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6 UM MITO SACRIFICIAL: O INDIANISMO DE ALENCAR E proprio da imaginaco histérea edificar mitos que, muitas ve es, ajudam a comprecader antes 0 tempo que os forjou do que © uunverso remoto para © qual foram inventados. ‘Acteditando nese proporigio,atisco-me 2 revstar um lugar ‘comum dos comparaisas literirios que afinam o indianismo bras- Ieiro pelo diapasto europeu da romantizasio das orgens nacionais. 14, figuras e cenas medienais ef, o mundo indigena tale qual 0 sur- preenderam os descobridores. Cie lf, uma operaco de retorno, um. fesforgo pata bem cumpris o voto micheletiano de essucitar 0 passa do, alvo confess da historiogtafia romntica, Até que ponto esse pa raleismo se suseém? ‘A aproximagdo de ambas as visdes do passado mantém-se valida ‘a esfera ampla da histria das mentalidades. Houve, de fato, uma cotrente de saudosismo, de filiapo ancien régime, tardia mas nem ‘por iso menos intensa, que cruzou as letras eutopéias na fase ps € ‘anti-evoluciondria. As obras de Chateaubriand, de Xavier de Mais: tte e de sir Walter Scr: ilustram os seus momentos de vigor em ma- téria de imaginarao e esa. 'No caso brasileiro, um dos veios cenrais do nosso romantismo, ‘o alencariano, também mostrou-sereceoso de qualquer tipo de mu: ddanca social, pareceado esgotar os seus sentimencos de rebeldia 20, jugo colonial nas comacdes politica da Independéncia.Passado este ciclo, qualquet medida que avangasse no sentido de alargar ato es ‘teita margem de liberdade outorgada pela Cara de 23 assumia ares, de subverso.! Assim, 2 reforma cleitoral ¢ a questo seri ficaram. bloqueadas desde a vitsia do Regresso em 1837 (0 termo foi cunha- 176 do e assumido prazerosamente pelos conservadotes) até a subida da ‘mat€ liberal nos anos 60: precisimente of tés decénios que viram 6 surgimenco ¢ 0 climax da nossa literature romlntica Observa-se em todo ese perfodo ma expécie de encruamento as posigoes lberal-radicais que levram 2 abdicago de Pedto te 208, sucessos eumultuosos da Regéncia. O fendmeno, que jf foi diagnosti- «ado em termos de consolidagto do poder escavista, nto € de todo estranho 2 formas paradomais pelas quas uma figura de nitido core roussezuista como 0 bom sauvage acabou compondo o nosso imagi- nitio mais conservador. Gigante pela pr6pria aatuteza, 0 indio en- trou in exiremis na sociedade lteriria do Segundo Império. ‘Remonte-se um pouco no tempo. O proceso da independéncia ‘grou, 20 desencadear-se, uma dialétca de oposisio, Mesmo coasi derando que os estratos dominantes foram os arquitetose os bene ciltios da patria del erollo; & forga conwit que contzadigio hou, ‘tanto no nivel dos incresses materiaiscoibides pelo antigo monops- lio, quanto no delicado tecido da vida simbslica. Viveu-se uma fase de testo aguda entre a Coldnia que se emancipava e a Metrépole ‘que se enrjecia na defesa do seucaducante Impéio, © primeiro qual cdo século xix fo, em toda a América Latina, um tempo de ruptura O come nardotcoléniz, novolantgo exgia, na moldagem das identi- dades, a articulacdo de um exo: de um lado, o pélo brasileto, que cenfim levantava 2 cabecae dizia o seu nome; de autt,o pélo porta: ‘guts, que resista 2 perda do seu melhor quinhao. ‘Segundo ese desenho de contrases,o esperivel seria que o fa- dio ocupasse, no imagingsio pée-colonial, lugar que Ihe competa, © papel de rebelde. Era, afinal, o native por exceléncia em face do limasor, 0 americano, como se chamava, metonimicamente, rersus 0 ceuropeu, ‘Mas no foi precsamente © que se passou em nossa ficgo f0- ‘méntica mais significativa. O indio de Alencar entra em intima co- ‘munhio com o colonizador. Per €, literal evoluntariamente, ecr2¥0 de Cec, a quem venera como sua lara, "'senhora evasalo fides :mo de dom Anténio, No desfecho do romance, em face da catstofe iminente, 0 fidalgo batiaa 0 indigena, dando-the o seu préptio no- ‘me, condigo que ula necessiria para conceder a um selvagem a honra de salvar filha da morte certa a que os aimorés inham condenado (0 moradores do solar: ” Se wu foes