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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL

PEDRO VINICIUS ASTERITO LAPERA

Brasis imaginados: a experiência do cinema brasileiro


contemporâneo (1990-2007)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Comunicação da Universidade
Federal Fluminense como exigência parcial
para a obtenção do título de Mestre em
Comunicação, sob a orientação do Prof. Dr.
João Luiz Vieira.

Niterói
2007
Essa dissertação foi defendida em / / , perante a seguinte banca
examinadora:

1. __________________________________________________

2. __________________________________________________

3. __________________________________________________

2
A meus pais, que sempre me mostraram o
belo em viver.

A Hilda Machado e Latuf Isaías Mucci,


meus “pais” acadêmicos, a quem o “filho
adotivo, porém desgarrado” presta seu
reconhecimento.

3
AGRADECIMENTOS

Ao professor João Luiz Vieira, pelas horas de atenção, diálogo e pela dedicação à árdua
tarefa de ser meu orientador.

Aos diretores Eliane Caffé, Sérgio Bianchi e Lúcia Murat que, além de realizarem
filmes que certamente orgulham o cinema brasileiro, muito me ajudaram nessa
empreitada com suas colaborações.

A todos os professores que participaram de minha trajetória acadêmica, em especial:


Ana Lúcia Enne, André Botelho, Tunico Amâncio, Hilda Machado, Dênis de Moraes,
José Reginaldo Gonçalves e Celeste Zenha.

Aos funcionários dos acervos do MAM-Rio, Cinemateca Brasileira, Biblioteca da


FUNARTE-Rio e Museu Lasar Segall que colaboraram com esta pesquisa, em especial:
Maurício e Hernani (MAM-Rio); Márcia Cláudia, Janaína, Paulo e “Mosquito”
(FUNARTE-Rio); Gláucia, Ana Paula e Liège (Cinemateca Brasileira).

A todos os amigos que fiz na pós em Comunicação ao longo desses dois anos, sendo
impossível mencionar os nomes de todos aqui.

Ao meu anfitrião em São Paulo e amigo Carlos Garrido, por ter me proporcionado uma
hospedagem acolhedora que me deu bastante tranqüilidade para realizar a pesquisa
nesta cidade.

Aos funcionários do IACS-2, em especial à Silvinha, Eduardo e Elson, cujas prestezas


foram fundamentais para atenuar o cotidiano corrido de um mestrado.

Aos alunos que assistiram a meus cursos na graduação e tiveram bastante paciência em
lidar com um inquieto, sarcástico e inexperiente professor.

Ao CNPq, pelo apoio financeiro.

Por último, mas não por isso menos importante, a todos os meus amigos que, nas
minhas horas de crises, dúvidas e alegrias compartilharam comigo suas melhores
maneiras de ver a vida.

4
Resumo

Este trabalho possui como objetivo a análise de três filmes: Quanto vale ou é por quilo?
(Sérgio Bianchi, 2005), Narradores de Javé (Eliane Caffé, 2004) e Quase Dois Irmãos
(Lúcia Murat). Tendo como eixo central a análise fílmica para compreender de que
modo as imagens de Brasil estão presentes nas ficções, realizam-se uma pequena
revisão de algumas teorias da cultura e da comunicação e uma análise do campo do
cinema brasileiro contemporâneo, para inferir sobre como as condições de produção, as
representações e as apropriações pela recepção articulam as diversas práticas discursivas
e não-discursivas ligadas à representação da nação e de categorias identitárias como
“raça”, religião, classe, geração, dentre outras.

5
Sumário

Algumas notas preliminares.......................................................................................... 8

Capítulo 1 - Entre o pós- moderno, o supermoderno e o híbrido:


propostas de análise de uma cinematografia periférica................................................. 15

I A Supermodernidade de Augé........................................................................... 17

II O multicultural e o híbrido em Stam,


Shohat e Canclini................................................................................................ 22

III A “modernidade total” de Appadurai


e o pós-colonial de Bhabha................................................................................. 33

IV A identidade em Castells.................................................................................... 43

V O espaço pós-moderno de Jameson.................................................................... 45

Capítulo 2 - Cinema Brasileiro contemporâneo versus Retomada:


os embates políticos na patrimonialização do cinema
pós-EMBRAFILME (1990-2007).................................................................................. 55

I Uma pequena “revisão” da História do Cinema


brasileiro? Por uma “introdução” ao Cinema
Brasileiro Contemporâneo.................................................................................. 59

II O Cinema Brasileiro Contemporâneo


lançado à “Retomada”........................................................................................ 66

III Eliane Caffé, Lúcia Murat, Sérgio Bianchi: status e


capital no campo cinematográfico...................................................................... 82

IV Cinema Brasileiro Contemporâneo versus “Retomada”:


Uma questão de nomenclatura?...............................................................104

Capítulo 3 - Imagens, representação do passado e políticas


identitárias no cinema brasileiro contemporâneo..........................................................115

I Usos do tempo nas narrativas da nação.............................................................118

II Entre o cotidiano e a política: representações da nação


e de suas fissuras no cinema brasileiro contemporâneo....................................151

6
Capítulo 4 - Por uma Pasárgada moderna, pós-moderna
ou supermoderna?Algumas notas sobre imagens de Brasil..........................................188

I O urbano: do cosmo ao caos..............................................................................189

II O interior encenado: notas sobre um


território dessacralizado.................................................................................... 203

Conclusão..................................................................................................................... 210

Referências Bibliográficas............................................................................................ 212

Anexo............................................................................................................................ 225

7
ALGUMAS NOTAS PRELIMINARES

“Nunca chegamos aos pensamentos. São eles que vêm”. Essa reflexão de
Heidegger, em A Experiência do Pensamento, não poderia ilustrar melhor a vivência a
ser aqui narrada. Contando com um trabalho de pesquisa e de leituras, não esquecendo,
no entanto, a intuição (essencial em um trabalho sobre o cinema que está se construindo
no presente), Brasis imaginados: a experiência do cinema brasileiro contemporâneo
(1990-2006) fundamenta-se na análise fílmica para tentar inferir sobre algumas
condições de produção e de circulação dos produtos audiovisuais e sobre a possibilidade
de se teorizar a experiência cinematográfica e as representações veiculadas nos filmes.
Todavia, antes de iniciar qualquer exposição sobre o presente trabalho, gostaria
de relatar seu breve “histórico” - palavra fria, porém bastante adequada neste momento.
Depois de ter realizado uma monografia sobre a obra de Sergei Eisenstein e a
reconstrução da história e da memória popular, deparei- me com a necessidade de
continuar minha trajetória dentro da academia, uma vez que o desejo de tentar entender
o cinema como fenômeno estético e cultural começou a me perseguir.
Pelo fato de viver uma condição paradoxal e conhecer relativamente pouco da
cultura brasileira, percebi, em meio a um processo doloroso (como qualquer outra
aventura intelectual), que não poderia dar um passo importante na minha vida
acadêmica continuando a ignorá-la.
Aliando essa minha inquietude à grande paixão que sempre nutri pelo cinema,
decidi fazer um projeto sobre cinema brasileiro, sem saber em que programa de pós-
graduação o mesmo seria acolhido. Por onde começar? Que período abordar? Que
questões trabalhar a partir dele? Que filmes ou diretores escolher? Aparentemente
normais e simples dentro do campo escolhido (no caso, os estudos de cinema ou teoria
de cinema, dependendo da filiação anglo-saxã ou francesa), cada uma destas indagações
se revelou alvo de uma escolha de ordem política (esta compreendida no sentido de ser
algo relacionado a jogos de poder). Isso significa afirmar que cada direção a ser tomada
se refletiria não apenas no resultado em si, como também na forma de apropriação das
idéias a serem defendidas dentro de um possível debate sobre o cinema nacional.
O paradigma da “identidade nacional” sempre me pareceu, desde a graduação,
como uma referência dentro do campo intelectual e cultural brasileiro. Mesmo sem
saber apontar exatamente em que momento de nossa história a busca por essa identidade
passou a se mostrar importante, resolvi iniciar minhas indagações a partir das noções de

8
identidade e de nação. Simultaneamente, pertenço à geração que cresceu ouvindo nas
aulas de História do Ensino Médio que o período (ou mudança de fase do sistema
capitalista) conhecido como Globalização colocou em xeque o papel dos Estados
nacionais, expondo suas fragilidades e os submetendo aos arbítrios do mercado
internacionalizado.
Desse modo, não pude me esquivar de trabalhar o cinema brasileiro atual, pois
nele tinha achado um campo (ou objeto, para os mais puristas) no qual seria
extremamente interessante explorar a seguinte contradição: como um cinema realizado
após o impacto da Globalização ainda retratava (e muito!) o seu próprio país? 1 E mais:
por que o cinema brasileiro atual resistia a “se internacionalizar” e a mostrar dramas
supostamente “universais”? De onde vinha a necessidade e/ou a exigência de o cinema
brasileiro retratar o Brasil?
Tendo em vista esse panorama inicial do projeto, vi vários filmes até encontrar
alguns que poderiam configurar o corpus da minha pesquisa. Cheguei a Cronicamente
Inviável (2000), de Sérgio Bianchi, através de um debate promovido pelo professor João
Luiz Vieira no Centro Cultural Banco do Brasil, em janeiro de 2003. Sendo um filme
que expõe nossa condição econômica, social e cultural insustentável, encantei- me com o
mesmo e percebi nele a possibilidade de se avaliar como o cinema brasileiro “imagina”
o Brasil.
Quanto a Baile Perfumado (1996), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, foi- me
recomendado pela professora Hilda Machado no curso de História do Cinema
Brasileiro, ministrado na graduação durante o primeiro semestre de 2003. Outros
aspectos do trabalho revelaram-se nessa escolha: a relação identidade-alteridade, isto é,
em relação a quem a nação brasileira se afirma; a tensão entre nacional e regional (no
caso, o nordestino); a metalinguagem (ou seja, como o cinema avalia sua própria
história, na medida em que o filme narra a experiência de Benjamin Abraão, mascate
libanês que queria realizar um documentário sobre Lampião).
Originou-se, então, o projeto A identidade nacional fragmentada no cinema
brasileiro contemporâneo, apresentado e aprovado na seleção do mestrado do
PPGCOM/UFF em fins de 2004. Possuindo como referências o debate sobre pós-
modernidade empreendido por Stuart Hall e Fredric Jameson, é preciso lembrar a

1
O que lhe vale algumas críticas, tais como as do Diretor do Festival de Veneza e da comissão de seleção
do mesmo, que classificou os filmes nacionais como “brasileiros demais” (Cf:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2005/08/050809_veneza.shtml. Consultado em
17/01/2007 às 18:56h), referindo-se diretamente a filmes como os de Sérgio Bianchi.

9
hipótese principal em que o projeto se sustentava: a “nação” construída diegeticamente
pelos filmes é contraditória, fragmentada, inconciliável e incomunicável, sendo que, em
Cronicamente Inviável, a contradição se manifesta no discurso interno dos personagens,
a fragmentação é percebida pela instabilidade dos pontos de vista, a inconciliação se
instaura com o choque de universos e argumentos entre as diferentes trajetórias
individuais dos personagens e a incomunicabilidade assume a posição geradora da
tragédia nacional, enquanto que, em Baile Perfumado, a contradição e a inconciliação se
manifestam externamente aos personagens, além de a fragmentação ser explicitada na
ação das personagens, na dicotomia entre regional (bando de Lampião, Tenente Rosa,
etc) e estrangeiro (Benjamim Abraão e sua família) e na instabilidade dos pontos de
vista. Por fim, a incomunicabilidade assume aqui a face de intolerância e de proteção
hipócrita da nacionalidade.
Muito presa aos filmes (além de fatalista ao extremo), essa hipótese, com as
mudanças posteriores no trabalho, perdeu muito da sua força inicial. Vejamos o que
dela podemos aproveitar: a) a relativização da narrativa nacional, vista a partir da
perspectiva dos personagens; b) a exploração da relação nacional- regional; e c) a
fragmentação da narrativa, visto que, em uma fase anterior (leia-se, modernidade),
exaltava-se justamente a unidade da nação.
Dois anos, muitas fotocópias e algumas crises depois, várias modificações
alteraram os rumos empreendidos na pesquisa, de forma que esta se encontra um tanto
distante de sua ambição original. Mesmo enfatizando a pós- modernidade como
paradigma, o projeto original atrelava-se excessivamente às reflexões dos diretores e
perdia de vista o cinema brasileiro atual enquanto cinematografia, isto é, o cinema como
escrita visual coletiva e que se realiza tão somente na esfera pública e no processo
comunicacional. Por conseguinte, corríamos o risco de enveredarmos em discussões
exclusivamente “autorais” (ou seja, que relacionassem o conteúdo dos filmes apenas á
obra anterior dos cineastas) e deixarmos de lado um aspecto fundamental do trabalho a
ser aqui desenvolvido: tentar compreender como os filmes escolhidos para serem
submetidos à análise fílmica mobilizam diversos jogos de representações e, portanto,
são capazes de revelar, através de seus processos de produção e difusão, as contradições
vivenciadas atualmente pelos meios de comunicação, uma vez que o cinema se insere
neste panorama.
É preciso recordar, ainda, que o projeto original explorava as interfaces entre a
Comunicação e a Antropologia, o que explicita a ênfase do mesmo nas categorias de

10
representação mobilizadas ao longo dos filmes. Sem abandonar essa perspectiva
original, faz-se importante esclarecer que algumas questões ligadas à economia política
do cinema serão sinalizadas por ocasião da análise dos discursos dos filmes, sobre os
filmes e sobre o cinema brasileiro atual. Porém, lembramos que o presente trabalho não
se coloca, no entanto, como uma análise da economia política da comunicação; este
apenas ressalta que não se pode avaliar como um filme se coloca na posição de
representar certas realidades sem levar em consideração as bases materiais nas quais o
fenômeno-cinema se realiza. Ademais, a análise fílmica a ser empreendida não se
esquecerá de se situar em relação à História (seja a história do cinema brasileiro, seja a
história como discurso).
Em primeiro lugar, é necessário apresentar os filmes selecionados para este
trabalho (e as condições em que eles foram escolhidos), uma vez que tanto
Cronicamente Inviável quanto Baile Perfumado foram abandonados no curso das
transformações do projeto original. Em junho de 2005, assisti a Quanto vale ou é por
quilo? (2005), filme mais recente do diretor Sérgio Bianchi, na Maratona Odeon
(evento realizado pelo Grupo Estação toda primeira sexta-feira do mês e ponto de
encontro de cinéfilos 2 ). De imediato, ao considerar o conteúdo e a linguagem do filme e
ao perceber a reação do público, resolvi trazê- lo à minha pesquisa. Com uma narrativa e
uma estética semelhante a Cronicamente..., este filme, ma is maduro e com um humor
ainda mais ácido, revela um Brasil subjugado por uma elite corrupta e por um povo
manipulado e incapaz de reagir aos desmandos daquela.
Já Narradores de Javé (2004), de Eliane Caffé e Quase Dois Irmãos (2005), de
Lúcia Murat, foram vistos em condições muito parecidas, isto é, dentro de uma sala
pequena no cinema Estação Botafogo, ao lado de cerca de vinte pessoas que
conseguiram sobreviver ao ar condicionado que já me rendeu alguns resfriados.
Narradores de Javé, o segundo longa de Caffé, retrata a vida de uma pequena
comunidade no interior da Bahia (cujo nome ‘real’ é Gameleira da Lapa) e de sua
destruição por uma usina hidrelétrica, expondo os dramas oriundos de uma tradição
política autoritária que, em nome do progresso, quantifica e desumaniza as populações
mais pobres.

2
Aliás, é preciso dizer que os acontecimentos ligados à área cinematográfica e ao cinema brasileiro em
particular (cineclubes, sessões extras realizadas em cinemas, centros comunitários, festas, etc) seriam um
excelente campo para a realização de uma etnologia que vise compreender a formação da
espectatorialidade contemporânea, o que não é, evidentemente, o objetivo deste trabalho.

11
Quase Dois Irmãos, por sua vez, traz a marca autobiográfica de Murat, visto que
ela própria foi prisioneira política do sistema representado no filme (a ditadura militar
pós-1964). O filme expõe a relação entre dois presos da Ilha Grande - sendo um deles
preso político e outro um preso comum – para retratar a origem da criminalidade
contemporânea (já que nele se narra a formação da Falange Vermelha, que depois se
transformou no Comando Vermelho).
Ao apresentar os três filmes a serem utilizados na análise das representações
veiculadas pelo cinema brasileiro atual, devemos também relatar algumas concepções
que irão nortear este trabalho, além das experiências prévias que marcaram seu
resultado. Propositadamente escolhidos pelo fato de terem estilos, narrativas e temáticas
díspares entre si, os filmes desempenharão aqui uma função “dupla”: suas
representações serão submetidas à análise de representações veiculadas por outros
filmes pertencentes à categoria “cinema brasileiro contemporâneo”3 e dos problemas
que envolvem a produção cinematográfica do período atual.
Partindo disso, sublinhamos, de início, a concepção de jogos de representação,
que assinala a co-existência de representações complementares e/ou opostas, uma vez
que é evidente que os filmes não difundem representações “mônadas”. Sendo assim, a
ênfase nos filmes acima mencionados certamente não excluirá a presença de outros
filmes brasileiros atuais e de outros produtos audiovisuais (telejornais, telenovelas, etc),
visto que as representações são construídas relacionalmente.
Como justificar a escolha de três filmes de ficção em um trabalho que se
pretende “relacional”? Existem alguns pensamentos pouco esclarecedores a respeito da
ficção que a colocam no plano da mentira, da ilusão. Retoma-se aqui o sentido da
palavra fictio - invenção, criação – para enfatizar que a ficção também pode ser objeto
do conhecimento, às vezes revelando aspectos da realidade fílmica (diegese) e extra-
fílmica mais instigantes que alguns documentários mal feitos.
Antes de prosseguir e enumerar a estrutura inicialmente pensada para esta
dissertação, devo relatar a breve (porém muito relevante) experiência de docência que
tive junto ao Departamentos de Estudos Culturais e Mídia, no primeiro semestre de
2006, e junto ao Departamento de Cinema e Vídeo, no segundo semestre do mesmo
ano, ambos pertencentes à UFF. Tendo oferecido a cadeira de cinema brasileiro
contemporâneo, a mesma se pautou por um panorama dos filmes brasileiros atuais a

3
Sendo que essa categoria terá destaque no presente trabalho, tendo inclusive sua periodicidade (a partir
de 1990) justificada no capítulo 2.

12
partir de tópicos como “representação do passado”, “cinema documentário”, “cinema e
discursos raciais” e “cinema e literatura”. A discussão com os alunos dos filmes e da
nossa realidade atual foi- me de muita valia na avaliação do meu objeto de pesquisa –
tanto os filmes já apresentados quanto o cinema brasileiro atual. O trabalho, inclusive,
incorpora observações feitas pelos alunos em sala de aula e nos trabalhos de fim de
curso (um ensaio sobre qualquer tema ligado ao cinema brasileiro atual).
Passando à estrutura que o trabalho pretende assumir, pelo fato de este se situar
entre a análise fílmica e os estudos de uma cinematografia, o mesmo será dividido em
duas partes (“Reflexões sobre a categoria cinema brasileiro contemporâneo” e “Os
jogos de representações no cinema pós-EMBRAFILME”). A primeira parte constará de
dois capítulos sobre a situação do cinema brasileiro atual e sobre o quadro teórico a ser
adotado em sua análise, enquanto a segunda abrigará dois capítulos sobre a análise dos
filmes a partir de diferentes aspectos deste.
O primeiro capítulo - Entre o pós-moderno, o supermoderno e o híbrido:
propostas de análise de uma cinematografia periférica - se propõe enquanto uma
revisão das teorias do pós-moderno (incluindo sob esta nomenclatura teóricos que
avaliam questões como identidade, nação, espaço, lugar, dentre outros) no intuito de
avaliar que conceitos desta podem ser interessantes ao se avaliar uma cinematografia
nacional, efetuando as devidas críticas e observações às obras e aos pensamentos dos
autores.
Já Cinema Brasileiro contemporâneo versus Retomada: os embates políticos na
patrimonialização do cinema pós-EMBRAFILME (1990-2007), o segundo capítulo
dessa dissertação, por sua vez, pretende discutir como se articulam os discursos críticos
sobre o cinema brasileiro atual e como a categoria “cinema brasileiro contemporâneo” é
pensada pelo meio acadêmico e pela crítica de cinema; além disso, verifica como este se
configura enquanto um campo dotado de disputas inerentes a ele.
A segunda parte também será dividida em dois capítulos, enumerados a seguir:
Imagens, representação do passado e políticas identitárias no cinema brasileiro
contemporâneo e Por uma Pasárgada moderna, pós-moderna ou,
supermoderna?Algumas notas sobre imagens de Brasil.
Imagens, representação do passado e políticas identitárias no cinema brasileiro
contemporâneo, o primeiro capítulo dessa segunda parte, pretende avaliar de que formas
as práticas discursivas em torno da raça, religião, geração, região, gênero, território,
classe, etc, serão trazidas e encenadas pela diegese dos filmes, contestando a

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centralidade das narrativas nacionais modernas. Ademais, existe a questão da
representação do passado, campo em que o nacional (e, por conseguinte, do próprio
cinema brasileiro) é legitimado ou contestado, sendo necessário inferir que, no intuito
de avaliar com maior clareza o plano da representação, utilizaremos tanto teóricos de
cinema (Aumont, Vanoye, Burgoyne) quanto historiadores (Bann, Rosenstone) que
tratam do assunto.
Encerrando esta segunda parte, Por uma Pasárgada moderna, pós-moderna ou,
supermoderna?Algumas notas sobre imagens de Brasil delinear-se-á pela discussão
acerca da construção de imagens sobre o Brasil, mais precisamente sobre que espaços,
personagens, temáticas, símbolos, etc, são alçados ao plano da representação do
nacional (neste capítulo, não poderemos esquecer que os filmes se inserem em um
panorama maior, o audiovisual; portanto, deveremos efetuar comparações com
representações veiculadas por outras mídias e outros filmes brasileiros atuais).
No tocante à pesquisa, é preciso mencionar que a mesma se pautou
prioritariamente pelo material recolhido em arquivos do MAM-Rio, da FUNARTE-Rio,
da Cinemateca Brasileira e do Museu Lasar Segall, sendo o mesmo composto por
material de imprensa sobre cinema brasileiro e algumas análises veiculadas sobre os
filmes e os diretores. A possibilidade de se averiguar a recepção imediata, pelo impacto
de mídia e pelos debates produzidos durante a exibição comercial ou não dos filmes,
configura uma contrapartida à quase inexistência e à pouca circulação de estudos
específicos – monográficos – sobre os diretores e os filmes aqui analisados.
Antes de encerrarmos esta breve introdução, gostaríamos de enumerar algumas
hipóteses inicias que irão nortear este trabalho: a) a narrativa nacional, mesmo tendo
sido ‘deslocada’ pela globalização (ou capitalismo tardio ou pós- modernidade), ainda
não teve suas forças totalmente dissipadas; ou seja, esta ainda é uma instância de
legitimação ou de contestação; b) o cinema brasileiro contemporâneo, em sintonia com
as críticas feitas às narrativas nacionais modernas, constrói micro-narrativas que
contestam o lugar tradicionalmente reservado (inclusive pelo próprio cinema) à nação;
c) as práticas discursivas ligadas a classe, gênero, raça, religião, geração, região, foram
trazidas ao centro das narrativas contemporâneas, lembrando ao espectador dos jogos de
identidades a serem inseridos na arena política contemporânea.

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Capítulo 1

ENTRE O PÓS-MODERNO, O SUPERMODERNO E O HÍBRIDO:


PROPOSTAS DE ANÁLISE DE UMA CINEMATOGRAFIA PERIFÉRICA.

Em O Cinema Brasileiro Moderno, Ismail Xavier defendeu a tese de que o


cinema realizado no Brasil durante os anos 60 e 70 (e suas correntes principais, Cinema
Novo e Cinema Marginal) configurou, deliberadamente, a atualização do paradigma
moderno (há muito presente na literatura brasileira) no campo da imagem. Através de
seus filmes, circuitos culturais e manifestos, o “cinema moderno” afirmou-se de forma
consciente como uma referência no quadro cultural do período.
Ao contrário de seu antecessor, o cinema brasileiro contemporâneo, cujo marco
fundador é o fechamento da EMBRAFILME4 , foi lançado a contragosto na pós-
modernidade, sem saber praticamente nada sobre ela 5 . Os delírios de modernização que
motivaram a campanha de Fernando Collor traduziram-se na concepção de que o Estado
deveria ficar a cargo de um número mínimo de atividades (tese do “Estado Mínimo”),
sendo que outras (inclusive o cinema) deveriam sobreviver no mercado, o que resultou,
dentre outros, na Lei 8029/90, que extinguiu a empresa 6 junto com vários outros órgãos
tidos como “atrasados”.
O que chama nossa atenção, em um primeiro momento, é a aceitação (com
muito pouca reflexão) do pós-moderno. Será que uma cinematografia brasileira, para se
inserir no panorama contemporâneo, precisa necessariamente afirmar o pós- moderno
frente ao moderno? Como essas duas “ordens” se superpõem no cinema atual e, mais
especificamente, nos três filmes a serem analisados?
No intuito de compreender o paradigma pós- moderno (ou suas versões como
“híbrido”, “pós-colonial”, “supermoderno”, “transnacional”), pretendemos realizar,
neste capítulo, uma pequena revisão do pensamento de vários autores a respeito destes
conceitos, com o objetivo de formular questões e considerações à análise dos filmes e
do conjunto da cinematografia brasileira atual.

4
O que será posteriormente explicado no próximo capítulo.
5
É importante frisar que pós-modernidade, nesse caso, se refere principalmente à dimensão econômica,
uma vez que já se detectava em alguns filmes como O Bandido da Luz vermelha (1969), Lúcio Flávio, o
passageiro da agonia (1974) uma estética “pós-moderna”.
6
Cf: AMANCIO, Tunico. Artes e manhas da EMBRAFILME: cinema estatal brasileiro em sua época de
ouro. Niterói, Ed. UFF, 2000.

15
Antes de passarmos a seus respectivos pensamentos, é preciso justificar
minimamente a presença destes aqui. No tocante a Marc Augé, a sua categoria de
“supermodernidade”, desafiadora das concepções tradicionais de pós- moderno (sem, no
entanto, negá- las), pode nos auxiliar na análise de como as representações fílmicas são
recebidas pelo espectador (seja utilizando algumas categorias analíticas de Augé na
análise fílmica propriamente dita, seja investigando como são apresentados os espaços
da espectatorialidade contemporânea).
Já o pensamento de Stam, Shohat e Canclini serão muito favoráveis à
compreensão no deslocamento das narrativas nacionais modernas, uma vez que o
multiculturalismo e sua perspectiva híbrida inserem categorias discursivas esquecidas
ao longo da modernidade totalizadora.
Essa mesma modernidade terá seu lugar contestado por diversas teorias pós-
coloniais, dentre as quais ressaltamos o papel de dois teóricos: Arjun Appadurai e Homi
Bhabha, que trabalham a cultura, sobretudo, no plano narrativo e, a partir da localidade
das práticas culturais, investigam como os povos colonizados elaboram resistências e
projetos.
Essas noções de resistência e projeto serão alvo de uma releitura por Manuel
Castells, que as relacionará ao paradigma da identidade, tão caro aos estudos culturais
na atualidade e aos críticos pós- modernos. Estes se farão presentes no trabalho do
crítico marxista Fredric Jameson7 , cuja ligação entre lógica cultural e lógica capitalista
será aqui analisada para, dentre outros, compreender a dinâmica entre nacional e global
(e como essa dinâmica se insere na representação fílmica).
Como observação final, é importante dizer que os exemplos a serem utilizados
ao longo das exposições conceituais, longe de esgotarem a análise, configuram um
ponto de partida para as reflexões a serem desenvolvidas ao longo desta dissertação.

7
Obviamente, outros críticos que se relacionem a Jameson (tais como Hutcheon, Goldberg) também terão
seus textos aqui citados e avaliados.

16
I A SUPERMODERNIDADE DE AUGÉ

Relatando ironicamente a trajetória de Pierre Dupont (versão francesa do nosso


“João Ninguém”, já que ambos os nomes chamam a atenção justamente por serem
comuns), o etnólogo Marc Augé tenta forjar as bases de sua teoria da
supermodernidade.
O etnólogo retoma o conceito de “fato social total” de Mauss para relatar que a
experiência, em uma determinada sociedade, se dá em relação a um tempo, a um espaço
e a um indivíduo concretos. A partir de uma situação fundamental - o excesso - Augé
infere que a supermodernidade irá se diferenciar da modernidade a partir do excesso de
tempo (a superabundância factual do mundo contemporâneo), do excesso de espaço (o
correlativo encolhimento do planeta, por meio do encurtamento das distâncias, da maior
velocidade dos meios de comunicação, que produz sensação de simultaneidade de
acontecimentos, etc) e do excesso do ego, do indivíduo (a própria etnologia, depois de
estudar as culturas como textos, passou a analisar a descrição etnográfica como textos,
revelando sua preocupação com o autor; a produção individual de sentido passa a ter seu
eixo principal no aparelho publicitário, sendo que a própria política – leia-se, esfera
pública - irá se render à categoria das liberdades individuais). O “super” de
supermodernidade, contrariamente ao “pós” de pós- moderno, não denota a passagem de
tempo, e sim a saturação das instâncias em que o moderno tentou se afirmar.
Fundamental para esta teoria é o conceito de não- lugar:

“[A superabundância espacial do presente] resulta, concretamente, em


consideráveis modificações físicas: concentrações urbanas,
transferências de populações e multiplicação daquilo a que
chamaremos de “não-lugares”, por oposição à noção sociológica de
lugar, associada por Mauss e por toda uma tradição etnológica àquela
cultura localizada no tempo e no espaço. Os não-lugares são tanto
instalações necessárias à circulação acelerada de pessoas e bens (vias
expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios
de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos
de trânsito prolongado onde são estacionados os refugiados do
planeta”8 .

Lembrando que o autor preocupa-se com a afirmação do campo da etnologia na


Europa atual, vejamos o que se pode apreender do conceito acima: “não- lugar” seria
tudo aquilo que não é objeto de reivindicação por nenhum grupo e nenhuma tradição,

8
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, Papirus,
2005, pág. 36.

17
isto é, um espaço desprovido de signos que o identifiquem a um grupo social, nação,
etnia, etc.
É preciso recordar dois pontos do pensamento de Augé: a) a supermodernidade é
produtora de não-lugares; b) o lugar 9 e o não- lugar coexistem relacionalmente – “o
primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente”10 .
Deve-se fazer algumas observações a essa teoria de Augé. Em primeiro lugar,
ela não se propõe a anular as discussões em torno da pós- modernidade; apenas adota um
outro eixo de discussão (saindo da “crise da idéia de progresso” tão anunciada e
trabalhada pelos teóricos dos pós- modernos). Desse modo, não inviabiliza a operação
simultânea com conceitos oriundos destas teorias (Jameson; Canclini; Bhabha;
Chaterjee; etc), o que será aproveitado neste trabalho.
Entretanto, precisamos analisar minuciosamente a categoria que fundamenta a
supermodernidade: o excesso. A base da teoria do supermoderno pressupõe que os
indivíduos estejam submetidos às três formas de excesso relatadas ao menos em um
nível parecido, o que não parece condizer com a realidade mundial (sequer com a
realidade da Europa contemporânea, onde esta teoria reivindica sua possível
aplicabilidade).
Quanto ao excesso de tempo, traduzido na superabundância factual do presente,
é necessário contestar a tese fatalista do etnólogo de que todos nós, de um modo ou
outro, estaríamos submetidos a esse “excesso do fático”. Em se tratando de uma
sociedade brasileira, o excesso de tempo se faz presente principalmente nas grandes
cidades (e mesmo assim nem todos os seus habitantes se encontram submetidos a ele,
uma vez que muitos possuem acesso a alguns meios de comunicação – TV e rádio – no
entanto, ficam alheios à internet, à TV paga, o que certamente influi na percepção de
tempo individual e coletivo), sendo que este tipo de excesso pode ser contestável ao se
deparar com comunidades rurais e do interior do Brasil (como aquela retratada em
Narradores de Javé).
O excesso de espaço, por sua vez, é vivenciado por uma elite capaz de se
locomover por grandes distâncias em pouco tempo. De fato, a experiência européia
parece ser um tanto mais intensa, com seus TGV – trens de grande velocidade, seus

9
Aqui, o autor se refere em específico ao lugar antropológico, “(...) àquela construção concreta e
simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradições da vida
social, mas à qual se referem todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que
seja”. Op. cit., pág. 51.
10
Op. cit., pág. 74.

18
aeroportos conectados por pontes aéreas congestionadas, além de suas próprias
fronteiras, com a União Européia, estarem mais flexíveis ao fluxo de pessoas e
mercadorias. Faz-se necessário, no entanto, o cuidado ao verificar a aplicabilidade desse
excesso de espaço em regiões ainda mal interligadas, cujos habitantes se deslocam com
dificuldade com meios de transporte arcaicos, mesmo que essas regiões sejam
intercaladas com grandes metrópoles.
O excesso de ego analisado por Augé soa um tanto determinista, na medida em
que, ao reconhecer a importância dos meios de comunicação contemporâneos e seu
impacto na produção de subjetividade, o autor concede um papel excessivo a estes,
como se não houvesse outros lugares em que esta subjetividade é formada (enumeramos
alguns: escola; instituições estatais de repressão – presídio, delegacia; família; religião;
etc).
Entretanto, ainda é útil recorrer mais uma vez à figura do excesso e ver de que
modo a modernidade – através do cinema inclusive – já havia, de certa forma,
“preparado” o imaginário do espectador/ouvinte, principalmente os das grandes cidades;
a modernidade é um fenômeno eminentemente urbano, cujos signos se ligam a este
espaço.
Recordando que o cinema surge em um momento que apenas poucas pessoas
realizam os chamados “contatos inter-culturais” (viajantes, colonizadores, antropólogos
em missões), este meio será fundamental para: a) produzir imagens de lugares distantes
para os habitantes do Primeiro Mundo e para uma elite das áreas colonizadas ou recém-
descolonizadas; b) através do cinema de ficção, reforçar a projeção- identificação com os
valores difundidos pelo Ocidente (notadamente o chamado cinema clássico narrativo,
que instaura e naturaliza a condição do “espectador ideal”, isto é, o homem branco,
ocidental, cristão, heterossexual, classe média como “o” público a que os filmes se
dirigem); c) por meio da dominação pelos EUA e suas empresas distribuidoras e
exibidoras, ajudar na construção dessa “naturalização” da visão dos filmes do cinema
clássico, na medida em que este seria identificado como “o” cinema, relegando as
cinematografias nacionais a um plano periférico. Desse modo, alia-se a construção de
um “excesso imagético” a instâncias de poder bastante definidas, fundamental para se
pensar onde a supermodernidade teve suas bases de constituição.
Neste ponto, concorda-se com Augé no sentido de que o espectador
contemporâneo vivencia um período marcado por continuidades com o fenômeno
moderno, e não pela ruptura - como pregam algumas teses apocalípticas pós-modernas

19
(notadamente Jameson e sua “nostalgia do presente”), daí a expressão
“supermodernidade” ser empregada de forma eficaz na análise das transformações
sociais, mesmo com as críticas já feitas a algumas bases teóricas do autor.
Trazendo essa discussão para a área do cinema, é possível falarmos em “cinema
do não- lugar” (um cinema que se pretenda “desterritorializado”)? No caso do cinema
brasileiro atual: é possível uma cinematografia que, ao longo de sua história, esteve
ligada às discussões em torno do nacional-popular, abra espaço para um cinema que se
proponha dessa forma? Seguindo este raciocínio, podem existir “não-lugares” nos
filmes brasileiros atuais?
Em paralelo à discussão em torno dos filmes, vejamos como a técnica e a
recepção cinematográficas foram alteradas ao longo da década de 90 (em escala
mundial, sendo acompanhada pelo Brasil). Em 1997, chega ao Brasil a cadeia de
cinemas Cinemark, marcando a entrada dos conglomerados internacionais no mercado
exibidor nacional11 . Esse processo é descrito por Gatti: “O processo de
internacionalização das salas é abordado, figurando o caso da companhia norte-
americana Cinemark, que logo se transformou na maior exibidora e uma das primeiras
empresas internacionalizadas a investir pesadamente na construção de um circuito
próprio”12 .
Na medida em que as salas desses cinemas possuem uma disposição homogênea
ao longo de suas inúmeras construções (lembrando que a rede Cinemark possuía 264
salas até 2003 13 ), cujas características se encontram desde a ênfase nos aspectos
técnicos da recepção (som e imagens digitais) até a disposição física dos ambientes
(corredores amplos, bilheteria e lanchonetes internas facilmente localizáveis ao
espectador), é possível inferir que boa parte do mercado exibidor cinematográfico atual
constitui um “não- lugar”, comparável aos aeroportos e TGVs de Augé.
Entretanto, devemos relatar aqui que não se trata de um processo fechado e sem
saída, uma vez que outras práticas de re-territorialização - tais como a reativação dos
cineclubes, as exibições cinematográficas em ruas, praças, universidades, ONGs, os

11
Cf: GATTI, André Piero. Distribuição e exibição na indústria cinematográfica brasileira (1993-2003).
Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, Programa de Pós-
graduação em Multimeios, 2004.
12
Op. cit., pág. 10.
13
Op. cit., pág. 294.

20
“cine- mambembes”14 – reinscrevem a recepção do cinema na tensão entre lugar e não-
lugar.
Além da recepção, a própria técnica também sofreu alterações ao longo da
década de 90, sobretudo com o advento do digital (é preciso lembrar que os três filmes
analisados foram feitos nesse formato, assim como a maioria dos filmes brasileiros
atuais), ao que as salas de cinema tiveram de se adequar.
Pode-se, a partir disso, inferir que o digital também seria um signo do não-lugar?
É interessante, em primeiro lugar, constatar que a técnica cinematográfica nunca foi
usufruída de modo homogêneo pelos países centrais e periféricos (no Brasil, por
exemplo, sempre se careceu de fábricas de películas e equipamentos cinematográficos);
além disso, os know-how da indústria cinematográfica ligados à revelação dos filmes, à
comercialização etc também eram distribuídos de forma desigual (poderíamos citar a
questão histórica do som no cinema brasileiro: os espectadores de cinema que
criticavam o cinema nacional o faziam principalmente nos aspectos técnicos, sendo o
som apontado por muitos como seu principal problema. Sobre isso, devemos recordar
que a revelação dos filmes, bastante precária, prejudicava a banda sonora dos filmes15 ).
Sendo muito mais barato que a película (em especial por não ter os custos de
revelação), o digital passou a ser vastamente utilizado em escala mundial. Além disso,
em termos de recepção, as melhorias em torno da qualidade da imagem e do som
impulsionaram os realizadores a adotar o digital. Logo, com o advento do digital,
poderíamos afirmar que houve uma maior homogeneização na técnica do cinema.
Passemos aos discursos articulados nos filmes. Em Narradores de Javé, vemos
claramente a tentativa de se transformar um lugar (um povoado do interior da Bahia) em
um não- lugar (lago alagado por uma represa). Além disso, a tensão narrativa construída
ao longo do filme visa justamente articular estratégias de re-significação do povoado
(através de sua memória oral) para impedir que o mesmo seja condenado ao
esquecimento (marca do não- lugar). Em Quanto vale..., por sua vez, o não- lugar, cuja
presença é simbolizada pelos discursos do marketing e da publicidade, é subvertido pela
narração dos males da escravidão e das ONGs atuais. Já em Quase Dois Irmãos, a

14
A título de exemplo, podemos lembrar o trabalho de Laís Bodansky e Luis Bolognesi pelo interior do
país.
15
Devemos essa observação perspicaz a uma conversa com o diretor Carlos Alberto Prates Correia, a
quem agradecemos.

21
utopia política (“u-topos”16 ) explicitada na convivência do presídio é “demolida” pelo
muro que segrega os presos em dois grupos marcados étnica e culturalmente.
Outros filmes brasileiros atuais também explicitam essa tensão narrativa entre
lugar e não- lugar: em Dois Perdidos numa noite suja (José Joffily, 2003), o local do
drama é um prédio abandonado. Um não- lugar dentro da estrutura da megalópole, o
prédio abandonado é disputado por seus inúmeros ocupantes, dentre eles os dois
brasileiros que dividem o mesmo “apartamento”. Já em Cidade de Deus (Fernando
Meirelles, 2001), o ambiente da favela e o caos vivenciado por seus moradores são re-
significados por um discurso ligado à estética da publicidade. N’O Caminho das nuvens
(Vicente Amorim, 2003), a trajetória de Rose (interpretada por Cláudia Abreu) - do
sertão nordestino ao Rio de Janeiro - é pontuada por músicas de Roberto Carlos aliadas
a uma estética fragmentária.
Diante disso, lançamos a seguinte hipótese: a construção de um não- lugar no
cinema, ocasionada pelas alterações na técnica e na recepção cinematográficas e pelas
mudanças na vida social em escala planetária, conduziu a uma necessidade de os
próprios filmes, em suas temáticas e formas, expressarem essa tensão narrativa entre
lugar e não- lugar. Isso não significa, em absoluto, afirmar que o não-lugar prepondera
nos filmes atuais ou que todos os filmes brasileiros atuais o incorporem; no entanto, ele
passa a figurar como elemento da diegese e dos pontos de vista na narrativa
cinematográfica. Recordamos que essa hipótese será retomada no capítulo que concerne
as imagens e lugares do cinema brasileiro contemporâneo (capítulo 4).

II O MULTICULTURAL E O HÍBRIDO EM STAM, SHOHAT E CANCLINI

Recém- lançado no Brasil, Crítica da imagem eurocêntrica configura a


atualização do pensamento multicultural nos Cinema Studies e do comprometimento de
seus autores - Robert Stam e Ella Shohat - com a crítica às instâncias eurocêntricas de
produção e difusão da imagem, que vai da indústria cinematográfica norte-americana ao
próprio meio acadêmico - com seus currículos e programas que marginalizam os
cinemas nacionais - passando pela obra de vários diretores que contestaram o paradigma
hollywoodiano de fazer cinema (Rocha, Ruiz, dentre outros).

16
Recordemos que utopia, para Augé, é o contrário de não-lugar: à inexistência física da primeira, o autor
salienta a dimensão concreta do último e o fato de ele não abrigar nenhuma sociedade orgânica.

22
Para iniciarmos este ponto, lançamos a indagação: qual é a natureza do
multiculturalismo? Este seria uma teoria, uma doutrina ou um projeto? Nas palavras de
Ismail Xavier (que assina o prefácio do livro):

“O multiculturalismo compreende uma relativização mútua e


recíproca das perspectivas em confronto, defende a idéia de que as
diversas culturas devem perceber as suas limitações no cotejo com as
respectivas alteridades, e devem saber reconhecer-se no
estranhamento”17 .

Percebemos que existe, inicialmente, certa confusão entre as três práticas


discursivas, uma vez que nele se faz presente a doutrina (“idéia de que as diversas
culturas devem perceber suas limitações [grifo nosso]”), a teoria (“relativização mútua e
recíproca das perspectivas em confronto”), não sem antes evidenciar o projeto (lidar
com os pensamentos através de um jogo de estranhamento de alteridades).
Sendo assim, no que tange à teoria, que instrumental o multiculturalismo poderia
proporcionar a um trabalho sobre cinema brasileiro contemporâneo? Em relação ao
projeto, onde um trabalho sobre uma cinematografia periférica poderia se inserir no
campo dos Cinema Studies? Por sua vez, o aspecto doutrinário do multiculturalismo
ajudaria na compreensão dos dilemas enfrentados pelos filmes brasileiros?
Invertendo a ordem das perguntas, enfrentemos o aspecto incômodo colocado
pela perspectiva multicultural. Faz-se necessária a palavra dos autores: “O
multiculturalismo descoloniza as representações não apenas quanto aos artefatos
culturais – cânones literários, exibições em museus, filmes – mas principalmente quanto
às relações de poder entre diferentes comunidades”18 . Mesmo invejando o otimismo de
Stam e Shohat, não é possível prosseguirmos um trabalho sobre cinema brasileiro sem
fazer a seguinte observação: não existe espaço para uma perspectiva teórica somente
multicultural em um sistema de representações cuja economia política é dominada pelas
majors nacionais e estrangeiras.
A título de exemplo, vejamos o corpus desta pesquisa: Quase Dois Irmãos foi
lançado com 20 cópias, em 2005, e foi visto por 58.928 espectadores. Quanto vale ou é

17
XAVIER, Ismail. In: STAM, Robert e SHOHAT, Ella. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo,
Cosac e Naify, 2006, pág. 13
18
Op. cit, pág. 26.

23
por quilo? foi lançado também em 2005, com apenas 7 cópias, tendo sido visto por
32.863 pessoas. Narradores de Javé, foi lançado em 2004 e visto por 67.004. 19
É digno de nota o fato de que nenhum dos filmes estudados “se pagou” (na gíria
cinematográfica) com a bilheteria (e provavelmente estes não irão “se pagar” com a
venda de homevideos nem com a cessão de direitos autorais a empresas de teledifusão),
além de ocupar parcelas irrisórias do próprio mercado de filmes brasileiros (Quase Dois
Irmãos respondeu por 0,52% do público de filmes brasileiros, enquanto que Quanto
vale... por 0,29%20 (ou seja, desconsiderando o impacto do cinema distribuído pelas
companhias norte-americanas).
Longe de querermos culpar os filmes pelo mau rendimento, sabendo que muito
dele é devido às falhas estruturais e políticas do mercado audiovisual brasileiro,
utilizamos esses dados apenas para ratificar o posicionamento de que o instrumental
multicultural pode ser usado na análise das representações veiculadas por esses filmes.
Todavia, o mesmo necessita ser comparado a outros instrumentais para que não se caia
na ilusão de que estamos construindo uma perspectiva meramente multicultural, mas
sem levar em consideração as bases materiais em que o cinema se realiza (inclusive,
reconhecendo que a constituição do imaginário do espectador só se efetua na medida em
que há o acesso aos filmes).
Já que tocamos na questão do instrumental, que discussões a respeito do
multicultural podem ser apropriadas? “Os meios de comunicação contemporâneos
formam identidades; na verdade, muitos argumentariam que eles estão muito próximos
do centro de produção das identidades”21 . Partindo de um dos grandes ganhos
intelectuais do multiculturalismo, isto é, a afirmação do jogo de identidades como
historicamente situado e as próprias identidades como múltiplas e instáveis, precisamos
discutir de que modo esse “fluxo” das identidades transparece nos jogos de
representação empreendidos nos meios audiovisuais (no caso em questão, no cinema
brasileiro atual e nos três filmes a serem avaliados) 22 .
Para tanto, vejamos o que Stam e Shohat afirmam a respeito do conceito de
representação:

19
Informações obtidas no site www.ancine.gov.br , na parte de Dados de Mercado, em 22/06/2006 às
03h42min.
20
Idem.
21
Op. cit., pág. 28.
22
É preciso sublinhar que o conceito de identidade será avaliado por ocasião da análise do pensamento de
Stuart Hall.

24
“As conotações de “representação” são ao mesmo religiosas,
estéticas, políticas e semióticas. (...) A representação também tem
uma dimensão estética, pois a arte também é uma forma de
representação, uma mimese, nos termos platônicos e aristotélicos. (...)
As artes narrativas e miméticas, na medida em que representam ethos
(personagem) e ethnos (povos), são consideradas representativas não
apenas da figura humana, mas também da visão antropomórfica. (...)
Muitos dos debates políticos em torno de questões de raça e gênero
nos EUA têm como ponto central a questão da representação própria
e do aumento de representação das “minorias” em instituições
políticas e acadêmicas. O que todos esses exemplos têm em comum é
o princípio semiótico de que algo “está no lugar” de uma outra coisa,
ou de que alguém ou algum grupo está falando em nome de outras
pessoas ou grupos. Nos campos de batalha simbólicos dos meios de
comunicação de massas, a luta por representação tem
correspondência com a esfera política”23 .

Possuindo o mérito de enumerar os vários usos do conceito de representação,


esta passagem ilustra de que modo queremos proceder aqui à análise dos filmes. Não é
possível, diante de um filme, atermo-nos exclusivamente às representações mobilizadas
no plano “interno” (ou textual). Devemos levar em consideração, por exemplo, o fato de
Quanto vale ou é por quilo? representar a questão do negro no momento em que o faz
(ascensão política do movimento negro, revisão historiográfica impulsionada pelos
ganhos deste na esfera estatal); ou Quase Dois Irmãos retratar o ambiente da favela, do
presídio e de uma classe média atônita ante os acontecimentos (não sem esquecer o
papel político tradicionalmente exercido pela classe média no país, a realidade do
narcotráfico presente nas grandes cidades e nos telejornais, etc); ainda, Narradores de
Javé relatar os dramas da sobrevivência de uma cultura oral diante da destruição de um
vilarejo, opondo a este fato a ideologia desenvolvimentista da ditadura militar (que,
embora não apareça explicitamente no filme, transparece na fa la de um personagem –
“Os milhões de beneficiados eu não sei, mas os tantos do sacrifício somos nós” - e no
fato de o filme ser narrado em um grande flashback tendo como referencial os dias de
hoje24 ), responsável pelo deslocamento de populações do interior e seu posterior
empobrecimento e “favelização”. Logo, devemos perceber os filmes como situados em
uma arena política de representações, sendo textos que “se movem” diante de
representações de grupos, etnias, gêneros, regiões, gerações, etc, e num panorama de
meios audiovisuais cada vez mais concentrados e alvos de oligopólios.

23
Op. cit., pág. 267-268.
24
Aliás, é digno de nota que a estrutura narrativa de Narradores de Javé seja bastante similar à de Cidade
de Deus, uma vez que ambos os filmes são estruturados em grandes flashbacks e fazem usos do passado
bastante semelhantes entre si.

25
Aliada à noção de representação, pode-se retomar aqui outro ponto caro às
teorias multiculturalistas: o estereótipo. Sendo um elemento fundamental na relação
entre diversos povos, o poder desigual detido por alguns detentores dos meios de
produção imagéticos é contestado por Stam, o qual aponta a necessidade de, dentre
outros:
“1) revelar padrões opressivos de preconceito no que, à primeira
vista, poderiam parecer fenômenos aleatórios e incipientes; 2)
destacar a devastação psíquica infligida por representações
sistematicamente negativas dos grupos por estas agredidos, seja na
internalização dos próprios estereótipos ou nos efeitos negativos de
sua disseminação; e 3) sinalizar a funcionalidade social dos
estereótipos, demonstrando ser não um erro de percepção, mas um
modo de controle social projetado na forma do que Alice Walker
chama de “prisões da imagem” (Alternative Museum, 1989)” 25 .

Recordando que essa análise dos estereótipos configura preocupação de parte


significativa da teoria social no caso brasileiro (Lilia M. Schwarcz; Renato Ortiz;
Florestan Fernandes; Octavio Ianni; Manuela Carneiro da Cunha, Antônio Sérgio
Guimarães etc) e que a relação entre estereótipo e controle social não é algo
propriamente novo nem apenas do campo da imagem, é possível reconhecer a
importância da análise dos estereótipos veiculados por produtos audiovisuais e sua
recepção nas arenas política e cultural.
No entanto, devemos atentar para o fato de que o estereótipo é um conceito
mobilizado não somente por uma teoria multiculturalista, como também por outros
campos (História Social, Antropologia, Psicologia Social). O que a teoria ligada ao
multiculturalismo procura propor, todavia, é o aumento da escala do debate. Mesmo
tendo como base as análises mais localizadas de outros campos, ao mencionar
funcionalidade social dos estereótipos, Stam recoloca a questão em uma perspectiva
“internacionalista” (ou seja, como eles são veiculados audiovisualmente e de que modo
eles mediam as relações entre povos situados próximos ou distantes entre si).
Já que nos referimos há pouco a uma arena política, resgatemos o conceito de
“multiculturalismo policêntrico” de Stam e Shohat: “acreditamos que a noção de
policentrismo globaliza o multiculturalismo ao projetar uma reestruturação de relações
intercomunais no interior e além do Estado- nação, de acordo com os imperativos

25
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas, Papirus, 2005. Posição semelhante é
defendida por David Theo Goldberg em Introduction: multicultural conditions. In: GOLDBERG, David
T. (org) Multiculturalismo n perspective. Cambridge, Blackwell Publishers, 1994, pág. 1-41.

26
internos de diversas comunidades”26 . A palavra “globaliza” já anuncia o
multiculturalismo como um projeto da academia norte-americana perante o resto do
mundo e diante das exigências de uma maior aplicabilidade dos ideais democráticos
supostamente “efetivados” nos EUA ao campo teórico. Sendo assim, um trabalho que
pretende se inserir nas discussões propostas por ele deve ter o cuidado de não reforçar o
discurso “do centro” e colocar as cinematografias nacionais no plano do “exótico”, do
“excêntrico” e do “incomum”.
Mas vejamos como este conceito é pensado por seus autores:

“O multiculturalismo policêntrico difere do pluralismo liberal em


diversos aspectos. Primeiramente, ao contrário do discurso liberal-
pluralista dos universais éticos – liberdade, tolerância, caridade – o
multiculturalismo policêntrico enxerga toda a história cultural da
perspectiva do jogo social de poder. (...) Logo, trata-se de uma
exigência de mudança não apenas nas imagens, mas nas relações de
poder. Acima de tudo, o multiculturalismo policêntrico não prega
uma falsa igualdade de pontos de vista: suas simpatias estão
claramente voltadas aos marginalizados e excluídos”27 .

É sintomático este conceito ser construído em oposição a uma doutrina política


(pluralismo liberal), uma vez que o aspecto doutrinário do multiculturalismo fica assim
explicitamente marcado. É possível estabelecer um programa de “exigências” em
relação a imagens e a relações de poder na teoria per si? Duvidamos disso.
Evidentemente não queremos negar o aspecto político das teorias sobre a cultura,
apenas revelamos nosso ceticismo ante uma teoria tão normativa a ponto de achar que
pode formular exigências. O que pode ocorrer, na análise dos jogos de representação, é
a tentativa de detectar como esses jogos de poder se fazem presentes na produção e na
difusão imagética (lembramos que os três filmes desta pesquisa, assim como a grande
maioria dos filmes brasileiros, foram produzidos e dirigidos por equipes
majoritariamente brancas formadas nos quadros de uma classe média com tradição
política voltada à esquerda, e isso não pode ser negligenciado ao se analisar os filmes).
Uma teoria que se coloca explicitamente ao lado dos “marginalizados” pode correr o
risco de se emaranhar no “caldo” judaico-cristão da culpa e da caridade (que ela em tese
refutou, mas reproduz a mesma atitude na prática), perdendo de vista os detentores do
poder econômico e simbólico. Não esqueçamos que exaltar e sobrecarregar o papel dos

26
Op. cit., pág. 87.
27
Op. cit., pág. 87.

27
excluídos pode ter o efeito nefasto de obliterar as práticas daqueles que continuam
reproduzindo os sistemas de desigualdade social e política.
Outro tópico desenvolvido na teoria de Stam e de Shohat digno de nota é a
noção de hibridismo. A partir das teorias pós-coloniais, os autores inserem a
problemática do hibridismo no âmbito das mesclas culturais e sua face “biológica”,
afirmando que “a celebração do hibridismo coincide com o novo momento histórico dos
deslocamentos pós-independência que geraram identidades múltiplas (franco-argelino,
indo-canadense, palestino-libanês-britânico)”28 . Além de permear as identidades, o
“híbrido” também se encontra nas práticas narrativas comunicacionais e nas relações
colonizador-colonizado. Os autores apenas ressaltam que o hibridismo não deve ser
considerado de um ponto de vista otimista, sob pena de não articularmos as questões da
hegemonia do discurso da História e da violência colonial.
Desse modo, o hibridismo revelou-se uma categoria fundamental na análise
cultural dos meios de comunicação do Terceiro Mundo, principalmente aos olhos de
Nestor G. Canclini, cuja teoria passaremos a analisar agora.
Em primeiro lugar, eis a definição do conceito para Canclini: “entiendo por
hibridación procesos socioculturales en los que estructuras o prácticas discretas, que
existían en forma separada, se combinan para generar nuevas estructuras, objetos o
prácticas”29 .
Rebatendo a crítica feita a este conceito tal qual exposto em Culturas Híbridas,
o antropólogo relata que o processo de importação de conceitos de outras áreas (tais
como biologia, economia) já se faz há muito presente nas ciências sociais, o que não
compromete sua base epistemológica (ao contrário, noções como “reprodução”
auxiliaram teóricos como Marx a validar suas concepções a respeito da distribuição de
poder na sociedade capitalista).
Além disso, Canclini também salienta que não acredita em nenhuma espécie de
“cultura original” ou “práticas culturais originais”, desfazendo qualquer possível mal
entendido sobre sua concepção da dinâmica sócio-cultural (o autor apenas relata o
processo de hibridismo a partir do fato de que dois ou mais elementos existiam em
separado em um momento “A”, porém por razões de intercâmbios culturais, lingüísticos

28
Op. cit., pág. 79.
29
CANCLINI, Néstor García. Noticias recientes sobre la hibridación. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque
de e REZENDE, Beatriz. Artelatina: cultura, globalização e identidades cosmopolitas. Rio de Janeiro,
Aeroplano/ MAM-RJ, 2000, pág. 62.

28
e comunicacionais encontram-se misturados em outro momento “B”). Ou, nas palavras
deste:

“La historia de los movimientos identitarios revela una serie de


operaciones de selección de elementos de distintas épocas articulados
por los grupos hegemónicos en un relato que les da coherencia,
dramaticidad y elocuencia. (…) Estudiar procesos culturales, por eso,
más que llevarnos a afirmar identidades autosuficientes, sirve para
conocer formas de situarse en medio de la heterogeneidad y entender
cómo se producen las hibridaciones”30 .

Trazendo o conceito de hibridismo para o campo cinematográfico, que


discussões o mesmo pode ajudar a desenvolver em relação às representações
audiovisuais? Poderíamos inferir que o conceito, por auxiliar na avaliação dos contatos
inter-culturais, também pode nos ser útil na compreensão sobre como as diversas
linguagens contemporâneas aparecem fundidas nos produtos culturais audiovisuais
(filmes, telenovelas, comerciais, minisséries etc).
Mais uma vez, ilustremos com uma passagem de Quanto vale...: propaganda
política mostra a construção de presídios/ personagem de Miriam Pires aparece saltando
de um ônibus/ Lázaro Ramos come tangerina dada por Miriam Pires/ Plano fechado de
uma cela superlotada e releitura irônica do poema “Navio Negreiro”, de Castro Alves,
por Lázaro Ramos. A partir desta breve descrição, já é possível apontar dois modos em
que o conceito de hibridismo pode ser utilizado: no estudo do intercâmbio de linguagens
(publicitária, cinematográfica, jornalística, poética, etc), na análise das relações entre
documentário e ficção (cujos limites vêm sendo postos à prova pelas ditas narrativas
“pós- modernas”) e, retomando o pensamento de Canclini, a interface entre cultura
erudita e cultura de massa.
Ademais, outras formas de avaliar os filmes e a cinematografia atual também
seriam favorecidas com o uso deste conceito: de que maneiras as imagens
tradicionalmente veiculadas pelo cinema brasileiro como representativas do Brasil –
leia-se, favela e sertão – foram paulatinamente alteradas em contatos com
representações de outras mídias? Não podemos nos esquecer de que a favela dos anos
60 representada, por exemplo, em 5 vezes favela, ganhará um outro tipo de imagem a
partir dos telejornais das décadas de 80 e 90, sendo essa nova imagem inclusive
incorporada e ampliada em filmes como Notícias de uma guerra particular (João
Moreira Salles, 1996) e Como nascem os anjos (Murilo Salles, 1996).
30
Op. cit., pág. 66-67.

29
Algo interessante de ser relatado é como a resistência à noção de híbrido se
articula em certos debates:

“La teoría de da hibridación debe tomar en cuenta, asimismo, los


movimientos que la rechazan. No provienen sólo de los
fundamentalismos que se oponen al sincretismo religioso y al
mestizaje intercultural. Existe una resistencia extendida a aceptar
estas y otras formas de hibridación, porque generan inseguridad en las
culturas y conspiran contra su autoestima etnocéntrica”31 .

Essa reflexão, empregada de forma genérica em princípio, pode ser utilizada


para avaliar como o próprio meio acadêmico, ao estabelecer cânones para a área
cinematográfica (filmes, períodos, movimentos, diretores – alçados à categoria “autor”,
etc) também cria instâncias de resistência à produção de novas imagens no tocante ao
cinema brasileiro atual, o mesmo valendo para o Estado que, mesmo subsidiando o
cinema através de empresas privadas, não deixa de controlar a produção imagética da
nação brasileira (seja por meio dos editais de apoio à produção e à distribuição, seja
pelo incentivo ou rejeição a determinadas pesquisas no âmbito das universidades e dos
institutos de pesquisa, etc).
Outra passagem que pode nos auxiliar a entender os embates políticos no meio
acadêmico cinematográfico é a releitura de Canclini do conceito de campo de Bourdieu:
“O que constitui um campo? Dois elementos: a existência de um capital comum e a luta
pela sua apropriação. Ao longo da história, o campo científico ou o artístico
acumularam um capital (de conhecimento, habilidades, crenças) em relação ao qual se
formam duas posições: a daqueles que detém o capital e a daqueles que aspiram a detê-
lo”32 .
Entretanto, é necessário nos remeter ao debate empreendido por Bourdieu em O
Poder Simbólico. Ao criticar o reducionismo da teoria marxista ao campo econômico, o
que conduziria, dentre outros, a ignorar as lutas em torno das representações sociais, o
autor assim define o campo social:

“Um espaço multidimensional de posições tal que qualquer posição


actual pode ser definida em função de um sistema multidimensional de
coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes
variáveis pertinentes: os agentes distribuem-se assim nele, na primeira
dimensão, segundo o volume global do capital que possuem e, na

31
Op. cit., pág. 76.
32
CANCLINI, Nestor García. Diferentes, Desiguais e Desconectados. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2004,
pág. 76.

30
segunda dimensão, segundo a comp osição do seu capital – quer dizer,
segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjunto de suas
posses [lembrando que Bourdieu subdivide o capital em quatro
categorias: econômico, social, cultural e simbólico – observação
nossa]”33 .

De acordo com essa teoria, o campo social se subdividiria em sub-campos, nos


quais os agentes sociais teriam suas posições definidas (dentro de um campo e em
relação a outros campos). Trazendo essa reflexão para o cinema brasileiro
contemporâneo, em vários momentos da pesquisa ficou clara a disputa pela nomeação
de um ou mais campos referentes a ele. Seja através das leituras de autores de cinema
brasileiro ou de críticos, seja através do acompanhamento de debates travados em listas,
simpósios, congressos, a disputa pelo poder de nomear mostrou-se clara e muitas vezes
contraditória.
A título de exemplo, recordemos o debate ocorrido durante o Fórum Audiovisual
do PT, realizado em 24/07/2006 na casa do Grupo Tá na Rua, no Rio de Janeiro 34 , por
acreditarmos que muitas características e contradições do campo terem sido ali
expostas. Seria interessante iniciarmos a descrição do mesmo por meio de seu aspecto
físico: realizado em uma sala no sótão da casa, havia um palco com quatro cadeiras, e a
disposição da platéia era, no mínimo, curiosa: estando ela acomodada em um espaço
estreito e longo, na parte da frente estavam sentados homens com trajes sociais,
enquanto o meio e o fundo da platéia estavam vestidos de modo mais informal. Tendo
chegado cerca de 15 minutos atrasado, logo que vi uma cadeira, na parte da frente,
sentei- me, o que gerou alguns olhares de censura dos que estavam à minha volta. Aos
poucos, fui identificando alguns dos senhores à frente da platéia: Roberto Farias (ex-
presidente da EMBRAFILME), Gustavo Dahl (presidente da ANCINE) Luiz Carlos
Barreto (produtor de cinema), Joatan Vilela Berbel (relator do resumo aqui analisado e
ocupante de altos cargos burocráticos no Ministério da Cultura), André Klotzel
(cineasta). Do meio em diante, vários estudantes e represent antes de associações como
ABDeC, cineclubes locais etc.
Um dado interessante a ser ressaltado: a motivação de sua escrita é ser uma
resposta a um artigo do jornal O Globo em que se menciona o “bate-boca” na reunião
(uma imagem bastante difundida na mídia sobre o ambiente cinematográfico reside

33
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa, Difel, 1995, pág. 135.
34
Agradeço ao prof. João Luiz Vieira por ter me enviado o resumo do debate feito por Joatan Vilela
Berbel, que constará nos anexos desta dissertação.

31
justamente em suas diversas polêmicas) e o resume a questões de bilheteria 35 .A isso, o
depoimento de Berbel contrapõe ressaltando a conciliação e a diferenciação (quem está
falando o quê) como valores preponderantes no referido debate.
A disputa pelo capital no campo do cinema brasileiro atual é bastante atenuada
no depoimento de Berbel (o que revela a posição ocupada por ele no campo, marcada
pela preocupação de legitimação de uma política estatal). Eis alguns exemplos: “Paulo
Thiago, quando falou da necessidade de se fazer reuniões a portas
fechadas, estava se referindo ao constante clima de desavença que é
retratado pela mídia”. Ligando a sua motivação à exposição de Paulo Thiago (cineasta
e Presidente do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica), o mesmo não levou
em consideração o significado de “portas fechadas” no contexto do debate, que, na
verdade, soou aos ouvidos de muitos presentes como uma tentativa de preservação do
capital simbólico de alguns agentes do campo cinematográfico em detrimento da
investida de novos agentes (isso fica claro em outro momento, por ocasião da crítica de
Luiz Carlos Barreto e Paulo Thiago à política de editais. No palco, Paulo Thiago fala
para a platéia: “em 4 anos de governo Lula, Roberto Farias [aponta-o de forma quase
performática] não ganhou um edital sequer. É um absurdo um homem desse porte não
ganhar nenhum edital!”, sendo que isso foi seguido de protestos36 e ensaios de vaias por
boa parte da platéia do meio e do fundo e gerou um grande mal-estar nos presentes). É
possível interpretar a fala de Paulo Thiago e a reação da platéia como a explicitação da
disputa do capital tal como se referem Bourdieu e Canclini, uma vez que a política dos
editais é percebida de modo dúbio : ora como um elemento “democratizador” da
atividade cinematográfica, ora como algo que “desprofissionaliza” a mesma (posição
implicitamente adotada por Berbel: “ A crítica aos editais, apresentada pelo Paulo
Thiago e pelo Barreto,é justa mas peca por analisar os resultados como problema e não
a fórmula edital como "o problema"”; em outro momento, defende a manutenção do
capital nas mãos dos atuais detentores, valendo-se de um recurso metonímico: “o
Gustavo Dahl que cumpre o seu mandato ainda este ano, deixa um feito memorável que
o inscreve no panteão dos grandes nomes do cinema como Paulo Emilio Salles Gomes,

35
Aliás, a carência de público também faz parte da imagem construída nos meios de comunicação ao
longo da História do Cinema Brasileiro; recordamos os exemplos desde Cinearte até Veja, passando por
figuras como Moniz Vianna, Fred Lee, dentre outros que, fazendo usos políticos bastante distintos desse
ponto, mostram uma preocupação com o uso retórico do termo “público” - quantitativamente - de cinema
brasileiro.
36
É curioso relembrar o tom dos protestos, que iam desde “eu tenho diploma de cinema, por que eu sou
menos “profissional” que ele ou você?” até a ênfase da elitização da atividade cinematográfica.

32
Almeida Prado, Cosme Alves Neto, Glauber e os demais. Não será exagero defender
sua continuidade na liderança desse time”).
Todavia, é interessante notar a influência da teoria e do projeto multiculturalista
no discurso de Berbel (sem, no entanto, perder de vista como a distribuição de poder é
relatada e legitimada por este): “A justa bronca dos Cineclubistas quando
reclamam a sua inclusão como agentes da difusão cultural que podem ampliar em
muito o contato do povo brasileiro com os filmes e videos é também um ponto forte e
mostra como a democracia é produtiva. A atuação dos grupos de produção Nós
do Morro, Cufa e outros deve ser entendida como um avanço no
desenvolvimento do audiovisual brasileiro, são novos atores que já estão aí e que
podem trazer novos pontos de vista, inovações e um novo olhar”. Aliando este discurso
à manutenção do lugar de autoridade de agentes já consolidados no mercado
cinematográfico, eis um exemplo de apropriação conservadora do ponto de vista
multicultural e do potencial de uso da mesma na manutenção de uma esfera pública
dominada por uma elite branca.
Trazendo os conceitos de Bourdieu para os filmes a serem analisados, é possível
inferir que a posição ocupada pelos respectivos filmes e diretores dentro e em relação ao
campo cinematográfico não pode ser desconsiderada na análise fílmica. Isto não
significa afirmar a preponderância de uma análise de cunho “autoral”; entretanto, a
fortuna crítica, o prestígio acadêmico e social e a relação dos filmes com outros já
realizados pelos diretores - além dos debates empreendidos graças a estes - tem sua
presença na análise fílmica assim justificada.
Por fim, afirmamos que, ao lado das retóricas em torno da patrimonialização (de
imagens, temáticas, paisagens, etc), os meios cinematográfico e acadêmico terão seu
discurso avaliado no capítulo seguinte.

