cerco”

L ocal de moradia de um a cada cinco habitantes da cidade do Rio de Janeiro (segundo o IBGE,
Censo 2010), as favelas estão presentes no cenário urbano há mais de cem anos e despertam,
junto com seus moradores, repulsa e atração. As pesquisas sobre essas localidades, sua população,
seus hábitos, valores e formas de organização estiveram muitas vezes orientadas por um principio
reformador, como bem demonstrou Valladares (2005). No campo dos estudos sobre associativismo
em favelas não foi diferente: preocupações com a “autonomia” versus a “cooptação” dessas or-
ganizações frente a governos e partidos; com o classismo versus o clientelismo de suas lideranças;
com a representatividade versus o esvaziamento das entidades; entre outros, foram norte de mui-
tas investigações. Contudo, a relação das organizações coletivas de moradores de favelas com o
poder público, os políticos, as organizações supralocais (Leeds; Leeds, 1978) e o próprio movimento
mais amplo de favelados variou ao longo de sua história conforme as conjunturas políticas locais e
nacionais, e também as dinâmicas internas e específicas de cada uma dessas localidades.7 A capa-
cidade dessas associações de fazer exigências, sua autonomia de organização, sua cooperação com
políticas estatais, o nível de repressão a suas atividades etc., sempre dependeu de uma correlação
de forças que se deu em ambiente altamente desfavorável politicamente para esses grupos sociais.
E, ainda assim, elas lograram continuar existindo. A esse movimento, que incluiu perdas e danos,
Machado da Silva (2002) definiu como controle negociado.8
O surgimento das primeiras associações de moradores de favelas, nos anos 1940, acon-
teceu em um contexto de reação dos favelados às propostas de remoção das suas casas para

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Lia de Mattos Rocha

lugares distantes do centro da cidade. Já no início da década de 1960, para tentar conter o
seu crescimento, o governo municipal estimulou a formação de diversas associações, que
seriam agências estatais dentro das comunidades para “auxiliar o governo na implantação de
serviços básicos e na manutenção da ordem interna” (Pandolfi; Grynszpan, 2002: 243). Assim,
num curto espaço de tempo, entre 1961 e 1962, o Serfha (Serviço Especial de Recuperação de
Favelas e Habitações Anti-Higiênicas), sob a direção do sociólogo José Arthur Rios, contribuiu
para a formação de mais de 75 associações, entre as quais a União Pró-Melhoramentos dos
Moradores da Rocinha (Pandolfi; Grynszpan, 2002: 243).
Com o Golpe Militar de 1964, a política de contenção executada pelo governo estadual
se radicaliza, com forte repressão às organizações comunitárias e um violento programa de
remoção. De acordo com Valladares (1978), entre 1962 e 1973, mais de 140 mil favelados fo-
ram removidos de forma violenta de suas casas. Segundo Pestana (2018), o aprofundamento
do programa de remoções se deveu a fortes interesses relacionados aos imóveis, organizados
em torno de associações de agentes imobiliários com grande influência no governo (antes e
depois da instalação da ditadura empresarial-militar). Apesar de muitas organizações de fave-
lados terem resistido às remoções, com a força da repressão que sobre elas recaiu – inclusive
com a suspeita de incêndios criminosos para forçar a retirada da população – as associações
passaram a atuar como representantes do governo dentro das favelas, gerenciando os serviços
públicos e evitando o seu crescimento (Burgos, 2003; Pandolfi; Grynszpan, 2002).
No final dos anos 1970, com o processo de redemocratização do país e o (re)surgimento
de movimentos sociais, é a bandeira da urbanização que impulsiona a organização coletiva.
Esse período ficou conhecido como “política da bica d’água”, sendo o clientelismo e as re-
lações pessoais entre lideranças das favelas e políticos (Machado da Silva, 1967 [2011]) a
tônica. Segundo Burgos (2003), a inexistência de políticas públicas específicas para esses terri-
tórios fez com que as associações de moradores adotassem o clientelismo, rocando benefícios
para as localidades por votos (Ibid: 39).
A relação de proximidade entre associações e Governo permaneceu nos anos 1990,
institucionalizada como parcerias, e, inclusive, teve sua atuação aumentada nesse campo
na gestão municipal de César Maia, especialmente em função do Programa Favela-Bairro,
iniciado em 1994. Dentro do Programa, as associações também eram gerentes financiados
com recursos públicos, e concentraram cada vez mais poder através da contratação de fun-
cionários e serviços. O Programa Favela-Bairro pulverizou a luta por melhorias, pois cada
favela tinha que defender seus interesses separadamente, o que “enfraquece o conjunto das
mobilizações e despolitiza as reivindicações, circunscrevendo-as à dimensão administrativa
e técnico-financeira na qualidade de pequenos lobbies (...)” (Machado da Silva, 2002: 232).

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Associativismo de moradores de favelas cariocas e criminalização

A lógica da pulverização permanece desde então, seja através do Programa de Acele-


ração do Crescimento – chamado de PAC das Comunidades ou das Favelas –, seja através
das iniciativas que acompanharam a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora. Guar-
dadas as diferenças, o formato continuou sendo a ação localizada, privilegiando algumas
favelas em detrimento de outras. As associações de moradores continuaram atuando como
parceiras, mas participando como executoras das políticas, e não como copartícipes de
sua elaboração. Assim, a relação baseada no controle negociado permaneceu, mas com
diminuição da capacidade de negociação das associações de forma mais ampliada.9 Ainda
assim, cada associação individualmente tentou manter seu status de mediadora do Esta-
do dentro do espaço político de cada favela, porém enfrentando diversos obstáculos, que
analiso na próxima sessão.

Organização em tempos de “pacificação”

O papel de representação dos interesses dos favelados das associações de moradores


enfraqueceu-se ao longo do tempo, como demonstramos na sessão anterior. As ex-
plicações para tal fenômeno são correlacionadas (e muitas vezes não exclusivas desse tipo
de associativismo): fortalecimento da participação institucionalizada em detrimento de mo-
vimentos “de base” (Lavalle; Castello; Bichir, 2004), acusações de autoritarismo, corrupção,
cumplicidade com grupos criminosos (Leeds, 2003; Zaluar, 2003; Silva; Rocha, 2008; Rocha,
2013), disputa com outros atores sociais pela função da mediação (Rocha, 2013; Carvalho,
2014). Outra dimensão importante, e sobre a qual me detenho aqui, são os constrangimentos
à ação coletiva impostos pelas forças armadas ali atuantes: polícias, quadrilhas de traficantes,
grupos milicianos (Silva; Rocha, 2008; Rocha, 2013). Há alguns anos, é de conhecimento pú-
blico que o cerco sobre os moradores de favelas praticado pelas quadrilhas de traficantes se
fechou também sobre as associações, causando a morte ou a expulsão de muitos dirigentes
de suas casas e territórios de moradia. Uma pesquisa realizada pela Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em 2005, analisou dados sobre 800
dirigentes de associações de moradores de favelas entre 1992 e 2001, e chegou à conclusão
de que, nesse período, 300 dirigentes foram expulsos de suas localidades por divergências
com traficantes locais e 100 foram assassinados (Leite, 2005: 382).II
Conforme apresentei acima, o Programa de Pacificação apresentou-se como uma política
para cessar esse cerco dos traficantes de drogas contra os moradores de favelas; contudo, tal
programa realizou uma ocupação por forças policiais e militares nesses territórios, o que teve
impactos evidentes sobre as organizações locais. Quando as primeiras UPPs foram instaladas

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Lia de Mattos Rocha

(entre final de 2008 e início de 2009), havia uma preocupação constante nos discursos ofi-
ciais: que a “pacificação” só seria bem-sucedida se o estado levasse também “a cidadania”
a esses territórios. Como afirmava o Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, “Só
polícia não resolve”.II Para tanto, foram articuladas diversas ações estatais e privadas para
oferecer serviços que representassem a integração das favelas à cidade formal. Uma dessas
iniciativas foi a UPP Social, criada em 2010 e alocada na Secretaria de Estado de Assistência
Social e Direitos Humanos, sob direção do economista Ricardo Henriques. Uma das tarefas
da UPP Social era realizar fóruns e promover encontros comunitários para que os moradores
das favelas agora “pacificadas” pudessem apresentar suas demandas e reivindicações e se-
rem “escutados” (Siqueira et al, 2012: 148). Contudo, também havia a pretensão de firmar
compromissos com os moradores a respeito de novas “regras”, necessárias à transição para
uma regulação da vida social baseada na cidadania como, por exemplo, no que diz respeito
às práticas ilegais associadas aos moradores de favelas – como o desvio de energia elétrica,
conhecido como “gato”.
A questão da adoção de novas regras dentro da legalidade ocupou grande parte dos
debates e formulações do programa, e ia ao encontro de outra importante iniciativa ligada ao
programa de “pacificação”, que era o incentivo à inclusão dos moradores de favelas dentro do
mercado formal de consumo.10 Em diversas matérias de jornal da época, o tema era abordado,
mas de forma a explicitar a dimensão de “missão civilizatória” (Oliveira, 2014) que o progra-
ma possuía. Para um gestor da Light entrevistado pelo Jornal Extra, os moradores de favela
teriam uma “cultura enraizada de não pagar contas”, mas ao começar a pagá-las estariam se
“sentindo aptos a reivindicar direitos”11. Já segundo o Coordenador de Polícia Pacificadora
Coronel Robson Rodrigues da Silva: “Antes, os moradores de comunidades não eram vistos
como cidadãos. Hoje, eles deixaram de ser problema para virar solução. São consumidores e
não atuam mais na informalidade”12. A “pacificação” seria, portanto, a oportunidade de con-
versão do favelado em um novo homem (Leite, 2015), cidadão, cumpridor das leis e pagador
de suas contas. Mas como participavam do processo de “pacificação” as lideranças locais?
Cunha e Mello (2011) analisaram o caso da “pacificação” na favela Santa Marta, na
Zona Sul carioca. Os autores indicam que, além da continuidade de tarefas comuns às asso-
ciações (como a distribuição de cartas), a associação de moradores local apoiou o programa
de “educação do consumidor” oferecido pela empresa de energia elétrica da cidade, cederam
a sede da associação para a realização de curso de informática e inclusão digital e foram
agentes do projeto de nomeação de ruas da favela, realizado pela Prefeitura. Esse programa,
especificamente, visava dar aos moradores do Santa Marta um “endereço”, já que a maioria

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Associativismo de moradores de favelas cariocas e criminalização

dos residentes desta e de outras favelas apenas tem a rua que dá acesso às localidades como
endereço oficial. Além disso, tinha a pretensão de servir como primeiro passo para a concessão
do “habite-se” aos domicílios, documento que atestaria que as casas estariam dentro dos
padrões de construção definidos pela Prefeitura. Contudo, ainda segundo os autores, estimava-
se que “(…) cerca de 80% das construções da favela Santa Marta terão dificuldade de ter
acesso ao habite-se, já que estão fora do gabarito determinado” (Cunha; Mello, 2011: 391).
Outro dado importante trazido pelos autores era a reclamação do presidente da associação
de moradores local à época, sobre a falta de engajamento dos habitantes com a proposta de
regularização do serviço de energia. Para o dirigente, “(…) embora a associação de moradores
tenha o papel de ‘mediar as demandas locais’, é fundamental que a população recorra direta-
mente à concessionária para fazer reclamações e solicitar serviços, agindo agora como ‘clien-
tes’ e exigindo seus direitos” (Ibid: 393, grifos meus).
No meu trabalho de campo, pude acompanhar a interação entre dirigentes das associações
de moradores e os atores estatais civis e militares e não estatais. Trago duas situações aqui.
Quando um programa de urbanização iria iniciar em uma das favelas onde fiz campo,
em 2012, participei de uma reunião preparatória à “assembleia”13 de apresentação do pro-
grama aos habitantes. Estavam presentes representantes das associações de moradores e
organizações locais, da Secretaria Municipal de Habitação (SMH, responsável pelo projeto),
de uma tradicional ONG carioca e do gerente local da UPP Social. O representante da SMH
e a da ONG, que iriam conduzir a “assembleia” nessa reunião, reforçaram que, durante a
atividade, o programa seria apresentado, mas que os questionamentos e as reivindicações
dos deveriam ser feitos depois, em grupos focais realizados pela ONG, contratada para isso.
Quando os representantes das associações tomaram a palavra, afirmaram que os moradores
não sabiam “se comportar” em reuniões e, por isso, a dinâmica da “assembleia” teria que
ser bem planejada para que intervenções indesejadas não acontecessem. Uma das lideranças
chegou a questionar a necessidade de posteriormente escutar os moradores, já que, como
representantes, eles mesmos poderiam fornecer à SMH as informações que eles queriam, in-
clusive sobre as demandas coletivas. Por fim, quando a “assembleia” foi realizada, as pessoas
tomaram o microfone e questionaram o fato de o programa ser apenas um levantamento para
a realização de um projeto de urbanização quando a expectativa deles era que obras fossem
imediatamente iniciadas, inclusive com a construção de residências através do Programa Mi-
nha Casa Minha Vida.14 A cada resposta negativa dada pelos técnicos da SMH (“os projetos
trabalham juntos” e a construção de casas “pode entrar no projeto”; “as obras não começam
agora. Agora é o projeto. Obra só ano que vem”), a indignação no auditório onde se realizava
a reunião aumentava, expressa pelos sons de desaprovação. Mas, ao final, a reunião terminou

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Lia de Mattos Rocha

sem maiores demonstrações de insatisfação. Cabe destacar que, durante todo o evento, os
dirigentes das associações de moradores locais ajudaram na contenção e convencimento dos
descontentes.
Já em junho de 2013, acompanhei uma das reuniões organizadas pelo comandante da
UPP de uma grande favela da Zona Norte. Como essa localidade era palco de diversos tipos
de intervenção estatal (como o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC para favelas),
o auditório estava cheio, tanto de pessoas comuns e representantes de associações de mo-
radores e organizações e movimentos sociais locais quanto de representantes dos diferentes
órgãos públicos atuando no local. O comandante iniciou a reunião afirmando a importância
da “credibilidade” que a Polícia Militar tinha adquirido no local e como ele valorizava a “par-
ticipação da comunidade” nesse processo. Terminou seu discurso explicando que naquela
reunião qualquer tópico poderia ser levantando (“qualquer coisa que aconteça na comunida-
de é de interesse nosso, não precisa ser apenas sobre Segurança Pública”), pois ele queria en-
sinar aos moradores “o caminho das pedras” em relação à interlocução com o poder público.
Mas quando representantes de uma organização local o questionaram a respeito da forma
como os policiais da UPP haviam dispersado uma manifestação contra a violência policial
(segundo eles, os policiais teriam atirado contra a multidão que protestava), o comandante
os acusou de estarem querendo “tumultuar” a reunião e de serem contrários à “pacificação”
(deixando implícito que eles teriam uma preferência pela época em que o traficantes de dro-
gas tinham mais força no local). E encerrou a discussão com o seguinte argumento: como eles
poderiam acusar os policias de terem atirado na direção dos moradores se eles não entendiam
de tiro nem de balística?15
Cabe ressaltar que um dos eixos centrais do programa de “Pacificação” era a proposta
de seguir um modelo de policiamento de proximidade e como outros programas específicos
para regiões de favelas tinham como cartão de visita a ideia de policiamento comunitário.
Modificar a forma como os policiais militares são vistos pela maioria dos favelados (como seus
algozes) – inclusive como forma de prevenir a adesão de jovens à carreira criminosa – era uma
meta, e, por isso, muitos policiais foram incentivados a aproximarem-se dos moradores através
de ações sociais, sobretudo projetos sociais (Teixeira, 2015).16 Da mesma forma, além da par-
ticipação em ações e projetos sociais, o Comando das UPPs determinou, em 2012, que os co-
mandantes das unidades participassem das reuniões comunitárias nos lugares que ocupavam,
onde se estabeleceria diálogo com a população ; no local em que ainda não houvesse tido
reunião, o comandante deveria organizá-las. Etnografamos diversos encontros comunitários
organizados por ou com a presença de policiais militares (Davies, 2014; Rocha; Carvalho;
Davies, 2018; Rocha, 2018) e argumentamos como a possibilidade da crítica ao programa de

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Associativismo de moradores de favelas cariocas e criminalização

“pacificação” estava totalmente rebaixada – ou, nos termos de Boltanski (2013), submetida
a uma dominação gestionária.17
Nos casos apresentados acima, tentei apresentar algumas das estratégias de silencia-
mento da crítica realizadas pelos executores da política de “pacificação” em espaços que
deveriam ser de diálogo (e questionamento) do programa. Vimos como os dirigentes de asso-
ciação de moradores tornaram-se coexecutores da implementação da política, abrindo mão
de sua função de mediação e representação dos interesses da população – ainda que a
execução da política fosse, por vezes, pouco eficaz, como no caso da impossível regulariza-
ção de residências ou do projeto de urbanização sem obras. Em diversos outros momentos
do trabalho de campo, observamos como os questionamentos dos moradores foram classifi-
cados como inadequados, porque não estariam sendo apresentados no formato correto ou
no momento apropriado. Nessa forma de contenção da crítica, podemos identificar como o
programa de “pacificação” opera como um projeto civilizador (Oliveira, 2014) ao representar
os moradores de favelas como incapazes de apresentarem suas próprias reivindicações.18 Essa
desqualificação é claramente expressa, surpreendentemente, pelas palavras de um dirigente
favelado: “eles não sabem se comportar em reuniões”. No último caso apresentado, vimos
como o silenciamento da crítica se dá novamente pela desqualificação dos reclamantes (que
não entenderiam de balística), acrescida da acusação de conivência com os traficantes de
drogas. Essa acusação era também frequentemente acionada nos espaços que pesquisamos,
ainda que, na maior parte das vezes, de forma implícita. É sobre essa forma de silenciamento,
a criminalização, que gostaria de me deter na última seção deste artigo.