esto, Pei © indiovoltow-se extemamentesdmitado daguels plava. = Por qué’. pengunow ee. Por qul..dse lemamente o fidalo, Porque se ru foses cristo, eu te coniatiaasalvacto de minha Ceca, eetou convenco de que 2 levatas 20 Rio de Janeiro 3 minha ima. (0 rosto do selragem luminous; Seu peitoarqueju de flicidade, se bios rémuls mal podiam arial o turbilo de palaveas que The vinkar do foximo dala — esi quer ser esto! exlamou ee 1. Antinio langou-lhe um olhar imido de reconbecimento. (© indo cau aos pés do vlho caalheir, que impsthe as mos sobre a cabess ‘St eisdal Douste © meu nome! (0 pusren, pane 1, ap. x) ‘A conversio, companhada de mudanga de nome, acore igual- ‘mente com 0 indio Poti, de Irceme, batizado como Anténio Felipe ‘Camario,o fururo herd da resistencia 20s holandeses. E Arnaldo, 0 ssa ristico de Peri de O sertaneo, & agraciado com o sobrenome do capitdo-mor durante este dislogo edificante: E paras, Ammaldo, que desea? — insitin Campelo, Que ot, Capito: Mor me deie beijat sua mac; basta-me isso, —Tu és um homem, ede hoje em diante queto que te chames Ar. ‘aldo Laatedo Camp. (0 setae, pase Hap.) Bo senhor colonial que, nos és episéios,outorga pelo ato da renomeasi, nova identdade eligi epesal 2 indo e 2 sertanea. ‘Quanto acs aimorés, que slo os vetdadeisinimigos do conguis tadorno Guarani, aparecem macades pelo eptets de birders, bor tendos, stinco, carnceias,instros, hres, sedentos de vingangs, ferozes, diablo. Ttacema, no belo pocma em pos que tao seu nome, apaiona se or Matin Soares Moreno, oolaizador do Cea, por amor de quem ompe com a sua nas tabajara depois de volar osegredodajurema, 'Nashistris de Peri ede Iracemn a catrega do indi 20 branco €incodiconal, fers de corpo cama, implicando saci aban- 178 dono da sua pertenga & tibo de origem. Uma panda sem retorno Da virgem de labios de mel disse Machado de Assis em atigo que cscreveu logo que saiu 0 romance: '"Nao resiste, nem indaga: desde ue os olhos de Marim se trocaram com os seus, a mog2 €urvou & cabega aquela doce escravidio.? ( risco de sofrimento e more €aceito pelo selvagem sem qual- (quer hestagdo, como se a sua atitude devota para com o Branco re presentase 0 cumprimento de um destino, que Alencar apresenta em. termos herSicos ou idiicos. CCrcio que € postvel detectar a xisténcia de um complexo sact- ficial na mitologia romintica de Alencas. Comparem-e ot desfechos dos seus romances coloniais indianistas com os destinos de Caroli- na, a corte de As ar de um anjo(remida e punida em A expia- 20), de Lacfola, no tomance homénimo, ede Joana, em Mae. Sto todas obras cujas tramas nartativas ou dramiticas se resolvem pela imo- lasdo voluatatia dos protagonistas: indio, a india, a mulher prosi- ‘ida, a mie negra. A nobreza dos fracos 6 se conquista pelo sacrifi- cio de suas vidas, Paradoxalmente: O guarami¢ Iacema fundatam 0 romance nae sional [Nao esti em causa, nestas obserages, a sinceridade patritica do narrador, sentimento que, de testo, nio guardatia qualquer rela ‘so causal com o valor estético dos seus textos. O que importa € ver como a figura do indio belo, forte ¢ live e modelou em um regime de combinasto com a franca apologia do colonizador. Essa conclia- (20, dada como espoatinea por Alencar, viola abertameace ahiséria cla ocupacto portuguesa no primeiro século (6 leracrbnia da maio- ria das apitanias para saber o que acontecea), coca o inverossimil n0 ‘caso de Peri, enim € pesadamenteideolégica como interprctaszo do proceso colonial. Nada diso impede, porém, que a linguagem nar- rativa de Alencar acone, em mais de um paso, 2 tecla da poesia ‘A eleza da prosalitica reverbera aquém ou, em outro sentido, além da representagio do dado empirico que a crdnic realista busca ‘spelhar.E-0 mito, que ssa prosa entetece, se faz aquém, ou além, dda cadeia naratva verossimi "Aquém: o mito nia requet o teste da verificagdo nem se vale d _quelas provas testemunhais que fornecem passapore idéneo a0 di curso historiogifico. Ou além: o valor estético de um texto mitico 179

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