III A “MODERNIDADE TOTAL” DE APPADURAI E O PÓS-COLONIAL DE


BHABHA.

Com a preocupação de estudar a formação das esferas públicas diaspóricas


constituídas nas práticas culturais diárias, Arjun Appadurai concede à imaginação um
papel fundamental na constituição da subjetividade moderna:

33
“Implicit in this book is a theory of rupture that takes media and
migration as its two major, and interconnected diacritics and explores
their joint effect on the work of imagination as a constitutive feature
of modern subjectivity. The first step in this argument is that
electronic media decisively change the wider field of mass media and
other traditional media. This is not a monocausal fetishization of the
electronic. Such media transform the field of mass mediation because
they offer new resources and new disciplines for the construction of
imagined selves and imagined worlds”37 .

Na tentativa de compreender como o mundo moderno se transforma na


“modernidade total” (modernity at large), o autor formula o conceito de agência
(agency) para relatar o aspecto coletivo da imaginação e que formas esta assume no
contexto contemporâneo. É preciso dizer que este conceito se assemelha ao de
apropriação de Michel de Certeau (A Invenção do Cotidiano), com a diferença de que
este último implica, em grande parte dos casos, a resistência a uma instância de poder,
ao passo que “agência” inclui outras formas de interpelação que não a resistência per si.
Appadurai lembra que a retórica nacional de desenvolvimento sócio-econômico,
militarismo, educação, etc ainda se faz presente no cotidiano das massas; entretanto, as
ditas micro- narrativas (inclusive os filmes) permitem à modernidade se reinscrever na
arena transnacional (isto é, as massas têm sua imaginação ativada a partir da internet, de
filmes e da televisão; estas micro- narrativas recordam a elas a existência de
comunidades extra e transnacionais e de pertencimentos que ultrapassam a esfera
nacional) 38 . Ou seja, a imaginação é ativada e as agências são constituídas
prioritariamente no campo da diferença 39 .

“We have now moved one step further, from culture as substance to
culture as the dimension of difference, to culture as a group identity
based on difference, to culture as the process of naturalizing a subset
of differences that have been mobilized to articulate group identity.
(…) But it may be useful to begin to use culturalism to designate a
feature of movements involving identities consciously in the making.
(…) Culturalism, put simply, is identity politics mobilized at the level
of nation-state”40 .

37
APPADURAI, Arjun. Here and now. In: Modernity at Large. Minnesota, University of Minnesota
Press, ? , pág. 3.
38
É interessante retomar aqui, como exemplo, a representação do negro, presente em Quanto vale... e em
Quase Dois Irmãos, uma vez que a mesma é alvo de disputas na arena transnacional, sendo capaz
inclusive de estabelecer intercâmbios que contestem o “purismo” das culturas populares nacionais (caso
emblemático, no Brasil, é o movimento hip hop, há muito marginalizado nos setores midiáticos e estatais
conservadores, sendo uma das principais acusações contra este o fato de não ser “brasileiro”, em oposição
a outras expressões musicais como o samba).
39
Recordando que o próprio conceito de cultura para Appadurai se constitui na tensão entre similaridade
e diferença.
40
Op. cit., pág. 14-15.

34
Essa visão “desessencializada” da cultura pode nos ajudar, ao lado do conceito
de híbrido (já debatido na parte anterior), na compreensão das estratégias retóricas dos
filmes e dos personagens em questões como “passado”, “pertencimento”, “proteção”.
Colocando de outro modo, como em Narradores de Javé, por exemplo, os personagens
se valem da diferença para tentarem salvar o próprio vilarejo? Ou, em Quase Dois
Irmãos, como as diferenças articulam os dois universos éticos em choque (presos
políticos versus presos comuns)? A partir disso, que passado é evocado?
Conseqüentemente, em que medida esse uso do passado é em si uma forma de
“agenciar” o presente? 41
O conceito de agência, além de auxiliar na análise fílmica, também pode
esclarecer os mecanismos de produção e difusão dos filmes e sua relação com as mídias
impressas (jornal e revista), cuja menção será feita ao longo dos capítulos dessa
dissertação por meio da citação de críticas aos filmes estudados e aos seus diretores.
Outro autor que utiliza este conceito é Homi Bhabha, no âmbito das teorias do
pós-colonial, indaga ndo-se: “é possível conceber-se a agência histórica naquele
momento disjuntivo, indeterminado, do discurso fora da sentença [leia-se, espaços fora
da temporalidade da linguagem do Ocidente]?”42 .
É preciso, em primeiro lugar, vislumbrar o panorama de preocupações teóricas
de Bhabha. Indo ao encontro das teorias pós-coloniais, o autor inicia O Local da
Cultura sublinhando que a vivência contemporânea é marcada pela sobrevivência e pela
“fronteira do presente”. Antes de prosseguir, devemos nos contrapor a esse “peso”
concedido pelas teorias do “pós” (seja pós- moderno, seja pós-colonial) ao presente,
visto que os próprios produtos audiovisuais contradizem a tão aclamada “nostalgia do
presente”43 que contaminou essas teorias. Por meio das ficções científicas, das
reconstituições históricas, dos melodramas televisivos, dentre outros, a comunicação
audiovisual salienta que existe espaços para outras temporalidades que não o presente.
O que poderia ser argumentado é que essas narrativas audiovisuais formariam uma
espécie de “presentificação do vivido”, isto é, que elas configurariam o esmaecimento
das fronteiras entre passado, presente e futuro (fronteiras nas quais se estabeleceram as
narrativas modernas) nas práticas do consumo cultural.

41
Ressaltamos que essas e outras perguntas formuladas a partir do pensamento de Bhabha e Appadurai
terão seu desenvolvimento na parte da análise fílmica.
42
BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2004, pág. 255.
43
Nomenclatura de Fredric Jameson.

35
Após esta breve observação, vejamos o que Bhabha nos esclarece a respeito das
novas fontes de pertencimento. Este contesta o lugar concedido às categorias de classe
enquanto base de articulação de projetos e resistências na pós- modernidade.
Concordamos, porém é necessário ir além. O conceito de classe só deixou de ser o
principal articulador de pertencimento, para se tornar um conceito tão problemático no
cenário atual que muitas políticas simplesmente o ignoram (embora os resultados quase
sempre sejam inócuos ao se dissociar, por exemplo, raça e classe ou gênero e classe).
O que a contemporaneidade fez em relação aos conceitos de classe e gênero foi
colocá- los como apenas mais um na lista da arena política, ao lado de raça, religião,
região, geração, etc; isto é, a classe não necessariamente é capaz de articular conflitos
oriundos de choque de gerações (citemos o próprio meio acadêmico: os choques entre
as concepções daqueles que já ocupam as cátedras acadêmicas e aqueles que iniciam
sua trajetória acadêmica não teriam na classe uma instância de projetos) ou de etnias
(dentro de uma favela, pode haver margem à rivalidade entre nordestinos e negros –
pertencentes à mesma classe social – como é mostrado no filme Cidade de Deus) ou
ainda de religiões (as tensões crescentes entre católicos e evangélicos de algumas linhas
no Brasil, como no caso de um pastor que chutou a imagem de uma santa em um
programa de TV, não seriam necessariamente explicadas a partir das categorias de
classe).
Na tentativa de compreender a articulação dos discursos pós-coloniais, Bhabha
menciona a formação de “entre- lugares”. Ao contrário dos não- lugares de Augé, não
reivindicados por ninguém e ocupados provisoriamente, os entre- lugares da teoria de
Bhabha seriam o campo de disputa das identidades na atualidade:

“O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a


necessidade de passar além das narrativas de subjetividades
originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos
que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses
“entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de
subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de
identidade e postos na colaboração e contestação, no ato de definir a
própria idéia de sociedade”44 .

No caso das representações audiovisuais, de que modo este conceito poder-nos-


ia auxiliar? Para que a discussão não permaneça tão abstrata, vejamos uma imagem do
Brasil constantemente veiculada pelo cinema nacional: o sertão. Como o sertão de

44
Op. cit, pág. 20.

36
Narradores de Javé articula os “não- lugares” e os “entre-lugares”? Como se dá a tensão
dos “entre- lugares” nas estratégias de legitimação de ocupação do espaço pelos
moradores de Javé?
Essa série de questões se alinha ao questionamento de Bhabha sobre o lugar
ocupado pelas narrativas nacionais. O autor explicita que as supostas “culturas nacionais
homogêneas” sofrem cada vez mais uma redefinição em seus papéis, inclusive como
base para trabalhos comparados no âmbito das Ciências Humanas. Entretanto, como
“redefinição” não significa abolição, é possível constatar que vários estudos no campo
cinematográfico continuam sendo realizados a partir dessa escala nacional, incluindo
aqui esta pesquisa.
Apesar de as teorias do “pós” nos darem uma pista de que os filmes são
incapazes de formular uma “unidade na cinematografia nacional” - comprovado pelo
fato de a crítica cinematográfica brasileira, atônita diante de tantas propostas estéticas,
aclamar a “diversidade” como característica da produção cinematográfica atual - isto
não nos impede de tentar encontrar uma “unidade” (como categoria analítica) para o
cinema produzido no país atualmente. Essa “unidade” poderia ser forjada no âmbito das
instituições e dos mecanismos de financiamento aos quais os realizadores estão
submetidos (ANCINE, leis de incentivo, empresas financiadoras da atividade
cinematográfica, Ministério da Cultura).
Sendo um “tique” da teoria cinematográfica - a redução das discussões teóricas
aos filmes - é preciso estar atento ao fato de que uma cinematografia não se realiza
apenas nos filmes (fato comprovado pela extinção da EMBRAFILME, o que colocou
em risco a atividade cinematográfica no país por cerca de 5 anos), devendo esta contar
com um corpo burocrático e abranger outras instituições extra-fílmicas (corpo de
críticos de cine ma, empresas produtoras, distribuidoras e exibidoras, etc). É bastante
sintomático que Cidade de Deus foi visto como uma ruptura dentro do panorama da
Retomada45 , quando na verdade este filme apenas comprova a vitória das concepções
neoliberais tão presentes nela.
Retornando à Bhabha, vejamos como ele articula a questão da agência com
outras preocupações. A agência explicita que a nação dispõe de uma temporalidade da
cultura constituída por meio da diferença (outro ponto de contato entre Bhabha e

45
Cf: ORICCHIO, Luiz Zanin. O Cinema de novo: um balanço crít ico da Retomada. Em sua introdução,
o autor elenca uma série de argumentos que fariam de Cidade de Deus um filme que encerraria o “ciclo”
da Retomada, o que será contestado no capítulo seguinte.

37
Appadurai). Desse modo, a diferença se articularia por meio da linguagem (nos dias
atuais, principalmente na linguagem audiovisual).

“In each of these ‘foundational fictions’, the origins of national


traditions turn out to be as much acts of affiliation and establishment as
they are moments of disavowal, displacement, exclusion and cultural
contestation. In this function of national history as Entstellung, the
forces of social antagonism or contradiction cannot be transcended or
dialectically surmounted. There is a suggestion that the constitutive
contradictions of the national text are discontinuous and
‘interruptive’” 46 .

Tendo em vista o referencial do autor, que resgata alguns conceitos do pós-


estruturalismo – textualidade, discurso, enunciação, escrita – para avaliar as estratégias
narrativas da nação, vista como um sistema de significação cultural47 , avaliemos como
este aparato é capaz de nos permitir formular questões aos filmes. De que modo a
enunciação em Quase Dois Irmãos, Quanto vale... e Narradores de Javé permite
afirmar que estes recuperam ‘narrativas de fundação’48 em relação ao momento político
atual?
Bhabha menciona o fato de que a nação é constituída entre a vida cotidiana (que
reforça os laços em comum) e os fatos extraordinários (ritos, grandes acontecimentos
elevados à categoria de fato histórico, tragédias), ambos capazes de recordar
reiteradamente as instâncias políticas em comum. Ademais, as narrativas em torno da
nação transitam entre o pedagógico e o performático:

“Na produção da nação como narração ocorre uma cisão entre a


temporalidade continuísta, cumulativa, do pedagógico e a estratégia
repetitiva, recorrente, do performativo. É através deste processo de
cisão que a ambivalência conceitual da sociedade moderna se torna o
lugar de escrever a nação”49 .

Essa tensão entre o pedagógico e o performativo também faz parte do cinema


enquanto fenômeno estético e cultural, na medida em que nele sempre se configuram
disputas entre uma tradição – que se preocuparia em perpetuar os cânones e os
realizadores já ativos na área (pedagogia) – e grupos que tentam subvertê-la –

46
BHABHA, Homi. Introduction: narrating the nation. In: Nation and narration. London, Routledge,
1990, pág. 5.
47
E não como uma “comunidade política imaginada” (Anderson). Aliás, Bhabha tem a preocupação de
dissociar os conceitos de nação e comunidade, afirmando que a última geralmente é formada em escala
intra ou transnacional.
48
Conceito de Doris Sommer desenvolvido em Ficções de fundação. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2006.
49
Op. cit., pág. 207.

38
estudantes universitários, jovens realizadores – sendo que estes últimos se inscrevem no
cenário cinematográfico, muitas vezes, a partir da blasfêmia dos cânones tradicionais.
Entretanto, o cinema enquanto fenômeno moderno e prática coletiva desempenhou ao
longo de sua história um papel muito mais ligado à pedagogia que à performatividade,
uma vez que essa atividade se encontra atrelada a um aparato estatal ou a uma grande
indústria (isto é, o primeiro demanda a produção de imagens que retratem a ‘grandeza
nacional’ e a ‘comunhão coletiva’, ao passo que a segunda se pauta por critérios que
priorizam o lucro; em ambos os casos, o risco da performance tende a ser atenuado ao
mínimo – no máximo apresentando uma ou duas novas ‘invenções’, visto que o público
cinematográfico avalia um filme também pelo quesito ‘criatividade’).
Em se tratando do cinema brasileiro atual, existe espaço para o performativo em
um esquema de produção que se torna cada vez mais caro? À exceção do digital, que
permitiu que projetos como Edifício Master, O Prisioneiro da Grade de Ferro etc,
existissem – ao menos na forma em que estes foram realizados50 - a mão-de-obra ligada
à área encarece e as equipes aumentam em progressão geométrica (se há alguma dúvida
sobre isso, basta conferir os créditos dos filmes brasileiros atuais e suas longas listas de
assistentes), os mecanismos de patrocínio encontram-se viciados e ligados a algumas
empresas, notadamente a PETROBRÁS.
Um desdobramento dessa reflexão de Bhabha é a noção de que o tempo da
origem nacional não é o tempo da memória, e sim o do esquecimento. Para ele, a nação
se constitui no esquecimento, na subtração. Esse ‘esquecimento’ está explícito na ação
de Narradores de Javé, uma vez que a necessidade de se escrever a história do vilarejo
(surgida no fato de este se encontrar ameaçado pela construção de uma barragem) reside
principalmente na ausência de uma catalogação ou de uma sistematização dos supostos
fatos importantes da cidade (marcada pela ausência de um documento, um escrito, que
justifique o tombamento da cidade). Da mesma forma, Quanto vale... traz à tona em sua
diegese essa marca de ‘subtração’, ao resgatar de casos guardados há muito no Arquivo
Nacional as contradições sobre as quais se construiriam a futura nação brasileira (não
gratuitamente o diretor escolheu casos ligados à escravidão, fato que mais evidencia a
nossa conturbada origem nacional, mergulhada na violência exacerbada de tensões
étnicas e sociais).

50
É preciso lembrar que a diretora Eliane Caffé afirmou que costuma filmar através de ‘expedições’ pelo
Brasil, fato que a levou a filmar na cidade de Gameleira da Lapa, no interior da Bahia, portando várias
câmeras digitais que, por sua mobilidade, facilitam o deslocamento das equipes e o contato da população
local com o equipamento (entrevista concedida a Pedro Lapera em 22/05/2006, em São Paulo).

39
Outros dois conceitos que sustentam a teoria do autor: negociação e
disseminação. Sobre o primeiro, eis como Bhabha o qualifica:

“Quando falo de negociação em lugar de negação, quero transmitir


uma temporalidade que torna possível conceber a articulação de
elementos antagônicos ou contraditórios. (...) Com a palavra
negociação, tento chamar a atenção para a estrutura de iteração que
embasa os movimentos políticos que tentam articular elementos
antagônicos e oposicionais sem a racionalidade redentora da
superação dialética ou da transcendência”51 .

O cinema brasileiro atual, para se afirmar enquanto instância legitimadora de


imagens do Brasil, tem de necessariamente pautar-se pela negociação com os
mecanismos que o sustentam e com outras instâncias produtoras de imagens, o que
certamente é refletido nos filmes (essa negociação fica muito clara em projetos como
Ônibus 174, que constrói sua narrativa partindo de imagens veiculadas pela mídia e se
legitima enquanto produto audiovisual tendo em vista a comoção gerada pelo caso no
país).
Essa noção de negociação é conduzida por Bhabha no sentido de se negar a
autonomia de qualquer texto em relação à cultura que o produziu. No caso do cinema,
isso revela a importância de se trabalhar com os jogos de representações articulados
entre os filmes. Por exemplo, o papel da mediação filme ao representar a violência tem
de ser considerada avaliando diversos filmes; ou seja, a imagem da violência de Quanto
vale... e de Quase Dois Irmãos se coloca em relação a outras imagens veiculadas por
filmes como Notícias de uma guerra particular, Carandiru, Cidade de Deus, Abril
Despedaçado, etc, além das imagens transmitidas diariamente pela mídia televisiva.
Acreditamos existir, no campo das representações, um espaço de negociação
entre emissor e receptor, entre emissores e entre receptores, sendo que essa negociação,
quando violada, se torna vulnerável a diversas rejeições. Em que se basearia essa
negociação? Inúmeros fatores entrariam nesse campo de negociações: as experiências
individuais e coletivas dos produtores e dos receptores de imagens, valores, crenças,
imagens anteriormente difundidas a respeito de um tema, práticas discursivas de classe,
etnia, gênero, etc.
Essa negociação é mais fácil de ser visualizada entre emissor e receptor, na
medida em que o primeiro sempre conjetura a respeito da recepção de seu texto (no caso
de um filme, é nítida a preocupação com o público no discurso de muitos diretores,
51
Op. cit. , pág. 51-52.

40
mesmo aqueles com uma pretensão mais ‘autoral’). Entretanto, ela também acontece
entre emissores (no processo de realização de um filme, existem negociações a respeito
das filmagens entre diretor, roteirista, produtor e equipe; o mesmo vale para a produção
televisiva de notícias, muitas vezes pautadas por brigas políticas dentro de uma redação
e entre editorias) e entre receptores (é muito comum, hoje em dia, a existência de fãs de
diretores, atores, filmes, programas de TV, e de comunidades virtuais e reais que os
agregam, sendo que estas são arenas em que se debatem constanteme nte as
representações destes – vide o caso do site orkut).
E no âmbito da nação, que espaços de negociação são instaurados a partir dos
meios de comunicação? Como estes nos recordam o pertencimento a uma comunidade
nacional? Ou ainda: como estes são capazes de nos articular em uma narrativa mesmo
reconhecendo nossas diferenças? Outro conceito de Bhabha – disseminação – pode nos
dar alguma pista neste sentido:

“Essa escrita-dupla ou dissemi-nação não é simplesmente um


exercício teórico nas contradições internas da nação liberal moderna.
A estrutura de liminaridade cultural no interior da nação seria uma
pré-condição essencial tal como a distinção crucial de Raymond
Williams entre práticas residuais e emergentes em culturas
oposicionais que requerem, como ele insiste, um modo de explicação
“não-metafísico, não-subjetivista”. Esse espaço de significação
cultural que venho tentando abrir a partir do performativo atenderia a
essa pré-condição importante. (...) As contra-narrativas da nação que
continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras – tanto
reais quanto conceituais – perturbam aquelas manobras ideológicas
através das quais “comunidades imaginadas” recebem identidades
essencialistas”52 .

Em que medida os filmes a serem analisados nesta pesquisa configuram contra-


narrativas? Se estes são contra-narrativas, contra quem eles se colocam explícita ou
implicitamente? Ou se quisermos não perceber o filme enquanto um texto cuja produção
de sentido é linearmente traçada, em que momentos os filmes são narrativas e em que
outros contra-narrativas? O ataque de parte da mídia impressa a Quanto vale... quando
este foi lançado 53 revela que o filme pode ter alterado as instâncias de negociação e ido
em direção a um questionamento além do suportável pela crítica cultural.

52
Op. cit., pág. 210-211
53
O diretor Sérgio Bianchi informou que, à época do lançamento do filme, alguns críticos liderados por
Luiz Zanin Oricchio (O Estado de São Paulo) o atacaram publicamente; além disso, em alguns debates
realizados após a exibição do filme, o diretor se viu confrontado à representação hostil das ONGs, tidas
por parte do público como algo positivo na esfera política atual - sendo que alguns participantes de
debates dirigiram-se ao diretor de forma agressiva por conta deste fato (informações obtidas através da
entrevista concedida pelo diretor em 24/05/2006, em São Paulo).

41
Faz parte do senso comum do meio cinematográfico brasileiro a sua colocação
enquanto marginal na arena audiovisual, o que nos leva a indagar se o próprio cinema
brasileiro atual não configuraria uma contra- narrativa aos meios audiovisuais com maior
público e ao cinema estrangeiro (notadamente Hollywood). Lembrando que esta postura
não é endossada por diversos membros do meio cinematográfico (e alguns destes
defendem uma parceria com os meios televisivos 54 ), é preciso dizer que ainda existe um
certo incômodo por parte da classe cinematográfica em se situar no panorama maior do
audiovisual55 e, principalmente, na relação entre cinema e televisão (sendo que a classe
cinematográfica, em sua maioria, se coloca na posição de resistência ao monopólio da
informação televisiva)56 .
Bhabha afirma: “de certa forma é em oposição à certeza histórica e à natureza
estável [do nacionalismo] que procuro escrever sobre a nação ocidental como uma
forma obscura e ubíqua de viver a localidade da cultura. Essa localidade está mais em
torno da temporalidade do que da historicidade”57 .
Como o cinema experimenta essa localidade? Ao recordarmos que o cinema não
é exclusivamente vivido dentro da esfera cultural, visto que ele também possui seu lado
econômico fortemente estabelecido, devemos pensá-lo como um conjunto de interesses
que confluem na produção e na difusão dos filmes, além da constituição de diversos
segmentos do público de cinema (salas de shoppings, cineclubes, universidades, centros
comunitários, etc). Ademais, como os filmes vivenciam essa localidade? Isto é, de que
modos os discursos fílmicos se articulam aos extra- fílmicos?
A partir de uma revisão do conceito de polifonia de Bakhtin, o autor encerra O
Local da Cultura refletindo sobre a constituição do direito de significar na arena
política pós-colonial, sendo que este questiona o ponto de vista branco e masculino do
colonizador. De que modo os personagens dos três filmes objetos dessa pesquisa
encenam seu direito de significar? Aqui, é preciso fazer menção à politização do signo
empreendida por Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem, no qual defende a

54
Conferir os depoimentos de Zelito Vianna, Roberto Farias e Cacá Diegues no documentário A Batalha
da ANCINAV, dirigido por Noilton Nunes.
55
No debate acadêmico, esse incômodo pode ser representado na militância do pesquisador Fernão
Ramos em separar os campos do cinema e do audiovisual, vastamente expressa durante suas
comunicações nos encontros anuais da SOCINE.
56
A relação entre cinema e TV foi estudada, no âmbito da economia política da comunicação, por Pedro
Butcher, na sua dissertação sobre a inserção da Globo Filmes no mercado cinematográfico brasileiro. Cf:
BUTCHER, Pedro. A Dona da História: origens da Globo Filmes e seu impacto no audiovisual brasileiro.
Dissertação apresentada à ECO-UFRJ.
57
Op. cit,, pág. 199.

42
idéia de que o signo configura uma marca da ideologia e, desse modo, é apropriado no
pensamento de Bhabha: a localidade da cultura e de uma determinada narrativa tem
relação direta com o sujeito enunciador, afinal, quem postula o direito de significar, o
faz dentro de um contexto (ou campo, se quisermos retomar Bourdieu) em relação a um
outro material ou simbolicamente presente.

IV A IDENTIDADE EM CASTELLS

Uma perspectiva interessante sobre a contemporaneidade reside no pensamento


de Manuel Castells, mais precisamente como ele avalia a sociedade em rede58 (conceito
deste autor) e formulação de políticas identitárias nesta. Concebendo a identidade como
“o processo de construção de significados com base em um atributo cultural, ou ainda
em um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m)
sobre outras fontes de significado”59 , o autor estabelece três categorias de identidade
que são utilizadas, em sua teoria, como categorias analíticas e não enquanto identidades
a serem procuradas – em estado bruto – nos meios sociais: a) identidade legitimadora;
b) identidade de resistência e; c) identidade de projeto 60 .
Partindo da hipótese segundo a qual o conteúdo de uma identidade atrela-se a
quem a formula, ou seja, o conteúdo simbólico de uma identidade é diretamente
determinado pelas necessidades daqueles que lhe deram origem, Castells infere que as
identidades legitimadoras respaldam a sociedade civil (nomenclatura de Gramsci); as
identidades de resistência, por sua vez, originam comunidades; por fim, as identidades
de projetos são articuladas a partir de sujeitos, isto é, “o ator social coletivo pelo qual os
indivíduos atingem o significado holístico em sua experiência”61 .
Adaptando o pensamento de Castells aos três filmes, a) como os filmes mostram
os personagens articulando suas identidades?; b) como o jogo das identidades é
mostrado, isto é, de que modo as identidades legitimadoras, resistentes e de projeto são
representadas?; c) os filmes embasam os discursos da sociedade civil, de certas
comunidades ou de sujeitos? O cinema brasileiro contemporâneo, ao fazer parte da
sociedade civil, uma vez que depende do Estado para se manter economicamente,

58
Segundo o autor, a nova sociedade advinda da reestruturação do capitalismo e da revolução da
tecnologia da informação.
59
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede: O Poder da Identidade (v.2). São Paulo, Paz e Terra, 2001,
pág. 22.
60
Cf: Op. cit., pág.24.
61
Op. cit., pág. 26.

43
também é constituído por filmes que contestam o lugar da nação e por uma classe que se
pauta, em parte, pela resistência à forma como os meios massivos de comunicação
conduzem a economia política do audiovisual no país (os debates sobre a criação da
ANCINAV demonstraram claramente isso ao opor a classe cinematográfica brasileira às
majors norte-americanas e às redes de televisão; mesmo que alguns membros desta
apoiassem a negociação com estas, a lógica principal que conduziu os debates foi a do
confronto).
Além de o conceito de sociedade em rede priorizar a continuidade com o
fenômeno moderno (ao contrário da ruptura pós- moderna), a teoria de Castells possui a
vantagem de não converter suas categorias ideais em instrumentos fechados de análise,
uma vez que o próprio autor ressalta que dificilmente encontraremos, nos jogos das
identidades, identidades legitimadoras ou de resistência ou de projeto isoladas, sendo
que uma pode se converter em outra à medida que o jogo de poder e a retórica assim o
determinarem. Um exemplo disso é o tratamento concedido às ONGs pela diegese de
Quanto vale..., uma vez que estas, inicialmente identificadas a uma resistência às
atrocidades empreendidas no interior do aparato estatal (vide atuação de organismos
como Anistia Internacional, Greenpeace, dentre outros), foram incorporadas à sociedade
civil e reproduzem seus mecanismos arbitrários de poder, tornando-os ainda mais
perversos, o que será oportunamente analisado.
Castells critica a noção de Anderson de “comunidade imaginada” para designar
a nação:

“Por mais que a noção de “comunidades imaginadas” possa parecer,


ela é óbvia ou empiricamente inadequada. Óbvia para um cientista
social, quando se afirma que todos os sentimentos de posse, toda a
adoração de ícones são fatores culturalmente construídos. As nações
não constituiriam exceção a isso. (...) Porém, se o sentido da
afirmação é o de que, conforme explicitado na teoria de Gellner, as
nações constituem artefatos puramente ideológicos, construídos por
meio de manipulações arbitrárias de mitos históricos por parte de
intelectuais trabalhando em prol dos interesses das elites
socioeconômicas, então os registros históricos parecem refutar tal
excesso de desconstrucionismo. Sem dúvida, etnia, religião, idioma,
território, per se, não são suficientes para erigir nações e induzir o
nacionalismo. A experiência compartilhada sim: tanto os Estados
Unidos quanto o Japão são países com forte identidade nacional, e
muitos de seus “cidadãos” realmente sentem, e expressam, um
profundo sentimento patriótico. No entanto, o Japão é uma das nações
mais homogêneas do mundo do ponto de vista étnico, enquanto os
Estados Unidos são exatamente o contrário. Em ambos os casos, o
que existe é uma história e um projeto compartilhados, e as narrativas
históricas dos dois países são criadas com base em uma experiência
diversificada nos aspectos social, étnico, territorial e de gênero,

44
porém comum aos povos de cada um desses países sob perspectivas
diversas”62 .

Essa noção de “experiência compartilhada” como aspecto fundador e, sobretudo,


reprodutor da nação (afinal, mesmo tendo uma suposta “origem” em comum, nações são
desagregadas, vide caso da ex-Iugoslávia), pode nos auxiliar na análise do cinema
brasileiro atual. Ao se opor à eurocêntrica teoria de Anderson de que as nações
constituem comunidades políticas imaginadas formadas a partir do print-capitalism
(capitalismo editorial), Castells vislumbra outras possibilidades de formação nacional
que incluiriam outras partes do globo (inclusive a América Latina), na medida em que
não foram todas as sociedades pré-nacionais que tiveram esse fenômeno largamente
desenvolvido (citemos o próprio Brasil, cujo movimento de independência realizado por
jovens intelectuais – Inconfidência Mineira – fracassou, e esta só foi alcançada graças a
um jogo político entre a colônia e a metrópole). Aliás, é bastante sintomático que o
Estado brasileiro tenha nascido “sem uma nação”, ou seja, sem uma cultura nacional
definida. Existem teorias 63 que corroboram implicitamente as asserções de Anderson e
afirmam que os movimentos nacionais são iniciados a partir da vivência de opressão por
parte de um grupo, sendo que os intelectuais pertencentes a este começam a investigar
as “raízes” do mesmo para construir e difundir - através de impressos - um sentimento
de pertencimento, o que não aconteceu no caso brasileiro (essa produção de sentido em
torno da nação, iniciada com os Românticos – Gonçalves Dias, José de Alencar, etc – só
iria ganhar uma aura de movimento com o Modernismo de 1922). No cinema, essa
nação só iria ganhar uma dimensão política com o Cinema Novo, porém não significa
dizer que o Brasil não era retratado nem pensado pelo cinema brasileiro antes desse
movimento.

V O ESPAÇO PÓS-MODERNO DE JAMESON

Jameson inicia Espaço e imagem: Teorias do pós-moderno e outros ensaios


fazendo uma revisão dos movimentos pro e anti-pós- modernidade. Em linhas gerais,
essas correntes colocam a modernidade ao lado do normativo, isto é, um projeto a ser
defendido a partir de algumas linhas (ligação entre arte e política; deslocamento da

62
Op. cit., pág. 45-46.
63
Cf. HROCH, Miroslav. Do movimento nacional à nação plenamente formada: o processo de construção
nacional na Europa. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.). Um Mapa da questão nacional. Rio de Janeiro,
Contraponto, 2000, pág. 85-105.

45
categoria do belo e valorização da categoria sublime – Kant; impulso em direção ao
novo). A pós- modernidade, por sua vez, seria situada ao lado do reflexivo, ou seja, uma
transformação no campo cultural a partir da revolução tecnológica que permitiria aos
cidadãos (ou aos espectadores, no caso do cinema) de sempre colocar em xeque a
própria realidade experimentada por este.
Partindo do pressuposto que a conotação política do debate anti e pro-pós-
moderno se situa no campo moral, o que dificultaria uma compreensão dialética sobre o
assunto (nada mais “natural” a um teórico marxista), Jameson lança a hipótese de que a
produção cultural atual deve ser analisada a partir do fato de que a própria noção de
cultura mudou com a reestruturação social do capitalismo tardio 64 como sistema 65 . Isso
significa que o pós- moderno está para a cultura assim como o capitalismo tardio está
para o sistema capitalista.
Nessa teoria, a lógica do pós-moderno seria a da penetração, da difusão, opondo-
se à lógica moderna da diferenciação. No moderno, haveria uma clara diferença entre
cultura de elite e cultura de massa (endossando a crítica de Bhabha ao elitismo da
cultura moderna), ao passo que a pós-modernidade condenaria essa divisão ao fracasso.
Em uma outra leitura do fenômeno moderno, a nosso ver mais adequada, Bhabha afirma
que a cultura moderna se pautaria pela destruição da diferença (o que seria comprovado,
por exemplo, na violência do Imperialismo no campo da cultura), enquanto a cultura
pós-colonial/pós- moderna colocaria as diferenças em um mesmo plano (isto é, essas
diferenças seriam pautadas pela sua localização na cultura). Adicionamos a isso o fato
de que o pós- moderno não somente abre espaço para processos de diferenciação, como
depende destes para se afirmar (não haveria uma ruptura entre moderno e pós- moderno
em termos de lógica; na pós- modernidade, a penetração e difusão de imagens e sentidos
seriam maiores em virtude do aperfeiçoamento das tecnologias de reprodução da obra
de arte e existe uma diferenciação feita a partir da segmentação do consumo cultural).
Todavia, precisamos ressaltar que a dialética entre moderno e pós- moderno - no
pensamento de Jameson - foi aprofundada em outro livro (Modernidade Singular).
Enfatizando quatro características da modernidade, o autor esclarece ainda mais que o

64
Cf. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática,
2004, pág. 22-25 (nomenclatura “capitalismo tardio”).
65
Atualizando a divisão entre infra -estrutura e superestrutura, Jameson se propõe a fazer uma revisão da
própria teoria marxista concedendo ao campo cultural um espaço considerável em sua teoria assim como
alguns marxistas o fizeram ao longo do século XX (Gramsci, Lukács, Adorno, Goldmann).

46
pós-moderno não pode ser compreendido fora da ótica da moderno. Vejamos as “quatro
máximas”:

“1) É impossível não periodizar; 2) A modernidade não é um


conceito,mas sim uma categoria narrativa; 3) O único meio de deixar
de narrá-la é através da subjetividade (tese: a subjetividade é
impossível de representar). Somente situações de modernidade podem
ser narradas; 4) Nenhuma “teoria” da modernidade tem sentido hoje se
não for capaz de chegar a bons termos com a hipótese de uma ruptura
pós-moderna com o moderno” 66 .

Para o trabalho aqui exposto, analisemos as máximas um e dois, visto que a


terceira conduziria a uma polêmica pouco frutífera a ele e a quarta será retomada a
partir de outras passagens do autor. Sobre a primeira máxima, o autor afirma que a
modernidade se faz acompanhar de um outro movimento dentro da narrativa
historiográfica. Percebendo o passado como sendo apenas diferente (sem postular sua
superioridade ou inferioridade), considera este o “momento fundador” da historicidade.
Aliando isso a seu diálogo com Schelling, para quem “o passado é criado por meio da
sua enérgica separação com o presente”67 , Jameson passa a perceber na periodização
uma linha diferencial do moderno.
De fato, sentimo- nos obrigados a não apenas manifestar nossa concordância com
essa máxima defendida pelo autor, como também reconhecer que o esforço aqui
empreendido de analisar a categoria “cinema brasileiro contemporâneo” reside nessa
historicidade do moderno descrita por ele.
Jameson conclui que a modernidade é uma categoria narrativa a partir da
avaliação do estatuto da verdade nos discursos moderno e pós- moderno. Retomando o
conceito de “valor” de Marx e Durkheim, Jameson situa o moderno em “um tipo de
flutuação gestáltica entre a percepção da modernidade como um fato e sua apreensão
como a lógica cultural de todo um período da história (aquele no qual, por definição –
pelo menos até o começo das teorias da pós-modernidade – nós ainda estamos)”68 , no
qual a verdade seria um “tipo epistemológico estático”, para, em seguida, considerar a
modernidade como um tropo.
Partindo dessa máxima do autor, poderíamos inferir que, se a modernidade é
uma categoria narrativa, não haveria porquê de não concedermos à pós- modernidade o

66
JAMESON, Fredric. Modernidade Singular. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, pág. 112-113.
67
Op. cit., pág. 37.
68
Op. cit., pág. 46.

47
mesmo estatuto, uma vez que a mesma, narrada por Jameson em Pós-modernidade: a
lógica cultural do capitalismo tardio, também se posiciona nessa mesma “flutuação
gestáltica” descrita pelo autor.
Desse modo, poderíamos cogitar a hipótese de o pós- moderno como um
“sistema de interpretação cultural” 69 que se pretende totalizante e que articula diversas
narrativas dentro da “narrativa- maior” da pós- modernidade, cuja intenção é conceder à
cultura um lugar na arena política (seja na ligação desta com a economia capitalista,
como o faz Jameson, seja ligando-a às políticas identitárias caras aos multiculturalistas e
aos pós-colonialistas). E, como toda narrativa, a pós-modernidade precisa ser levada em
consideração a outras narrativas, principalmente sua antecessora no campo da cultura, a
modernidade.
Ademais, é preciso perceber que a ligação entre lógica cultural e sistema
capitalista, com base no pensamento marxista do autor, ainda confere às categorias de
classe (o peso do econômico) um papel fundamental na pós-modernidade. Eis como um
dos críticos de Jameson, David T. Goldberg, refere-se a esse fato ao analisar Pós-
modernidade...:

“For Jameson, postmodernism is the cultural dominant of late


capitalism. Citing Stuart Hall as authority, Jameson conceives of
political struggle as being waged in the postmodern moment, not
primarily in “activist” terms but over the legitimacy of concepts and
ideologies. Jameson thinks legitimacy is fashioned presently in terms
of concepts like planning and the market rather than on the basis of
structural considerations. (…) Unlike Hall, Jameson has virtually
nothing to say about cultural production or the culture of
(re)production. (…) The invisible man of modernity has become the
invisible spaces and societies of late capital - and postmodern theory.
These erasures accordingly explain Jameson’s pregnant silences
concerning race and gender as sites of oppression and marginalization
– of superexploitation”70 .

A isso, contrapõe-se à análise do uso do conceito de estereótipo já realizada


neste primeiro capítulo, na qual a classe, mesmo estando presente, não configura o lugar
único - e muitas vezes nem mesmo central - de (re)produção de opressões. Além disso,
as categorias de raça e classe lembram ao pós- moderno a diferenciação empreendida ou
combatida pelos discursos modernos.
O pós-moderno não conseguiu abolir a lógica da distinção do moderno, sendo
que isso pode ser comprovado, dentre outros, pela inserção de grupos minoritários na

69
Conceito de Clifford Geertz, expresso na obra O Saber Local.
70
Op. cit., pág. 14-15.

48
produção e na difusão de conteúdos audiovisuais (casos da CUFA – Central Única das
Favelas; Festival Mix Brasil, que exibe filmes de temática GLBTs; FEMINA, festival
em que são divulgados filmes realizados por mulheres ou cuja temática se ligue a
questões de gênero) e, além disso, pela própria produção e recepção dos filmes
brasileiros e pela tentativa da afirmação de um “cinema cultural” como um dos projetos
para o cinema brasileiro atual71 . Mesmo que existam filmes brasileiros produzidos tendo
em vista explicitamente o circuito comercial (produzido a partir de outras mídias,
principalmente a televisão), tais como O Auto da Compadecida, Lisbela e o prisioneiro,
A Partilha, Irma Vap, ainda é muito recorrente na produção cinematográfica atual uma
distinção face à produção televisiva, às vezes por meio de uma oposição radical
(bastante encampada, por exemplo, pelos curta-metragistas e pelos documentaristas) 72 , e
nos próprios filmes a serem aqui analisados (não gratuitamente, uma das críticas feitas
ao Quanto vale ou é por quilo? possui o título de “Cronicamente iluminista”) 73 .
Em outro ensaio presente na coletânea Pós-modernidade... 74 , Jameson postula
que a visão tem três momentos históricos: colonial (Sartre), burocrático (Foucault) e
pós-moderno. No momento colonial, o visível é reificado 75 , isto é, transformado em
objeto para ser dominado. O colonizado é dominado porque ele pode ser apreendido
pela visão do colonizador. O momento burocrático radicaliza essa reificação, uma vez
que ele consolida a separação entre o ato de olhar e o ato de ser olhado (sendo que essa
consolidação se opera nos meios de comunicação e através dos aparatos destes –
sobretudo a câmera).
Ao criticar Foucault e seu fatalismo, visto que sua teoria não cede espaço à
resistência ou à liberação (aspecto já refutado por intelectuais como Michel de Certeau,
que ao lançar seu conceito de “apropriação”76 , rebate a perspectiva foucaultiana de que
o poder se espalharia indiscriminadamente sem sofrer nenhum tipo de resistência),
retoma a concepção de Sartre-Fanon de que o agente seria o responsável por explicitar a
dominação(“eu [colonizado] percebo a visibilidade pelo fato e pela opressão de ser

71
Cf. A Batalha da ANCINAV
72
Retomando a discussão do Fórum de Audiovisual do PT, houve manifestação por parte de um grupo
representante da ABDeC em ver os cineclubes como potencialmente relevantes para a distribuição do
audiovisual, além da reclamação de que o curta-metragem brasileiro, tido como uns dos melhores do
mundo, não desperta interesse na televisão brasileira comercial (aberta ou paga).
73
WERNECK, Alexandre. Cronicamente iluminista. Jornal do Brasil, Revista Programa, 27/05 a
02/06/2005.
74
JAMESON, Fredric. Transformações da Imagem na pós-modernidade. Op.cit., pág.115-145.
75
Conceito de reificação (Marx). Cf: BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. A construção social da
realidade. Petrópolis, Vozes, 2004.
76
Cf: CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994.

49
visto, e é essa a condição generalizada em toda a situação colonial e, de forma
inconsciente, em mim mesmo”77 ) para afirmar que o momento burocrático se pautaria
principalmente no envolvimento dos meios de comunicação, mais precisamente na
metamorfose da própria imagem.
E o momento pós-moderno? Que características ele possuiria? Segundo
Jameson, duas: estetização do real e visualização mais completa dessa realidade.

“Esse é o verdadeiro momento da sociedade da imagem, na qual,


segundo Paul Willis, os sujeitos humanos, já expostos ao bombardeio
de até mil imagens por dia, vivem e consomem cultura de maneiras
novas e diferentes. Se as obras de arte high tech tematizadas
tecnologicamente de que falei há pouco ofereciam as estruturas de um
tipo de reflexividade ou autoconsciência a respeito de nossa atual
situação e de sua relação com a tecnologia da informação, é tentador
sugerir que no momento pós-moderno a reflexividade como tal se
submerge na pura superabundância de imagens como em um novo
elemento no qual respiramos como se fosse natural. (...) seria possível
afirmar que decidir se a pós-modernidade marca uma ruptura radical
com a maior parte da história e da experiência humana ou se é,
simplesmente, uma intensificação de aspectos e possibilidades que já
existiam nelas desde os primórdios do tempo humano, constitui uma
opção inaugural fundamental de tipo político” 78 .

A essa opção política, contestamos, ao longo deste capítulo, a hipótese de que,


antes de configurarem uma ‘ruptura’ na história do capitalismo e da sociedade moderna,
o ‘pós- moderno’ e suas variantes configurariam uma continuidade a partir de algumas
alterações nos rumos da economia mundial (ou no capitalismo tardio, conforme diria
Jameson). Inclusive, o fato de a nação ter tido seu lugar contestado não significa que ela
tenha sido abolida como prática discursiva, revelando-se mais em sua continuidade
enquanto discurso e práticas (o que é comprovado, dentre outros, pelo lugar ocupado
pelas cinematografias nacionais), o que não significa que a globalização/capitalismo
tardio a tenha deixado incólume (no Brasil, a reforma do Estado após as eleições de
Collor assinala claramente que uma nova fase do capitalismo imprimiria ao Estado-
nação um novo lugar na ordem internacional).
Retomando as características do pós- moderno segundo Jameson, o autor ressalta,
a partir da estetização da realidade, que o ideal do Belo retornou como categoria da
experiência cultural. Pode o Belo ser subversivo na pós- modernidade? Segundo
Jameson não, na medida em que, ao ser mercantilizado, a possibilidade subversiva do
Belo deixa de ser eficaz.
77
Op. cit., pág. 117.
78
Op. cit., pág. 120.

50
O cinema não ficaria alheio a essa estetização, aliás, o próprio cinema brasileiro
passou por transformações técnicas (com o advento da tecnologia digital) sentidas pelos
espectadores: melhoria da qualidade do som, dos roteiros, da fotografia, dentre outros79 .
O que se deve questionar é o uso dessa estetização. Estaria ele fadado ao
conservadorismo? Não se nega, aqui, o potencial do uso conservador desta categoria;
todavia, esta pode ser ‘apropriada’ por cineastas e transformada em subversão. Afinal,
seriam Quanto vale..., Quase Dois Irmãos e Narradores apenas reprodutores de uma
estética conservadora feita para uma classe média conformista? De antemão, o material
disponibilizado pelos filmes e pelas críticas feitas a estes acenam negativamente a essa
pergunta 80 . Além disso, a profusão na realização e o comparecimento do público a
exibições de documentários de temática social (O sonho de Rose: dez anos depois;
Estamira; O fim e o princípio; Timor Leste: o massacre que o mundo não viu; Fala Tu;
etc) e de ficções que constroem um panorama ácido sobre o Brasil (Doces Poderes;
Carlota Joaquina: a Princeza do Brasil; Cronicamente Inviável; Carandiru) indica que
essa estetização da realidade também pode ter alguma ressonância na contestação dos
valores estabelecidos e da dinâmica social, independentemente de sua eficácia (leia-se,
da qualidade do filme e do fato de este ter atingido um público significativo).
Ao fazer um balanço do livro Les Cinq Paradoxes de la Modernité, de Antoine
Compagnon, Jameson infere que este autor analisa que o pós- moderno tem duas funções
“positivas”: tirar o aspecto histórico ou político da modernidade e uma suposta
“democratização pluralizadora”, devido ao compromisso do pós- moderno com o étnico,
com o feminismo, etc. Como já fizemos crítica à concepção de pluralismo na pós-
modernidade, foquemos na primeira característica. A produção cultural pós- moderna
consegue ser, de fato, “despolitizada” e “des- historicizada”? Os exemplos citados no
parágrafo anterior parecem novamente contrariar essa afirmação de Compagnon.
Essa “despolitização” da imagem seria acentuada pela cisão entre forma e
conteúdo (levantada por Jameson ao avaliar Caravaggio (1986), de Derek Jarman), que

79
Sendo esta uma exigência cada vez maior do público freqüentador das salas de cinema no Brasil atual,
leia -se, a classe média, uma vez que os cinemas de rua, em sua maioria extintos, foram substituídos no
mercado exibidor aos cinemas de shopping, cujos ingressos são muito mais caros. Isso provocou a
alteração do público de cinema brasileiro. Durante muitas fases deste –chanchada, pornochanchada – o
público de filme brasileiro era popular, ao passo que o público atual é a classe média, em virtude dos
fatores já expostos.
80
VIEIRA, João Luiz. A indústria perversa da solidariedade. www.criticos.com.br, 27/05/2005;
HOINEFF, Nelson. Quanto vale um vômito coletivo? www.criticos.com.br , 29/05/2005.

51
reforçaria a qualidade de simulacro da imagem. Em termos de análise fílmica, essa cisão
é plausível? Algumas áreas que priorizam a análise do filme por seu conteúdo (História,
Ciências Sociais) o fazem em detrimento da linguagem cinematográfica (ou seja,
desconsiderando o próprio aspecto histórico da formação do cinema como linguagem e
de que modos essa linguagem potencializa o conteúdo veiculado); os Estudos de
Cinema, ao contrário, são marcados por uma valorização da linguagem e da estética, em
alguns casos esquecendo que o cinema também é um fenômeno cultural e que aspectos
como condições de produção, exibição e recepção dos filmes devem ser levados em
conta na Teoria do Cinema. Constatando-se isso, é interessante observar a proposta de
um teórico como Robert Stam que, com todos os seus ‘tiques’ multiculturais, estuda os
filmes partindo de suas representações para tentar compreender o cinema como
fenômeno comunicacional.
Outro aspecto problemático da teoria de Jameson é sua abordagem da nação e do
impacto do capitalismo tardio nesta. Como este trabalho é sobre cinema brasileiro
contemporâneo, vislumbremos como Jameson analisa as narrativas do Terceiro Mundo:

“(...) Sugeria que, para a cultura hegemônica, surgiu uma espécie de


abstração, que resultou do esquecimento da situação nacional
possibilitado pelo poder supremo e pela centralidade, mas que foi,
também, ideologicamente útil na repressão de traços dessa situação
que poderiam conduzir a um pensamento ou conclusões políticas. O
que denominei alegoria nacional era uma espécie de índice formal de
auto-consciência, cuja ausência na arte e na cultura norte-americana
é, justamente, um sintoma fundamental dessa cegueira do centro. Em
minha opinião, assim, a alegoria nacional – a forma pela qual uma
obra de arte remete, às vezes instintiva ou inconscientemente, à sua
própria situação coletiva – constitui a base sobre a qual,
necessariamente, constrói-se qualquer arte mais abertamente política
ou comprometida. (...) Essa é a razão pela qual os textos que não
provêm do Primeiro Mundo são, freqüentemente, capazes de ser mais
situacionais, mais alegóricos do destino nacional, do que seus
equivalentes primeiro-mundistas. (...) Para colocar a questão de outro
modo, não se deve considerar que revelar esse tipo de reflexividade
coletiva ou autoconsciência seja um mérito dos textos do Terceiro
Mundo. Trata-se, mais, de seu destino e sua carga que estejam, na
situação atual, condenados à autoconsciência e a um conhecimento de
sua própria situação, o que os países mais privilegiados estão em
posição de evitar”81 .

Em primeiro lugar, refutemos de imediato esse “esquecimento” da situação


nacional no caso do Primeiro Mundo. O livro A nação do filme, de Robert Burgoyne,
demonstra exatamente o oposto. Através da análise dos filmes Coração de Trovão,

81
Op .cit., pág. 139-140.

52
Forrest Gump, Nascido em 4 de Julho, JFK e Tempo de Glória, Burgoyne consegue
detectar na narrativa de cada um destes aspectos que “alegorizam” a realidade dos EUA
e evocam fatos históricos ressoantes em sua memória nacional. Ademais, essa
dissociação entre status (no caso do Primeiro Mundo, privilegiado) e reflexão não se
comprova em diversas outras cinematografias do próprio Primeiro Mundo (Lacombe
Lucien, Hiroshima, mon amour, A Liberdade é azul, Uma giornata particolare, Salò o
le 120 giornate di Sodoma, O Casamento de Maria Braun, Berlim Alexanderplatz, O
discreto charme da burguesia, ou, se quisermos exemplos mais contemporâneos, Adeus,
Lênin, Au revoir, les enfants, Terra e Liberdade). Logo, a “cegueira do centro” não é
algo tão unânime assim...
Vejamos, ainda, a própria noção de “alegoria nacional”. Essa remissão à
situação coletiva dar-se-ia de que maneira? Aglutinando os espectadores como uma
massa? E ainda: essa noção encontra algum eco no cinema brasileiro atual? De fato,
devemos constatar preliminarmente que o uso da alegoria ainda possui um peso na
nossa cinematografia (herdado da tradição estabelecida pelo ‘Cinema Moderno’,
utilizando a categoria de Ismail Xavier), o que é sentido nos filmes a serem avaliados.
Todavia, não podemos levá- la às vias de um fatalismo aprisionador: temos de eliminar a
concepção de ‘destino’ de nossa teoria, isto é, varrermos a idéia de que a cinematografia
brasileira, para se afirmar como nacional, tem de necessariamente “alegorizar” a
realidade brasileira, sob pena de estabelecermos cânones que dificultem ou até impeçam
que realizadores ansiosos por fazer outros tipos de filmes sejam reconhecidos intelectual
e materialmente.
Ademais, devemos nos indagar: esse peso da ‘alegoria nacional’ é insuperável
em se tratando de uma cinematografia periférica, isto é, que nem consegue ocupar o seu
próprio mercado exibidor? Existem textos que colocam em xeque esse fardo do nacional
(Vida de Menina, O Caminho das nuvens, Houve uma vez dois verões, O Invasor, Dois
Filhos de Francisco, Sou feia mas tô na moda), além de indagações por parte da crítica
de cinema sobre se não seria possível a produção de determinados filmes fora dessa
tradição 82 .
Este próprio trabalho, inicialmente preocupado com a imagem do Brasil
construída através dos filmes brasileiros atuais, não colocaria a questão da nação de

82
FONSECA, Rodrigo.É possível o cinema policial no Brasil? Revista de Cinema, número 38, jun. 2003;
AVELLAR, José Carlos. Para um espectador desatento. São Paulo, Jornal da Tarde, Caderno de Sábado,
05/04/1997; TROUCHE, Daniel Seleme. Guerra nos filmes: a vingança das pipocas. Curitiba, O Estado
do Paraná, 22/05/2005.

53
forma tão radical, uma vez que a própria pós-modernidade ‘deslocou’ a nação de sua
centralidade, fazendo com que textos que contestem o seu lugar ou afirmem outros
lugares que não a ordem nacional pudessem ser produzidos. Tem-se plena consciência
de que os filmes brasileiros atuais, em sua maioria, não possuem a ambição de revelar o
Brasil em sua totalidade ou impor uma determinada leitura unívoca para a nação (o que
uma narrativa alegórica costuma pretender), mas, ao contrário, revelar narrativas
desconhecidas pelo ‘Brasil moderno’ ou pouco lembradas por este, no intuito de colocar
no jogo das identidades as diversas categorias obscurecidas.

54
Capítulo 2

CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO VERSUS


“RETOMADA”: OS EMBATES POLÍTICOS NA
“PATRIMONIALIZAÇÃO” DO CINEMA PÓS-EMBRAFILME
(1990-2007)

“Cinema é imagem, tudo bem. Mas eu


acho que a palavra é um patrimônio;
aliás, a linguagem... A primeira
formulação do ser humano foi a
linguagem como organização do
83
caos ”.

Após realizar um breve panorama das teorias pós- modernas e pós-coloniais e sua
possível aplicabilidade à análise fílmica, o presente capítulo irá dissertar sobre a
configuração do cinema brasileiro contemporâneo como um campo, a acepção de
Bourdieu, já discutida no capítulo 1.
Para tanto, será necessário evidenciar as questões a serem aqui enfrentadas: a) de
que modo o cinema brasileiro se configura como um campo?; b) como seus agentes
disputam o capital dentro do campo e em relação a outros campos?; c) de que
estratégias retóricas estes agentes se valem para conquistar ou preservar seus capitais
econômicos e simbólicos?
Partindo do pressuposto de que o capital a ser disputado é o poder de produzir,
difundir e interpretar imagens, faz-se preciso - em um trabalho cuja análise fílmica se
propõe a analisar as representações do Brasil e de identidades postuláveis em relação a
essas representações – compreender em que campo essas imagens são produzidas e
como os diversos habitus foram sendo historicamente construídos dentro dele, porém
não sem antes deixar de evidenciar o status dos respectivos diretores e como esse status
resulta de um “acúmulo” em relação ao próprio campo.
Devemos ainda fazer observação quanto ao corpus a ser utilizado nesse capítulo:
além da escassa produção historiográfica sobre o cinema brasileiro contemporâneo -
representada nos livros O Cinema da Retomada (Lúcia Nagib), Cinema de novo: um
balanço crítico do cinema da Retomada (Luiz Zanin Oricchio), Cinema Brasileiro
1995-2005: ensaios sobre uma década (organizado por Daniel Caetano), além da

83
Ruy Guerra, em entrevista concedida a José Carlos Avellar, Geraldo Sarno e Sérgio Sanz, publicada em
Cinemais 21 (jan/fev 2000).

55
entrevista de Ismail Xavier à revista Praga (O Cinema brasileiro dos anos 90) e do
catálogo da Mostra Cinema Brasileiro anos 90: 9 questões (realizada no Centro
Cultural Banco do Brasil – Rio e cuja curadoria ficou a cargo dos pesquisadores João
Luiz Vieira, Eduardo Valente e Ruy Gardnier), dissertações e teses a serem ainda
mencionadas – tratar-se-ão como vestígios da formação do habitus do campo diversos
recortes de jornais e revistas sobre o cinema brasileiro a partir de 1990 (que tratam
desde a produção até o consumo dos filmes) e sobre os diretores Sérgio Bianchi, Lúcia
Murat e Eliane Caffé.
Já que tanto o título do capítulo quanto a epígrafe fazem referência à palavra
patrimônio, iniciemos pela indagação a respeito da utilização desta categoria e da sua
possível aplicação na área de estudos cinematográficos. Dentre os vários significados da
palavra enumerados por José Reginaldo Gonçalves 84 , dois são interessantes de serem
aqui retomados: patrimônio cultural e patrimônio imaterial, sobretudo o último.

“Dentro [do patrimônio imaterial] estão: lugares, festas,


religiões, formas de medicina popular, musica, dança,
culinária, técnicas, etc. Como sugere o próprio termo, a
ênfase recai menos nos aspectos materiais e mais nos
aspectos ideais e valorativos dessas formas de vida.
Diferentemente das concepções tradicionais, não se
propõe “tombar” os bens listados nesse patrimônio. A
proposta é no sentido de se “registrar” essas práticas e
representações e de se fazer um acompanhamento para
verificar sua permanência e transformações”85 .

O desenvolvimento deste discurso, de certo modo, também encontra seus efeitos


na área dos Cinema Studies, o que pode ser constatado, em princípio, na relevância das
histórias dos cinemas nacionais, na preocupação de se ligar o processo de produção,
exibição e recepção cinematográfica às realidades sócio-econômicas de cada país/região
e no parcial fracasso de metodologias “esteticizantes” como a Semiologia e a Semiótica
no campo em questão. Além disso, também são percebidas ressonâncias na relação entre
cinema e antropologia: os usos do aparato e da linguagem cinematográficas na pesquisa
antropológica, visando à constituição de um patrimônio audiovisual de uma dada
cultura; o processo de realização de documentários etnográficos e suas implicações
éticas e estéticas; dentre outros.

84
Cf: GONÇALVES, José Reginaldo. O patrimônio enquanto categoria de pensamento. Versão
apresentada na 26a. Reunião Anual da ANPOCS, Caxambu, 2002.
85
Op. cit., pág. 4-5.

56
Outra palavra muito utilizada no debate historiográfico sobre patrimônio: o
monumento. O historiador Stephen Bann, em As invenções da história, ao retomar o
pensamento de Nietzche, indaga a respeito dos usos do discurso historiográfico. A partir
de uma citação do filósofo, segundo a qual seria possível haver três tipos de tratamento
por parte deste, Bann ressalta o papel do mesmo na disputa pela legitimidade e pelo
poder. Vejamos as passagens do filósofo retomadas pelo historiador:

“A história é necessária para o homem atual por três motivos: em


relação à sua ação e luta, em relação a seu conservadorismo e respeito,
e em relação a seu sofrimento e seu desejo de redenção. Estas três
relações respondem aos três tipos de história – até onde eles podem
ser distinguidos – a monumental, a antiquária e a crítica. (...) Se o
homem que vai produzir algo importante tem necessidade do passado,
ele faz de si mesmo senhor por meio da história monumental; o
homem que pode se contentar com o tradicional e o venerável usa o
passado como um “historiador antiquário”; apenas aquele cujo
coração está oprimido por uma necessidade imediata e que irá se
aliviar do peso a qualquer preço sente a ânsia da “história crítica”, a
história que julga e condena”86 .

Ao presente trabalho, interessa o conceito de monumento que pode se extrair da


leitura de Nietzsche realizada por Bann. Sendo uma estratégia retórica do discurso
historiográfico, o monumental situa-se no plano da legitimidade, para tanto se
relacionando com outras estratégias como a teleologia e a canonização.
Após a discussão sobre os usos das categorias discursivas patrimônio e
monumento, será preciso, para continuarmos nossa breve análise, limitarmos e
definirmos os usos de dois conceitos - “patrimonialização” e “monumentalização”.
Ambos podem ser concebidos como estratégias discursivas utilizadas pelos
agentes situados no campo cinematográfico para legitimar sua posição política.
Entendemos por patrimonialização toda tentativa de incorporar algum personagem,
temática ou estilo de filmar a uma meta-narrativa - o cinema brasileiro contemporâneo -
seja pela via da retórica (recepção crítica e acadêmica de um filme; discussões políticas
do campo e em relação a outros campos) ou da preservação stricto sensu (incorporação
de filmes, livros, artigos de jornais e outras fontes ao acervo de cinematecas ou
instituições ligadas ao cinema) 87 . A patrimonialização obedece à lógica da incorporação

86
NIETZSCHE, Friedrich. The use and abuse of History for Life . Apud BANN, Stephen. As Invenções da
História: ensaios sobre a representação do passado. São Paulo, Ed. Unesp, 1994, pág. 131.
87
É interessante recordar que Gonçalves, em seu texto já citado, ao se referir ao processo de constituição
de patrimônio como algo muito anterior à modernidade, assume a tese de que existe um impulso de
ordem universal a eleger bens materiais ou imateriais à categoria de patrimônio.

57
e, no caso do cinema brasileiro atual, um signo da mesma é o apelo supostamente neutro
em termos políticos à “diversidade”.
Por sua vez, a monumentalização pode ser compreendida como um retorno às
estratégias retóricas de afirmação do moderno (já discutidas no capítulo 1, mais
precisamente em relação ao pensamento de Jameson) - teleologia, canonização, idéia de
progresso, diferenciação - cujas implicações podem variar desde o ostracismo de vastos
períodos históricos e de outros realizadores não canonizados até a obliteração da
dimensão política da disputa pelo capital no campo (ou seja, a monumentalização pode
funcionar como fonte de legitimidade através de uma falsa “naturalidade”
arregimentada por certos agentes no campo).
Richard Handler 88 define os três aspectos de significação do patrimônio: a)
antiguidade; b) propriedade; e c) coletividade. Sendo o cinema brasileiro
contemporâneo, como seu nome já diz, algo que vivenciamos no quotidiano e, portanto,
difícil de ser isolado temporal e espacialmente, assumimos a dificuldade de enumerar
todas as possibilidades de patrimonialização contidas no mesmo. Almejando à
superação desta dificuldade, é preciso explanar que podemos somente tentar encontrar
vestígios desse processo, não sendo possível afirmar categoricamente que filmes irão de
fato fazer parte do “panteão” do cinema brasileiro pós-EMBRAFILME, lembrando que
os processos de revisão historiográfica são marcadamente fluidos e se mostram
necessários de acordo com realidades as mais diversas possíveis.
A lógica do patrimônio também encontra ecos na reflexão de Gopal
Balakrishnan a respeito da imaginação nacional89 . Ao relatar que a nação é constituída
através de uma tensão entre secularidade e perpetuidade, a elaboração de um patrimônio
passa a ser um processo político no qual as influências da primeira terão
desdobramentos na segunda. Desse modo, é possível indagar: como os agentes
presentes no campo do cinema articulam um discurso de caráter político no sentido de
eleger o que deve fazer parte ou não da história do cinema brasileiro? E uma questão
que muito importa a um trabalho sobre representações do Brasil: que Brasil(is)
foi(foram) eleito(s) pelos diversos agentes? Na pesquisa em questão, deter-nos-emos
(nos capítulos seguintes) na análise fílmica para tentar responder a essa indagação.

88
Cf: HANDLER, Richard. On having a culture: Nationalism and the Preservation of Quebec’s
Patrimoine. In: STOCKING JR., George W. (org). Objects and Others: Essays on Museum and Material
Culture. Wisconsin, The University of Wisconsin Press, ?
89
BALAKRISHNAN, Gopal (org). A Imaginação nacional. In: Um mapa da questão nacional. Rio de
Janeiro, Contraponto, 2000, pág. 209-225.

58
Aliada a esses questionamentos, a inquirição de Katherine Verdery sobre o
conceito de nação pode nos ser útil para melhor abordar os discursos sobre os filmes e o
cinema brasileiros:

“Considero nação, antropologicamente, como um


operador básico num vasto sistema de classificação social.
Os sistemas de classificação social não fazem apenas
classificar; na forma institucionalizada, também
estabelecem as bases da autoridade e da legitimidade
através das categorias que estipulam; fazem suas
categorias parecerem naturais e socialmente reais. A
nação, portanto, é um aspecto da ordem política e
simbólico-ideológica, bem como do mundo da interação e
do afeto sociais”.90

I UMA PEQUENA “REVISÃO” DA HISTÓRIA DO CINEMA BRASILEIRO?


POR UMA “INTRODUÇÃO” AO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO.

Complementando a epígrafe do texto, além da palavra, podemos considerar


também a imagem enquanto patrimônio. “Nada nos é estrangeiro, pois tudo o é”. A já
clássica asserção de Paulo Emílio Salles Gomes a respeito da nossa condição cultural
funciona, aqui, como uma ótima introdução ao estudo do cinema pós-EMBRAFILME,
uma vez que ela reflete a busca constante realizada ao longo de toda a história do
cinema brasileiro depois dos embates dos anos 50 e 60: a afirmação da nação brasileira
e de seu povo enquanto fonte temática, em contraposição à gigante “Roliude”
(parafraseando Glauber Rocha) e seu cinema de puro entretenimento.
Historicamente, os agentes do campo do cinema adotaram um discurso cindido
quanto ao seu papel de arte e de indústria. Enquanto nos EUA, onde o cinema se
afirmou muito cedo como indústria, as cinematografias dos Estados que tardiamente
perceberam a função social do cinema perante as massas foram relegadas, em sua
maioria, a um plano marginal dentro do seu próprio mercado exibidor interno (processo
muito bem conhecido no Brasil).
Devemos expor, nesse momento, um breve resumo dos debates sobre cinema
brasileiro empreendidos ao longo das décadas mencionadas. Em primeiro lugar, faz-se
necessária a pergunta: por que voltar a esses tempos em um trabalho sobre cinema
brasileiro contemporâneo? A resposta é quase imediata: foi neles em que se traçou boa

90
VERDERY, Katherine. Para onde vão a nação e o nacionalismo? In: Um mapa da questão nacional.
Rio de Janeiro, Contraponto, 2000, pág. 239.

59
parte das discussões ora empreendidas na arena crítica, acadêmica e institucional. A
urgência de se definir o que é um filme “brasileiro”; que temáticas que o caracterizam;
qual o papel das instituições relacionadas a este; que modelo econômico poderia
viabilizá- lo; que movimentos seriam capazes de projetá- lo para platéias nacionais e
internacionais (a velha questão do “público”), cujo debate teve início na década de 20
(mais precisamente na Revista Cinearte e na figura dos jornalistas Pedro Lima e
Adhemar Gonzaga), ganhou força nos congressos de cinema realizados, em sua maioria,
em São Paulo e no Rio de Janeiro, ao longo da década de 50, seguindo uma orientação
ideológica à esquerda.
O primeiro grande esforço metodológico de patrimonializar e historicizar o
cinema brasileiro partiu de Alex Viany, em seu livro Introdução ao Cinema Brasileiro.
Fruto de um desejo de uma “visão de conjunto”91 , sintomática de sua atividade de
jornalista e de seus embates com críticos como Moniz Viana, Almeida Salles, Rubem
Biáfora e J.D. Duarte, contrapunha-se ao paradigma hollywoodiano, alinhando-se aos
que pregavam a necessidade de o filme brasileiro representar a realidade nacional.
Lembrando que o livro foi lançado em uma época em que o cinema ainda não havia
alcançado sua legitimação cultural (visto que, em meados da década de 50, ainda havia
a discussão do status de arte do cinema nas páginas de revistas como Cahiers du
cinéma, Positif, na França, sendo que isso será conduzido no Brasil através de figuras
como o próprio Viany, P.E. Salles Gomes, Salvyano Cavalcanti de Paiva, Alinor
Azevedo, Nelson Pereira dos Santos; etc), é importante frisar que a construção de uma
tradição na filmografia nacional era condição retórica sine qua non da inserção do
cinema no panorama artístico nacional e, portanto, digno das atenções do Estado e dos
acadêmicos (no segundo caso, os estudos cinematográficos, no Brasil, ganham força em
fins da década de 60, ao mesmo tempo em que se criam cursos de comunicação nas
universidades públicas)92 .
E que tradição constituída é esta? Nas palavras de Arthur Autran:

“Além do nacionalismo, entra em cena a cultura popular,


tendo no samba um de seus representantes máximos. (...)
Ale x Viany, na constituição da sua narrativa histórica,
inspirado por Georges Sadoul, utilizou-se de dois eixos

91
Expressão do próprio autor. In: AUTRAN, Arthur. Alex Viany: crítico e historiador. São Paulo,
Perspectiva, 2003.
92
Faz-se preciso o estudo do vínculo acadêmico entre Cinema e Comunicação no Brasil, uma vez que a
tradição anglo-saxônica delega ao cinema um posto nos departamentos de Literatura e a tradição européia
o liga a áreas como História e Antropologia.