Criminalização e cerceamento da política

N o início deste artigo apresentei duas situações de campo e suas repercussões pos-
teriores. No primeiro caso, o presidente de associação de moradores que expressou
críticas diretamente ao projeto de “pacificação” não conseguiu nenhuma repercussão para a
sua fala – nem mesmo dos outros dirigentes locais presentes. Segundo Sousa (2017), essa
mesma liderança era identificada pelos policiais da UPP como pouco confiável e dizia-se que
ele era “envolvido” (pertenceria a uma quadrilha de traficantes) (Ibid: 76). Seu pedido de
prisão, meses depois do evento descrito, teve como justificativa exatamente os fatos que rela-
tou em sua denúncia: que estaria sendo obrigado a empregar traficantes e seus parentes no
programa público que gerenciava. Mas se, em sua denúncia, ele cobrava a responsabilidade
do comando da UPP em não oferecer segurança e permitir a atuação das quadrilhas locais, em
seu indiciamento ele era responsabilizado individualmente exatamente pelo mesmo motivo,

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 485-494, setembro-dezembro 2018 485
Lia de Mattos Rocha

mas invertido: não ter sido capaz de impedir a atuação dos traficantes interessados nos recur-
sos que detinha. Assim, mais do que determinar se os rumores sobre seu envolvimento eram
verdadeiros ou não, seu indiciamento expressa como são governados os pobres urbanos: o
encarceramento é sempre uma opção para controlar e conter aquele que não parece estar se
comportando de forma adequada. Junto aos atos de silenciar e disciplinar, criminalizar (e, no
limite, encarcerar ou exterminar) parece ser uma recorrente estratégia acionada no repertório
das técnicas e tecnologias de governo.
Já no segundo caso apresentado, em que o “amigo da UPP” é assassinado, vemos a
produção desse favelado que se comporta corretamente, que adere aos valores da missão
civilizatória a que está submetido. Ainda segundo Sousa (2017), ele era a liderança local apre-
sentada como legítima e indicada para expressar os interesses dos moradores junto ao poder
público (Ibid: 77). No entanto, é importante destacar que seu assassinato demonstra como os
corpos dos favelados estão à disposição da aniquilação (Farias, 2008; 2014) mesmo assim.
O que permite contrastar os dois casos é a forma como a criminalização dos moradores
de favelas e suas lideranças, através da acusação de cumplicidade ou conivência com os trafi-
cantes de drogas, abre um papel importante na afirmação ou negação de sua legitimidade en-
quanto representante. Aquele que denunciava a permanência dos traficantes no local apesar
da UPP foi criminalizado, e aquele que abertamente defendia a “pacificação” era valorizado
enquanto legítimo líder local. A forma como essa legitimidade foi concedida e negada refletia
a oposição “amigo da UPP” e “envolvido com o crime”.
Assim, perpetua-se o mecanismo de criminalização e deslegitimação dos favelados e seus
representantes, pela acusação de cúmplices ou criminosos eles mesmos (Machado da Silva,
2004; Machado da Silva; Leite, 2004), e atualiza-se também as formas de limpeza moral (Ma-
chado da Silva, 2008; Rocha, 2013) que os moradores têm que acionar para se livrar dessas
acusações. Dessa forma, ainda que sob um novo regime de policiamento, que apresenta a
“paz”, a aproximação entre habitantes locais e policiais e a integração da favela à cidade como
pilares, a relação entre favelados e espaço público continua se dando no terreno da condena-
ção moral. Não à toa, logo após a execução da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, em
março deste ano, fomos bombardeados com informações falsas que a acusavam de ter ligação
com quadrilhas de traficantes de drogas, de forma a deslegitimar a afirmação de que sua morte
foi um atentado político. A “pacificação” perpetuou o silenciamento dos favelados através da
criminalização. E mais uma mulher, negra e favelada teve a sua memória atacada.
Lucas Pedretti (2018) investiga os crimes da ditadura empresarial-militar contra mora-
dores de favelas e suas organizações, argumentando que os favelados – junto com outras

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Associativismo de moradores de favelas cariocas e criminalização

populações consideradas minoritárias – foram também afetados por essa repressão, mas sua
história ainda estaria silenciada. O autor discute ainda como as categorias “subversivo” e “co-
munista” foram plasmadas em lideranças comunitárias da época para justificar sua repressão,
detenção e até desaparecimento – mesmo àqueles que afirmavam ter participado da “Marcha
da Família com Deus pela Liberdade” em 1964, por exemplo (Ibid: 112). Como demonstram
Pedretti (Ibid) e Pestana (2018), a luta contra a remoção das favelas nesse período contrapôs
os favelados a interesses muito poderosos, de grupos de capitais do setor imobiliário, e para
desmontar a sua resistência, as forças repressivas mobilizaram grandes esforços. Interessa-me
pensar, sobretudo, quais as aproximações e afastamentos entre o acionamento de categorias
como “subversivo” e “comunista” de então e “traficante”, “cúmplice” ou “conivente” de
hoje para refletir sobre a criminalização dos favelados nesses diferentes contextos.
O presidente da associação de moradores que foi posteriormente preso, nosso perso-
nagem do início deste artigo, concedeu uma entrevista a nossa equipe de pesquisa ainda
em 2011. Nela, ele contou de sua juventude como militante do Partido Comunista Brasileiro,
seu afastamento posterior, sua eleição meio ao acaso para a associação de moradores, sua
esperança que a “pacificação” ajudasse a recuperar o interesse do morador pelas ações co-
letivas. Em determinado momento, explicando sua esperança de que uma nova polícia tivesse
relações menos “contaminadas” com os moradores, ele declarou: “(…) a polícia sempre nos
viu como coniventes. Na verdade, nós não fomos coniventes com o trafico e nem com nada de
ruim nós fomos conviventes. A palavra certa é convivente. Nós convivemos”.
Com o atual contexto que vivemos no Brasil, de aprofundamento da militarização como
dispositivo de governo das periferias urbanas, de crescente e reiterado uso de regulamen-
tos de exceção como a Garantia da Lei e da Ordem19 para legitimar operações militares de
repressão e ocupação territorial,20 é preciso investigar e refletir sobre em que condições o
controle negociado está sendo exercido – ou se a categoria ainda se aplica. O cenário atual é
marcado pela intervenção federal na área da segurança pública no Rio de Janeiro, anunciada
pelo Presidente Temer em fevereiro de 2018, pela nomeação de um general do Exército como
interventor,21 pela execução de Marielle Franco... os indícios são muitos. Como afirma Macha-
do da Silva (2002):

Creio que o “controle negociado” é um arranjo que só se sustenta graças à tolerância — e de-
sejo grifar este termo — produzida por aquele abismo de poder entre o que a percepção social
classifica como o “asfalto” e a “favela” (Leite, 2001). Por outro lado, é essa mesma tolerância
que parece responder pelo sucesso dos disfarces institucionais e simbólicos dessa enorme de-
sigualdade. Acontece que tolerância não se confunde com aceitação, nem com convencimento:
de cima para baixo, tolera-se algo que incomoda pouco, e de baixo para cima o que não se tem

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Lia de Mattos Rocha

forças para mudar. Neste sentido, não fiz mais do que descrever a institucionalização de uma
sociabilidade muito, mas muito mesmo, precária, porque a tolerância não pode ser base para
uma relação de alteridade consistente (Ibid: 235).

Talvez o momento atual seja de diminuição da tolerância, da impossibilidade do con-


vencimento, de negação no lugar de aceitação. Que possamos continuar resistindo, apesar de
toda a criminalização e repressão, como os favelados têm feito há mais de cem anos.

Notas

1 Os resultados aqui apresentados foram produzidos em diversos projetos de pesquisa, sendo o mais recente
“Políticas Públicas, Cidadania e Territórios Periféricos: a permanente (re)construção do estado nas margens
do Rio de Janeiro”, coordenado por mim e financiado pela Faperj através do edital Jovem Cientista do Nosso
Estado 2015. Gostaria de agradecer aos companheiros do CIDADES - Núcleo de Pesquisa Urbana, com quem
divido as análises, as angústias e as esperanças, e à Claudia Trindade e à Emanuelle Araújo, que fizeram parte
importante do campo que apresento aqui e iniciaram comigo as primeiras reflexões que hoje apresento.
2 Como a prisão de Mario foi divulgada pela imprensa e qualquer tentativa de evitar expor seu nome e po-
tencialmente contribuir para a sua criminalização foram por mim consideradas insuficientes, coloco o link da
matéria: O GLOBO. Ex-presidente da Associação de Moradores do Morro dos Macacos é preso. 26 de Agosto
de 2015. Disponível em<https://oglobo.globo.com/rio/ex-presidente-da-associacao-de-moradores-do-morro-
-dos-macacos-preso-17311798>.
3 Fernando Sousa, em pesquisa realizada na mesma localidade, discutiu o uso dessa categoria pelos policiais
militares e pelos moradores como, por um lado, estratégia para reorganizar o tecido associativo local, apro-
ximando os representantes da UPP das lideranças escolhidas por eles como as “corretas”, e, por outro lado,
como categoria de acusação pela aproximação indevida com as forças de ocupação - e também como forma
de ameaça e/ou aviso, como na frase “cuidado, você está muito amigo da UPP”. Para maiores informações,
ver Sousa, 2017.
4 Sobre o desmonte do Programa de “Pacificação”, ver a manchete “Intervenção anuncia o fim de 12 UPPs
e mudanças em outras sete unidades” do jornal O Globo, de 26 de abril de 2018. Disponível em: <https://
oglobo.globo.com/rio/intervencao-anuncia-fim-de-12-upps-mudancas-em-outras-sete-unidades-22631936>; e
«Governo inicia fechamento de metade UPPs nas comunidades do Rio». AFP, 27 de Abril de 2018. Disponível em:
<https://exame.abril.com.br/mundo/governo-inicia-fechamento-de-metade-upps-nas-comunidades-do-rio/>.
5 Uma bibliografia, hoje considerável, discute há algum tempo como a representação das favelas como luga-
res “sem presença estatal” é parte da engrenagem de segregação e criminalização dessas localidades e de
seus habitantes. Sobre isso, ver, entre outros: Machado da Silva, 2008; Leite, 2018; Carvalho, 2014.
6 Pensar o fracasso como oportunidade para a compreensão dos efeitos de projetos e políticas é a proposta
de diversos autores, mas utilizo aqui, sobretudo, a sugestão de Ferguson (2009).
7 Conforme demonstrou Doimo (1995), os movimentos sociais urbanos no Brasil, especialmente no período
da abertura política pós-ditadura de 1964, são caracterizados por uma dupla face: a expressivo-disruptiva e a
integrativo-corporativa (Doimo, 1995: 222). Essa dualidade, portanto, é característica dessas organizações e
não específica dos movimentos de moradores de favelas.

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Associativismo de moradores de favelas cariocas e criminalização

8 Em seu artigo, o autor busca demonstrar como, no momento pré-1964, os moradores de favela foram bem-
-sucedidos, em termos, em sua luta contra as tentativas de remoção de suas casas. A dimensão da negociação
teria sido suspensa, contudo, durante o regime militar, retornando com a abertura e o primeiro Governo
Brizola (1983-1987).
9 O crescimento da presença de organizações não governamentais nos territórios de favelas - sejam conduzi-
das por moradores de favela ou não - e a disputa que elas passaram a travar com as associações pelo papel de
“falar pelas favelas” também contribuírampara diminuir essa capacidade de negociação. Analiso em detalhes
essa disputa em Rocha, 2013.
10 Leite aponta que as expulsões de dirigentes, e mesmo de moradores não envolvidos na política local, eram
tão frequentes quanto invisíveis para a sociedade em geral, muitas vezes não sendo percebidas mesmo como
uma modalidade de violência praticada pelos traficantes de drogas. Com o aumento de casos, no entanto, a
categoria de “refugiados do tráfico” passou a ser utilizada nos meios de comunicação (Leite, 2005: 381-383).
11 “Entrar na favela e ficar não vale somente para a polícia. A polícia não vai resolver. Tem que o Estado vir
atrás”. Cf. Estadão On Line. “Só UPP não resolve, 08/11/2010. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/
noticias/geral,beltrame-so-upp-nao-resolve-estado-tem-de-agir-junto,636814,0.htm>. Acessado em: <02 de
Outubro de 2018>.
12 embricamento entre “pacificação” e “mercantilização” é outra fundamental dimensão do dispositivo da
militarização, mas não é possível abordar o tema no escopo deste artigo. Sobre o tema, ver Ost; Fleury, 2013;
Barbosa, 2012; Leite et al, 2018; Rocha; Carvalho, 2018; entre outros.
13 “Compromisso..., com a legalidade”, Jornal Extra, 14 de fevereiro de 2010.
14 “Duas empresas prestes a doar 1,3 milhão”, O Globo, 30 de Janeiro de 2011.
15 Coloquei o termo assembleia entre aspas porque, como veremos a seguir, tratava-se de evento em que os
moradores não poderiam falar, apenas ouvir, o que mais se assemelha a uma palestra que a uma assembleia.
16 O programa Minha Casa, Minha Vida financia a construção e a compra de habitações para diferentes
faixas de renda. Sobre o tema, ver Conceição, 2018.
17 Também analisei essa mesma situação em Rocha, 2018.
18 A aproximação entre moradores de favelas e policiais militares, através da participação em projetos sociais,
é uma situação social atravessada por diversas ambivalências e conflitos que não posso explorar aqui. Sobre
o assunto, ver o excelente trabalho de Teixeira, 2013.
19 Para o autor, esse tipo de dominação (diferente da dominação ideológica ou pelo terror) sustenta-se na le-
gitimidade que passam a ter na esfera pública e política certas técnicas de gerenciamento e gestão, transplan-
tadas das grandes empresas. Somadas à primazia do economicismo e dos discursos técnico-científicos como
formas de justificação às práticas de governo, com essas técnicas, busca-se enfrentar, institucionalmente, as
críticas e, assim, rebaixar as possibilidades de reivindicação dos dominados (Boltanski, 2013).
20 A representação dos favelados como incapazes de se organizar politicamente é antiga (Perlman, 1977;
Valladares, 1978) e compõe o estigma que recai sobre os pobres como incivilizados em diversos outros con-
textos nacionais, como argumentam Das & Poole (2004).
21 Acionadas apenas com ordem expressa da Presidência da República, as operações GLO devem ocorrer
apenas, segundo o site do Ministério da Defesa, “nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 489-494, setembro-dezembro 2018 489
Lia de Mattos Rocha

de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem”. Ainda segundo o site do Ministério
da Defesa: “Reguladas pela Constituição Federal, em seu artigo 142, pela Lei Complementar 97, de 1999, e
pelo Decreto 3.897, de 2001, as operações de GLO concedem provisoriamente aos militares a faculdade de
atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade. Nessas ações, as Forças Armadas agem
de forma episódica, em área restrita e por tempo limitado, com o objetivo de preservar a ordem pública, a in-
tegridade da população e garantir o funcionamento regular das instituições”, Cf. Ministério da Defesa, 2018,
disponível em <https://www.defesa.gov.br/exercicios-e-operacoes/garantia-da-lei-e-da-ordem>.
22 A Garantia da Lei e da Ordem foi acionada durante as Ocupações Militares no Alemão (2010) e na Maré
(2014-2015). Importante ressaltar ainda que militares que atentarem contra a vida de civis sob a GLO serão
julgados apenas em tribunais militares, em função da lei sancionada por Temer em agosto de 2017, que mo-
difica a lei de 1996, que garantia que tais acusações seriam julgadas por Tribunais de Júri da Justiça comum.
23 A primeira vez que o Rio de Janeiro sofreu uma intervenção federal foi em 1937, durante o Estado Novo. A
manobra se repetiu em 1966, durante a ditadura empresarial-militar. A intervenção mais recente, contudo, foi
em 1994, quando o então governador Nilo Batista assinou “um convênio que subordinava a estrutura policial
do estado ao Comando Militar do Leste” . Disponível em: <https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/
rio-de-janeiro-tem-historico-de-intervencao-federal-desde-estado-novo-22405671#ixzz5TGRrq2rd>. Acessa-
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Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 493-494, setembro-dezembro 2018 493
Entrevista

Entrevista com Boris Kossoy1


Interview with Boris Kossov
Entrevista com Boris Kossov

Bernardo Buarque de HollandaI*


Daniela AlfonsiII*

Entrevista concedida
em 14 de maio de 2018 em São Paulo.

http://dx.doi.org/10.1590/S2178-149420180003000010

1
Professor titular da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).

* Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.


I
Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV) (bernardo.hollanda@fgv.br).
Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora de conteúdo do Museu do Futebol/
II

Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo (daniela@museudofutebol.org.br).