60
principais: um que historiciza a falta de industrialização do
cinema brasileiro e outro no qual indica a formação de um
cânone artístico”.93

Dotado de uma visão “essencialista” da identidade brasileira, enumera o que


deveria ser considerado ou não um filme brasileiro de acordo com critérios objetivos e
definidos a priori: diretor brasileiro ou há muito residente no Brasil; falta da influência
de gêneros do cinema norte-americano; temática ligada à realidade nacional; atores
brasileiros; dentre outros, elegendo como cânone as obras Barro Humano (Humberto
Mauro) e Limite (Mário Peixoto), postura sintomática do discurso nacional- modernista-
popular que iria dominar os debates cinematográficos na década de 60.
Com o advento do Cinema Novo, radicalizaram-se as tendências já anunciadas
na formação de uma historiografia do cinema brasileiro, sendo esse movimento
sintetizado na publicação, em 1963, da Revisão Crítica do Cinema Brasileiro
empreendida por Glauber Rocha. Eis o início da monumentalização da figura de
Humberto Mauro, alçado à categoria de “Pai” do cinema tupiniquim 94 e a tentativa de
ostracismo de figuras como Anselmo Duarte, Walter Hugo Khouri e Alberto Cavalcanti,
simbolizando projetos incompatíveis com a retórica cinemanovista de um cinema
genuinamente brasileiro, imerso no imaginário popular e tecnicamente “imperfeito”
(aliás, fato já elogiado por Viany e aqui levado aos extremos por Glauber). Nem mesmo
Mário Peixoto saiu ileso, visto que sua postura “artista na torre de marfim” não atraía a
simpatia do autor e sua relutância ante o trabalho de restauração de Limite era
identificada a um artista pedante e “alienado”.
O cinema brasileiro contemporâneo, formado a partir desse habitus, irá retomar
o embate entre arte e indústria no cinema a partir de várias linhas, que podem ser

93
Op. cit., pág. 200.
94
Por que falar em monumentalização aqui? Sem querer diminuir a importância do personagem ora
citado, devemos lembrar que a atividade cinematográfica contou com uma série de figuras, que iam de
comerciantes (os irmãos Segretto, Francisco Serrador, Severiano Ribeiro) a jornalistas (Pedro Lima,
Adhemar Gonzaga), passando por realizadores em vários estados (E. C. Kerrigan em São Paulo, Jota
Soares e Benjamin Abraão em Pernambuco; Mário Peixoto, Carmen Santos, Gilda de Abreu, Alinor
Azevedo, Watson Macedo, José Carlos Burle e Carlos Manga no Rio, dentre muitos outros) que
desempenharam funções essenciais à atividade cinematográfica; no entanto, não encaixavam tão bem no
modelo “nacional” tal como estabelecido, em uma fase anterior, pela crítica dos anos 50 e levada a cabo
pelo surto cinemanovista. Apesar de conhecidos, suas atividades foram muito menos alvos de pesquisas
do que as “realizações” de Mauro que, dentre outros, rendeu a célebre tese de Paulo Emilio Humberto
Mauro, Cataguases, Cinearte. Se existem trabalhos de pesquisa desses outros autores da fase muda e
início do cinema falado, estes se restringem a teses com circulação bastante restrita no meio acadêmico,
ao contrário do quarteto Humberto Mauro-Paulo Emilio Salles Gomes-Glauber Rocha-Alex Viany, sendo
os mesmos referências obrigatórias em quase todos os cursos de história do cinema brasileiro ministrados
em universidades ou em instituições de cinema.

61
resumidas, para melhor categorizá-las analiticamente, em duas: projeto industrial (cuja
ênfase recai na cadeia produtiva cinematográfica e na questão do público) e projeto
“autoral” ou de pesquisa de linguagem (cuja ênfase se situa nos filmes ou na qualidade
destes) 95 . Lembrando que esses projetos nunca são defendidos em seu estado puro, estes
devem ser compreendidos dialeticamente em relação ao campo, isto é, em que medida a
disputa pelo capital dentro do campo e em relação a outros campos mobiliza esses
projetos.
É bastante corrente a análise errônea a partir de uma perspectiva dual, na qual
supostamente se alinhariam os adeptos de um neoliberalismo que dominou os debates
sobre economia política após a irresistível ascensão de Fernando Collor à Presidência da
República, de um lado, e os investigadores e divulgadores de uma identidade nacional
ou regional que apóiam um cinema de cunho autoral e de “pesquisa de linguagem”, de
outro. Pode-se inferir, a contrario sensu, que os diversos agentes situados no campo se
valem tanto de premissas ligadas ao projeto “autoral” quanto ao industrial para se
afirmarem politicamente. As diferenças devem ser procuradas nos diversos status
ocupados por esses agentes e do habitus construído e invocado pelos mesmos, na
medida em que pode se constatar uma disputa em torno dos significados de termos
como “arte”, “indústria”, “nacional” e “popular”.
Devemos, portanto, ressaltar que o campo do cinema brasileiro contemporâneo
foi formado a partir de uma grande ruptura: o fim da EMBRAFILME em 1990.
Configurando uma alteração profunda no mercado cinematográfico brasileiro, tanto nos
esquemas de produção (cuja proteção estatal se viu extinta “da noite para o dia”, na
percepção dos agentes da classe cinematográfica) quanto nos de distribuição (lembrando
que a empresa também era distribuidora do cinema brasileiro, chegando a conquistar
mais de 40% do público brasileiro em determinada época – gestão de Roberto Farias) e
de exibição (diversas salas foram sendo fechadas a partir de meados da década de 80),
lembremos que a própria existência do campo foi ameaçada a partir de sua economia e
contestada por outros campos (notadamente o jornalismo e a política empreendida por
Fernando Collor).

95
A historiografia do cinema brasileiro também atribui a certos agentes como Vera Cruz, Atlântida e
EMBRAFILME o papel de tentar transformar o cinema em indústria no Brasil; em paralelo a essa
discussão, o debate já aqui apresentado e empreendido por críticos durante as décadas de 50 e 60 também
transformaram o autor em categoria a partir da qual os filmes deveriam ser avaliados e, ainda, defendidos
ou atacados.

62
Em meio a uma crise vivida pela EMBRAFILME nos fins da década de 80, o
Jornal da Tela publicou uma edição especial, em 1989, com a matéria EMBRAFILME:
20 anos. Por que a presença do Estado?, com depoimentos dos vários presidentes da
empresa. É interessante notar como o habitus na relação entre cinema e Estado é aqui
explicitado:

“A necessidade do envolvimento do Estado na atividade


cinematográfica não é, de resto, um problema brasileiro. Em todos os
países desenvolvidos, como a França, a Inglaterra, a Itália e muitos
outros, essa participação é fundamental na própria produção de
cinema, seja através de leis protetoras e/ou da associação direta na
própria produção. Até mesmo nos Estados Unidos, o paraíso da
iniciativa privada, existe uma relação estreita da produção
cinematográfica com o estado”.

Essa necessidade de o Estado intervir na atividade cinematográfica, levantada


desde a década de 20, passando pelo nacional-popular das décadas de 50 e 60, é uma
narrativa constantemente ativada a partir de valores como “periférico”, “resistência”,
“hegemonia”, “dominação”, “similaridade com cinematografias nacionais” presentes
em paralelo com a presença dos produtos e dos distribuidores norte-americanos. A
matéria destacava, dentre outros, o aumento gradativo do investimento em co-
produções, a efetividade da “cota de tela” (que obrigava os exibidores a ocupar suas
salas por um número de dias com filmes brasileiros), a obrigatoriedade de exibição de
curtas nacionais antes dos longas, a relativa autonomia para com o governo militar (cuja
censura atuava notadamente a posteriori, isto é, quando os filmes eram exibidos),
aumento do controle da remessa de lucros das empresas estrangeiras (que serviriam para
financiar a produção nacional), a busca por critérios objetivos na concessão de verbas
para a produção de filmes (que eliminariam, ao menos em tese, os “subjetivismos” na
apreciação dos projetos e os favorecimentos políticos).
Entretanto, os escândalos, a relação da empresa com o regime militar em sua
origem e a incapacidade em acompanhar as transformações do mercado
cinematográfico, segundo a imagem construída pela imprensa da época, além da
plataforma política vencedora das eleições de 1989, fizeram tavola rasa dessas
conquistas. Isso foi expresso na Lei 8.029/90, que extinguiu a empresa junto com outras
na reforma administrativa contida na proposta de Collor96 .

96
A extinção da EMBRAFILME, na época, foi percebida também como uma retaliação política pelo fato
de a maioria da classe cinematográfica, nas eleições do ano anterior, ter apoiado a candidatura de Lula à
presidência. No entanto, este fato foi contestado pela pesquisa de Tunico Amâncio, ao relatar que nesta

63
A crise que se seguiu nos cinco anos seguintes ao fim da empresa fez surgir um
trauma coletivo oriundo de uma alteração brusca na cadeia produtiva cinematográfica,
que deu origem a novos circuitos de exibição e formas de produção e distribuição. O
campo cinematográfico, durante esse tempo, teve de repensar suas relações com os
campos político, econômico e jornalístico.
Ocupando prioritariamente os cadernos de cultura (ao invés do noticiário
econômico e político), a crise do cinema nacional foi abordada de vários ângulos, desde
propostas de se repensar o conteúdo e a narrativa dos filmes nacionais no intuito de se
conquistar o público 97 até a contestação da possibilidade de o cinema brasileiro se
afirmar exclusivamente no campo comercial98 sem os subsídios estatais. Esta última
reportagem apresenta os seguintes dados: enquanto o filme dos Trapalhões de 1989 (Os
Trapalhões na Terra dos monstros) fez 3.200.000 espectadores, o de 1990 (Os
Trapalhões e a árvore da juventude) conseguiu levar ao cinema 1.200.000, quase um
terço do público do ano anterior, o que indica que a crise se deu em toda a cadeia
produtiva cinematográfica.
Outras abordagens devem ser aqui retomadas: a contestação da existência
material do cinema brasileiro, que se traduziu em reportagens veiculadas em jornais de
grande circulação regional e nacional, tais como Os descamisados do cinema 99 e
Cinema brasileiro muda de emprego 100 , de um lado, e a reafirmação dessa existência -
mesmo que precária - por meio de outras como Cinema brasileiro: agonia sem morte101
e O cinema de 91 mostra um Brasil que não deu certo e busca a saída 102 , além daquelas
que explicitamente advogavam pela retomada da produção cinematográfica, tais como

Lei outros órgãos como Instituto Brasileiro do Café (IBC), Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), EBTU,
PORTOBRAS também foram extintas por não se encaixarem no novo “perfil” a ser assumido pelo Estado
Brasileiro.
97
LUNARDELLI, Fatimarlei. Cinema: a crise do nacional. In: Porto Vírgula número 1. Porto Alegre,
março-abril 1991.
98
ORSINI, Elizabeth. Primeiro verão sem Trapalhões: crise do cinema nacional atinge até os campeões
de bilheteria do Brasil. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10/08/1991.
99
SCHILD, Susana. Os descamisados do cinema. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
19/12/1991, pág.1.
100
GIRON, Luiz Antônio. Cinema brasileiro muda de emprego. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São
Paulo, 5/5/1991, páginas 1 e 6.
101
PEREIRA, Edmar. Cinema Brasileiro: agonia sem morte. In: São Paulo, Jornal da Tarde, 28/6/1991,
pág. 19.
102
SÁ, Nelson de. O cinema de 91 mostra um Brasil que não deu certo e busca a saída. In: Ilustrada,
Folha de São Paulo. São Paulo, 31/12/1991, pág. 1.

64
Ciclo de curtas de 91 traz retomada do documental103 , A longa batalha do curta-
metragem104 e XVIII Jornada de Cinema da Bahia: a retomada do filme brasileiro 105 .
Na medida em que o próprio ato social de ir ao cinema passou a ser preterido, o
campo do cinema brasileiro contemporâneo teve, a partir de então, de enfrentar uma
série de questões: a) como conseguir viabilizar a produção de novos filmes?; b) como
lançar esses novos filmes no mercado?; e, principalmente, c) como assegurar a
legitimidade do cinema enquanto fenômeno social perante os campos político e
econômico? Recordemos que 1992 foi o ano em que a atividade caiu drasticamente em
todos os segmentos: apenas 9 longas produzidos 106 , com taxa de público de 0,05% para
o cinema brasileiro, além de o próprio mercado exibidor brasileiro ter despencado para
apenas 34 milhões de ingressos vendidos e inúmeras salas fechadas, cujo número
reduziu- se a menos de 1000 – em 1980, eram 2.300 salas e foram vendidos 164 milhões
de ingressos107 .
Trazendo as colocações de Bourdieu, segundo as quais o campo configura-se,
dentre outros, por seu passado relembrado no presente pelo habitus, é possível dizer que
o campo do cinema brasileiro contemporâneo se constitui na tensão entre a memória
deste trauma do fim da EMBRAFILME (e da crise que se seguiu) e do legado do
controle estatal deixado por ela, sendo essa tensão pautada pela vulnerabilidade
constante sofrida pelo próprio campo no tocante a mudanças bruscas em sua cadeia
produtiva 108 . Desse modo, podemos interpretar a busca de legitimidade empreendida
pelo campo cinematográfico em relação a outros campos a partir da necessidade de sua
própria existência material e daquela dos diversos agentes vinculados a ele.

103
LABAKI, Amir. Ciclo de curtas nacionais de 91 traz retomada do documental. In: Segundo Caderno,
Folha de São Paulo. São Paulo, 17/10/1991, pág 7.
104
ORICCHIO, Luiz Zanin. A longa batalha do curta-metragem. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo.
São Paulo, 27/7/1991, pág. 2.
105
JOSÉ, Ângela. XVIII Jornada de Cinema da Bahia: a retomada do filme brasileiro. In: Revista
Cinemin, nov. 1991, pág. 24-25.
106
Cf: Catálogo da mostra Cinema Brasileiro Anos 90: 9 Questões, pág. 111.
107
Cf: SOUZA, Ana Paula. Mercado exibidor em expansão. In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô,
março de 2003, pág. 54.
108
Na década de 80, a expansão do mercado do vídeo-cassete, responsável pela queda na venda de
ingressos e o desgaste do mecanismo legal da cota de tela (alvo de ações judiciais por parte de exibidores
descontentes). Cf: MEWES, Luis. A Justiça e o Governo Federal contra a reserva de mercado para o
filme brasileiro. In: A verdade sobre o cinema brasileiro. São Paulo, João Scortecci Editora, 1992.

65
II O CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO LANÇADO À
“RETOMADA”...

Em meio à grave crise do cinema nacional do início da década de 90 e


percebendo que o campo dever-se-ia, de certo modo, “adequar” à tese do Estado
Mínimo, visto que foi afirmada a importância da tutela estatal à atividade
cinematográfica, os diversos agentes saíram à procura de meios para que as diversas
esferas públicas adotassem uma nova política para o campo cinematográfico. Do ponto
de vista político e econômico, as transformações mais relevantes foram as criações de
leis de incentivo à cultura no âmbito federal, em um primeiro momento, sendo seguido
por diversos estados e municípios. É preciso sublinhar que a Lei Rouanet foi
promulgada no final de 1991, tendo o campo político percebido que o cinema brasileiro
não conseguiria se firmar sem a tutela estatal e, ainda, a busca daquele campo por
legitimidade (não gratuitamente, o campo político negocia com campos cujo capital
cultural seria uma contrapartida, dentre eles o cinematográfico), uma vez que já se
anunciava a crise política que viria a retirar Collor da Presidência da República. A Lei
do Audiovisual (de 1993), por sua vez, pode ser interpretada como uma vitória do
campo cinematográfico em relação ao campo político durante a gestão Itamar Franco,
tendo pleiteado, dentre outros, a possível consolidação de uma indústria cinematográfica
e audiovisual no Brasil.
Entretanto, já situamos de antemão que não existe nenhuma linearidade na
negociação entre os campos cinematográfico e político. Ao contrário, a instabilidade
pauta a relação entre os dois campos: além da própria ruptura com o fim da
EMBRAFILME, essa tensão foi revivida em diversos momentos, tais como a criação da
ANCINE e da possibilidade de o marco se estender ao aud iovisual (a serem analisadas
nesse ponto), além dos momentos de formulação dos editais para os concursos públicos
direcionados ao campo 109 e de outros em que o governo ameaçava sobre-taxar alguns
setores 110 e adotar medidas excessivamente protecionistas para o filme brasileiro 111 .

109
Um exemplo foi o edital publicado pela Prefeitura do Rio de Janeiro no início de 2006, que previa um
concurso para propostas de filmes cuja temática deveria ser centrada na comemoração dos 200 anos da
chegada de Dom João VI, o que gerou vários protestos no campo e se chegou a acusar a política de
‘dirigismo cultural’.
110
O constante atrito entre produtores e exibidores é uma narrativa presente no campo, uma vez que os
últimos se percebem sobrecarregados de obrigações – cumprimento da cota de tela e pagamento de
impostos, além da possibilidade da criação de novas e a reativação de antigas, tais como a lei do curta
(cujo debate movimentou o campo em 2006).

66
Passando ao âmbito da produção, este fato imprimiu, ao longo da década, uma
nova dinâmica econômica a área: na medida em que o dinheiro para as produções não
viria mais diretamente do Estado e sim das empresas patrocinadoras, os filmes passaram
a ter de disputar a preferência das políticas de patrocínio de cada empresa
individualmente.
Isso originou uma série de fatores que alterariam a configuração do campo: a) o
produtor enquanto grupo de status112 em ascensão no campo (sendo isso comprovado,
inclusive, pela “descoberta” efetuada pela imprensa desta função e de seus agentes)113 ,
uma vez que a este seria atribuída a racionalização/burocratização do fazer
cinematográfico, além do destaque da atuação de empresas produtoras dentro do
mercado cinematográfico 114 , responsáveis perante as empresas financiadoras pelos
filmes; b) a demora que as empresas tiveram em se adequar ao novo esquema de
patrocínio e dos agentes do campo cinematográfico em lidar com os dispositivos legais
conduziu, dentre outros, à necessidade de figuras intermediárias entre patrocinador e
patrocinado – os captadores de recursos, que muitas vezes ganhavam cerca de 20% ou
mais do valor total do projeto 115 (o que era um desvio de verba significativo e que
poderia ser usada em benefício do próprio campo, seja na produção ou na difusão),

111
Cf: DECIA, Patrícia. Mercado vê erro em taxa do lixo cultural. In: Folha de São Paulo. São Paulo,
9/11/1998 e Erro faz Weffort desistir de taxa. In: O Globo. Rio de Janeiro, 10/11/1998 (autoria
desconhecida). A polêmica girou em torno da qualificação de “lixo cultural” atribuída por Weffort, então
Ministro da Cultura, a diversos produtos audiovisuais estrangeiros que, portanto, deveriam pagar uma
taxa maior para entrar no mercado brasileiro. A medida foi desqualificada dentro do campo
cinematográfico, pois foi tomada com base em relatórios que continham erros na apreciação de dados do
mercado.
112
Conceito de Weber apropriado por Bourdieu, a ser desenvolvido na parte seguinte deste capítulo. Cf:
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 2005.
113
Eliane Caffé, em entrevista concedida em 22/05/2006, relata que uma das grandes diferenças do
cinema brasileiro atual para com as outras fases do cinema brasileiro é o destaque da figura do produtor,
visto que era muito comum o diretor ser roteirista e produtor do filme. Entretanto, devemos mencionar
também o fato de que ainda hoje muitos diretores produzem, sendo esse o caso dos diretores Sérgio
Bianchi e Lúcia Murat, que viabilizam seus filmes a partir de suas próprias produtoras (Agravo e Taiga,
respectivamente). A título de exemplo, citemos as matérias As superpoderosas damas do cinema, de
André Luiz Barros (veiculada no Caderno B do Jornal do Brasil em 22/4/1996) e O salto ambicioso do
clã Barreto, de Roberta Jansen (veiculada pelo Jornal da Tarde em 26/10/1996).
114
É preciso notar que essa atuação de empresas ocorre desde o cinema mudo. O que o campo atual se
diferencia em relação a seu passado é a longevidade pela qual algumas empresas conseguem se manter,
mesmo que para isso tenham de recorrer a outros campos como a publicidade e a tevê comercial e
independente. Um dos casos de destaque é a Conspiração, que atua nesses vários campos. Sobre ela, é
interessante como Andrucha Waddington, um de seus sócios, alia os projetos industrial e “autoral” ao
explicar seu funcionamento: “tem muita regra, reuniões para estabelecer regras e códigos de ética, para
que todos tenham a sua autoria ali dentro”. In: Revista de Cinema n o. 3. São Paulo, Krahô, julho 2000,
pág. 10.
115
“Com a Lei do Audiovisual, apareceu o cafetão de produção [referindo-se ao captador], que pede 30%
para levantar a grana”. Declaração de Tata Amaral durante um debate organizado pela Folha de São Paulo
com vários diretores e publicado no jornal em 25/4/1997 (no caderno Ilustrada).

67
formando uma elite burocrática dentro do próprio campo 116 e, por conseguinte,
resistente à alteração das formas de patrocínio delegadas pelo Estado à iniciativa
privada; c) a lacuna presente nas leis originou distorções na sua aplicabilidade (tais
como a lei do Audiovisual, em que muitas empresas descontavam um percentual maior
do que o investido efetivamente, até a modificação da redação do dispositivo legal) e
alguns escândalos explorados pela imprensa que desgastaram a imagem do campo
cinematográfico perante a população (casos Guilherme Fontes e Norma Benguell) 117 ; d)
a segmentação do campo cinematográfico em “nichos de mercado”, que variam desde
filmes baixo orçamento até alto orçamento e são produzidos para públicos diferentes,
além de as estratégias de inserção dos filmes serem também repensadas 118 .
No tocante à existência do campo cinematográfico, podemos afirmar que duas
narrativas dominaram o mesmo: a afirmação da precariedade de sua cadeia produtiva
versus a monumentalização da retomada da produção e das medidas nas áreas de
distribuição e exibição, configurando o “ciclo” como habitus presente no campo. Ou
seja, além de o “ciclo” já ser a forma narrativa privilegiada pela historiografia do
cinema brasileiro, apreende-se o termo “retomada” em sua dimensão cíclica que, como
tal, se vê constantemente ameaçada 119 .
Se, por um lado, ressaltava-se o alto custo de produzir filmes no Brasil 120 , a
desorganização do mercado cinematográfico 121 , a falta de possibilidade de se cumprir a

116
Cultura descobre o poder do terno e gravata (referência a autoria limitada à sigla ECB). In: Ilustrada,
Folha de São Paulo. São Paulo, 2/1/1996, pág. 7.
117
Como exemplo, citemos a matéria veiculada pela revista Veja no final de junho de 1999, sendo a
reação do campo quase imediata, com a divulgação de notas manifestando o repúdio à campanha da
revista contra o mesmo (a nota no Jornal do Brasil, em 1/7/1999 assinada por entidades como Sindicato
Nacional da Indústria Cinematográfica, Associação Brasileira de Cineastas, Associação Paulista de
Cineastas e Sindicato da Indústria Cinematográfica do estado de São Paulo).
118
Cf: Meta de Sara Silveira é apostar em novos talentos. In: Revista de Cinema no.2. São Paulo, Krahô,
junho 2000, pág.28-29. Cinema vai atrás de seu público. Op. cit., pág. 32-33 (autorias desconhecidas).
119
“A euforia que vinha embalando a classe cinematográfica brasileira, até há pouco, deslumbrada com a
retomada da produção, foi enterrada com pá-de-cal durante o Festival de Brasília, que se encerra hoje.
Pelas telas passaram filmes de rica diversidade estética e orçamentária, comprovando que o cinema
brasileiro voltou a ser uma realidade palpável. Mas a verdade é que todos os filmes exibidos enfrentam
imensas dificuldades para chegar ao público, e as conseqüências da crise, ainda não totalmente sentidas
no bolso, assustam o futuro da própria produção”. BUTCHER, Pedro. Cinema teme que crise enterre a
retomada. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18/10/1998, pág. 4; “A crise é agora, a
indefinição do modelo. Que crise é esta? É a crise dos 8 por cento. Quase dez anos depois da retomada,
não conseguimos superar os 8 por cento do mercado”. FRESNOT, Alain. Acabou o Carnaval, vamos
trabalhar! In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô, abril 2003, pág. 37.
120
RYFF, Luiz Antônio. O Custo Brasil. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 30/01/1997.
121
DECIA, Patrícia. Desorganização domina mercado nacional. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São
Paulo, 6/2/1997, pág. 10; JUNIOR, Gonçalo. A Via-crúcis da distribuição: sem salas de exibição, quase
duas centenas de filmes brasileiros esperam na fila para entrar em cartaz. In: Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, 10/9/1998.

68
imensa carga tributária 122 ou mesmo equiparar cachês do cinema aos pagos pela
publicidade e televisão 123 , por outro se colocava em evidência a constante necessidade
de o campo reafirmar sua legitimidade material e simbólica. Para tanto, rebatiam-se
acusações como “corporativismo” e ineficiência 124 (já que o cinema brasileiro, por ser
precário, não atingiria o público que, por sua vez, supostamente não estaria interessado
nos filmes nacionais, configurando um raciocínio tautológico) e se defendia a escassa
tutela estatal pós-Collor e a possibilidade de se regular o mercado cinematográfico para
garantir a presença do filme brasileiro perante o estrangeiro (por exemplo, reativando a
cota de tela, na prática abolida nos primeiros anos da década de 90)125 .
Muito se contestou a existência de uma indústria cinematográfica ativa no
Brasil, dentro e fora do campo 126 , tal como expõe o crítico Carlos Alberto Mattos:

“a retomada do cinema brasileiro não é feita apenas de bons filmes e


expressivo sucesso dentro e fora do país. Ela já produz alguns
mitos(...). Um deles é o mito da proficiência da família Barreto, de
resto comprovado na prática nos últimos 20 anos, desde a explosão de
Dona Flor e seus dois maridos. Outro mito corrente é o de que basta
produzir para chegar ao público – este ainda longe de corresponder à
realidade caso a retomada não se verifique também na estrutura e no
poder de cacife de distribuição e na garantia de espaços para
exibição”127 .

Entretanto, essa contestação é muitas vezes contraposta a outras narrativas que


sublinham a possibilidade de o cinema brasileiro tornar-se uma indústria.
Acompanhando a escalada do número de espectadores e de filmes produzidos (Público
dos filmes nacionais cresce 37% 128 , Cinema brasileiro ganha as salas da cidade129 , A

122
Lei Trabalhista é ficção no cinema nacional. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 26/01/1996,
pág. 1 (autoria expressa pela abreviatura E.C.B.); LOPES, Denise. Um cinema à procura de acabamento.
In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 8/8/1999, pág. 2. Na última reportagem, citam-se a
imensa carga tributária que incide sobre a importação de equipamentos cinematográficos, a falta de
garantias na continuidade da produção e o gasto de aproximadamente 25% dos orçamentos dos filmes em
efeitos especiais e sonorização realizados no exterior.
123
BARROS, André Luiz. O que é isso, companheiro? In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
26/01/1996.
124
FRESNOT, Alain. A corporação e o cinema. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo. São Paulo,
7/7/1996, pág.3.
125
MEDEIROS, Jotabê. Reserva de mercado desafia cineasta brasileiro. In: Caderno 2, O Estado de São
Paulo. São Paulo, 17/1/1998, pág. D12; BUTCHER, Pedro. “Cinemas viraram motéis de filmes”: Barreto
protesta contra alta rotatividade que barra volta de ‘Companheiro’. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio
de Janeiro, 20/2/1998, pág. 5.
126
CORRÊA, Érica. Indústria? Nosso cinema ainda está para fábrica de ilusões. In: Jornal da Tarde. São
Paulo, 14/6/1998. Nesta reportagem, Roberto Gervitz e Aníbal Massaini Neto, dentre outros, explicitam
que não existem infra -estrutura nem auto-sustentabilidade, condições básicas para uma indústria.
127
Retomada da produção nacional é mitificada. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo. São Paulo,
16/05/1996, pág. D7.
128
GUERINI, Elaine. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 12/1/1999.

69
indústria do cinema a todo vapor130 ) e, ainda, o apelo à qualidade estética dos filmes
atuais 131 , enfatiza-se o interesse das multinacionais pelo mercado brasileiro e a
importância dos patrocínios.
Aliada à conquista de patrocínios, a necessidade de demonstrar a legitimidade do
campo cinematográfico brasileiro perante a imprensa, o Estado e o “público”, fez com
que o mesmo repensasse a sua cadeia produtiva. Dentre as diversas práticas em que isso
ocorreu, analisemos algumas. A primeira a ser citada é a monumentalização da
“Retomada”, alçada a período da história do cinema brasileiro, a partir do sucesso de
público representado pelo filme Carlota Joaquina, a princeza do Brasil, de Carla
Camurati (primeiro filme brasileiro da década a ter mais de um milhão de espectadores).
Muitos consideram o ano de 1995 (por conta do lançamento desse filme) um “marco”
na transição do campo do cinema brasileiro, dentre os quais jornalistas, críticos e
acadêmicos132 , em vez de notarem que, nesse ano, foi consolidado o ajuste de grande
parte do campo cinematográfico às diretrizes do campo político, com a efetividade dos
patrocínios (leia-se, a chegada dos filmes “incentivados” ao mercado exibidor).
A consagração na imprensa do sucesso obtido pelos filmes brasileiros em
festivais e premiações no exterior também deve ser mencionada, principalmente se
levarmos em conta as “batalhas pelo Oscar” noticiadas quase palmo a palmo por
ocasião das indicações de O Quatrilho, O que é isso, companheiro? e Central do
Brasil 133 , que oscilou entre a patrimonialização (a incorporação destes filmes à

129
In: Jornal da Tarde. São Paulo, 6/6/1997, pág. 5C (autoria desconhecida).
130
LÓPEZ, Nayse. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31/3/1996, pág.2.
131
O crítico Celso Sabadin, em um tom bastante preconceituoso, chegou a minimizar a produção
cinematográfica brasileira de 1980, dizendo que nela havia “muita porcaria, muita pornochanchada e
muita produção patrocinada pela EMBRAFILME, feita apenas para meia dúzia de intelectuais” e,
contrapondo a esse panorama, afirma que “nunca, jamais, em tempo algum, o cinema brasileiro teve tanta
qualidade. “Carlota Joaquina”; “O Quatrilho”; “O Menino Maluquinho”; “Pequeno Dicionário Amoroso”;
“O Cineasta da Selva”; “Como ser solteiro”; “For All”; “Anahy de las Misiones”; “Sábado”; “Terra
Estrangeira”; “Guerra de Canudos”; “Boleiros”; “A Ostra e o Vento”; “O que é isso, Companheiro?”;
“No Rio das Amazonas”; “Lamarca”; e (principalmente) “Central do Brasil” formam uma safra das mais
refinadas em toda a nossa história cinematográfica”. Talvez o que não tenha havido nunca, jamais visto,
em tempo algum, é uma interpretação tão assumidamente teleológica e dotada do ideal do progresso
(moderno) como esta. In: Revista da Criação número 39, julho 1998.
132
Cf: NAGIB, Lúcia. O Cinema da retomada: depoimento de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo,
Editora 34, 2002; ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo,
Estação Liberdade, 2003.
133
Além disso, existe uma disputa pela indicação do filme brasileiro a ser levado à apreciação da
Academia das Artes e das Ciências Cinematográficas em Los Angeles, EUA que, via de regra, se situa na
escolha do “modelo de filme” a ser apresentado: filmes com apoio de firmas estrangeiras como Miramax
versus filmes tidos como “autorais”, sendo que ambas as estratégias revelaram-se inócuas desde 1999 (a
última indicação de um filme brasileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro). Cabe ao Ministério da
Cultura, por meio de uma comissão mista (com membros do campo cinematográfico - diretores,
produtores, exibidores etc - e do próprio Ministério), escolher o filme todos os anos.

70
discussão estética sobre cinema brasileiro) e a monumentalização (a interpretação da
conquista de um Oscar de forma teleológica, ou seja, a chancela internacional como
uma solução para os dilemas da cinema tografia nacional e um marco na escalada para a
consolidação industrial deste cinema)134 . Um contraponto a isso é o artigo de Susana
Schild O Brasil e o Oscar 135 , no qual a crítica ironiza a narrativa “melodramática” em
torno da “corrida” ao Oscar e minimiza a apreciação negativa do prêmio para com o
cinema brasileiro.
Além da “busca do Oscar”, vejamos como o cinema brasileiro contemporâneo se
insere internacionalmente. Houve, nesse período, o aumento no número de co-
produções entre o Brasil e outros países, além de colaborações internacionais (presença
de atores136 e técnicos na realização dos filmes brasileiros e de brasileiros em produções
estrangeiras 137 ) para os filmes brasileiros; a premiação de filmes brasileiros ocorreu
além dos festivais, sendo vários diretores convidados a participar de laboratórios de
roteiro e direção 138 ou tendo recebido verba para a produção do filme 139 ; a tentativa de
se inserir o cinema brasileiro no mercado audiovisual internacional por meio de vendas

134
Reiteramos que o reconhecimento internacional do cinema nacional é percebido há muito, pela
historiografia do cinema brasileiro, como fator determinante na delimitação do campo: “Como reconhecer
o valor de um filme brasileiro, se o valor de qualquer obra é determinado pela metrópole? (...) Diante de
um filme brasileiro, a decisão ainda não está tomada; caberia a esta elite reconhecer se para ela (ou, na
perspectiva dela: para a sociedade brasileira), tal ou tal filme é ou não de seu interesse. Para isso ela
precisaria ter uma autonomia de decisão e se afirmar numa perspectiva histórica. E não é o caso, a tal
ponto que para se situar diante de sua própria produção cinematográfica, ela tem que aguardar que esta
passe pela metrópole e receba a chancela. O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962), só virou
grande depois da Palma de Ouro em Cannes. O Cinema Novo só virou importante depois de receber não
sei quantos prêmios em festivais internacionais, artigos e entrevistas em revistas estrangeiras de prestígio
cultural”. In: BERNARDET, Jean-Claude. Cinema Brasileiro: propostas para uma história. São Paulo,
Paz e Terra, pág. 17-18. Em entrevista, a produtora Assunção Hernandez narra a trajetória comercial de O
Homem que virou suco: “O Homem que virou suco foi difícil de produzir. Tivemos que filmar em 16mm,
mas depois não tínhamos dinheiro para ampliar para 35mm. O filme foi exibido em poucos cinemas,
ninguém queria saber da história. Foi um fracasso. A seguir, ganhou o prêmio de melhor filme no Festival
de Moscou e foi notícia em todos os jornais. No dia seguinte, a situação se inverteu. Todos os exibidores
queriam ter o filme e fizemos grande sucesso de público”. In: Revista de cinema n o. 30. São Paulo, Krahô,
outubro 2002, pág.18.
135
In: Revista de Cinema número 36. São Paulo, Krahô, abril 2003, pág. 47.
136
Oriundi, em que Anthony Queen estava no elenco; O Xangô de Baker Street (ver nome de ator
português)
137
Walter Salles dirigindo na série de esquetes Paris, Je t’aime (Cf: Revista de Cinema n o. 22. São Paulo,
Krahô, fevereiro 22, pág. 8; Rodrigo Santoro atuando no segundo filme da série As Panteras.
138
Lúcia Murat participou das oficinas de roteiro do Festival Sundance, com os filmes Brava Gente
Brasileira e Quase Dois Irmãos.
139
Luiz Alberto Pereira e Sérgio Bianchi receberam R$ 100 mil para a finalização dos filmes Hans
Staden e Cronicamente Inviável, respectivamente; Eliane Caffé recebeu verba do programa francês Fond
Sud para finalizar Narradores de Javé (cuja mixagem foi feita em um estúdio na França).

71
para os circuitos cinematográficos e de televisão 140 ou mesmo de festivais dedicados ao
cinema nacional141 .
Passemos aos filmes produzidos: mesmo com a retórica da “diversidade”,
destaquemos o apoio, por parte das empresas patrocinadoras, a versões e biografias da
História oficial142 e a adaptações literárias e teatrais, o que originou um fenômeno
detectado por João Luiz Vieira em A retomada da História na História da Retomada no
cinema brasileiro 143 : o crescimento no número de “filmes históricos” como forma de
legitimar culturalmente o campo do cinema brasileiro.
Além disso, poderíamos inferir que muitos desses filmes se pautam pela
monumentalização da História oficial (Guerra de Canudos; O que é isso,
Companheiro?; For All: o trampolim da vitória), de alguns personagens caracterizados
pelos filmes como centrais na história política e cultural brasileira (Cazuza:o tempo não
pára; Lamarca; Zuzu Angel) ou de alguns autores literários e teatrais (Memórias
Póstumas de Brás Cubas), na medida em que se assiste nos mesmos uma tentativa ou
uma reiteração de “canonização” e de narrativa teleológica. Entretanto, podemos
argumentar que a própria noção de história foi disputada no campo, principalmente se
observarmos outros filmes que buscam patrimonializar imagens pouco conhecidas pelo
público brasileiro (Corisco e Dadá, que mostra uma Dadá pouco satisfeita com a vida
do cangaço; Brava Gente Brasileira, que constrói ao espectador uma imagem pouco
divulgada dos índios – vitoriosos em uma guerra “cultural”; Baile Perfumado, que
revela um personagem – Benjamin Abraão desconhecido pelo público e relevante na
própria história do cinema brasileiro e uma fase do cangaço pouco estudada – o seu
término; Madame Satã, cuja narrativa se situa em sua fase “pré- mítica”) ou que tentam
construir uma narrativa “total” ou particular sobre o Brasil (Cronicamente Inviável;
Quanto vale ou é por quilo?; Doces Poderes; Um céu de estrelas; O ano em que meus
pais saíram de férias).
Poder-se-ia afirmar, ainda, que os filmes produzidos a partir de 1990 assumem a
dificuldade de se inserir em um “gênero cinematográfico” (marca de um projeto
industrial), a partir da perspectiva do próprio campo. Poucas vezes discutiu-se a

140
Cf: O mercado internacional para o cinema brasileiro. In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô, julho
200, pág. 32-33.
141
Tais como o Festival de Cinema Brasileiro de Miami.
142
Cf: GUERINI, Elaine. Biografias dão novo fôlego ao cinema nacional. In: SP Variedades, Jornal da
Tarde. São Paulo, 25/7/1999.
143
In: GOMES, Renato Cordeiro e MARGATO, Izabel (org). Literatura, Política, Cultura. Belo
Horizonte, Ed. UFMG, 2005, pág. 253-267.

72
inserção dos mesmos em gêneros já consagrados perante o público, mesmo que muitos
filmes citados transitem pela comédia, farsa, tragédia, suspense e romance histórico
(isso se deve, dentre outros, ao paradigma do “autor”, prática discursiva presente nas
análises fílmicas e a política empreendida ao longo da realização e dos debates sobre os
filmes, nos quais a inserção em um gênero é muitas vezes evitada)144 . Todavia, nessa
discussão sobre gêneros, o documentário vem acumulando uma notoriedade dentro do
campo cinematográfico atual, seja pelo aumento do número de produções 145 e do
público pagante em cinemas (ou mesmo no número de exibições televisivas), seja pelo
crescimento no número de festivais, de prêmios e de editais de concursos públicos que
visam atender ao gênero e na quantidade de pesquisas efetuadas no meio acadêmico
sobre o mesmo.
A política neoliberal de patrocínios também confirmou sua preferência por
autores com status já consolidados dentro do campo e os que se adaptaram mais
facilmente aos esquemas de patrocínio (mesmo reconhecendo os dados de que houve
mais de 100 diretores estreantes desde 1990, é preciso contrapor a esse fato a trajetória
de boa parte deles, que se afirmaram no campo da publicidade ou da televisão para
depois transitarem pelo cinema, tais como: Carla Camurati; Beto Brant; Fernando
Meirelles; Mara Mourão; Kátia Lund; Mauro Lima; Tata Amaral etc).
A progressiva tentativa de regionalização da produção cinematográfica (com a
entrada dos estados e dos municípios na atividade cultural através das leis de incentivo e
da formulação de políticas públicas, houve esforços no sentido de desconcentrar a
atividade do eixo Rio-São Paulo) 146 , também teve seu impacto na cadeia produtiva - a
partir de experiências como a Casa de Cinema de Porto Alegre 147 e o Pólo de Cinema
do Ceará - e na abordagem teórica sobre o cinema nacional. No caso do Rio Grande do

144
Há exceções, como a apontada por Fábio Fujita em O thriller noir no cinema brasileiro, em que
discute a inserção comercial de Bellini e a Esfinge, de Roberto Santucci.
145
A ponto de se tentar criar subgêneros como documentário musical brasileiro, como Samba, Riachão,
de Jorge Alfredo e Viva São João!, de Andrucha Waddington. Cf: FUJITA, Fábio. O documentário
musical brasileiro. In: Revista de Cinema n o. 25.
146
Cf: MATTOS, Carlos Alberto. Fundação sustenta nova retomada gaúcha. In: Caderno 2, O Estado de
São Paulo. São Paulo, 23/12/1999.
147
Isabella Goulart, aluna de uma das disciplinas ministradas por mim na graduação da UFF, empreendeu
uma pesquisa intitulada “O imaginário gaúcho tem casa!”: a Casa de Cinema de Porto Alegre. Nela, a
autora defende que o projeto da Casa era prioritariamente de produção para o mercado cinematográfico (a
ponto de diretores descontentes com a proposta inicial terem-na abandonado para abrir produtoras de
publicidade), para tanto conciliando diversidade temática e unidade política.

73
Sul, existe a atuação também da FUNDACINE, cujos prêmios de produção almejam a
viabilizar a formação de um mercado regional148 .
Outro movimento regional que alcançou repercussão nacional e passou a
integrar o campo do cinema brasileiro contemporâneo é o mangue beat (ou beach ou
bit). Oriundo de Pernambuco e tendo no “árido movie” sua atuação cinematográfica, a
polêmica com o então secretário de cultura Ariano Suassuna - por conta de sua visão
“nacionalista” que via com bastante desagrado as apropriações do grupo mangue beat -
noticiada em jornais de grande circulação não somente foi incorporada a filmes 149 como
ajudou a projetar nacionalmente o movimento. Alguns longas como Baile Perfumado,
Amarelo Manga, Cinema, Aspirinas e Urubus e Árido Movie e curtas como Maracatu
Maracatus, That’s a Lero Lero, que obtiveram premiações em diversos festivais
nacionais e internacionais 150 , trouxeram para o campo uma tensão entre representações
regionais e nacionais, re- visitando paisagens já consagradas na cinematografia brasileira
(notadamente o sertão) e inserindo nelas a modernidade.
Essas iniciativas trouxeram ao circuito exibidor filmes de diretores como Jorge
Furtado, Werner Schünemann, Rosemberg Cariri, Paulo Caldas, Carlos Gerbase, Lírio
Ferreira, Cláudio Assis etc, além de estimular diretores e produtores do eixo Rio-São
Paulo a realizarem seus filmes em outras regiões (custo de produção mais barato), além
de dialogarem com representações veiculadas por outros filmes realizados no âmbito do
eixo Rio-São Paulo 151 e inserir vários estados no circuito dos festivais de cinema criados
na década de 90.
Na reportagem O Cinema fora do eixo152 , a jornalista e pesquisadora Maria do
Rosário Caetano faz um mapeamento da produção cinematográfica empreendida fora do
eixo Rio-São Paulo. Cobrindo desde estados com produção constante até os com pouca

148
Na reportagem de Carlos Alberto Mattos, há a referência a um prêmio de R$ 1,1 milhão recebido por
Tolerância, de Carlos Gerbase (que chegou ao circuito nacional, sendo exibido inclusive na televisão
aberta – no programa Festival Nacional da Rede Globo) e à filmagem de O Homem que copiava, de Jorge
Furtado (que, posteriormente fez mais de 300 mil espectadores no primeiro mês de exibição nacional,
segundo o site da Casa de Porto Alegre. Fonte: http://www.casacinepoa.com.br/port/noticias/03-07-
11.htm - consultado no dia 2/2/2007 às 19:48).
149
O curta Resgate cultural, o filme, da produtora Telephone Colorido, que ironizava o próprio Ariano
Suassuna e seu ideal de cultura nordestina, circulou por vários festivais brasileiros.
150
Cf: ORICCHIO, Luiz Zanin. Pernambucanos inventam o ‘árido movie’. In: Caderno 2, O Estado de
São Paulo. São Paulo, 1/4/1997, pág. D12.
151
Recordemos que Eliane Caffé atribui a seus filmes um “espírito expedicionário”, no sentido de
“descobrir” (ou encontrar, para utilizar uma palavra menos etnocêntrica) regiões pouco retratadas, tais
como o Vale do Jequitinhonha de Kenoma ou o interior da Bahia de Narradores de Javé; ainda há filmes
como Abril Despedaçado (Walter Salles), Eu, tu, eles, Casa de Areia (Andrucha Waddington), O
Quatrilho (Fábio Barreto); For All (Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz).
152
Cf: Revista de Cinema n o. 21. São Paulo, Krahô, janeiro 2002, pág. 30-35.

74
tradição no campo (Mato Grosso, Piauí e Pará, e.g.), a autora aponta para as
possibilidades surgidas com as novas leis de incentivo estaduais e municipais e para a
“diversidade” temática e estética dos filmes. Devemos fazer uma rápida reflexão de que
essa “diversidade”, na verdade, se deu partindo da apropriação de temas regionais e de
estéticas como as da televisão, do vídeo-clipe, da publicidade, do super 8 etc; no
entanto, a tensão entre regional e nacional não deixa de se fazer presente nesses filmes,
reiterando o campo do cinema brasileiro contemporâneo enquanto lugar de articulação
de diversas narrativas que, de alguma forma, colocam em evidência representações de
Brasil.
Entretanto, uma iniciativa empreend ida local e somente no Rio de Janeiro, a
criação da Riofilme em 1993 - empresa pública distribuidora de filmes nacionais – deve
ser considerada dentro desse panorama, uma vez que a mesma é percebida pelo próprio
campo como uma das principais articuladoras do mercado exibidor de filmes brasileiros
(inclusive das produções levadas no âmbito de outras regiões). Para tanto, a empresa
atende prioritariamente os mercados do Rio e de São Paulo 153 , dada as limitações
orçamentárias de uma empresa pública municipal.
Já que mencionamos a RioFilme, é interessante notar que o habitus constituído
no campo remete-se constantemente a problemas enfrentados em dois pontos da cadeia
cinematográfica: distribuição e exibição. No caso da empresa carioca, esta auxiliou na
recuperação de um segmento do mercado de arte para o cinema brasileiro 154 , formado
pela atividade cineclubista durante as décadas de 70 e 80 e presente nas áreas nobres do
Rio e de São Paulo, fazendo parte de um panorama no qual se inclui, dentre outros, o
crescimento do Grupo Estação (iniciativa de Adhemar Oliveira em 1985), a reativação
dos cineclubes e a criação de diversos festivais regionais e temáticos no Brasil durante a
década de 90 (aliás, notemos que a maioria dos festivais existentes hoje têm um
surgimento recente, visto que muitos se pautaram como uma “alternativa” ao mercado
exibidor concentrado 155 ).

153
As tentativas de se criar uma empresa distribuidora de filmes em São Paulo malograram e, até hoje, o
município não a possui.
154
Cf: VERÍSSIMO, Fernando. Cinema de Arte. In: Filme B – Edição especial Festival do Rio. Rio de
Janeiro, setembro 2006, pág. 10-13. Nesta, há o número de salas consideradas “de arte”, sendo 143 ao
todo no Brasil (7% do mercado exibidor nacional), a maioria nas cidades de São Paulo (32), Rio de
Janeiro (29) e Brasília (23).
155
Algumas alternativas ao mercado exibidor tradicional foram experimentadas ao longo da década e
configuradoras do campo: o projeto Cinema BR em movimento (que visa o público universitário e de
comunidades carentes); Festivais como Tiradentes, Varginha, Vitória, o Festival do Rio (junção de dois
festivais mais antigos), Paraty, Búzios, Rio das Ostras, Cuiabá, Catarina Festival de Documentário,
FEMINA, FICA (Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental – Goiânia), Florianópolis

75
Sobre a exibição dos filmes brasileiros, devemos ressaltar que o fator mais
debatido e percebido pelos agentes do campo cinematográfico como crucial à
sobrevivência deste foi a possível ligação com a televisão, visto como primordial para
atingir o “grande público” e assegurar sua existência econômica. A partir da constatação
de que o mercado exibidor alterou-se e está tal forma concentrada, principalmente com
a falência dos cinemas “de rua” das grandes cidades (sobretudo nos subúrbios) e das
cidades de interior economicamente representativas e com a posterior entrada, em 1997,
dos cinemas multiplex neste mercado, o campo cinematográfico se deparou com um
dilema: como alavancar uma indústria de cinema no Brasil se não conseguimos mais do
que 10% do público no nosso próprio mercado? Além disso, a partir dos altos preços
praticados nas novas formas de exibição 156 , o público freqüentador de cinemas passou a
ser prioritariamente as classes média e alta 157 , já que as salas localizadas em áreas
‘populares’ se transformaram em templos religiosos ou simplesmente acabaram. Para
atingir esse público popular alijado dos cinemas, o campo teve de iniciar um diálogo
com a televisão e se perceber enquanto parte de um campo maior: o audiovisual.
No intuito de melhor compreender a disputa que se deu em relação à televisão,
precisamos analisar a presença do campo político no cinema e as negociações entre eles.
Em 2001, a ANCINE (Agência Nacional do Cinema) foi implementada através da
Medida Provisória 2228. Devemos relatar o processo pelo qual a mesma foi gerada. Em
2000, o GEDIC (Grupo Executivo para o Desenvolvimento da Indústria
Cinematográfica), chefiado por Gustavo Dahl, circulou por vários festivais e congressos
discutindo os marcos regulatórios estatais para o campo. Dentre os diversos encontros, o
que ocorreu no III CBC (Congresso Brasileiro de Cinema) é-nos muito relevante, na
medida em que expõe a tentativa de formulação do consenso dentro do campo e a
disputa deste para com outros 158 .
A narrativa em torno da vulnerabilidade do campo é mais uma vez sublinhada:
“a comunidade cinematográfica brasileira, reunida no III Congresso Brasileiro de
Cinema, numa posição de unidade nacional, manifesta sua preocupação com a grave
situação da atividade cinematográfica, que afeta todos os setores e que ameaça mais

Audiovisual Mercosul, É Tudo Verdade, Cine Ceará etc, ao lado dos tradicionais Festivais de Gramado e
Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
156
O preço do ingresso de cinema triplicou nos últimos dez anos, no Brasil.
157
Que podem arcar com o ingresso caro e com os custos conexos: estacionamentos, lanches etc.
158
Como fonte, utilizaremos o relatório final do congresso, disponível em
http://www.cinemabrasil.org.br/congresso/ (consultado em 30/04/2006 às 3:43)

76
uma vez a continuidade e a existência de nosso cinema”159 [grifo nosso]. A “identidade
nacional” também se faz aqui presente, sendo possível inferir que, tanto nos filmes
como no discurso crítico sobre o cinema realizado no Brasil, a nação é uma prática
discursiva percebida como uma aliada à sobrevivência do campo 160 e não somente como
um conjunto de imagens pertencentes a sua memória. Partindo disso, poderíamos, ainda,
referir-nos a essa prática discursiva enquanto uma forma de controle na hierarquia
estabelecida dentro do próprio campo e um capital lançado por este no embate com
outros campos (sobretudo o político e a televisão) e em sua projeção internacional.
Ademais, as contestações à economia neoliberal feitas dentro do próprio campo
são substituídas pelo consenso expresso no documento:

“O Cinema Brasileiro existe, está implantado em sua forma industrial


e já demonstrou sua capacidade de produção e criatividade, como uma
forma indispensável de expressão nacional. Por outro lado, medidas
como a Lei do Audiovisual, antiga reivindicação da classe, mostram
como a ação governamental justa, feita em consonância com a
opinião do setor, gera resultados extremamente positivos como foi o
chamado renascimento do cinema brasileiro, saudado em todo o
mundo”161 [grifo nosso].

Ao contrário das partes grifadas, os mecanismos legais de incentivo não são


consenso dentro do campo, sendo alvo de críticas de vários agentes atuantes nele 162 e
muitas vezes contestados publicamente, através das polêmicas travadas em editoriais e
reportagens de jornais de grande circulação. A própria acepção de “renascimento do
cinema brasileiro” também transita entre o reconhecimento da ameaça que
constantemente paira sobre o campo e o louvor aos mecanismos legais que confluíram
para a ‘retomada’.

159
Op. cit.
160
Um trabalho que se propõe a fazer uma análise de filmes a partir das representações de Brasil não pode
ignorar a disputa que se dá em torno delas dentro do campo, seja pela estética presente nos filmes, seja
pela retórica política que define “nação” em relação a outros termos como “popular” e “identidade
nacional”, sendo que ambas operam por me io da patrimonialização de novas imagens às representações
de Brasil ou por meio da monumentalização da nação brasileira (ou de elementos relacionados a ela) -
161
Op. cit.
162
No ensaio 1995-2005: Histórico de uma década, Daniel Caetano, Eduardo Valente, Luiz Alberto
Rocha Mello e Luiz Carlos Oliveira Jr. fazem uma crítica contundente ao “princípio do incentivo”,
revelando fenômenos adversos ocorridos a partir dele: a) o teto dos orçamentos de produção levou a
filmes dispendiosos e a custos de produção inflacionados; b) a ênfase na produção em detrimento da
difusão; c) o princípio da “auto-sustentabilidade” presente na formulação das leis de incentivo que, na
prática, seria dificilmente concretizado, uma vez que 90% do mercado exibidor é dominado pelo filme
estrangeiro, não havendo, portanto, garantia na continuidade da produção; d) a adequação entre os filmes
e as políticas de marketing empreendidas pelas empresas constituiria uma “privatização” da elaboração
das políticas públicas para o campo do audiovisual. Cf: CAETANO, Daniel (org.). Cinema Brasileiro
1995-2005: ensaios sobre uma década. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2005, pág. 11-47.

77
Retornando à televisão, eis como o relatório do CBC se manifesta em relação a
ela:

“Mais do que uma reivindicação do setor, a participação da televisão


no processo de consolidar a indústria audiovisual brasileira é uma
questão de equilíbrio para a economia do país. O modelo histórico da
televisão brasileira concentra num único agente a produção e a
difusão dos programas. (...) As redes importam do exterior ou
produzem elas próprias os produtos audiovisuais que veiculam. Dessa
forma, mantêm cativo o mercado consumidor, sem abertura para
realizações independentes. (...) As novas tecnologias podem
constituir-se em excelente oportunidade de novos negócios, dando
escoamento à produção brasileira já existente e abrindo espaço para
novos produtos. No entanto, a velocidade de transformação das
tecnologias contemporâneas exige extremo cuidado e atenção
constante, para que estas não se tornem novas ameaças de ocupação
do mercado nacional por empresas e produtos estrangeiros”.

Entre a concentração do mercado exibidor tanto no campo cinematográfico


quanto no televisivo e a velocidade com que produtos audiovisuais estrangeiros chegam
ao nosso mercado via televisão, relembra-se a narrativa da ‘ameaça’, além de conter
uma crítica velada à presença monopolista da Rede Globo.
Algumas das reivindicações feitas durante o congresso foram implementadas
pela criação da ANCINE, órgão responsável pela regulação da atividade
cinematográfica no Brasil em seus âmbitos financeiro, formulador de políticas públicas
e fiscalizador. No entanto, a possibilidade de se regular o mercado audiovisual para se
obter um equilíbrio na oferta e na demanda dos produtos do campo cinematográfico163 ,
vontade expressa do documento do CBC, não obteve vitória no campo político (o texto
original de criação da ANCINE reservava um capítulo somente para a televisão, sendo o
mesmo retirado do projeto final, em virtude de pressões efetuadas pelo campo televisivo
perante o político). Arnaldo Carrilho, ex-presidente da Riofilme, assim se manifesta
sobre o episódio: “submetidos ao chefe do governo o relatório final e o projeto da nova
legislação [que criava a ANCINE], a televisão foi num fim de semana retirada do texto.
Nessas condições, perdemos uma grande oportunidade de regulamentar a entrada de
nossos filmes na programação das TVs abertas, insuperável fonte de rendimentos e
propaganda nos EUA”. 164 .

163
Sendo os filmes tidos como “produtos independentes”, nomenclatura utilizada pelo documento do
CBC.
164
CARRILHO, Arnaldo. Ambigüidade, terra queimada e tiro no pé. In: Revista de cinema n o. 35. São
Paulo, Krahô, abril 2003, pág. 36.

78
Devemos sublinhar algumas especificidades do projeto da ANCINE, em virtude
dos ganhos políticos do campo. Ao contrário do modelo de agências reguladoras,
implementado dentro da concepção de Estado neoliberal que restringe a atuação desses
órgãos a um papel meramente fiscalizador, a ANCINE, recuperando parte do habitus
relacionado à antiga EMBRAFILME, também possui um aspecto de fomento da
atividade cinematográfica (por meio de editais para curta e longa metragem; editais de
co-produção com outros países e de distribuição de filmes nacionais e estrangeiros no
Brasil; fortalecimento de acordos internacionais e de instituições multilaterais que
atuam no mercado audiovisual, como a RECAM – Reunión Especializada de
Autoridades Cinematográficas y Audiovisuales del Mercosur y Estados Asociados),
inclusive recuperando algumas medidas da antiga empresa e reivindicadas dentro do
campo, tais como o prêmio adicional de bilheteria e o retorno ao cumprimento da lei do
curta 165 .
Todavia, o reconhecimento da necessidade de parceria com a televisão para a
exibição dos filmes se conjuga com um habitus de resistência cultural à televisão e à
cultura de massa de um modo geral (e muitas vezes não percebendo o cinema como
parte dessa cultura) 166 , construído historicamente no campo, dois tipos de relação com
esta dominaram os debates: negociação versus conflito. Em vários episódios, a tensão
entre cinema e televisão foi transposta para o campo político, sendo o momento mais
evidente desta a famosa “batalha da ANCINAV” (outro momento, a entrada tardia da
televisão no mercado de distribuição cinematográfica, com a Globo Filmes, também foi
alvo de apreensões sobre o impacto desta no mercado para o filme brasileiro). No
filme/documentário realizado por Noilton Nunes a partir da possibilidade de se criar
uma agência reguladora englobando todo campo do audiovisual, diversos agentes do
campo cinematográfico manifestam sua postura política de embate ou conciliação com a
televisão. Dentro da última postura, alinham-se diretores como Carlos Diegues (que, na
época da divulgação do projeto da ANCINAV, condenou o mesmo em jornais de

165
A primeira medida, expressa no relatório final do III CBC, está hoje regulamentada pela própria
ANCINE, quanto à segunda, travou-se uma batalha pública para sua volta, uma vez que entidades como
ABD, cineclubes e movimentos sociais defendem o seu retorno, ao passo que exibidores e a própria
ANCINE resistem em aplicar e fiscalizar o cumprimento dessa legislação.
166
Lúcia Murat, em entrevista concedida para esta pesquisa, sublinha a impossibilidade de uma realização
“autoral” na televisão, apontando que, na indústria, tanto faz se o realizador é membro de alguma minoria
ou intelectual, o que importa é o produto. Podemos nos referir, ainda, às polê micas intervenções do
diretor Noilton Nunes em debates em universidades e congressos de cinema contra o conteúdo veiculado
pelas tevês abertas. Finalmente, não esquecemos as blagues que circulam pelo meio acadêmico de que
“pessoas de cinema” não assistem tevê.

79
grande circulação), Zelito Viana e Roberto Farias (ex-diretor da EMBRAFILME e
funcionário da Rede Globo), contrariando as diretrizes do CBC.
A divisão interna do campo cinematográfico aliada à campanha de detração do
projeto da ANCINAV, tachado como ‘stalinista’, ‘autoritária’, ‘retorno da censura’,
‘dirigismo estatal’ em publicações de circulação nacional como Veja, Isto é e Folha de
São Paulo, além da pressão exercida pelos campos jornalístico e televisivo perante o
campo político ocasionaram o arquivamento do projeto (que, no entanto, pode ser
reativado). Em outras situações de embate com o campo televisivo, o campo
cinematográfico também tem sido derrotado (vide a questão da tevê digital ao longo de
2006, cujo padrão japonês – defendido pelas tevês abertas – foi aprovado, em
detrimento do padrão europeu ou mesmo brasileiro – uma vez que houve pesquisas em
universidades públicas financiadas com verbas do CNPq para a implantação de um
padrão brasileiro de tevê digital, deslocando desse modo, a discussão sobre transmissão
de conteúdo para questões meramente técnicas; a gestão de Hélio Costa, ex- funcionário
da Rede Globo, tem sido alvo de descontentamento por parte de muitos agentes do
campo).
No entanto, existem alguns pontos em que estes campos confluem. Um deles é a
legitimação cultural de atores que transitam entre os dois campos (como exemplo,
poderíamos citar Rodrigo Santoro em Bicho de Sete Cabeças; Simone Spoladore em
Lavoura Arcaica e Desmundo; Lázaro Ramos em Madame Satã e O Homem que
Copiava; Hermila Guedes em O Céu de Suely; Matheus Nachtergaele em O Auto da
Compadecida e Cidade de Deus). Outro é a presença do Rio de Janeiro como paradigma
do mercado audiovisual nacional (o local de sede das Organizações Globo e da
Riofilme, a principal rede de televisão e a distribuidora de filmes nacionais,
respectivamente; o escritório central da ANCINE, todos se encontram na cidade).
Para encerrarmos provisoriamente essa descrição do campo cinematográfico, é
preciso mencio nar as instâncias em que a discussão estética sobre cinema brasileiro vem
ocorrendo. Reconhecemos a institucionalização acadêmica do campo, uma vez que,
para a afirmação da legitimidade do mesmo, seja pelo debate acadêmico, seja pela
formação de novos profissionais, é fundamental a presença de colaboradores brasileiros
e estrangeiros em atividade.
Dentre as diversas iniciativas do meio acadêmico, podemos citar: a realização do
encontro anual da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e do
Audiovisual desde 1996, com a participação de vários pesquisadores do campo, além do

80
aumento do número de cursos de graduação ou técnicos em cinema e audiovisual no
Brasil a partir de meados da década de 90 167 , do número de publicações da área
cinematográfica presentes no mercado editorial nacional e da pesquisa efetuada em
programas de pós-graduação (sobretudo na área de Comunicação); o aumento no
número de palestras oferecidas ao público freqüentador de centros culturais por ocasião
de festivais e mostras. Do crescimento do intercâmbio internacional, podem ser
destacados: a realização de um curso de cinematografia brasileira em 2000 na
Universidade de Oxford (Inglaterra), com a presença de vários pesquisadores brasileiros
e estrangeiros; a participação de pesquisadores brasileiros em congressos internacionais
como Visible Evidence (sobre documentário); a presença dos brasilianistas e
pesquisadores de cinema Randal Johnson e Robert Stam no meio acadêmico norte-
americano, sendo importante citar que ambos atuam na divulgação do cinema brasileiro
no exterior (tais como a realização, no Museu de Arte de Nova York, da mostra Cinema
Novo and Beyond, cuja curadoria ficou a cargo de Jytte Jensen, José Carlos Avellar e
Ismail Xavier, sendo que o livro-catálogo foi produzido sob a responsabilidade editorial
de João Luiz Vieira) e na formação da intelectualidade brasileira do campo
cinematográfico.
Além do meio acadêmico, podemos reconhecer a atuação de uma crítica
especializada, de modo difuso nos cadernos de cultura de jorna is e revistas e em sites na
internet168 (que serviu enquanto fontes para a realização da pesquisa apresentada), na
cobertura de festivais, do circuito de filmes e de polêmicas do campo 169 e a presença de
entidades como a ABD, a CUFA, ONGs como “Nós do morro” etc, cujas abrangências
não podem, infelizmente, ser alvo de uma análise mais detida.
Finalmente, a inserção acadêmica no campo nos remete a outra questão: a
preservação dos filmes, a necessidade de se guardar acervos para pesquisas atuais e
futuras, além da óbvia possibilidade de os mesmos circularem em mostras, festivais ou
exibições especiais. A grave crise que se instaurou no setor, a partir da gestão
2000/2001 do Museu de Arte Moderna e do progressivo desmantelamento do acervo de
matrizes da Cinemateca do MAM, alvo de protestos dentro do campo e noticiados na
imprensa carioca, inaugurou uma nova disputa entre os campos cinematográfico e

167
Em universidades públicas (UFSC, Ufscar etc) e privadas (Estácio, Anhembi-Morumbi etc); Escola
Darcy Ribeiro e FAETEC (ensino técnico, ambas no Rio de Janeiro).
168
Cf: Revista Contracampo (www.contracampo.com.br) e Revista Cinética
(www.revistacinetica.com.br).
169
Além do surgimento de publicações especializadas como Revista de Cinema e Paisà.

81
político para que se obtivessem recursos na guarda dos acervos audiovisuais e a
preservação da memória da ‘cultura nacional’. Dentre as diversas medidas, é possível
destacar a realização de um censo cinematográfico 170 e as reformas da Cinema
Brasileira, em São Paulo (patrocinada pelo banco HSBC) e da Cinemateca do MAM
(financiada pelo BNDES).

III ELIANE CAFFÉ, LÚCIA MURAT, SÉRGIO BIANCHI: STATUS E


CAPITAL NO CAMPO CINEMATOGRÁFICO.

Aos diretores dos filmes - que normalmente são colocados nos créditos a partir
das referências “um filme de” ou “dirigido por” - é ligada a noção de “autoria” que,
além de mobilizar o debate crítico, transformou-se em conceito teórico para avaliar as
representações veiculadas audiovisualmente. Sobre este processo, Jean-Claude
Bernardet em O autor no cinema: a política dos autores: França, Brasil, anos 50 e 60,
observando que esta noção migra para a crítica cinematográfica a partir da literatura,
relata que o mesmo ocorre na França dos anos 50, em paralelo com a legitimação do
cinema enquanto arte (e, poderíamos aqui acrescentar, enquanto campo dotado de uma
relativa autonomia e constituído através de algumas questões – notadamente estéticas).
Para este trabalho, perceberemos os diretores enquanto um grupo de status
atuante no campo cinematográfico e em relação a outros grupos (produtores, técnicos e
burocratas), não sem antes dissociá- los de funções. Compreendemos “função”, aqui,
como uma atribuição dentro da cadeia produtiva cinematográfica (diretor de fotografia,
continuísta, produtor executivo, e.g.), ao passo que grupos de status

“constituem unidades nominais que podem restituir a realidade, de


modo mais ou menos completo segundo o tipo de sociedade, mas que
são sempre o resultado da opção de acentuar o aspecto econômico ou
o aspecto simbólico, aspectos que sempre coexistem na realidade (em
proporções diferentes conforme as sociedades e as classes sociais de
uma mesma sociedade), uma vez que as distinções simbólicas são
sempre secundárias em relação às diferenças econômicas que as
primeiras exprimem, transfigurando-as”171 .

170
Cf: PINTO, Fabrício. Brasil pode ter mais filmes restaurados a partir do Censo Cinematográfico. In:
Revista de Cinema no. 23. São Paulo, Krahô, março 2002, pág. 50-51.
171
BOURDIEU, Pierre. Condição de classe e posição de classe. In: A Economia das trocas simbólicas.
São paulo, Perspectiva, 2005, pág. 15.

82
Reinterpretando Weber, Bourdieu se apropria desta noção para compreender
como a ordem simbólica se afirma e se transforma por meio das marcas de distinção
proferidas por seus diversos agentes situados em diferentes classes e grupos.
Mesmo com o intuito de desautorizar a “autoria” como categoria analítica dos
filmes, não podemos deixar de reconhecer que a noção de “autor” configura um capital
simbólico acumulável dentro do campo cinematográfico e em relação aos campos
político e econômico (e, desse modo, enquanto produtora de marcas de distinção). Na
medida em que a crítica, o meio acadêmico, o público etc ‘constróem’ e ‘reconhecem’
um “autor”, o capital simbólico acumulado por este é potencializado em termos de
intervenção política (por exemplo, nos debates sobre o cinema brasileiro) e econômica
(a possibilidade de realizar futuros filmes).
Por outro lado, ao se deslocar a “autoria” da análise fílmica, retiramos dessa
última discussões indesejáveis como “originalidade”, “genialidade”, “traços biográficos
na obra” ou “sentido do texto”. Sendo assim, ao destacarmos as categorias analíticas já
levantadas no capítulo 1, enfatizaremos as práticas discursivas presentes e disputadas
nas representações fílmicas, sobretudo as representações de Brasil, objeto maior do
nosso estudo.
Entretanto, não podemos simplesmente nos abster de inserir esses diretores
dentro do campo, se quisermos compreender seus respectivos lugares de autoridade.
Afirmar que Caffé, Bianchi e Murat fazem parte de um mesmo grupo de status ou são
“autores” é reduzir ex nihilo a dimensão histórica deste processo. Precisamos, antes
disso, analisar como os diretores - enquanto grupo de status historicamente situado no
campo - disputam com outros grupos os capitais econômicos e simbólicos, além dos
processos em que esses diretores em questão acumularam seus próprios capitais
simbólicos (e em que instâncias a “genialidade”, “originalidade” etc, ao serem
reconhecidas, atuam nesse jogo).
Vejamos o caso de Sérgio Bianchi: estreou na produção de longas com Maldita
Coincidência, exibido comercialmente em 1981. Noticiado na imprensa três anos
antes 172 , o filme era ligado à inicial carreira do diretor, à decadência ressaltada no filme
e ao início da construção de uma imagem do diretor perante o campo:

172
Encontramos matérias veiculadas pela Folha de São Paulo e pela Última Hora, ambas de 1978
(2/5/1978 e 29/4/1978, respectivamente), cobrindo a produção do filme e seus problemas com a censura e
com a EMBRAFILME.

83
“Mas foi o aspecto de suntuosidade em decomposição que despertou o
interesse de Sérgio Bianchi para seu filme. Depois de dois curtas-
metragens: “Ônibus” e “A Segunda Besta” (exibido recentemente no
MASP), ele começou a filmar “Casa de Deus” [que posteriormente
seria intitulado Maldita Coincidência – observação nossa], em
outubro, com um roteiro seu. No final de novembro, com mais da
metade pronta, foi obrigado a parar por falta de recursos. Depois de
quase um mês de viagens constantes ao Rio, conseguiu com a
Embrafilme parte do capital necessário para continuar o projeto. “Foi
uma longa romaria de entregar requerimento, receber protocolo,
negativas, esperas, novas promessas. Eu acredito que São Paulo tem
condições, tanto humanas quanto técnicas, de fazer um cinema
realmente expressivo. É necessário somente que a Embrafilmes
(principalmente o escritório paulista) dê um pouco de mais agilidade
às suas engrenagens”173 .

Começam a transparecer as críticas à burocracia estatal174 , vista como inoperante


e cruel e as condições precárias de produção enfrentadas pelo cinema brasileiro (e sendo
localizada na trajetória do diretor). É interessante notar que, nas reportagens, as
referências ao filme giram em torno do diretor (e a ênfase na ligação entre roteiro e
direção). Há aparições ocasionais ao nome dos atores e às condições de produção do
filme (sem menção a nome de nenhum técnico ou produtor), porém a partir do ponto de
vista do discurso do diretor. Desse modo, podemos inferir que o diretor se encontra em
posição privilegiada de iniciar sua trajetória de acúmulo de capital simbólico, em um
campo no qual se atribuía ao grupo de status dos diretores a responsabilidade pelo
sucesso/fracasso do fazer cinematográfico.
A polêmica censura ao filme, que impôs corte de 8 minutos, foi interpretada
dentro do campo como uma ameaça ao cinema brasileiro, sendo que a APACI
(Associação Paulista de Cineastas) manifestou-se publicamente por meio de notas,
reproduzidas na íntegra ou em reportagens sobre o corte imposto ao filme e contribuiu
para a imagem de Bianchi como cineasta censurado, perseguido (seja pelo Estado, seja
pela crítica) 175 , sendo a mesma reiterada ao longo de sua carreira.
A reportagem e a crítica feitas por Miguel Pereira, por ocasião do lançamento do
filme 176 , fazem menção à palavra “autor”: “parte desse atraso [do lançamento do filme]

173
Cf: A “Casa de Deus” em SP. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 2/5/1978 (referência à
autoria: sigla C.M.).
174
Em outra reportagem, Bianchi afirma que os “cineastas -burocratas” são o grande empecilho ao
desenvolvimento do campo. Cf: Agora, um longa-metragem marginal. In: Última Hora, 29/4/1978 (sem
referência à autoria).
175
Cf: O protesto dos cineastas. In: Jornal da Tarde. São Paulo, 18/12/1980 (sem referência a autoria);
Censura volta a cortar filme. 16/12/1980 (pasta 1980-7/747 da Cinemateca Brasileira); Cineasta reclama
de corte. 12/12/1980 (pasta 1980-7/746 da Cinemateca Brasileira).
176
PEREIRA, Miguel. ‘Maldita coincidência’, os anos 70 do novo cinema paulista. In: Jornal da Tarde,
Rio de Janeiro, 16/6/1981.

84
deve-se à Censura que inicialmente criou problemas com uma cena em que um
personagem ensina e mostra como se faz um coquetel molotov. Porém, no filme isso
não tem nada de político ou mesmo de incitamento. Ao contrário, essa cena é feita com
ironia, segundo a intenção declarada de seu autor”177 [grifo nosso]. Impõe-se o autor
como instância interpretativa do filme (“intenção”) e como responsável pelas
características do mesmo (“feita com ironia”), sublinhando, inclusive, a que tipo de
público esse filme deveria atingir: “esse sentimento de liberdade criativa que o filme
parece buscar é um forte apelo para o público universitário”178 e, na crítica, “não é, pois,
um filme que o grande público gosta de ver”179 (revelando a crítica enquanto estrutura
estruturante, ou seja, capaz de fo rmular uma produção de sentido para os filmes, e
estrutura estruturada, na medida em que esta seria pautada pelo diálogo com o público,
deduzindo - mesmo que com limites - seus gostos).
Em outra crítica, fica evidente o processo em que se dá a construção de um
autor: “tendo demorado tanto para ser exibido, Maldita Coincidência, com todos os
seus maneirismos datados, soa bem ultrapassado. No entanto, mesmo sem ter nada de
estritamente original em seu pensamento ou em sua forma de estruturar o filme, Sérgio
Bianchi dá mostras de sua disposição em fazer um cinema sério e não convencional”180
[grifo nosso]. Além da busca por “traços” ou “características”, há uma predisposição em
relacionar o diretor a um cinema “experimental” e culturalmente legítimo, o que
aumentaria seu capital simbólico dentro do campo.
O filme seguinte do diretor - Mato eles? - teve uma trajetória bastante parecida
com o do anterior. Além das dificuldades de produção (devido à demora no repasse de
verbas do governo do Paraná, financiador do filme), o filme foi censurado às vésperas
de sua exibição pública, sendo esta censura acompanhada pelos jornais de grande
circulação 181 . Retratando as dificuldades (e o genocídio) dos índios dentro de uma
reserva indígena da FUNAI mediante uma linguagem documental paródica (isto é, que

177
Op. cit.
178
Op. cit.
179
PEREIRA, Miguel. Maldita Coincidência. Jornal da Tarde, 16/6/1981.
180
COELHO, Lauro Machado. Uma colcha de maneirismos datados. In: Jornal da Tarde, 4/11/1981.
181
Foram encontradas 9 reportagens em jornais sobre a censura ao filme. Cf: PEREIRA, Edmar. O
documentário sobre os índios, interditado pela censura. In: Jornal da Tarde, 20/4/1983; Outra Proibição.
In: Painel da Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 20/4/1983; Censura Federal proíbe o filme “Mato
Eles?” In: O Estado de São Paulo. 21/4/1983; Censura aumenta arrocho e proíbe “Mato eles” In: O Dia.
Rio de Janeiro, 21/4/1983; Diretora da Censura proíbe “Mato Eles” In: Correio do Povo. Porto Alegre,
21/4/1983; Censura proíbe filme Mato Eles. In: Última Hora, Rio de Janeiro, 21/4/1983; “Mato Eles?”
proibido, surpresa para Bianchi. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 22/4/1983; Anacronismo. In: Painel
da Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 26/4/1983; A subversão indígena. In: Isto é, 27/4/1983.

85
questiona os próprios procedimentos do gênero documentário) e uma ironia para com o
discurso oficial182 , Mato eles? foi proibido um dia antes da comemoração oficial do dia
do índio, pois poderia “provocar incitamento contra o regime vigente, à ordem pública,
às autoridades constituídas ou aos seus agentes ou ferir por qualquer forma a dignidade
ou o interesse nacional” 183 , lembrando que o filme ficou proibido por cerca de vinte
dias 184 .
A disputa em torno do filme se acirrou e, dentre as conseqüências, poderíamos
inferir a maior projeção dele e de seu diretor (o que configura um aumento no seu
capital simbólico), sendo que o diretor já havia sido premiado como melhor diretor de
curta- metragem no Festival de Gramado do ano anterior 185 e que o filme foi
paulatinamente legitimado cultural e academicamente (haja em vista a participação em
um debate, promovido pela Folha de São Paulo, de acadêmicos e de representantes de
instituições culturais como Manuela Carneiro da Cunha, Jacó Picoli etc 186 , além das
exibições do filme até hoje promovidas por universidades, cineclubes e instituições de
pesquisa).
Além disso, o filme foi lançado em uma época em que o “problema dos
indígenas” estava muito em evidência, com as constantes crises da FUNAI (e a
revelação de uma série de irregularidades em torno dela) e a presença do deputado
Mário Juruna, primeiro representante indígena no Parlamento brasileiro. Inserindo-se
nessa esfera pública, Bianchi lançava, através dos jornais, inúmeras questões: “1) Quem
assina debaixo deste genocídio cultural; ele é justificado como extração de produtos; pra
onde vai o dinheiro arrecadado?; 2) O não-reconhecimento dos índios como uma cultura
diferenciada e com alguns elementos de profunda inteligência não supõe uma profunda
burrice de vossas senhorias?”187 , participando dessa construção de sua imagem como
agente contestador do status quo.
Em outros momentos, essa atuação será retomada, no sentido de intervenção
política dentro do campo e em relação a ele. Após a realização e exibição comercial do

182
Mais uma vez tenta-se procurar “marcas” do autor no filme: “Uma denúncia contundente, feita com
humor, criatividade, autocrítica e originalidade: essas qualidades garantiram ao média -metragem Mato
Eles?, de Sérgio Bianchi, o prêmio de melhor direção no último Festival de Gramado”. PEREIRA,
Edmar. O documentário sobre os índios, interditado pela censura. In: Jornal da Tarde, 20/4/1983.
183
Cf: Em defesa da moral. In: Jornal de Brasília. Brasília, 22/4/1983 (sem referência à autoria).
184
Em 13/5/1983, há notas que revelam a liberação do filme pela censura.
185
O prêmio mais importante até então do campo cinematográfico, que possibilitava o reconhecimento do
diretor e a abertura do mercado para o filme premiado.
186
Cf: Índios são tema de debate na “Folha”. In: Folha de São Paulo, 17/4/1983 e Dois filmes contra o
genocídio indígena. In: Folha de São Paulo, 19/4/1983.
187
Cf: PEREIRA, Ed mar. Op. cit.

86
filme Romance (em 1988), no qual o roteiro retrata as conseqüências do assassinato de
um intelectual de esquerda (intrigas políticas, investigações frustradas etc), ocorre o
fechamento da EMBRAFILME. Na crítica Sobre crise, cinema e algumas omissões188 ,
o diretor publica na Folha de São Paulo uma série de contestações à abordagem da crise
do cinema brasileiro, por parte da imprensa e do Estado 189 .

“A imprensa brasileira veiculou nos últimos tempos uma imagem de


que os cineastas brasileiros desvirtuaram verbas do Estado e fizeram
filmes que, por não terem qualidades, não alcançaram o público. (...).
Na área de produção, a imprensa se incomoda em saber o quanto tem
sido investido pela Secretaria do Estado de São Paulo para a produção
de longas e curtas metragens. Estes filmes ficaram prontos? Onde
estão? Quantos milhões de dólares existem hoje em razão do decreto
862, que taxa os lucros do cinema estrangeiro? (...) E o processo de
liquidação da EMBRAFILME como está?”190

Essa intervenção aliada à produção de A Causa Secreta, com problemas


semelhantes aos filmes anteriores do diretor, colaborou para o reconhecimento de
Bianchi como um “autor” ainda atuante no cinema nacional, sendo este fato ressaltado
em diversas reportagens 191 . Em 1993, há duas retrospectivas de sua obra, promovidas
pelo MASP e pelo Museu Lasar Segall, ambos em São Paulo e, no ano seguinte,
finalmente A Causa Secreta participa de festivais.
Qualificado nos jornais como “um dos mais raivosos e malditos diretores do
cinema brasileiro”192 (algo rejeitado pelo próprio diretor), outras polêmicas marcariam a
exibição no Festival de Gramado de 1994. Além da “polêmica do rato” (há uma cena
em que há a dissecação de um rato), a saída do cineasta italiano Michelangelo
Antonioni da sessão em que o filme era exibido foi algo bastante explorado pela
imprensa. Ressaltando as falhas técnicas do filme (planos mal iluminados, seqüências
mal filmadas), parte da crítica reconhece, todavia, que o filme “rompeu o bom- mocismo
reinante no evento”193 , “numa adaptação de rara modernidade”194 que, numa

188
Cf: Folha de São Paulo, 14/6/1991.
189
Além de uma resposta pública à reportagem veiculada pela Folha de São Paulo em 5/5/1991 (Cinema
brasileiro muda de emprego, já mencionada).
190
Op. cit.
191
Cf: PEREIRA, Edmar. Nasce um filme nacional, resis tindo à morte decretada. In: Artes e Espetáculos,
Jornal da Tarde, 2/4/1991; PEREIRA, Edmar. Cinema Brasileiro: agonia sem morte. In: Artes e
Espetáculos, Jornal da Tarde, 28/6/1991; SÁ, Nelson de. O cinema de 91 mostra um Brasil que não deu
certo e busca a saída. In: Ilustrada, Folha de São Paulo. São Paulo, 31/12/1991, pág. 1.
192
MERTEN, Luiz Carlos. O Brasil que os brasileiros se recusam a ver. In: Caderno 2, O Estado de São
Paulo. São Paulo, 28/9/1991.
193
LABAKI, Amir. Antonioni deixa sessão de “A Causa Secreta”. In: Folha de São Paulo. São Paulo,
12/8/1994.

87
combinação de “ira cívica e desconforto existencial, torna “A Causa Secreta” um filme
importante e de rara oportunidade, para além de suas evidentes imperfeições”195 .
É preciso notarmos que, além das controvérsias que possibilitam o diretor
acumular um capital simbólico ligado à contestação, as representações de Brasil
desempenham um papel importante nesse processo, uma vez que nas críticas sobre os
quatro filmes já apresentados são feitas diversas menções ao fato de os mesmos
contradizerem representações oficiais ou comumente veiculadas pelo próprio cinema ou
em outros meios. Reconhece-se, portanto, o papel deste “autor” na formulação de
contra-narrativas à nação, sintetizado no título de uma reportagem sobre este último
filme: ‘A Causa Secreta’ disseca o horror do Brasil. 196
Em Cronicamente Inviável, filme seguinte do diretor, lançado em 2000, esse
aspecto é ainda mais ressaltado. Com ampla repercussão nacional e internacional, o
filme foi apontado como uma “recusa de endossar os projetos interpretativos que a
cultura brasileira vem fabricando para si própria desde o século XIX”197 e com uma
representação de Brasil que “não é apenas Copacabana ou esplêndidas baianas que, por
alguns flashes, vemos em Cronicamente Inviável, mas um país exterminado, dividido
em norte e sul, entre miséria e riqueza, entre violência e resignação, entre belas
paisagens e “luxuosos” barracos”198 .
Tendo sido alvo de um intenso debate veiculado durante alguns meses de 2000
na imprensa, o filme certamente contribuiu para a legitimação de Bianchi como um
“autor” pela crítica e pelo meio acadêmico, visto que há a ambição, no filme, de uma
representação “total” do Brasil, reconhecida pelo público e pelas reportagens. Com
títulos variando entre Os motivos pelos quais “Cronicamente Inviável” é o filme da
década199 e Dando adeus ao país do futuro200 , estas ressaltavam que “Bianchi não livra
a cara de ninguém e distribui a culpa igualmente entre ricos e pobres”201 , “desmonta,
com ironia corrosiva, os clichês já estabelecidos sobre nossa pretensa “civilização” (o
Carnaval, a “cordialidade”, a “democracia racial”) e desenha uma seqüência de

194
Op. cit.
195
Op. cit.
196
COELHO, Marcelo. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 24/8/1994.
197
COLI, Jorge. Ponto de Fuga. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo. São paulo, 30/7/2000.
198
MATTEI, Gianluca. Brasile: il “paradiso infernale” di Bianchi. In : Spettacoli, La Prealpina,
11/8/2000. Artigo veiculado em italiano por ocasião do Festival de Locarno (trecho traduzido do italiano
pelo autor).
199
BAPTISTA, Mauro, MANEVY, Alfredo e SARAIVA, Leandro. Olhar Crítico. In: Folha de São Paulo
(sem referência a data).
200
BARBOSA, Marco Antônio. In: Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 12/8/2000.
201
Op. cit.

88
absurdos (plausíveis!) que inferem a total insanidade de nossa nação”202 . Desse modo,
Bianchi não apenas entra na disputa pelo capital – o poder de representar a nação –
como também é, paulatinamente, dotado de um lugar de autoridade (visto que o
processo do acúmulo de capital simbólico enquanto “autor”, iniciado com os outros
filmes, volta-se diretamente para o saber acadêmico, tanto no plano das teorias
interpretativas do Brasil quanto no dos gêneros cinematográficos, uma vez que a ficção
base do filme alcançou um “efeito de verdade” superior a muitos documentários, gênero
privilegiado na discussão sobre cinema brasileiro contemporâneo), reforçado pelo
discurso acadêmico sobre o cinema brasileiro (tal como a entrevista de Ismail Xavier à
Folha de São Paulo) 203 e pela comparação implícita ou expressa com outros “autores”
(e.g., a comparação do cinema de Bianchi ao teatro da crueldade de Artaud)204 .
Além disso, vários críticos, ao compararem o filme com outros produzidos na
década de 90, o patrimonializaram, no sentido de colocá- lo em confronto com o
“cinema asséptico” produzido hoje no país: “tenta explicar a corrosão do país através da
luta de classes, recorte ignorado (ou abandonado) pelo cinema brasileiro
contemporâneo”205 ; “em sua inadequação à “cena cultural” expõe os limites autistas de
classe do cinema brasileiro atual” 206 ou “pela ambição e coragem em fazer um grande
retrato do Brasil, escapando da aversão e medo a tratar do presente do país, diferente da
maioria do cinema contemporâneo”207 .
A coincidência do lançamento comercial de Cronicamente... com a
comemoração oficial dos 500 anos do “Descobrimento” também atuaram nessa disputa
pela legitimidade das representações de Brasil presentes no mesmo, sendo percebida
como parte da estratégia comercial do filme (o que não confirmado por esta pesquisa,
visto que o filme foi produzido ao longo de quatro anos) 208 e, ao mesmo tempo, uma
reação sarcástica à imagem oficial veiculada por essas comemoração 209 .
A cobertura e a participação do filme em festivais internacionais o situaram
numa posição de revelar uma nova imagem do Brasil perante os estrangeiros. “É um

202
Op. cit.
203
Cf: CONTI, Mário Sérgio. Encontros inesperados. In: Caderno Mais, Folha de São Paulo. São Paulo,
3/12/2000.
204
Cf: COUTO, José Geraldo. Filme retrata país fraturado e insano. In: Folha de São Paulo. São Paulo,
5/5/2000.
205
MANEVY, Alfredo. Op. cit.
206
SARAIVA, Leandro. Op. cit.
207
BAPTISTA, Mauro. Op. cit.
208
Cf: CHAGAS, Luiz. Graça na desgraça. In: Isto é 1600, 31/5/2000.
209
Cf: NAGIB, Lúcia. Bianchi ridiculariza realidade brasileira. In: Sessão Cinema, Guia da Folha, Folha
de São Paulo. São Paulo, 5 a 11/5/2000, pág. 11.

89
país que não pode ser percorrido sem pagar a viagem moral e fisicamente – descobre
Alfredo [personagem de Umberto Magnani], escritor de meia idade que é o fio condutor
no mosaico que o filme compõe”210 ou, ainda, “il fallait se rendre au Brésil avec le
provocateur Sergio Bianchi. Son film dépeint un pays taxé de Chroniquement inviviable
par sa bourgeoisie, trop heureuse de s’affranchir ainsi de toute tentative d’améliorer la
vie commune et celle des pauvres en particulier”211 são duas das representações
valorizadas pelos espectadores e pela imprensa internacional que, com o filme,
descobrem um país marcado pelo signo da violência (real e simbólica), inserindo o
mesmo num processo de reformulação da imagem dominante do Brasil no exterior 212
(lembrando que a projeção de Cidade de Deus, no ano seguinte, também foi
fundamental para isso). Aliada a esta cobertura, várias reportagens são veiculadas na
imprensa brasileira sobre a participação do filme nos festivais no exterior: como
exemplo, eis ‘Cronicamente Inviável’ vai ao Festival de NY213 , na qual se sublinha que
o filme representará o cinema nacional em um festival que há quatro anos não
selecionava filme brasileiro.
Finalmente, em 2005, Quanto vale ou é por quilo? é lançado comercialmente e
exibido em vários festivais. Reiterando sua posição enquanto agente formulador de
contra-narrativas às representações de Brasil, Bianchi se insere na disputa pelo capital
simbólico através de mais uma ficção recorrente à ironia e ao trágico. No entanto, dessa
vez o debate crítico reforçará a ligação estabelecida na diegese entre passado e
presente 214 e a crítica ao papel das ONGs.
Comparado a cineastas tidos no meio acadêmico e na crítica especializada como
“autores” (Buñuel, Eisenstein etc) 215 e com uma montagem qualificada como

210
BRUSAPORCO, Ugo. Una voce chiede rispetto. In: La Regione, 12/8/2000. Reportagem veiculada
por ocasião do Festival de Locarno (traduzido do italiano pelo autor).
211
RICHON, Nadine. Vedettes du palmarès de l’édition 2000, la Chine et l’Allemagne se taillent la part
du léopard. In : Le Temps, Genebra, 14/8/2000. Reportagem veiculada por ocasião do Festival de
Locarno.
212
Cf: STRAUMANN, Patrick. Brésil, pays de l’avenir? In : Le Quotidien du Festival, Pardo News,
11/8/2000 ; MITCHELL, Elvis. Undercutting the notion of Brazil as sex symbol. Film Festival Review,
7/10/2000 (Festival de Nova York).
213
BERNARDES, Marcelo. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo. São Paulo, 16/8/2000.
214
A relação entre escravidão e o assistencialismo contemporâneo foi associada, em algumas críticas, ao
discurso do movimento negro. Cf: WERNECK, Alexandre. Cronicamente Iluminis ta. In: Programa,
Jornal do Brasil, 27/5 a 2/6/2005. Divulgou-se que um título pensado para o filme foi Maravilhas da
Escravatura, abandonado pelo diretor por considerá-lo ofensivo.
215
Cf: LEAL, Hermes. Entrevista com Sérgio Bianchi. In:
www.2uol.com.br/revistadecinema/fechado/entrevista/edicao26/entrevista_01.html (consultado em
8/6/2005).

90
“dialética”216 , o diretor contesta uma image m construída na imprensa pela ação das
ONGs (na verdade, isso já foi iniciado em Cronicamente... ao ironizar a ONG Viva Rio
e o uso de entidades assistencialistas para obliterar o tráfico de bebês e de órgãos),
objeto até então ausente na cinematografia brasileira (o que poderia ser interpretado
como uma patrimonialização, na medida em que esta imagem se incorpora ao panorama
do cinema brasileiro atual). Ainda, o filme é apropriado pelas pautas de mídia impressa,
uma vez que a atuação de ONGs corruptas passou a ser alvo destas:

“Mas, exatamente por este dinheiro, que muitas vezes vem de fora, é que
muita coisa acaba desvirtuada. Só um exemplo: no centro, uma famosa
ONG que cuida de crianças de rua foi flagrada, dia desses, ensinando
golpes baixos para a garotada se livrar da polícia, quando esta quer levá-
los para hospitais ou abrigos. Sem as crianças na rua, a ONG pára de
receber verbas... Nos anos 90, ONG queria dizer esperança. Precisamos
tomar muito cuidado para que não vire um palavrão”217 .

Com títulos apelativos em alguns casos 218 , várias reportagens sobre o filme
construíram um dualismo entre Bianchi e as entidades assistencialistas, destacando
pontos como privatização do Estado, discursos de raça e classe e conseqüências da
escravatura para tentar avaliar a reação do público, tal como o faz o próprio diretor: “as
pessoas se perguntam “para onde a gente vai?”, caem em depressão ou começam a rir, o
que não gosto muito, porque elas vêem senso de humor nesse caos”219 . É curioso que foi
divulgado que o filme teria um terceiro final, mais “otimista” (não foi rodado por falta
de verba), em que os personagens da trama ascenderiam a cargos estatais relevantes (um
seria inclusive Ministro do bem-estar social), sendo o mesmo pontuado por canções
nacionalistas.
Sem perder de vista a sua intervenção política dentro do campo, Bianchi assim
se manifesta: “o lado bom da grande produção brasileira é que há espaço tanto para a
comedinha da Globo quanto para filmes de reflexão. Quero mais é que a diversidade do
cinema brasileiro cresça. Só assim vamos acabar com essa invasão de 80% dos filmes
americanos em nossas telas, sem pagar as taxas devidas”220 .

216
Cf: LIMA, Paulo Santos. “Quanto vale ou é por quilo?” dispara torpedos na moral brasileira. In: Folha
de São Paulo. São Paulo, 20/5/2005
217
In: Nuances do bem. O Estado de São Paulo. São Paulo, 19/5/2005, pág. D4. Matéria sobre a pré-
estréia do filme (sem referência a autoria).
218
Cf: SIMÕES, Eduardo. Sérgio Bianchi versus o assistencialismo. In: O Globo. Rio de
Janeiro,23/5/2005; TINOCO, Bianca. O choque de Bianchi. In: Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 29
e 30/5/2005.
219
Op. cit.
220
Op. cit.

91
Desse modo, evidencia-se o debate sobre as representações de Brasil e a nação
como uma trajetória considerada legítima no acúmulo de capital simbólico dentro do
campo cinematográfico e como um diferencial do diretor (agente) dentro de seu grupo
de status, em conformidade com o habitus de o cinema brasileiro estar situado dentro
das discussões sobre representações do nacional perante outros campos, como a
televisão, o rádio etc e fazer disso um capital na afirmação da legitimidade de sua
própria existência.
Passemos a Lúcia Murat: a diretora iniciou sua carreira cinematográfica sem
recorrer às narrativas da nação brasileira e, aproveitando sua experiência jornalística
(trabalhou mais de quatro anos na Rede Manchete em telejornais), fez um documentário
sobre a queda de Somoza na Nicarágua - O Pequeno Exército Louco 221 - o que, segundo
uma reportagem do Jornal do Brasil222 , criou uma situação inédita: uma produção
nacional feita no exterior e a EMBRAFILME, órgão então responsável pela atividade
cinematográfica no Brasil, não tinha legislação para o caso (o que explicita ainda mais o
habitus no tocante às representações de Brasil).
No entanto, a preocupação reside na construção do ponto de vista em que os
acontecimentos devem ser expostos: “nossa ótica é diferente – diz Paulo Adário –
procuramos mostrar a América Latina como brasileiros e do mesmo continente, sem
passar pela Europa ou Estados Unidos. Não focalizamos somente os tiros, a guerra, mas
procuramos também falar com a população, fomos a cidades abandonadas, queríamos
saber a opinião do povo nicaragüense”223 [grifo nosso]. Em outro trecho, Murat afirma:
“as imagens lembram muito o Nordeste”224 .
Outras notas sublinhavam o aspecto inédito das imagens captadas por Adário e
Murat: “o mais precioso, completo e impressionante documento sobre a queda de
Somoza deve ser certamente o material cinematográfico conseguido por um cineasta
brasileiro que acompanhou durante meses, filmando-a antes, durante e depois, a luta dos
sandinistas para derrubar a ditadura”225 [grifo nosso].
A exibição do filme (em 1984, seis anos depois do início de sua produção), por
sua vez, é avaliada pela imprensa como ocupando um espaço à margem, junto com
outros documentários brasileiros (não é gratuito o título da matéria de Rouchou usar

221
O filme é dado como desaparecido.
222
Cf: ROUCHOU, Joëlle. A “guerra” do documentário: um espaço para exibição. In: Jornal do Brasil.
Rio de Janeiro, 23/10/1979.
223
Op. cit.
224
Op. cit.
225
Coluna do Zózimo. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 8/9/1979, pág.3.

92
dubiamente o termo “guerra”, referindo-se tanto ao conteúdo do filme quanto à luta por
sua exibição):

“O Programa de Média-metragem foi, provavelmente, a mais


conturbada competição oficial ao longo de todo o Festival do Rio. No
início, os cineastas inscritos reivindicaram maior divulgação de seus
trabalhos, afirmando que estavam prejudicados e reclusos num
“gueto” (a sala de projeção da Faculdade Cândido Mendes), longe,
portanto, das “badalações” do Hotel Nacional. Para piorar a já
delicada situação, dois filmes – PCB, de Luiz Fernando Taranto e
Acredito que o mundo será melhor , de Jussara Queiroz – foram
proibidos de exibição no Festival pela Censura, reduzindo para 15 o
número de participantes. Em resposta, um veemente manifesto
assinado por diretores e profissionais de Cinema e TV foi preparando
repudiando o arbítrio (“...uma afronta aos direitos constitucionais”) do
órgão federal” 226 .

É preciso recordarmos que a legitimidade do gênero documentário, mesmo que


presente na crítica acadêmica e jornalística, só seria afirmada perante a um público de
cinema (principalmente universitário ou “cinéfilo”) ao longo da década de 90 (por
ocasião do surgimento de vários festivais, prêmios etc já abordados na parte anterior).
Dentre as características formais do filme mencionadas nas reportagens e
críticas, eis a narrativa fragmentada, quebrando a cronologia e a linearidade, além da
ligação entre as políticas nicaragüense e brasileira (marcadas pela ditadura) e entre o
filme e seus diretores: “reflete ainda a volta por cima dos realizadores. Lúcia foi
torturada nos anos duros da repressão iniciada no Brasil em 1964”227 , tendo início o
acúmulo de capital simbólico em relação à “autoria” e à construção de um lugar de
autoridade dentro do campo.
Esse processo será ainda mais explícito no filme seguinte da diretora, Que bom
te ver viva, seu primeiro longa- metragem. No folheto de divulgação do filme, Murat o
apresenta partindo do que “não consta no seu curriculum como jornalista de cineasta”:
“Minha história não foi diferente das entrevistadas: presa em 1971, passei dois meses
sendo torturada no Doi-Codi e três anos e meio na cadeia”. Em paralelo, várias matérias
fizeram referência à experiência vivenciada pela diretora durante a repressão como
fonte de autoridade para o filme: “Lúcia Murat foi presa em 1971 por pertencer a uma
organização da esquerda armada. Barbaramente torturada, saiu da cadeia em 1974”228 ;

226
LARGMAN, Ricardo. Entre os médias, a força da Nicarágua. In: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, 27/11/1984, pág.6.
227
Cf: Caderno B, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27/11/1984 (sem referência a autoria).
228
SALEM, Helena. Um mergulho corajoso. In: Última Hora. Rio de Janeiro, 15/6/1989.

93
“a obra é extremamente autobiográfica. O tema principal do filme – explica Lúcia – se
centra no significado da sobrevivência à tortura”229 .
Ademais, há a intervenção política do filme nos debates sobre os efeitos da
ditadura na política e no cotidiano brasileiros, além de o mesmo ser caracterizado como
uma contra-narrativa:

“a história brasileira possui muitos discursos. Entre a história oficial e


a realidade, existe um grande hiato que vai aos poucos sendo
revelado. “Que bom te ver viva”, da jornalista e cineasta Lúcia Murat,
em cartaz no Cine Pathé, resgata de forma contundente um momento
importante da nossa história, ao realizar um documentário contendo
depoimento de mulheres que foram presas e torturadas durante a
repressão do regime militar brasileiro. Anos que não podem ser
esquecidos, mas que também não devem ser lembrados à exaustão,
com o risco de serem apenas trauma”230 .

O filme foi construído enquanto uma ruptura do “pacto de silêncio” sobre o


período do regime militar no cotidiano (e na imprensa) e a ausência de revisões
históricas sobre o mesmo 231 . Em uma crítica publicada durante o Festival de Pesaro de
1990, há a seguinte análise do filme: “mais que invocar o período da prisão e das
torturas, as entrevistas testemunham a dificuldade de retomar a própria vida em uma
sociedade que quer apenas esquecer”232 .
A dialética entre memória e esquecimento, além de ser apontada como central na
narrativa fílmica, migrou para o debate político realizado durante sua exibição
comercial e em festivais, contribuindo para o reconhecimento da diretora dentro do
próprio campo cinematográfico (atestado pelo depoimento de dos cineastas Geraldo
Sarno, Eduardo Escorel, Carlos Diegues, Eduardo Coutinho e Murilo Salles a respeito

229
BRAGA, Suzana. Mais do que a história oficial. In: Última Hora Revista. Rio de Janeiro, 19/10/1989.
230
CUNHA, Alécio. ‘Que bom te ver viva’: um painel contundente de momento esquecido. In: Cinemas,
Hoje em Dia. Belo Horizonte, 20/12/1989.
231
Essa narrativa também se faz presente no folheto de divulgação do filme, em depoimentos como o da
atriz Giulia Gam e o da psicanalista Helena Besserman Viana. Essa última assim se manifesta: “o ser
humano esquece. E mais: esquece que esquece. Esse filme consegue fazer lembrar a necessidade da
denúncia constante desses crimes, como o antídoto e prevenção contra a conivência ou omissão,
instrumentos diletos do poder atrabiliário, da tortura, dos assassinos da memória”. A psicanalista foi a
responsável pela denúncia do psiquiatra Amílcar Lobo, que participava, como médico, das torturas no
DoiCodi (capital simbólico mobilizado pelo folheto do filme).
232
PRUZZO, Piero. Il buio oltre la “Storia ufficiale” (sem referência de publicação; traduzido do italiano
pelo autor). Conferir também GRELIER, Robert. Un cinéma qui refuse l’amnésie. In: La vie ouvrière n o.
2369, 22/1/1990.

94
da importância de Que bom te ver viva como documento para o cinema brasileiro 233 e
por diversos prêmios obtidos em festivais 234 ).
O filme foi posteriormente apropriado por teorias cinematográficas que
dialogam com as teorias do feminismo, porém não sem algumas críticas, tal como
expressas, em uma apreciação bastante posterior a sua exibição comercial, por David
Foster:

“The need to attain a level of discursive eloquence perhaps explains


why the women are drawn from the middle class, with no reference to
or inclusion of working-class women, also manifest the third degree of
marginalization, of social class. Moreover, since the women involved
come from urban areas, a fourth element of marginalization – that
drawn along the axis of metropolis/province – is also absent. (…) This
overdetermination of the social status of women as wives and mothers
also limits considerably the scope of Que bom te ver viva. Indeed, one
would like to know what might have been the fortune in the hands of
the state apparatus of repression of women unmarked or marked
negatively by the heterosexist and reproductive privilege – nuns and
lesbians”235 .

A falta de referência, por parte do autor, a respeito da produção e da recepção do


filme o conduziu a algumas reflexões precipitadas. Não se leva em consideração a
dificuldade enfrentada pela diretora em conseguir os depoimentos - enfrentando desde o
problema em achar essas mulheres (dispersas em diferentes cidades, muitas com nomes
diferentes em conseqüência de casamentos ou mesmo pelo intuito de se esconderem) até
a resistência de muitas em conceder uma entrevista para relatar justamente o período da
tortura (sendo que isso foi exposto no filme por meio do depoimento em que registra
apenas a voz de uma ex-prisioneira que vivia em um mosteiro, sendo que a imagem que
acompanha seu depoimento é a de uma vela acesa) - nem a importância do debate sobre
a tortura, na política nacional, do qual o filme fez parte.
Já que falamos em política nacional, o longa- metragem de Murat Doces
Poderes, exibido comercialmente em 1996, re-visita a ruptura que ma rca o campo do
cinema brasileiro: as eleições de 89, na qual a vitória de Collor imprimiu uma radical

233
Cf: Folheto de Divulgação do filme.
234
Melhor filme (júri popular, júri oficial e crítica), melhor montagem e melhor atriz no Festival de
Brasília (1989); Menção Margarida de Prata da CNBB (1989); Prêmio Coral, melhor filme da OCIC e
melhor filme da Ass. Atores – Festival de Havana (1989); Prêmio especial do júri e Prêmio Samburá no
Festival Internacional do Rio (1989) etc. Participou de festivais internacionais como Festival de Mujeres
(Buenos Aires, 1990), Festival of festivals (Toronto, 1989), San Francisco Film Festival (1989), Muestra
Internacional del Nuevo Cine (Pesaro, 1990), Human Rights Festival (Nova York, 1991) etc.
235
FOSTER, David W. Constructions of Feminine and Feminist Identities. In: Gender & Society in
contemporary Brazilian Cinema. University of Texas Press, Austin, 1999, pág. 99.

95
transformação na cadeia produtiva do cinema no Brasil, com o fechamento da
EMBRAFILME.
Logo após sua primeira experiência de produção pós-Collor, um esquete do
longa Oswaldianas 236 , a diretora, ao retornar ao longa-metragem, o faz apoiada em um
recurso formal já desenvolvido em Que bom te ver viva: a junção entre os registros
documental e ficcional237 . Isso é reconhecido em sua recepção, além de seu lugar de
autoridade: “jornalista e cineasta, Lúcia Murat usa, assim como em “Que bom te ver
viva”, muito da sua experiência pessoal como profissional da chamada mídia. E, fiel a si
mesma, continua misturando ficção e documentário”238 ou “Doces Poderes mantém a
linha do filme anterior, ao alimentar-se fartamente dos fatos da realidade”239 ,
explicitando a verossimilhança e o efeito de verdade como elementos da produção de
sentido almejada pelo filme (sobre o lugar de autoridade construído pela diretora, uma
pequena crônica autobiográfica intitulada A última revolucionária 240 relaciona as
atividades de esquerda e do cinema empreendidas por ela).
A retórica da patrimonialização também é mobilizada em torno do filme, uma
vez que o mesmo retrataria algo nunca visto no cinema brasileiro: “outro assunto do
filme é a pressão que a mídia exerce na política. È impressionante que nenhum filme
brasileiro tenha falado disso até hoje” [depoimento da diretora]241 . Faz-se menção à
disputa pelo poder entre os campos do cinema e da televisão de produzir imagens e de
intervir na política. Nesse caso, de acordo com as críticas, as representações de Brasil (e
de Brasília) se situam em um lugar de contestação, havendo explicitamente uma prática
discursiva ligada à “intervenção na realidade, [fazendo] uma reflexão sobre ética no
Brasil” 242 : “Os subterrâneos da política, os corredores dos pequenos conchavos, os
bares, as festas, a promiscuidade, a corrupção de uma cidade que vive em torno e para o

236
Projeto da Secretaria de Cultura de São Paulo para homenagear o centenário de Oswald de Andrade,
no qual Lúcia Murat participou com o esquete O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (que retrata o
caso de Oswald com a normalista Daisy, uma jovem qualificada como “à frente de seu tempo”). Cf:
TINOCO, Pedro. As fantasias de um modernista. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19/2/1991 e
GUZIK, Alberto. Um filme na gaveta da cultura (sem referência de publicação; acervo MAM-Rio).
237
Neste filme, há trechos em que a atriz Irene Ravache encena os traumas da tortura, sendo os mesmos
intercalados com os depoimentos de 8 mulheres torturadas durante a ditadura.
238
SUKMAN, Hugo. A cor da ficção invade a realidade do processo eleitoral. In: O Globo. Rio de
Janeiro, 29/9/1996.
239
SALEM, Helena. ‘Doces Poderes’ é um retrato do Brasil. In: O Estado de São Paulo. São Paulo,
4/10/1996.
240
Cf: MURAT, Lúcia. A última revolucionária. In: Auto-retrato, Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
19/10/1996.
241
Op. cit.
242
Op. cit.

96
poder – talvez seja pela primeira vez que Brasília apareça nessa sua face perversa,
nada monumental”243 [grifo nosso].
Partindo de algumas curiosidades a respeito da recepção do filme, é preciso
esclarecer que as imagens de Brasil mais uma vez operam como fonte de legitimidade
do campo do cinema brasileiro perante o público. Doces Poderes foi percebido por este
com base na associação de alguns personagens à disputa eleitoral no Rio, o que a
diretora nega, porém não sem antes constatar que “essa associação é até um bom sinal,
mostra que os arquétipos funcionam, que as pessoas estão se sentindo representadas
pelo filme. O público reconhece a realidade brasileira na tela”244 [grifo nosso]. Além
disso, auxiliam no processo de acúmulo de capital simbólico pela diretora, visto que o
habitus do campo e da apreciação do público é construído, em grande parte, pela
capacidade de intervenção política do filme e da validade das representações veiculadas
(lembrando que essa “validade” é negociada desde a produção – já que há um roteiro
aprovado e patrocinado – até a recepção – o julgamento do público, da crítica e dos
acadêmicos sobre o filme).
É interessante notar, ainda, que alguns se referiram a este filme como um
“thriller político” (algo negado pela diretora), o que inseriria o mesmo dentro de um
cinema de gênero e, portanto, como parte do projeto industrial do cinema brasileiro
(mesmo que, para isso, a presença da “autora” também esteja marcada, dentre outros,
pelo “tom delicadamente feminino da narrativa”245 ). Doces Poderes também foi alçado
ao debate da “retomada”, evidenciando-se neste “a seriedade e o empenho dos diretores
em produzir bons filmes”246 e que “mostra que não é uma versão atualizada do Cinema
Novo. Ao contrário, é um novo cinema onde os personagens são conhecidos de todos,
as jogadas de bastidores não deixam de ser ficção, não são cangaceiros, ao contrário, é
gente de idéias, assim como o próprio produto oferecido pela diretora”247 .
A mobilização das representações de Brasil na disputa pelo capital dentro e em
relação ao campo seria continuada no projeto seguinte da diretora, Brava gente
brasileira que, ao resgatar uma vitória militar dos índios perante os brancos, ressalta a
dimensão conflituosa na constituição da nacionalidade brasileira a partir da violência
dos contatos inter-culturais.

243
Op. cit.
244
Declaração de Murat. In: BUTCHER, Pedro. Cinema como uma necessidade. Jornal do Brasil,
9/10/1996.
245
Op. cit.
246
PUGA, Antônio. A ética no telão. In: O Fluminense. Niterói, 9/11/1996.
247
Op. cit.

97
Considerando vários argumentos, a patrimonialização também se fez presente
tanto no discurso que legitimou sua produção quanto em sua recepção: “para o produtor
Bruno Stroppiana, esta será uma oportunidade de se explorar dois elementos pouco
vistos no cinema nacional: o índio e o Pantanal. (...) O clímax de Brava gente brasileira
será marcado por um episódio que foge às regras da história do país: a rara vitória dos
índios sobre os brancos”248 .
O mal-estar no tocante ao cinema de gênero (no caso, épico) aparece em uma
opinião da diretora: “não só por encarecer a produção, mas porque esta não é a tradição
de nosso cinema. Em geral, fica ridículo”249 , para tanto fazendo referência a um habitus
do campo cinematográfico brasileiro, reafirmando-o.
Do conflito racial, a diretora migra para o choque de classes (pautado também
por categorias raciais) em Quase Dois Irmãos. Retratando três épocas do Brasil a partir
da vida de dois personagens centrais, o filme foi ligado à experiência de Murat como
militante (visto que uma das épocas era os “anos de chumbo”) e cineasta: “como em
“Que bom te ver viva”, no qual refletia sobre a tortura que sofreu como militante presa
pelo regime militar, “Quase Dois Irmãos”, que estréia amanhã, parte de vivências
pessoais de Lúcia Murat”250 , sendo que a diretora ressalta que considera este filme o
mais autobiográfico (inclusive, afirma que seu pai “era um médico progressista, que
atendia nos morros e me levava”251 , um paralelo com os personagens Miguel – pai e
filho), novamente remetendo à sua própria vivência como fonte de legitimidade para o
filme 252 .
Devemos destacar que, com o lançamento do filme, surgiram várias reportagens
na imprensa sobre romances de jovens da classe média com criminosos moradores de
favelas cariocas (uma das questões abordadas no filme). Em uma delas, Amores
bandidos na vida de 20 jovens cariocas 253 , faz-se um levantamento desses vários casos,
alguns com desfecho trágico, a respeito das novas sociabilidades entre “morro” e
“asfalto” (cujo enfoque é a menoridade das jovens e os bailes funks enquanto lugares de
cooptação dessas jovens). Em uma parte da mesma, intitulada Assim nas telas como na
vida real, opera-se uma dupla tentativa de legitimação: a presença dessa prática
248
BUTCHER, Pedro. Brava gente da floresta. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17/6/1997.
249
Op. cit.
250
SUKMAN, Hugo. Amor e dor entre morro e asfalto. In: Segundo Caderno, O Globo. Rio de Janeiro,
31/5/2005, pág.4.
251
In: SIMÕES, Eduardo. Favela versus classe média na tela. O Globo, Rio de Janeiro, 31/03/2003.
252
Em entrevista concedida a essa pesquisa, a diretora afirmou que muitas perguntas em debates sobre o
filme referiam-se à sua vida pessoal enquanto militante e cineasta.
253
ANTUNES, Laura. O Globo. Rio de Janeiro, 24/4/2005, pág. 21.

98
discursiva no filme Quase Dois Irmãos coadunando a reportagem e, de outro lado, o
efeito de verdade buscado pelo filme legitimado pela prática discursiva mobilizada
socialmente (tal como o revela o jornal), sendo isso confirmado pelo depoimento de
Murat: “a idéia veio quando, há cerca de oito anos, algumas adolescentes, filhas de
amigos, que eu conhecia desde pequenas, começaram a subir o morro, primeiro para
bailes funks. Depois algumas se relacionaram com jovens do tráfico. Neste momento,
em que me deparei com o outro lado da história, ou seja, querendo defender as meninas
e trazê- las de novo para o mundo da classe média, me veio a idéia do filme, que trata do
ciclo vicioso do apartheid entre os dois mundos”254 .
A segregação social presente no filme também entra no jogo das representações
e das práticas discursivas. Em várias matérias, expõe-se a continuidade na produção da
segregação entre as classes média e baixa, algumas vezes referindo-se à dimensão racial
do problema 255 e aos modos em que esses conflitos ocorrem e são resolvidos. Há o
destaque para a suposta origem da “nova criminalidade”, simbolizada pelo surgimento
da Falange Vermelha (que posteriormente chamar-se- ia Comando Vermelho), mais uma
fonte de legitimidade para o filme (embora essa informação seja contestada por
historiadores, tais como Cátia Faria que, em reportagem publicada no Jornal O Globo,
afirma que a convivência entre prisioneiros políticos e comuns ocorreu em outras
épocas anteriores – sem o surgimento de organizações criminosas – e que os assaltos a
bancos já eram efetuados por criminosos comuns antes da resistência armada; Daniel
Aarão, que foi preso político na Ilha Grande e contesta a representação fílmica ao
revelar que houve interpenetração entre os grupos, isto é, prisioneiros comuns que
passaram à luta política e vice- versa256 ).
Desse modo, a aquisição de capital simbólico explicita os modos nos quais
opera: a) a imprensa atuando neste processo, legitimando e sendo legitimada pelo
campo do cinema brasileiro; b) o cinema brasileiro disputando com outros campos o
capital de produzir e difundir imagens sobre a “realidade social” 257 (recordemos que
essas matérias foram veiculadas na época em que o filme foi exibido comercialmente;

254
In: ANTUNES, Laura. O Globo. Rio de Janeiro, 24/4/2005, pág. 21.
255
Amizade entre branco e negro é o ponto de partida. In: In: SIMÕES, Eduardo. Favela versus classe
média na tela. O Globo, Rio de Janeiro, 31/03/2003.
256
GUEDES, Ciça. Convivência forçada na Ilha Grande. In: Comportamento, Megazine, O Globo (sem
referência a data, porém foi veiculada durante a exibição comercial do filme – haja em vista o dado
revelado “em cartaz na cidade, o ótimo “Quase Dois Irmãos””).
257
Cf: BEZERRA, Júlio. Baseado em fatos reais. In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô, março 2005.

99
mesmo que o filme não tenha obtido um público considerável258 , este foi incorporado ao
panorama de práticas discursivas – via jornalismo impresso e tevê a cabo 259 ); c) as
representações de Brasil como fonte de acúmulo de capital simbólico aliado à noção de
“autor” (os filmes seguintes de Lúcia Murat, Olhar estrangeiro, documentário sobre
como os estrangeiros constroem estereótipos em torno do Brasil e dos brasileiros260 ,
além de um musical produzido na Favela da Maré, assim o confirmam); d) a
necessidade de conciliação do projeto industrial com o autoral, presente no discurso de
Murat (“quando sento na sala de edição, penso sempre numa comunicação com o
público. Sem abrir mão, é claro, de que seja um projeto de autor”261 ); e) a “obra”
enquanto um sistema de interpretação estética de um “autor” e de significação cultural
(relacionando a esta sua recepção), fonte de sua legitimidade perante o campo.
Finalmente, analisemos a trajetória de Eliane Caffé. A diretora começa a realizar
filmes quase no período em que há a paralisação gradual da atividade cinematográfica,
estreando com o curta O Nariz (1988), curta que passou quase despercebido pela crítica
e pelo campo. Com Arabesco (1990), também curta, a diretora iniciou sua projeção na
imprensa, na qual algumas matérias elogiavam sua iniciativa. O momento político em
que o fez também foi levado em consideração: “São apenas 15 minutos a provar que
ainda há algum pulso no moribundo cinema brasileiro. (...) Arabesco é a confirmação
de que o curta continua a corda no ar para salvar o cinema brasileiro da arapuca em que
se meteu. Quem sabe uma saída... alguém consegue ver onde está a saída?”262 . Sendo a
última frase uma referência irônica tanto ao curta (já que a história se passa pela entrada
de dois ladrões em uma biblioteca, gerando um problema: não conseguem achar a saída)
quanto à situação do cinema brasileiro em 1990.
Já outra reportagem invocava o passado cinematográfico de São Bernardo para
validar a experiência de Caffé 263 : “O curta Arabesco, que a V Mostra de Curtas Inéditos
reapresenta até domingo no Museu da Imagem e do Som – MIS, a partir das 19h, pode
ser um sinal de que São Bernardo não esquece fácil a herança cinematográfica da Vera

258
Cf: capítulo 1 deste trabalho.
259
O filme foi exibido várias vezes no canal Brasil e na HBO (canais pagos).
260
Já exibido em alguns festivais em 2006.
261
Cf: BEZERRA, Júlio. Lúcia Murat: o cinema militante. In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô,
março 2005.
262
PRADO, Luís André do. Ladrões capturados pela armadilha da dúvida. In: O Estado de São Paulo
(sem referência a data; porém deduz-se, a partir de dados contidos em outra reportagem, que a época é
abril de 1990 – Luís Prado faz referência à exibição do filme em uma mostra no MIS/São Paulo, sendo a
mesma aludida também na matéria de Nei Bonfim publicada em 13/4/1990).
263
O Departamento de Cultura da cidade pagou parte da produção do filme.

100
Cruz”264 . Outro dado aponta para o início do acúmulo de capital simbólico da diretora
enquanto agente atuante no campo: a legitimidade cultural da seleção do curta para
festivais internacionais (“o curta, que conta com Jonas Bloch no elenco, acaba de ser
selecionado para o Festival de Nova York, marcado para maio”265 ), sublinhando,
inclusive, que isto configurou a motivação para a realização da matéria (o que pode ser
confirmado pelo título). Os primeiros signos da “autoria” também são formulados no
debate (lembrando que o roteiro também é assinado por ela): “esses elementos estranhos
incorporados ao aparentemente banal parecem ser a marca que Eliane pretende manter
em seus trabalhos, uma câmera subjetiva com alguma herança surreal”266 .
Após ter passado dois anos na Espanha, em virtude de uma bolsa de estudos,
Caffé realiza seu primeiro longa Kenoma 267 , sendo o mesmo exibido em 1998 (o que faz
dela uma das cineastas estreantes em longas durante a década de 90). Sobre o filme,
algumas reportagens foram feitas em 1997 – ano de sua produção – abordando o
impacto da presença da equipe de filmagem na pequena cidade de Araçuaí, no Vale do
Jequitinhonha (MG). Aliás, houve a associação entre o lugar construído diegeticamente
- Kenoma, vilarejo “perdido no tempo”, imerso em uma temporalidade pré- moderna – e
Itira, o cenário do filme e a 19 km de Araçuaí, onde ficava a base da produção. Os
capitais econômicos e sociais presentes no processo (emprego da população local,
participação da população no filme – como atores também268 ) contribuíram para o
capital simbólico do filme e, por conseguinte da diretora. A esse processo acrescentou-
se uma coincidência: ao retratar a história do moto-perpétuo (que remonta a Idade
Média, sendo que sua impossibilidade foi provada por Leonardo da Vinci), a equipe de
produção deparou-se com um moto-perpetuísta, Sr. Turíbio 269 , que trabalhava há 50
anos na invenção 270 (que auxiliou José Dumont na concepção da personagem Lineu, o
“inventor” no filme).
Tendo em vista a perspectiva universalista em que se constrói a história,
poderíamos inferir que, em um primeiro momento, isso foi percebido como um choque

264
BONFIM, Nei. Arabesco vai a Festival nos EUA. In: Cultura e Lazer, Diário do Grande ABC. Santo
André, 13/4/1990.
265
Op. Cit.
266
Op. cit.
267
Não sem antes realizar o curta Caligrama em 1995.
268
A ponto de ser chamada de “a cópia mineira de Hollywood” (mesmo que hiperbólica, a comparação
remete à profissionalização imposta pelo filme à cidade). Cf: FILHO, Tim. KENOMA: Cidade torna real
cenário de um filme. In: O Estado de Minas. Belo Horizonte, 16/3/1997.
269
Op, cit.
270
Segundo Eliane Caffé, houve uma reportagem feita pelo filme com ele, o que contribuiu também para
divulgar o filme, que se encontrava em fase de filmagem.

101
em relação às representações de Brasil. Em entrevista concedida ao Jornal da Tarde,
Caffé foi cobrada no sentido de impor uma marca nacional a seu filme ou de “fazer algo
pela cultura brasileira”: “seus filmes enfocam os assuntos de uma maneira muito
diferente do resto, pela narrativa ou qualquer outra coisa. Acha que há neles também um
elemento que os identifique como um produto brasileiro?”271 , ao que responde
afirmando uma materialidade da “brasilidade”: “essa brasilidade está nas pessoas, nas
músicas e nas cores dos lugares para onde a gente vai. Está nas praças, no Vale do
Jequitinhonha e outros lugares pelos quais passei” 272 .
A intervenção do filme na cidade também se deu por conta de sua recepção. Sem
cinema há mais de 25 anos, a exibição no Mercado Municipal (numa tela de 7m x 12m),
com a presença de cerca de 7.000 pessoas, fez parte de um grande espetáculo público,
que incluiu show com músicas típicas (recuperando, em parte, a tradição do cinema
como espetáculo de rua) 273 . Ademais, a narrativa mítica presente no filme dialogou com
as práticas discursivas míticas dispersas pela região, tal como o atesta a própria
fundação de Araçuaí (por algumas prostitutas expulsas de Itira, que viu a outra cidade
desenvolver-se à medida que decaía economicamente); além de personagens locais
como Maria “Cheirosa”, prostituta mais famosa da região que, com 70 anos, desfila nas
comemorações do aniversário da cidade 274 .
O filme, que narra a saga do moto-perpétuo e dos que tentaram concretizar sua
invenção, foi recebido pela crítica como um resgate das utopias (interessante notar o
contraste com Lúcia Murat, cujos filmes são apontados a partir do fim das utopias): “a
tensão do filme baseia-se nesse confronto entre o pólo da utopia e o pólo do
pragmatismo. Nada mais atual, num país em que, hoje mais que nunca, é proibido
sonhar, e cujo próprio cinema – arte da imaginação – parece constrangido a se mover
por mesquinhas razões de mercado”275 . Além disso, ainda se sublinha o valor positivo
das utopias, uma vez que a diretora, em sua pesquisa, deparou-se com o fato de que a
atividade dos moto-perpetuístas auxiliou na descoberta das leis da termodinâmica (que

271
GIANNINI, Alessandro. Eliane Caffé filma fábula com toques de realidade. In: Jornal da Tarde. São
Paulo, 10/1/1998.
272
Op. cit.
273
Cf: MARON, Alexandre. ‘Kenoma’ faz caminho de volta do sertão de Minas à cidade grande. In:
Folha de São Paulo. São Paulo, 31/8/1998.
274
Op. cit.
275
COUTO, José Geraldo. Longa de estréia de Caffé é ode à força das utopias. In: Folha de São Paulo.
São Paulo, 31/8/1998.

102
foram aplicadas em outras máquinas) 276 . Destaca-se o filme dentro do panorama do
cinema brasileiro, o que aumenta seu capital e valida perante o mesmo a “autoria” de
Caffé.
Esse destaque é reforçado pelo fato de nenhum filme brasileiro ter abordado o
tema antes, o que configuraria uma patrimonialização reconhecida pela crítica: “a
máquina do movimento perpétuo vira assunto de filme brasileiro, provavelmente pela
primeira vez”277 , além da premiação obtida no festival de Biarritz (Sol de Ouro de
melhor longa- metragem, concedido pelo Júri do Festival de Cinema e Cultura da
América Latina em Biarritz) 278 .
O segundo longa de Caffé, Narradores de Javé, ao explorar as narrativas orais
dos contadores de história (cujo roteiro foi inspirado na pesquisa O artesão da memória
no Vale do Jequitinhonha, de vera Lúcia Pereira), foi recebido pela crítica como um
“inventário do passado” a partir da tradição oral, para tanto realçando as versões
fantasiosas dos moradores de Javé a respeito de sua fundação. Sendo equiparado às
“raízes literárias” em Guimarães Rosa e em Ariano Suassuna ou “filosóficas” em
Benjamin 279 , o filme alcança uma legitimidade cultural dentro do campo, imprimindo ao
processo de aquisição de capital simbólico por sua diretora uma base que dialoga com o
meio acadêmico. Além disso, a ampla participação do filme em festivais nacionais e
internacionais (o filme acumulou mais de 20 prêmios concedidos em festivais e por
associações do campo cinematográfico e das artes, tendo participado de mais de 20
festivais nacionais e 30 internacionais) estabeleceu um circuito de exibição à margem da
comercial (que rendeu pouco mais de 60.000 espectadores).
Para resumirmos esta parte, alguns fatores construídos pelo habitus presente no
campo e pela atuação dos diretores devem ser explicitados: a) a valorização da
intervenção política dentro do campo; b) o acúmulo de capital simbólico sendo levado
em consideração principalmente em relação ao número de longas realizados pelos
diretores e o tempo de atuação do diretor; c) a cobrança das representações de Brasil
pelo cinema brasileiro; d) a construção da imagem do diretor, muitas vezes remetendo a
experiência cinematográfica a um plano autobiográfico visando sublinhar sua “autoria”;
276
Cf: ORICCHIO, Luiz Zanin. Eliane Caffé reinventa o mito do moto-contínuo. In: O Estado de São
Paulo. São Paulo, 13/7/1998.
277
Op. cit.
278
Cf: ‘Kenoma’, de Eliane Caffé, vence o festival de Biarritz. In: Diário do Grnde ABC. Santo André,
5/10/1998.
279
Cf: Voz do povo: tradição oral é o tema de Narradores de Javé. In: Isto é no. 1789, 21/1/2004 (autoria
marcada pela sigla I.C.); FONSECA, Rodrigo. Consciência com risadas. In: revista Programa. Jornal do
Brasil, 23 a 29/1/2004.

103
e) a projeção obtida pelos filmes na imprensa e no público (presença em artigos,
críticas; exibições e prêmios em festivais; disputas com a burocracia estatal e das
empresas etc).

IV CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO VERSUS RETOMADA:


UMA QUESTÃO DE NOMENCLATURA?

Corroborando o pensamento da epígrafe, acreditamos que as palavras carregam


o peso de seus significados, sendo passíveis, portanto, de se tornarem um patrimônio. À
época do lançamento de Carlota Joaquina, princesa do Brasil, de Carla Camurati, era
comum referir-se ao mesmo enquanto a retomada da produção do cinema brasileiro,
sendo alçado à categoria de “período” atual do cinema brasileiro.
Em virtude do “trauma” provocado na classe cinematográfica pela extinção de
instituições que já vinham enfrentando crises internas desde meados da década de 80,
tende-se a relegar os cinco anos “tenebrosos” (1990-1994) às notas de rodapé ou a
pequenas observações, sendo a fala de Herna ndez bastante sintomática:

“Mais de uma década se passou desde o desastre


“collorido” que se abateu sobre o cinema brasileiro,
desmantelando toda a organização existente, as relações
ainda incipientes duramente construídas no exterior e a
capacidade desenvolvida de administrar, controlar e
fiscalizar uma atividade que movimenta milhões de reais.
O setor cinematográfico, durante todos esses anos, foi
alimentando seu difícil renascimento, graças às leis de
incentivo criadas e ao esforço que o Ministério da Cultura
fez para suprir a falta dos organismos vitais de controle da
atividade”.280

Mesmo assim, a produtora deixa supor que existiu atividade cinematográfica


nesses anos, algo confirmado pelo catálogo da mostra Cinema brasileiro anos 90: 9
questões (no qual estão enumerados os filmes produzidos entre 1990 e 2000).
Entretanto, a historiografia do cinema brasileiro contemporâneo costuma referir-
se a esse período como “Retomada”, periodizando a partir de 1994 ou 1995 (ano de
lançamento de Carlota Joaquina, pelo fato de o mesmo ter sido o primeiro filme

280
HERNANDEZ, Assunção. E mais de dez anos se passaram. In: Revista de Cinema. São Paulo, Krahô,
outubro de 2001, pág. 50.

104
brasileiro a ter mais de um milhão de espectadores) como o início da nova fase do
cinema brasileiro.
Dois pesquisadores que explicitamente aderem ao termo são Lúcia Nagib e Luiz
Zanin Oricchio, fazendo menção a ele no título de seus respectivos livros. Em O cinema
da Retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, Nagib adota sem reticências o
novo “período” do cinema brasileiro, para tanto o utilizando como critério de seleção
para as entrevistas dos diretores os filmes terem sido lançados entre 1994 e 1998
(quando supostamente a “retomada” teria sido encerrada; porém Nagib não justifica a
razão desse “término”) 281 . Já Oricchio, mesmo destacando o termo, incorpora em sua
análise filmes produzidos entre 1990 e 1994 (e.g., Rádio Auriverde, de Sylvio Back e
Bananas is my business, de Helena Solberg), não sem antes destacá-los, na introdução,
do restante do panorama dos filmes produzidos até 2003 (ano de lançamento do livro) e,
ainda, tentar fazer de Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) o marco do fim do
período da “Retomada”.
A partir de 90 entrevistas, Nagib tentou conferir ao período uma análise partindo
de temas como políticas públicas para o cinema, trajetória pessoal e profissional dos
diretores, carreira dos filmes etc. O perfil panorâmico construído pela pesquisadora se
valeu de uma metodologia de pesquisa que merece ser avaliada, no intuito de vermos
como um pensamento de cunho historiográfico é constituído para o campo
cinematográfico.
As entrevistas foram realizadas partindo de um questionário único, contendo 12
perguntas a serem endereçadas aos entrevistados, o que já implica o problema de que se
pressupõe que todos os mesmos devem atendem a uma mesma rede de expectativas, isto
é, devem possuir os mesmos assuntos como interesse (crítica semelhante foi feita por
Bourdieu sobre as pesquisas de opinião pública em A opinião pública não existe,
ressaltando o aspecto arbitrário das mesmas e que elas visam mais conferir legitimidade
a propostas políticas a priori que de fato conhecer os impasses políticos). Além disso,
as perguntas formuladas conduziram a respostas de cunho “autorais” (tal como o
propósito do livro) que ora pouco interessavam ao cinema brasileiro (as “curiosidades”
da vida de um determinado diretor), ora reduziam questões políticas às “impressões”
dos entrevistados. Vejamos como foi o questionário enviado aos diretores:

281
O pesquisador Ismail Xavier, que assina o prefácio do livro, qualificou a seleção de Nagib como
“medida cautelar a garantir a viabilidade da pesquisa dentro de um prazo compatível com a intervenção
desejada”, o que foi possível graças à equipe composta por 14 pesquisadores da PUC-SP.

105
“1) Formação: a história de vida que o(a) levou ao cinema.
2) Influências: filmes, livros e peças que formaram a base cultural.
3) Fatos que marcaram a carreira.
4) Relações com outros cineastas e outras fases do cinema brasileiro.
Como se relaciona, por exemplo: com os pioneiros, a chanchada, a
Vera Cruz, o Cinema Novo, o Cinema da Boca, o Cinema Marginal etc.
5) Como se relaciona com cinematografias estrangeiras (o Neo-
Realismo, a Nouvelle Vague, os novos cinemas do mundo, o cinema
mainstream e filmes internacionais recentes).
6) Relações e opções políticas: alguma influência no ato de filmar?
7) Como a evolução econômica e política do Brasil pesou na carreira.
8) Histórico da produção dos filmes lançados entre 1994 e 1998.
9) Carreira desses filmes (público, imprensa, festivais e prêmios).
10) Como avalia a política atual de incentivo ao cinema. O que deveria
permanecer ou mudar.
11) Projetos futuros.
12) Quais os rumos que o cinema brasileiro está tomando e quais
deveria tomar” 282 .

As perguntas 1,2 e 6, ao empreenderem uma visão teleológica e remeterem o


consumo cultural à passividade, esquecem o caráter aleatório da memória afetiva e
consideram o autor como um dado a priori e não como uma prática discursiva
articulada, dentre outros, no campo cinematográfico, obliterando o acúmulo de capital
simbólico como um processo não- linear, não teleológico e que se liga ao habitus do
próprio campo (tal como este foi exposto nas partes II e III do presente capítulo). As
perguntas 4 e 5, por sua vez, ignoram que as relações entre cineastas e movimentos ou
épocas devem ser feitas na análise fílmica e na recepção e, mesmo que o diretor
reconheça a filiação ou o diálogo com algum movimento, isso não necessariamente se
traduz na estética de seus filmes (do contrário, reconheceríamos que a produção de
cinema seria ligada a um padrão de “intenção-resposta”, no qual a intenção de um
diretor encontrar-se- ia expressa no filme, crença não partilhada por este trabalho).
A pergunta 10 nivela todos os diretores ao partir do pressuposto de que eles
ocupam o mesmo lugar no campo cinematográfico. Mesmo considerando as diferenças
de ordem política nas respostas, que oscilam entre as críticas severas ao modelo
neoliberal e o reconhecimento do fato de que uma indústria de cinema deve ser um
objetivo a ser alcançado pelo campo, devemos recordar que os diretores possuem
diferentes lugares de autoridade, o que se faz presente, por exemplo, nos editoriais e
reportagens de jornais sobre cinema brasileiro, nas revistas de circulação dentro do
campo, na presença de determinados diretores em cargos de comando de associações, na

282
Cf: NAGIB, Lúcia. O cinema da Retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo,
Editora 34, 2002, pág. 22.

106
contemplação de alguns diretores via editais em detrimento de outros, na concessão de
patrocínios das empresas etc. A pergunta 12 superestima a capacidade de muitos
diretores em analisar a situação do cinema no Brasil (o que gerou resultados
decepcionantes e óbvios na maioria dos casos), além de conferir a estes um poder
normativo que não condiz com sua prática (diretores não são, via de regra, formuladores
de políticas públicas - muito embora devam ser ouvidos no processo de elaboração das
mesmas - devendo possuir outro tipo de conhecimento que não somente o mobilizado
no campo para empreender esta tarefa) 283 .
O esforço de documentação do trabalho encontra-se concentrado nas perguntas 8
e 9, na medida em que, ao coletar as narrativas em torno das experiências de produção e
da recepção dos filmes, pode ser incorporado a pesquisas futuras sobre o cinema
brasileiro atual, com a ressalva de que a entrevista deve subsidiar uma pesquisa mais
ampla, a partir de vestígios desses processos (recortes de jornais e revistas, referências a
debates sobre os filmes etc).
Pode-se contestar também a escolha de entrevistar somente diretores, uma vez
que, ao privilegiar esse grupo de status dentro do campo cinematográfico, Nagib
desconsiderou outros grupos de status (produtores e técnicos) que não apenas tiveram
sua participação alçada após o fechamento da EMBRAFILME como também passaram,
em menor medida, a disputar o capital simbólico da “autoria” (alguns diretores de
fotografia, montadores, músicos especialistas em trilhas sonoras, roteiristas etc
construíram uma carreira e foram aos poucos sendo considerados “autores” dentro de
suas funções 284 ).
Sobre o cinema brasileiro contemporâneo, vejamos o prefácio de Ismail Xavier
do livro de Luis Zanin Oricchio: “Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada se
articula em torno de uma convicção: o momento é de transição, ou melhor, do desafio

283
Uma exceção seria Gustavo Dahl que, após dirigir, presidiu por 5 anos a ANCINE, para tanto
articulando seu conhecimento cinematográfico à economia política.
284
É preciso, mais uma vez, distinguir função de grupo de status. Citemos o caso dos roteiristas: mesmo
que sejam uma função (pois se fazem presentes na cadeia produtiva cinematográfica), não configuram
ainda um grupo de status, isto é, não restituem à realidade seu aspecto material ou simbólico de forma
autônoma (não são capazes, enquanto grupo, de arregimentar debates teóricos ou políticos, não se fazem
presentes por meio de associações independentes e com atuação política relevante, ou seja, não estão
instituídos no poder de nomear tal como os diretores e, em menor medida, os produtores). É importante
frisar que essa consideração se limita ao campo cinematográfico brasileiro, uma vez que os roteiristas
podem ser um grupo de status em outros campos (a título de exemplo, lembremos o histórico embate
entre Truffaut e os roteiristas na França da década de 50 em torno da adaptação literária, no qual os
mesmos exerceram seus poderes de coerção e de nomear – ou de restituir – uma realidade dentro do
campo cinematográfico francês).