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 495-520, setembro-dezembro 2018 495
Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

A ideia de uma entrevista com Boris Kossoy surgiu no final de 2017. Boris fora convidado
pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) para
participar no Rio de Janeiro, em 27 de novembro daquele ano, do Seminário Dicionários histó-
rico-biográficos: desafios metodológicos e novas tecnologias. O convite se devera à expertise
do autor com o Dicionário histórico-fotográfico brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no
Brasil (1833-1910), lançado em 2002 pela editora do Instituto Moreira Salles. Essa publicação,
por sua vez, remontava a uma tese de livre-docência defendida na Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em 2000, como resultado autoral de con-
versão das pesquisas sobre a imagem fotográfica, iniciadas nos anos 1970, na sistemática de
verbetes para um dicionário, desenvolvido ao longo da década de 1990.
A palestra de Kossoy nos deixou atraídos não só por sua didática expositiva como tam-
bém pelas inúmeras afinidades temáticas despertadas por seu trabalho institucional e por
sua trajetória profissional. Afora o aporte teórico na relação entre história e iconografia, caro
à reflexão historiográfica, interessamo-nos por sua experiência de gestão à frente do Museu
da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP), no início dos anos 1980. Em particular, nosso
interesse se relacionou mais diretamente ao programa de História Oral, criado pelo professor
durante o período em que dirigiu o MIS-SP (de outubro de 1980 a março de 1983).
A importância e a riqueza dos depoimentos colhidos junto a inúmeras personalidades da
área cultural, artística e acadêmica brasileira podem ser aferidas no site da instituição. Nesse
sentido, procuramos na entrevista a seguir compreender em maior profundidade as circuns-
tâncias políticas de sua atuação naquele período de reabertura democrática no Brasil, em que
parte da “memória nacional” voltava a ser falada e documentada.
Nascido em São Paulo, no ano de 1941, Boris Kossoy é descendente de imigrantes que
chegaram ao Brasil nos anos de 1920, seu pai de Odessa (na época, Rússia), e sua mãe de
Cracóvia, Polônia, e que no Brasil se conheceram. Formou-se em arquitetura nos anos 1960 e
atuou como fotógrafo profissional de inúmeras agências, estúdios e revistas, paralelamente a
uma carreira autoral.
Na Academia, a partir dos anos 1970, desenvolveu trabalho reflexivo sobre o estatuto
histórico da fotografia nas Ciências Sociais, obteve os títulos de Mestre e Doutor pela Escola
de Sociologia e Política de São Paulo. Iniciou carreira no magistério na Faculdade de Comu-
nicação Social Anhembi e, em seguida, no curso de especialização em Museologia. Desde
finais dos anos 1980, passou a ministrar cursos de pós-graduação na qualidade de Professor
Convidado, inicialmente no Departamento de História da USP e, a seguir, na Escola de Comu-
nicações e Artes da USP. A partir de então, seu vínculo foi definitivo com essa universidade: em

496 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 64, p. 496-520, maio-agosto 2018
Entrevista com Boris Kossoy

2000, defendeu tese de livre-docência e, em 2002, concorreu para o cargo de professor titular
da Universidade de São Paulo.
É ensaísta, curador e autor de 17 livros (dois em coautoria com a historiadora Maria
Luiza Tucci Carneiro), alguns deles traduzidos e publicados no exterior. Teve muitas de suas
fotografias expostas e adquiridas por instituições internacionais de ponta, como o MoMA,
o Metropolitan Museum of Art (ambos em Nova Iorque), a Biblioteca Nacional da França, o
Museu de Arte de São Paulo, o Museu de Arte Contemporânea da USP, Centro de la Imagen,
do México, entre outras instituições públicas e privadas no Brasil e no exterior.
A entrevista a seguir foi filmada por João Paulo Pugin Souza, na cidade de São Paulo, na
residência do entrevistado, bairro do Brooklin, numa manhã de segunda-feira.

Muito obrigado, professor Boris, por nos receber aqui no seu estúdio. Nós gostaría-
mos de começar com uma breve síntese da sua trajetória, das suas origens familia-
res e da sua formação acadêmica.

Eu vou falando livremente, meio “desacademicamente”, mas tentando dar uma consis-
tência nessa fala. Sim, a imagem faz parte da minha vida desde muito pequeno, desde a minha
primeira infância, os álbuns de figurinhas e os gibis me divertiam. Durante a minha adolescên-
cia, a minha ligação com a imagem através do cinema, fotografia, história em quadrinhos, foi
parte fundamental da minha formação, embora todo mundo falasse que era pecado ler his-
tória em quadrinhos... Eu não vi nada na Bíblia que dissesse que era pecado, mas diziam que
era. “Imagina! A pessoa fica deformada e tal”. Eu desenhava bem, então todas essas formas
de expressão foram se interligando. Um caminho natural para mim foi a arquitetura. Minha
primeira formação é de arquiteto — me formei em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura
da Universidade Mackenzie em 1965.

Evidentemente, você viveu essa já ambiência do Brasil sob a ditadura militar.

Sim, o começo do começo. Aquela efervescência toda, embora meu foco não fosse políti-
co naquele momento. Isso vai acontecer alguns anos depois, não tanto pela arquitetura, mas
sim pela fotografia. Quatro ou cinco anos depois que eu saí da faculdade, em 1969 ou 1970,
eu já estava fazendo coisas completamente diferentes e pensando mesmo diferente do que
eu pensava quando tinha 19 anos ou 20 anos, quando entrei na faculdade. Isso em relação a
questões existenciais, políticas, ideológicas etc.
Então, a imagem sempre fez parte. A fotografia caminhava paralelamente à Faculdade
de Arquitetura. Cheguei a trabalhar alguns anos em projetos convencionais, projetando re-
sidências, edifícios etc., mas a fotografia sempre flertando comigo, sempre me cutucando.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 497-520, setembro-dezembro 2018 497
Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

Bom, num determinado momento, em 1968 e 1969, aquilo tudo que começou a acontecer na
Europa e no mundo também foi muito picante e muito interessante, e eu via na imagem uma
forma de compreender esse mundo, de representar esse mundo, de participar desse mundo.
Meu ex-escritório de arquitetura virou meu estúdio fotográfico, na rua Marquês de Itu,
266, 7º, conjunto 72, quase esquina com a Rego Freitas. Eu adorava aquele lugar, era o miolo da
convivência dos arquitetos da cidade de São Paulo, na Vila Buarque. Depois, eu continuei naquele
bairro — muito querido para mim até hoje –, algumas quadras além, na Escola de Sociologia e
Política. Uma coincidência curiosa, na minha vida acontecem muitas coincidências assim.

Uma pergunta específica sobre essa época. No portfólio do seu site, você escolhe
para falar de você umas fotos tiradas na periferia de São Paulo, entre os anos 1950
e 1960. O que te leva a ir para a periferia paulistana nesse período?

Pena que são tão poucas. Eu me encantei com aquela periferia de São Paulo, que tinha
uma outra conotação que a de hoje e que me levava, muitas vezes, a passear e andar por lá.
Numa dessas andanças, vi uma cena que me tocou profundamente: era uma kombi de uma
funerária, diante de um casebre, onde está escrito lá: “Parteira”1. Você talvez lembre dessa
foto. Me perguntaram: “Foi uma montagem?”. Foi montagem nada. Eu passei e vi essa cena.
E quem viu essa cena comigo foi minha primeira esposa, a Sarita. Ela falou: “Você viu?”. Eu
falei: “Vi”. Poxa vida! Mas entre ver, tomar e descer do carro para fazer a foto foi chocante,
porque tem toda uma narrativa naquela imagem. Essa foto acabou sendo muito divulgada
pela imprensa como promoção da programação jornalística da Rádio Jovem Pan.

Essa “narrativa” da fotografia, que se reduz a uma imagem, é a grande diferenciação


do cinema, onde você tem a narrativa sobre determinado tema ao longo do tempo, recriada
e construída no tempo da sucessão dos fotogramas segundo um roteiro. Aqui, na fotografia,
você tem que ter toda a história numa imagem, cujos elementos para essa história estão no
extraquadro, além da representação, e que podemos ou não desvendar; e o tempo real, que
precisamos imaginar. Esse desafio, essas questões teóricas começavam a mexer com a minha
cabeça, essa síntese do fato, da cena, numa única fotografia. Essas questões de fundamento
não se discutiam aqui, e mesmo lá fora, ainda eram embrionários.

Você lembra o bairro onde foi feita a foto?

Zona norte, para o lado de Itaberaba, Morro de São Bento, região norte. Não vou naquela
região há mais de 50 anos, pelo menos. Em São Paulo, você quase não sai da região em que
vive e trabalha. Cada região é uma cidade, um cenário gigantesco, com seus segredos pró-
prios. Tenho outras fotos de cenários semelhantes, lembro que uma delas me vem à cabeça
justamente por essa questão urbana. Eu não gosto de falar sobre uma foto. A fotografia, a

498 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 64, p. 498-520, maio-agosto 2018
Entrevista com Boris Kossoy

gente tem que ver. Mas, enfim, me refiro a uma fotografia em especial em que temos um gru-
po de favelas no primeiro plano; no médio plano, as torres de uma igreja; e ao fundo, a cida-
de2; uma paisagem urbana que não existe mais hoje. O professor Pietro Maria Bardi, quando
viu essa foto, creio que foi em 1969: “Boris, eu quero esta”. E a utilizou num livro de história
da arquitetura que saiu na Itália (Bardi, 1971, p. 24). Ah! Eu fiquei maravilhado quando ele
escolheu aquela foto! O Bardi foi um grande protetor meu, um grande conselheiro, tenho as
melhores recordações dele.
E aí eu cheguei a fazer um pouco de freela para a revista Claudia e a revista Quatro
Rodas, da Abril; para o Jornal da Tarde e para a TV Record, paralelamente ao meu trabalho de
estúdio, porque eu era fascinado, e ainda sou, pelo retrato. O retrato fotográfico, para mim, é
um mistério, aquela cumplicidade de fotógrafo. Estou falando do retrato, não estou falando
do selfie. Estou falando do retrato clássico, com luz Rembrandt e tal. Aquela troca de olhares,
sem falar muita coisa, diz muito, é uma interação fascinante. E aquele momento era o momen-
to — estou falando de 1968, dos pôsteres, do psicodélico, da luz negra, da contracultura, do
baseado etc. e tal. Nós estamos falando desses 50 anos atrás, em que você realmente vivia
uma efervescência que era de carne e osso e sangue e lágrimas e de sensações fantásticas, e
que depois foi se diluindo e homogeneizando, e deu no que deu. Naqueles anos, comecei a
me dedicar mais sistematicamente ao meu trabalho pessoal, autoral, como mencionei antes.
Esse interesse pela imagem está na raiz do meu interesse pela iconografia histórica. E eu
sempre adorei história, desde o tempo da disciplina “História da Arquitetura”, que cursei na
faculdade. Imaginava os gregos vivendo naquelas edificações clássicas, entre colunas jônicas,
dóricas. Eu sempre imaginava o passado, como uma sucessão infinita de cenários onde se
sucediam os fatos, dos mais comuns, cotidianos, aos considerados heroicos, que se consagram
pela história oficial; a minha chegada na história assim se fez interligada com os lugares onde
moravam os personagens, onde viviam. Não o passado abstrato. Creio que a arquitetura foi
importante para eu ser um historiador um pouco melhor. Era importante imaginar mais pre-
cisamente o espaço, não só o tempo. Ler sobre os lugares, ver e estudar os lugares amplia a
nossa percepção sobre a cena passada. E a iconografia estava me fascinando... Entre 1972 e
1975, escrevia matérias mensais sobre história da fotografia para o Suplemento Literário de
O Estado de São Paulo.
Eu comecei a minha pós. Passou muito tempo desde a minha formação. Eu já tinha um
nome razoavelmente conhecido como fotógrafo. Em 1970, eu tive três fotos minhas adquiri-
das pelo MoMA. Eu estava nas nuvens. Pouco depois, tive obras no Metropolitan Museum de
Nova Iorque, no Smithsonian de Washington, na Bibliothèque Nationale de Paris. Mas isso não
era suficiente para mim, o importante era mais conhecimento de raízes... A história me fascina-
va. Eu pensava: “Poxa! Mas dá para a gente recuperar a história através da imagem?”. Sabia
que era necessário estudar e aprofundar questões filosóficas sobre o papel da imagem na his-
tória, sentia que um mundo de conhecimentos e experiência ainda faltava na minha formação.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 499-520, setembro-dezembro 2018 499
Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

Comecei a pensar coisas assim e iniciei a minha pós na PUC-SP, na área de História, em
1977, num momento horrível, quando a universidade foi invadida por aquele Erasmo Dias3. Eu
me lembro que naquela mesma manhã eu tive aula e, à tarde, vim a saber do que acontecia.
No nosso curso, vinham falar professores como Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Carlos Gui-
lherme Motta, entre outros. Fiz amizade com o Prof. Ianni e, muitos anos depois, ele escreveria
o prefácio da segunda edição do livro Olhar europeu: o negro na iconografia brasileira (edição
da Edusp), escrito em coautoria com a historiadora e também professora da USP, Maria Luiza
Tucci Carneiro, que seria minha companheira de vida. O livro foi publicado em 1984 e uma
segunda edição saiu nos anos 1990. Logo depois, Ianni faleceu.
Eu conversava muito com o Florestan também. Eu falava: “Você acredita na iconogra-
fia?” Ele falava: “Xi! Iconografia?” “É, iconografia e história.” Grandes papos. Bom, lembro
que a minha professora lá na PUC era a historiadora Estefânia Fraga, e eu formava, com mais
três colegas, um grupo muito entrosado, pesquisávamos com afinco os temas dos trabalhos
requeridos. É o que lembro daquele meu começo de mestrado. Estudávamos a República
Velha. Esse era o grande tema do curso e, dentro daquilo, você tinha que achar um filão. Tra-
balhávamos com a industrialização na cidade e as moradas dos imigrantes. Eu pesquisava a
iconografia por minha conta, porque adorava o tema e porque acreditava nessa ideia.

O tema do fotógrafo franco-brasileiro Hércules Florence4 já tinha aparecido?

Sim, ele atropelou a minha vida e aconteceu um pouco cedo demais. Eu tive que es-
perar muito tempo, 40 anos, quando o mundo começou a publicar. Acabou de sair a edição
americana e inglesa, pela Taylor & Francis; pela L’Harmattan, de Paris em 2016, pela Cátedra,
de Madri, em 2017; pela Lit Verlag, de Viena/Frankfurt, em 2015 e, também pelo Instituto
Nacional de Antropologia e História, do México, ainda em 2004. Fiz conferências na Espanha,
França, Estados Unidos, México, Argentina. O “desgraçado” (eu mesmo), resolveu continuar
vivo, para ver essa volta do pião...

Você ainda estava na pós-graduação na PUC?

Sim, cursava duas disciplinas. Uma era de Filosofia, centrada na Fenomenologia de Hus-
serl, ministrada pela professora Maria Fernanda Farinha Beirão. Os estudos da fenomenologia
foram decisivos para as minhas reflexões sobre a fotografia; foi um curso que ampliou meus
horizontes, muito aprendi com a Fernanda e com a Fenomenologia. Muitos anos depois do
curso, ainda mantinha com ela uma grande amizade. Lamentavelmente, ela faleceu muito cedo.
A outra disciplina era de história, estudávamos a Primeira República, como já disse. Me
propus a analisar imagens da Fanfulla, entre outras publicações da primeira década do século
XX, os meninos, as crianças, filhos de imigrantes trabalhando com máquinas de tecelagem,

500 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 64, p. 500-520, maio-agosto 2018
Entrevista com Boris Kossoy

sem proteção, perdendo os dedos, crianças de 8-9 anos. Bom, mas por que isso? Para mim, a
fotografia é documento histórico. É documento. Bom, a minha professora ficou um pouco hor-
rorizada com esse acento especial na iconografia... Eu queria continuar trabalhando também
com essa metodologia para a minha dissertação, tendo São Paulo nesse período como tema
de fundo, mas a partir da documentação, não apenas a linguagem escrita, mas também as
imagens, a documentação visual.
A percepção da fotografia entendida como fonte histórica ainda era vista com descon-
fiança, afinal, as imagens sempre foram utilizadas como “ilustrações” dos textos. Essa era a
mentalidade, um retrato do tempo em relação às questões da imagem. Percebi que não tinha
muito espaço para seguir com a iconografia histórica e decidi desenvolver meu projeto na
Escola de Sociologia e Política. Nesse momento, as discussões estavam fervilhando na minha
cabeça e uma mulher surpreendente, inteligente, dinâmica, chamada Waldisa Rússio me con-
vidou para ministrar cursos, em nível de pós-graduação, de Museologia.
O mundo dá voltas. Depois, fui participar da banca da Waldisa de doutorado. Para o curso
de Museologia, ela convidou também o Fábio Magalhães. Marcelo Mattos Araújo, que hoje
preside o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), foi meu aluno. Toda uma geração de mu-
seólogos passou por esse curso: Cristina Bruno e outros foram todos meus alunos. Eu puxava
as “oreia” deles [risos]. Ministrava uma disciplina chamada “Pesquisa em museus, arquivos e
bibliotecas”, e “Pesquisa iconográfica e análise de informações”. Por conta disso, publiquei
um opúsculo: A fotografia como fonte histórica: introdução à pesquisa e interpretação das
imagens do passado. Estudava dia e noite Teoria da História, para ver se alguém mencionava
algo sobre o papel da imagem na pesquisa e reflexão histórica... Era muito raro.
Aí, eu fiz amizade com o professor José Honório Rodrigues, um grande carioca, intelec-
tual maior. Foi um amigo do coração. Um dia, eu estive na casa dele, morava nas Laranjeiras.
Era um apartamento amplo, mais parecia uma enorme biblioteca. Fui várias vezes visitá-lo
quando ia ao Rio. Nós conversávamos, eu falava sobre iconografia e ele apreciava. Foi uma das
primeiras pessoas a também se importar com a iconografia na História. Uma vez, fui visitá-lo
e a esposa me recebeu. Mal eu entrei, me deu uma bronca: “Você vai escrever isso do José
Honório?! Como é que você escreve um negócio desses?!”. E não me deixava responder. E eu
sem entender o que estava acontecendo. “Mas fazer uma crítica desse tipo?!”. E eu continua-
va sem entender o que estava acontecendo. Ele falou: “Não, não... Você está pensando que é
o Boris Fausto, esse é o Boris Kossoy!”. [risos] Eu levei uma baita bronca por causa do Boris
Fausto... Ela ficou sem jeito e tal. Essa é uma história boa. E ele me prezava muito, gostava
dos meus trabalhos.
Bem, voltando, o ano era 1978 ou 1979... Minhas preocupações teóricas acabaram re-
sultando neste opúsculo5, no qual comecei a sistematizar conceitos e propor aplicações de
métodos de análise da fotografia como fonte e como objeto de investigação em si mesma. Já

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 501-520, setembro-dezembro 2018 501
Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

tinha começado isso no meu doutorado, em que propunha refletir sobre a imagem fotográfica,
suas pistas, e como a fotografia também nos despista. Porque a fotografia, afinal, é aparência,
e aparência e ficção se confundem numa eterna ambiguidade. Comecei a me preocupar mais
com a problemática da representação e da construção documental da ficção, no segundo livro
teórico: Realidades e ficções na trama fotográfica, resultado das reflexões que se seguiram.