107
de se terminar uma transição”285 . Perspectiva que alinha os defensores da “Retomada” –
a de transição – esta não pode ser, entretanto, defendida ao se ter em mente uma teoria
que percebe as categorias sempre em movimento – e não apenas quando estão “em
transição”, já que este termo pressupõe que havia um movimento consolidado, houve
alguma turbação, e deverá haver novo assentamento. Afinal, a História sempre faz
questão de nos provar o contrário 286 .
Todavia, na entrevista concedida à Revista Praga, O cinema brasileiro dos anos
90, Xavier assume uma perspectiva mais interessante para esta pesquisa. Assumindo
como recorte a interrupção da produção empreendida durante o governo Collor, o
pesquisador percebe nele a reviravolta na relação entre os campos cinematográfico e
político que iria configurar o habitus presente no primeiro e, mais, a produção de toda a
década de 90 ligada a essa ruptura (o nome “Retomada” é citado raramente na
entrevista).
A disputa pelas representações de Brasil é citada por Xavier:

“Conhecemos os rumos da cultura e da política nos últimos anos, que


resultaram, para o cineasta brasileiro, nesse sentimento de perda do
mandato, de fim da utopia do cinema brasileiro. Como decorrência, há
um deslocamento da própria auto-imagem do cineasta que vive ainda a
política da identidade nacional, da necessidade de um cinema
brasileiro, mas não traduz em seus filmes, com raras exceções, a mesma
convicção de ser um porta-voz da coletividade, terreno esse muito mais
incorporado, hoje , à retórica da Rede Globo, com sua versão
industrializada e mercadológica do nacional-popular, bem estampada
nas novelas e mini-séries”287 .

Contrapondo o “mandato” como instrumento de retórica dos cineastas dos anos


60 e 70 (o “cinema moderno brasileiro”), Xavier salienta a televisão como instância na
produção de image ns de Brasil, fato incorporado à estética de alguns filmes brasileiros
contemporâneos (Lamarca; O que é isso companheiro?; Guerra de Canudos; Cidade de
Deus) e contestado por outros (Amélia; Cinema, aspirinas e urubus; Quanto vale ou é

285
XAVIER, Ismail. In: ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São
Paulo, Estação Liberdade, 2003, pág. 11.
286
É interessante retomarmos o debate empreendido por Norbert Elias em O Processo Civilizador no
tocante aos processos sociais, no qual o autor rechaçou a perspectiva de que é possível encontrarmos um
“equilíbrio social”, filiando-se à corrente hegeliana da história de que o conflito é o motor da realidade;
desse modo, não há como se falar em períodos “áureos”, de pleno equilíbrio, dado o aspecto agonístico
das arenas políticas.
287
Op. cit., pág. 99.

108
por quilo?) 288 . No entanto, devemos afirmar que o cinema brasileiro assumiu outras
estratégias de legitimação, inclusive o “autor” (que era anteriormente ligado ao
mandato) como capital simbólico referente ao campo e a apreciação (positiva ou
negativa), por parte da crítica, das imagens de Brasil veiculadas pelos filmes brasileiros
atuais.
Com relação ao paradigma da identidade nacional, este surge, sobretudo, nos
momentos de crise. Além do período compreendido entre 1990 e 1994 (já visto na parte
II), a “identidade nacional” foi mencionada na luta pela afirmação do campo do cinema
brasileiro, sendo apropriada pela crítica na avaliação dos filmes, muitas vezes pela
negação (tal como Lunardelli, que explana categoricamente: “diante de uma crise tão
aguda, não cabem discussões acadêmicas sobre identidade. É preciso descobrir o
público, cativa- lo com uma boa história”289 ).
Em uma crítica publicada em 1991 290 destacando a produção nacional em cartaz,
Amir Labaki compara os filmes Rádio Auriverde, de Sylvio Back e O Filme de Minha
Vida, da estreante Alvarina Souza Silva. Para tanto, contrasta o tom documental
assumido pela ficção de Alvarina em retratar a experiência cinematográfica no Brasil e
o tom de blafêmia do documentário de Back sobre o episódio dos pracinhas na Segunda
Guerra Mund ial (afirmando que o segundo “manipula explicitamente um deslumbrante
e inédito material de arquivo só para zombar da campanha da FEB”291 e, desse modo,
reiterando a identidade nacional como prática de coerção/constrangimento à contra-
narrativa proposta pelo diretor)292 .
A identidade nacional como estratégia política encontra-se claramente expressa
na reportagem Direito de imagem é fundamental e democrático, de Luiz Zanin Oricchio
uma reação a uma matéria veiculada pela revista Veja (já mencionada aqui): “mas, se o
cinema ajuda a divulgar um país, um ideário político, uma visão de mundo, contribui
principalmente para dar certa consistência interna a uma nação. As pessoas se
reconhecem nas imagens que vêem nas telas. Isso as ajuda a sentir-se parte de uma

288
Ressaltamos que contestação não é a negação da estética publicitária e televisiva, uma vez que muitos
filmes se apropriam delas justamente para revelá-las enquanto códigos e práticas discursivas socialmente
ligadas aos campos político e econômico.
289
In: LUNARDELLI, Fatimarlei. Cinema: a crise do nacional. In: Porto Vírgula n o. 1. Porto Alegre, mar-
abr. 1991.
290
Cf: LABAKI, Amir. Mostra promove volta do cinema nacional às telas. In: Segundo Caderno, Folha
de São Paulo. São Paulo, 18/10/1991, pág.6.
291
Op. cit.
292
O nome do prêmio conferido pela Secretaria de Cultura de São Paulo no subsídio ao cinema nacional,
Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro, também faz menção a essa identidade nacional.

109
mesma comunidade lingüística e cultural”293 . Em alguns casos, a retórica nacional é
alçada a estratégia de resistência às narrativas “universais” ou “globais”: “acredito que o
papel do cinema brasileiro e o de todas as outras cinematografias, principalmente do
Terceiro Mundo, seja existir. Enquanto estivermos vivos, a batalha geopolítica mundial
não estará terminada”294 .
Xavier detecta, ainda, a recorrência ao movimento do Cinema Novo presente no
cinema brasileiro contemporâneo - algo confirmado em muitas entrevistas de Nagib e
no título do livro de Oricchio - porém não sem antes destacar as diferenças da nação
diegeticamente construída pelos filmes deste em relação ao cinema brasileiro atual (as
teses sócio-econômicas do primeiro versus a ênfase nos sujeitos e nas descrições). A
isso, opomos que existe, em diversos filmes, mais uma conciliação entre o objetivo e o
subjetivo que a ênfase em subjetividades per si (ou seja, algo que ultrapassa a
“psicologia das personagens”, atuando em novas práticas discursivas relacio nadas ao
Brasil).
Retenhamos a ligação entre a referência ao Cinema Novo e a identidade nacional
realizada pelo pesquisador. Em suas palavras:

“Há, inclusive, uma política de identidade, de redefinição dos tipos, de


concepção do “brasileiro”, embora não haja programa comum. Esse
cinema do entre-lugar, na maior parte dos casos, promove inclusive um
retorno de figuras e espaços sociais típicos do Cinema Novo. (...) A
partir desse patamar, tivemos uma safra de filmes que retomaram a
questão nacional dentro de novos parâmetros, empenhados num
trabalho de revisão histórica que passa por certos gêneros, como o filme
de cangaço, a superprodução, a adaptação literária que retoma uma
personagem emblemática (Policarpo Quaresma, o herói do Brasil,
Paulo Thiago, 98), o filme de violência urbana centrado na favela, o
painel das migrações que agora se torna mais diversificado. Em
verdade, a identidade nacional foi, de certa forma, o traço maior dos
filmes de mercado, seja o espetáculo mais caro (Canudos, Tieta, Mauá,
Orfeu ou Villa-Lobos) seja o filme barato de enorme sucesso como a
comédia de Carla Camurati, Carlos Joaquina, a princesa do Brasil
(1995)” 295 .

Embora reconhecendo esse “retorno” de figuras e espaços do Cinema Novo, não


poderíamos concordar que a “revisão” ocorreu de modo tão passivo conforme
implicitamente está colocado. Muitos filmes atuais de fato retomam as imagens de

293
Cf: ORICCHIO, Luiz Zanin. Direito de imagem é fundamental e democrático. In: Caderno 2, O Estado
de São Paulo. São Paulo, 1/7/1999.
294
NETO, A.S. Cecílio. Reflexões sobre o cinema brasileiro. In: Revista USP n o. 19. São Paulo, set-nov.
1993, pág. 75.
295
Op. cit., pág. 104-106.

110
Brasil construídas por esse movimento, porém atualizando-as - às vezes, sendo
“punidos” pela crítica por isso 296 .
Sendo parte da estratégia de legitimação do campo cinematográfico, a
monumentalização em torno do Cinema Novo (um movimento cinematográfico, não um
período do cinema brasileiro 297 ) foi sublinhada em alguns debates críticos, tais como
durante o lançamento comercial do filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002),
no qual a pesquisadora Ivana Bentes, tida como a principal detratora do filme,
qualificou sua estética como “cosmética da fome” (assumindo explicitamente o
movimento enquanto cânone, na medida em que parodia a expressão estética da fome,
do próprio Glauber) e em algumas reportagens em defesa do cinema nacional que
ressaltam a “influência” deste no cinema atual298 .
Recordemos, todavia, que as releituras promovidas pelo cinema atual de épocas
passadas se dão pela via da legitimação e não pela contestação (algo comum no Cinema
Novo, principalmente a partir de uma visão teleológica da história, tal como em Revisão
Crítica do Cinema Brasileiro). A teleologia, o cânone e o ideal de progresso são
estratégias de apropriação da história menos recorrentes no cinema atual que no referido
movimento – embora ainda presentes nos debates críticos e acadêmicos – sendo em
parte substituídas pela paródia, pela relação com imagens produzidas em outros campos
(notadamente a televisão) etc e o entre- lugar encenado nos filmes se situa no embate
entre os discursos da pedagogia (que relembra os passados nacional e do campo
cinematográfico) e do performativo (que contesta o lugar de autoridade conferido ao
primeiro, revelando aspectos pouco conhecidos do passado obliterado pela pedagogia e
do presente que não sejam interessantes a essa autoridade).
Passemos ao livro já citado de Oricchio sobre o período atual do cinema
brasileiro funciona como um “resumo” das imagens construídas pelo cinema a respeito
do Brasil, sendo esta a preocupação principal do livro. Pelos títulos dos capítulos – “A
representação da História”; “Eu e o Outro”; “A esfera privada”; “A esfera pública”; “O
sertão e a favela”; “Classes em choque”; “A arte da violência”; e “A crítica e o cinema
puro” – percebe-se que o autor pretendeu mapear as discussões críticas a respeito do

296
A entrevista concedida pelos diretores de Baile Perfumado Paulo Caldas e Lírio Ferreira à Revista
Cinemais pauta-se pela preocupação dos diretores em inferir que a modernidade expressa na linguagem
do filme também é algo incorporado à paisagem do sertão e às figuras de Lampião e de Benjamin Abraão.
297
A produção brasileira da década de 60 não se resume a diretores como Glauber Rocha, Joaquim Pedro
de Andrade, Paulo César Saraceni, Nelson Pereira dos Santos etc e, mesmo dentro do Cinema Novo,
houve ‘rachas’ já documentados pela historiografia do cinema brasileiro.
298
Cf: CALIL, Ricardo. Brasil, um imenso sertão. In: Jornal da Tarde. São Paulo, 15/8/1996, pág. 1C.

111
nosso cinema e dialogar com elas, inclusive incorporando questões pouco afeitas ao
campo do cinema como classe e relação nacional e estrangeiro 299 . É bastante
significativa a escolha por analisar filmes de ficção, filiando-se a uma metodologia de
Sadoul e de outros que se aventuraram a condensar a história do cinema mundial, sendo
que a mesma possui três grandes problemas: o privilégio do papel da produção
(característico dos defensores da “Retomada”); a obliteração do intercâmbio entre
documentário e ficção (além do ostracismo do primeiro numa tentativa de história do
cinema); e, finalmente, a dimensão apolítica do estudo face às instituições oficiais.
Focalizemos o esforço de periodização do autor. Reafirmando o filme Carlota
Joaquina enquanto o início da “Retomada”, Oricchio avaliou que a polêmica produzida
em torno do filme Cidade de Deus ilustrou as posições binariamente impostas: seguir os
cânones artísticos de parte da intelectualidade acadêmica ou adaptar o cinema nacional a
fórmulas comerciais que supostamente dialoguem com um público cada vez mais
“massificado”? A primeira corrente percebeu o filme como uma “estetização” da
pobreza, da violência e um desvirtuamento perante a tradição cinematográfica nacional,
atacando o filme em jornais de grande circulação, lançando manifestos e fomentando o
debate acadêmico. Já seus defensores, respaldados no sucesso comercial do filme (mais
de três milhões de espectadores, a então maior bilheteria do cinema brasileiro pós-
EMBRAFILME), viam nele uma possibilidade de concretizar a tão sonhada
“industrialização”, sendo que Oricchio, ao afirmar que o mesmo foi um “divisor de
águas”, parece partilhar dessa visão.
Possivelmente Cidade de Deus foi tornado patrimônio, figurando no cinema
brasileiro contemporâneo como objeto de cisão entre as duas correntes (e poucos
conseguiram fazê- lo de modo tão contundente), mas se pode dizer que ele próprio seria
um “marco” do fim da Retomada, como defende o autor? Parece-nos, à primeira vista,
uma estratégia de monumentalização. Vejamos os argumentos enumerados por Oricchio
(e amparados por boa parte da crítica): qualidade técnica do filme; a “circularidade” da
narrativa (leia-se: o filme é estruturado a partir de um grande flashback); “articula por
completo a linguagem contemporânea do cinema e da sociedade”300 ; financiamento em
ínfima parte pelas leis de incentivo fiscal; o sucesso de bilheteria, mesmo sendo um

299
Ismail Xavier, na entrevista analisada, também faz referência à presença de personagens estrangeiros
nas narrativas fílmicas e brasileiros ocupando um outro espaço que não o nacional (tal como em Terra
Estrangeira e Dois Perdidos numa noite suja).
300
Op. cit., pág. 160.

112
filme com temática social; presença de atores negros desconhecidos do grande público e
ausência de atores “globais”.
Já foi dito que a qualidade técnica é algo inerente ao discurso “neo-
desenvolvimentista” do cinema nacional, logo, outros filmes anteriores a ele também
empreenderam essa busca 301 ; filmes estruturados a partir de um grande flashback não
são propriamente novidades; a relação entre cinema e linguagens de comunicação
contemporânea também não foi inaugurada pelo filme; o fato de não ter sido financiado
por mecanismos fiscais não o libera das engrenagens neoliberais; o recrutamento dos
atores (oriundos, em sua maioria, das favelas e comunidades pobres do Rio) seguiu
padrões quase hollywoodianos, cujo realismo era baseado na experiência social dos
atores.
Qual a dimensão política dessa escolha de alçar Cidade de Deus a marco
cronológico? Ao estetizarmos a história do cinema, perdemos de vista fatos como os
mecanismos de economia política que gerem a atividade e a inserção do cinema no
panorama da cultura e da realidade brasileira contemporâneas, além do fato de o filme
construir uma imagem de Brasil totalizadora, que não questiona os conflitos entre
classes, inter-étnicos, religiosos, sendo uma visão marcadamente classe média a respeito
dos pobres (algo que não é nem um pouco novidade por aqui). Ou seja, antes de
tentarmos ver nos filmes os momentos de ruptura, poderíamos incorporar a essa análise
a relação entre os campos cinematográfico e político. Entretanto, é preciso dizer que a
escolha de um dado filme como marco de uma estética ou período não é somente algo
corriqueiro, como também parece ser o que estrutura as grandes narrativas sobre a
história do cinema mundial.
Os defensores da “Retomada” se filiam a uma perspectiva de transição. Esta não
pode ser, entretanto, defendida ao se ter em mente uma teoria que percebe as categorias
sempre em movimento, já que este termo pressupõe que havia um movimento
consolidado, houve alguma turbação, e deverá haver novo assentamento. Afinal, a
História sempre faz questão de nos provar o contrário 302 .

301
Podemos listar alguns títulos anteriores ao filme - A Partilha; Bossa Nova; O que é isso
companheiro?; O Quatrilho – enquanto utilizadores de recursos técnicos e de linguagem ligados à
publicidade.
302
É interessante retomarmos o debate empreendido por Norbert Elias em O Processo Civilizador no
tocante aos processos sociais, no qual o autor rechaçou a perspectiva de que é possível encontrarmos um
“equilíbrio social”, filiando-se à corrente hegeliana da história de que o conflito é o motor da realidade;
desse modo, não há como se falar em períodos “áureos”, de pleno equilíbrio, dado o aspecto agonístico
das arenas políticas.

113
Além disso, o termo “Retomada” estabelece um problema de periodização do
cinema brasileiro: como a EMBRAFILME foi extinta em 1990 e este termo só engloba
filmes realizados a partir de 1995, como enquadrar os filmes produzidos entre 1990 e
1995? Corre-se o sério risco de um “ostracismo fílmico” ao se adotar essa
nomenclatura, sendo importante lembrar que Oricchio enumera quais foram os filmes
produzidos nesse período, com base em um catálogo da mostra Cinema brasileiro. anos
90: 9 questões, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil - Rio 303 . Uma teoria
historiográfica não pode “se dar ao luxo” de simplesmente ignorar cinco anos de
atividade cinematográfica.
Portanto, podemos considerar o recorte de 1990 até hoje enquanto o cinema
brasileiro contemporâneo, uma vez que as bases para o novo habitus do campo
cinematográfico foi configurado a partir do fechamento da EMBRAFILME (e a disputa
pelos esquemas de percepção nesse novo habitus – sobretudo os referentes à lógica do
patrocínio privado e da privatização das políticas para o cinema), não tendo sido até
então alterados significativamente. Ao contrário: o processo da investida neoliberal no
cinema, na área cultural e na economia política, muito longe de ter sido interrompido,
parece estar sendo consolidado seja pelo discurso “industrial” de alguns setores da
classe cinematográfica, seja pela importação do modelo norte-americano de agências
reguladoras (a ruptura com essa lógica política neoliberal poderia imprimir uma nova
dinâmica entre os campos cinematográfico e político, o que não se deu com a criação da
ANCINE, visto que a mesma é uma agência reguladora cuja lógica se remete ao
mercado cinematográfico e ao subsídio privado da atividade, sendo ela mesma
sustentada pela renda advinda desse mercado).

303
Cf: ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo, Estação
Liberdade, 2003, pág. 26.

114
Capítulo 3

IMAGENS, REPRESENTAÇÃO DO PASSADO E POLÍTICAS IDENTITÁRIAS


NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

“Nega do cabelo duro,


que não gosta de pentear
quando passa na baixa do tubo
o negão co meça a gritar” 304

Foi-se o tempo em que a raça, o gênero e a classe eram mobilizados apenas a


partir do pitoresco, como presente na epígrafe. A sociedade brasileira assistiu, na última
década, à politização dessas práticas discursivas. Acompanhando a trajetória de agentes
como o movimento negro, cujas vitórias no campo político – cotas nas universidades
para estudantes negros e pobres, comemorações cívicas ligadas à cultura negra alçadas à
categoria de feriados regionais 305 , aplicação do texto constituciona l que prevê o racismo
como crime inafiançável e imprescritível - re-inscreveram principalmente a raça como
categoria discursiva e identitária, os meios de comunicação não sairiam incólumes dessa
discussão 306 .
Debates televisionados, artigos na imprensa escrita, ações na justiça em
decorrência do comportamento de certos meios de comunicação, discussões acaloradas
em listas e em sites na internet, desenvolvimento de segmentos na área editorial307 ,
dentre outros, revelaram a nova tônica concedida à questão racial. A maior presença de
atores negros no cinema e na televisão, em virtude do trabalho de ONGs como Nós do
morro, Nós do Cinema e da prerrogativa legal recém-aprovada de cotas para atores
negros na televisão e no cinema configuraria a contrapartida audiovisual neste novo
cenário 308 .

304
Fricote, música composta por Luis Caldas e Paulinho Camafeu que, em 1985, acompanha a ascensão
do movimento axé music. Fonte: http://www.construindoosom.com.br/linha_do_tempo/1980_a_1989.htm
305
No Rio de Janeiro, há os feriados de São Jorge e Zumbi dos Palmares.
306
Questões ligadas ao gênero e, em menor medida, à classe, também tiveram presença na retórica
política, acadêmica e midiática, tais como a violência doméstica contra as mulheres, a criminalização da
pobreza etc. Além disso, a revisão da política indigenista, na década de 80, a partir de críticas a
instituições como a FUNAI e à própria representação política dos índios (caso do Deputado Mário
Juruna), configura um dos pontos de virada na questão racial.
307
Podemos mencionar a revista Raça, voltada prioritariamente a um público de classe média negra em
ascensão e alguns livros sobre o debate racial produzidos para um público supostamente “leigo”, tais
como Não somos racistas (Ali Kamel).
308
Recordemos que Lázaro Ramos e Flávio Bauraqui, dois atores negros incorporados ao star system,
tiveram suas trajetórias artísticas consolidadas em filmes como Madame Satã, O Homem que copiava e
Quase Dois Irmãos, além do fato de que Fernando Meirelles e Kátia Lund, diretores de Cidade de Deus,

115
O meio acadêmico também se viu imerso em grupos de estudos sobre a revisão
do papel do negro e do índio na sociedade brasileira, o que conduziu a pesquisas nas
áreas Humanas, notadamente História e Ciências Sociais. Isso ajuda a revelar que a
historiografia do cinema brasileiro necessita de estudos que avaliem como as categorias
raciais mobilizadas no pensamento social e no cotidiano das massas fizeram-se
presentes nas representações fílmicas309 e, além disso, em quais códigos sociais essas
representações eram inseridas e como elas atualizavam as práticas sociais ligadas à
raça 310 . Afinal, a seqüência de Thesouro Perdido (1927), de Humberto Mauro, em que
se alternam planos de um sapo e uma criança negra - ambos com um cigarro na boca - o
filme A Dupla do Barulho (1953), de Carlos Manga, que reúne dois cômicos alternando
representações de branquidade e negritude (Oscarito e Grande Othelo), a ficção
Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodansky (1974), que se vale de um diálogo
com a estética documental para ironizar a situação política do país por meio da re-
encenação do mito de fundação racial Iracema 311 , e o documentário Mato eles? (1982),
de Sérgio Bianchi, sobre uma reserva de índios invadida por uma madeireira, são apenas
alguns exemp los retirados de um gigantesco panorama de representações raciais
veiculadas audiovisualmente.
Desse modo, justificamos o privilégio do recorte em torno da questão racial,
uma vez que detectamos nela a principal fonte de contestação atual às narrativas
totalizadoras da nação e à história linearmente construída (leia-se, não-conflituosa),
além de reconhecermos a raça enquanto categoria identitária que se liga diretamente à
noção de povo dentro de diversas práticas letradas - desde a literatura e o pensamento
social do século XIX até os movimentos sociais atuantes na esfera pública presente - e,
portanto, fundamental para compreender como a construção “povo brasileiro” foi
evidenciada em diversas teorias de cunho sociológico, histórico e antropológico na
definição de uma nacionalidade brasileira.

realizaram uma série de oficinas visando a formação de jovens atores negros, o que revela o papel do
cinema brasileiro contemporâneo como uma instância cultural legitimadora das conquistas do movimento
negro.
309
Um dos raros estudos é O Negro e o cinema brasileiro, do antropólogo João Carlos Rodrigues.
310
Lembremos que, nos EUA, houve a vigência de vários códigos de representação – sendo o mais
famoso o Código Hays – que mencionavam explicitamente como as “raças” deveriam ser retratadas nos
filmes. No Brasil, em virtude da insipiência da realização de filmes e da fluidez das categorias raciais, os
códigos em torno das representações se tornavam implícitos, quando não “autorais”, adotando inclusive
estratégias de naturalização e invisibilidade, o que dificulta – mas não inviabiliza - uma abordagem
“racial” da história do cinema brasileiro.
311
Reside no filme um tom de desautorização, uma vez que os “clássicos” da literatura do séc. XIX
encontraram na televisão brasileira da década de 70 uma presença bastante privilegiada nas adaptações.

116
E, ao contrário de outros países em que esses saberes foram apreendidos em sua
dimensão analítica, os mesmos, no Brasil, passaram a fazer parte do panorama de
representações nacionais divulgadas, dentre outros, pelo cinema. Atentamos, ainda, para
as categorias de raça e de classe como as principais bases da hierarquia social no caso
brasileiro, visto que o ideal de branqueamento, mesmo diluído teoricamente, foi
incorporado a várias práticas cotidianas e a representações estéticas e culturais, sendo
ligado à lógica de classes por meio da formação de padrões de consumo (cultural stricto
sensu ou não) e do mercado como lugar de disputas materiais e simbólicas.
Após ter verificado, no capítulo 2, como a legitimidade do campo
cinematográfico se encontra atrelada à possibilidade de representação do Brasil no
cinema, além de o habitus do campo ter se estabelecido a partir de uma retórica
nacional-popular que condicionou grande parte da produção de uma época - sendo a
memória do campo construída em torno desta produção - passemos a observar como as
práticas ligadas às representações de Brasil são explicitadas nos filmes Narradores de
Javé, Quanto vale ou é por quilo? e Quase Dois Irmãos.
Recordando as diversas questões formuladas no capítulo 1 no tocante à análise
fílmica, é possível formularmos as seguintes hipóteses principais: a) as práticas
discursivas ligadas à raça presentes nos filmes, contrariando uma tradição apaziguadora
das relações raciais, ressaltam a dimensão do conflito (fílmico e extra- fílmico) em que
elas são constituídas; b) os diversos usos do passado nas narrativas cinematográficas e
suas relações com o presente apontam para a dissemi-nação enquanto estratégia
discursiva que contesta o poder de nomear de certos grupos instituídos; c) ao encenar a
localidade da cultura, os filmes o fazem ressaltando o caráter arbitrário das disputas
identitárias, para tanto evidenciando nos personagens e na diegese como estes se
apropriam das práticas discursivas e não-discursivas de forma híbrida.
Para auxiliá- las, lançamos outras hipóteses secundárias: a) os filmes
mencionados, ao articular classe, raça e gênero, re-visitam certos discursos ligados às
categorias raciais presentes no pensamento social brasileiro e brasilianista (leia-se,
Skidmore, Ianni, Florestan Fernandes, Ortiz) e desautorizam o lugar de outras tradições
(Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e teóricos do séc. XIX como Sílvio Romero e Nina
Rodrigues) por meio de ironias e alegorias; b) a imagem de Brasil construída nos filmes
incorpora o conflito racial (e, em menor medida, de outras categorias como gênero,
classe, geração, religião etc), revelando o lugar da própria nação enquanto instância
legitimadora de certos tipos de identidade em detrimento de outros; c) mais que

117
ressentimento 312 , as diegeses são formuladas a partir da presença do trágico nas relações
sociais representadas no plano fílmico, sendo esse elemento trágico uma das bases das
contra-narrativas às fronteiras da retórica nacional que constrói o Brasil de forma
totalizadora e pacífica; d) a tensão entre o pedagógico e o performativo em torno do
povo e do popular faz-se presente na mise-en-scène, evidenciando as estratégias
narrativas relacionadas ao povo enquanto mises-en-abîme, isto é, micro-narrativas
referentes à narrativa fílmica como um todo, que a retomam corroborando-a ou
contestando-a; e, finalmente, e) ao agenciar o presente, os filmes se tornam passíveis de
figurarem na retórica das contra-narrativas que mobilizam o cenário político e social
contemporâneo, ressaltando o aspecto de intervenção da produção cultural (no caso,
cinematográfica).

I USOS DO TEMPO NAS NARRATIVAS DA NAÇÃO

Quanto vale ou é por quilo? é iniciado com uma expedição de capitães-do-mato


para apreender escravos fugidos, mostrada em uma fotografia muito escura e em planos
fechados, sob os protestos de Joana (Zezé Motta) - negra alforriada que possui escravos
– alegando que um dos escravos era seu. A câmera com movimentos lentos e a
montagem com poucos cortes revelam o protesto dela e de seus vizinhos diante da casa
do mandante da expedição (Antônio Abujamra), cuja acusação sumária é “branco
ladrão”.
Já Quase Dois Irmãos apresenta a sua estrutura tri-temporal logo nos cinco
primeiros minutos do filme, representando as décadas de 50, 70 e os dias atuais através
dos personagens Miguel (Bruno Abrahão /Caco Ciocler/ Werner Schünemann) e
Jorginho (Pablo Belo/ Flávio Bauraqui/ Antônio Pompeu), branco e negro,
respectivamente.
Por sua vez, Narradores de Javé é apresentado por créditos cujo trabalho
gráfico- musical amparado em uma estética pós- moderna que remete o espectador ao
tempo presente - colagens musicais; música regional com batida ‘pop’; formas
geométricas acopladas aos nomes e às funções da equipe; a caracterização dos jovens na
primeira seqüência (um deles, após ter perdido uma balsa, escuta uma música no CD

312
Categoria analítica de Ismail Xavier, exposta em comunicações proferidas na SOCINE (em 2006, Do
sublime ao grotesco: a tragi-comédia do populismo em Redentor) e na entrevista-ensaio O cinema
brasileiro dos anos 90 (publicada na Revista Praga e já mencionada neste trabalho; cf: capítulo 2).

118
player que ‘contamina’ a cena; Souza, interpretado por Matheus Nachtergaele, usa
roupas e tem um cabelo estilo ‘roqueiro’). O filme também possui uma estrutura tri-
temporal, na qual o tempo presente se alia a dois tipos de representação do passado:
agonística, retratado na fala de Zaqueu (Nelson Xavier) e memorial/mítica, construído
pela junção das narrativas dos moradores de Javé sobre a suposta ‘origem’ o povoado.
Ao explicitar um fato pouco retratado nas narrativas sobre escravidão – o fato de
negros libertos também possuírem escravos – e ao evidenciar claramente as categorias
de raça, essa seqüência indica o tipo de narrativa que irá ser construída ao longo de
Quanto vale...: através de um jogo de ocultação/revelação, os vários tipos de linguagens
articuladas no filme (publicidade, história, direito, vídeo, televisão, etc) irão expor
fragmentos de ações que ressaltam o aspecto do conflito nas relações de raça e de
classe.
O aspecto temporal fragmentado também faz parte da narrativa de Quase Dois
Irmãos, sendo que este é usado para, dentre outros, revelar a continuidade das relações
raciais e de classe. As diferenças na fotografia (que se vale de tons amarelados para
representar a década de 50 e o ambiente da favela; de tons cinza para construir a cadeia
da Ilha Grande e a vida dos presos políticos durante os anos 70; uma fotografia “limpa”
para retratar os ambientes atuais), a montagem com muitos cortes “entre épocas” e o uso
de atores diferentes para encenar o mesmo personagens em vários tempos auxiliam
nesse aspecto de continuidade. O espectador consegue separar as diversas
temporalidades e, simultaneamente, passa a estabelecer relações de causalidade entre as
ações das personagens e suas “origens”.
Curiosamente, Narradores de Javé é apresentado de um modo que será
contradito em seguida, uma vez que a cisão empreendida a partir da fala de Zaqueu (o
som do sino seguido pela imagem que o mostra sendo tocado em um pequeno vilarejo)
contrapõe a estética inicial e o tempo a ser narrado: a rapidez das colagens visuais e
musicais e a encenação no tempo presentes são substituídas por uma montagem com
menos cortes e uma fotografia mais ‘limpa’ (ou naturalista, no caso da representação do
vilarejo) ou em que determinadas cores são ressaltadas (para marcar o passado
memorial ou mítico e quem relembra esse passado – isto é, a posição ocupada por este
na narrativa). Isso revela, dentre outros, a disputa pelos lugares de autoridade em narrar
as diversas histórias – o povoado já extinto; o povoado em vias de extinção; a fundação
do vilarejo – e como essa disputa evidencia os tempos disjuntivos nos quais a nação é
constituída.

119
É importante frisarmos que, ao contrário de Quase Dois Irmãos 313 , Quanto
vale... não possui um personagem que conduza toda a história, sendo que isso se reflete
na forma como o passado é retratado: além de mudanças na fotografia (ora fica
amarelada, ora enegrecida), há uma instância fora do texto que se concede a autoridade
de narrar a história: uma voice over (interpretada por Milton Gonçalves) cuja fala
impostada e sem alteração de tom assume um ar farsesco e cínico. Narradores..., ao
invés de um personagem, alterna diversos pontos de vista: Zaqueu; Antônio Biá (José
Dumont) e os diversos moradores que relatam as histórias de seus antepassados. Em
resumo: Quase Dois Irmãos evidencia uma temporalidade contínua; Quanto vale...,
superposta; Narradores, disjuntiva.
Colocada a questão da representação temporal, vejamos como o passado se
insere na diegese dos filmes. Em Quanto vale..., vários fragmentos deste aparecem
imersos em uma narrativa que se liga ao presente e ao cotidiano das grandes cidades e
de um novo ator social, as ONGs. Há uma relação de contigüidade entre as duas
temporalidades, construída a partir da questão racial. Essa postura é ratificada, por
exemplo, no elo entre a diretora de uma ONG e uma senhora que revende escravos
(ambas interpretadas pela mesma atriz, Ana Lúcia Torre) e na seqüência em que há a
exposição de objetos de tortura para escravos, que se revela, na montagem, o sonho da
personagem Arminda (Ana Carbatti), cuja presença em uma festa (realizada em uma
favela) nos remete ao tempo presente.
O aspecto mercantil presente na escravidão é perpetuado pelo assistencialismo
contemporâneo, que vilipendia as economias do Estado em prol dos interesses de uma
elite burocrática. Devemos acrescentar que o mercantil não é específico da escravidão
brasileira, configurando uma esfera de negociação em várias sociedades e em vários
tempos 314 . O que diferencia a constituição de nossa nacionalidade, no filme, é a lógica
mercantil marcada pelo signo da crueldade que, aliada à dimensão trágica, conduziria a
práticas raciais e de classe que reproduzem o sistema escravo crata no tempo presente.
Recuperemos a discussão empreendida por Homi Bhabha a respeito das
narrativas nacionais. Segundo o autor, a nação seria “uma forma obscura e oblíqua de
viver a localidade da cultura. Essa localidade está mais em torno da temporalidade do

313
Cuja centralidade de Miguel na narrativa logo será avaliada.
314
A título de exemplo, poderíamos citar desde os casamentos entre nobres, durante a Idade Média,
estudados por Georges Duby em L’Europe du Moyen Age, até as tribos analisadas por Marcel Mauss em
Essais sur le don. Forme et raison de l’échange dans les sociétés archaïques, lembrando que a escravidão
enquanto prática social remonta à Antigüidade.

120
que sobre a historicidade (...)”315 [grifos do autor]. Além disso, a nação se constitui em
uma ambivalência narrativa, entre os discursos da pedagogia e do performativo. O
primeiro se pauta pela continuidade e pela construção de uma identidade ao longo da
história; o segundo pela constante necessidade de re-significar as narrativas nacionais
no cotidiano, explicitando a instabilidade do jogo identitário. Nas palavras de Bhabha,
cuja indagação pode nos auxiliar aqui:

“As contra-narrativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas


fronteiras totalizadoras – tanto reais quanto conceituais – perturbam aquelas
manobras ideológicas através das quais as “comunidades imaginadas”
recebem identidades essencialistas. (...) Enquanto um limite firme é mantido
entre os territórios e a ferida narcísica está contida, a agressividade será
projetada no Outro ou no Exterior. Mas e se considerarmos, como venho
fazendo, o povo como a articulação de uma duplicação da interpelação
nacional, um movimento ambivalente entre os discursos da pedagogia e do
performativo? (...) A nação não é mais o signo da modernidade sob o qual as
diferenças culturais são homogeneizadas na visão “horizontal” da sociedade.
A nação revela, em sua representação ambivalente e vacilante, uma
etnografia de sua própria afirmação de ser a norma da contemporaneidade
social” 316 .

Deslocada da teleologia do progresso, a nação de Quanto vale... é constituída


através de um jogo de ironias que destitui o pedagógico de sua autoridade para conferir
ao performativo um lugar de destaque na narrativa racial. Através do par “branco-
negro”, o filme estabelece a construção das identidades e a presença da violência na
origem das relações raciais. Voltemos à primeira seqüência do filme: a voice over lê
uma sentença que condena a negra alforriada Joana por ofensas morais e raciais a um
senhor branco, configurando a primeira ironia do filme e contrariando a expectativa do
espectador. A isso, reforça o fato com o peso do documento, trazido à diegese por meio
da inserção de uma referência ao Arquivo Nacional.
A relação de contigüidade temporal é superposta à contigüidade racial: o negro
se constitui pelo olhar do branco e vice-versa; as instâncias de branquidade são
explicitadas no filme. Dos senhores, passamos aos diretores de ONGs e à alta elite
burocrática. A violência “original” da escravidão é revivida pela “mercantilização” da
imagem das minorias: o olhar de Arminda durante a gravação de um comercial sobre
meninos negros e pobres, cuja fantasia os vê amarrados em fila – como escravos - ou,
em outro momento, em que vê um capitão-do-mato transitando em uma festa no Teatro
Municipal de São Paulo pode ser interpretado como a mise-en-scène do conflito racial.

315
BHABHA, Homi. O Local da cultura. Belo Horizonte, UFMG, 2005, pág. 199.
316
Op. cit., pág. 211-212.

121
Aqui, o performativo fílmico (das personagens) remete diretamente ao extra-fílmico (da
sociedade brasileira): a necessidade de explicitar as categorias raciais na narrativa
funda-se no desejo de se repensar a raça enquanto discurso identitário e, em
contrapartida, “devolve” ao espectador um mal-estar ocasionado pelo desmascarar do
mito da democracia racial317 .
Relacionando isso aos usos do passado, vejamos um exemplo. A voice over faz
asserções sobre o uso de instrumentos de tortura na escravidão: “o tronco é indicado
contra fuga de escravos reincidentes. Para colocar o escravo no tronco, abrem-se suas
duas metades, colocando nos buracos o pescoço e os pulsos. O tronco estimula o
espírito de humildade e subserviência, forçando a imobilidade e impedindo o escravo de
se defender de moscas ou mesmo fazer suas necessidades fisiológicas”. A narração é
acompanhada de um movimento giratório do instrumento tronco com a personagem
Arminda dentro dele, o que contrapõe a objetividade e o aspecto expositivo daquela à
agonia desta. O performativo, nesse momento, explicita-se no choque entre imagem e
som, o que concede à voice over um tom farsesco, que se vale do discurso pseudo-moral
e didático do século XIX para naturalizar a manutenção de uma ordem “racializada” e
as atrocidades cometidas em prol do sistema escravocrata.
Ainda podemos mencionar que a evocação da tradição teatral – por meio do
realce de cinco atores com instrumentos de tortura em um palco, com um feixe de luz
indicando a presença destes – e sua incorporação ao filme são feitas para ressaltar a
dimensão de código e de prática da escravidão. Assim, reforçam-se as categorias raciais
enquanto um “real” codificado e ideológico, cuja funcionalidade reside em ocultar os
desmandos de uma elite racialmente hierarquizada 318 .
Aliás, sobre os discursos raciais em voga no século XIX, eis como Ortiz avalia a
sua recepção no Brasil:

“O processo de “importação” pressupõe portanto uma escolha da parte


daqueles que consomem. A elite intelectual brasileira, ao se orientar para a
escolha de escritores como Gobineau, Agassiz, Broca, Quatrefages, na

317
Utilizamos a palavra mito em duas acepções: Malinowski e o funcionalismo, para o qual o mito tem
uma função (no caso em questão, o mito como reprodutor de uma ideologia nacionalista que apazigua
quaisquer conflitos); além do mito como lugar da farsa, algo bastante difundido nos movimentos sociais
que contradizem as formas de imaginação da comunidade nacional.
318
É interessante recordar ditos como “o dinheiro embranquece” ou que os sistemas de classificação
racial sobrepunham-se aos de classe na passagem da sociedade escravocrata para a capitalista, sendo isso
percebido na reticência em se classificar um membro da elite intelectual ou financeira como ‘negro’ ou
‘preto’: Machado de Assis e Lima Barreto são ‘amulatados’ para e pelo discurso oficial vigente na época,
por exemplo.

122
verdade não está passivamente consumindo teorias estrangeiras. Essas teorias
são demandadas a partir de necessidades brasileiras, a escolha se faz
“naturalmente”. O dilema dos intelectuais do final do século é o de construir
uma identidade nacional”319 .

À ironia do filme contra as teorias geográficas e biológicas da raça, adiciona-se


esse caráter de “seleção” das idéias. O autor destaca que a noção de “cópia” é um fator
que mobiliza o debate de idéias dentro das instituições, para tanto criticando a dualidade
normalmente estabelecida entre autêntico e inautêntico no plano intelectual e nacional.
Segundo Ortiz, não existe propriamente uma identidade nacional, mas sim “uma história
da “ideologia da cultura brasileira”, que varia ao longo dos anos e segundo os interesses
dos grupos que a elaboram” 320 . Desse modo, as teorias biológicas vinculadas à noção de
raça, as teorias do marketing contemporâneo e as teorias sociais modernas, tal como
expostas em Quanto vale..., poderiam ser classificadas dentro da disputa pelo poder de
nomear, empreendida nos campos político, acadêmico e audiovisual.
Outra autora, Lilia Schwarcz, também avalia a recepção das teorias raciais do
século XIX no Brasil. Dentre outros, é importante destacar que a autora, ao avaliar a
carga moral imposta à análise da presença considerável de índios e negros na população
brasileira, destaca o papel de diversas instituições nesse processo (institutos históricos e
geográficos; escolas de medicina e de direito) e evidencia a categoria branco não apenas
como agente, como também uma categoria racial que se valia de uma dupla obliteração.
Essa se fazia expressa na ‘neutralidade’ institucional e no lugar de autoridade
conferido por estas instituições, que não apenas situavam o branco no ápice da cadeia
evolutiva, como também eram capazes de produzir uma invisibilidade em torno das
categorias raciais e da naturalização do ‘ideal de branqueamento’. Desse modo, o
branco enquanto ‘raça’ era uma prática mobilizada no cotidiano e nas práticas letradas,
ao mesmo tempo em que a carga valorativa atribuída a este – beleza, honestidade,
ordem etc – ao serem disseminadas, mantinham um vínculo difuso – notadamente
lingüístico – com o mesmo 321 .

319
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo, Brasiliense, 1988, pág. 30.
320
ORTIZ, Renato. A Moderna tradição brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1988, pág. 187.
321
Poderíamos inferir que as teorias da criminologia auxiliaram na construção do estigma das populações
não-brancas, ao conceder uma ‘cientificidade’ à construção da figura do criminoso. Um vestígio da
recepção dos valores ligados à branquidade e da construção do estigma nas próprias populações
marginalizadas é a obra de Cruz e Souza, poeta brasileiro que, enquanto negro cidadão do final do século
XIX, elaborou diversos poemas exaltando o branco como ‘alvo’, ‘límpido’, apropriando-se do
vocabulário racis ta da época de modo a produzir uma estética simbolista na poesia brasileira (que se
pautava justamente pela transcendência do ‘branco’ e do ‘celestial’), tal como representado no filme Cruz
e Souza – o poeta do desterro, de Sylvio Back (1999).

123
Logo, a humildade e a subserviência – as quais se refere a voice over e
exemplificadas na tortura dos escravos - são tidas como valores construídos na
expectativa das relações raciais, justamente pela imposição de uma hierarquia
racialmente difusa. Através desses valores, são superpostos o passado escravocrata e as
ONGs atuais, inclusive para obstruir uma transformação social baseada na igualdade
(também racial), e não somente na ‘democracia’.
A contigüidade entre passado e presente é explicitada logo na seqüência
seguinte, em que há um comercial protagonizado por crianças pobres (e, em sua
maioria, negras) e a análise imediata de um gerente de marketing Marco Aurélio
(Herson Capri), em uma reunião cujo propósito é “captação de recursos”. O comercial
veicula, ao som de uma música instrumental melancólica, imagens de crianças sujas,
dormindo na rua, chorando, para uma campanha de uma empresa chamada “Sorriso de
criança”. A isso, Marco Aurélio reage afirmando que a “estratégia” está ultrapassada e
que “a imagem do produto deve estar vinculada ao êxito”.
Reificando a miséria 322 , o discurso da personagem ratifica o marketing enquanto
o lugar de afirmação das concepções de uma elite burocrática, intelectual e financeira na
manutenção de uma ordem social que oblitera seu aspecto racial. Aliás, essa lógica da
reificação aparece em vários momentos no filme, configurando uma “ponte” na relação
passado-presente: na senhora que revende escravos (Ana Lúcia Torre), no momento da
compra, tocando em dois escravos como se avaliasse um objeto; na diretora da ONG
(interpretada pela mesma atriz) gravando depoimentos de mendigos que vomitam após
ingerir um líquido verde (um suposto “extrato natural”), o que é ratificado na estética do
próprio filme, pois a imagem que mostra o desespero de uma mendiga negra aparece em
vídeo (ressaltando o aspecto de “registro”, logo, como objeto mercantil).
É interessante avaliarmos, nesse ponto, como o filme transpôs um dos contos de
Nireu Cavalcanti. Na seqüência do escravo Adão e do senhor Bernardino, o filme relê a
história do capoeirista Adão, preso em uma roda após um homicídio e condenado a
quinhentas chibatadas e a dois meses de trabalhos forçados em obras públicas - pena
relaxada pelo pedido de seu dono ao juiz, visto que teria seu sustento inviabilizado,
alegando que seu escravo tinha cometido um leve deslize, mas era via de regra
cumpridor de seus deveres. No filme, Adão é alugado e indevidamente acusado de
roubo, espancado e trancafiado em uma cadeia pública como indigente.

322
Valemo -nos do conceito de “reificação” de Marx, tal qual explicado por Peter Berger e Thomas
Lückmann em A Construção social da realidade.

124
Numa comparação entre ambos, o filme salienta a reificação pela voice over
(“Bernardino resolve processar Sebastião Soares, pois este havia deteriorado o seu
patrimônio”) e pela imagem, na qual o senhor avalia o escravo como um mero objeto,
tocando-o com dedos envoltos em um lenço e insensível aos gritos de dor deste (Adão
encontra-se com diversos sangramentos e hematomas pelo corpo em virtude do
espancamento). Além disso, retira a falsa caridade do conto original e enfatiza, em vez
dela, o aspecto mercantil das relações raciais, sendo o mesmo ressaltado em como se dá
o acesso ao Judiciário no conto e no filme. Enquanto no primeiro, a lógica
predominante é a da caridade (do juiz para com o senhor e do senhor para com o
escravo), no filme a caridade desaparece para sublinhar a disputa entre dois senhores, ou
seja, um conflito interno à ordem e com base unicamente na idéia de propriedade. O
pedagógico – a ênfase na escravidão – alia-se aqui ao performativo – a ressonância do
mercantil nas relações contemporâneas.
Passemos a outro conto livremente adaptado em Quanto vale.... . Em Pai contra
mãe, Machado de Assis relata a história do amor entre Candinho e Clarinha, o primeiro
um mulato sem profissão que vira capitão-do-mato, a segunda branca órfã que vivia
com sua tia Mônica. O conto se pauta por uma narrativa cujo clímax é o estado de
extrema pobreza do casal - que chega ao ponto de quase serem despejados - contrastado
com a ânsia de liberdade da escrava Arminda que, grávida, foge de seu senhor. O
encontro malogrado para esta última resulta em seu aborto espontâneo e na salvação do
casal, uma vez que Candinho recebe a recompensa monetária pela captura de Arminda,
podendo pagar assim suas dívidas. Por meio da metáfora final (“Nem todas as crianças
vingam, bateu-lhe o coração”), o autor infere, implicitamente, que a vida de negros
possui um valor socialmente menor que a vida de brancos e de mestiços e, ainda, que
existe uma hierarquia de facto na apreciação (individual e coletiva) de quais
vidas/trajetórias serão valorizadas ou não.
No filme, o paralelismo entre passado e presente, partindo do conto, é produzido
a partir das representações de capturas de escravos e dos assassinatos ‘encomendados’
atualmente. Câmera mostra muro com diversos cartazes de escravos fugidos e dá um
close no cartaz da escrava Arminda (Ana Carbatti, que interpreta no passado e no
presente personagens homônimas). Capitão-do-mato anônimo arranca o cartaz. Na cena
seguinte, Arminda molha o rosto à beira de um riacho quando é violentamente
surpreendida pelo capitão-do-mato. Este a arrasta até seu dono, sendo o aborto de

125
Arminda e sua extenuação contrapostos ao relato da voice over: “com a recompensa, o
capitão-do-mato poderá criar seu filho, alimentá- lo, educá-lo”.
Candinho (Silvio Guindane), agora um desempregado morador da Grande São
Paulo, é mostrado como um matador ‘de aluguel’. Casado com Clarinha (Leona
Cavalli) e vivendo com ela e sua tia Mônica (Cláudia Mello) em uma casa no subúrbio
(retratada como de classe média baixa, o que é identificável pela mobília e pelo aspecto
físico), Candinho é o assassino, no primeiro final, de Arminda, então ex- funcionária da
ONG comandada pelo corrupto Ricardo Pedrosa (Caco Ciocler). A repetição da voice
over (“com a recompensa, o capitão-do-mato poderá criar seu filho, alimentá- lo, educá-
lo”), amparada pela imagem da foto de Candinho, Mônica, Clarinha e um bebê branco
configura a superposição de práticas passadas e presentes no tocante ao ideal de
branqueamento: o duplo assassinato de fetos que seriam futuramente negros e o
contraste com a vida de bebês brancos revelando o potencial genocida deste ‘ideal’.
Lembremos que a metáfora machadiana foi substituída por um discurso
pleonástico e metonímico, uma vez que podemos considerar a imagem final do filme (a
foto já citada) um reforço da (des)valorização de vidas já expostas diegeticamente e
uma mise-en-abîme do argumento desenvolvido no filme. Sendo assim, a operação
lingüística assume uma conotação política, no sentido de destacar o conflito como
prática mobilizada nas relações raciais e como inerente à produção de uma ordem
hierárquica definida, entre outros, pela raça.
Sobre a representação da história na cultura de massa, o historiador Stephen
Bann assim se refere: “not content with invading and assimilating traditional media, the
representation of history became the practice of new, intense modes of popular
spectacle like the diorama and the new types of educational display like the historical
museum”323 . Ao perceber a história enquanto uma prática discursiva difusa na
comunicação de massa desde o século XIX, Bann percebe esta última como uma
instância fundamental para compreender como a comunidade de receptores se vê imersa
em um ‘desejo de história’, isto é, como se dá a produção de uma ‘consciência histórica’
através da qual os receptores passam a delimitar e diferenciar práticas passadas e atuais,
além de conferir uma escala valorativa de acordo com as disputas retóricas e políticas
em que estes são inseridos. Poderíamos inferir, ainda, que a imagem de Brasil, ao se
fazer presente na tela de cinema ou de TV, também possui uma “materialidade”, que

323
BANN, Stephen. Romanticism and the rise of history. New York, Twaine Publishers, 1995, pág. 4.

126
interrompe a temporalidade na qual o espectador se encontra imersa e o desloca para
outras, construídas no filme.
Em Quanto vale..., esta diferenciação se dá a partir do tipo de registro pretendido
no filme: a montagem menos evidente das passagens referentes à escravidão e a
profundidade de campo das mesmas contrapondo-se às colagens entre seqüências
(passa-se da teoria do século XIX à favela atual e, posteriormente, à publicidade
televisiva e ao discurso de marketing em menos de quatro minutos) que se situam no
presente histórico do espectador.
Desse modo, o performativo contido nos filmes interpela as imagens já
representadas ao espectador, fazendo com que este tenha um esforço de re-significação.
Especificamente, Quanto vale..., ao explicitar as instâncias nas quais o imaginário
coletivo se constitui (televisão, publicidade, música popular, história, sistema
educacional, etc), revela a dimensão de código e de seleção assumida na encenação do
passado nacional e, mais que isso, que tipos de interesse/ideologia pautam as narrativas
e contra-narrativas nacionais.
Retornemos ao ponto de partida, isto é, à primeira seqüência de Quanto vale... .
Velha negra grita “larga ele!”, tentando inutilmente empurrar o capitão-do-mato que
acorrenta um escravo. Joana, atordoada, exclama: “o que está acontecendo?! Esse
escravo é meu! Vocês não podem fazer isso! Entrar na minha propriedade e levar o que
é meu!”. Voice over de Milton Gonçalves acompanha a fotografia bem escura e os
planos marcados por uma movimentação lenta e pela profundidade de campo:
“Madrugada de 13 de outubro de 1799. Nos arredores da capital do Vice-Reinado, uma
expedição encomendada de capitães-do-mato capturam escravos em residências da área
rural. Dentre as presas está Antônio, retirado de uma pequena chácara de propriedade de
Joana Maria da Conceição. Ao presenciar o confisco de seu escravo, Joana reúne
documentos, forma uma pequena comitiva e parte atrás dos capitães mata adentro. Joana
é uma mulher forte. Alforriada e agindo conforme o sistema, acumulou recursos para
comprar escravos que a auxiliassem em sua pequena propriedade. Agora Joana fora
roubada. E acreditando na justiça e na força coletiva, junta seus vizinhos para cobrar e
enfrentar o mandante da expedição”. A imagem sublinha um pequeno grupo de pessoas
seguindo Joana (Zezé Motta) pela mata e atravessando uma ponte. Capitão-do-mato
abre porta e João (Antônio Abujamra) atende, ao que Joana inquire: “Ah, o senhor é o
responsável por essa injustiça! O senhor está me roubando! O senhor é um ladrão!
Lugar de ladrão é na cadeia!”, agarrando-o e fazendo com este que quebre uma

127
lamparina. E Joana continua, sendo filmada em close up: “Use de violência! A minha
violência está aqui, nos meus papéis! Nos meus direitos!”. Plano geral em que Joana
dispara: “branco ladrão!”. Após isso, vemos uma cena em que Joana posa com seus
escravos para uma suposta fotografia, sendo a mesma contrastada pela leitura de uma
sentença pela voice over condenando Joana por “ofensas morais e raciais ao senhor João
Fernandes”.
O primeiro aspecto a ser levado em consideração é a atuação dos negros libertos
na esfera pública do sistema escravocrata. Em Preto no branco, Skidmore atribui à
presença destes a diferença entre a possibilidade de se afirmar um sistema de
classificação bi-racial (como no caso dos EUA e da África do Sul), com uma hierarquia
social racionalmente separada e justificada e um sistema de classificação ‘difuso’ ou
‘multirracial’, no qual raça é somente um de vários atributos e, por isso, muitas vezes é
obliterado, inclusive por políticas oficiais (censo, políticas educacionais etc). Assim,
Skidmore opõe a violência do primeiro à ambigüidade política presente no segundo.
Já o filme realiza uma operação inversa: centraliza a ação de uma negra liberta
para justamente revelar o racismo e o sexismo das instituições oficiais, além da
pessoalidade acobertada por estas - isto é, como qualificações subjetivas ligadas à
classe, raça, religião, gênero etc incidem em diferentes acessos às instituições, e
apreciações por parte destas - no caso o Judiciário. Ao fazer isso, Quanto vale... percebe
o sistema ‘multirracial’ enquanto dotado de uma violência material (o roubo do senhor
branco e as agressões desesperadas de Joana) e simbólica (a condenação judicial), para
tanto desnaturalizando a violência igualmente simbólica contida no peso dos
documentos de Joana, sublinhando o conflito como prática e inferindo que o peso
atribuído a este é fundamental para compreender a hierarquia social atual (lembrando o
aspecto superposto da temporalidade construída no filme).
O aspecto expositivo desta primeira seqüência é desautorizado pela leitura
falsamente séria da sentença judicial e pela ‘foto’ de Joana com os escravos. Na
verdade, a pose para a foto é um procedimento fílmico para enfatizar o corte visual e
sonoro – pelo barulho de uma câmera fotográfica (uma vez que a fotografia foi tornada
popular em meados do século XIX e o ano retratado é 1799) – e a encenação de um
poder reproduzido nas relações cotidianas (a centralidade de Joana e a periferia ocupada
por seus escravos é radicalizada no close desta que encerra a seqüência). O filme
estabelece, desse modo, uma relação entre passado e presente a partir da blasfêmia, isto

128
é, uma representação que primeiro se situa dentro de parâmetros realistas para ser
posteriormente invertida, assumindo pela ironia sua dimensão de farsa.
Poderíamos analisar também a operação feita pelo filme em torno da escravidão.
Retirando esta do panorama da ‘histoire évenementielle’324 nacional brasileira (isto é, a
escravidão como um ‘fato histórico’), o filme, ao inseri- la pela ação de diversos
personagens, ressalta sua dimensão de prática mobilizada no plano cotidiano das
relações de poder. À história oficial que a relata como um processo congelado e
vergonhoso, o filme - valendo-se da pedagogia desta ao mesmo tempo em que a
contesta - opõe vários dramas partindo de relações como vizinhança, amizades e
desavenças. Essas mises-en-abîmes constroem em seu conjunto um panorama da
presença da hierarquia racial no cotidiano e indicam o performativo na contestação
desta hierarquia feita por alguns personagens (Arminda, que confronta o discurso
‘assistencialista’ do executivo Ricardo e, no passado, resiste o máximo possível à
investida do capitão-do-mato).
Já Quase Dois Irmãos, por sua vez, traz ao espectador sua construção dual no
título, além da idéia de um “momento original”, personificada na relação entre Jorginho
e Miguelzinho desde a infância. Afinal, quase dois irmãos são “quase” filhos da mesma
mãe – a nação Brasil. Aqui, o pedagógico assume a sua narração masculina; afinal, o
filme tem sua história iniciada com a amizade desses dois garotos - que é a continuidade
dos laços de amizade de seus pais Miguel, um jovem jornalista de classe média branco
(Fernando Eiras) e Jorge, um sambista negro e pobre (Luis Melodia), cuja relação é
evidenciada através do samba e dos espaços sociais retratados e mencionados (as rodas
de samba na favela e os almoços de domingo no prédio do jornalista). Assim, temos a
encenação do “mito” da democracia racial, cuja continuidade é marcada no nome dos
próprios filhos.
Aliás, confere-se a essa amizade um aspecto inicial de fábula. O primeiro plano
do filme mostra uma mão montando um quebra-cabeça, que revela a imagem de
Cinderela presente nos livros infantis. As personagens brancas do conto são substituídas
pela imaginação do garoto Miguelzinho que, à medida que sua mãe narra a história de
uma mulher européia que ascende socialmente (Cinderela era uma doméstica na casa de
uma mulher que, junto com suas três filhas, a maltratava) e dança em um baile, passa a
imaginar um casal de mestre-sala e porta-bandeira negros desfilando. Ao final, interpela

324
Adjetivo irônico utilizado pelos historiadores da École des Annales ao se referir à prática
historiográfica que combatiam.

129
a fala etnocêntrica de sua mãe: “Mas mãe, que samba eles estavam dançando?”. Aliás, a
ocupação de doméstica de Cinderela como alvo de uma redenção (pois esta vira
princesa) funciona como uma prática em torno da hierarquia entre as mulheres, visto
que o lugar de classe ocupado pela personagem e sua transformação remetem-se ao
plano fílmico (nas personagens D. Rosa e D. Helena) e extra- fílmico (o papel social das
domésticas enquanto signo da manutenção de uma ordem racialmente imposta).
Esse intercâmbio de práticas entre mãe e filho confere à democracia racial sua
primeira descrição fantástica em Quase Dois Irmãos. Curiosamente, a própria teoria
social refere-se ao contato racial como “fábula das três raças” (nomenclatura de Roberto
DaMatta). Nesta primeira seqüência, encena-se um contato e não um conflito,
caracterizando a primeira ambigüidade exposta no tocante à questão racial: expor ora
sua viabilidade (que pauta boa parte das práticas discursivas cotidianas e letradas –
inclusive o pensamento social, nas figuras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda, sendo que os mesmos são retomados no me io acadêmico, dentre outros, para
polarizar o debate sobre raça), ora sua dimensão conflituosa (o que será feito em outros
momentos no filme).
Caberá às personagens femininas a contestação do lugar dessa fábula/mito. As
personagens D. Rosa (Janaina Carvalho/Dja Marthins) e D. Helena (Sílvia
Buarque/Marieta Severo), esposas de Jorge e Miguel, entrarão em cena para marcar a
narrativa pelos signos da raça e da classe. Por meio da montagem paralela, o espectador
assiste simultaneamente ao lamento de ambas, sendo que as cenas possuem o mesmo
enquadramento: personagens próximos à câmera, planos fechados e os personagens
masculinos mudos, reagindo apenas por gestos. “O síndico já pediu uma reunião de
condomínio por causa das suas feijoadas de domingo. Isso aqui não é uma favela,
Miguel!” (Helena); “Tu nunca mais vendeu um samba; nunca mais caçou um trabalho;
nunca mais botou dinheiro dentro de casa” (Rosa); “Eu não sou racista. Não sou racista.
Mas eu não agüento mais!” (Helena); “Eu passo a semana inteira na casa da patroa.
Quando chega sábado e domingo, tu tá enfiado na casa do doutor!” (Rosa).
O performativo, isto é, o “construir o povo na performance da narrativa, seu
“presente” enunciativo marcado na repetição e pulsação do signo nacional” 325 é trazido
à encenação pelas personagens femininas, que colocarão claramente o ethos das duas
categorias raciais presentes: a lógica da sobrevivência (marcada pelo cotidiano da

325
Op. cit., pág. 209.

130
favela, espaço geográfico habitado e representado por negros) e da aparência aliada à
contenção (referente ao espaço social da classe média), imprimindo à narrativa nacional
sua primeira cisão. Isto é: a lógica da monumentalidade pela qual se pauta a nação é
contraposta aos discursos do cotidiano, possuidores de lógicas diversas à afirmação da
primeira e que, portanto, explicitam a distribuição de poder.
É necessário retomar uma reflexão empreendida por Judith Butler em Problemas
de gênero. A autora atribui a si a tarefa de avaliar, em seu livro, duas instituições
definidoras da sociedade capitalista atual: o falocentrismo e a heterossexualidade
compulsória. Para tanto, recusa a buscar uma “origem” do gênero, percebendo as
articulações em torno deste enquanto “efeitos de instituições, práticas e discursos cujos
pontos de origem são múltiplos e difusos”326 . No filme, o aspecto falocêntrico reside na
narrativa que concede aos homens o lugar de autoridade tanto nas práticas quanto nos
discursos (o próprio discurso da “narrativa total” do filme, uma vez que a mesma é
referente ao personagem Miguel, e as micro- narrativas mobilizadas pelo filme – no
ambiente prisional, na favela dos anos 50 etc, sendo o lamento das personagens Helena
e Rosa o signo da impotência diante da situação enfrentada por ambas); a
heterossexualidade compulsória, além de ser expressa (por uma regra da cadeia que
proíbe “pederastia”), é uma das bases pela qual os conflitos serão estabelecidos
(recordemos a continuidade na representação do tempo em Quase Dois Irmãos para
sublinhar que os dilemas do caso amoroso de Juliana (Maria Flôr) e Deley são
percebidos como um fio narrativo da questão racial – no filme, desde a década de 50 até
hoje); ademais, o sexo – no caso, a heterossexualidade – representado nas narrativas
míticas como a forma de contato entre as três “raças fundadoras” da nacionalidade
brasileira – aparece novamente assumindo-se como lugar de intercâmbio - dessa vez
entre raças e classes - no Brasil atual.
No filme, falocentrismo e heterossexualidade compulsória aparecem
reafirmando um ao outro, conferindo à nação sua voz de autoridade masculina. Na
seqüência em que Miguel e Jorginho conversam, na cadeia, sobre o rompimento do
namoro de Miguel, ambos são encenados de modo a desautorizar o feminino enquanto
autônomo, mais uma vez ressaltando a potencialidade do sexo na tensão entre ordem e
subversão. Na prisão, Peninha (Fernando Alves Pinto) faz uma massagem em Miguel
enquanto escuta o desenlace de sua relação com Ana (Jerusa Franco): esta o “trocou”

326
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2003, pág. 9.

131
por outro militante político (Miguel ironiza seu comportamento: “ela cumpre o seu
dever revolucionário e dá uma trepada comigo uma vez por semana! Sem culpa porque
me contou!”). Na cena seguinte, eis como Jorginho e Miguel dialogam: Jorginho entra
na cela de Miguel com um pandeiro, batuca-o e pergunta: “e aí, vamo tirar um som?”. À
negativa de Miguel, Jorginho reage com revolta, afirmando que este deveria mandar
matar o novo companheiro de Ana para “aprender a não se meter com mulher de preso”.
“Porra, mermão! Tu assalta, seqüestra e ainda não aprendeu a ser macho, não?! E não
tem essa de companheira, não! É filha da puta!”. Zomba do comportamento de Miguel e
suas cartas de amor e a almofada que bordara para Ana, então sua namorada.
Finalmente, incita Miguel a chamá-la de filha da puta e iniciam um batuque.
Aqui, o estereótipo da mulher que assume sua sexualidade como “puta” adquire
uma funcionalidade: reafirmar a ordem masculina e obliterar momentaneamente a
desigualdade (social e racial) nela contida, para isso enfatizando as práticas em torno do
masculino (a ironia às cartas de amor; a vontade de mandar matar o amante; assaltos;
seqüestros). Além disso, projeta na mulher as tensões da ordem masculina/falocêntrica
(representada pela prisão e pela militância política) e afirma a “culpa” enquanto
instrumento de opressão (uma vez que, na ausênc ia desta, a mulher ver-se-ia
desimpedida em seu campo de ação). Sobre esta seqüência, é preciso afirmar, ainda, que
a mesma é um dos poucos momentos no filme em que Jorginho é retratado enquanto
sujeito da enunciação, visto que cabe a ele conduzir a conversa e afirmar a sua
percepção do papel de Ana como a preponderante (via de regra, Jorginho é um dos
objetos construídos pela enunciação do poder de nomear representado por Miguel).
Barco em alto mar. Convés com muitas mulheres. Câmera se aproxima de D.
Helena, primeiro em plano médio, e depois corta para um close que evidencia sua
tristeza. Voice over de Miguel (Caco Ciocler) descreve os pensamentos de sua mãe: “A
vida que sonhamos determina a vida que vivemos. Minha mãe assistiu, perdida, a
sonhos que não eram seus, mas que passaram a determinar uma vida que passou a ser
dela”. Ao colocar D. Helena enquanto objeto discursivo e cinematográfico, deslocando
a sua construção como personagem e agente, explicita-se mais uma vez o falocentrismo
como instituição que oblitera a ação do feminino. Nesse ponto, ainda há a possibilidade
de comparar a geração como categoria identitária, uma vez que se traça a oposição entre
a jovem Ana, revolucionária, politizada e que assume a liberdade inclusive via
sexualidade e D. Helena, que subsiste a desejos formulados no campo de ação de outras
personagens masculinas – seu marido e seu filho, o que situa a família enquanto uma

132
relação que atua no sentido de reproduzir tanto o falocentrismo quanto a
heterossexualidade compulsória e, portanto, fundamental para a continuidade das
relações de classe e inter-étnicas.
O lugar da geração e da família enquanto práticas discursivas é acentuado na
seqüência seguinte. O diálogo entre Miguel e sua mãe, durante a visita no presídio, é
bastante elucidativo: “Mãe, não dá pra bancar o sofisticado aqui dentro. Tem que dividir
o que tem”; “Igualzinho ao seu pai! Se ele estivesse vivo, ele ia adorar ouvi você
falando assim!”; “Papai gostava de samba, não de revolução”; “Revolução mesmo
vocês fizeram na minha vida”; “Dona Helena, tudo o que tem povo no meio!”; “Povo,
bagunça e sofrimento!”. A relação contemplativa da hierarquia social – marcada pelo
samba – cede espaço a uma radicalidade condizente com o momento político
(endurecimento do regime militar, avanço político das esquerdas no plano internacional,
Guerra Fria etc) e articulada via práxis militante pela geração de Miguel e Ana. Em
seguida, ressalta-se a pessoalidade articulada, por meio da família, dentro de um regime
marcado pelo discurso oficial não-personalista: “Miguel, os amigos do seu pai não têm
a menor força com esses militares! E a minha família você sabe como é, né? Fica
quieto! Você tá vivo, salvo!”.
Retornando à dualidade expressa no título do filme, esta acompanhará toda a sua
narrativa e marcará o conflito entre os dois ethos ligados à raça. Entre o primeiro
choque já mencionado, o filme o liga ao conflito dentro da cadeia dos anos 70 entre
presos políticos e presos comuns (em sua maioria, negros) e ao drama pessoal
contemporâneo de Miguel - ao ver sua filha envolvida com um chefe do tráfico em uma
favela.
Devemos fazer uma breve pausa para relatar como a narrativa articula o
pedagógico e o performativo. É necessário fazer menção à análise de Benedito Nunes
sobre a obra de Paul Ricoeur:

“Como produtos da cultura, atalhando a hybris reflexiva da fenomenologia,


os textos não proporcionariam somente a mediação do conhecimento de si
mesmo. Proporcionariam, também, em última instância, o conhecimento do
mundo por meio do mundo da obra. A coisa do texto é a sua saída para o real
pelo próprio plano da configuração, que lhe garantiria o potencial de uma
nova referencialidade”327 .