O primeiro Fotografia & História foi publicado originalmente em 1989 pela editora
Ática, para a série Princípios.

Sim, a primeira edição pela Ática, e as demais pela Atêlie Editorial. Modéstia à parte, está
entrando na sexta edição. Para um livro de academia, não está mal.

Seu mestrado havia sido sobre o fotógrafo Militão Augusto de Azevedo.

Sim, depois todo mundo ficou especialista em Militão... A ideia era trazer à luz maiores da-
dos sobre essa figura única que era o carioca Militão Augusto de Azevedo, ex-ator de teatro, que
se interessara pela fotografia como profissão e decidira atuar em São Paulo, ainda um burgo de
estudantes, nas palavras do historiador Ernani Silva Bruno. Militão é, a um só tempo, o fotógrafo,
mas também, o diretor de teatro que recebia em seu estúdio — ou palco — os personagens de
diferentes classes representando seus papéis sociais. Retratos sem preconceitos é o que vemos
em sua extensa obra desenvolvida por mais de duas décadas. De outra parte, pretendia destacar
a importância de sua obra de registros da cidade como instrumento metodológico para a recu-
peração da cena urbana paulistana. Através de fotos tomadas dos mesmos ângulos de uma série
de logradouros, em 1862 e 1887, Militão realizou um documento de inequívoca importância
para o estudo das modificações urbanas e sociais ocorridas naquele intervalo. O álbum compa-
rativo de Militão constitui-se em projeto sem precedentes na fotografia brasileira do século XIX.
Já no meu doutorado, “Elementos para o estudo da fotografia no Brasil no século XIX”, o projeto
foi muito mais abrangente, pois abarcava as formas da irradiação da fotografia no Brasil a partir
de seus inícios e, ao longo do século XIX, tema que foi analisado em conexão com o contexto
socioeconômico e a estrutura urbana das diferentes regiões do país6. Independentemente da
investigação e reflexão histórica nesse trabalho, continuei aprofundando as questões teóricas
que resultaram na publicação em separado, mencionada antes7.

Parece muito claro como, 30 ou 40 anos depois, você inaugurou um modo de pes-
quisar, um campo de estudos, seja na História, seja na Comunicação, seja na própria
Museologia. Mas naquele período era tudo muito novo, como você mesmo destaca.

Eu tive “problemas” com a minha fotografia, que ninguém entendia... Toda aquela fan-
tasia da juventude, dos quadrinhos e dos romances de mistério... Depois, com Conan Doyle,

502 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 64, p. 502-520, maio-agosto 2018
Entrevista com Boris Kossoy

Edgar Allan Poe etc... Depois, passando por Cortázar, Márquez, Borges, Bioy Casares e o ca-
minho do realismo fantástico, que entrou nas minhas veias. Minha fotografia seguiu por essa
trilha: o maestro regendo no cemitério8 e toda a questão política que vivíamos no momento
estava lá. E os manequins despedaçados no lixo? Que são as fotografias que o MoMA gostou.
Eu estava fazendo uma denúncia, de uma forma simbólica. Acontece que a imagem é aquilo
que ela mostra, é a aparência. E se a mentalidade e a cultura visual das pessoas apenas es-
tacionam na imagem e não passam dela, você não está mostrando nada para ninguém. Os
fotógrafos eram os que menos entendiam. E perguntavam: “Por que você faz isso?”.

E você tinha contato, por exemplo, com fotógrafos como Thomaz Farkas e Jean Manzon?

Tinha excelente contato com eles, assim como com German Lorca, Sergio Jorge, Armando
Rosário, Georges Racz, Eduardo Castanho, Hans Gunter Flieg, entre muitos outros. Diante
dessas pessoas, meu trabalho aparecia e teve muita divulgação. Eu mencionava antes a curio-
sidade de colegas fotógrafos, em especial os que eram unicamente vinculados ao trabalho
profissional, pouco preocupados com uma fotografia pensada, de expressão pessoal. “Mas
por que você faz isso? Isso é montado!”. Ponto. Outra dificuldade eram os acadêmicos, que
questionavam o emprego da imagem, da iconografia para estudar a história. Então, dos dois
lados aconteceram coisas assim, curiosas, reflexo daquele momento ainda distante de um
debate acerca da fotografia como meio de conhecimento e forma de expressão artística, inde-
pendentemente de seu uso em aplicações utilitárias.
Finalmente, a questão da imagem no museu. Creio que transmiti esse modo de pensar
a imagem fotográfica para as primeiras turmas dos alunos de Museologia, em 1978 e 1979.
A gente tinha excelentes discussões. Museografia e museologia sempre me interessaram de-
mais. O curso era dado no MASP e o vínculo acadêmico era com a Escola de Sociologia e
Política. Em 1980, eu fui convidado para o MIS.

Mas você já estava no Conselho do Museu da Imagem e do Som, não é?

Eu fazia parte do conselho de orientação do MIS. Foi concomitante com o doutorado.


Eu fui chamado, na época, pelo secretário de Estado da Cultura, Max Feffer. Foi ele ou o
Mindlin que criaram as comissões das diferentes áreas de artes e cultura para a Secretaria.
Ele me convidou para presidir a Comissão de Fotografia e Artes Aplicadas da Secretaria da
Cultura. Eu achei que era um desafio motivador e, ao mesmo tempo, levei um susto diante
da responsabilidade. Fizeram parte: Ricardo Ohtake, arquiteto e designer que eu convidei, e
depois também dirigiu o MIS e que, mais tarde, foi Secretário de Estado da Cultura e, desde
muitos anos, presidente do Instituto Tomie Ohtake; Júlio Katinsky, da USP, também arquiteto
e professor; Eduardo Castanho, excelente fotógrafo, que foi meu aluno — e uma das minhas
melhores crias — na Faculdade de Comunicação Anhembi.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 503-520, setembro-dezembro 2018 503
Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

A ligação com o magistério começou bem cedo para mim: em 1972, dei início a essa carrei-
ra, justamente na Faculdade de Comunicação Social Anhembi. Em 1978, fui para a Museologia,
onde ministrei cursos durante dois anos. Um pouco antes, eu já tinha tido ligação com a área dos
museus, porque o Prof. Bardi tinha me convidado, em 1976, para ser o diretor do Departamento
de Fotografia do Masp, onde fiquei até 1978. Então, foi essa corrente de engates.

Ser diretor de Fotografia no MASP, nesse período, significava pensar um acervo de


fotografia para o Museu de Arte?

Significava pensar um acervo e planejar projetos de exposições que pudessem estabele-


cer uma coerência temática e estética — nós estamos falando de 40 anos atrás — e, inclusive,
exposições históricas. E foi lá, então, nesse contexto, que eu acabei fazendo a curadoria de
uma exposição sobre a história da fotografia no Brasil — creio que a primeira nessa temá-
tica a ser realizada no país. Bom, museus. Eu tinha experiência do MASP; depois, no MIS, foi
intenso, realmente muito intenso. Primeiro, a Comissão de Fotografia e Artes Aplicadas da
Secretaria, depois o conselho do Museu da Imagem e do Som, a partir de 1978.

Você era doutorando, dava aula de museologia e participava dessas comissões.

Isso. Estavam fervilhando essas diferentes áreas e atividades sobre a imagem fotográfica
na minha cabeça.

E, olhando esse período com distanciamento, dá para dizer que você encontrou um
terreno mais fértil para falar sobre fotografia como fonte em museus do que na
própria academia?

Isso, sem dúvida. Em relação à academia, comecei a perceber nos alunos um interesse
gradativo em termos de uma reflexão sobre imagem e cultura, que é o que me interessava.
Mas isso foi muitos anos depois, durante os anos 90.

A sua entrada em museus não está descolada de onde se pensava a fotografia, o


lugar da fotografia como fonte, como documento.

Sim, na museologia me entenderam muito mais rápido. Por quê? Porque eles trabalham
com coleções fotográficas, porém tinham dificuldades em como lidar com essa documentação
tanto do ponto de vista técnico, como em explorar as informações do artefato fotográfico
sob uma perspectiva cultural. Quero dizer, sabiam de sua importância, mas se ressentiam de
metodologias para aplicar a essa documentação enquanto meios de conhecimento e objetos
museológicos. E como preservar isso? Como guardar? Como indexar? Tudo estava por fazer.

504 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 64, p. 504-520, maio-agosto 2018
Entrevista com Boris Kossoy

Era o começo de tudo isso. Nesse momento, também a Funarte começa a se interessar, através
da Solange Zúñiga, sobre questões de preservação e conservação de acervos. Começam os
primeiros cursos. Pessoas viajavam para o exterior, Europa e Estados Unidos. Aprendiam e
voltavam já com uma bagagem importante de conhecimentos.
O estudo da fotografia na área de comunicação também estava no início e ficava muito
encerrado nas questões da técnica, do laboratório, no modo de revelação do filme, na luz... E
reflexão, niente, nada sobre o pensamento fotográfico. Isso, infelizmente, perdurou por muito
tempo, vem até agora, até anteontem. Anos atrás, começaram a perceber a ausência de um
pensamento fotográfico no Brasil, finalmente. Décadas antes, eu já havia publicado os livros
teóricos9. A partir do final dos anos 90, foi notável o crescimento de trabalhos acadêmicos
sobre a fotografia em suas diferentes manifestações artísticas, científicas e culturais. Disserta-
ções e teses foram apresentadas em todas as regiões do país.

Com relação ao período no Museu da Imagem e do Som, além da sua entrada de


conselheiro, fale da passagem para a condição de diretor. Que circunstâncias te le-
varam? Era algo a que você aspirava?

Não esperava, teve a ver com a conjuntura. A partir de 1978, o MIS começa a fazer
exposições de fotografia. Eu, como conselheiro, sugeria uma maior atenção à fotografia no
contexto das atividades do Museu. O projeto que desenvolvíamos na Comissão de Fotografia
e Artes Aplicadas da Secretaria da Cultura encontrou positiva recepção por parte dos conse-
lheiros do museu, do público que frequentava a instituição, como também pela imprensa, o
que pode ser constatado se alguém resolver pesquisar a nossa atividade naquele período. Não
sei se alguma vez chegaram a ver isso: Estação da Luz, Vale do Ribeira, Fazendas do Oeste
Paulista foram projetos que o nosso grupo da Comissão de Fotografia da Secretaria planejou e
realizou. E esses projetos ganharam visibilidade não apenas pelo conteúdo, mas também pela
sua coerência e continuidade pela forma como eram apresentados.
A gente chamava um determinado fotógrafo e o convidava para a documentação foto-
gráfica. Convidámos fotógrafos como o Antônio Carlos D’Ávila, excelente profissional e aca-
dêmico que, infelizmente, faleceu muito cedo, aos 40 anos. Era muito querido. Chamamos
para que ele elaborasse uma documentação fotográfica da Estação da Luz e Odilon Nogueira
de Matos, historiador antigo de Campinas, para escrever sobre as ferrovias do Estado de São
Paulo. Assim funcionava o projeto, com imagens e textos sobre determinado tema, formando
conjuntos coerentes e expressivos. Outro projeto teve como convidado o historiador José Ro-
berto do Amaral Lapa, da Unicamp, apenas para mencionar alguns. Cada um desses trabalhos
dava origem a uma publicação. Assim produzíamos imagens e história.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 505-520, setembro-dezembro 2018 505
Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

Isso tudo como conselheiro?

Como conselheiro. Fazíamos a exposição fotográfica no MIS e a difusão junto ao público,


através de uma publicação, que já mencionei, muito cuidada sob o aspecto da programação
visual, gráfica. A partir daí, criamos os Cadernos do MIS. Estão percebendo como as coisas
foram se alinhavando? Tudo girando em cima de uma mesma ideia, em 1978, quando o Rudá
de Andrade ainda era o nosso diretor, pois estava lá desde a abertura do MIS, em 1970.

Antes da entrevista, falávamos que o MIS do Rio tinha uma ênfase maior em música
popular. Em São Paulo, em razão do Paulo Emílio Salles Gomes e do Rudá, a ênfase
maior era em cinema?

Penso que sim. A frequência para as sessões de cinema era enorme e, para isso, contri-
buiu muito a divulgação generosa que fazia a imprensa da nossa programação. Nosso progra-
mador de cinema era o Bernardo Vorobow. O MIS vivia lotado, todos os dias, com exceção de
segunda-feira, que estava fechado.

Era conhecido como um museu novo, de ponta, de vanguarda? Tinha essa marca,
nos anos 1980?

Sim, tinha essa marca, definitivamente. Tínhamos uma ligação muito forte com a Cinema-
teca Brasileira. A gente tinha correspondentes no Rio e na Bahia. Durante toda a minha gestão
e, obviamente, desde antes, a programação era mandada um dia antes ou, no pior dos casos, na
manhã do dia da exibição, para a Censura Federal. Várias vezes, tive que conversar com eles. A
programação tinha que ser submetida e tinha que ter o OK, porque se trata de uma instituição
pública, aberta ao público e, além disso... Nós ainda vivíamos os anos de chumbo.

Você teve algo censurado ou não pôde exibir algum filme?

Não me lembro, mas houve alguns puxões de orelha e muitos avisos. Aí é 1981, já está
um pouco mais light. Se bem que não tão light... O cinema continuou com uma programação
forte, tínhamos apoio incondicional do Instituto Goethe, que promovia conosco ciclos de ci-
nema. Trouxemos até Werner Herzog, isso em julho de 1980, pouco antes de iniciar a minha
gestão. Tínhamos apoio do Consulado dos Estados Unidos, França, Alemanha e outros países.
Caía gente do teto. E a imprensa dava muita atenção ao nosso trabalho, como já disse. Rozy
Strozenberg respondia pelo nosso setor de imprensa, profissional muito competente que fez
um trabalho admirável juntos aos veículos. Não posso me queixar de falta de divulgação.
Nossa tarefa se dividia basicamente entre as atividades para o público, constantes de
cinema, exposições, palestras, colóquios etc., e a atividade da produção documental, cujo alvo

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Entrevista com Boris Kossoy

era, afinal, a multiplicação das informações. Exemplo disso era o trabalho diário do Setor de
Documentação, catalogando, indexando os documentos do nosso acervo e atendendo ao pú-
blico de pesquisadores, incluindo a reprodução de documentos. E, naturalmente, o Programa
de História Oral, que era um dos vetores da produção documental. O Programa passou a ter
uma dinâmica interessante em termos contemporâneos, o que pode ser verificado pelo que
foi produzido e feito na minha época. Vinha gente ao Setor de Documentação para ouvir: “Eu
gostaria de ter uma cópia do depoimento do Sérgio Buarque de Holanda”. Ou então, do Ado-
niran Barbosa, do Pedro Luiz etc. Lembro quando era garoto e ouvia o Pedro Luiz irradiando
o futebol. Tinha aquele outro, Fiori Gigliotti e seu clássico: “Abrem-se as cortinas... Do lado
de lá, no Pacaembu, a concha acústica; do lado de cá...”. Eles eram mestres em fazer você
imaginar. E eu imaginava, não tinha nada a ver com a realidade. Depois, eu fui ver que o Pa-
caembu é completamente diferente. Mas, para mim, ele ia daqui até Marte, pela forma como
eles enfeitavam. Então, o rádio também foi um instrumento cultural importante na formação
do nosso imaginário.

Você acompanhava todas as gravações, de todas as áreas? Como era a sua supervisão?

O que eu podia acompanhar eu acompanhava, obviamente. Todas da série “Estudos


Brasileiros”, ou quase todas. De “Futebol”, acompanhei muitas delas... Criamos todas essas
áreas, mas sempre trocando ideias com o conselho de orientação e ouvindo colegas da uni-
versidade que eu respeitava.

Pelo que tem de registro, foi uma época em que o MIS estruturou a sua documentação.

Sim, levamos a cabo um levantamento de tudo que havia. Isso foi patrimoniado e eu dei-
xei isso feito. É um trabalho que não aparece, mas isso era uma necessidade e uma obrigação.
Quando deixei o museu, todo o acervo estava documentado, tudo.

Hoje, o MIS declara no seu site mais de 200 mil itens no acervo. Muita coisa certa-
mente começou nesse período...

Não tem dúvida. Minha familiaridade com o documento escrito e o visual fazia parte da
minha bagagem, tinha um carinho todo especial com o nosso Setor de Documentação e uma
preocupação constante em tornar seu conteúdo acessível ao público interessado.

E a criação de um Programa de História Oral?

Para mim, 1980 era o começo de um real entendimento do uso de fontes orais para o
estudo da História, era tão novo quanto o emprego da fotografia como documento histórico

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 507-520, setembro-dezembro 2018 507
Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

e social. Quando comecei a me aprofundar em Teoria da História, alguns autores falavam


que três são as fontes: escritas, visuais e orais. Essas últimas duas não eram consideradas um
documento ou fonte. Vamos usar o termo fonte, que é mais correto. Mas o que prevalecia era
sempre a fonte escrita. Alguns autores falaram disso e isso me encantava. E aí, então, as fontes
orais, os depoimentos e as entrevistas. Buscar entrevistas com descendentes daqueles que
viveram aquele momento e saber dar o desconto para os depoimentos que são feitos, até onde
que você pode se fiar ou não, cruzar informações, para que esteja mais próximo da realidade.
Pensando a imagem como testemunho, ela perde completamente o sentido, quando fabrica-
da, modificada. Entretanto, de um modo ou de outro, é a aparência o que vemos. Temos que
decifrá-la. O oculto e o aparente fazem parte da minha obra, tanto da minha obra fotográfica
como da minha obra enquanto historiador ou teórico. O segredo do aparente está no oculto.

Voltando à série História Oral do MIS... Aí você criou o programa com dezoito projetos?

O que é que eu fiz? Chamei pessoas da academia: a Olga Von Simson, socióloga, condu-
ziu o programa do Carnaval Paulistano. Era ela e a Professora Maria Isaura Pereira de Queiroz.
Tínhamos muita afinidade, porque eu fazia parte do Centro de Estudos Rurais e Urbanos
(CERU) na Universidade de São Paulo, dirigido pela Profa. Maria Isaura. Por outro lado, sabia
da capacidade da Olga para coordenar esse projeto.

Olga e Maria Isaura propõem a você o programa de Carnaval?

Elas fizeram a proposta e eu acolhi. Então, eu vou ligando os pontos. Isso me faz lembrar
o Bardi, quando falava do MASP: “Boris, este é um museu vivo, não é um museu morto...”. Eu
fiz a primeira exposição de fotografia num museu no país ainda em 1949. Comecei a fazer ses-
sões de cinema no museu. As pessoas ficaram horrorizadas”10. Eu já tinha ouvido essa história
dele, do museu vivo. Porque a gente está acostumado com aqueles arquivos e a mentalidade
de determinadas pessoas dessas instituições, enciumados em relação aos pesquisadores e as
suas necessidades de cópias ou reproduções dos documentos. Estou falando de um tempo em
que obter reproduções fotográficas de um documento era uma epopeia.

E o Programa de História Oral sobre futebol?

Era coordenado pelos professores José Sebastião Witter e o José Carlos Sebe Bom Meihy.
O pessoal da academia me acompanhava, tinha uma abertura para gente da academia, do
cinema, das artes. Eu estava vibrando de fazer aquilo tudo, não saía de lá, chegava por volta
de oito e meia e ia embora meia-noite, todo dia. Era fascinante o que estava acontecendo. E
não havia verba. Nossa verba era escandalosamente ridícula... Porque a cultura sempre foi o
último vagão do carro social.

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Entrevista com Boris Kossoy

Você disse que a Olga leva o projeto do Carnaval Paulistano. E o Sebe levou o de
Memória do Futebol?

Sim, ele e o Witter, como já disse. E coube também ao Sebe coordenar o projeto “Me-
mória de Taubaté”. Voltando ao futebol, tivemos também a colaboração do Moacir Japiassu,
não me recordo de que órgão de imprensa. E o Juca Kfouri também fez parte. Poxa vida! Aí, a
gente sentava para almoçar e tinha enormes ideias.

O Witter também estava à frente do Arquivo Público do Estado de São Paulo, à época.

Por muitos anos, creio que ele permaneceu duas gestões, pelo menos. Mudou o governo
e ele continuou. Ele foi um excelente diretor.

E quanto à série Estudos Brasileiros: a ideia é sua?

É minha e do Ernani Silva Bruno, que foi um grande conselheiro e amigo. Ernani coorde-
nou o projeto Estudos Brasileiros. Sebe e Witter, o Futebol. Olga, o Carnaval, Máximo Barro,
o Cinema Paulistano da Década de 50. A continuidade e o método deram consistência ao
programa.

E, somando, eram dezoito projetos. Mas alguns já vinham dos anos 1970, certo?

Não. Eu pensei um Programa de História Oral com uma estrutura específica. Antes, havia
depoimentos esparsos, apesar de muito importantes. Nós pensamos a metodologia. Exemplo:
vou entrevistar o Florestan Fernandes. Quem vai estar presente para serem os perguntadores?
A riqueza do depoimento depende da qualidade das perguntas e isso só acontece em função
do conhecimento e da cultura dos entrevistadores. Era necessário gente que conhecesse a
obra do entrevistado e que tivesse alguma coisa para contribuir, para que se extraíssem in-
formações interessantes sobre determinado tema. Quem é que participava? Carlos Guilherme
Mota, Gabriel Cohn, Alfredo Bosi, Antonio Cândido, entre outros, e o Ernani coordenando.
Colaboravam Maria de Lourdes Julião, que trabalhava com o Ernani. Todos os depoimentos
eram documentados fotograficamente e gravados da melhor forma que nos era possível, con-
siderando os equipamentos da época. Estamos falando de quase 40 anos atrás.

A entrevista acontecia sempre no MIS?

Sempre no MIS. E as coisas andavam assim. O dia a dia era esse. Eu tinha uma excelente
secretária, Maria Lúcia Messa. Ela fazia todos os contatos e articulava as reuniões do Con-
selho de Orientação e demais atividades. Tem histórias que me emocionam muito. Eu estava
uma vez em Washington e me falaram que deveria conhecer a Biblioteca Oliveira Lima, da

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Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

Catholic University of America. Conheci o diretor, Manoel da Silveira Cardozo. Era um portu-
guês que estava na direção há 40 anos nessa biblioteca. Eu fiquei absolutamente fascinado ao
ver a coleção de imagens preservadas na instituição. Manoel de Oliveira Lima foi diplomata,
historiador e acabou os últimos anos dele em Washington. Foi muito pouco compreendido no
Brasil, teve desavenças e tal. Era um homem de uma cultura incrível. Foi embaixador no Japão,
em 1900. E tinha uma iconografia fantástica constituída de retratos de intelectuais da época
e de paisagens urbanas de diferentes partes do Brasil.
Eu falei: “Professor Cardozo, eu gostaria de expor esse material lá no meu museu. Mas
você vem junto.” [risos] “Ah! OK.” Naquela época, também trabalhava conosco o José Neis-
tein, diretor do Brazilian-American Cultural Institute (BACI), diretamente conectado com a
embaixada brasileira. Enfim, veio o Manoel Cardozo e, com ele, uma coleção preciosa de docu-
mentos. Eu fiz uma pré-seleção lá e depois, ela foi montada aqui. A exposição foi um sucesso
e foi acompanhada por palestras. O preço cobrado foi a reprodução dos documentos para o
MIS, todos absolutamente datados, identificados e colocados à disposição dos pesquisadores.
Em todos os projetos que participávamos, era condição sine qua non ter uma reprodução dos
documentos, de modo que esses materiais pudessem ser úteis à comunidade científica.
Assim, mesmo com a escassez das verbas, foi possível realizar essas exposições. Você
convence o Secretário que é importante, ele paga a passagem do sujeito. Era tudo conseguido
assim... Todo dia, tinha que matar um leão, era tudo conseguido na unha. E tudo através de
cartas e telefonemas. E telegramas. Você já ouviu falar de telegrama? Eu faço isso com os
meus alunos. De repente, eu viro para um e falo: “Você já ouviu falar de mimeógrafo?”. Lem-
bro-me de aulas em que o tema era a iconografia da cidade de São Paulo e perguntava: “Você
conhece o Largo de São Bento?”. “Você já ouviu falar das Arcadas?”. Eu fico bobo às vezes.
Muitos não sabem onde fica a Avenida São João.

Voltando ao Programa de História Oral, fale dessa preocupação de constituir uma


metodologia.

Era a preocupação de convidar pessoas que tinham a ver com a obra e seu autor. Nós
tivemos o Antônio Candido, o Hermínio Sacchetta, Rubens Borba de Moraes, Alice Canabrava
Ian de Almeida Prado, entre muitos outros. Era importante ter esse leque diversificado de pen-
samento sobre o Brasil. Então, a gente procurava saber quem era e chamava. Anita Novinsky,
grande especialista da Inquisição, o brasilianista Robert Levine, da Universidade de Miami,
entre outros. Era muita atividade.
Você cria, ao fim e ao cabo, uma coleção de informações valiosíssimas, de própria voz,
de testemunho, que dão validade àquele testemunho. Não estou falando de fidedignidade,
mas estou falando de autenticidade. A gente sabe que toda biografia, como todo álbum de
fotografias, resulta de uma seleção dos melhores momentos. Ninguém faz um álbum de fo-

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Entrevista com Boris Kossoy

tografias reunindo os parentes falecidos. Só antigamente, não é? No século XIX, o morto no


esquife era fotografado, porque, às vezes, era a única foto. Mas não no mundo da civilização
da imagem, em especial nas últimas décadas.

Podemos destacar essas frentes da sua gestão no MIS: o Programa de História Oral,
as exposições, a programação de cinema. Teria mais alguma?

Debates acalorados sobre os mais diferentes temas aconteciam muito em função da pro-
gramação e da produção documental. Além do que produzíamos e processávamos de forma
sistemática, recebíamos também muito material, discos de vinil. Não havia como conservar
esses discos, recebíamos e mandávamos para a Lapa, porque havia um setor lá que recebia
os discos. E tinha atendimento ao público, tanto no setor de visual como escrito e sonoro. Era
muito bonito de ver estudantes ouvindo depoimentos dias inteiros, iam e vinham. Uma vez, eu
recebi uma moça de traços orientais, falando um português perfeito: “Boris, eu tenho um pe-
dido a fazer. Sou doutora pela Universidade de Harvard, nós gostaríamos de ter uma cópia do
acervo” [risos]. Levou um ano copiando em fitas cassete fornecidas pela professora. Então, em
algum lugar de Harvard, deve haver uma cópia do acervo do MIS daqueles anos... Bem, acho
que falei anteriormente sobre as diferentes frentes de nossa atividade no MIS naquela época.

Hoje, a discussão, principalmente em torno dos acervos visuais, é que já nascem


digitais ou que estão sendo digitalizados. E isso muito em função da difusão. Mas
mesmo naquela época, já se tinha essa ideia de que isso é um material de fácil re-
produção, quer dizer, um acervo que nasce para ser compartilhado, reproduzido?

Não era de fácil reprodução. Cada imagem tinha que ser reproduzida, com a gente gas-
tando a nossa luz. Você podia ficar depois sem aquela lâmpada photoflood por três meses,
chorando, pedindo, porque está faltando. Minha ideia era a produção e a difusão do conheci-
mento. Por mais que pretendêssemos ser ágeis em termos de driblar os trâmites burocráticos,
além das dificuldades técnicas, tudo acabava sendo lento se compararmos com as condições
de hoje. O mundo digital facilitou a produção e a difusão das informações. A função social das
imagens é a sua multiplicação e difusão; fizemos o possível para cumprir essa meta.

Você desenha um acervo de museu para servir ao público...

Exatamente. Mas certos senhores de arquivos só permitiam reproduções com autoriza-


ções extremamente burocráticas, colocavam dificuldade, tinham ciúme dos documentos que,
afinal, eram públicos. O arquivo é dele, como se fosse um feudo. Atendíamos também institui-
ções públicas. Lembro-me do CPDOC, por exemplo, a quem atendemos à solicitação que nos
fizeram sobre fotografias da Revolução Constitucionalista de 1932. Fiz reproduzir para eles

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Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

nosso arquivo fotográfico sobre o tema, mantínhamos excelentes relações com eles. A ideia
era essa: produção, exibição e difusão do conhecimento. E é claro que, com a mídia digital,
com essa facilidade enorme de fazer as reproduções, o mundo mudou mesmo e, para a área
de arquivos, bibliotecas, museus, mudou também, não é? Mas me recordo bem que, para as
minhas pesquisas, naqueles anos de 1970 e 1980, garimpando documentação iconográfica
para a história da fotografia e imagens para o estudo do passado, em arquivos de diferentes
regiões do país, as dificuldades não eram poucas, como mencionei antes.

Então, foi um triênio, de 1981 a 1984.

Foi de outubro de 1980 a março de 1983. Então, fui despedido. Era bastante ingênuo.
Pensava que uma boa gestão e um bom trabalho para a comunidade significam um passa-
porte para você continuar a sua tarefa. Imagine! É justamente o contrário, competência é o
que menos conta. Tem dezenas de pessoas com os olhos desse tamanho, querendo aquele
teu lugar. Por isso, falei para mim mesmo: serviço público nunca mais. Foi muito desgastante,
mentalmente e fisicamente.

Houve continuidade?

De modo algum. Imediatamente após a minha saída, foi um horror, a partir da destruição
da Sala Hércules Florence. Eu acreditava piamente que, mesmo sendo um museu que não te-
nha exposições permanentes, como outros museus, ele deve ter uma sala permanente. Afinal,
neste país, sediou-se também uma descoberta independente da fotografia, que hoje é reco-
nhecida no mundo. Vamos ter a história de Florence aqui, as principais imagens reproduzidas,
além de câmeras fotográficas originais do século XIX que nos foram presenteadas pela Agfa.
Em 1981, eu recebi uma proposta da Bayer. A Bayer tinha comprado a Agfa, a famosa in-
dústria de produtos e materiais fotográficos, que mantinha um museu tão importante quanto
é o de Rochester, N.Y., da George Eastman House. Eram os dois maiores museus de artefatos
fotográficos e história da fotografia do mundo. Eu fui para Leverkusen e conheci de perto a
famosa coleção chamada “Fotohistorama”. Eram muitas salas e prédios contendo a história
da fotografia, desde os primitivos daguerreótipos até a fotografia contemporânea. É uma coisa
encantadora. Eu falei: “Puxa! Eu gostaria de expor a essência dessa exposição magnífica de
objetos fotográficos que vocês têm aqui”.
Era isso que eles estavam querendo também, para divulgar interesses da Alemanha no
Brasil e da cultura alemã. Transformei, então, o MIS num museu da fotografia, de cima até
embaixo. Tivemos uma visitação absolutamente impressionante. Nunca a Fotohistorama tinha
saído da Alemanha. Na mesma época, o International Center of Photography (ICP), de Nova
Iorque, queria também levar essa grande exposição, mas o interesse da Bayer-Agfa foi o de

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Entrevista com Boris Kossoy

apresentar a mostra no Brasil. E muita gente começou a se dedicar à fotografia por conta
dessa exposição, um sucesso monumental.

Foi em 1981?

Em 1981. A Fotohistorama nos doou algumas câmeras repetidas originais que man-
tinham em sua coleção. Expliquei que era uma sala dedicada ao inventor da fotografia no
Brasil e contemporâneo dos inventores na Europa. Infelizmente, essas câmeras despare-
ceram, arrancaram a placa da Sala Hércules Florence, assaltaram as vitrines, vandalizaram
a sala. É uma pena, as câmeras antigas eram fascinantes e estavam em perfeito estado.
Insistíamos na visitação de escolas para mostrar às crianças de diferentes condições socioe-
conômicas como uma tecnologia tão antiga e simples também se prestava para produzir
fotografias; a meta era desmistificar a sofisticação tecnológica das câmeras fotográficas
modernas (anos 80).

Quando?

Foi após a minha saída do MIS.

Era o mesmo secretário de Cultura?