327
NUNES, Benedito. Narrativa histórica e narrativa ficcional. In: RIEDEL, Dirce Côrtes. Narrativa,
ficção e história. Rio de Janeiro, Imago, 1988, pág. 15-16.

133
Essa atividade de configuração, segundo Nunes, seria responsável por “integrar
fatos dispersos na totalidade de uma história, liga num só conjunto fatos heterogêneos e,
ainda – terceira função mediadora – sintetiza a dimensão episódica dos fatos com a
dimensão da história como um todo”328 .
Portanto, podemos interpretar o dualismo presente na narrativa de Quase Dois
Irmãos enquanto uma atividade configuradora, que apreende as categorias raciais
representadas dentro da totalidade de uma história e do pensamento social para
explicitar o conflito entre os dois ethos.
Por meio da atribuição de características aos persona gens Miguel e Jorginho -
sendo o primeiro o formulador e seguidor das regras coletivas impostas dentro da cadeia
(“Aqui não se rouba, não se fuma maconha e não tem pederastia”) e o segundo uma
“tragédia anunciada” (tal como caracterizado por Miguel em uma voice over) e marcado
pela lógica da sobrevivência – constroem-se as instâncias em que o par “branco- negro”
tem sua identidade configurada. A branquidade aparece como o campo em que as regras
sociais são formuladas, cabendo ao negro o papel de se adequar a elas. Sendo assim, o
passado do filme teria sua “referencialidade” no poder em que a branquidade se apóia
para nomear a realidade e formular regras dentro e fora do microcosmo do presídio.
Tendo analisado como o filme relaciona as três épocas retratadas, indaguemos
sobre como o tempo é construído internamente em cada época. Plano geral mostra roda
de samba em fotografia amarelada e indicando “1957 – Favela Santa Marta”. Menino
branco sorri para pai, que está circundado por sambistas negros. Todos cantam: “Quem
me vê sorrindo, pensa que sou alegre”. Jogo de futebol no presídio da Ilha Grande.
Letreiro “1970” é mostrado. Presos vivem a rotina do lugar, marcada por regras.
Deputado Miguel visita o traficante Jorginho, cujo letreiro “2004 – Presídio de
Segurança Máxima Bangu I” indica a proximidade temporal entre fato e espectador.
O que essas passagens possuem em comum? O tempo cíclico, experimentado
pelos personagens como se estes reproduzissem um lugar da “origem” – o Éden - e,
portanto, ao qual deveriam retornar. O tempo como ciclo é enfatizado em uma
superposição temporal feita pelo filme: na cadeia de 2004, Jorginho (Antônio Pompeu)
pergunta: “A que devo a honra da visita, Doutor?”, ironizando o termo “Doutor”, ao que
Miguel (Werner Schünemann) contesta: “Pára com este Doutor, Jorginho!” e
novamente recebe uma observação irônica: “Ou você prefere que eu te chame de

328
Op. cit., pág. 14.

134
companheiro?”. Corte para jogo de futebol na favela Santa Marta. Jorginho (Pablo Belo)
“ginga” na frente de Miguel (Bruno Abraão), o dribla é dá um chute para o alto. Câmera
mostra bola em plano destaque. Envolta por uma fotografia amarelada, a bola tem sua
trajetória acompanhada de um match cut (com a transformação para uma imagem
cinzenta). Miguel (Caco Ciocler) joga futebol em uma partida no Presídio da Ilha
Grande. Desse modo, enfatiza-se a malandragem como uma forma de sociabilidade
entre classes exaltada justamente por apaziguar possíveis conflitos oriundos de
diferenças sociais, raciais, de gênero, religião etc, ao mesmo tempo em que se evidencia
o seu papel de conservadora de uma ordem social.
O tempo como ciclo é evocado por Miguel durante sua prisão na “surda” (hoje,
seria a “solitária”). Após ser trancafiado devido a uma confusão durante a visita dos
parentes, Miguel relembra sua infância e seu convívio com o espaço da favela cantando
um samba: o bater de suas mãos é cortado pela sua imagem como criança m uma roda
de samba na favela, acompanhando o casal de mestre-sala e porta-bandeira mostrado no
início do filme (“o ódio não apaga o meu universo! É a revolução em sua legítima
razão!”; “é o samba prestando sua homenagem aos heróis da liberdade”), sendo a
imagem relacionada a povo alternada a palavras como “revolução”, “heróis” etc – o que
revela o caráter prospectivo do discurso de Migue l e, simultaneamente, o modo como o
povo é percebido no mesmo.
Todavia, esse aspecto cíclico do tempo é “quebrado” na narrativa através de um
fato que o “interrompe” e instaura nele uma continuidade. Como o filme realiza essa
operação? Nas três épocas, lembrando o papel do negro e do branco. Seja em 1957
através do lamentar das mulheres (já explicado neste texto), seja na década de 70 pelo
acirramento dos conflitos étnicos na cadeia, cujo clímax é a construção de um muro
dividindo a galeria em duas partes, seja pelo romance de Deley – traficante negro –com
a filha branca de Miguel, a instabilidade produzida no tempo cíclico e evidenciando
uma continuidade neste produz a visibilidade do conflito racial no qual os personagens
se reconhecem enquanto agentes. Nada como a fala de Jorginho na cadeia para ratificar
o exposto aqui: “Rico pra lá, pobre pra cá! Branco pra lá, preto pra cá!”. Lembremos,
ainda, que, durante a primeira briga entre presos comuns e políticos (logo em seguida
avaliada), a ofensa racial se faz presente: “Aqui, meu irmão, a gente tem que mostrar
valentia é com a administração do presídio. Aqui é todo mundo igual!”; “Igual é o
caralho! E eu lá tenho cara de índio?” (Pingão, interpretado por Babu Santana).

135
Deter-nos-emos no conflito entre presos políticos e comuns para tentar
compreender como a questão racial é aqui desenvolvida. Partindo da noção de senso
comum como uma objetivação partilhada da realidade e como a possibilidade de
ordenar o caos das múltiplas subjetividades 329 , poderíamos inferir que as regras de
sociabilidade então impostas na cadeia provinham do senso comum presente na práxis
política, auto-referenciada como “revolucionária” e construída no embate cotidiano com
a administração do presídio da Ilha Grande.
A construção de “presos comuns” e “presos políticos” como categorias é
mostrada na prisão de Jorginho. Este chega à delegacia algemado por dois policiais.
Camburão estaciona em frente ao prédio e dele descem quatro jovens que se despem
recusando a usar uniformes. Câmera opõe o close de Jorginho e o ato dos jovens: “Nós
somos presos políticos! Reivindicamos o tratamento segundo a convenção de Genebra!
Recusamos a usar uniformes!”. Fotógrafo que acompanha a cena é interpelado por
militar: “A máquina ou o filme!”. Jorginho ri para um deles, que retribui. A
diferenciação presente no senso comum, desse modo, foi apresentada ao espectador.
As seqüências da greve de fome, da chegada de Jorginho à Ilha Grande e de seu
espancamento pelos guardas constroem a luta num crescendo que ressalta o papel de
Miguel enquanto protagonista: obtém sucesso na liderança da greve de fome; consegue
inserir Jorginho nela e impedir que este seja assassinado pelos guardas, graças ao
protesto (o bater das canecas na porta gerando um barulho insuportável) que lidera no
momento que Jorginho é retirado a pancadas de sua cela. Quase Dois Irmãos confere à
“luta” um papel de categoria analítica dessa objetivação partilhada na cadeia,
transformando-a não apenas em instrumento retórico como também atividade
configuradora do habitus, já que as referências a ela conferem ao enunciador um lugar
de autoridade 330 . Essa enunciação encontra-se expressa no filme, através da voice over
de Miguel no momento da deflagração da greve, alternada com a imagem do guarda
(Jandir Ferrari): “não aceitamos mais essa situação, visto que representa a reafirmação

329
Cf: BERGER, Peter e LÜCKMANN, Thomas. Os fundamentos do conhecimento na vida cotidiana.
In: Op. cit., pág. 68.
330
Devemos fazer uma breve menção à crítica de Bourdieu aos ‘interacionistas’ (dentre os quais podemos
situar Berger e Lückmann), afirmando que estes, ao enfatizar a interação social como a experiência mais
importante no contato direto com os “outros”, se esqueciam de que o poder de nomear situa-se no embate
entre diversos campos e entre as diversas posições ocupadas pelos agentes no espaço social. Neste
trabalho, esta crítica será assimilada no sentido de não apenas interpretarmos as construções dramáticas
das personagens como ‘interações’, como também tentar avaliar como as práticas discursivas são
disputadas por diferentes agentes e em relação a certos campos (no caso de Quase Dois Irmãos,
notadamente o campo político, presente através de seu aparato policial-repressor, de um lado, e da
ideologia política de esquerda da década de 60, de outro).

136
do tratamento policial-repressivo, o que é amplamente facilitado pelo isolamento
geográfico e social da Ilha Grande. Vendo esgotadas todas as outras formas de
conseguirmos as nossas reivindicações, fomos impelidos a entrar em greve de fome, até
que nos sejam garantidos os direitos fundamentais e respeitada a nossa dignidade de
presos políticos”.
A chegada de um contingente maior de presos comuns simultaneamente à
conquista da liberdade por parte dos presos políticos - simbolizada no contraste entre a
saída de Peninha e a chegada do bando de Pingão, o que é marcado pela semelhança da
posição da câmera na porta do presídio nesses dois momentos, cuja profundidade de
campo é a mesma - altera não apenas a demografia do presídio como também a disputa
pela construção do senso comum partilhado dentro dele. Aliás, a relação assumida pelo
bando com o presídio já na chegada – o deboche-blasfêmia – configura uma alteração
que será posteriormente acentuada (Jorginho se refere ao presídio como “palácio”, ao
que Pingão responde “vim conferir a minha suíte presidencial” e, ao ouvir a ordem do
guarda, retruca: “olha o cara querendo gorjeta!” sendo acompanhado pelo riso de todos
os presentes).
O primeiro contato entre o “comitê de recepção” dos presos e o bando de Pingão
antevê a relação conflituosa entre os antigos e os novos presos. Durante um jogo de
dados do bando de Pingão, a interrupção dos presos políticos para anunciar as regras da
cadeia revela-se um malogro. Miguel anuncia que ele e os outros presos fazem parte da
“representação do coletivo” e que veio informá- los das regras para que os novos presos
se integrem o mais rápido possível, ao que Pingão constata: “ah, são vocês que mandam
nessa porra aqui!”. Aloísio (Bruce Golemvsky) o interrompe: “aqui ninguém manda em
porra nenhuma! Todas as decisões são votadas pelo coletivo!”. Inicia-se uma discussão
na qual Miguel tenta evocar um lugar de autoridade recordando as melhorias no
ambiente prisional graças à atuação dos antigos presos e suas ações na guerrilha: “Aqui
não tem nenhum bundão não, senhor! Aqui todo mundo já roubou, já matou, já
seqüestrou!”, ao que Pingão desautoriza de imediato através do escárnio coletivo:
“Roubou o quê? Doce de criança? Matou barata no canto?”. Culmina-se com uma briga
generalizada interrompida por Jorginho: “Pingão já entendeu, não é mesmo Pingão?!”.
À oposição entre presos políticos e comuns, adiciona-se o dualismo na
representação entre brancos e negros. Mesmo que não haja a identificação total entre
presos políticos e brancos, de um lado, e presos comuns e negros, de outro, é possível

137
inferir essa divisão a partir de uma composição étnica majoritária dos grupos e do
próprio binômio Miguel-Jorginho, cujo referencial encontra-se na questão racial.
A ida de Jorginho ao presídio é a primeira mise-en-scène dessa oposição: na cela
daqueles que vão para a Ilha Grande, Jorginho protesta inutilmente contra a norma de
não fumar maconha (“Peraí?! Não pode dar um dois?! Porra, mermão! Isso não é uma
cadeia!”), sendo lembrado do “poder coletivo” dos presos que lá se encontram. Na sua
chegada, ao gritar zombando os presos políticos, um guarda assim o interpela: “Vamos
embora que isso aí não é contigo não!”. Mesmo após ironizar a greve de fome dos
presos (“quer dizer que eu vou ter que beber água que nem um camelo e dormir feito
um bode velho?”), adere a ela, o que lhe vale um espancamento, sendo esse episódio
também é marcado pelo signo da raça. Guardas invadem sua cela aos gritos: “Seu negro
filha da puta! Quer dizer que agora teu negócio é fazer greve de fome?!”. A música
instrumental de Nana Vasconcelos - que remete aos espancamentos de negros durante a
escravidão - acompanha as batidas do cassetete de um guarda e o sangramento de
Jorginho, misturando-se ao som das canecas batidas contra as portas de aço e
destacando a fala do guarda: “Negro subversivo! Não existe negro subversivo!”.
O filme constrói a adesão de Jorginho às práticas discursivas dos presos políticos
enquanto uma conversão, articulada principalmente a partir de Miguel, revelando o
branco em seu lugar iluminista. Aos poucos, Jorginho passa a adquirir o vocabulário da
política militante (a ponto de, após separação pelo muro, afirmar que o seu lado era o
dos “políticos proletários”) e suas práticas (recolhimento de donativos para financiar
fugas; recrutamento político dos presos comuns; condenação da pederastia – presente
em uma cena em que Jorginho impede Pingão de continuar uma exposição vexatória de
presos vestidos de mulher e desfilando), sendo um importante aliado na conquista dos
presos comuns e o mais resistente à separação dos presos, reagindo com uma fala
virulenta e irônica à proposta “revolucionária” (“Quer dizer que os nossos filhos vão
estudar na mesma escola, que a gente vai ser tudo igual? Porra! Se vocês não querem
ficar com a gente nem aqui dentro!”). O performativo contido em seu discurso, dessa
forma, ora alia-se à instância pedagógica da revolução (e, por que não dizer, da nação),
ora expõe suas contradições.
Além da militância política, o filme apresenta um tema correlato a este: o fim
das utopias como prática discursiva de uma esquerda política. Após pegar alguns
recortes de jornal, Miguel constata com espanto: “Mataram o Marighela”. Um súbito
desânimo se abate sobre ele e Peninha, provavelmente pela percepção do fracasso da

138
luta armada como estratégia política. Esse fim da utopia é trazido à representação pela
construção do muro separando presos políticos dos comuns, signo da inviabilidade do
projeto pensado por Miguel (metonímico da prática das esquerdas).
Um aspecto da continuidade temporal construída em Quase Dois Irmãos refere-
se à criminalidade. Alternando a formação do Comando Vermelho na cadeia dos anos
70 e seu desenlace nos conflitos das favelas cariocas atuais, é interessante notar a dupla
operação historiográfica efetuada pelo filme: ao eleger a criminalidade em torno do
tráfico enquanto drama e ao propor a busca de uma “origem” do mesmo, seleciona-se
como a violência é apreendida pela história, ou seja, existe uma tentativa de se construir
uma história do tempo presente delimitando o narcotráfico como “fato histórico”.
Devemos salientar, no entanto, que isso ocorre em nome da contenção do material
fílmico (cujo modelo afirmado é o produto audiovisual de duração de aproximadamente
90 minutos) e não pelo filme produzir uma história composta por “fatos”: ao contrário,
este sublinha o cotidiano obscurecido nas narrativas históricas oficiais cuja base em
“acontecimentos” é pautada pela linearidade e pela ausência de conflitos.
Entretanto, para avaliar o papel desta criminalidade, o filme recupera duas
categorias analíticas caras ao século XIX – civilização e barbárie – relacionando-as à
questão racial. Tendo concedido o poder da enunciação a Migue l e o poder de formular
regras aos presos políticos, contrapondo a estes a blasfêmia dos presos comuns e o ethos
personificado por Jorginho (“lei de Talião” – “quem não tiver com a gente, a gente
passa!”) e por Miguel (“amigo, eu não quero a morte como solução”), a representação,
ao mostrar o assassinato em massa empreendido pelo primeiro contra o bando de
Pingão, após a separação motivada pelas ameaças deste aos presos políticos, situa o
poder branco ao lado da civilização – a partir da constituição de redes de solidariedade -
e a apropriação do negro deste poder junto a barbárie – a instabilidade nas
solidariedades dos presos comuns e do narcotráfico.
A própria separação dos prisioneiros foi alvo de polêmicas entre os presos
políticos. “A gente tem que pedir a separação da galeria. (...) A médio prazo, estamos
correndo risco de vida. Eles estão cagando na nossa cabeça!” (Aloísio); “Isso é um
pensamento pequeno-burguês de quem quer refazer a luta de classes aqui dentro. A
gente tem que ganhar os caras nem que seja no método deles”; “Método? Que método?
Você quer eliminar quem não concorda com a gente? É assim que os caras funcionam!
Eles têm uma visão mafiosa do mundo!”; “Vocês estão tendo atitude de separar o
povo!”. Aqui, o povo assume sua disjunção narrativa: ‘demonizado’ por uma visão e

139
romantizado por outra (é necessário afirmar que a teratologia e o romantismo
configuram duas visões bastante comuns formuladas por intelectuais a respeito do
povo).
Passemos a Narradores de Javé. Este também traz em seu título a instância pela
qual a narrativa cinematográfica será mediada: o vínculo entre a memória e a narrativa
oral dos moradores do vilarejo de Javé. A estrutura tri-temporal do filme é permeada
pelo ato de narrar: Zaqueu, no presente, narra a história de seu povoado aos
freqüentadores do bar, cujo narrador dotado de autoridade, Antônio Biá, recolhe as
histórias míticas da “origem” do povoado partindo do relato de vários moradores. A
memória ativada pelo ato de re-contar.
O primeiro ponto a ser destacado dessas histórias é o embate entre tempo
passado/memorial e tempo presente/contínuo, o que configura seu aspecto disjuntivo e,
portanto, uma metáfora da narrativa nacional. De que modo esse embate é posto na
mise-en-scène? Para isso, é preciso referir-nos à reflexão de Flora Süssekind sobre a
busca pelas origens:

“A obsessão pela origem – entendida como começo histórico – o que


pode trazer consigo? Linhas duplas, linhas de sombra, mapas e
marcos de terras inundadas e formigueiros, em vez de reafirmação de
essências e atemporalidades. Pois demarcar de forma concreta origens
é simultaneamente historicizá -las e descartar possíveis solenidades.
Ou, como observou Michel Foucault em “Nietzsche, a genealogia e a
história”, se “a origem está sempre antes da queda, antes do corpo,
antes do mundo e antes do tempo”, “do lado dos deuses”, “e para
narrá-la se canta sempre uma teogonia”, o começo histórico seria
“baixo”, “irônico”, “próprio a desfazer todas as enfatuações””331 .

Em Narradores..., logo de início é apresentado o motivo por essa “obsessão


pelas origens”: a necessidade de salvar a cidade de uma inundação e, por conseguinte,
evitar seu desaparecimento. O leit motiv da narrativa de Zaqueu no presente sofre um
corte que remete o espectador ao vilarejo, por meio do som das badaladas de um sino. A
ágora reunida dentro da igreja tem sua caracterização calcada no sonoro - o ruído de
inúmeras vozes gritando e falando ao mesmo tempo e no imagético – a oposição campo-
contracampo entre Vado (Rui Resende) e Zaqueu, de um lado e os moradores, de outro.
Essa alternância será acentuada pelo relato de Zaqueu sobre o provável destino
de Javé (ser inundada pelas águas) e o imediato protesto barulhento dos moradores.

331
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador e a viagem. São Paulo, Cia. das Letras,
1990, pág. 15.

140
Ante a situação calamitosa, Zaqueu, ao saber que a cidade só não seria inundada se
fosse considerada patrimônio e, portanto, tombada, compartilha com os presentes sua
idéia: tornar Javé patrimônio por meio da escrita de um livro sobre suas origens, as
“histórias grandes que [os moradores] vivem contando e re-contando”.
Em primeiro lugar, está traçado o paralelismo entre a origem do vilarejo e da
nação pela retórica do patrimônio. Além disso, o próprio ato narrativo como a
possibilidade de acesso à memória seria outro ponto em comum, porém com uma
diferença: enquanto a memória coletiva 332 do vilarejo se pautaria pela necessidade de
lembrar para se afirmar como patrimônio, a memória nacional seria posta em evidência
pelo esquecimento (das constantes tensões que a afligem, seja por questões de classe,
raça, disputa de terras etc). Todavia, o aspecto de cientificidade que muitas vezes
reveste a memória nacional, enquanto condicionante da formação de um patrimônio,
também será imposto a essa memória local para que a mesma seja tombada. “Os
homens disseram que só não inundam a cidade quando ela tem alguma coisa
importante, de valor, história grande (...) Aí vira patrimônio e eles não mexem (...) Só
que tem uma coisa: tem que ser, assim, científico!” (Zaqueu); “E que coisa é essa
científica, Zaqueu?” (morador); “Científico é... É que não pode ser essas pataquaras,
essas patranhas mentirosas que vocês gostam de contar!”. Desse modo, o científico
aparece como algo externo à realidade do vilarejo e difícil de ser nomeado; a
monumentalidade reivindicada pelos moradores se constitui num hiato entre a história
oficial e a necessidade de salvar Javé.
Sendo o povoado habitado por analfabetos em sua grande maioria, há uma
dificuldade em se achar quem irá escrever o livro sobre o vale do Javé. Aliás, o livro
como formato eleito para a narração das “origens” revela o peso da escrita no ideário
nacional e na retórica estatal: somente os vestígios das origens podem ser acessados e
estes devem, logo, possuir um assento, um registro. Há, ainda, o livro enquanto
circulação de um saber letrado, sendo isso levado em consideração na escolha do
“narrador” onisciente: mesmo a contragosto, os moradores elegem Antônio Biá à
posição de escriba (lembrando que, ao pronunciar o nome de Biá, Firmino recebe
muitas vozes de protesto na reunião dentro da igreja).
A presença de Biá (José Dumont) como personagem pode ser avaliada a partir
de dois modos: (des)autorização e blasfêmia. O filme, pela fala de Zaqueu, constrói Biá,

332
Categoria de Maurice Halbwachs.

141
inicialmente, pela blasfêmia: plano detalhe mostra escritos na parede de sua casa – com
destaque para “morto em 1950”; “nascido em 2025”; “intelectuário (sic) e alcoólatra”,
já apresentando a personagem por sua ironia. Além disso, este foi escolhido pois,
mesmo tendo difamado por cartas parte dos moradores (o filme mostra, em close up,
seu prazer em escrever as cartas para salvar o emprego de encarregado de um posto de
correios), reconhecia-se o seu “estilo”. É bastante sintomático que se tenha escolhido
um narrador de histórias “não-oficiais” para reunir a “história oficial”: o filme, por meio
de Biá, retrata que a construção do lugar de autoridade do narrador, ao contrário de ser
unânime, encontra-se em disputa com as outras histórias dos moradores, além do fato de
que essa disputa pelo poder de nomear e de formular regras deve ser constantemente re-
encenada, seja pela re-elaboração das histórias, seja pela decisão de qual(is) história(s)
deve(m) fazer parte da “odisséia do vale do Javé” e, finalmente, seja pela necessidade
de reafirmar o domínio da escrita como legítimo e dotado de especificidade.
A associação com a narrativa nacional é imediata, afinal, poderíamos conceder à
história de Javé o lugar de metonímia da formação nacional brasileira, tal qual
oficialmente concebida (não é gratuito que a primeira história exposta seja a de
Indalécio, um colonizador português, sendo seguida pelas narrativas ‘desautorizadoras’
de Maria Dina, uma índia assimilada ao bando de Indalécio e pela de Indaleu, um
guerreiro africano fundador de uma tribo). Todavia, ao enfocar uma personagem cuja
blasfêmia é uma prática discursiva, o filme retira o oficial de seu lugar de neutralidade,
afirmando-o como mais uma das possíveis formas de escrita.
Vejamos como Biá processa o discurso presente nos relatos históricos da origem
de Javé. Vicentino (Nelson Dantas), descendente “indireto” do patriarca e guerreiro
português Indalécio, retira de uma caixa (mostrada em plano destaque) dois objetos:
uma imagem de São Jorge, saudada por Vicentino com um sinal da cruz, e um revólver
antigo (“garrucha”), ambos signos da colonização portuguesa - as bases religiosa e
militar, respectivamente – conferindo à “odisséia” uma autoridade referente à nação.
“Essa garrucha que o senhor está vendo já esteve nos punhos de Indalécio”
(Vicentino). Som e imagem de jovem guerreiro cortam a narrativa: interferência do
tempo narrado no tempo da ação. “Indalécio era um homem seco, duro, sistemático, era
um homem que nunca dizia sim quando queria dizer não!”. Imagem de homem a cavalo.
“Pra ele, as coisas só tinham uma medida! Aposto que ele nunca descia do cavalo! Vivia
em cima da sela, que era pra estar pronto pra guerra a qualquer momento!”. O arquétipo
do herói ocidental se faz presente na história de Javé através da narrativa de Vicentino,

142
sendo o mesmo caracterizado a partir de uma similitude entre o comportamento do
narrador e do narrado (Vicentino tenta construir um ponto de visto “seco”, “objetivo”;
no entanto, seu esforço não é bem-sucedido, uma vez que a catarse também se realiza
pela ativação da memória, sendo isso percebido em seus gestos enfáticos).
A imagem do jovem guerreiro Indalécio é superposta à voice over de Vicentino
para que o espectador visualize o “retorno” às origens de Javé. Montagem alterna planos
médios e closes de Indalécio a planos gerais com várias pessoas caminhando por um
matagal. “Foi ele quem guiou nossos antepassados, um punhado de gente valente, que
era sobra de uma guerra perdida. Tinham sido expulsos de suas terras de origem por
ordem do Rei de Portugal, que queria tomar o ouro que era deles! Pois Indalécio,
mesmo ferido, foi trazendo seu povo pra longe, em busca de um lugar seguro. Mas
Indalécio não atinava com o lugar certo. Ele queria ir mais longe, distante de braço de
governo, de Rei! Andaram dias, meses, trazendo nas costas o sino, que era a coisa mais
sagrada que eles possuíam! E Indalécio mergulhou naquele mar de bois, escolheu o
mais bonito e mais gordo. Matou! E levou pra matar a fome de nossa gente! Não disse
uma palavra e... ei! O que você está fazendo que não está anotando? [dirigindo-se a
Biá]”.
A narrativa situa Indalécio na posição de sujeito histórico, dotado de
características ligadas ao arquétipo do herói - bravura, luta contra o poder instituído,
manejo habilidoso de armas – cabendo a seu bando o papel de objeto na narrativa das
origens (a cisão é trabalhada na imagem, conferindo a Indalécio um destaque por planos
mais próximos, enquanto seu bando era indissociado, “genérico”). Notemos que é a
mesma operação que a história oficial constrói sobre o povo – heróico, porém somente
caracterizável por ações e, portanto, “sem cara”, sendo que o papel de “grandes
homens” ou “heróis nacionais” escolhidos, via de regra, por critérios formulados dentro
de uma elite intelectual- financeira. Na maioria dos casos, esta destacava um de seus
membros – bravos, letrados e, logo, dentro de seus parâmetros – para reafirmar a ordem
via história nacional.
Essa construção entre herói e povo também é cara ao gênero épico, do qual o
filme momentaneamente se vale (principalmente quanto as práticas se ligam à
legitimação da “versão oficial” da história de Javé que, inclusive, é vista como a
possível salvação). Pode-se ligar o épico ao patrimônio, uma vez que a exaltação das
“origens” cara ao primeiro é determinante na nomeação do que pode ou não vir a ser
tombado.

143
Devemos, ainda, inferir que Vicentino, mesmo um homem simples, possui um
status político relevante por ser descendente do patriarca fundador da cidade: eis a
autoridade da qual se vale um homem branco, católico e de idade avançada e que,
portanto, se posiciona de modo privilegiado dentro de um espaço social que concede
autoridade à branquidade, à heterossexualidade e ao cristianismo.
Vicentino reage ao descaso de Biá, que não anota nada do que está narrando.
Adotando estratégias de blasfêmia, Biá contesta a história de Vicentino (“essa história
de boi não tá muito boa, não! Quem vai dar um boi assim, de graça? Só se for boi de
camelô!”) e se apropria desta, modificando-a: “os dias pareciam não ter fim e aquela
gente guerreira, de tanta fome, quase não mais respirava. Aí passa por eles aquela
boiada imensa, gorda, um dilúvio bovino! Eh, boi! Eh, boi! Aquele mundo, aquele mar
de bois, capaz de fazer verter lágrimas (...) Mas tinha muita gente armada guardando
aquele bovil. Bovil é um canil de boi. Então Indalécio pensou numa alta estratégia de
guerra: (...) ele chamou dois homens de seu bando, os mais valentes. Mas ele não
chamou por nomes... Ele usou onomatropias (sic), a língua dos bichos. [Biá reproduz o
barulho de um passarinho e de uma onça]. Um se chamava Rolinha e o outro era Zé-da-
onça. E mandou os homens rastejarem, se lagartearem pelo bovil. Escolheram o boi
mais gordo e o calçaram, arrastando-o devagarinho sem que ninguém percebesse, sem
dar um tiro! Mas com tamanha bravura e esperteza!”. Confere à narrativa um lugar de
saga coletiva e, mesmo não tirando totalmente o protagonismo de Indalécio, insere
pessoas do bando que passam a sujeitos da história: eis uma disjunção na representação
do povo – opondo a passividade do primeiro registro a uma participação maior no
segundo. O épico é parcialmente substituído pelo drama, porém não sem ser “punido”
pelo olhar de Vicentino, bastante contrariado com a alteração de sua história.
Entretanto, as duas histórias possuem em comum a exaltação do lugar da
origem. Ao contrário de um mito distante da realidade dos moradores, o narrar das
origens revela que este confere à vida cotidiana significação e, além disso, distribuição
de poder e prestígio dentre os mesmos. Não pertencendo ao universo do cotidiano, as
personagens presentes nas histórias míticas podem ser consideradas enquanto
“arquétipos”, uma vez que são capazes de configurar valores a serem entronizados na
vida comum (honra, honestidade etc) e através dos quais os processos de
endoculturação serão avaliados (Biá é justamente punido por desobedecer o código de
honra, sendo rejeitado e visto como outsider duas vezes). O uso da expressão “dilúvio
bovino” por Biá, uma clara referência à bíblia, ao ligar religião, região e nação, remete a

144
uma característica de ambas articulada na urgência da produção do livro-dossiê: o
desejo de perpetuidade/eternidade que, num gesto cíclico, impele a procura pela
“origem”.
Contrapondo-se à história de Vicentino, Deodora (Luci Pereira) relata a atuação
de sua ancestral Maria Dina (na sua história, interpretada também por Luci Pereira),
justificando a ausência desta na versão “oficial” da fundação de Javé pelo fato de ser
mulher. Acrescentaríamos aqui o fator étnico, já que Maria Dina era uma índia
assimilada aos costumes portugueses do bando de Indalécio. No entanto, os
procedimentos retóricos das versões de Vicentino e de Deodora são os mesmos
(inclusive, o procedimento do filme assemelha-se: Maria Dina é destacada do bando por
planos conjuntos, médios e closes; todavia, precisamos sublinhar que, enquanto
Indalécio é mostrado à frente do bando e construído em sua relação com este por meio
de campos e contra-campos, Maria Dina é um elemento destacado desse bando, como se
fosse um “adendo” à história oficial). O tom de solenidade para com o patria rca e
guerreiro é mantido, evidenciado na tristeza de Maria Dina diante da constatação do
óbito de Indalécio (vai até o cavalo conduzido pelo patriarca e pega na sua mão gélida).
Vendo o grupo passar fome, Maria Dina “desaparece por um dia e uma noite”.
Retornando, o conduz onde foi levada pelos “pássaros da noite” e canta as divisas de
Javé. Aqui, natureza e cultura se aliam na estrutura mítica: a primeira torna-se
submetida à vontade de perpetuidade da segunda; isto é, a natureza enquanto ente a ser
dominado pelos degradados/guerreiros em retirada para a reprodução da hierarquia
social (algo semelhante ao que se passa nas imagens da nação brasileira, em que
paisagens narradas por viajantes, nos séculos anteriores à Independência, configuraram,
ao lado de pinturas, gravuras e cartografias, a principal mediação na formação política
nacional, havendo posteriormente a necessidade de se ordenar essas paisagens via
narrativas na produção de sentido de uma nação em construção 333 ).
Um dado interessante é a interrupção momentânea do relato de Deodora por
Vado, indignado com o fato de ela classificar os antepassados como “fugitivos”.
Relembrando o aspecto de bravura destes, salienta que eles não saíram fugidos, mas sim
“em retirada”, fornecendo uma explicação de ordem lógica: “em retirada porque eles
saíram de cara para o inimigo” (o que reforça a monumentalidade da origem).

333
Eis a tese defendida por Flora Süssekind em O Brasil não é longe daqui: o narrador e a viagem.

145
Sobre essa relação entre natureza e cultura, é importante destacarmos as “divisas
cantadas”: já mencionadas por Zaqueu e ironizadas por Souza (Matheus Nachtergaele),
essa era a forma de domínio da natureza e de aquisição de propriedade. Ao atribuir à sua
matriarca o fato de ter demarcado as divisas, Deodora lhe confere o poder de nomear o
que era Javé; sendo assim, subverte o falocentrismo na nomeação do nacional e insere a
mulher no jogo político, revelando que as mulheres são “menos ouvidas do que os
homens [a respeito do projeto nacional]”334 . O pedagógico que acrescenta mais um
personagem à história oficial conjuga-se com o performativo que privilegia um narrador
que explora as fissuras das fronteiras da nação.
Entretanto, isso não passaria incólume. Além de não conseguir obter a atenção
de Biá (este dorme durante sua narração), sua história seria em seguida ridicularizada
por Firmino. Incorporando a blasfêmia à retórica da busca pelas origens, Firmino se
valerá do maior limite a ser transgredido por esta: a escatologia. “Indalécio não morreu
em cima do cavalo... Morreu foi agachado, por causa de uma disenteria... E sabe quais
foram de verdade as últimas palavras de Indalécio? “Viver de tanto em tanto... pra
morrer cagando em todo canto!” Cagando em todo canto!”. Gargalhadas dos moradores
acompanhadas por uma crise de risos de Biá (mostradas em closes e em planos médios,
o que acentua a comicidade da desautorização e o aspecto farsesco da intervenção de
Firmino).
Aliás, associa-se a narrativa deste a uma interferência visual e sonora: a
fotografia amarelada contrastada ao ambiente da casa de Deodora e o barulho de cigarra
à voz de Firmino, o que situa sua fala no plano de oposição às narrativas já veiculadas
de Indalécio e Maria Dina. O jovem Indalécio, de branco guerreiro montado em um
cavalo, passa a ser um nordestino montado em um jegue (o próprio Firmino), além de o
sofrimento do bando - exibido em planos gerais retratando o esforço destes em
caminhar e arrastar o sino - dar lugar a uma alegria exposta nos gritos e na cantoria do
“patriarca” reproduzidos pelo grupo.
Ao saltar do jegue, solta uma flatulência sonora e, desesperado, corre até o
matagal para defecar. “Ih, de novo?” (mulher do bando); “Ô, disenteria da molesta!”
(Indalécio), segurando a barriga. Câmera evidencia uma profundidade de campo a partir
de seu movimento apressado. Depara-se com uma mulher índia e velha deitada em um
triângulo desenhado por pedras vermelha, Música regional acentua o suspense da cena.

334
WALBY, Silvia. A mulher e a nação. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org). Um mapa da questão
nacional. Rio de Janeiro, Contracampo, 2000, pág. 259.

146
“E o que é isso que ainda fala?” (Firmino); “Não é isso, é essa! Maria Dina! Quem é
ocê?” (Maria Dina aparece como uma velha louca que conduz um rito de possessão)
“Nós somos gent e guerreira, gloriosa, que saímo fugido... quer dizer, fugido não, saímo
foi em retirada! Expulsaram a gente das nossas terras porque tinha ouro e pra longe nós
caminhamos por mais de...” (Firmino). É fortemente interrompido por um “Psiu!”
prolongado de Maria Dina. “É o sinal! Hi hi! É ocê mesmo, home! Que eu tenho de guiá
e alumiá!”. Gargalhadas mútuas, interrompida por outro “psiu!” truculento de Maria
Dina. “Mas pra me guiá e alumiá já basta esse sol de cada dia, vice?”; “Mas de noite ocê
não tem quem te alumia! Aqui! Ocês fica tudo aqui! Porque quando clarear o dia, não
vai ter nenhum pássaro piando, mas quando vier a outra noite [corta para Firmino
contando na casa de Deodora e sua fala se superpõe à de Maria Dina] os pássaros vão
avoar invertido, ao contrário, tomando a noite pelo dia, levando ocês tudo pras terra que
serão sua, pra ocês viverem em graça, enterrar seus mortos! E vão levar ocês pro quinto
dos inferno! Há há há !”. O deitar de Maria Dina nas pedras é reproduzido por Firmino
no presente e interrompido subitamente por Deodora, que fica indignada com a
blasfêmia.
Mais uma vez, a relação entre natureza e cultura é realçada: porém, dessa vez, ao
invés de legitimar uma narrativa oficial, a vôo “ao contrário” dos pássaros, remetendo
os ouvintes ao fantástico, acentua a farsa enquanto elemento articulador da história de
Firmino, o que a coloca como contra-narrativa à monumentalidade da “odisséia” de
Javé. Além disso, o protagonismo concedido a um nordestino e o paralelismo possível
entre o bando de Indalécio e a imagem de retirantes consolidada via literatura regional
(Graciliano Ramos, por exemplo) deslocam a branquidade enquanto lugar de autoridade
historicamente consolidado e situam o grotesco enquanto forma narrativa de ‘inversão’,
atribuindo às partes baixas e às necessidades fisiológicas um papel de recordar aos
ouvintes o humano presente nas meta-narrativas.
A possessão como elemento narrativo remete a uma outra categoria identitária: a
religião. Aqui, ela é usada para marcar a blasfêmia na caracterização da matriarca Maria
Dina, o que evidencia o desprestígio dos ritos de possessão diante de uma religiosidade
pautada pela referência à Igreja Católica. Além disso, vários signos lingüísticos e não-
lingüísticos ligados à religião afluem a Narradores de Javé, sendo o sino alçado a
objeto mítico – uma vez que está presente antes mesmo da fundação de Javé,
acompanhando o sofrimento dos antepassados. Este ainda faz-se presente no drama
vivido na Javé em vias de desaparecimento (marcando os momentos dramáticos do

147
mesmo – a reunião na igreja, o louco visionário que o toca com fúria) e, ao final, é
levado pelos moradores, configurando um signo de uma possível memória do futuro,
ativada na memória oral- lingüística (tal qual exposta na fala de Zaqueu no bar atual e
por certas expressões usadas pelos moradores de Javé como “exu de galinheiro”;
“tapioca de exu”; “quinto dos infernos”).
A escatologia do relato de Firmino também pode ser considerada pela
perspectiva religiosa, visto que o “fim do mundo”, representado pelo fim do
microcosmo de Javé, faz-se presente nos três tempos representados no filme. Das
práticas escatológicas (defecar, flatulência etc), passamos à representação escatológica
cuja matriz religiosa entra em conflito com as outras histórias sobre as “origens
javélicas”: do Dilúvio já mencionado por Biá, Firmino passa ao fantástico para salientar
o destino dos moradores de irem “para o quinto dos infernos”, fundindo passado e
presente. Por fim, a escatologia ligada à religião é sublinhada, ainda, na cena final, em
que os moradores assistem impotentes ao alagamento da cidade (lembrando que as
únicas construções possíveis de serem parcialmente vistas são a igreja e o campanário).
A disputa entre Firmino e Deodora sobre qual história deve estar no livro
também articula a escatologia, desautorizando o status de herói de Indalécio: “eu
também ouvi isso, que Indalécio morreu cagando. Era um homem valente, mas morreu
mesmo foi se esmerdeando!” (Dona Maria, moradora de Javé que escuta as histórias);
“Eu não to nem aí, minha filha! O cu era dele, cagasse à vontade!” (Deodora). Após a
votação proposta por Biá, não se consegue decidir qual história agregar à narrativa das
origens e Biá, bastante irritado, interrompe a confusão instaurada ressaltando o seu lugar
de autoridade e evocando em seu favor o discurso científico, cuja suposta neutralidade
validaria seu comportamento: “porque isso é um assunto de ciência. Carece de mais
raciocínio”.
Outra história que compete com as ficções de fundação já apresentadas é
contada em uma aldeia quilombola próxima ao vilarejo. Pai Cariá, o “preto velho”
(arquétipo presente em várias narrativas audiovisuais no tocante aos cultos afros) fala
em um dialeto africano e usa objetos ritualísticos, sendo traduzido por Samuel, também
morador do antigo quilombo e amigo de Biá, todos presentes em uma roda feita debaixo
de uma árvore. A primeira surpresa de Biá é a qualificação por parte do velho de “esta
parte da África”, referindo-se ao Brasil. Este pergunta se o velho sabia se seus
antepassados faziam também parte do bando de Indalécio, obtendo a resposta “Indaleu”,
um chefe guerreiro africano responsável por guiar o povo de volta à outra parte da

148
África, mas que, ironicamente, desconhecia o caminho. Pai Cariá começa a narrar
cantando a história do patriarca Indaleu, que se passa dentro de um rito de possessão
celebrado por meio de tambores e mostrado em planos médios e conjuntos muito
rápidos (a dinâmica da palavra entoada segue o fluxo da memória, esta acompanhada
pela narrativa cinematográfica). Biá, um pouco impaciente com os cânticos, pergunta se
Maria Dina ou outra mulher fazia parte do bando, ao que obtém como resposta “Oxum”.
Câmera se afasta de roda e uma íris interrompe o tempo em que se narra e corta para o
tempo narrado (acentuando o distanciamento entre tempo presente e tempo memorial).
Voice over de Pai Caria e de Samuel relatam a saga dos guerreiros africanos até o
encontro com Oxum, celebrado em uma cachoeira, na qual homens e mulheres negros
banham-se alegremente. Imagem congela e retorna Pai Cariá, que passa a ficar mudo.
Mobilizando uma mitologia africana, Pai Cariá repõe a Javé sua origem “nobre”,
validada pela honra de guerreiros e falocêntrica. No entanto, seu gesto pode ser
considerado metafórico em relação à narrativa nacional pois, ao considerar o Brasil
como “parte da África” não o faz somente pela via da geografia, do espaço, como
também repõe ao africano seu lugar nas origens. A necessidade de se reviver via
memória oral a saga dos africanos projeta-se no presente em que a questão racial
evidencia o papel dos diversos grupos étnicos na composição nacional e revela as
operações disjuntivas quanto às suas supostas diversas “origens”. Desse modo, ao
contrapor as diferentes versões cujas bases étnicas remontam ao mito da democracia
racial – brancos, negros e índios – Narradores de Javé pode ser considerado enquanto
uma contra-narrativa à nação, uma vez que explicita claramente seus limites e
ambigüidades.
Outro ponto deve ser destacado a respeito do relato de Pai Cariá: este se situa na
cisão entre memória e linguagem como central no seu discurso, uma vez que coloca em
xeque a possibilidade de a segunda acompanhar o fluxo da primeira. Assim, a saga dos
africanos, cuja funcionalidade no presente nos é apresentada via linguagem verbal,
necessita do suporte imagético em sua construção e, mais, os constantes cortes e elipses
da imagem remetendo-se à incapacidade de a linguagem articular a memória em sua
totalidade – apenas seus fragmentos devem ser a duras penas reunidos via linguagem na
“apresentação narrativa”. Politicamente, ressaltar o aspecto de seleção operada na
relação entre memória e linguagem nos auxilia na compreensão dos lugares de fala.
“Quem narra o quê” adquire uma produção de sentido fundamental que coloca a nação
como uma arena em que diversas identidades (formuladas por meio de discursos de

149
resistência, de legitimidade ou de projetos) são projetadas e, além disso, a própria
retórica nacional disputando com outras os lugares de autoridade.
Entretanto, além dos mitos de origem, Biá recolhe outras histórias
aparentemente alheias a eles. Na casa de Gêmeo e do Outro (dois irmãos gêmeos que,
por razões familiares, assim se chamam um ao outro), Biá ouve do primeiro: “uma terra
pode valer pelo que ela produz, mas ela pode valer muito mais pelo que ela esconde”,
referindo-se aos restos mortais de Indalécio. Conta, ainda a história dos gêmeos Cosme
e Damião e o amor deles por Margarida. O episódio da bebedeira no casamento e a
noite de amor da qual todos se esqueceram devido à bebida, causando a expulsão de
Damião (uma vez que Cosme, além de ser o dono das terras, havia se casado com
Margarida). Por isso, a qualificação do primogênito de “Outro” (o “filho da dúvida”) e
do segundo filho de Gêmeo. Recordemos que o corte entre presente e passado se dá por
meio de uma fotografia em preto e branco focalizada pela câmera em plano destaque (e
o passado é retratado com a mesma tonalidade da fotografia, ao som de uma música
regional).
A segunda história é a de Daniel, jovem pescador, e seu pai Isaías. Fragmentos
esparsos (na verdade, planos desarticulados que mostram o pai ora deitado, ora
comendo, ora rechaçando um homem que invadiu a cavalo sua casa) são compostos na
revelação de um trauma de Daniel: este viu o pai assassinar um homem. Duas histórias
desconexas das narrativas míticas que, no entanto, re-encenam valores positivados
nestas: a importância da propriedade; a descendência patrilinear (a prática que liga
reprodução, raça e propriedade); a honra como conduta ética; a legítima defesa; a
centralidade do homem branco como autoridade; a palavra como origem. Desse modo, o
ato de contar dessas duas histórias opera como um rito cosmogônico que revive o tempo
original no presente, sendo que ocorre uma confusão entre narrativas cotidianas e
nacionais (visto que ambas possuem esse aspecto cosmogônico de relembrar as origens
para posicionar seus agentes no respectivo espaço social).
Para finalizar esta parte, faz-se preciso uma retomada de algumas reflexões. Em
primeiro lugar, devemos reconhecer que Quanto vale ou é por quilo?, ao resgatar casos
ocorridos durante a escravidão e esquecidos nos arquivos estatais, Quase Dois Irmãos,
ao retratar a história oficial do ponto de vista do vencido (a cena em que Miguel lê um
recorte de jornal que afirma “Não existem presos políticos no país” claramente situa o
espectador nesse sentido) e Narradores de Javé, ao colocar no centro de sua narrativa os
via de regra excluídos da narrativa monumental ligada à nação, operam como contra-

150
narrativas que deslocam a nação do lugar tradicionalmente ocupado por esta e do
discurso aparentemente neutro do qual é revestida.
Esse papel de contra-narrativa é acentuado pela relação entre tradição e
modernidade construída diegeticamente. Apresentadas como superpostas em Quanto
vale..., no qual ambas são rearranjos de uma elite branca para se manter no poder e cujas
hierarquias sociais, pautadas inclusive pela raça, refletem a pessoalidade das redes de
solidariedade; em Quase Dois Irmãos, a tradição, mesmo que marcada por diferenças
étnicas e de classe, é mostrada como o Éden à qual as personagens devem retornar;
Narradores..., por sua vez, revela uma modernidade irresponsável, brutal e aniquiladora
dos valores e do ethos tradicional, cabendo o livro ser um registro dessas tradições
fadadas à extinção (é interessantes constatarmos que Quase Dois Irmãos e Narradores...
retratam as conseqüências do mesmo período histórico, a ditadura militar335 , em dois
aspectos totalitários: a repressão e a tortura, de um lado, e a lógica do
desenvolvimentismo varrendo os modos tradicionais de vida, de outro, dotando a
mesma de violência material e simbólica – e realizando uma operação historiográfica
semelhante, ao retirar da ditadura militar seu ranço de “fato histórico” e evidenciar nela
uma série de práticas discursivas e não-discursivas que a questionavam em sua
dimensão teleológica e prospectiva).
Após essa breve inflexão sobre os usos do tempo em relação à nação, vejamos
como os filmes utilizam- na para encenar conflitos no tempo presente e, por conseguinte,
politizar os discursos articulados em seu interior.

II ENTRE O COTIDIANO E A POLÍTICA: REPRESENTAÇÕES DA NAÇÃO E


DE SUAS FISSURAS NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

No livro O Brasil visto de fora, o brasilianista Thomas Skidmore, por meio de


uma revisão do pensamento social brasileiro que arregimentou o debate a respeito da
formação de uma identidade nacional nos séculos XIX e XX, confere às categorias
raciais um lugar central em sua argumentação. Infere que a raça sempre esteve presente
no pensamento teórico sobre a realidade brasileira, para tanto realizando um estudo
desde os defensores da tese do branqueamento do século XIX e início do século XX

335
Mesmo que Narradores... não represente diretamente o período da ditadura militar, retrata um de seus
aspectos até hoje perpetuados: as relações de poder entre um Estado autoritário e seus cidadãos pautadas
por um ‘desenvolvimentismo’ (não queremos, aqui, conceder a esse período o lugar de ‘origem’ desse
discurso, já que podemos detecta-lo em outros períodos históricos como o governo Vargas e Juscelino
Kubitschek; todavia, este foi um dos principais lemas do mesmo).

151
(Romero; Nina Rodrigues; Oliveira Vianna; Paulo Prado) até a revisão do mito das três
raças pela Escola Paulista (Florestan, Ianni, Fernando Henrique Cardoso) e
posteriormente reforçada por outros intelectuais (Darcy Ribeiro; DaMatta; Ortiz),
passando pelos estudiosos construtores deste mito (Freyre; Buarque) e seus difusores
(Vianna Moog). Evidentemente, não o faz sem recordar ao leitor os usos políticos
dessas teorias raciais.
Uma discussão particularmente interessante ao nosso trabalho refere-se à relação
entre raça e classe. Retomando uma reflexão iniciada por Florestan Ferna ndes em A
Integração do negro na sociedade de classes - na qual o sociólogo avalia a passagem do
negro da sociedade estamental para uma sociedade de classes a partir da análise dos
tipos “negros do eito” e “negros da Casa Grande” – Skidmore elenca algumas razões
para o obscurecimento do estudo das relações raciais: a) a postura da elite em reafirmar
o mito da democracia racial; b) a repressão oficial, encampada desde o governo Vargas
até a ditadura militar, o que restringiu a atuação de movimentos ligados a minorias
étnicas; c) a centralidade que a esquerda brasileira atribui à classe - tanto no estudo
quanto na transformação da sociedade – e, por isso, rechaçando o debate sobre raça.
Essa conjuntura foi expressa, por exemplo, na ausência do quesito raça no Censo de
1970, sendo até hoje reproduzida amplamente nos meios de comunicação, no sistema
educacional e nas políticas públicas.
Eis como Skidmore se refere aos discursos raciais no Brasil:

“Categorias raciais não se definiam exclusivamente pela ancestralidade, mas


por uma combinação de fatores, inclusive aparência física, status aparente na
vida e, a um grau limitado, ancestralidade. Isso contrasta com a situação nos
países citados [EUA, África do Sul], onde a raça se definia pela ascendência
e era certificada em registros legais. (...) Para lidar com essa realidade, a elite
brasileira desenvolveu uma ideologia assimilacionista para racionalizar de
facto a sociedade multirracial. (...) A ideologia assimilacionista, chamada
comumente de branqueamento pela elite após 1890 (Skidmore, 1989),
consolidou-se no começo do século XX e continua a ser a ideologia
predominante no país hoje. (...) Na prática, o pressuposto assimilacionista
levou o governo a tomar uma medida reveladora: omitir a raça do censo. (...)
Uma vez que não havia dados, não poderia haver discussão sobre relações
raciais”336 .

Como os filmes aqui analisados se situam diante deste panorama teórico-


conceitual sobre raça? E mais: como eles ligam as práticas cotidianas e políticas às
categorias raciais?

336
Op.cit., pág. 153-157.

152
Em Quase Dois Irmãos, a tri-temporalidade, ao privilegiar os dois protagonistas
racialmente definidos, transitará entre a afetividade e o conflito. “Temos duas vidas:
uma a que sonhamos, outra a que vivemos”: a voice over de Miguel apresenta uma cisão
entre utopia e práticas cotidianas que pode ser interpretada, dentre outros, como a
oposição entre o sonho da “democracia racial” e as práticas de conflito (insultos,
agressões, mortes, arbitrariedades praticadas por órgãos estatais etc) geradas em torno
da raça como categoria de construção da hierarquia social.
Essa distensão é ampliada pelo grande flashback de que o filme se pauta: após o
carro de Miguel entrar por um túnel, constrói-se uma montagem que articula diferentes
épocas de um modo muito rápido (cortes secos, match cuts etc), ligando os diferentes
status de Miguel e Jorginho: filhos de classe média e baixa (1957); militante político e
preso comum (1970); deputado e chefe do narcotráfico (2004). A ordem patriarcal
assume, aqui, sua continuidade sem, no entanto, obliterar sua dimensão racial, apontada
no fato de que Miguel representa a ordem estabelecida e Jorginho a ordem “paralela”.
O diálogo entre as personagens, durante uma visita na cadeia de Bangu (2004),
faz-se presente em todo o filme, pontua ndo sua narrativa. “Afinal, o que é que você veio
fazer aqui, Miguel?”; Miguel (W. Schünemann) retira de uma pasta alguns documentos
e diz: “Nós conseguimos financiamento internacional pra construir centros culturais em
comunidades carentes. Se você me apoiar, eu posso conseguir uma pro Morro dos
Macacos. Pode ser uma alternativa pra esse bando de moleque desempregado”; “Qual é,
Doutor? Tu tá querendo construir um projeto social ou salvar sua família?”. O
assistencialismo via patrocínio privado é representado como a forma atual de contato
inter-classes (e inter-racial) e, na verdade, uma releitura da prática da caridade (que
pautou, via religião, as relações raciais e sociais desde a colonização, não esquecendo da
violência material e simbólica presente nesta). Desse modo, é apresentado como um
atenuante dos possíveis conflitos em torno do estabelecimento da ordem social, para
isso aliando cultura e economia (práticas culturais enquanto ‘recurso’ disponível nas
trocas entre as ordens).
Em Quanto vale..., a democracia racial enquanto formuladora de projetos é
questionada em sua diegese por meio da construção de suas personagens, chegando
muitas vezes a ser negada. Apresentado em seu sonho pela agonia no tronco 337 e pela
ligação com o tempo presente (Arminda acorda no meio de uma festa em uma favela), o

337
O registro do sofrimento da personagem beira o documental, já que a seqüência é uma ilustração dos
instrumentos de tortura empregados na escravidão.

153
mal-estar de Arminda (Ana Carbatti) é presente em suas ações ao longo do filme,
configurando o ‘ressentimento’ como uma possível mediação inter-étnica e inter-
classes.
Arminda almoça em um restaurante de um luxuoso hotel com um político da
esquerda, que relata pedagogicamente como a direita se articula para se manter no poder
e apontando nas senhoras ricas que almoçam ao lado deles (Joana Fomm e Ariclê Perez)
a exploração da miséria via corrupção (ou o ‘desconto no imposto de renda’ como
lavagem de dinheiro): sentindo-se muito mal, Arminda quase implora para ir embora.
Na seqüência seguinte, Arminda reclama com Lourdes sobre os computadores
destinados ao centro comunitário: velhos, não estariam funcionando (além de já ter
ciência do superfaturamento) e, assistindo a gravação de um comercial com crianças
negras, um plano subjetivo seu (imagem mental na qual Arminda vê as crianças
amarradas a cordas espessas, como se fossem escravas), revela ao espectador seu mal-
estar in crescendo.
Há uma identificação entre o mal-estar de Arminda e o jogo de
ocultação/revelação feito pelo filme acerca de suas personagens e suas ações. Por
conseguinte, opera-se um processo de identificação entre Arminda e o espectador, sendo
o mesmo acentuado no instante em que esta contempla, em uma praça de São Paulo,
uma senhora puxando um carrinho de mão com quinquilharias e uma criança sentada:
após closes de mendigos (negros) sentados em um banco, acompanhados por um
cântico religioso, cuja fonte sonora a câmera mostra sendo essa senhora, Arminda se
projeta arrastando o carrinho com uma máscara-de-flandres e amarrada por uma corda,
fundindo os tempos passado e presente (Arminda escrava e Arminda empregada da
ONG).
Já Narradores de Javé, por sua vez, ao ressaltar o drama de uma população
predominantemente mestiça que vê a existência de seu vilarejo ameaçada, situa a
questão racial de um modo sutil: a cientificidade, o Estado e o desenvolvimento ligados
a uma concepção etnocêntrica provocam nos moradores a necessidade de escrever a
história do lugar para tombá- lo, porém a presença dos primeiros se dá, em boa parte do
filme, apenas no discurso das personagens (apenas quase no final os engenheiros da
represa finalmente chegam à cidade).
Retornando à seqüência da ágora na igreja, Zaqueu fala: “É isso mesmo, gente!
Vão construir a barragem, Javé tá no caminho das águas! Logo isso aqui tudo vira
represa! Nós vamos ter de sair!”; ante os protestos dos moradores, Vado continua a

154
explicação (sendo sua fala intercalada com vários closes dos moradores, ressaltando seu
aspecto multi-étnico e mestiço): “Os engenheiros abriram os mapas na nossa frente e
explicaram tudinho pra gente nos pormenor! Tudo, com os números, as fotos, um tantão
delas! Iam explicando pra gente os ganhos e os progressos que a usina vai trazer! Vão
ter que sacrificar uns tantos pra beneficiar a maioria! A maioria eu não sei quem são,
mas nós é que somos os tantos do sacrifício!”.
À imposição da ratio estatal etnocêntrica, presente nas fotos, nos números e nas
“explicações” a respeito de um suposto progresso, o filme contrapõe a resistência
coletiva à iniciativa de alagamento, ressaltando, ainda, um distanciamento entre a práxis
política e a lógica desenvolvimentista (desse modo, a ‘democracia racial’ explicita os
agentes e os objetos do “sacrifício” e se situa de modo estranho ao cotidiano das
massas, cuja descrença é expressa por Vado – “a maioria eu não sei”).
As relações de poder autoritárias, aqui, devem ser compreendidas em um outro
regime discursivo: da sociedade patriarcal, cuja figura central era o chefe político local
(que Narradores... até insere em sua diegese, porém sem o caracterizar de modo tão
central) e cujas relações de poder eram marcadas por uma rede de solidariedade
diretamente articulada (patrimonialismo), passamos a uma ordem estatal supostamente
despersonalizada, cujos desejos de progresso devem ser levados a cabo, mesmo
implicando a reafirmação da hierarquia social e o “sacrifício” de vários grupos. A
desvalorização das narrativas orais (apresentada na fala de Zaqueu: “não adiantou nem
eu explicar que aqui tem muitas terras adquiridas nas divisas cantadas”) contrapõe-se ao
peso do escrito (“fazer uma juntada nos documentos e dos fatos importantes pra provar
pras autoridades porque Javé não pode ser afundada”), configurando mais um traço do
etnocentrismo estatal.
Em Quase Dois Irmãos, Juliana (Maria Flôr), filha de Miguel, o espera ao lado
de uma cabine policial. Logo após, no carro, pai e filha discutem: “Você viu o perigo
que acabou de correr? Se aquele guarda resolve não colaborar, você tava na cadeia!”;
“Olha só quem tá falando em perigo!”; “Comigo era diferente! A gente tinha objetivo!”;
“Ah, pai! To cansada das tuas historinhas”. Alguns minutos adiante, a conversa no carro
reaparece: “Eu só queria entender o motivo! Será que é pedir muito? O motivo! Por que
cargas d’água você insiste em andar com esse bando de homens machistas que se
comem uns aos outros!” “Você não entende, pai, porque a gente é diferente!”;
“Diferente?” “É diferente mesmo! Você é racista! Você só gosta de coisa de branco!
Você queria que os caras fossem brancos, por isso vocês se foderam!”. Revelando o

155
patrimonialismo presente nas relações entre o Estado (representado pela polícia) e os
administrados/cidadãos, o filme explicita de que modos a hierarquia social é legitimada
pelo Estado, de um lado, e auxiliada por este em sua manutenção, de outro. O racismo
evocado por Juliana na discussão com o pai é, ironicamente, o que a impede de ir para a
cadeia, além de a pessoalidade impressa no tratamento do guarda e de seu pai expressar
que a ‘cadeia’ enquanto instrumento punitivo se aplica para determinados segmentos da
população dos quais ela não faz parte (negros e pobres, o que situa a criminalidade
como um discurso racial e socialmente mobilizado).
Além disso, a geração é mostrada, ao lado de raça e classe, como uma categoria
identitária capaz de nomear o senso comum nas relações cotidianas. Assim, o aspecto
tri-temporal é percebido a partir do “choque de concepções” entre diferentes gerações
da mesma família na apreensão desse mundo: o romantismo do pai de Miguel
contestado pela luta e militância deste que, por sua vez, tem seu lugar de autoridade
colocado em xeque por sua filha, ao explicitar a contradição da luta do pai e ao marcar
seu lugar através de seus gostos (funk) e a nova sociabilidade entre moradores de favela
e classe média (bailes funk).
Devemos, ainda, mencionar que apenas a mãe de Juliana (Lúcia Alves) aparece
(em relação ao tempo presente), para marcar o lugar de classe média - através da família
nuclear enquanto reprodução da sociedade e das concepções ligadas a uma burguesia -
na enunciação sobre os conflitos nas favelas cariocas (neste espaço, aliás, nenhuma mãe
reivindica seu lugar de autoridade): após o diálogo com o pai no carro, Juliana chega a
casa e encontra sua mãe preocupada, que a abraça (“Minha filha, isso não pode
continuar assim!”) e, em outro momento, ao constatar um machucado de Juliana na
testa, reclama (“Minha filha, francamente!”).
Em Quanto vale..., há também uma diferença na relação entre classes possível
de ser compreendida a partir do choque de concepções entre gerações. Panorâmica de
prédios em São Paulo e voz em off de Arminda: “O problema, Ricardo, é com os
comp utadores. O que está lá não é o que foi prometido”. Ricardo aparece na imagem e
Arminda continua em off: “Então, esse dinheiro é um dinheiro público. Eu acho que
você poderia me ajudar a resolver isso”; “Você tá me cobrando? Eu acho que você
deveria estar bastante satisfeita!”; “Satisfeita? Tá bom, Ricardo. Faz um favor pra nós
dois: pega o dinheiro extra dos computadores e faz uma nova compra de equipamento!”;
“Meu amor, isso aqui é uma empresa! Vocês receberam os computadores e nós
aumentamos a lista de projetos realizados! Só isso! Se vocês não sabem mexer com

156
computador, aprendam!”; “Você é um puta dum cara-de-pau! Olha, Ricardo, eu tenho
tudo no papel! Eu posso provar que você tá fazendo um belo de um caixa dois nesses
projetos!”; Ricardo pega seu terno e anda por sua sala: “Você tá procurando inimigo no
lugar errado! Eu posso te dar uma lista de pessoas que só sobrevivem graças ao nosso
trabalho! Olha lá, se você resolve dar uma de heroína, você fode com o seu emprego e
uma série de projetos pra pessoas que estão precisando de ajuda!”. Ricardo sai
intempestivamente da sala deixando Arminda sentada e sozinha. Caminha até o
elevador. Dona Judith (Miriam Pires) limpa vidro e pede sua atenção: “Eu preciso falar
com o senhor de um problema meu. O meu menino tá preso e foi transferido pra uma
cadeia no interior. Eu não queria faltar... Será que o senhor podia me liberar?”; “A
senhora não se preocupe com isso. Fale com a Lourdes e diga que eu autorizei a sua
folga”; tira dinheiro da carteira e o dá a esta.
Dona Judith visita seu filho adotivo (Lázaro Ramos) na cadeia e estes conversam
em plano conjunto: “Eu não acho certo a gente viver assim, sofrendo e parado, sem
fazer nada. A gente também precisa passar um pouco de opressão”. Em seqüências
anteriores, Dona Judith pauta suas relações com seus patrões pela afetividade (é
apresentada por meio da subserviência – cena em que agradece Marco Aurélio pelo
emprego, “o primeiro depois do derrame”). O afeto enquanto relação possível entre
classes, dentro da rede de expectativas de uma geração, é substituída parcialmente pelo
conflito como revelador do jogo socialmente estabelecido, sendo isso bastante claro na
discussão entre Arminda e Ricardo. O mal estar da primeira, traduzido em
ressentimento, eclode no primeiro confronto direto com a elite tecnocrata (representada
por Ricardo) e, sendo assim, superpõe raça e classe na construção da hierarquia social
brasileira.
Esta é relida ironicamente pelo pastiche do poema “Navio Negreiro”, de Castro
Alves, feita pelo filho de Do na Judith. Câmera focaliza presos amontoados e se afasta
lentamente, mostrando-o: “Esse é o nosso navio negreiro. Dizem que a viagem era bem
assim. Só que ela só durava dois meses. E o principal: o navio ia terminar em algum
lugar”. Fusão para close de Lázaro Ramos: “Na escravidão a gente era tudo máquina!
Tudo máquina! Aí eles pagavam combustível e manutenção pra que a gente tivesse
saúde pra trabalhar de graça pra eles! Agora, não! Agora é diferente! Nós somos
escravos sem dono! Cada um aqui custa setecentos paus pro Estado, por mês! Isso é
mais que três salários mínimos. Isso diz alguma coisa sobre esse país! O que vale é ter
liberdade pra consumir! Essa é a verdadeira funcionalidade da democracia!”. Além da

157
hibridização entre cultura de elite (poesia) e cultura de massa (cinema), a passagem
revela, ainda, a possível politização da violência (desenvolvida no seqüestro de Marco
Aurélio).
É interessante contrapormos as representações em torno do samba e do funk
enquanto elementos presentes em uma cultura popular urbana. Já dissemos que a roda
de samba enquanto espaço de sociabilidade é representada, em Quase Dois Irmãos,
como uma forma ‘ideal’ ligada à democracia racial338 , sendo um espaço caracterizado
pela ‘mestiçagem’ 339 , no qual a Cinderela européia e seu príncipe são substituídos, na
imaginação do garoto Miguel, pela porta-bandeira e pelo mestre-sala. O baile funk, por
sua vez, apresenta uma ‘cultura popular’ mais internacionalizada (cuja referência ao
funk e hip hop norte-americanos é evidente) e ligada à criminalidade do narcotráfico (no
baile, são retratados jovens segurando pistolas, fuzis e metralhadoras cantarolando a
letra de Mr. Catra e consumindo drogas – Deley e um dos integrantes de seu bando
fumam maconha), no qual o contato inter-classes e inter-racial perde o ‘romantismo’ do
samba e assume o conflito como narrativa (no baile do filme, raça e gênero são os
primeiros articuladores desse conflito – Juliana beija Deley sob o olhar raivoso de Mina
de fé, que a desafia com sua dança sensual).
Em Quanto vale..., a roda de samba e o hip hop também estão presentes: o
hibridismo entre o discurso pseudo-científico do século XIX e o samba feito no sonho
de Arminda e seu despertar na festa (a música “As rosas não falam”, de Cartola, inicia
sua melodia na seqüência dos instrumentos de tortura) - na qual a câmera mostra a
personagem em close e, no mesmo plano, desloca-se para uma roda de samba - remete o
espectador às novas formas de opressão difusamente operadas nas relações cotidianas.
Desse modo, a população negra e pobre presente na seqüência colorida transforma-se no

338
O antropólogo Peter Fry, retomando o pensamento de Freyre, afirma a democracia racial como um
ideal presente na sociedade brasileira que se contraporia justamente ao racismo. Por isso, faz uma crítica a
intelectuais representantes do movimento negro que contestam o lugar do “mito”, respondendo que este é
uma prática discursiva que impede a sociedade brasileira de vivenciar a segregação como a
experimentada em países como os EUA e a África do Sul ou os conflitos étnicos contemporâneos. Em
Quase Dois Irmãos, a democracia racial enquanto ideal faz-se presente através da ambientação da favela
dos anos 50, vista como um lugar em que brancos e negros convivem pacificamente. Já na favela atual, o
conflito enquanto base das relações étnicas e intra-étnicas passa a ser um elemento diegético que se alinha
com a contestação feita em torno do “mito” da democracia racial.
339
categoria das ciências sociais, apresentada por Gilberto Freyre como um elemento definidor de nossa
nacionalidade e fator de composição do povo brasileiro – em uma releitura apresentada na década de 80,
Renato Ortiz afirmaria que Freyre, ao apropriar-se da noção de ‘aculturação’ da antropologia norte-
americana, priorizou uma visão pacífica das relações raciais, obliterando os conflitos nos quais estas se
constituíram