Não, tinha mudado. Tinha mudado tudo. Até então, estava eu no MIS, o Witter no
Arquivo do Estado e o Fábio Magalhães na Pinacoteca. E era o governo Maluf. Era muito
interessante para a Secretaria da Cultura. Na minha época, era o Antônio Henrique Cunha
Bueno. No final da gestão dele — acho que ele saiu para se candidatar de novo –, entrou
o João Carlos Martins, o pianista. No Museu Paulista, era o Setembrino Petri, também
historiador. E aí, as coisas mudaram. O pessoal da academia ficou triste, perceberam o
desmanche que se aproximava. Recebi ligações do Florestan, do Sebe, do Carlos Guilherme
Mota, toda essa turma que sabia o que estávamos fazendo no museu. Minha saída do MIS
foi grosseira e deselegante, fiquei sabendo que tinha sido exonerado pelo Diário Oficial. Aí
já é governo Montoro.

Na entrevista concedida ao MIS em 1993, você comenta como esse Projeto de His-
tória Oral tinha muito a ver com o desejo de as pessoas começarem a falar. É o final
da ditadura, a academia ainda sufocada. Você sentia isso nos depoimentos?

Sim, coincide com isso. O programa era ir no MIS, porque sempre tinha alguma atividade
interessante, que não parava; e o debate era bem-vindo. A academia ainda se sentia reprimida
naquele momento, isso acabava transparecendo.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 513-520, setembro-dezembro 2018 513
Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

Você lembra o perfil do público?

Muito jovem e muito universitário. Foi a grande maioria. E pessoas de idade provecta
— essa eu tirei do baú –, também iam lá. O segredo da divulgação da atividade dos museus
é você, primeiro, buscar interagir com a comunidade e também trazer ao museu escolas das
diferentes regiões da cidade. As crianças adoravam percorrer os amplos espaços do museu.
Depois, isso vai espalhando.

O Museu da Casa Brasileira já era ali nas proximidades?

Sim, o Ernani Silva Bruno era o diretor do Museu da Casa Brasileira, historiador também.
Em seguida, foi transferido para o MIS. Foi um privilégio ter ele ao meu lado. A gente tinha um
bom relacionamento entre os museus, os do interior, também. Nós emprestávamos equipa-
mentos de cinema — que via de regra voltavam quebrados — para organizações de bairros.
Isso era outra coisa que a gente fazia, ininterruptamente. Emprestávamos projetores, câmeras,
equipamentos de som... Era aquilo que na Academia chamam de extensão à comunidade.
Tinha fila para emprestar, a começar pelas associações de bairros. Isso era muito legal e era
uma das funções do nosso museu.
Eu fazia questão de dizer que o Museu da Imagem e do Som difere, em sua proposta
básica, de um museu convencional. A matéria prima do MIS é o documento. Seu objetivo é
constituir-se permanentemente em um núcleo de levantamento, registro, preservação e di-
fusão de aspectos variados da memória nacional. São princípios. Isso já existia desde que o
museu foi criado. E as coisas que foram lá realizadas seguiam esses princípios. No primeiro
ano, gravou-se cerca de 100 depoimentos, o que representou um acréscimo de mais de 100%
aos realizados nos 10 anos anteriores. Isso no primeiro ano... E não era apenas o depoimento,
mas a transcrição deles; tarefa demorada e necessária. Pretendia ainda publicar esses depoi-
mentos. Faltou tempo e recursos para isso.

Quase um depoimento a cada três dias.

Não parava. O que teve lá? Música Brasileira, que envolve música erudita, popular, mú-
sica de cinema, o chorinho e música paulistana do começo do século XX; Cinema Paulista da
década de 1950; Fotografia; TV no Brasil; Revolução Constitucionalista.
Na série Estudos Brasileiros, entrevistamos o Gilberto Freyre, que fez um depoimento
fantástico. A partir daí, ficamos muito amigos. Além dele: Rubens Borba de Moraes, Alice
Canabrava, Antônio Candido de Mello e Souza, Heitor Ferreira Lima, Pasquale Petrone, Sérgio
Buarque de Holanda. Em Carnaval Paulistano: dona Sinhá, Zezinho da Casa Verde, Nenê da
Vila Matilde, Geraldo Filme, Madrinha Eunice... Uma produção documental que passou a exis-
tir, felizmente, instrumentos de preservação da memória histórica, artística e cultural do país.

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Entrevista com Boris Kossoy

Na série História do Futebol, por exemplo, tem o Marcos Carneiro de Mendonça,


goleiro da Seleção Brasileira, que ganhou o Sul-Americano de 1919, um depoimento
precioso.

E as pessoas da Revolução de 1932? Os comandantes estavam vivos ainda: Benedito Jun-


queira Duarte, o famoso B. J. Duarte. Além disso, tinham aqueles fotógrafos estrangeiros que
vieram para o Brasil e se radicaram aqui: Hans Gunter Flieg, Hildegard Rosenthal, entre outros
refugiados do nazifascismo. Tinha a Coleção Oliveira Lima, a Cultura Caipira, a mostra de música.
Tinham as aquisições. Nós recebíamos muitas doações. O Acervo Borges Schmidt, por exemplo,
foi recebido. As pessoas tinham confiança. Recebíamos também cartazes antigos. Tudo isso era
higienizado e documentado. Pôsteres, câmeras fotográficas, onze câmeras do Museu da Agfa,
coleção de negativos recolhidos pelo fotógrafo Avelino Ginjo, através da senhora Lídia.
Grande parte das fotos da Revolução Constitucionalista são desse fotógrafo, que era do
jornal A Gazeta. Tem ainda: Comemorações da Semana de 1922; Cinema na América Latina;
Estrada de Ferro Madeira- Mamoré; a Chapada Diamantina; a Família Imperial. São documen-
tos desse tipo que chegavam. Recebíamos o material sobre a Patrícia Galvão, a Pagu.
Eu queria falar para você que se interessa diretamente pelo programa “História do Futebol
Brasileiro”: eu tinha admiração pelo Gilmar dos Santos. Mas eu sou são-paulino e falei para ele.
Ele morreu de dar risada. Foi um grande goleiro, do Corinthians e do Santos. Além do Gilmar,
tinha o Pedro Luiz Paoliello, o Zé Maria, o Fiori Gigliotti, o Manolo (Manuel Cano Espallargas),
o Francisco de Moura Coutinho, o Raul de Andrade e Silva. Ah! Como torcedores da época. O
Djalma Santos, o Alfredo Ramos — eu gostava dele, porque ele era são-paulino —, o Marcos
Carneiro de Mendonça, o Juca Kfouri, o Oswaldo Brandão, técnico, o Nestor de Almeida, o
Hilderaldo Bellini, que levantou a Copa a primeira vez, bravo caipira do interior de São Paulo.
Leivinha, do Corinthians...

Você gostava de futebol?

Ah! Sempre gostei. O José Poy, goleiro do São Paulo, jogava com um bonezinho, Oberdan
Cattani, goleiro do Palmeiras. Luiz Mesquita de Oliveira, Alberto Chuairi, o famoso Turcão, be-
que do São Paulo. A gente chamava de beque de fazenda, porque ele dava um chutão assim.
E na música, entrevistamos o Adoniran Barbosa.

Impressiona como essas entrevistas de futebol estão todas fotografadas. Há o regis-


tro fotográfico, não é só o áudio, não é?

Todos os depoimentos foram fotografados, de todas as áreas. E só não eram filmados,


porque a gente não tinha como adquirir os equipamentos necessários. Todas as compras eram
feitas pela Secretaria, que nunca tinha verbas...

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 515-520, setembro-dezembro 2018 515
Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

Já no período anterior, por exemplo, Leônidas da Silva gravou o depoimento em


1976, não tem a foto do depoimento, ao menos no site.

Vocês conhecem isso? É a revista Cadernos da Imagem e do Som, com um levantamento


dos depoimentos realizados. Isso é precioso e está em estado de novo. Eu consegui que isso
fosse impresso no final da minha gestão. Então, pelo menos, ficou esse registro.

É incrível, já vi isso em referência bibliográfica.

A parte gráfica e visual está um horror, mas foi o que eles puderam fazer correndo.

Na apresentação, Antônio Houaiss diz: “O MIS ostenta hoje o conceito de ser um dos
mais ativos e criativos equipamentos culturais do estado”.

E a dotação que recebíamos era absolutamente ridícula. Mas a equipe que estava lá
trabalhava, era muito fiel, muito bacana, devotada mesmo, vestia a camisa, sabia que estava
fazendo uma coisa importante. Chegamos a montar uma pequena marcenaria para a monta-
gem dos quadros das nossas exposições segundo um padrão que foi desenvolvido pelo setor
museográfico, chefiado pelo Paulo Laurentiz.

Ainda com relação às entrevistas: elas eram com plateia ou eram fechadas?

Eram fechadas. Porque eu imagino um Adoniran falando hoje. Com alguns, era necessá-
rio fazer duas entrevistas.

Essa é uma questão metodológica: a História Oral deve ter público? Ou deve ser
algo reservado, para que se sintam na intimidade de falar?

Tem de ser fechada, porque sempre acontece o seguinte: existe manifestação. Não é que
tenha que ser como um tribunal, mas sempre há alguma manifestação, algum olhar, ou sorriso
ou atitude que distrai. Isso acaba constrangendo um pouco, ou o perguntador ou o próprio
entrevistado. Funcionou bem do jeito que foi, muito à vontade, sem palco nem plateia. E, se
eu tivesse mais um ano, faria mais um monte de coisas, principalmente publicações em torno
de nossa documentação e imagens.

Depois que você saiu do MIS, foi se dedicar à vida acadêmica?

Sim, à vida acadêmica e à minha carreira fotográfica. No entanto, há uma diferença de


base a assinalar: as interferências no setor público se fazem diretamente através dos próprios
equipamentos culturais disponíveis e encontram eco imediato no meio cultural, ao contrário

516 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 64, p. 516-520, maio-agosto 2018
Entrevista com Boris Kossoy

das acadêmicas que, em geral, tomam muito tempo até que se tornem percebidas e provo-
quem efeitos na vida social e cultural. Nesse sentido, foi uma experiência válida.

Mas você continuou acompanhando as instituições museológicas?

De longe. Minha aproximação maior foi com centros de documentação, como o do


Departamento de Informação e Documentação Artística (Idart), cuja sede inicialmente se
localizava na Casa das Retortas. Teve gente fantástica lá, desde o início: Décio Pignatari,
pesquisadores de nome, entre outros. Anos depois, o Idart foi absorvido pelo Centro Cultural
São Paulo, equipamento da Secretaria Municipal de Cultura e se transformou na Divisão
de Pesquisas do CCSP. Em 1995, fui convidado para dirigir a Divisão e Pesquisas. A Divisão
contava com várias áreas de investigação como cinema, fotografia, comunicação de massa,
literatura, artes plásticas, arquitetura, teatro. Ao longo de 25 anos, a instituição produziu uma
quantidade enorme de documentos que eram reunidos no Arquivo Multimeios, uma sala sem
nenhuma forma de proteção ambiental. Era absolutamente necessário criar um espaço ade-
quado para o Arquivo Multimeios, para preservar essa memória paulistana que reunia 600
mil documentos. Essa era uma das minhas condições para assumir a direção e, felizmente, fui
atendido nessa reivindicação. O espaço foi criado, o Arquivo passou a funcionar segundo as
normas técnicas de temperatura e umidade controladas. A documentação foi toda patrimo-
niada. Uma coleção de livros contendo os registros desses trabalhos de documentação das
manifestações artísticas e culturais da cidade de São Paulo referentes aos 25 anos de sua
criação foi publicada sob minha coordenação e com a edição dos volumes de cada área pelo
arquiteto Walter Pires, colega e amigo de muito tempo.

Hoje, na Secretaria de Cultura e em outros museus, o próprio MIS, o Museu da Imi-


gração, discute-se a importância disso como acervo. Isso virou o complemento para
outra peça de acervo. Então, por exemplo, você tem a fotografia como o principal e
aí, o depoimento oral como um complemento. Ou você tem a obra, uma escultura,
uma obra de arte, e o depoimento do artista como um complemento. Assim ficam
essas divisões entre o acervo museológico e o arquivo.

Foi necessário quebrar, romper com essa mentalidade tão fechada, em função do dono
do arquivo, da especialização, da escola de museologia tradicional. Essa era uma grande dife-
rença. O Icom, Conselho Internacional de Museus, reconhecia. Várias vezes, a representante do
Icom esteve aqui conosco. Nessa época, começou toda uma conversa sobre regulamentação
da profissão, quem pode ser reconhecido como museólogo. A questão se dividia entre quem
tinha o estudo e a formação e quem tinha uma experiência de trabalho em museu. Sempre
entendi o MIS como uma instituição que deve ser centrada no resgate, pesquisa, produção
documental e na sua ampla difusão. As exposições e o cinema eram comprometidos com a

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 517-520, setembro-dezembro 2018 517
Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi

cultura, com a arte, com a história. O espetáculo pelo espetáculo não fazia parte dos nossos
objetivos. Seja na área institucional quanto na acadêmica, tive sempre como objetivo, como
meta, a criação/produção de referências. Foi e segue sendo esse o meu projeto. Fizemos o que
foi possível naqueles dois anos e meio, naqueles últimos anos de repressão que marcaram
toda uma geração.

Eu vou ler o trecho de um texto seu para encerrar este encontro. O título é: O papel
do MIS na preservação do patrimônio brasileiro. Você termina dizendo: “Ressalta-
mos que o MIS não tem a finalidade de enfatizar o colecionismo de obras originais,
guardando então o patrimônio apenas para si, numa atitude nostálgica, mas sim
multiplicar o conteúdo documental das fontes, colaborando para que os mesmos se
tornem acessíveis à comunidade, democratizando, enfim, a informação cultural pas-
sada e contemporânea”. Isso é muito contemporâneo, muito.

Que bom! Eu fiquei muito feliz com esta entrevista, uma oportunidade de poder relem-
brar aquela experiência única e mostrar esse trabalho todo, que não é conhecido. Pouco se
sabe dessa obra.

518 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 64, p. 518-520, maio-agosto 2018
Entrevista com Boris Kossoy

NOTAS

1 Acesse a imagem através do link: <http://boriskossoy.com/projeto/anos-50-60/>.


2 A imagem pode ser acessada por meio do mesmo link mencionado na nota 1.
3 Refere-se ao coronel Erasmo Dias, então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo.
4Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879) foi um pioneiro na história da invenção da fotografia, cuja
biografia e cujo legado foram traçados por Boris Kossoy no livro Hercule Florence: a descoberta isolada da
fotografia no Brasil. A obra, lançada em 1977, alcançou três edições, sendo a terceira do ano de 2006, pela
Editora da Universidade de São Paulo, a Edusp.
5 Em A fotografia como fonte histórica: introdução à pesquisa e interpretação das imagens do passado (São
Paulo, Museu da Ind. Com. e Tecnologia de São Paulo – SICCT – 1980), Kossoy fundamenta, com base na obra
do historiador José Honório Rodrigues, a utilização historiográfica da imagem.
6 A tese de doutoramento de Kossoy deu origem ao livro Origens e expansão da fotografia no Brasil. século
XIX. Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1980.
7 A fotografia como fonte histórica, op. cit.
8 A imagem dos anos 1970 pode ser acessada na seguinte página do website: <http://boriskossoy.com/
projeto/viagem-pelo-fantastico/>.
9 Trata-se da trilogia teórica: Fotografia e história, Realidades e ficções na trama fotográfica (1999) e Os
tempos da fotografia (2007), todos pela Ateliê Editorial, São Paulo. Os três volumes reunidos deram origem à
obra Lo efímero y lo perpetuo en la imagen fotográfica. Madrid: Cátedra E., 2014.
10 Imita a voz de Pietro Maria Bardi.

Referências Bibliográficas

BARDI, Pietro Maria. Viaggio nell’architettura. Milano: Rizzoli, 1971, p. 24.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 519-520, setembro-dezembro 2018 519
Teses e Dissertações

Teses e dissertações
do Programa de Pós-graduação
em História, Política e Bens Culturais
(PPHPBC) do CPDOC/FGV defendidas
em 2018

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 521-537, setembro-dezembro 2018 521
Editorial

O olhar sobre as caricaturas de Belmonte


(1923/1927)

A luna : M arissa G orberg


Data da defesa: 11/01/2018 – Doutorado

Banca: Lucia Lippi Oliveira (orientadora), Vicente Saul, Antonio Herculano, Beatriz Resende
e Helena Bomeny

Resumo: Nos anos 1920, os intelectuais-artistas inauguravam formas de expressão sin-


tonizadas com um projeto de modernização que ganhava corpo em meio ao crescimento
das metrópoles, dos meios de comunicação de massa e da ampliação de seu público. O
paulistano Belmonte – que encarnou uma multiplicidade de funções, como caricaturista,
ilustrador, cronista, historiador, poeta e pintor – publicou, naquele período, um expressivo
conjunto de caricaturas nas revistas cariocas Careta e Frou-Frou, que retratavam o cotidiano
da burguesia metropolitana no ambiente privado e no espaço público. As transformações
dos arquétipos de gênero, da moda, dos rituais de sociabilidade, e os encontros entre uma
multiplicidade de domínios eram alguns dos temas contemplados sob o recurso da ironia
e da sátira, evidenciando complexidades e tensões que permeavam as relações daquele
grupo social. O objetivo deste trabalho é empreender um exercício de leitura dessas cari-
caturas, simultaneamente como fonte e objeto, entendidas como uma das faces da nossa
modernidade periférica. Utilizaremos o conceito de representação conjugado a estratégias
de análise do campo da história cultural como ferramenta metodológica, visando a mapear
ideias, valores e práticas presentes naquele momento. As caricaturas se revelam como ponto
de partida para propor uma reflexão sobre a construção de determinado modo de vida que
encontra ressonâncias na contemporaneidade, desnaturalizando convenções, aspirações e
a genealogia de uma série de comportamentos.