158
comercial em preto-e-branco ao som de uma música clássica e em “objeto” do novo
discurso em voga: as teorias do marketing.
Ao contrário do samba enquanto mito do eterno retorno em Quase Dois Irmãos,
Quanto vale... o representa como uma forma de imaginação nacional apreendida pela
retórica de uma elite dominante que, para se manter no poder, reifica as formas de
imaginação popular (ora concedendo a estas um lugar de autoridade para narrar as
experiências ligadas ao povo – isto é, qualificando-as como ‘pedagógicas’- ora
rechaçando-as, inclusive pela via da criminalização – recordemos a repressão a que é
submetida alguns bailes, rádios e tevês comunitários).
Em Narradores..., há a presença de uma música regional misturada com batidas
eletrônicas. Esta se faz presente no início e ao final do filme, ressaltando as idéias de
movimento e de êxodo construída via imagem. Ainda, esta é mesclada às narrativas
míticas sobre as origens de Javé (relatadas por Vicentino, Deodora e Firmino), o que
pode ser interpretado como um signo do presente nestas. Sendo assim, a música popular
lembra ao espectador a materialidade e o presente da memória (junto com outras
convenções, como as palavras de Firmino e sua repetição na história narrada, a
superposição da narração de Deodora na fala de Maria Dina) e, fazendo-o, assume o
performativo no pedagógico (isto é, o ato de disputar significados em torno da nação é
representado dentro de sua transmissão ‘histórica’ via música regional), o que revela o
aspecto político das memórias local e nacional.
Já o contato inter-classes é representado pelo choque de Marco Aurélio e
Ricardo ao verem o corpo de um jovem negro alvejado, na entrada de uma favela, e o
pânico de Ricardo em sair dali (a oscilação entre o plano destaque do corpo e o plano
geral mostrando o movimento rápido do carro de Marco Aurélio o comprova). A
representação não-realista do pânico de Ricardo e a contraposição entre o assassinato do
jovem e a música “Rebatucada” (de Marcelo D2, um hip hop que relê um samba)
conferem à seqüência uma ironia que, politicamente, pode ser interpretada como o
farsesco do “contato”, uma vez que o mesmo não se traduziria por opções políticas
viáveis (e que representassem de fato transformações sociais). Na seqüência anterior, o
mesmo Ricardo repete slogans vazios como “entretenimento também é cultura! Eleva o
nível do povo brasileiro!”, zombando do próprio trabalho de sua ONG. O povo, então, é
narrado como algo que deve ser ora ridicularizado, ora temido (povo como turba).
Façamos uma breve pausa para analisar como a publicidade encontra-se inserida
em Quanto vale... . Aliando-se à reificação presente na proposta das elites no rearranjo

159
do Estado, a linguagem publicitária se hibridiza com as cenas do filme em vários
momentos: na fusão entre as seqüências da festa na favela e da reunião de marketing
(marcada pela alteração da cor da imagem e do tipo de música); a campanha publicitária
“Vencendo com o social” (uma ironia a uma campanha do extinto Banco Bamerindus -
“Gente que faz”), na verdade o sonho da personagem Mônica (Cláudia Mello) - mulher
de classe média baixa - em ascender socialmente; as cerimônias de premiação; a
gravação de um comercial com crianças negras; o diálogo entre Clara e Candinho na
qual esta o pede para comprar uma tintura; o comercial estatal sobre a construção de
unidades prisionais; as aulas de marketing.
É preciso reter alguns desses exemplos. Eis o comercial “Vencendo com o
social”: Ônibus pára e Mônica desce e se dirige ao portão de sua casa. Através do ponto
de vista de Mônica, percebemos uma aglomeração de mendigos quase em frente a sua
casa. Voice over que acompanha o comercial: “Mônica Silveira, 47 anos, paulista.
Trabalha em dois empregos e mesmo assim ganha muito pouco. Mas o drama de
Mônica não era o bolso vazio, era a dignidade esvaziada. O estado de consciência
ocorreu quando a miséria gritante a encarou frente a frente”. Close de Mônica: “Eu
resolvi largar tudo pra fazer aquilo que me dava prazer. Eu descobri a minha vocação,
que é ajudar as pessoas”. Câmera mostra plano geral em que Mônica coordena
associação e voice over relata suas atividades, concluindo, com uma foto de Mônica
sorrindo: “para Mônica, viver de solidariedade é o melhor aprendizado que a vida pode
dar” e fusão (tela em branco) revela este ser seu sonho. Reunindo uma série de clichês
que justificam, no senso comum, a caridade, o filme ironiza o “estado de consciência”
da personagem, revelando seu oportunismo. A pose para a foto mais uma vez encena a
reprodução do poder nas relações cotidianas e entre classes (lembrando a distinção de
classes no papel e classes mobilizadas no cotidiano) definidas inclusive racialmente
(uma elite branca que agrega uma classe média baixa a seus projetos e reifica os pobres
– em sua maioria, negros, porém não sem antes explicitar quem detém o poder de
nomear a ‘realidade’, inclusive através da própria publicidade entronizada no ethos das
classes médias e adquirindo importância no processo de endoculturação).
A reprodução da ideologia do consumo (que assume uma dimensão racial) passa
também pelo campo da estética e dos gostos socialmente produzidos e ratificados.
Clarinha folheia uma revista de fofoca e Candinho senta a seu lado. “Preciso pintar meu
cabelo”, reclama. Folheia novamente a revista: “acho que a gente tem que fazer um
investimento. Olha só! Quanta gente de sucesso! Oh, essa menina aqui é que nem eu, só

160
que ela batalhou pra tá aqui, entendeu? Ela investiu na imagem dela. Bom, ela casou
com um cara cheio da grana. Ele deu tudo pra ela! Roupa nova, plástica”; Candinho se
encolhe no canto do sofá e Clarinha continua: “a gente tem que se sentir que nem eles
pra ser que nem eles, entendeu? Pô, já imaginou, Candinho, você com carro bacana,
novo, eu com vídeo-cassete, personal trainer? Ia ser tudo de bom! Eu acho que a gente
tem que batalhar pelo que a gente quer! Compra uma tintura nova pra mim? Vai?”. Os
meios de comunicação de massa – através da revista de fofoca – aparecem como
dotados de um poder simbólico de produzir a realidade, seja pelos padrões de beleza
(Clarinha pede a seu marido mulato uma tintura para pintar seu cabelo de loiro; eis o
ideal de branqueamento em seu aspecto ordinário) e atitudes como “investir na imagem”
passam a ser percebida, no senso comum, como valores fundadores de um imaginário
individual e coletivo, sendo o sofisma em torno da aquisição de bens materiais e
simbólicos (“sentir para ser”), então, constantemente revivido nas relações raciais e de
classe.
A construção da hierarquia pelos padrões de consumo (marcas de distinção) é
levantada em outra passagem de Quanto vale... . Marco Aurélio explica a empresários a
vantagem de investir no marketing dirigido ao ‘consumidor solidário’ e, em meio a
gráficos, afirma: “os consumidores da classe AA sempre imprimiram seu padrão de
consumo às outras classes. Hoje, a classe média também quer ter o luxo de ter
princípios”. Câmera se aproxima lentamente de Marco Aurélio. “Daí esse surto de ações
sociais. Só no Brasil, estima-se em 20 milhões o número de voluntários. Para as
empresas, esse público de 20 milhões é um potencial gerador de lucros. Por outro lado,
o consumidor quer que a empresa tenha responsabilidade social. A empresa socialmente
responsável pode vender até mais caro que a concorrente. Afinal, está cobrando mais
pelo bem comum. A sua empresa também pode se associar a esse projeto vencedor”. A
reprodução da ideologia de classes, vista enquanto uma pirâmide na qual a classe “AA”
está no topo, encontra no marketing, nos meios de comunicação (inclusive no cinema) e
nos discursos políticos um terreno de disputa privilegiado na “categorização” da
realidade e da vida social. Assim sendo, a “responsabilidade social”, de uma esfera
coletiva, migra para a ação individualmente controlável, sendo mais um valor a ser
levado em consideração pela lógica da caridade.
Além disso, a publicidade opera como fator de difusão de concepções estatais
pelo senso comum (sublinhando seu papel na disputa pela hegemonia). A propaganda
estatal sobre construção de presídios que se hibridiza à narrativa cinematográfica na ida

161
de Dona Judith a uma cadeia no interior de São Paulo para visitar seu filho exemplifica
a tentativa de produção de consenso feita por esta: operários trabalham cortando barra
de ferro, levantando toras de madeira. Voice over: “A construção civil é uma das armas
mais eficazes na guerra contra o desemprego. O governo encontrou na ampliação das
vagas prisionais um terreno fértil para geração de renda e de oportunidades de
negócios”. Apresentador enquadrado em plano americano: “Nunca, em uma única
gestão, foram construídos tantos presídios. Além disso, nos últimos anos, nossos
policiais intensificaram a captura de criminosos, duplicando a massa carcerária. E a
nossa meta já para o próximo ano é dobrar o número de vagas nas cadeias, construindo
presídios em pequenas cidades do interior do estado. E a partir daí aumentar
progressivamente esse número, garantindo espaço para todas as detenções que nossa
polícia fizer, gerando assim muitos empregos diretos e indiretos”.
Corte para chegada de Dona Judith à cadeia: salta do ônibus e se desvencilha dos
camelôs que a importunam, ratificando ironicamente o discurso economicista da voice
over do comercial: “E não é só na construção civil que a economia cresce com a
expansão do sistema carcerário. As famílias que vão visitar seus parentes geram assim
renda na cidade, gastando com comida, hospedagem, transporte e outros consumos. O
que estamos mostrando é que a expansão do sistema carcerário é agente aquecedor da
economia do município, do estado e do país”.
De sistema de vigilância e contenção de um povo dividido racialmente e por
classes, o sistema penitenciário ironicamente assume a função de melhorar sua
qualidade de vida. Além disso, a violência simbólica da presença de um presídio nas
pequenas cidades é justificada pela retórica do progresso que, mais uma vez, mostra-se
enquanto um instrumento das elites tecnocratas para impor ao restante da população –
via instituições – suas concepções sobre a vida social.
Retornando às práticas ligadas à classe, raça e gênero, nos filmes, estas
aparecem como potenciais deflagradores de discussões, relembrando a cada personagem
seu papel social e sua posição na hierarquia (social, racial, geográfica etc). Após o baile,
Juliana e Deley se encontram no barraco deste. Deley se arruma diante do espelho e vê
Juliana chegar: “É você, minha princesa?”. Os dois se beijam e deitam-se na cama.
Deley aparece pelado em cima de Juliana, que geme. Toda a seqüência é filmada em
planos médios e closes muito rápidos, o que denota uma proximidade entre sexo e
voyeurismo – do espectador – para explicitar o sexo não apenas como forma de contato
entre classes e raças, como também a distribuição de poder na sociedade patriarcal.

162
Entretanto, o racismo recalcado de Juliana também seria revelado durante essa
seqüência. Deley (Renato de Souza), após a transa, discute com esta, que dispara: “Tu
tá pensando que tá lidando com essas neguinhas aqui do morro?”, ao que imediatamente
grita: “Tu tá pensando que é quem, sua princesinha de merda? Você é só mais uma!”. O
insulto funciona como uma lembrança do lugar ocupado socialmente por ambos, sendo
o aparente “prestígio” de Juliana, por ser branca e de classe média, desfeito pelo
xingamento de Deley. A concretização de um ‘ideal de democracia racial’ por meio do
sexo, apresentada em um primeiro momento (a partir de uma possível ‘mestiçagem’) e
feita a partir da exibição do status masculino, o que apontaria para uma visão que
autorizaria o pensamento de Freyre, é logo desfeita cenicamente, evidenciando as
fissuras nas quais o “povo” se constitui: o pacífico do pedagógico cede lugar à disputa
do performativo.
Irritada, Juliana sai do barraco e, no meio do caminho, encontra a jovem negra
Mina de Fé (Pâmela Bispo, também amante de Deley) que, no meio de outra discussão,
dispara: “Deley é maluco de pegar você! Aqui, essa branquicela magrinha! Cadê as
carnes, minha filha?”. Já em Quanto vale..., a seqüência sobre a gravação de um
comercial em prol de crianças negras é clarividente: a personagem Lourdes (Lena
Roque), diretora de projetos da fictícia ONG Stiner, após ouvir a palavra “pedigree”
sendo usada por um membro da equipe de produção ao se referir a um garoto negro,
interpela de modo virulento o diretor do comercial. Inicia-se uma calorosa discussão
sobre raça: Lourdes afirma que o filme colocando “75% de crianças negras; 15%
brancas e 10% outros retrata a realidade do páis”, ao que o diretor lança: “E não vem se
fazer de vítima pra cima de mim só porque é negra! Eu não persigo negros!”. O bate-
boca é finalizado com o diretor gritando categoricamente: “Resistindo [a contratar
negros]?! Que resistindo?! Você não pagou? Pois então: você venceu! Hoje, aqui neste
set, negro é lindo!”; e virando para um membro da equipe: “Ô Bira! Pinta todos esses
moleques de preto!”. Nessa discussão, opõem-se radicalmente as concepções sobre raça:
o discurso pautado por categorias bi-raciais (de Lourdes, que encena uma falsa
indignação a partir da ironia do publicitário que declara não saber o que ela considerava
como “negro” e se “servia mulatos” para o comercial) e o que remonta à mestiçagem e
às categorias raciais fluidas.
Ironizando o lema Black is beautiful, é construída cenicamente a catarsis das
personagens enquanto responsável pela visibilidade das categorias raciais. É possível
explanar que essa catarsis fílmica remete-se diretamente ao universo extra-fílmico

163
experimentado pelo espectador, uma vez que é também por meio de uma catarsis que
estas práticas discursivas são mobilizadas socialmente (fato comprovado nas entrevistas
colhidas pelos cientistas sociais Luiz Cláudio Barcelos e Elielma Ayres Machado, em
pesquisa sobre jovens universitários - por ocasião da aprovação da lei de cotas raciais -
segundo as quais são comuns xingamentos de raça em discussões durante eventos
desportivos ou casualmente empreendidas na rua e no trânsito) 340 .
Em Narradores..., no entanto, os insultos aparecem em duas dimensões: além de
lembrar a todos suas posições no espaço social, estes também são articulados na
construção do direito de significar dos moradores. Oscilando entre a autoridade e o
desejo de desautorizar o discurso alheio, os usos aparentemente difusos do insulto
inscrevem seus agentes numa linha tênue entre o pedagógico e o performativo, para
tanto realçando ora uma monumentalidade percebida como salvadora, ora uma
blasfêmia contestadora dos lugares de fala estabelecidos. O primeiro exemplo, no filme,
é a troca de insultos entre Firmino e Vado na ágora. Após Zaqueu relatar que Javé só
não afundaria se tivesse algo de valor a mostrar, Firmino dispara: “Ih, danou-se! Esse
lugar velho não vale o que o gado enterra!” e Vado retruca: “O que o gado enterra tem
na sua cabeça!”, ao som das gargalhadas dos moradores. Da desvalorização de sua
própria comunidade e do reconhecimento da autoridade estatal, passa-se de imediato a
uma possível formulação de resistência individual e coletiva; ao mesmo tempo, pune-se
a tentativa de contestação dos lugares de fala de Zaqueu e Vado, tidos como
‘representantes do povoado’ perante as autoridades.
Uma personagem que ‘instrumentaliza’ os insultos e os ditos para reforçar sua
autoridade narrativa é Antônio Biá. Na seqüência em que entrevista Deodora, essas
estratégias ficam evidentes. Plano conjunto mostra Biá, Firmino e Vado em frente à
casa de Deodora, que bate a janela com força quando avista o primeiro. “É preciso
muita coragem ou muita cara-de-pau! Rua, seu Biá!”; “Na rua eu já to, Deodora, eu to
querendo é entrar!”; “Pois nem com pedido de santo nem com ordem do Diabo! Você
merecia era surra de pau, sujeito inventador, traste mentiroso!”; “Inventador não! Eu só
mostrava o fogo onde todo mundo via fumaça! Gente, escritura é assim! O homem
curvo, vira carcunda, o homem do olho torto eu digo que é zarolho! Por exemplo, se o
sujeito é manco...”, Biá reproduz o andar de um manco sob o testemunho de vários
moradores, “... eu digo que ele não tem perna. É assim! É das regras da escritura!”;

340
Pesquisa a que tivemos acesso graças à amiga e pesquisadora Janaína Faustino, a quem deixamos
registrado o nosso agradecimento.

164
“Pois a minha regra é outra seu Biá! O senhor vai ver!”; Deodora entra em sua casa e
pega um pau: “O senhor sai da minha porta! Senão eu vou lhe meter o pau na cabeça!”;
“Não se agigante não, Deodora! Porque galinha que muito cisca, acha cobra! Se a
senhora não quiser, eu não dou grafias na sua odisséia ou escrevo o que me der na
caixola sem ponto-e-vírgula!”; dirigindo-se a uma moradora idosa: “E a senhora cale a
boca e sente-se porque a senhora não sabe nem o que é caatinga de cheiro!”; dirigindo-
se a outra moradora: “E a senhora monte na sua vassoura e volte pra Salvador!”; “Vá-se
embora, seu Biá!” (Deodora); “A senhora preste bem atenção! Eu tava quieto no meu
canto, vocês mandaram me chamar! Mas se a senhora não tem nada pra dizer pra
colocar nas grandes páginas de Javé, então adeus, Sayonará!” (reproduzindo o gesto do
apresentador televisivo Miguel Falabella).
Além disso, há outros momentos do filme em que faz um pastiche dos gestos de
luta dos filmes de Kung Fu e usa termos como “pokemon de Jesus”; “espermatozóide
de ninja”; “piaba de silicone” etc. Hibridizando diversos registros (da religião, da
memória oral, do fazer literário, da cultura de massa etc), Biá, ao necessitar de lembrar
constantemente que sua autoridade/autoria funda-se em sua capacidade/estilo - sua
marca de distinção perante o grupo e meio de uma possível re-socialização com este -
para obliterar a desconfiança na origem de sua relação com os moradores (e que se
revelaria um elemento trágico, na medida em que a suposta salvação revelou-se, ao fim,
a perdição – Biá não conclui a tarefa de escrever a “odisséia”, visto que foi marcado, ao
longo da narrativa, pelo conflito entre liberdade criadora e necessidade objetiva do
livro), o faz ora de modo didático (tentando explicar as “regras da escritura”), ora de
modo intempestivo (insultando seus contestadores).
Ademais, poderíamos refletir sobre a seqüência de Quanto vale... há pouco
descrita. Ao descrever a pretensão de Lourdes em “mostrar a realidade do país” de
modo quantitativo, o filme explicita seu próprio status de representação. Além disso,
reforça o papel do cinema e dos meios de comunicação (no caso, a publicidade)
enquanto lugar de (re)produção de ideologias e, portanto, capaz de encenar o jogo entre
o pedagógico e o performativo na narrativa nacional (aliás, as seqüências em que se fala
da questão de patrocínio às causas sociais são de imediato relacionadas ao próprio fazer
cinematográfico atual, visto que este também sobrevive apenas quando subvencionado
pelo Estado e pela iniciativa privada). Para tanto, incorpora a essa narrativa as
“rupturas” e descontinuidades ocasionadas pela imersão de diversas categorias
identitárias, tais como raça, classe, gênero e geração.

165
Narradores... também evidencia seu status de representação, recorrendo,
diferentemente de Quanto vale... (que retrata o habitus publicitário), a uma citação do
fazer documental e às práticas de registro da escrita (essas últimas já avaliadas em
outras passagens). Engenheiro começa a gravar procissão religiosa dos moradores.
Imagem da câmera adiciona-se à do filme. O mesmo vai em direção a duas senhoras
idosas moradoras e pede para filmá- las e estas o autorizam. A filmagem contemplativa
tem sua dinâmica subitamente alterada com a intervenção de Deodora, cujo primeiro
gesto é meter-se em frente à câmera de vídeo e olhar para a lente, rompendo a regra
clássica segundo a qual o personagem não deve olhar fixamente para a câmera. “Eu
posso falar um pouquitinho? Eu queria dizer a vocês e ao chefe de vocês que minha casa
não tá à venda! Tá gravando, moço? Já disse o que tinha pra dizer e vão-se embora!”.
Inicia-se uma série de encenações de protesto para a câmera, todos filmados em close e
todos os filmados passam a olhar para a câmera. A primeira senhora: “Eu tenho meus
pais, meu marido, tudo enterrado naquele cemiterinho ali! Nós queremos ficar aqui pra
sempre! Os engenheiros não vão tirar a gente daqui, não!”; segunda senhora, que quase
chora em seu depoimento: “Cheguei eu e minha mãe. Tive meus filhos tudo aqui. Então,
eu me sinto muito bem aqui em Javé. Mas minha mãe já perdi, meus filhos também já
perdi. Não posso sair deste lugar”; senhor: “E eu quero avisar aos engenheiros que nós
estamos preparando um dossiê que é pra nós defender o que é nosso”; Firmino: “Nós
estamos aqui há muito tempo! Onde já se viu?!”; Dona Maria: “Você não tem casa,
você não tem terra pra dar tanta gente que mora aqui em Javé! Como é que você pode
tirar a gente daqui?!”. Sons de tiros.
Explicita-se tanto a representação fílmica quanto a performance em torno da
resistência dos moradores em aceitar sair da cidade e vê- la inundada, devendo adicionar
a esta as performances nos atos de narrar as diversas histórias. Desse modo, o direito de
significar dos moradores encontra finalmente uma oposição concreta: do narrar de
Zaqueu e de Vado, os engenheiros não apenas chegam ao lugar como impõem sua
presença por meio de suas máquinas e catalogações. Mais que uma violência simbólica,
a presença destes é percebida enquanto um sacrilégio e uma violação da ordem mítica
da qual os moradores se valem cotidianamente para se afirmarem no plano político.
Além da representação visual, em Narradores... há a representação pela escrita.
Em diversos momentos, a disputa por esse plano de representação será o foco da
narrativa, atrelando a necessidade imposta pelo discurso oficial do ‘tombamento’ ao
desejo de perpetuidade dos moradores individual e coletivamente. No primeiro encontro

166
entre Zaqueu e Biá no filme, forma-se um círculo envolvendo o segundo (como se fosse
um julgamento). O uso constante do close para marcar as duas personagens, nessa
seqüência, atua no sentido de construir a oposição de autoridade narrativa que se dará ao
longo do filme (lembremos que Zaqueu narra a história no tempo presente no bar,
porém cabe a Biá fazer uma juntada dos relatos).
Este se senta em uma das pontas de uma mesa, sendo oposto a Zaqueu, de pé.
Este coloca à frente de Biá um paco de cartas e inicia sua exposição: “O povo não
esquece, seu Biá! Taí a prova da sua ladinagem! As cartas futriquentas que você
espalhou pela região! Nas minhas andanças eu consegui recuperar um bocado delas!”.
Com a acusação lançada, passa-se à prova. Morador lê: “Prezado amigo, pois o caso é
que aqui também tem um velho que posa de galo majestoso e bate as asas pra cima de
tudo que é rabo-de-saia. Só que o coitado já não deve ter mais uso e competência
daquela parte que todo homem preza”. A leitura é entrecortada por Firmino apontando
Vado e este olhando fixamente para Biá, insultando-o ao final - “sujeitinho
despudorado!”- em meio aos risos dos outros moradores. “Mas vocês vão concordar
que, se Antônio Biá só escreve mentira, ele escreve muito bem! Então, seu Biá, o
povoado lhe oferece a ocasião de você cumprir com o seu ofício de escrivão e ainda
praticar o maior feito de sua vida! A gente quer que você escreva a história grande do
vale de Javé !” e entrega um livro com capa preta e espesso a Biá, que reage
ceticamente: “Como é que é?”; “Tem que fazer um dossiê, uma juntada na escrita das
coisas importantes acontecidas por aqui!”; “Mas Zaqueu! Ochente, que diabo de coisa
importante aconteceu em Javé?”; “Pois a maneira de saber é ouvindo o nosso povo
contando as tais histórias, ouvindo e escrevendo! E assim vai nos ajudando! Só que não
pode ser história inventada, chistosa, tem que ser verdadeira, científica!”; “Isso tá
parecendo coisa de gente doida!”; “Antônio Biá! Um dia você salvou seu emprego às
custas do povoado! Agora você vai ajudar a salvar o povoado às custas do seu trabalho,
tá entendendo? Ou vai embora de vez ensinando o caminho pras águas entrar!”.
Incrédulo, Biá folheia mais uma vez o livro.
O status de representação do filme, por meio da disputa em torno do ‘autor’ e
das convenções sob as quais esta será baseada (“científica” versus “invenção”), pode
também nos remeter à própria nação e ao povo enquanto representações percebidas em
um conflito que engloba desde quem tem o poder de narrá- los (isto é, quem pode dizer
algo sobre a nação e sobre o povo) até em que momento este pode fazê- lo; o pedagógico
de narrar a “grande história de Javé” e o performativo em torno de como se dará essa

167
representação, portanto, enquanto uma metáfora de narrar a história nacional e a partir
de que limitações isso será feito. Aliás, a “cientificidade” tanto do discurso legitimado
por Zaqueu quanto do discurso oficial/acadêmico configura uma ponte entre as duas
representações, uma vez que esta foi afirmada enquanto valor em meados do século
XIX, não coincidentemente quando a retórica nacional ganhava peso. Logo, essa
cientificidade foi ‘instrumentalizada’ para afirmar o lugar das classes dominantes e sua
instituições, cujos efeitos são até hoje sentidos – e um deles é, certamente, a retórica da
perda 341 evocada a partir do patrimônio e suas apropriações pelo senso comum.
A disjunção das práticas discursivas das elites tecnocratas e dos moradores para
salvar Javé pode ser vista na seqüência em que Biá discute com Zaqueu, após ter sido
desmascarado e perseguido por não ter escrito a “grande história” do povoado.
Novamente, o insulto é utilizado no sentido de inscrever a posição social dos diversos
agentes. Planos gerais mostram ao espectador a festa em comemoração ao livro escrito
por Biá que iria salvar Javé: pessoas dançam; banda local toca; crianças se divertem;
Zaqueu preocupado (“tá demorando”). Firmino chega apressado e corre até Zaqueu;
moradores se aglomeram em volta destes enquanto Zaqueu abre envelope destinado a
ele por Biá. Pede a um menino para ler o bilhete: “tenho a declarar que eu, Antônio Biá
(...) me exonero do cargo de escrivão. Estou ausente para manter a mente e o corpo são.
Quanto às histórias, acho melhor que fique na boca do povo, pois no papel não há mão
que lhe dê razão”. Plano destaque do livro folheado por Zaqueu: desenhos, rabiscos e
som off do protesto dos moradores. “Aquele trolha! O demônio não tá longe! Eu pego
Biá! Arrasto o cachorro até aqui! Ou ele explica essa afronta diante de nós tudo ou o
couro dele não vai mais ser o mesmo!”.
Montagem alternada destaca a condução à força e o xingamento por parte de
alguns moradores a Biá, de um lado, e a pequena comitiva formada por Zaqueu, de
outro. Encontro de ambas filmado em plongée. “Oi, Zaqueu!”; “Só isso que você tem
pra me dizer? Só isso que você tem pra dizer pra todo mundo? Seu cabra safado!”;
“Olha, com todo o respeito...”; “E você lá tem respeito? Seu salafrário! Sujeito
ordinário, um homem que não merece a companhia do cão! Você vai sendo o que
sempre foi, Antônio Biá, um sacanajeiro!”; diante dos protestos, Biá contesta: “Vocês
acham que escrever essas histórias vai parar a represa? Não vai não! E sabe por quê?
Porque Javé é só um buraco perdido no oco do mundo! E daí que Javé nasceu de uma

341
Nomenclatura do pesquisador e professor José Reginaldo Gonçalves (IFCS/UFRJ).

168
gente guerreira, se hoje isso aqui é um vale miserável de rua de terra e de gente apocada
e ignorante como eu, como vocês tudinho! O que nós somos é um povinho ignorante
que quase não escreve o próprio nome mas inventa histórias de grandeza pra esquecer a
vidinha rala, sem futuro nenhum! Vocês acham, acham mesmo, que os homens vão
parar a represa e o progresso por um bando de semi-analfabeto? Não vão não! Isso é
fato! É científico!”. Ao desprezo coletivo dos moradores, expresso pelo gesto de dar as
costas, Biá responde com novas ofensas: “Ah, é? Tão me dando as costas? Eu também
vou sair de costas pra ver vocês de cima! Oh, a única coisa boa que Javé tem pra
mostrar é o caminho de ir embora! Lugar bom pra criar lobisomem! Anfíbios! Povo
anfíbio, povo pitu!”. Plano geral mostra Biá caminhando apressadamente por rua escura,
em direção contrária a dos moradores.
Sendo assim, a visão das elites a respeito da ligação entre povo e progresso é
apropriada pelo senso comum de Biá, ratificando a posição desta em extinguir Javé.
Essa dinâmica entre discursos e entre visões de mundo formuladas nos âmbitos das
diferentes classes necessita de certas características para ser validada no senso comum.
Aqui, expressões como “gente apocada e ignorante”; “parar o progresso”; “bando de
semi-analfabeto”; “povo pitu” projetam no povo a culpa por sua própria extinção,
obliterando o caráter autoritário da intervenção, a pouca serventia que esse “progresso”
terá efetivamente a esse povoado (na medida em que este é alijado do mercado
consumidor a que se destina a represa), a possibilidade da formulação de resistência
(iniciada com a escrita do livro) e da transformação desta em um projeto (a salvação do
povoado), além da questão racial (o etnocentrismo de que se vale o Estado impondo o
sacrifício de uma população mestiça em nome do conforto de uma minoria composta
eminentemente por brancos).
Podemos, ainda, mencionar que a reprodução de estigmas ratificados pelo senso
comum a respeito do nordestino, ligando a este adjetivos como “ignorante”, “semi-
analfabeto” opera no sentido de atribuir à pobreza uma naturalidade quando, na verdade,
ela é fruto da apropriação das posições de maior prestígio e rendimento (capital
econômico e simbólico) por uma elite tecnocrata; a pobreza “vista como decorrência da
inferioridade natural dos excluídos”342 .
Em sua diegese, Quanto vale... insere um elemento dramático pouco explorado
no cinema brasileiro contemporâneo: a classe média baixa. Descaracterizando-a como

342
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. São Paulo, Ed. 34, 2006, pág.
172.

169
sujeito histórico (isto é, como uma classe que detenha o poder de intervir politicamente
de modo efetivo a conservar posições ou transformá- las), o filme a constrói variando
entre categoria identitária (na medida em que existe uma série de características/signos
que a circunscrevem no filme) e associação de interesses (com outras classes e setores
da própria classe média).
Plano geral mostra Kombi branca estacionada na calçada. Pessoas vestidas com
uma camisa branca (com a logo de uma ONG) distribuem comida e outros mantimentos
para mendigos. Van preta chega e estaciona em frente à Kombi. Noêmia (Ana Lúcia
Torre) dirige-se à motorista: “Ei, ei, ei! Pode ir embora! Eu cheguei primeiro! Esse
pedaço aqui é meu!”. Motorista olha atônita e Noêmia continua: “Você quer ir embora,
por favor? Embora!”343 . A distribuição de comida tem prosseguimento e nova discussão
é iniciada, dessa vez entre Mônica e uma empregada que atua na ONG (interpretada por
Marcélia Cartaxo). Após a primeira ver seu genro Candinho trabalhando como gari e
recolhendo o lixo da rua em que distribuía comida, esta grita: “Candinho! Candinho!”,
ao que este retribui com um aceno afetuoso: “Ô, tia Mônica!”. Empregada indaga:
“Como ele vai fazer pra pagar a festa do casório? Vai ter festa, Mônica?”; “Ainda bem
que Candinho trabalha”; “Trabalha em algo sem futuro, né?”; “Olha quem fala: tá
esquecendo que você é doméstica?”; “Esqueci não! Sei muito bem o que sou hoje! Mas
também sei o que eu quero pra minha vida!”; “Pois fique sabendo que Candinho é um
cara muito do legal! E vai ter festa sim! E vai ser uma festa muito alegre, muito bonita!
E você vai ser convidada! Você, Dona Noêmia, os filhos dela, tudo!”. Mônica,
visivelmente irritada e exaltada, encerra a discussão. Corte para a seqüência do
comercial “Vencendo com o social” (já analisada). Relembrando o status social da
empregada, o faz para espantar o ‘perigo’ que ronda a classe média baixa enquanto
categoria identitária: ser confundida com os pobres e, para isso, o faz apelando a um
ressentimento de classe (recalcado no cotidiano e explicitado no sonho do comercial,
em que a patroa Dona Noêmia aparece como sua empregada) e a marcas mínimas de
distinção (tipo de ocupação funcional é uma delas). O gestual um tanto exaltado
(movimentação de braços e cabeça) e a linguagem utilizada (as palavras, a entonação)
também são utilizadas para relacionar Mônica à classe média baixa e a diferenciar de

343
Devemos referir-nos ao testemunho de Sérgio Bianchi de uma briga, em frente ao seu apartamento em
São Paulo, entre vans que distribuem comidas aos mendigos da região da Praça da República, fato que o
‘inspirou’ a fazer o filme. Sem cair no discurso ‘autoral’, a informação pode ser interpretada como a
presença de práticas socialmente empreendidas na re-configuração no plano fílmico: uma discussão
aparentemente banal trabalhada, na representação, para evidenciar o jogo de classes e de interesses que as
pautam.

170
outras personagens como a socialite Marta e sua patroa (pertencente a uma classe média
standard).
Passemos ao despertar de Mônica após o ‘sonho-comercial’. Noêmia em off
pergunta se ela está bem. Mônica aparece na feira segurando uma sacola de compras: “É
que eu tava sonhando com o casamento da Clarinha”; “Ah, eles vão se casar? Que bom!
É muito bom quando a gente realiza os nossos sonhos! E a festa vai ser quando?”; “Eu
não sei porque o outro patrão tá dificultando um pouco o décimo terceiro”; “Mônica, eu
tive uma idéia! Sua sobrinha não pode ficar sem casamento! Você trabalha comigo em
tempo integral. Larga o outro emprego e eu pago a festa! Você fica me devendo mas em
um ano já dá pra pagar! O que você acha?”; “Ah, Dona Noêmia! Você é tão boa! Um
dia desses, você vai jantar lá em casa! Olha, tudo o que vai, volta! A senhora vai receber
por toda a sua ge nerosidade!”. Mônica abraça Noêmia com força e demoradamente,
incomodando-a. Os papéis invertidos no sonho (Mônica com roupas elegantes e Noêmia
vestida com trapos) retomam seus lugares e a relação de condescendência entre as
classes assume seu destaque: de um lado, a ‘boa patroa’ que ajuda seus empregados, de
outro, a ‘fiel empregada’.
A ironia em que se constrói a seqüência, revelada justamente pela superposição
entre sonho de Mônica e sua relação com Noêmia no mundo social, concede a esta um
tom farsesco - o que nos ajuda a analisar a dimensão de código/aparência que pauta a
vida social, ao contrário das representações naturalistas das relações sociais, que tendem
a confirmar o senso comum. Além disso, enquanto os sonhos de Quase Dois Irmãos e
de Narradores... remetem a processos de transformação social, em Quanto vale... o
próprio sonho é representado como o recalcado presente nas relações entre classes (e
também entre “raças”), configurando um reforço da manutenção da ordem social
vigente.
O lugar de classe média baixa é acentuado na festa de casamento de Clarinha.
Música “A noite do meu bem” (interpretada por Nana Caymmi) em over e câmera
mostra plano geral com ângulo lateral, primeiro mostrando uma bancada de pia cheia de
comidas (frango assado; prato de salgados etc) para, com seu movimento, revelar
Mônica contemplando o cenário, ao qual se adiciona uma mesa com o bolo de
casamento (decorado com ornamentos azuis e rosas) e vários pratos de salgados e doces.
Plano conjunto mostra Mônica olhando menina negra agachada que enxuga talheres:
“você é muito prendada! Acho que eu vou te pegar pra criar! Você quer ter uma mãe
como eu? Comida boa, todo dia? Sabe que você teve sorte de encontrar uma família

171
como a gente, que te trata como filha?”. Candinho chega e pede para que as duas se
ajeitem para uma foto. Mônica sorri ao lado de menina negra visivelmente constrangida.
Barulho de flash e fusão para chegada de Noêmia na festa. Com muitos
presentes, esta os entrega ao noivo e é apresentada à Clarinha, que os abre e espalha o
perfume de modo espalhafatoso: “Nossa, Dona Noêmia! Isso é que é saber dar
presente!”. Noêmia e Mônica conversam e a última enaltece a festa: “Tem risólis, tem
coxinha, tem kibezinho! (...) Tudo no capricho! Tem pernil, frango, macarrão, pavê!
Muito agradecida, viu, Noêmia? Você vai receber tudo, tudo, tudo... E mais rápido do
que você imagina! Depois você vem visitar a gente!”, sendo a fala de Mônica
adicionada pela imagem dos diversos pratos. O pleonasmo e o exagero característicos
das práticas da classe média baixa são, desse modo, trazidas à imagem e, além disso,
retrata-se a preocupação com a ‘fartura’, ligada à quantidade de comida a ser servida;
esta enquanto um valor de classe e fator de diferenciação em relação aos pobres
colocada no jogo social, tal como no diálogo entre Mônica e a menina negra.
Um paralelo interessante pode ser feito entre essa seqüência e o romance
Negrinha, de Monteiro Lobato, cuja narrativa está centrada em três senhoras que, num
gesto de falsa bondade, adotam uma menina negra para transformá- la em empregada.
No filme, o que chama a atenção de Mônica é a disposição da menina para o trabalho,
ligando raça e classe na posição social e na estrutura funcional (a menina negra e pobre
como potencial ‘filha adotiva’, na verdade, uma relação de trabalho disfarçada pelo
falso afeto).
A condição de ‘objeto’ da menina negra é realçada pelo seu destino: de ser
adotada por Mônica, passa a ser ‘moeda’ na negociação entre esta e Noêmia, que cobra
o ‘favor’ de ter emprestado dinheiro para a festa de casamento. A relação entre classes,
transitando entre a afetividade e o mercantil, assume assim sua hierarquia: a classe
média explorando uma mão-de-obra a custo baixíssimo via aliança com a classe média
baixa, não obliterando a raça na evidência da mesma (afinal, o que está em negociação é
a transferência da lealdade de uma empregada negra e menor de idade, que de fato se
concretiza – esta aparece trabalhando no sítio de Noêmia), através da fala de Mônica e
de sua adição à imagem da menina (câmera faz movimento suave em direção a esta e
retorna à Mônica): “se eu te apresentar uma menina prendada, limpinha, faz tudo, não
dá trabalho nenhum, de confiança, não come quase nada, você ia ficar satisfeita, né,
Noêmia?”.

172
A respeito das personagens negras de Quanto vale..., Lourdes e Arminda, eis
como estas são postas na mise-en-scène: a primeira, um signo referente à classe média
negra, é cínica e dotada de um discurso panfletário, cabendo a ela colocar em destaque a
mercantilização da image m do negro como minoria étnica; já a segunda, por meio da
superposição entre passado e presente, tem seu olhar “misturado” entre os signos da
escravidão e da estratificação social atual para evidenciar seu transitar na diegese e sua
atuação “contra o sistema”. Estabelece-se uma oposição entre cinismo e ativismo no
campo político (que substitui o par retórico “alienação-consciência”, caro à retórica de
esquerda).
Vejamos como se deu a demissão de Lourdes: prédio lateralmente filmado. Voz
de Lourdes alterada: “Mas não ficou acertado na última reunião? Acho que você não
entendeu direito! Deixa eu te explicar!”. Plano geral (plongée) da sala de Ricardo. “Eu
vou estudar melhor o perfil da Stiner! Eu vou fazer adaptações! Tudo se adequa!”;
Ricardo em plano médio e em close: “É claro que eu entendi o seu projeto! Eu não
posso fazer mais nada! Tudo já foi acertado na última reunião com o Marco Aurélio,
inclusive o seu desligamento”; “Desligamento? Eu posso trabalhar em outros projetos!
Aliás, eu tenho dois projetos pra captar! Você vai adorar!”; “Não se preocupe. Você terá
todos os seus direitos trabalhistas”. Lourdes arruma sua bolsa e procura papéis e
disquetes em sua sala e na de Ricardo. Lourdes, que havia defendido Ricardo das
acusações de Arminda, tentando encontrar várias justificativas para o superfaturamento,
acentua sua vilania após ser demitida. De subserviente, passa a espiã, revelando seu
oportunismo (aliás, existe uma oposição entre Lourdes e Arminda a partir de como suas
ações são empreendidas: o arrivismo da primeira contraposto ao mal-estar da segunda),
o que, na verdade, escamoteia as possibilidades de projeto e de transformação social da
hierarquia étnica.
Logo, a dimensão trágica344 das narrativas fílmica e extra- fílmica são
entrelaçadas: Lourdes é “punida” com a demissão e Arminda, curiosamente, é retratada
em dois finais - no primeiro é assassinada por um matador de aluguel (Sílvio Guindane)
em sua casa; no outro revela seu niilismo político ao cooptar o matador de aluguel para
um plano de roubo e seqüestro.

344
Aqui, trágico não aparece no sentido comumente usado (sinônimo de catástrofe), e sim a uma narrativa
que desemboca em uma situação sem saída (na tragédia grega, cabia a um Deus ex machina dar uma
solução ao conflito cênico; nas histórias atuais, entretanto, há pouco espaço para este).

173
A centralidade das instituições ligadas à branquidade faz-se presente nos dois
filmes aqui analisados. Quanto vale..., por exemplo, encena várias poses para
fotografias: a negra alforriada Joana e seus libertos; as crianças de rua (na maioria,
negras); a socialite Marta Figueiredo (Ariclê Perez) e as crianças da favela. Sobre esta
última, vejamos como o filme a mostra. Plano geral com crianças negras tendo ao fundo
uma favela. Escuta-se a voz de uma mulher: “me dê os brinquedos, por favor”. Marta
aparece em seguida na imagem, distribuindo, a seu bel-prazer, os mesmos. Novamente
vai para o espaço-fora-da-tela. Nele, afirma: “Você, não! Você, vem cá!”. Eis que ela
surge trazendo pela mão uma menina negra. Coloca o boné neste e exclama: “Lindo!”.
Pega na mão de duas outras crianças e se posiciona no meio delas para uma foto. Voice
over feminina irônica narra: “Doar é um instrumento de poder. A superexposição de
seres humanos em degradantes condições de vida faz extravasar sentimentos e
emoções.”. Barulho da câmera fotográfica. Corte para plano médio centralizado em
Marta. Voice over continua: “sente-se nojo, espanto, piedade, carinho, felicidade, e por
fim, alívio. E ainda faz uma boa dieta na consciência!”. Novamente barulho de câmera
fotográfica.
A dinâmica centro-periferia assumida nas relações sociais é incorporada à
imagem, sendo isso evidenciado em vários pontos: a) os personagens negros só ocupam
a centralidade da imagem enquanto reprodutores das instituições da branquidade (no
caso da negra alforriada) ou enquanto objeto das mesmas (crianças de rua, cuja
seqüência de fotos é encerrada com barulho de moedas caindo); b) cabe ao poder branco
a escolha de quem terá sua imagem veiculada (explicitada na seleção de Marta); c)
mesmo quando o negro ascende socialmente (caso de Lourdes), este o faz muitas vezes
reafirmando os valores dessas instituições; d) a lógica da caridade é apontada no filme
em seu aspecto perverso de manutenção de uma rede de dependência; e) a centralidade
do poder branco é evidenciado em vários momentos (desde a foto de Marta até as
cerimônias de premiação de talentos, cuja platéia e premiados são em sua grande
maioria brancos).
É interessante frisar que a perspectiva assumida no filme no tocante às
diferenças raciais alinha-se a um pensamento social e político representado, dentre
outros, pelo sociólogo Antônio Sérgio Guimarães e pelo cineasta Joel Zito, na medida
em que ambos, ratificando uma diretriz política ligada ao movimento negro e retomando
o pensamento de autores como Roger Bastide e Florestan Fernandes, partem da

174
premissa de que “raça” é um fator presente na construção da hierarquia social345 e, mais
que isso, mobilizado cotidianamente a partir de um velado ‘ideal de branqueamento’
que opera como uma contrainte dos esquemas de percepção socialmente apresentados
(recordando que o filme se apropria dessa prática discursiva acadêmica ao representar a
reificação das minorias sociais – inclusive os negros – por uma elite tecnocrata; no
entanto, este também faz um contraponto a partir da vilania construída em torno da
personagem Lourdes, que se vale dessas práticas de um modo cínico e oportunista e
evidencia um jogo de classes entre os negros – já que ela também participa e legitima
esse ‘uso arbitrário’ de sua própria etnia).
A essa centralidade, Quanto vale... responde com a ironia mordaz da voice over
de Milton Gonçalves para, através dela, contestar o lugar dessas instituições. Além
disso, a representação não-naturalista dos atores relaciona classe e raça, revelando a
conexão entre branquidade e poder: na cena seguinte à foto, a socialite Marta Figueiredo
chega ao escritório de Marco Aurélio com seu motorista, trazendo donativos. Este
afirma: “Você está bastante empenhada nisso”; “Modestamente, uma vez por semana eu
acordo às cinco da manhã, pego meu motorista e faço uma peregrinação recolhendo
donativos para as crianças pobres. Porque se os que têm fizessem um pouco pelos que
não têm, não é verdade?”; “Claro!”. O exagero gestual de Marta, beirando o ridículo, e
o constrangimento de Marco Aurélio ao respondê-la explicitam a caridade como marca
de distinção e como uma associação de interesses entre a elite no seu papel de sujeito
histórico marcado pela opressão das diferenças (principalmente étnicas).
Ainda nesse ponto, assistimos também à encenação do gênero no diálogo entre
Marta e a diretora de um projeto, Maria Amélia (Joana Fomm) em um restaurante.
Câmera acompanha movimento de família em restaurante de luxo: pai, mãe e três filhos
(pela indumentária, pertencentes a uma classe média baixa) muito pouco à vontade. Um
dos filhos está em uma cadeira de rodas e tem a cabeça raspada. Voice over de Maria
Amélia: “Daqui a pouco, uma das famílias deve estar chegando. (...) Elas ficam
hospedadas por uma semana com todos os serviços do hotel incluídos”. Corta para close
de Maria Amélia: “Mas não são só as crianças com início de câncer. As terminais
também. Você já imaginou o que representa pra elas uma semana com três refeições por
dia, banho quente? É maravilhoso!”; câmera gira para Marta e dá um close nesta: “Claro

345
Cf: GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, Raças e Democracia. São Paulo, Ed. 34, 2006;
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo e HUNTLEY, Linn (org.). Tirando a máscara: ensaios sobre o
racismo no Brasil. São Paulo, Paz e Terra, 2000.

175
que é! Mas eu não consigo fazer o meu marido participar! Em nada! Eu não sei o que
acontece, mas eu não consigo! Não consigo! Eu ainda não consegui mostrar ao João
Paulo o quanto é fundamental a gente ser solidário! (...) E depois, eleva o espírito, não é
verdade?”. Plano conjunto mostra Maria Amélia e Marta de mãos dadas. Atitude logo
desmascarada no filme: “Esse projeto é um absurdo! Essa senhora usa do social pra
lavar dinheiro da empresa do marido!”. O falocentrismo da ordem patriarcal, ao
contrário de subvertido, aparece aqui para reforçar o jogo de classes; além disso, a
solidariedade, de princípio ético mobilizado no plano da religião e da política, passa a
ser representada como parte do esfacelamento da esfera pública (via privatização do
Estado e a ‘maior participação da sociedade’).
Em outras seqüências, a aliança entre essa elite branca e o Estado é trabalhada.
Assessor parlamentar (Umberto Magnani) no carro de Marco Aurélio, indo para a
inauguração de um centro de informática na periferia: “O governador já confirmou
presença. Quer tá lá com vocês na hora de cortar a fita, sabe como é? Tá gostando do
trabalho da Stiner e tá rápido na aprovação da licitação! Vocês não precisam ter receio
não. O lugar é pobre, mas vocês vão ser muito bem tratados!”; Ricardo fala: “esse
centro de informática vai ser muito produtivo! Inclusão digital!”. Logo após, a
inauguração: crianças atiram bolinhas de papel durante o discurso do governador;
balbúrdia de crianças atrapalha a cerimônia oficial. “Eu gostaria de agradecer a
receptividade da comunidade” (uma bolinha de papel é jogada em seu rosto) “que nos
acolheu de braços abertos!”. Crianças se empurram cada vez mais. “Por informática na
periferia!”. Aplausos e fotos. Marco Aurélio corta a faixa e quase é empurrado pela
turba de crianças que invadem o recinto. Este e Ricardo vêem de longe a confusão no
recinto (mostrada por um plano ponto-de-vista destas personagens): crianças fazem
muito barulho, tentam inutilmente mexer nos computadores e, irritadas, atiram dois
monitores no chão, sob os protestos de Arminda, que bate na mesa e grita: “Que é isso?!
Tá maluco?!”. Sendo assim, o falso politicamente correto é contraposto à representação
teratológica do povo pela elite que se apropria dos recursos estatais.
A especialização dessa atividade é trazida à mise-en-scène através de uma aula
de aplicação de preceitos de marketing, no intuito de formar recursos humanos para
atuar na captação de verbas públicas e privadas. Na parte “o aprendizado do novo
mercado”, câmera acompanha movimento de professora que explica a uma classe de
cerca de trinta alunos algumas fórmulas vulgarizadas do marketing: “será que
beneficiário – o excluído, os pobres – está usufruindo do seu projeto? Isso o beneficente

176
vai querer saber”. O aspecto documental da seqüência - explicitado pelo didatismo, pela
preocupação com as informações passadas, pelo uso dos termos e pela ausência de
atores profissionais - adiciona-se ao registro da ficção do filme, configurando uma mise-
en-abîme que corrobora a tese da solidariedade como forma de mascarar do abismo
social.
O reforço a isso ocorre na seqüência seguinte: jovens cuidam de velhos
internados em um asilo público, sendo que a mesma também possui um viés
documental (planos longos e com bastante movimento, que acompanham o andar dos
jovens; planos médios para mostrar o sofrimento de alguns idosos – uma senhora que
chora compulsivamente; outra vira para a câmera e manda alguém “pra puta que
pariu”).
Aliás, a solidariedade enquanto um slogan publicitário pseudo-político encontra-
se disseminada na representação das elites. Após o vídeo caseiro que mostra a agonia de
uma mendiga negra, sons de aplausos antecedem um plano geral de platéia branca
ovacionando - em um auditório - locutor (Petrônio Gontijo), que anuncia a entrega do
“2º. Prêmio de Estímulo à Solidariedade”: “E para o prêmio de braço direito de estímulo
à solidariedade, convidamos o idealizador do manual de captação de recursos que tanto
ajudará as entidades nessa difícil tarefa, que é ter acesso aos fundos governamentais de
cunho social”. Walter Harman (Cao Pressburguer), o ganhador do prêmio, discursa para
a platéia. Câmera se desloca e mostra a arrumação de um banquete, sendo acompanhada
de uma voice over feminina que enumera os “gastos sociais” das ONGs – que variam
desde aluguéis até passagens aéreas, passando por ‘jingles’ e assessorias de imprensa.
Desse modo, as cerimônias e festas oficiais são retratadas como o lugar de
encenação e de transmissão do poder econômico e simbólico (havendo nelas a
confirmação do status social de cada um de seus agentes) e, mais que isso, ritos
cosmogônicos que relembram a seus agentes a reprodução do poder disperso em micro-
narrativas (oficiais ou não) que alçam a ordem patriarcal (branca) enquanto ideal.
Comparando com o baile funk de Quase Dois Irmãos, devemos sublinhar que em
ambos se evidencia a distribuição de status através da posse de bens simbólicos (sejam
estes armas, sejam estes prêmios oficiais) nas ordens, havendo poucos espaços para a
‘inversão’ das mesmas pelas táticas do universo popular.
Sobre o uso da voice over, Quase Dois Irmãos constrói o ponto-de-vista
narrativo através dela, cuja voz de Miguel em diferentes momentos da vida conduz o
espectador (o branco dotado de autoridade na diegese). Outro recurso utilizado nesse

177
sentido, em ambos os filmes, é a montagem, responsável pelo jogo de
ocultação/revelação presente nos personagens (no primeiro, por exemplo, seja
articulando os dois finais de Arminda, seja mostrando as reações cínicas de Lourdes,
Ricardo e Marco Aurélio no decorrer das situações; no segundo, seja pela construção do
clímax dramático dentro do presídio na construção de um muro separando brancos e
negros, seja pelo desenlace do romance entre Deley e Juliana).
Passemos a outro tema que se liga à problemática racial e de classes: a
representação da violência e da criminalidade. É preciso fazer uma breve pausa e inferir
que os dois filmes relatam uma relação bastante peculiar entre corpo nacional e corpo
das individualidades presentes nesta. Recuperemos uma concepção bakhtiniana a
respeito do corpo no campo do grotesco: segundo ela, a estética do grotesco percebe o
corpo em seus orifícios e naquilo que ele tem menos poder de controlar; enfim, naquilo
que o relaciona ao mundo. Nas palavras do autor:

“Na realidade, a função do grotesco é liberar o homem das formas de


necessidade inumana em que se baseiam as idéias dominantes sobre o mundo.
O grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter relativo e
limitado. A necessidade apresenta-se num determinado momento como algo
sério, incondicional e peremptório. Mas historicamente as idéias de
necessidade são sempre relativas e versáteis”.346

Em Quase Dois Irmãos, encena-se o conflito entre a ordem do ‘alto’ e do ‘baixo’


a partir das personagens principais, sendo que suas concepções de mundo, reveladas por
meio de sua conversa, são ratificadas pelas seqüências que retratam suas vidas (atuais
ou passadas). Jorginho fala ao celular: “Mata! Vai lá e executa! Paz, Justiça e
Liberdade!”. Repetido como um slogan vazio (que remete ao período em que Jorginho
esteve preso nos anos 70, no qual foi iniciado na práxis militante), “Paz, Justiça e
Liberdade” parece ainda estar presente nas ações da personagem: “Miguel, eu to com
uma guerra lá no morro. Que que tu quer?”; “Ligar pra quê, Jorginho? Pra mandar
matar? Porra, mermão! Não acredito que você concorde com isso!”; “Sabe por que você
não acredita? Porque você não entende nada de trabalhador!”. Desautorizando a
militância política de Miguel e reafirmando seu lugar na ordem patriarcal estabelecida
na favela, Jorginho se situa na posição de criar e aplicar “leis” transmitidas oralmente e,
se descumpridas, puníveis com a morte, inclusive. As instâncias nas quais a ordem via
de regra se afirma são apropriadas e invertidas pelos pretensamente subordinados a ela
346
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo-Brasília, Edunb e HUCITEC, 1993, pág. 43.

178
para, dentre outros, contestar a ordem enquanto transcendente e suas necessidades
‘imutáveis’ de conservação e preservação de valores como vida, projeto, planejamento,
convivência pacífica etc, explicitando a historicidade em que ela se mantém.
“Quer saber? Acho que nós dois perdemos”; “Mas tu perdeu bonito, Miguel!
Terno, gravata e carro oficial!”; “Sabe por que minha filha tá correndo esse risco?
Porque eu ensinei a ela que todos nós nascemos iguais”; “Não, Miguel, tua filha tá
correndo esse risco porque o mundo é assim e tu não consegue entender, mermão!”.
Representa-se a luta pela autoridade em nomear o mundo através dos valores das
personagens: o humanismo e a oficialidade de Miguel contrapostos à ironia e à lógica da
sobrevivência de Jorginho. Aliás, este já tinha mencionado a autoridade de Miguel pela
circularidade: “o mundo dá muita volta e pára no mesmo lugar. Mas aí já está tudo
diferente”, sendo que os reencontros deles podem ser compreendidos como um ato de
re-encenar os lugares de fala ligados principalmente à classe e à raça.
“Sabe o que acontece agora lá no morro? Sabe quem manda lá agora? Não é
polícia, não é delegado, não é político, não é porra nenhuma! É nós! E nós faz direito!
Quem vacila, morre! Quem trabalha, tá direito!”; “Tá direito? Tá direito enquanto
obedecer! E se não obedecer, morre! E se tiver um filho de dez anos de idade, pode
apostar que o moleque vai preferir ser aviãozinho do tráfico e pagar uma de gostoso até
os quinze, porque aos quinze ele também morre!”. Mais à frente, retoma a fala: “Do
jeito que tá não tem saída! Pensa bem. Quem sobrou do seu pessoal, Jorginho?
Ninguém! Tá todo mundo morto!”.
Ambas as narrativas ligam o grotesco ao universo popular (e à criminalidade em
particular), relacionando a concepção de prestígio presente no narcotráfico (que se pauta
pelo acesso a bens escassos no domínio do popular) e o hedonismo contraposto à morte
prematura. Desse modo, as noções de vida e de projeto – tais como formuladas por um
ethos de classe média – são invertidas na lógica popular, segundo a qual o momento
vivido se sobrepõe a uma vida possivelmente projetada (entretanto, o niilismo e a
‘barbárie’ que horroriza aquela são imediatamente lembradas pela autoridade de
Miguel).
A raça enquanto fator de construção da hierarquia social é trazida à conversa por
Jorginho: “A minha mãe morreu. A tua não. Meus filhos estão todos largados por esse
mundo afora. Essa é a diferença! Por que você acha que ho je ia ser diferente? Por que
você acha que hoje ia ter uma saída, Miguel? É... Eu ouvi falar dessa história da tua
filha: a branquinha que se encanta com o do morro! Deley é dos meus! Menino bom! Às

179
vezes eu fico pensando que ele teria uma chance.... É isso que você veio oferecer pra
ele, Miguel? Uma chance?”.
Fatores pretensamente ligados ao biológico – natalidade, expectativa de vida –
ao marcar a diferenciação entre as personagens, revelam a raça como um conjunto de
práticas discursivas (noção de projeto e sua contestação) e não-discursivas347 ,
questionando, pela ironia usada com o termo “chance”, a meritocracia construída por
uma elite visando sua manutenção no poder.
O choque de gangues rivais é privilegiado em Quase Dois Irmãos, mostrado de
forma teleológica em relação ao passado: o homicídio generalizado fundador do
Comando Vermelho reproduzido ad nauseam nas favelas cariocas (isto é, o mito
fundador da criminalidade atual sob o signo do assassinato 348 ). Aliás, a tensão entre a
‘ordem’ do crime e subversão – já presente na ‘origem’ do Comando Vermelho,
representada pelo choque entre Jorginho e Pingão – reproduz-se em várias passagens do
filme: em paralelo ao baile funk freqüentado por Juliana e suas amigas, encena-se uma
execução sumária que marca o surgimento de uma nova facção rival dissidente do
bando chefiado por Deley (e por Jorginho, que se encontra preso).
Câmera na mão acompanha o arrastar de um jovem por alguns integrantes do
bando, que o agridem com tapas e socos. “Cadê o meu dinheiro, porra?”; “Eu não tenho,
minha mãe tá doente”; “Tá doente o caralho!”. Em plano geral, outros integrantes
chegam para dissuadir Duda de executar o jovem: “Ó, mermão! Tá ligado que tu não
pode fazer essas paradas aqui em cima não! Tu não vai passar o cara não!”; “Esse filha
da puta tá me devendo, rapá!”; “Vou falar com o patrão! Se o patrão falou que é pra
passar, tudo bem, mas se não for pra passar, não vai passar não! O cara é da
comunidade, não é alemão não!”. Deley pega o celular; Duda aponta para o jovem e
atira; bandos se dividem com armas em punho. Plongée mostra Deley zombando de
Duda e sua nova facção.
A divisão entre facções é incorporada ao cotidiano da comunidade. Bando de
Duda desce escadaria e vai à lanchonete de ‘Paraíba’, compra um sorvete para um
menino do bando e cerveja para os comparsas. À recusa de Duda em pagar, ‘Paraíba’

347
A expectativa de vida - evidentemente não no seu aspecto biológico e sim enquanto socialmente
estabelecida - em virtude do tipo de vida/ocupação/acesso a sistema de saúde etc que as personagens das
mães de Miguel e Jorginho tiveram.
348
Interessante notar que o mito fundador de facções criminosas pode ser de ordens diversas, ao contrário
do senso comum que o liga inerentemente ao homicídio: estas podem surgir de alianças marcadas por
pactos entre clãs, casamentos inter-étnicos, setores de uma elite descontente com o Estado, ondas
massivas de imigração, ‘informalização’ de alguns setores econômicos etc.

180
avisa que irá falar com Deley - seu então rival - sendo executado sumariamente pelo
bandido (planos médios e closes mostram o corpo de ‘Paraíba’ no chão da lanchonete).
Em uma cena posterior, o bando de Deley invade a casa da empregada de Juliana,
ameaçando-a e arremessando seus pertences (televisão, lustre, mala etc) pela janela (o
som off dessa cena, o de um locutor de rádio falando “Vamo zoá! Vamo se divertir!
Vamo curtir baile!” adiciona um efeito patético à cena, visto que a noção de projeto –
tal como concebida pelos setores médios – é questionada no plano da imagem e do
som).
Essas seqüências são opostas ao diálogo entre Miguel e Jorginho, no qual o
primeiro argumenta que o ‘patriarca’ da ordem ‘paralela’ perdeu o controle da situação
no morro. Acrescentaríamos que o populismo presente nas relações entre os moradores
da favela e os traficantes (os novos ‘patriarcas’) é obrigado constantemente a ser
renovado, tendo em vista a fluidez dessa ‘ordem’. Uma vez que o preço a ser pago pela
violação dos códigos de ética - cada vez menos ‘conhecidos’ previamente – é a própria
vida, a necessidade de formar novas redes de solidariedade submete os moradores a um
poder arbitrário que mina as possibilidades de resistência e de projeto a uma ordem
estatal opressora (no caso das favelas, a relação de opressão destas com o Estado se
efetua pela ação da polícia, que aparece em Quase Dois Irmãos enquanto aliada do
narcotráfico, na seqüência em que policiais vendem armas para Deley).
Logo, o grotesco é representado em duas acepções: enquanto definição de um
popular no qual o ‘baixo’, o ‘corpóreo’, as ‘excreções’ das relações cotidianas
(evidenciado pelo sangue, suor etc) e as ‘inversões’ da ordem (homens que se vestem de
mulheres; integrantes do bando que se revoltam, presos comuns que adotam o
vocabulário militante etc) apontam para uma possível resistência (que, todavia, ainda
não encontrou projetos mediante os quais se viabilizasse politicamente); ou como uma
representação teratológica do ‘povo’, afirmando a desordem e o caos (ou a ‘barbárie’,
para usarmos uma categoria analítica) como suas características e, por isso,
necessitando de agentes externos (escolhidos em outras classes sociais, notadamente a
classe média) para nomeá- lo e organizá- lo.
A tensão em torno da representação do povo revela o confronto a respeito de
uma visão ‘pedagógica’ – na qual a união popular ‘funda’ a nação – e o performativo
das narrativas cotidianas que alçam o conflito às relações entre os ‘nacionais’ (sejam
moradores de favela, sejam membros da elite ou dos setores médios). Quase Dois
Irmãos transita por essa tensão colocando-se prioritariamente ao lado da ordem (a

181
autoridade narrativa do Miguel jovem – expressa na voice over de Caco Ciocler que
acompanha todo o filme – configuradora de uma ‘memória de futuro’, isto é, uma visão
projetiva do militante político contraposta ao fim da utopia, à desilusão da personagem
e à ascensão da criminalidade contemporânea), porém não sem antes incorporar à sua
diegese as ambigüidades referentes aos discursos totalizadores da nação (seja a da
direita vitoriosa com a ascensão do regime militar, seja a da esquerda que impõe regras
dentro do microcosmo do presídio).
Já em Quanto vale..., a violência aparece simultaneamente como um recurso
monitorado pela elite e uma apropriação do discurso do marketing e sua ‘remodelação’
pelo seqüestro e pela denúncia, sublinhando o niilismo político da atuação das minorias
na esfera pública. Desempregado, Candinho, após ouvir o esporro da sogra e o lamento
da esposa, passa à função de matador de aluguel. Câmera mostra este correndo atrás de
dois homens com uma arma na mão e os encurrala em um beco. Hesita antes de atirar e
os dois jovens alvo da perseguição têm reações diferentes: o primeiro (negro) inicia uma
agressão verbal (“Abaixa essa arma, caralho!”), enquanto o segundo (branco) tem uma
reação patética – um ataque epiléptico – e implora por sua vida.
Apresentado como um ‘serviço incômodo’ inicialmente, o hesitar de Candinho
pode ser remetido a um espectro de valores atinentes à classe média baixa,
profundamente arraigado pelo ethos religioso (um deles é, certamente, o respeito à vida,
o primeiro item da Lei Mosaica). Esse mal-estar será acentuado na última seqüência,
através dos dois finais: no primeiro, mata Arminda, grávida, em sua própria casa (a
câmera assume seu ponto de vista para transmitir a agonia final da personagem,
manifestada em seu prolongado suspiro); no segundo, Arminda se vale de sua hesitação
para cooptá-lo: “Atira! Atira! O que que você quer? É grana? Porque se for grana eu sei
como conseguir. Eu sei como conseguir!”. Arminda levanta-se e vai em direção a ele.
Close mostra as duas personagens e Candinho sem reação diante do discurso de
Arminda: “Ou é só violência? Porque se for só violência tudo bem também! Você mata,
arrebenta a cara daquele filho-da-puta! Arranca uma orelha, arranca um dedo... A gente
pega o dinheiro do Ricardo e pra começar, a gente monta uma central de seqüestro,
assim, tipo filme americano! Não é só pelo dinheiro não! A gente acaba com tudo que é
filho-da-puta que rouba dinheiro do Estado!”. Evidencia-se uma predisposição para
resistir, porém desarticulada de um projeto político capaz de imprimir mudanças sociais
(inclusive na nomeação da legitimidade da violência).

182
No filme, há ainda o paralelo entre a atividade de Candinho, o discurso ligado à
classe média baixa e o Estado. Este lava o rosto e as mãos após a execução dos dois
jovens e escuta as reclamações de Mônica: “Tem que ter emprego fixo, patrão, horário
de entrada, saída. Não adianta: quem trabalha sem apoio, sem estrutura, se dá mal”.
Carro de polícia entra em praça acompanhado da voice over de Mônica: “não adianta.
Tem que ter emprego fixo. Esses bicos aí que você tá fazendo, já existe uma classe
profissionalizada, muito mais preparada. Gente com muito mais experiência”. Câmera
parada mostra carro da polícia estacionando, policial abre o porta- malas e recolhe
crianças de rua que estavam dormindo, colocando-as à força dentro dele. Crianças
gritam inutilmente. Estabelece-se o vínculo entre a atividade “amadora” de Candinho de
matador de aluguel e a “profissional” da polícia em executar o mesmo serviço, o que a
situa enquanto aparato meramente repressor e aparentemente desconexo com o discurso
democrático propagado pela elite intelectual- financeira (o que seria retomado através da
ordem de Ricardo para matar Arminda, revelando a democracia como um jogo a ser
seguido até o momento em que o papel das elites é posto em xeque).
Entretanto, a violência também pode se situar fora do comando dessa elite e,
mesmo assim, assegurar a manutenção de uma ordem. Seqüestradores assistem à mesma
seqüência que é apresentada aos espectadores (Marco Aurélio e sua aula sobre “padrões
de consumo”). Desliga-se a TV e seqüestrador (Lázaro Ramos) conduz a reunião: “Esse
é o nosso homem!”, mostrando fotos de pessoas relacionadas ao alvo (Ricardo Pedrosa
e Lílian, sua esposa) e explorando as falhas que podem levá- los ao êxito. Em uma
passagem posterior, o seqüestro é consumado: ao chegar a casa (mostrada em uma
grande panorâmica), depois de jantarem no luxuoso restaurante “Tournage”, Lílian
encontra sua empregada morta e Marco Aurélio é surpreendido, sendo enfiado em um
saco preto e levado à força (ao som de uma batida estridente, usada para aumentar o
terror da cena).
Marco Aurélio aparece amarrado e amordaçado e seqüestrador faz um
monólogo: “o Doutor é um grande solidário. Então nós também queremos ajudar. Se a
polícia não estivesse esperta, eu te levava pra dar uma volta na comunidade pra você ver
os seus investimentos. Agora, me diz uma coisa: o que a periferia, o que a comunidade
leva com os seus projetos? O que a gente ganha com os seus empreendimentos
comunitários? Qual a nossa parte no teu lucro?”. Tira com força a mordaça de Marco
Aurélio, machucando-o, e este tenta responder, mas é impedido. “A gente tem pressa. A
partir de amanhã, tua família vai receber uma parte do teu corpo: uma orelha, um dedo.