Diálogo, modernização e conflito. Uma


biografia do cardeal dom Avelar Brandão Vilela

A luno : G rimaldo C arneiro Z achariadhes


Data da defesa: 13/03/2018 – Doutorado

Banca: Américo Oscar Guichard Freire (orientador), Rodrigo Patto Sá Motta, Christiane
Jalles de Paula, Marcelo Timótheo da Costa e João Marcus Assis

522 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 522-537, setembro-dezembro 2018
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História

Resumo: Esta tese é uma biografia do cardeal dom Avelar Brandão Vilela (1912-1986). Este
prelado se destacou no cenário religioso e político do Brasil e da América Latina durante a
segunda metade do século XX. O arcebispo atuou muito tempo durante a ditadura civil-militar
brasileira (1964-1985). Mesmo neste momento de radicalização, ele procurou dialogar com
os vários setores da sociedade e da Igreja Católica, tornando-se um moderador dos conflitos
sociais e políticos. Ele também estimulou as mudanças que a Igreja Católica estava passando
durante a década de 1950, que foram legitimadas pelo Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-
1965). Dom Avelar foi um importante bispo modernizador latino-americano, e presidiu a II
Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, em 1968, que marcou a história da Igreja
Católica na América Latina.

A invenção da cidade inteligente rio: uma análise


do Centro de Operações Rio pela lente das
mobilidades, entre 2010 e 2016

A luno : J oão A lcantara de F reitas


Data da defesa: 28/03/2018 – Doutorado

Banca: Márcio Grijó Vilarouca (orientador), Bianca Freire-Medeiros, Bernardo Borges Buar-
que de Hollanda, Bernardo Lazary Cheibub, Carla Conceição Lana Fraga e Leticia Helena
Medeiros Veloso

Resumo: Em abril de 2010, o Rio de Janeiro passou por uma das suas maiores tragédias
recentes: as fortes chuvas que atingiram a cidade e o despreparo da Prefeitura para lidar com
situações de emergência resultaram na morte de mais de 300 pessoas. Simultaneamente, a
cidade estava se preparando para sediar megaeventos como a Rio+20, a Jornada Mundial da
Juventude, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, e uma série de empresas multinacionais
buscavam desenvolver parcerias com a Prefeitura, de forma a aproveitar a superexposição do
Rio. Com o apoio da IBM, foi inaugurado no fim de 2010 o Centro de Operações Rio (COR):
uma sala de controle que monitora todas as câmeras da Prefeitura e reúne sob o mesmo teto
representantes de cerca de 30 agências municipais, concessionárias que atuam na cidade, e
forças de segurança. Inicialmente, o objetivo do COR era criar um protocolo de ação e diminuir
o tempo de resposta para eventuais emergências. Não obstante a esta função, o centro passou
a ser muito importante na gestão das mobilidades urbanas e na preparação da cidade para
os megaeventos. Ainda que outras cidades no mundo utilizem salas de controle para auxiliar

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 523-537, setembro-dezembro 2018 523
Editorial

a gestão urbana, este modelo multitemático se mostrou bastante disruptivo e, de certa forma,
qualificou o Rio de Janeiro como smart city. O objetivo da presente tese é entender, por meio
das lentes do Paradigma das Novas Mobilidades, o processo de invenção (Wagner, 2010) do
Rio de Janeiro como cidade inteligente.

Processos de construção de lugares de memória


da resistência em Salvador: projetos, disputas e
assimetrias

A luna : P riscila C abral A lmeida


Data da defesa: 27/04/2018 – Doutorado

Banca: Leticia Ferreira (orientadora), Icléia Thiesen, Angela Moreira, Luciana Heymann,
Marcia Chuva e Maria Guiomar Frota

Resumo: A luta política pela construção de memoriais associados à ditadura civil-militar


brasileira (1964-1985) vem ganhando destaque na última década no Brasil a partir do enten-
dimento de que a preservação, o financiamento e a manutenção destes lugares de memória
são políticas de Estado, legitimadas por instrumentos como o III Plano Nacional de Direitos
Humanos (PNDH-3) e o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Os projetos e
processos de construção dos lugares de memória da resistência são protagonizados por agen-
tes situados no campo de disputas por memória, verdade e justiça, conformado pelo recente
contexto de aprofundamento da justiça de transição no País. Partindo do pressuposto de que
a articulação destes agentes em busca da legitimação dos lugares de memória da resistência
configura uma estratégia para inscrever fatos e histórias no imaginário social, esta pesquisa
tem como objetivo descrever como esses projetos e processos são marcados por disputas e assi-
metrias entre esses agentes, assim como nas suas interações com o poder reificado pelo Estado.
Situada e relacional, esta pesquisa objetiva caracterizar e analisar o papel dos atores, bem como
as temporalidades, imagens e narrativas que estão em disputa nos processos de construção de
memoriais em curso na cidade Salvador (Memorial da Resistência da Bahia, Casa Marighella e
Forte do Barbalho), no período de 2011 a 2016.

524 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 524-537, setembro-dezembro 2018
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História

Brazil’s Popular Groups: história e significados de


uma coleção da Library of Congress

A luna : R afaella L ucia B ettamio


Data da defesa: 25/05/2018 – Doutorado

Banca: Rafaella Lucia Bettamio (orientadora), Alexandre Moreli, Ana Paula Caldeira, José
Reginaldo Gonçalves e Tânia Bessone

Resumo: “Brazil’s Popular Groups: a Collection of Materials Issued by Sociopolitical, Reli-


gious, Labor and a Minority Grass-roots Organizations” (BPG) é uma coleção microfilmada
que reúne grande variedade de documentos impressos relacionados a grupos populares bra-
sileiros, publicados desde a década de 1960 até a atualidade. Reunidos a partir de meados
da década de 1980 pelo escritório de representação da Biblioteca do Congresso dos Estados
Unidos no Rio de Janeiro – inaugurado em 1966 –, os materiais na BPG estão divididos por
períodos e organizados em diferentes categorias. Mais de trinta bibliotecas dos Estados Uni-
dos, além de instituições de memória e pesquisa da Europa e do Brasil – entre elas a Biblio-
teca Nacional – possuem microfilmes desta coleção. Interessada em investigar as condições
socio-históricas que permitem a constituição de coleções que ganham dimensão pública e
os lugares que ocupam tais artefatos, a pesquisa analisa a BPG a partir de sua relação com
contextos políticos americanos e brasileiros, atentando para distintas temporalidades e sub-
jetividades que marcaram a sua produção, bem como para sua circulação. O objetivo é dar
visibilidade à historicidade da coleção, à construção narrativa de seu colecionador, e a alguns
dos significados e lugares que lhe foram atribuídos ao longo de sua existência.

Cidade “Verde” ou Cidade “Vermelha”: AIB e ANL em


Petrópolis

A luno : E duardo J orge de O liveira


Data da defesa: 15/06/2018 – Doutorado

Banca: Paulo Fontes (orientador), Américo Oscar Guichard Freire, Marco Aurélio Vannucchi,
João Fábio Bertonha e Jean Rodrigues Sales

Resumo: O enfrentamento entre grupos militantes antagonistas é um fenômeno presente em


vários momentos da história política brasileira, especialmente no período republicano. Devido a

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 525-537, setembro-dezembro 2018 525
Editorial

diferentes contextos, pode-se entender, igualmente, que diferentes motivos podem determinar a
origem de cada um desses conflitos. O primeiro desses grandes confrontos se deu entre membros
da Ação Integralista Brasileira (AIB) e da Aliança Libertadora Nacional (ANL), em 1935. Foram
diversos enfrentamentos, envolvendo vários militantes, registrados em diferentes pontos do País.
Considere-se, porém, que embora houvesse causas comuns que motivavam a oposição entre as
siglas em todo o território nacional, havia também fatores locais, que diferenciavam as caracte-
rísticas desse enfrentamento de acordo com o cenário em que ele se desenvolvia. Partindo desta
hipótese, a presente pesquisa toma como objeto os eventos relacionados ao enfrentamento
AIB-ANL em Petrópolis (RJ). A cidade foi, simultaneamente, um importante polo para a militância
integralista e, igualmente, um importante centro para a atuação da aliança. Considera-se, aqui,
que tanto a mobilização quanto as ações dos militantes foram, de alguma maneira, bastante
distintas das formas de enfrentamento observadas em outros pontos do País, especialmente no
tocante à greve geral que se seguiu à morte de um militante aliancista.

Do gatilho ao lote: as disputas pelo espaço urbano


do Jardim Catarina – São Gonçalo, RJ

A luno : M arcos T himoteo D ominguez


Data da defesa: 08/08/2018 – Doutorado

Banca: Mariana Cavalcanti Rocha dos Santos (orientadora), Américo Oscar Guichard Frei-
re, Marize Bastos da Cunha, Mario Sérgio Ignácio Brum e
Marcelo Tadeu Baumann Burgos

Resumo: A presente tese analisa as disputas por serviços urbanos na Região Metropolitana
do Rio de Janeiro, tendo como recorte temporal de investigação o período entre 1970 e 1990,
momento em que há uma reorganização das políticas urbanas após a fusão do estado do Rio
de Janeiro. O trabalho se desenrola no Jardim Catarina (JC), tradicional loteamento localizado
nos limites metropolitanos, que se transformou em bairro do município de São Gonçalo.

A invenção da América do Sul: a construção de uma


comunidade imaginada

A luno : P hilippe C arvalho R aposo


Data da defesa: 09/03/2018 – Mestrado Acadêmico

526 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 526-537, setembro-dezembro 2018
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História

Banca: Alexandre Moreli (orientador), Jan Oliver Stuenkel e Paulo Afonso Monteiro
Velasco Júnior

Resumo: A construção de regiões e identidades coletivas é um fenômeno antigo. Europa e


América Latina, por exemplo, são conceitos construídos ao longo da história, assim como as
identidades coletivas europeia e latino-americana. Esta pesquisa tem como finalidade verificar
se existe uma comunidade imaginada forjada entre os sul-americanos, fundada numa suposta
consciência de grupo que transcenda as fronteiras nacionais na América do Sul. Uma das pro-
vocações que nos levaram a essa reflexão é o fato de que a América do Sul não é apenas um
recorte geográfico no mapa. As instituições intergovernamentais sul-americanas, como o Mer-
cado Comum do Sul (Mercosul), a União de Nações Sul-americanas (Unasul) e a Organização
do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), entre outras, constituem uma ainda incipiente,
mas real, esfera sul-americana de governança pública que complementa as tradicionais esferas
nacionais e subnacionais de governo. Essas instituições regionais permitem o planejamento de
políticas públicas a partir de uma visão conjunta da América do Sul, ao mesmo tempo como um
sistema autônomo e como um subsistema da América Latina e do próprio continente americano.
A institucionalização da América do Sul é algo empiricamente comprovado. Existem dúvidas, no
entanto, quanto à identificação dos sul-americanos com os projetos de integração regional –
muitos dos quais sequer conhecem essas iniciativas –, e quanto à viabilidade de se forjar uma
identidade transnacional entre os sul-americanos. Pesquisas de opinião pública auxiliam essas
análises, à luz de alguns pressupostos da sociologia e do construtivismo social.

As artes plásticas nos anos 1970 e a atuação da


Funarte

A luno : A ldones N ino S antos da S ilva


Data da defesa: 18/04/2018 – Mestrado Acadêmico

Banca: Celso Castro (orientador), Lucia Lippi Oliveira e Elizabeth Catoia Varela

Resumo: A presente pesquisa se dedica ao entendimento da criação da Fundação Nacional


de Artes (Funarte) e sua atuação em seus anos iniciais, como marca de uma nova postura do
Governo Federal no campo das artes plásticas. A Funarte reuniu críticos, teóricos, historiadores
e artistas, que, por meio da teoria e da prática, buscaram contribuir com projetos pioneiros
por meio dos quais encontramos a formulação de uma política para a arte contemporânea,
que inicialmente se refletiu no apoio à realização de pesquisas. Na historiografia há poucas

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 527-537, setembro-dezembro 2018 527
Editorial

análises do período em que ocorreu a criação e a implementação das principais estratégias da


instituição; portanto, talvez seja necessário pontuar que minha intenção transdisciplinar usa
uma metodologia que tem como foco enredar o fio histórico da arte na trama de outros tantos
fios da vida cultural. Assim, história política e memória tornam-se fundamentais para o alar-
gamento das vias de compreensão do tema proposto. Busco pensar a relação entre censura
estatal e fomento às práticas artísticas contemporâneas, defendendo uma nova relação entre
1976-1979, quando personagens que inicialmente haviam sido perseguidos ou mantinham
uma postura crítica ao governo autoritário ganham apoio para pesquisas sobre artes visuais.
Logo, quando a arte contemporânea aparece dentro da Funarte, ela não aparece na forma de
exposições, nem na forma de apoio direto ao trabalho do artista. Um fato próprio dessa rela-
ção da Funarte com arte contemporânea nesse momento inicial é a reflexão sobre o passado
com foco em sua influência no presente.

Memórias da repressão política na Primeira


República: relatos jornalísticos, memorialísticos
e literários da repressão florianista durante a
Revolta da Armada

A luna : C hristianne T heodoro de J esus


Data da defesa: 19/04/2018 – Mestrado Acadêmico

Banca: Bernardo Buarque (orientador), Américo Oscar Guichard Freire e Isabel Lustosa

Resumo: A proposta desta dissertação é analisar um conjunto de escritos de cunho memoria-


lístico e testemunhal que vieram à tona na esteira da repressão que o Governo Floriano Peixo-
to empreendeu durante o período da Revolta da Armada de 1893. Produzidas em diferentes
contextos e com diferentes finalidades, estas fontes nos dão acesso à forma como a repressão
florianista foi documentada por presos políticos, pelos jornais e por literatos, notadamente
Coelho Netto e Lima Barreto, que, também testemunhas dos atos praticados pelo governo
do marechal, incorporaram estas memórias à sua produção cronística e ficcional. Tentaremos
mostrar, portanto, de que forma o conjunto destas memórias se inter-relacionam, tanto pela sua
temática quanto pelas relações de sociabilidade mantidas entre seus autores.

528 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 528-537, setembro-dezembro 2018
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História

Uma estratégia em três tempos: as eleições de 1965


na Guanabara e o projeto presidencial de Carlos
Lacerda

A luno : A ndré L opes de O liveira


Data da defesa: 21/05/2018 – Mestrado Acadêmico

Banca: Américo Freire (orientador), Jorge Chaloub e Marly Motta

Resumo: O presente trabalho trata da análise da construção e demolição da imagem pre-


sidencial de Carlos Lacerda, jornalista, vereador da cidade do Rio de Janeiro, deputado
federal, governador da Guanabara, e pré-candidato às eleições presidenciais, previstas para
ocorrer em 1965, ano em que se encerrava seu mandato como governador. Tratamos da
maneira como Lacerda utilizou o período à frente da Guanabara como plataforma para
construir sua candidatura, e de como ela foi afetada pelo golpe civil-militar ocorrido em 31
de março de 1964, que levou à deposição do presidente João Goulart e à instauração de
um regime militar no Brasil.

Entre teares e lutas: relações de gênero e questões


etárias nas principais fábricas de tecidos do
Distrito Federal (1891-1932)

A luna : I sabelle C ristina da S ilva P ires


Data da defesa: 06/06/2018 – Mestrado Acadêmico

Banca: Paulo Fontes (orientador), Fabiane Popinigis, Deivison Gonçalves do Amaral e Leo-
nardo Afonso de Miranda Pereira

Resumo: Este trabalho procura se centrar nas relações de gênero e questões etárias entre
operários/as que trabalhavam nas principais fábricas de tecidos do Distrito Federal entre 1891
e 1930. A indústria têxtil, nesse período, empregava considerável mão de obra de mulheres
e menores, por considerá-los possuidores de características pertinentes para o trato com a
matéria-prima e o maquinário, como delicadeza, paciência, flexibilidade, pequenez etc. No en-
tanto, por meio de discursos de militantes operários, percebemos que alguns trabalhadores se
sentiam ameaçados e incomodados pela presença da força de trabalho feminina e infantil, por
acreditarem que eles/as rebaixavam os salários e eram passivos/as com relação a exploração

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 529-537, setembro-dezembro 2018 529
Editorial

que sofriam, o que enfraqueceria os movimentos reivindicativos. Procurando problematizar


tal perspectiva, esta pesquisa busca retratar as mulheres e os menores como sujeitos de sua
própria história, conscientes das explorações a que estavam submetidos/as, e agentes ativos
nas greves e protestos por melhores condições de vida e trabalho. Para os patrões, a mão de
obra feminina e infantil era interessante, e foram implantados serviços de benefícios sociais
na tentativa de manter as mulheres nas fábricas depois do casamento, e os menores, mesmo
contra as investidas do poder público. A divisão sexual do trabalho e a disciplina fabril de-
marcaram espaços, comportamentos e estabeleceram uma hierarquia pautada em noções de
“qualificação”. Contudo, os/as operários/as procuraram resistir perante as formas de controle,
e lutaram por suas demandas dentro e fora das fábricas.

Contexto, prática e obstáculos do acesso a


informação: insumos para a discussão a partir da
experiência com o setor nuclear brasileiro

A luna : I sabela de P aula C ruz


Data da defesa: 11/07/2018 – Mestrado Acadêmico

Banca: Matias Spektor (orientador), Robert Gregory Michener e Eduardo Mello

Resumo: A experiência com a realização de quase uma centena de pedidos ao setor nuclear
brasileiro, considerado um dos mais sensíveis e estratégicos do País, possibilitou uma análise
qualitativa e jurídica do contexto, das práticas e dos obstáculos do acesso a informação no
âmbito da Administração Pública Federal. As recomendações resultantes desse exame podem
ser aplicadas a diversos outros setores, na medida em que já levaram em conta os obstáculos
máximos que se infligem à implementação de um governo aberto. A pesquisa faz uso de con-
ceitos do Direito e da Ciência Política, com vistas a analisar, qualitativamente, de que forma a
estrutura da política de acesso é mobilizada pela máquina pública quando esta recebe pedidos
de acesso a informação; quais são os maiores obstáculos ao acesso; e que práticas podem ser
adotadas para que o Estado brasileiro seja mais transparente. O primeiro capítulo cuida das
novas formas de legitimidade da democracia contemporânea, e demonstra a importância do
aprimoramento do acesso a informação para a manutenção de um regime político saudável e
apto a lidar com os anseios da sociedade atual por participação política não só eleitoral, como
também em sua dimensão monitória. O segundo capítulo contextualiza o acesso a informação
no Brasil e reflete sobre os desafios específicos da seara nuclear, tratando de aspectos teóricos
e históricos, e sistematizando as normas que regem os temas da transparência e da proteção

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Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História

de informação sigilosa. O panorama indica que a Lei no 12.527/2011 é pouco acionada no


âmbito do Poder Judiciário, apesar de já fazer parte da rotina do Poder Executivo Federal, ao
menos no que tange aos órgãos e entidades de alguma forma vinculados ao Programa Nu-
clear Brasileiro. O terceiro capítulo, enfim, contrapõe-se ao otimismo que poderia advir de uma
análise somente quantitativa da capacidade de resposta da Administração Pública Federal aos
pedidos de acesso, desvelando diversos obstáculos à transparência passiva. As recomenda-
ções apresentadas dizem respeito: à necessidade de motivação das respostas denegatórias
de acesso; aos processos decisórios em curso, que ficam eternamente sob sigilo; à ausência
de anonimato no sistema brasileiro de acesso a informação; à impossibilidade de consulta ou
de qualquer modalidade de intervenção de terceiros interessados; e aos encaminhamentos
sucessivos e suas consequências para os prazos processuais.

O caso Proconsult: embates na apuração das


eleições para o governo fluminense em 1982 

A luno : M auro J osé de S ouza S ilveira


Data da defesa: 04/04/2018 – Mestrado Profissional

Banca: Américo Freire (orientador), João Trajano Sento Sé e Fernando Lattman-Weltman

Resumo: O trabalho propõe uma reflexão sobre os acontecimentos que marcaram as elei-
ções diretas para governador do estado do Rio de Janeiro em 1982, as primeiras realizadas
para o cargo desde 1965, quando foram proibidas pelo regime que tomou o poder no ano
anterior. A pesquisa destaca a empresa Proconsult, contratada pelo Tribunal Regional Eleitoral
para a totalização eletrônica dos votos depositados nas urnas, e cuja atuação ficou marcada
por erros que suscitaram fortes suspeitas de tentativa de fraude eleitoral, sobretudo na fase
de apuração dos resultados, marcada pela polarização entre o candidato do partido que re-
presentava o regime (Moreira Franco, PDS) e Leonel Brizola (PDT), adversário dos militares que
retornara três anos antes do exílio, beneficiando-se da Lei da Anistia. Após contextualizar o
período em que ocorreram a formação de novos partidos e das candidaturas que os represen-
taram, o trabalho especificamente discute a atuação dos dois principais jornais cariocas à épo-
ca – Jornal do Brasil e O Globo – e também dos veículos eletrônicos dos dois grupos, a Rádio
Jornal do Brasil e a TV Globo. A observação do posicionamento divergente de ambos, tanto na
campanha quanto na apuração, foi uma das preocupações preponderantes da pesquisa. Além
da leitura dos jornais, o trabalho recorreu a entrevistas com alguns personagens que tiveram
atuação relevante na ocasião, como políticos e jornalistas.

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Editorial

O incentivo à leitura e seus impactos: o programa


Sesi Cidadania e a biblioteca do morro do ANDARAÍ

A luno : G abriel G onçalves G aspar


Data da defesa: 12/04/2018 – Mestrado Profissional

Banca: João Marcelo Ehlert Maia (orientador), Bernardo Buarque de Hollanda e Mariana
Cavalcanti

Resumo: O presente estudo propôs-se investigar os impactos gerados na comunidade após a


inauguração da biblioteca do morro do Andaraí. Descreve e analisa quem são os atores sociais
por trás desse equipamento cultural, analisando os interesses que estão em jogo naquele ter-
ritório. A complexa dinâmica entre os moradores, a polícia e a biblioteca também é descrita e
analisada, com base no trabalho de campo desenvolvido. A partir da fundamentação teórica,
das observações diretas, e das entrevistas semiestruturadas com as crianças que frequentam
o espaço e com os profissionais que lá trabalham, procurou-se entender as dinâmicas que
ocorrem para a construção diária da biblioteca. Os resultados do estudo apontam que há
uma precariedade no que se refere à gestão do espaço, e, consequentemente, do projeto das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), porém, por meio das narrativas das crianças entre-
vistadas, pode-se perceber os benefícios que a biblioteca gera para a comunidade, que vão
muito além da leitura, e que resultam em maior acesso a serviços e a informações que são
fundamentais para a cidadania. Também foi possível verificar a apropriação que as crianças
fizeram do espaço mediante vários usos não programados da biblioteca.

Do mar à mesa: a pesca e a alimentação em Arraial do


Cabo entre as décadas de 1930 e 1960

A luno : L uiz F ernando de M elo B rettas


Data da defesa: 18/04/2018 – Mestrado Profissional

Banca: Verena Alberti (orientadora), Luciana Quillet Heymann e Antonio Marcos Muniz
Carneiro

Resumo: De uma vila de pescadores dedicada quase que exclusivamente à pesca a sede de
uma grande indústria química de interesse nacional: desde a criação da Companhia Nacio-
nal de Álcalis (CNA) por decreto, em 1943, até o efetivo início das suas operações, em 1960,

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Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História

Arraial do Cabo viveu um processo de transformação econômica e social que despertou o


interesse de pesquisadores e instituições de pesquisa que buscavam conhecer mais sobre os
hábitos e costumes da população local, que tinha a pesca como sua principal fonte econô-
mica e centro da vida social. O presente trabalho busca analisar as pesquisas realizadas em
Arraial do Cabo durante as décadas de 1930 a 1960 e entender a dinâmica dos processos
de pesca marítima artesanal e de salga de peixes praticados em Arraial do Cabo, com o
intuito de conhecer os produtos utilizados na alimentação dos seus habitantes e de registrar
as receitas e formas de preparo dos peixes e demais alimentos consumidos pela população
à mesa naquelas décadas. Entre os sujeitos dessas narrativas destacam-se pescadores, co-
merciantes de pescado, salgadeiras e testemunhas desse período, que compartilharam suas
histórias e memórias durante as entrevistas feitas para a realização deste trabalho.

A propaganda do cigarro: estratégias publicitárias


pós-condenação do tabagismo no Brasil

A luna : C arolina L opes L obianco


Data da defesa: 09/05/2018 – Mestrado Profissional

Banca: Mônica Almeida Kornis (orientadora), João Marcelo Ehlert Maia e Everardo Rocha

Resumo: O objetivo desta dissertação é discutir a publicidade de cigarro no Brasil após a


condenação do tabagismo. As estratégias publicitárias utilizadas pela indústria nos Estados
Unidos (EUA) e no Reino Unido em função das primeiras pesquisas que ligavam o taba-
gismo ao câncer de pulmão são igualmente examinadas neste trabalho, considerando que
muitas delas foram adaptadas ao caso brasileiro. A condenação da indústria do tabaco no
Brasil se iniciou somente após a Constituição de 1988, momento no qual o governo brasi-
leiro passou a regular a propaganda comercial de certos produtos, como o próprio tabaco,
bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias. O presente trabalho faz um breve
histórico do período inicial de atuação da indústria do tabaco no Brasil, tendo sempre como
foco principal a publicidade de cigarro e seus desdobramentos após 1988.

“Disco é cultura”. A expansão do mercado


Fonográfico brasileiro nos anos 1970

A luno : C laudio J orge P acheco de O liveira

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 533-537, setembro-dezembro 2018 533
Editorial

Data da defesa: 08/05/2018 – Mestrado Profissional

Banca: Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos (orientador) e Marcia Tosta Dias

Resumo: Este estudo tem por objetivo investigar a contribuição do artigo 2º da Lei Com-
plementar nº 4, de 2 de dezembro de 1969, conhecida como “Lei disco é cultura”, para a
expansão do mercado brasileiro de discos ocorrida na década de 1970. Consequência da
política econômica de forte estímulo ao consumo do regime militar, a “Lei disco é cultu-
ra” autorizava as empresas produtoras de discos fonográficos a abater, do montante do
imposto sobre circulação de mercadorias (ICM), o valor dos direitos autorais artísticos e
conexos pagos aos autores e artistas brasileiros. A busca por investimentos estrangeiros era
um aspecto fundamental do modelo econômico da ditadura. A expectativa era a de que a
“maior eficiência” das empresas multinacionais contribuísse para um rápido crescimento.
Essa política favoreceu a expansão das gravadoras estrangeiras, que tiveram seus interesses
e demandas acolhidos pelo governo.

Desenhos de humor, crítica e design gráfico: o caso


da revista Pif Paf (1964).

A luno : J osé E duardo A mbrosio de B rito e C unha


Data da defesa: 08/05/2018 – Mestrado Profissional

Banca: Mônica Almeida Kornis (orientadora), Verena Alberti e Washington Lessa

Resumo: Esta dissertação tem como objetivo investigar o papel da arte gráfica na construção
editorial da imprensa alternativa dos anos 1960. Com base no caso da revista Pif Paf, preten-
de-se observar a influência do humor na produção crítica representada em texto e imagem
durante os primeiros meses do período de repressão causado pela instalação do golpe militar
de março de 1964. A partir de conceitos extraídos do campo do design de narrativas, são
realizadas análises para associar arte, crítica, design e informação. Nesse sentido, caricaturas,
charges, ilustrações, cartuns e desenhos de humor representam elementos fundamentais que
são avaliados. Da mesma maneira, rotinas de profissionais da imprensa, assim como técnicas
de trabalho, linha editorial e propostas narrativas também são contempladas.

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Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História

Paracambi Industrial: uma proposta de um roteiro


cultural

A luno : R onaldo V icente P ereira


Data da defesa: 28/05/2018 – Mestrado Profissional

Banca: Paulo Fontes (orientador), Luciana Quillet Heymann e Felipe Ribeiro

Resumo: O objetivo desta dissertação é investigar, dentro do mundo do turismo cultural,


a possibilidade de elaboração de um roteiro cultural na cidade de Paracambi, no estado do
Rio de Janeiro. O referido município se desenvolveu a partir do surgimento de três fábricas
têxteis, com destaque para a maior delas, a Companhia Têxtil Brasil Industrial, e para todo
um patrimônio constituído nos seus mais de cem anos de atividades na região. A pesquisa se
justifica pelo fato de Paracambi já desenvolver o turismo ecológico, em função da diversidade
natural da região. Some-se a isso sua proximidade com o Vale do Café Fluminense, uma rota
turística consagrada no estado. Desta forma, a elaboração de um roteiro cultural poderia ser
um importante incremento das atividades de turismo desenvolvidas na cidade. As reflexões
desenvolvidas nesta pesquisa se valeram de uma perspectiva teórica multidisciplinar que en-
volve Sociologia (Keller, 1997), Antropologia (Leite Lopes, 1988), Educação e Trabalho (Cia-
vatta, 2007), Historiografia (Furtado, 2003; Silva, 2009), Geografia (Simões, 2006) e Turismo
Cultural (Molleta, 1998; Cordeiro, 2006). A proposta metodológica se baseou em revisão de
literatura, visitas de campo, e em entrevistas realizadas com moradores de Paracambi que
trabalharam na Companhia Têxtil Brasil Industrial. Ao final do trabalho, apresenta-se uma
proposta de roteiro cultural capaz de relacionar a história da referida fábrica e da cidade de
Paracambi, as quais se (con)fundem; paralelamente, a pesquisa produz, além de um roteiro,
subsídios suficientes para se afirmar uma estreita correspondência entre patrimônio industrial
e memória operária.

Equidade de gênero no ambiente corporativo: um


estudo de caso sobre a Braskem

A luna : P atrícia S ilva de S ousa


Data da defesa: 30/05/2018 – Mestrado Profissional

Banca: Angela Moreira Domingues da Silva (orientadora), Leticia Carvalho de Mesquita


Ferreira e Silvana Andrade

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 535-537, setembro-dezembro 2018 535
Editorial

Resumo: A abordagem da responsabilidade social e sua relação com a questão da diversi-


dade no ambiente empresarial vem ganhando ressonância nos últimos anos em diferentes
países. No Brasil, de forma análoga, muitas organizações já despertaram para o fato de
que a diversidade afeta o ambiente organizacional, além de poder ser benéfica para ele,
inclusive se apresentando como uma vantagem competitiva perante os concorrentes. Esta
pesquisa visa contribuir com este debate por meio de um estudo de caso sobre a Braskem,
buscando abordar a evolução do programa de diversidade da empresa, com um olhar vol-
tado especialmente para as ações relacionadas a gênero.

Legitimidade e representatividade em conselhos


gestores: uma análise do Conselho Municipal de
Cultura do Rio de Janeiro de 2007 a 2015

A luna : T ayane R eis C arvalho dos S antos


Data da defesa: 05/07/2018 – Mestrado Profissional

Banca: Jimmy Medeiros (orientador), Márcio Grijó Vilarouca e Vivian Luiz Fonseca

Resumo: A pesquisa tem o objetivo de apresentar e problematizar o contexto de criação do


Conselho Municipal de Cultura do Rio de Janeiro em 2009, pautando-se nas experiências dos
conselheiros e de documentação publicada pelo organismo desde então. Pretendeu-se anali-
sar os seus desdobramentos até o final do mandato dos primeiros conselheiros representantes
da sociedade civil. O intuito é compreender os motivos dos questionamentos acerca de sua
legitimidade e representatividade, e sugerir aprimoramentos, considerando as experiências
dos conselheiros, para que o organismo consiga atuar com eficácia na elaboração, fiscalização
e acompanhamento das políticas culturais do município do Rio de Janeiro.

O samba urbano contemporâneo e sua desafricani-


zação: um estudo sobre as transformações do samba
no bairro da Lapa entre os anos de 2000 e 2007

A luna : L eila S ales D antas


Data da defesa: 10/07/2018 – Mestrado Profissional

Banca: Ynaê Lopes dos Santos (orientadora), Verena Albertri e Renato Nogueira dos San-
tos Junior

536 Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 536-537, setembro-dezembro 2018
Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História

Resumo: O presente trabalho pretende analisar o processo de desafricanização sofrido pelo


samba urbano tocado no bairro da Lapa (Rio de Janeiro) entre os anos 2000 e 2017. Fazendo
uso de entrevistas temáticas de História Oral com importantes atores sociais que vivenciaram
a “retomada” (a partir dos anos 1990) e o declínio da Lapa, essa pesquisa pretende contri-
buir para os estudos que analisam as diferentes formas por meio das quais o samba foi (e é)
marginalizado no Brasil, sobretudo no que diz respeito aos elementos que estão diretamente
ligados às heranças africanas e sua origem negra.

A energia que liga o País com responsabilidade


social: um estudo de caso do Operador Nacional do
Sistema Elétrico

A luna : L ucia H elena R odrigues de C arvalho


Data da defesa: 06/08/2018 – Mestrado Profissional

Banca: Angela Moreira Domingues da Silva (orientadora), Marco Aurelio Vannucchi e Ma-
noel Marcondes Machado Neto

Resumo: O presente estudo de caso tem por principal objetivo analisar a evolução das
ações de responsabilidade social empresarial (RSE) do Operador Nacional do Sistema Elétri-
co (ONS), a partir de sua estrutura singular; seu tecnicismo; suas características estatutárias;
das legislações socioambientais; das boas práticas de RSE; e dos conceitos teóricos sobre
a temática. Destaca-se também o repertório da organização no que diz respeito à susten-
tabilidade e à gestão da integridade. O estudo propõe, indo além daquilo que foi estabe-
lecido pela legislação brasileira, uma nova atuação do ONS com os públicos interessados,
sugerindo um novo espaço para o diálogo, especialmente com entes governamentais, de
forma que a sua atuação não enfraqueça o papel do Estado, conforme fundamentado pelos
autores Cheibub e Locke.

Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol 31, nº 65, p. 537-537, setembro-dezembro 2018 537

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