183
Não é nada pessoal, por mim você ficava inteiro. Mas a sua mulher precisa se apressar.
O desespero faz as coisas andarem mais rápido, sabia?”.
Na seqüência seguinte, no Theatro Municipal de São Paulo, Marco Aurélio, com
a mão e a cabeça enfaixadas, amparado por sua esposa e uma muleta, entra para
participar de uma cerimônia, ao som da voice over do seqüestrador: “duzentos e
cinqüenta mil dólares. Seqüestro é um negócio moderno. Precisa de violência porque ela
funciona como propaganda pra estimular a negociação. É isso que importa hoje em dia?
Business? Marketing? Livre iniciativa?”. Corte para foto de criança pobre: “seqüestro
não é só captação de recursos. É também distribuição de renda”. Câmera se afasta e
revela a foto como telão da cerimônia.
O lugar de poder expresso pela posse, por parte da elite, de um aparato teórico
que re-configurou o mundo social (e o sistema capitalista), é evidenciado na passagem,
porém se realçam também as apropriações discursivas (termos) e não-discursivas
(práticas/o “fazer” do marketing) pela criminalidade. Ao contrário da barbárie
desenhada em torno dela em Quase Dois Irmãos, aqui, mesmo se sublinhando o
grotesco de suas ações – mutilação, terror psicológico – expõe-se sua lógica,
concedendo a ela uma representação que transita entre o realismo (descrição das ações
dos seqüestradores) e o não-realismo (voice over do seqüestrador argumentando sobre a
lógica de seus atos, a mesma superposta à ação de Marco Aurélio) sem, no entanto,
ironizar sobre sua impossibilidade de empreender transformações sociais de facto,
escamoteando tanto seu discurso quanto o discurso oficial de combate à pobreza –
“[seqüestro] é também distribuição de renda”.
O investimento em projetos sociais é apontado como fator fundamental de
contenção da violência, na fala do executivo Ricardo Pedrosa, para que “eventos como
o que ocorreu com Marco Aurélio não aconteçam nunca mais”. Eis a dimensão paliativa
trazida à tona, junto com a lógica da contenção e da administração dos conflitos e, junto
com ela, o caráter circular entre violência e ordem social (afinal, o “ciclo” não é
quebrado ou sequer contestado).
Outro tipo de violência é também trabalhado na seqüência: a violência de cunho
racial. Arminda, após fazer um protesto, é convidada por Ricardo para a festa. A
violência simbólica logo se faz presente no visível constrangimento dos que estavam no
protesto ao se sentirem confrontados com a opulência da arquitetura do Theatro
Municipal e com a pompa da festa. Ponto de vista visual e sonoro é construído em torno
de Arminda, que escuta fragmentos das conversas dos convidados grã-finos na festa:

184
“Estou muito otimista. Ano que vem vai dobrar a parceria público-privado/ Até pode
ser, mas quem não entrar num pool de associações vai ter de ser contentar com as
gorjetinhas do governo”; “esse ano eles não querem renovar o patrocínio!/ Fala com o
Cássio, da Secretaria de Cultura! Ele te libera o dinheiro. E agora ele tá cobrando 15 por
cento! Antes ele cobrava 20... É a crise”; “não é privatização, é concessão para
administrar!”; Arminda vê capitão-do-mato passeando pelos convidados e olha para
Ricardo Pedrosa, que discursa para convidados: “contratar presidiário pode ser uma
diminuição de gasto. Você deixa de pagar quatrocentos reais pra um empregado e passa
a pagar cem, menos ainda, né?”; Ricardo levanta taça cumprimentando Arminda e
continua: “esses presos em regime semi-aberto são pacatos, não vão causar nenhum tipo
de problema. Isso é re-inclusão social!”; Arminda sente ecoar em seu pensamento a voz
de Ricardo repetindo “são pacatos!”. Explicitando a visão de uma classe média baixa
negra sobre a ‘partilha’ do estado pela elite branca, o filme o faz através do
ressentimento e do mal-estar da personagem (em seguida projetados na denúncia contra
Ricardo perante uma rede de televisão). A ‘visão’ do capitão-do-mato remete à ligação
entre os tipos de controle social empreendidos: da caça aos escravos, passam-se aos
banquetes milionários e cheios de negociatas.
Um dado interessante é a visão dessa elite sobre o povo. O adjetivo “pacatos”
evidencia a concepção de que o povo pode e deve ser dominado via pequenas
concessões, cabendo a esta elite o nomear do ‘destino’ do país (e, por conseguinte, dos
recursos), já que o povo, na perspectiva desta, seria incapaz de formular por si só
projetos nacionais. Vejamos a tensão existente na historiografia no tocante à
representação do negro, relatada por Lilia Schwarcz:

“(...) permanece polêmica na historiografia a questão da atitude do


cativo frente à sua condição escrava. Nesse sentido, as opiniões
divergem radicalmente, existindo basicamente duas tendências opostas
na produção historiográfica brasileira: a primeira, que acentua o caráter
passivo e dócil do negro, e a segunda, que, ao tentar refutar a primeira,
termina por cair no outro extremo, fazendo do escravo negro um
verdadeiro herói” 349 .

Logo, essa tensão entre passividade e protagonismo das minorias sociais,


presente no saber letrado, será incorporada pelo filme no sentido de explicitar as
ambigüidades do discurso das personagens e de suas ações. À construção da visão
“pacata” do povo pela elite, o filme opõe momentos em que este é alvo de ironias e
349
SCHWARCZ, Lilia. Retrato em branco e negro. São Paulo, Círculo do Livro, 1987, pág. 18.

185
teratologias. Além disso, podemos nos apropriar do pensamento da autora e inferir que
o filme transita entre vários modos de conceber a reação dos negros/pobres ante a
hierarquia social que os exclui. Seja através da denúncia televisiva, da contestação do
discurso caridoso das ONGs e da representação da violência, Quanto vale..., ao
evidenciar o conflito como base das relações de classe e de raça, ora reve lará um
ativismo político capaz que questionar o poder de nomear das elites, ora sublinhará o
niilismo político de algumas reações, ora enfatizará a reprodução da ideologia
(branqueamento, caridade, reificação etc) por parte dos segmentos estigmatizados.
Já Narradores..., além de privilegiar a violência simbólica, quando opta por
encenar um conflito entre personagens, o faz enfatizando o retórico e o corporal sem, no
entanto, remeter à morte física. Em poucos momentos, o conflito chegou ao quase
insustentável. A possibilidade de este acontecer é anunciada na narração de Daniel
sobre a história de vida de seu pai, que termina: “Não tenho de nada não, seu Biá! Dessa
casa, eu só saio morto!”. A presença do coronel Gaudério, a “autoridade” do local, ativa
o confronto. Este é apresentado na seqüência em que os engenheiros ocupam a cidade.
Moradores protestam diante de placa que anuncia a construção da barragem. Firmino
reclama com Biá: “Foi Gaudério quem trouxe os homens!”; “O matador?”; “Isso
mesmo! Aquele coisa ruim filho de uma peste!”.
No bar, Biá bebe um copo de pinga ao som do protesto de Vado: “Queria era
correr com eles daqui!”, ao que Firmino responde: “e quem corre com Gaudério, aquele
coisa ruim, que parece que tem uma nuvem negra na cabeça?”. Antero, o dono do bar,
faz gesto de silêncio e Gaudério chega subitamente, fazendo o pedido de um copo de
pinga com um gesto. “Mas num tá fácil! Essa represa vem que vem bulindo com a
cabeça de muita gente! Vai ser um aguaceiro danado de não sobrar nada! (...) E quem é
o tal de Biá que esse povo tanto fala?”; Biá, à sua frente, o responde: “Sou eu mesmo,
em carne e osso!”; “E você é o quê? Faz o quê?”; “Eu sou escrivão de prosas, seu
Gaudério! To na labuta de escrever os nobres e grandes feitos do vale do Javé! História
como o senhor sabe até hoje muito contada e ouvida, mas nunca escrita e lida!”; “Prezo
essa labuta! Respeito! Ainda mais se é pra contar a história de um lugar que não vai
existir mais!”. Gaudério começa a rir, sendo subitamente interrompido por Vado: “o
senhor me desculpe de eu falar, mas Javé não vai afundar! A gente parece meio pelas
covas mas só parece! Nós também viemos de gente de coragem! O livro vai provar nos
termos científicos!”.

186
Na seqüência seguinte, a reunião dos engenheiros e dos moradores na praça é
interrompida por vários tiros (o filme hibridiza os registros do cinema e do vídeo
caseiro para, em um primeiro momento, revelar os protestos dos moradores e, em
seguida, transmitir ao espectador o corte abrupto dos tiros). Gaudério, de arma em
punho, espreita à procura do atirador enquanto os presentes na praça saem correndo.
Daniel sai da sombra e o desafia: “Se tiver coragem, atire!”; “Vou fazer sua vontade”.
Gaudério é impedido por dois engenheiros e Daniel aponta a arma para eles: “Deviam
de botar pra correr essa gente a mando da represa e quem mais vier”, no que é contido
pelos moradores. Vê-se, além do poder político local a serviço dos interesses estatais, a
possibilidade de um confronto armado (e, por conseguinte, a extensão deste a uma
resistência armada, no que é abortado pelo pacifismo dos moradores).
Em Quanto vale..., o personagem Marco Aurélio, alvo de um seqüestro, é
mutilado, tendo dedos e orelha amputados. Arminda é assassinada no primeiro final. O
sofrimento dos escravos negros é exposto junto aos instrumentos de tortura. Já em
Quase Dois Irmãos, Juliana é agredida e empurrada por Mina de Fé, sendo machucada
na cabeça; na penúltima seqüência, é estuprada pelo bando rival de Deley; várias
execuções sumárias são mostradas no filme; o bando de Deley invade casa de senhora
moradora da favela e a espanca, destruindo seus móveis; Jorginho é espancado na
cadeia por um guarda negro que grita: “Que história é essa de negro subversivo?! Não
existe negro subversivo!”. Desse modo, os conflitos de raça e de classe são
“corporificados” nas relações entre os personagens e marcados pelos signos da violência
e do grotesco. A tensão entre o pedagógico e o performativo, aqui, inscreve a narrativa
da nação como corpo na reiteração do lugar dos discursos raciais e na ênfase de seu viés
histórico/temporal.
Para encerrarmos, nada melhor que a letra Vida de bandido, de Mr. Catra, no
baile funk de Quase Dois Irmãos: “Liberta, coração! Liberta, coração! A vida na cadeia,
amigo, não é mole não! A vida na cadeia não dá nem pra imaginar! Acredite meu
amigo, só vendo para falar!”.

187
Capítulo 4

POR UMA PASÁRGADA MODERNA, PÓS-MODERNA OU


SUPERMODERNA? ALGUMAS NOTAS SOBRE IMAGENS DE BRASIL

Sendo a nação um sistema de classificação social conjugado com vários outros


(classe, “raça”, gênero etc) – mais que uma mera “comunidade imaginada” – esta se faz
presente em diversas práticas no tocante à produção de sentido, para recordar ao
universo das subjetividades a “existência” de uma ordem objetiva partilhada
coletivamente (muitas vezes chamada de “esfera pública”).
Diversas imagens de Brasil são passíveis de serem rearticuladas a partir da
memória do campo cinematográfico inscrita no habitus partilhado e disputado por seus
diversos agentes. No presente capítulo, tentaremos analisar de que modo as imagens
tradicionalmente ligadas ao Brasil e suas dicotomias – cidade/campo; favela e sertão –
são atualizadas em Quanto vale ou é por quilo?, Quase Dois Irmãos e Narradores de
Javé, além da realização de uma abordagem levemente comparativa com outros filmes
brasileiros do período compreendido entre 1990 e 2007. Torna-se extremamente difícil,
de um lado, deixar de reconhecer, no cinema brasileiro atual, um desejo de efeito de
verdade na produção de imagens relacionadas à brasilidade e, de outro, os
condicionamentos de que essas imagens se pautam para articular/legitimar/contestar/re-
inscrever certas categorias identitárias.
Para limitar nosso esforço, restringir- nos-emos aos espaços construídos nos três
filmes, sendo que a análise comparada será inscrita nessas representações. Aqui, assim
como o fizemos no capítulo anterior, devemos evocar as questões atinentes à imagem
formuladas no capítulo um350 para lançar nossa hipótese principal: o cinema brasileiro
contemporâneo continua a privilegiar os lugares da imaginação nacional formulados
durante o regime discursivo do nacional-popular (leia-se, favela, sertão e subúrbios),
porém não sem alterar as formas de apresentação dos mesmos, através do diálogo com
outros campos da comunicação audiovisual (principalmente a televisão). Para auxiliá- la,
eis algumas hipóteses secundárias: a) a tensão entre lugar e não- lugar, nos espaços de
sociabilidade ligados à formação de um sentimento de “brasilidade”, mesmo
imprimindo algumas alterações, não conseguiu extinguir a disputa por significado

350
Principalmente aquelas em relação à teoria de Marc Augé e seus “não-lugares”.

188
atinente a essas imagens; b) assim como as representações ligadas aos personagens e à
narrativa, os lugares/imagens também passaram a ser re-apresentados de acordo com
vários sistemas de classificação que disputam, nas fissuras do discurso nacional, seu
direito a significar, o que evidencia a formação de um novo regime discursivo,
construído por meio das contradições do anterior (sem, no entanto, aboli- lo por
completo).

I O URBANO: DO COSMO AO CAOS...

A urbis encontra-se em dois dos três filmes analisados. Apresentado de modos


diferentes, o ambiente urbano aglutinará uma série de espaços já representados pelo
cinema brasileiro ao longo de sua história: favela, subúrbio, as metrópoles, os presídios
etc.
Em Quase Dois Irmãos, uma imagem da formação nacional é privilegiada: a
favela. Cindida em duas temporalidades, esta transitará entre duas representações
comuns ao popular - o idílio e o teratológico - e reviverá diversas narrativas veiculadas
pelo cinema brasileiro, tais como Favela dos meus amores, Rio 40 Graus, Rio Zona
Norte, Cinco Vezes Favela etc, trazidas pela memória do campo ao tempo presente.
A favela dos anos 50 (“1957 – Favela Santa Marta”) configura uma junção de
planos subjetivos da personagem Miguel, na medida em que ela existe diegeticamente a
partir de sua memória afetiva (imagens mentais – todas as inserções dela se fazem por
meio de lembranças, sonhos, delírios etc de Miguel), o que nos remete a um imaginário
articulado em alguns setores das classes médias sobre o lugar- favela enquanto imagem
de povo e de Brasil.
É apresentada como um espaço onde se articula inicialmente uma fábula, através
da imaginação do menino Miguel – plano da porta-bandeira bailando ao som da voice
over de Hele na (“Todo mundo olhava espantado, sem saber quem poderia ser aquela
moça tão bonita e bem vestida que dançava e dançava e dançava com o filho do rei”),
sendo que a câmera amplia para a dança desta com o mestre-sala (o “filho do rei”). A
produção de sentido no tocante à representação de um mito de origem é ampliada nas
inserções seguintes em que a favela aparece: seu Jorge aparece tirando a letra de um
samba acompanhado do pai de Miguelzinho e câmera focaliza em plano conjunto o
encontro dos dois, uma metonímia do encontro racial e de classes.

189
O universo popular adquire autonomia narrativa e passa a simbolizar uma nação
ideal. O Brasil “cordial”, fruto do encontro racial não-violento e resistente às
desigualdades sociais contemporâneas, é eleito enquanto um mito de nacionalidade a ser
narrado a gerações futuras, dialogando com o ideal da democracia racial tal como
formulado por Gilberto Freyre, por meio do contato (via sexo) das diferentes “raças”. A
favela, portanto, configura aqui uma “imagem mestiça” e pacífica do Brasil, destacando
a postura de uma classe média intelectualizada (lembremos que Miguel é militante
político e seu pai é jornalista) que revigora um ideal de kultur romântico e dota o
popular de “raízes imaginárias” de uma nacionalidade em formação e de uma “essência”
a ser louvada, respeitada e transmitida via narrativas (inclusive audiovisuais)351 . Aqui,
aparece como um “microcosmo”, onde a existência de outros ambientes é apenas
mencionada (na fala, por exemplo, de Dona Rosa, quando fala do seu cotidiano na “casa
da patroa”).
A identificação entre a memória afetiva de Miguel e a representação da favela,
aliada ao fato de a primeira ser formulada em sua infância, conota ao popular uma outra
característica: a pureza. Retornando à roda de samba, a câmera mostra os
instrumentistas em close acompanhando a melodia de Jorge e o cantar empolgado do
pai de Miguel e este, envolto em uma fotografia preta que destaca seu rosto e, em
seguida, um pandeiro tocado. Evocando a figura do “malandro”, caracterizada
justamente pelo contato entre os diversos segmentos sociais, o filme elege como seu
mito do eterno retorno um momento de pacifismo que, acentuado pela fotografia
amarelada (signo de um passado), terá seu lugar de autoridade legitimado ou contestado
em outros momentos 352 .

351
É preciso, nesse ponto, fazer alusão à diferença entre Kultur e Zivilisation feita por Norbert Elias em
O Processo Civilizador. Tendo a cultura alemã como seu referencial teórico, Elias afirma que o primeiro
termo (Kultur) era politicamente usado por uma classe média universitária que, no século XIX, tentava
afirmar a valorização de um domínio popular para fazer frente à burguesia alemã afrancesada que se valia
de inúmeras marcas de distinção para consolidar seu poder político e econômico e desprezava as tradições
alemães (Zivilisation, em referência ao conceito francês de Civilisation, cuja base era a escala de valores
que iam do primitivismo à civilização plena, sendo esta alcançada via progresso científico e extirpação
dos valores e hábitos tradicionais). Esses conceitos alternam-se no tratamento concedido às diversas
culturas populares, cujo tom varia entre o culto das “raízes” (domínio do “essencial”) e as narrativas que
as ‘demonizam’ e que pregam a necessidade do progresso para alterá-las (é interessante frisar que os usos
políticos do conceito ‘popular’ podem variar desde a afirmação deste como o domínio do nacional até a
presença deste no âmbito da cultura de massa, hibridizando-se com esta).
352
É interessante notar que o cotidiano da favela dos anos 40-50 é, até hoje, trazido à memória coletiva
por meio da indústria fonográfica e dos sambas de Cartola, Pixinguinha, Noel Rosa, dentre outros e suas
“re-leituras pós-modernas” por outros ritmos (funk, hip hop, dance etc), recordando o ideal romântico que
paira sobre esta e dialogando com as representações audiovisuais (cinematográficas, televisivas etc).

190
Essa imagem de favela enquanto signo da nacionalidade brasileira remete-se
diretamente à formação discursiva nacional-popular, uma vez que filmes como Rio 40
Graus, Orfeu Negro e Rio Zona Norte já haviam apresentado ao cinema brasileiro esse
espectro de representações. Em Rio 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1954),
destaca-se a rede de solidariedade existente no morro em contraponto ao asfalto no qual
as pessoas se batem a torto e a direito, por meio da personagem do menino vendedor de
amendoins (o contraste entre a solidariedade dos moradores à sua mãe doente e a
indiferença de sua morte em frente ao Maracanã no momento de um gol). Em Quase
Dois Irmãos, a união popular se faz presente na roda, onde os moradores confraternizam
ao som dos sambas 353 , percebido como um atenuante das adversas condições de vida (o
delírio de Miguel, na surda – cadeia dos anos 70 – é entrecortado com planos conjuntos
que mostram moradores sambando, planos em close de Jorginho e Miguelzinho
dançando e planos médios da porta-bandeira bailando – uma repetição do início do
filme, sendo que a música do samba ‘contamina’ toda a seqüência). Sendo assim, o
popular aparece dotado de uma força coletiva tanto na representação de Rio 40 Graus
quanto aqui.
Já em Rio Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957), retrata-se o fracasso de
um sambista em gravar suas músicas – referência clara em Quase..., uma vez que
Miguel, ao receber na cadeia a notícia da morte de Jorge Silva, constata o mesmo:
“morreu sem ter conseguido gravar um samba”. A criatividade popular, em ambos, é
mostrada como tolhida pela indústria cultural e pela comunicação de massa dominada
por uma elite tecnocrata, que se apropria de suas criações e oblitera o acesso das massas
populares à criação socialmente reconhecida (isto é, na qual circulam capitais
econômicos e simbólicos), reservando a estas massas somente o papel de consumidor
(se bem que, em Quase..., a personagem do jornalista é representada de forma bem mais
leve que o empresário vivido por Jece Valadão no primeiro, porém não esquecendo o
viés romântico de sua relação com o morro).
Orfeu Negro (Marcel Camus, 1959), por sua vez, encena o mito grego de Orfeu
e Eurídice em uma favela carioca “imaginária” (isto é, desvinculada da geografia urbana
do Rio de Janeiro tal qual comumente aludida). Para tanto, une os desfiles de escolas de
samba à representação do mito atemporal e incorpora o cotidiano árduo da favela a este.

353
Essa representação das rodas também se encontra no esquete de Carlos Diegues em Cinco Vezes
Favela (Escola de samba, alegria de viver), justamente para enfatizar a união popular e associá-la ao
prazer corporal.

191
Quase... também se preocupa em encenar um mito – desta vez, o mito fundador de uma
nacionalidade – adotando estratégias discursivas às vezes semelhantes a Orfeu Negro (o
filme apresenta em seu início, dentre outros, um desfile de escolas de samba no
Sambódromo carioca; a narrativa mítica do encontro e relacionada a um passado
imemorial).
Já a favela atual é representada de modo a salientar mais que uma “cidade
partida”, uma cidade inconciliável e que encontra no ciclo trágico - envolvendo
narcotráfico, presença de armas cada vez mais potentes e conflito de facções criminosas
- seu desenlace “inviável”. Este espaço de sociabilidade híbrido entre o urbano e rural -
na medida em que não é totalmente incorporado à cidade, porém mantém redes de
sociabilidade que, mesmo desestabilizadas pela migração, possuem algumas
semelhanças com as sociabilidades do campo - é alçado à diegese por meio de um baile
funk e sua contraposição a uma execução sumária de um morador da “comunidade”, em
virtude de uma dívida não quitada com o tráfico.
Câmera mostra Juliana e suas amigas cumprimentando menino negro e
acompanha seu movimento na entrada do baile, cujo ápice é seu beijo em Deley, sob o
olhar raivoso de Mina-de-fé (não sem esquecer o bando de criminosos empunhando
armas e consumindo drogas, os signos da favela atual tais como veiculados pelos meios
de comunicação – principalmente o telejornalismo). Do romantismo, passamos,
portanto, às narrativas do teratológico, como se fosse reproduzido o rapto mitológico de
Perséfone por Herodes e este a conduzisse novamente ao Inferno comandado por ele.
O “rapto”, aqui, é substituído pela atração e pelo fascínio de Juliana perante este
microcosmo - partilhado parcialmente por suas amigas - visto que alia à favela valores
como liberdade e contato democrático entre classes e raças (e revivendo, em parte, as
narrativas românticas em torno da favela, tal como concebida por seu pai). Por isso,
critica o olhar supostamente etnocêntrico de seu pai, qualificando-o de racista.
Ironicamente, o desenlace desse “rapto” pela atração é o estupro, uma espécie de
“punição” que ressalta a violência do contato entre desiguais na sociedade
contemporânea (a cena em que Juliana é estuprada contrapõe o ato do bando de Duda a
imagens da cidade iluminadas à noite, evidenciando o caráter cíclico da violência e o
signo da cidade enquanto uma recordação do papel das classes).
É preciso, aqui, comparar a relação de Juliana com a de suas amigas: enquanto a
primeira tende a cada vez mais ampliar seu raio de ação (mesmo que isso implique
riscos), suas amigas se situam mais temerosas ante esse universo (incorporando

192
simultaneamente os discursos do exótico e do teratológico), haja em vista a cena em que
elas, esperando por Juliana e sentadas na escadaria de acesso ao morro, ao avistarem
homens armados transitando, são tomadas por um conflito entre ir embora ou esperar a
amiga. Esse mesmo conflito é acentuado pelo encontro entre Juliana e Mina-de- fé, no
qual a primeira é agredida (a agressão como mais uma possível punição à transgressão
no contato inter-classes, adicionada à humilhação imposta a Juliana na discussão com
Deley). A favela representa, logo, um espaço de expiação contemporânea (ao contrário
da resistência e da possibilidade de um projeto de transformação social, imagem
referente a uma jovem esquerda política dos anos 60, a favela passa a ser o domínio do
caos, ‘contaminando’, inclusive, os que a freqüentam).
A união popular que se acopla à representação da favela dos anos 50 é devastada
pelo cotidiano da favela atual, mergulhado na briga entre facções criminosas rivais. A
rede de solidariedade cede lugar ao terror vigente através das “leis do crime”: o
assassinato de “Paraíba”, a invasão da casa da empregada de Juliana pelo bando de
Deley (que a acusa sumariamente de delação), além da atuação corrupta da polícia e da
presença de armas pesadas (signo do “não- lugar” de uma indústria bélica que prolonga
seus tentáculos mundialmente, seja nas favelas cariocas, seja na guerrilha colombiana,
seja nas guerras étnicas na África e na Europa Oriental etc); tudo isso configura a
ascensão de uma imagem da favela enq uanto lugar que aniquila a possibilidade de
resistência e de projetos formulados no âmbito popular. Isso acentua as disputas do
lugar antropológico e do não-lugar imposto pela “leis do crime”354 , cujos territórios são
marcados pelo critério econômico e que apreendem os conflitos de ordem simbólica
entre comunidades historicamente rivais.
Ao contrário do microcosmo da favela dos anos 50, no qual a cidade só é
mostrada em cenas externas a ele, a favela atual projeta seu olhar sobre a cidade. Em
vários momentos do filme, a fragmentação, a decadência e a deterioração das relações
humanas – temáticas caras ao ambiente urbano e representadas no cinema brasileiro
atual – são “testemunhadas” pela câmera colocada na favela que dirige seu olhar a esse
lugar inóspito, porém adotando estratégias de cumplicidade em vez de contestação
(como em Rio 40 Graus).

354
Isto é, a tentativa de os criminosos implementarem “leis” enquanto a homogeneização similar aos
comandos em aeroportos, rodovias e outros deslocamentos (até porque a favela é percebida pelos bandos
criminosos enquanto lugar de passagem nos conflitos entre si e com a polícia), na medida em que esta
facilita a “leitura” do território pelas facções.

193
Devemos aqui fazer uma pausa para averiguar como essa cisão entre cidade e
favela/subúrbio aparece em outros filmes. Fala Tu (Guilherme Coelho, 2003), por
exemplo, evidencia um Rio de Janeiro pouco representado: as centrais de telemarketing,
a Zona Norte (fora das favelas), Barra de Guaratiba - espaços pouco divulgados pelo
cinema brasileiro. Parte-se do cotidiano dos personagens (sendo preciso lembrar que
apenas um deles sobrevive exclusivamente da música; os outros possuem ocupação
diversa), mostram-se situações em que há uma identidade “espacializada”, sendo a fala
de DJ A bastante clara: “Atenção, Senhores assaltantes! Quando vocês forem assaltar,
prestem atenção! Não venham para a Zona Norte para levar o material de quem não
tem. Levem de quem tem, vá para a Zona Sul, a burguesia está jogando dinheiro à
vontade para o alto. Agora um simples trabalhador, cidadão comum, que fala pelo povo
pobre, vocês me dão um prejuízo desses?”. Ou, ainda, o depoimento de Macarrão,
comparando a vida na favela e em apartamentos: “Quer melhor coisa do que viver em
uma comunidade? Todo mundo te respeita, ninguém te olha de olho torto, todo mundo
te conhece pelo teu nome. Você mora num prédio de apartamento, ninguém te conhece
(...) tipo uma prisão”.
Já em O Rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas (Paulo Caldas e
Marcelo Luna, 2000), a oposição entre o centro e a periferia de Recife encontra-se
presente, sobretudo, nas imagens do documentário: construída por meio de conflitos de
movimentos (retilíneos e calmos dos transeuntes da avenida; desesperados, hesitantes e
temerosos de um morador da periferia – movimento realçado pelo tremer de uma
câmera - que corre não se sabe o porquê) e de espaços (aspecto monumental e
harmônico do Centro evidenciado na forma reta da avenida e no Palácio da Justiça
versus aspecto simples e “manchado” da arquitetura das casas). A incomunicabilidade
entre esses dois espaços será explicitada na seqüência seguinte, onde se vê o jovem
Helinho relatando seus laços de parentesco, encarcerado numa solitária. As falas de
Garnizé e de Helinho destacam o cotidiano pobre e difícil de Camaragibe, sendo ambas
endossadas pelas letras dos rapes de Faces do Subúrbio e de Racionais MCs. O
confronto, entre essas duas ordens, é localizável no presídio e no poder de polícia.
Por sua vez, em Sou feia mas tô na moda (Denise Garcia, 2005), documentário
sobre mulheres cantoras de funk, o lugar priorizado é a Cidade de Deus, graças a
panorâmicas, plongées, havendo menção a outros lugares do Rio de Janeiro somente no
depoimento dos entrevistados, via de regra de forma negativa (a fala da rapper Juliana
sobre um show em uma boate em Copacabana marca o conflito de classes, na medida

194
em que esta narra que senhoras moradoras do bairro jogaram baldes com água em seu
grupo, aos gritos de “isso é música de favelado!”). Portanto, concluímos que o discurso
político ligado ao rap e ao funk, embora se encontre bem difundido (haja em vista a
referência à mídia de massa tanto n’ O Rap... quanto no Sou feia...), é ligado a um
espaço-tempo específico: as áreas pobres das grandes cidades brasileiras após a década
de 80355 .
Faz-se necessário, ainda, relatar que o principal espaço ligado à construção de
uma resistência popular é a periferia, que tem na favela sua principal imagem.
Entretanto, Fala Tu inova ao mostrar a periferia fora da favela e, além disso, como essas
periferias (dentro e fora da favela) se cruzam na afirmação de um lugar de fala (o filme
mostra uma Zona Norte do Rio de Janeiro pouquíssimo representada no cinema
brasileiro – Penha, Oswaldo Cruz - mas fazendo a alusão clássica à linha do trem356 ).
Retornando a Quase Dois Irmãos, no último plano geral que encerra o filme, a
música Quase Irmãos superpõe-se à imagem dos prédios e mostra em continuidade as
casas no morro contrastando com o “cartão postal” do Cristo Redentor, uma ironia na
contraposição visual entre o ideal de cidade representado pelo Cristo – revivido em
diversas narrativas cinematográficas 357 e televisivas – e a desigualdade social em que
este se sustenta. A cisão do título do filme é aqui potencializada pela noção de destino,
através da continuidade nas ações das personagens Miguel e Jorginho.
Vejamos como a imagem do Cristo Redentor faz-se presente em outros filmes:
em Cronicamente Inviável (Sérgio Bianchi, 2000), plano geral do Cristo sobre uma
música de bossa nova e da narração: “Não é estranho que ele sempre fique de braços

355
Sobre a favela Cidade de Deus, o depoimento de um rapper relata um fato constrangedor sobre a
imagem do local: certa vez em que pegou um táxi de Copacabana com sua família, o taxista recusou-se a
entrar na favela alegando que era muito perigoso. Reagindo de forma incisiva e afirmando que não
pagaria a corrida, foi surpreendido pela atitude do taxista, que o liberou do pagamento, desde que não
fosse obrigado a deixá -lo na porta de sua casa. Deve-se conjeturar se essa reação do taxista não se deu,
em parte, graças à divulgação de uma imagem negativa da favela após a exibição do filme Cidade de
Deus (sobre este assunto, foi-me relatado pela antropóloga Ana Lúcia Enne, com atividades de pesquisa
em várias favelas do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense, que após este filme muitos moradores
foram constrangidos a não revelar que ali residiam, sob pena de não conseguirem empregos). Desta
forma, especula-se se Sou feia... funcionaria como um contraponto à imagem difundida
internacionalmente por Cidade de Deus (lembrando que, tendo em vista a repercussão do filme de
Meirelles e Lund, a representação deste assume um peso dificilmente contrabalançado por qualquer outro
filme com divulgação local ou apenas em festivais).
356
Chamamos essa referência de “clássica” em relação à história do cinema brasileiro (lembrando filmes
como Rio, Zona Norte e Boca de Ouro, ambos de Nelson Pereira dos Santos).
357
Em comunicação proferida no encontro da SOCINE de 2006, o pesquisador Ismail Xavier destacou a
presença de imagens do Cristo Redentor na diegese de vários filmes brasileiros atuais e sugeriu a
realização de uma pesquisa sobre como essas imagens produzem diferentes significações. Aproveitando
limitadamente a idéia para o objetivo deste capítulo, é interessante contrapor a imagem do Cristo em
Quase Dois Irmãos à de outros filmes, o que será brevemente feito aqui.

195
abertos? Pode dar a impressão que ele diz: “Venham de todos os cantos do mundo,
homens de todas as raças, culturas e credos. E explorem sem piedade, toquem fogo em
tudo. Não tenham respeito à terra nem aos que viviam nela. Nem aos velhos, nem às
crianças”. O sociólogo Alfredo Bur (Umberto Magnani) olha para Cristo; plano
destaque do rosto da estátua; voice over: “Venham e fodam tudo!”. Inserindo a imagem
do Cristo numa visão “totalizadora” da realidade social brasileira, o filme se vale de um
tom de desautorização (pelo sarcasmo presente na voice over e na contraposição desta
às ações das personagens) que se adiciona à alegoria nacional – o Cristo – e evidencia o
espúrio empreendido por uma elite financeira.
Já em Redentor (Cláudio Torres, 2003), o Cristo é um elemento dramático que
atua ora como “personagem-testemunha”, ora como um aliado e uma instância moral
relativa à ação do protagonista Célio Rocha (Pedro Cardoso), um jornalista de classe
média baixa. Em uma inversão de expectativas, o Cristo é utilizado para legitimar uma
moral ligada a essa classe, que vê em valores como honestidade, amizade etc uma
compensação a seu ressentimento e, por conseguinte, explicitar a imagem de um Brasil
que necessita ser ‘salvo’ da corrupção e da lascívia das elites.
Em Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2001), existe uma
menção genérica ao Cristo na voice over da personagem Busca-pé (Alexandre
Rodrigues) que apresenta o lugar ocupado pela Cidade de Deus na geografia urbana do
Rio de Janeiro: “a rapaziada do governo não brincava: não tem onde morar, manda pra
Cidade de Deus! Lá não tinha luz, não tinha ônibus, não tinha asfalto. Mas pro governo
dos ricos, o nosso problema não importava. Como eu disse, a Cidade de Deus fica bem
longe do cartão postal do Rio de Janeiro”; ressalta-se, aqui, a segregação espacial sob a
qual Quase Dois Irmãos também constrói sua dualidade.
É interessante salientar que Cidade de Deus realiza uma operação dupla com o
imaginário coletivo em torno da favela a partir dos anos 80: ao ser alimentado pela
imagem construída pelos meios de comunicação sobre o cotidiano da favela 358 , marcado
pela pobreza dos trabalhadores braçais em contraste com a prosperidade econômica dos
agentes do tráfico e com a presença de jovens de classe média, pela violência imposta
nos confrontos (verdadeiros shows televisivos) entre policiais e traficantes e pelo

358
Não somente pelos meios televisivos, como também pelo próprio cinema brasileiro dos anos 90 e seus
vários exemplos: Notícias de uma guerra particular (1996), de João Moreira Salles (que contou, inclusive,
com a participação de Kátia Lund, co-diretora do filme e também de Cidade de Deus, e que serviu como
base para o trabalho de seleção de jovens atores negros oriundos de comunidades carentes cariocas),
Orfeu (1999), de Carlos Diegues, Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, etc.

196
barbarismo da guerra do narcotráfico e seus códigos, Cidade de Deus não apenas
reforça esse imaginário, como também reforça uma imagem de Brasil tendo a violência
como paradigma.
Em Quanto vale..., a favela também aparece apresentada no contato entre
classes. Ao contrário do lugar de um mito do eterno retorno, como em Quase Dois
Irmãos, a favela passa a representar as conseqüências das fissuras das narrativas
nacionais e da construção de uma hierarquia social baseada na reificação. O samba e a
roda, de ideais de nacionalidade, passam a ser elementos de uma retórica que limita o
popular. Lugar do marginal (no sentido do que vive à margem, não do bandido stricto
sensu), onde a cidadania é desconexa do cotidiano árduo, a favela de Quanto vale...
representa um Brasil trágico, onde o conflito entre liberdade e necessidade conduz a
uma violência caótica e a uma fluidez na transição do poder patriarcal exercido pelo
chefe do narcotráfico sobre a comunidade. Importante recordar a ligação feita, por meio
dessa imagem de Brasil, entre comunicação de massa e representação ora teratológica,
ora caridosa. A caridade veiculada pela publicidade destinada a um público de classe
média (mostrando uma favela em preto-e-branco) é substituída, em uma seqüência
posterior, pela favela como lugar do crime – seja pela exposição do corpo de um jovem
negro morto, seja pela referência no diálogo entre o seqüestrador e Marco Aurélio à
comunidade – imagem construída via telejornalismo.
Outras imagens associadas a um Brasil urbano são mostradas em Quanto vale...
e em Quase Dois Irmãos. No primeiro, o subúrbio, imagem típica de um urbano já há
muito exibido no cinema e na televisão brasileiros, é retomado no jogo de classes em
que se baseia o filme. Em Quanto vale..., a representação visual do subúrbio se faz ora
por meio de panorâmicas que o mostram cada vez mais envolto pelas favelas, ora pela
casa de Mônica, cuja decadência de ordem material configura um signo do
empobrecimento desta classe, além de sugerir uma decadência moral encenada pelas
personagens. O “perigo” mobilizado discursivamente por Mônica de a classe média
baixa ser confundida com os pobres é, portanto, representada visualmente pelos
ambientes nos quais as personagens caracterizados como pertencentes a essa classe
circulam.
Retornando ao exemplo do comercial “Vencendo com o social”, a decadência é
ressaltada na adição entre imagem e som: o ponto de vista de Mônica que mostra o
grupo de mendigos na porta de sua casa e a voice over destacando palavras como
“dignidade esvaziada”; “bolso vazio”; em seguida, a linguagem publicitária destaca a

197
melhoria na imagem de Mônica e na associação criada e comandada por esta; equipe de
TV filma entrevista de Mônica, que resume categoricamente: “e u não vou descansar
enquanto houver gente passando fome”. O tom falsamente “cordial” e “caridoso” ante a
miséria, passível de ser melhorada pelo trabalho assistencial, enquanto uma mise-en-
abîme da visão “total” do Brasil marcado por uma perversa lógica de classes de Quanto
vale..., é representado e encenado no subúrbio. O cenário que abrigava a malandragem,
os dramas familiares de Nelson Rodrigues (inclusive em representações veiculadas pelo
cinema brasileiro 359 ) é re- interpretado em sua dimensão trágica: o sonho de ascensão
social de Mônica (presente na estética publicitária) contrastado com a decadência
material e moral que lhe é imposta (fica desempregada; passa a fazer “bicos” – doces
pra vender; revela seu alcoolismo). Inclusive, a própria “salvação” encenada no final (a
comemoração de Mônica atirando ao alto as cédulas de cem reais ganhas por Candinho)
é desautorizada pela voice over que recorda ao espectador a “origem” do dinheiro e,
mais, sua dimensão racial.
Outros subúrbios representados em filmes como Amarelo Manga (Cláudio
Assis, 2001) e Durval Discos (Anna Muylaert, 2003) merecem ser aqui retomados. No
primeiro, um hotel abandonado em Recife é habitado por diversos “tipos” como o
homossexual Dunga (Matheus Nachtergaele); Dona Aurora, retratada como uma
senhora doente que, em uma cena, enfia um inalador na vagina; o necrófilo Isaac (Jonas
Bloch); no segundo, Durval (Ari França) divide com sua mãe (Etty Frasier) uma casa no
subúrbio de São Paulo e tem um comércio de discos de vinil pouco rentável. À aparente
monotonia do cotidiano, o filme passa a construir um suspense que envolve seqüestro e
morte, culminando com a demolição da casa. Em ambos, degradação e classe média
baixa são ligados, assim como em Quanto vale...
Passemos a outra imagem que se associa ao urbano: a família nuclear. Esta
aparece nos dois filmes; no entanto, a diferença no tratamento concedido a ela será
fundamental para compreender o estatuto das representações de Brasil articuladas. Em
Quanto vale..., duas famílias pobres (de Arminda e de Lourdes), uma de classe média
baixa (de Mônica) e uma de classe alta (de Marco Aurélio) configuram pequenas micro-
narrativas que contestam a tradicional representação de família veiculada, dentre outros,
pela publicidade e pelas telenovelas. A família asséptica, pacífica, amorosa e na qual as
hierarquias sociais são naturalizadas é substituída por famílias que explicitam a

359
Diversos filmes ambientados no subúrbio remetem a essa rede de expectativas: A Falecida (Leon
Hirszman, 1965); Boca de Ouro (Nelson Pereira dos Santos, 1963; e Walter Avancini, 1990).

198
decadência moral e a reificação nas relações humanas (sendo que essa reificação vai da
cobrança por dinheiro até o seqüestro, passando pela exploração pelo trabalho – nas
cenas em que Dona Judith lava pratos em uma festa e em que uma menina negra enxuga
talheres na casa de Mônica); a afetividade é ora bastante limitada (na relação de Judith
com seus filhos adotivos), ora desmascarada (a cordialidade inicial de Mônica para com
Candinho transforma-se em hostilidade e desmoralização).
Deixando de ser uma instância moral, as famílias do filme passam a evidenciar o
jogo de classes na degradação das relações entre seus membros. Assim, a imagem
pacífica de Brasil à qual a família se associava (inclusive, por meio da teoria social que
a agregava à mestiçagem em suas casas-grandes e senzalas, sobrados e mocambos etc)
cede espaço às imagens que mostram a nação enquanto lugar da fragmentação
(narrativa, de ação das personagens) e, portanto, do conflito.
Em Quase Dois Irmãos, dá-se o oposto: a família é representada como instância
moral para tentar limitar as ações das personagens que contestam os lugares definidos
nas relações raciais e de classe. Além disso, a própria continuidade temporal encenada
no filme baseia-se, dentre outros, nessa tensão entre ordem e contestação trazida à mise-
en-scène: do primeiro conflito entre Rosa e Jorge e entre Miguel (pai) e Helena,
passamos ao choque de concepções de mundo entre Miguel (filho) e Helena e,
posteriormente, entre Miguel e sua filha Juliana. A família, portanto, continua a
reproduzir aqui os valores tradicionalmente articulados na manutenção das posições nos
diversos campos e no espaço social, sendo que a imagem de Brasil é marcada por uma
memória de futuro na qual se retornará ao mito pacífico da “origem” da nacionalidade
brasileira, mesmo que os conflitos tenham sido evidenciados no tempo presente.
É preciso observar que, em algumas seqüências desses filmes, as personagens
ligadas à família conferem a não- lugares - principalmente a rua - uma disputa por
significado. O primeiro encontro entre Mônica e Candinho é apresentado na rua
(Candinho trabalhando como lixeiro e Mônica grita seu nome enquanto distribui comida
para mendigos); o “despertar” de Mônica para a pobreza, no comercial-sonho, opera-se
a partir de um choque com a miséria exposta na rua onde mora; Candinho executa em
um beco dois jovens, depois de correr por um matagal; o diálogo entre Dona Judith e
Marco Aurélio no corredor da empresa; Miguel percorre um túnel em seu carro
assumindo a autoridade narrativa da diegese (por meio da voice over); discute com
Juliana em seu carro percorrendo ruas e túneis.

199
Uma instituição estatal que, ao menos em sua concepção, é caracterizada como
um não- lugar - o presídio - será privilegiada na diegese, acompanhando um jogo de
representações ligadas à violência e à criminalidade que re-configuraram as imagens de
Brasil (tal como o atesta a repercussão nacio nal e internacional dos filmes Cidade de
Deus e Carandiru, as notícias veiculadas pelo telejornalismo sobre rebeliões em
presídios e o cotidiano destes etc). Em Quanto vale..., a ligação entre presídio e
narrativa nacional é explícita na seqüência do comercial estatal sobre construções de
presídios, na medida em que estas são fundamentais para “a economia do município, do
estado e do país”. Essa ligação é alvo do pastiche do poema Navio Negreiro, de Castro
Alves que, comparando o escravo e o presidiário 360 , atribui às elites tecnocratas que
possuem o controle do Estado-nação o dilaceramento deste pela “lógica do consumo”.
O presídio de Quase Dois Irmãos, por sua vez, também se sobrepõe ao não- lugar
nas diferentes épocas: no presídio dos anos 70, destacando o conflito de ethos entre
presos políticos e comuns; no atual, pela caracterização de Jorginho e por suas ações
(fala ao celular; usa cordões de ouro). Adicionando a isso a cisão das práticas
empreendidas a partir das categorias raciais (já analisadas no capítulo anterior),
podemos inferir que a imagem de Brasil representada pelo presídio transita entre o
revelar da dimensão racial e de classe e a ênfase nas práticas da violência. Atribui a esta,
ainda, um grotesco, no sentido de lembrar as origens corpóreas dos conflitos e das
possíveis inversões ou, ainda, de torná- la teratológica.
O discurso da violência assume uma dimensão metalingüística semelhante a
Quase... 361 em Ônibus 174 (José Padilha, 2002). Narra a trajetória de um ex- menino de
rua sobrevivente do massacre da Candelária que seqüestra um ônibus no bairro do
Jardim Botânico, cuja notoriedade instantânea é alcançada graças à repercussão
concedida pela TV, que transmitiu ao vivo o desenlace do seqüestro, com a morte de
uma das reféns. Para tanto, o documentário se pauta pelas imagens televisivas e pelo
depoimento de especialistas numa análise dedutiva do processo da violência a partir do
caso Sandro do Nascimento. Além de este ser um jovem negro, a questão da raça é
trazida pela contraposição entre a voice over do sociólogo e as imagens mostrando
crianças negras abandonadas pelas ruas cariocas, além da fala da assistente social que

360
O trabalho do geógrafo Andrelino Campos estabelece uma comparação entre os espaços do quilombo
e da favela para averiguar como a “criminalidade” é socialmente produzida a partir dos diversos discursos
(policial-repressor, jornalístico, artístico, dos movimentos sociais etc) que disputam um lugar de
autoridade no senso comum. Cf: Do quilombo à favela: a produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004.
361
Recordemos a referência à formação do Co mando Vermelho.

200
revela o levantamento feito sobre os sobreviventes do massacre - a maioria foi
assassinada (sendo que as fotos a mostram com crianças negras) - e o resultado de uma
enquete feita sobre o mesmo na época – “a maioria das pessoas aprovou. Tinha mesmo
que matar essa cambada pra deixar a cidade limpa”.
A respeito de um Brasil hierarquizado racialmente, outros filmes irão entrar
nesse jogo de representações. Yndio do Brasil (Sylvio Back, 1995) realiza várias
colagens de materiais diversos (documentários oficiais da expedição Rondon, dos
militares da década de 70, publicidades da ditadura, marchinhas de Carnaval, ficções
nacionais e estrangeiras etc) para avaliar de que modos a imagem do índio tem sido
reificada e estereotipada pelas narrativas oficiais e, adicionando a isso procedimentos
que ‘desnaturalizam’ as representações veiculadas (a desconexão entre o discurso
imagético e o sonoro; o uso de voice overs com alteração de entonação de voz), inferem
que um Brasil ‘pacífico’ foi construído sob um genocídio silencioso.
A negação do Brasil (Joel Zito Araújo, 2000) adota procedimentos de colagens
semelhantes ao filme de Back para defender a tese que houve uma exclusão dos negros
da teledramaturgia brasileira. Aliando hierarquia de raça e de classe, o documentário
salienta, em pequenas mises-en-abîmes, que um ‘ideal de branqueamento’ é difundido
pela televisão. A título de exemplo, destacamos a inserção de um trecho da novela
Como salvar meu casamento (Edy Lima e Carlos Lombardi, transmitida pela TV Tupi
em 1968/69): a imagem mostra Dora (Nicete Bruno) assistindo, em sua sala, sua
empregada Zita no programa de calouros Raul Gil. Além de, no discurso, esta agradecer
à patroa o fato de estar ali, os jurados ressaltam a condição de empregada e passam a
elogiar Dora (algo ressaltado na voice over).
Finalmente, vejamos outra imagem ligada ao urbano na representação do
nacional: os espaços pelos quais as elites circulam. Bastante privilegiados em Quanto
vale..., as festas, palestras, reuniões relembram a oficialidade do poder e a afirmação de
uma ordem. Redentor, já citado aqui, também mostra os lugares em que esse poder é
transmitido: a mansão da família Saboya (a partir do ponto de vista do menino Célio, de
classe média baixa); o prédio da construtora da família (também mostrado a partir do
ponto de vista de Célio, dessa vez adulto); as reuniões em Brasília; etc. Ironicamente,
essa elite, mesmo degradada, é “salva” pelo final cômico (o amigo rico de Célio, Otávio
– interpretado por Miguel Falabella – funda uma seita na prisão).
Retornando a Quanto vale..., em vários momentos como, por exemplo, na
reunião de marketing de Marco Aurélio e Dom Elísio, na festa de premiação no Theatro

201
Municipal de São Paulo, o uso das imagens de povo - seja no comercial em preto-e-
branco que mostra favelas e mendigos, seja no data show exibido na premiação -
evidencia os tipos de controle ao qual estas são submetidas.
No documentário À margem da Imagem (Evaldo Mocarzel, 2003), a discussão
sobre a reificação das minorias sociais perpassa diretamente a questão da imagem: o
capital simbólico e econômico de um autor (cineasta, fotógrafo) versus a manutenção
dos estigmas e a reafirmação da hierarquia, sendo uma questão ética alçada à
representação do filme. Este se inicia com os depoimentos de Dona Ivete e de Anderson
(morador de rua), mostrados com a câmera bem próxima - o que denota uma
‘cumplicidade’ entre espectador e narração fílmica - relatando a expulsão do fotógrafo
Sebastião Salgado do recinto em que distribuía sopa para os mendigos. O poder de
controlar a produção imagética é aqui explicitado: “nós távamos na sopa, debaixo do
viaduto, e chegou um dos maiores fotógrafos, o Sebastião Salgado. ‘Ah, porque eu
quero tirar foto!’ ” (Anderson); “(...) E quando ele viu aquela cena, ele, antes de entrar,
já colocou a lente” (Ivete); “Daqui a pouco, aquelas fotos dele, ele vai ganhar muito
dinheiro! E a gente? Vai sempre ficar ali embaixo, vai sempre ficar ali necessitando,
quer dizer, a Ivete barrou ele!” (Anderson); “E aí ele falou: ‘Você não sabe quem eu
sou?’. E eu falei: ‘Sei, a Folha já disse que você é o maior fotógrafo do mundo’. E ele
foi tirando o crachá da Folha, dizendo que ele tinha autorização. Aí eu disse: ‘não, aqui
você não tem autorização’ (...)” (Ivete); “Aí ela falou: ‘se você quiser tirar fotos deles,
você tem que vir na sopa! Você tem de conviver com eles na sopa!’ ” (Anderson); “E aí
ele falou: ‘só essa negra!’. E eu disse: ‘não. Nada!’. Nós temos sido explorados demais
na imagem” (Ivete). A apreensão imagética encenada na ficção de Quanto vale... pode
ser comparada à percepção do controle, por parte dos entrevistados do documentário,
dos ganhos que essa imagem é capaz de proporcionar a uma elite tecnocrata, além de ser
uma crítica à estetização da pobreza vista em muitos produtos (audio)visuais.
A imagem de Brasil que é agregada à elite de Quanto vale... re- visita um
imaginário popular ligado à corrupção destas e uma ironia às reformas estatais no
sentido de privatizar suas atividades para justamente favorecer alguns grupos de poder
em detrimento de grupos tradicionalmente alvos de estigmas. Ligam-se nessa imagem
de Brasil poder e branquidade, sendo que um sutil ideal de branqueamento (algo já
difundido no final do século XIX a partir das instituições oficiais 362 ) que migrou para o

362
Conforme o trabalho de Lilia Schwarcz já analisado no capítulo anterior.

202
senso comum é trazido à diegese para ser logo em seguida desmascarado e ironizado.
Ademais, a presença da escravidão e da miséria como contraponto a esse poder
“branco”, no filme, sublinha a reprodução das desigualdades racialmente definidas e o
oportunismo de alguns agentes que se apropriam delas visando somente explorá- las sem
imprimir um processo de transformação social que, de fato, altere essa imagem de
Brasil (aliás, aliam-se o discurso da elite tecnocrata assistencialista e o tom farsesco dos
diálogos e da voice over para expor a categoria “branco”, retirando sua neutralidade e
sua naturalidade historicamente construídas em torno das representações nacionais).

II O INTERIOR ENCENADO: NOTAS SOBRE UM TERRITÓRIO


DESSACRALIZADO

Presentes há muito no ideário nacional, as paisagens do interior podem ser


situadas em um conjunto de representações veiculadas pelas diversas artes (literatura,
música, pintura, teatro, cinema) e em diferentes épocas. Considerando o espaço
enquanto uma construção apreensível pelas imagens e pelo discurso em suas dimensões
poética, prosaica, política e memorial, a ligação entre este e a paisagem é definidora de
várias representações de Brasil: o sertão, a floresta, o campo, dentre outras. Em
Narradores de Javé, várias paisagens são articuladas na diegese a partir da memória
oral e da trajetória das personagens, nas quais idéias como “essência”, “pureza” e
“tradição” são incorporadas aos diálogos para construir a autoridade na preservação do
vilarejo.
É bastante comum a ligação entre gênero épico e o “interior”, uma vez que o
primeiro se pauta pela exaltação da figura do herói e da tradição, convenções
assimiladas pelas histórias que retratam essa paisagem. No entanto, devemos observar
que esse interior difere de muitas representações veiculadas pelo cinema brasileiro ao
longo de sua história assim como de outras audiovisualmente difundidas hoje.
Eis a seqüência final de Narradores... : esta se inicia com moradores assistindo
em plano conjunto o alagamento da cidade lacônicos e termina com a partida coletiva
destes em um carro. Mostra-se em plano geral o lago que se forma sobre o vilarejo, no
qual se destacam o teto da igreja e parte do campanário. Um filme notório na
historiografia do cinema brasileiro, Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha,
1964), também possui uma última seqüência em que o sertão é “alagado” e na qual a
profecia libertária de Antônio Conselheiro – “o sertão vai virar mar e o mar vai virar

203
sertão” – se concretiza. A montagem ao articular planos rápidos do litoral a uma voice
over que entoa a profecia e ao adicionar esta seqüência à anterior – a morte de Corisco
(interpretado por Othon Bastos) – um ideal revolucionário articulado a partir de um
povo (representado por Tonho - Geraldo Del Rey - e Rosa – Yoná Magalhães) dotado
de qualidades - coragem, senso de justiça - para realizá- lo.
Já Narradores..., por sua vez, substitui o aspecto libertário representado pelo
alagamento do interior em algo trágico e que revela a subjugação de um povo mestiço e
impotente ante seu destino. Aliás, essa noção de destino é articulada nos dois filmes,
sendo que, enquanto no primeiro, este é interpretado a partir de uma teleologia e de uma
causalidade rumo à libertação, no segundo, o destino trágico se faz presente desde a
notícia do alagamento da cidade até escolha de Biá como “o” narrador (a causalidade
substituída por uma temporalidade disjuntiva e que se mostra impossível de ser
apreendida na escrita por este).
O embate entre os moradores de Javé e seu destino – a inundação do vilarejo – é
visto como um conjunto de significações a serem atribuídas a um lugar para que este
não sucumba e se transforme em um não- lugar. Percebendo o espaço como a
delimitação material da encenação e da reprodução do poder, os moradores que
articulam seus direitos de significar o fazem por meio de imagens construídas pela
retórica. É preciso enfatizar que a própria retórica, enquanto o uso eficaz da linguagem
(citações, figuras de linguagem, exemplos etc), ao ter como objetivo a desautorização de
uma fala alheia para legitimar a sua, possui um papel fundamental na interpretação
dessas imagens.
Diversas imagens de Brasil são trazidas ao plano da representação nessas
disputas: o ‘globalizado’, através das personagens jovens que atuam no interior pela
lógica da contaminação (Souza com seu visual roqueiro; jovem forasteiro com seu CD
player e música eletrônica; os jovens que tocam bateria na festa em Javé), visto que são
representados como uma interferência à temporalidade lenta deste; o ‘colonial’, pela
presença do patriarca Indalécio, sua vestimenta e seu porte na construção de um
heroísmo mitológico (o cavalo, o sino, a armadura e o bando enquanto signos da
colonização portuguesa); o marcado pelo conflito de terras e de bens, evidenciado na
luta dos moradores para se manterem em seu vilarejo (e, mais, na disputa dos irmãos
pela propriedade agrária herdada e no assassinato de um ladrão em busca de ouro –
fruto do trabalho em garimpo da esposa de um personagem, o pai de Daniel); aquele que

204
é exposto em contra- narrativas (a índia Maria Dina e o negro guerreiro Indaleu) que
repõem a Javé sua origem nobre.
Quanto à paisagem, é interessante reparar que o tempo memorial é representado
junto a uma vegetação intacta, recordando a “pureza” do interior. Nas histórias de
Indalécio, Maria Dina e Indaleu, a natureza aparece como um Éden a ser ocupado por
seus “eleitos”. “Indalécio não atinava com o lugar certo. Ele queria ir mais longe,
distante de braço de governo, de rei”, eis o interior que deve ser conquistado e
domesticado (discurso bastante similar ao dos engenheiros que querem trazem o
progresso às custas da cidade). Já o alagamento do povoado é precedido de imagens que
ressaltam o desgaste da paisagem – as ruas de terra seca, a erosão (mostrada diversas
vezes em panorâmicas), as casas com paredes e fachadas deterioradas; desse modo, a
decadência de Javé é ligada à sua paisagem.
Essa atribuição de uma “pureza” à paisagem interiorana também está presente
em Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2002). Os rituais familiares
(simbolizados pelas refeições e pelas leituras dos sermões feitas pelo pai – interpretado
por Raul Cortes), as festas campesinas de comemoração da colheita, a construção de
uma temporalidade imemorial – pela fotografia e pela montagem cujos cortes são
mínimos - tudo isso é interrompido pelo drama de André (Selton Mello) e a paixão
secreta por sua irmã Ana (Simone Spoladore), semente do ciclo trágico que traz a
destruição a esse interior “puro”.
Como contraponto a essa concepção, Quanto vale... nos apresenta um interior
impuro, “contaminado”: a referência ao interior está presente em um comercial sobre
construção de presídios, sendo que o mesmo aparece como algo supostamente atrasado
a ser beneficiado pelo “progresso” econômico a ser trazido pela expansão do sistema
penitenciário; a imagem de interior no filme é uma chácara utilizada na afirmação do
Estado privatizado e na subjugação das minorias sociais, cujo ritual de purificação é
explorado de modo patético (o vômito dos mendigos, ao ser gravado em um vídeo
caseiro para conseguir um financiamento internacional, configura um signo do grotesco
que participa nessa representação do interior - como um lugar que meramente reproduz
as relações citadinas).
Retornando a Narradores..., outro ponto fundamental para compreender que
imagens estão sendo reformuladas: a idéia do Nordeste enquanto região. Aqui,
precisamos retomar o trabalho de Durval Albuquerque sobre as práticas que a “criam”:

205
“A procura por uma identidade regional nasce da reação a dois
processos de universalização que se cruzam: a globalização do mundo
pelas relações sociais e econômicas capitalistas, pelos fluxo s culturais
globais, provenientes da modernidade, e a nacionalização das relações
de poder, sua centralização nas mãos de um Estado cada vez mais
burocratizado. A identidade regional permite costurar uma memória,
inventar tradições, encontrar uma origem que religa os homens do
presente a um passado, que atribuem um sentido a existências cada vez
mais sem significados. O “Nordeste tradicional” é um produto da
modernidade que só é possível pensar neste momento”363 .

Sendo assim, em qualquer momento no qual a existência de uma população


esteja em ameaça (guerra, conflitos internos ou, como no filme, o desaparecimento de
um lugar), um conjunto de práticas discursivas – narrar as histórias, escrever um livro –
e não-discursivas – a possibilidade de um confronto armado, a disputa de terras – pode
ser mobilizado em torno da idéia de região, para tanto recorrendo à memória coletiva e
produzindo uma série de imagens que reforcem uma possível origem comum.
Em Narradores, várias imagens evocam o Nordeste como este é
tradicionalmente apreendido pela visão e pelos valores das elites: o atraso econômico; a
religiosidade; a valorização da cultura oral e das tradições; a figura do “coronel”; além
do sotaque das personagens e do uso de certas expressões regionais. Entretanto, uma
imagem em particular destaca-se das demais: a figura do nordestino como retirante, isto
é, o “nordestino” como uma categoria identitária diaspórica, e cujas lembranças são
articuladas a partir de uma memória oral que transita num conjunto de valores e práticas
bastante difusas, tendo em vista a dificuldade de ordem material em preservar histórias e
lugares que não mais existem (textual e iconograficamente). O próprio título do filme já
indica a oralidade como o terreno privilegiado na transmissão dessa memória, uma vez
que a falta de saber letrado por parte dessas populações, a desvalorização de suas
práticas por uma burocracia estatal que oblitera cada vez mais quaisquer fatos que
recordem à “nação” seu lugar instável e a dispersão física dos membros dessas
comunidades (pelas migrações voluntárias e forçadas) imprimem a ela a necessidade de
um suporte difícil de ser alvo de sanções diretas, por um lado, e cuja codificação seja de
fácil acesso, de outro: a linguagem das expressões regionais e as práticas não-
discursivas como hábitos de cozinhar, morar, de se lidar com a vizinhança etc.
Outro elemento dramático que assim encena o nordestino é a presença constante
do deslocamento: as personagens quase sempre estão em trânsito; o andar se faz quase

363
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. Recife, Fundação
Joaquim Nabuco, Ed. Massangana e São Paulo, Cortez, 2006, pág. 77.

206
acoplado a outras ações como conversar, brincar, insultar. O filme é apresentado pelo
correr de um jovem; Biá tem seu percurso monitorado pelos moradores; as migrações
dos antepassados são revividas pelo êxodo atual da população de Javé.
Assim, o nordestino nos é apresentado como agente diaspórico, sendo isso
realçado logo no início do filme. A partir da figura de Zaqueu, que casualmente narra a
história de seu vilarejo aos freqüentadores de um bar. Com o passar do filme, o
espectador se depara com um narrador cujo lugar de autoridade é raramente contestado
(apenas pelo zombar de Souza, no tempo presente, a respeito da transmissão oral da
propriedade). À escolha do filme de Zaqueu, um homem idoso, como o narrador no
tempo presente, ligam-se a tradição e o passado imemorial aos quais os moradores
recorrem. O filme poderia ter escolhido outra personagem como Biá, Deodora, Vado,
Firmino, dentre outros, para esta posição; porém, se o fizesse, alteraria o estatuto da
representação veiculada pela diegese e, por conseguinte, o trágico poderia ter dado lugar
ao farsesco ou à contestação direta da autoridade narrativa, o que não ocorre graças à
solenidade da fala de Zaqueu.
As representações de Nordeste também se encontram em diversos filmes da
produção audiovisual brasileira atual. Em O Auto da Compadecida (Guel Arraes, 2001),
além da religiosidade e da cultura oral nordestina, outros elementos são agregados a
esse espaço: a instituição religiosa (ao contrário de Narradores... em que inexiste a
figura do clérigo, n’ O Auto... ele é agente fundamental na opressão do sertanejo), a
sociedade patriarcal em transição para uma sociedade de classes (vista na fluidez da
encenação da lealdade de João Grilo – Matheus Natchergaele – para com o padeiro e o
coronel) e o cangaço (a resistênc ia armada do nordestino, se bem que bastante
‘folclorizada’ neste filme). Enquanto em Narradores... os signos religiosos operam
enquanto memória do futuro, n’ O Auto... os clérigos (Rogério Cardoso e Lima Duarte)
encenam no sertão o seu ritual litúrgico (ironizado no filme através do enterro da
cachorra) e o seu papel na manutenção da ordem (como exemplo, o filme nos mostra os
privilégios concedidos ao Major Antônio Morais - Paulo Goulart - e, mais, como a
Igreja se relaciona com as posições ocupadas socialmente por seus fiéis). Tudo isso sob
o testemunho de João Grilo, que satiriza a linguagem eclesiástica por meio de gestos
exagerados, de citações em latim a partir da fala do padre, da revelação dos vínculos
dessa Igreja com o poder.
Um filme cuja tônica em relação à modernização é bastante semelhante à de
Narradores... é Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996). Ligando esta à

207
decadência da tradição do Nordeste, Baile... constrói um Lampião vaidoso e
deslumbrado com os signos do moderno (câmera; perfume etc) e um Benjamin Abraão
que visa inserir o cangaceiro no circuito imagético da cultura de massa, algo que se
revela fatal: seu rosto passa a ser conhecido e, portanto, possível de ser alvo do controle
estatal. A estética fragmentada do filme (relacionada ao videoclipe, segundo seus
realizadores) é mais um ponto de contato com Narradores, uma vez que o tratamento
sonoro (sonoplastia de músicas regionais em batida “pop”) e a superposição de
temporalidades são características comuns.
Outra relação que pode ser feita a partir das imagens de interior: a ligação destas
com o feminino. Ao contrário de um “patriarcado universal” pregado por algumas
teorias feministas, o poder encarnado pelo Pai/Lei é representado em Narradores... a
partir de suas práticas discursivas. Reforçando seus laços com o vilarejo (a história
‘monumental’ de Indalécio) e com os outsiders (no caso, os engenheiros, aliados ao
coronel Gaudério), a ordem patriarcal, ao assumir uma dimensão concreta, também
passa a ser contestada no plano das práticas e do discurso.
É interessante notar que um conjunto de filmes brasileiros atuais inserem o
feminino enquanto prática discursiva ligada à subversão da ordem patriarcal: em
Corisco e Dadá, a cangaceira Dadá (Dirá Paes) manifesta seu descontentamento com o
lugar social reservado ao cangaço e às conseqüências geradas por este (seu próprio
estupro por Corisco, que depois casa-se com ela; morte de seus filhos; assalto dos
cangaceiros aos povoados etc); em Abril Despedaçado, Clara (Flávia Marco Antônio), a
artista circense, se insere nas narrativas de honra de duas famílias ao se relacionar
amorosamente com Tonho (Rodrigo Santoro) e, com isso, dissuadi- lo da vingança
paterna; em Narradores de Javé, os mitos de fundação do vilarejo têm suas narrativas
disputadas por vários moradores, dentre eles Teodora (Luci Pereira), que destaca o
papel da matriarca.Maria Dina (em contraposição à história do patriarca Indalécio –
Nelson Dantas) para se inserir na história “oficial” masculina (escrita por Antônio Biá –
José Dumont).
Poderíamos, ainda, acrescentar que a busca empreendida pelos moradores dos
“feitos memoriais” de seus antepassados e o ideal de progresso manifestado na
construção da represa configuram as duas visões em torno do popular que se chocam: o
popular como um domínio que deve ser preservado (via patrimonialização) ou que deve
ser superado pelo saber científico e pela modernização, sendo que estes entram em
conflito no senso comum do povoado – a oralidade das histórias dos moradores versus a

208
codificação pela escrita e pelas convenções científicas. Ironicamente, essa
“cientificidade” é apropriada pelo senso comum dos moradores, principalmente pelo
narrador autorizado, que os lembra constantemente da necessidade de “provas” e
“documentos”.
Sendo assim, Narradores de Javé constrói uma imagem de Brasil pós-moderna
na hibridização dos registros - música regional “pop”, articulação de diversas
temporalidades por meio das nuances da montagem, além do “mosaico” de histórias no
qual o filme se baseia - supermoderna em seu resultado (produção de um não-lugar),
porém moderna em sua busca por um passado memorial e metafórico da formação
nacional e, ao mesmo tempo, na exaltação pelo discurso estatal do ideal de progresso.

209
CONCLUSÃO

Através dos três filmes analisados na pesquisa, foi possível verificar a relação
entre as representações de Brasil veiculadas e as práticas que conformam o habitus do
campo cinematográfico brasileiro, de um lado, e as práticas de representação
desenvolvidas em outros filmes e outras formas de comunicação audiovisual
(notadamente a televisão), de outro. Ainda, foi de extrema relevância a construção de
um lugar de fala transitório na relação dos filmes com as práticas socialmente
mobilizadas e conduzidas na esfera pública.
Em primeiro lugar, localizou-se a pertinência de algumas teorias da cultura e da
comunicação e de alguns de seus conceitos como “identidade”, “pós- moderno”,
“hibridismo”, “estereótipo”, dentre outros, para tentar averiguar como as práticas
discursivas ligadas à raça, à classe, à religião, à geração etc estiveram presentes nos
filmes. Estes, ao contrariarem uma tradição apaziguadora das representações do
nacional, ressaltam a dimensão do conflito em que elas são constituídas e suas
temporalidades disjuntivas para evidenciar os jogos identitários e as relações de poder
impressas no cotidiano e na política obliterados pela narrativa monumental da nação.
Entretanto, estes jogos e relações não se reduzem aos textos fílmicos,
configurando também a disputa pelo poder de nomear inerente à produção, difusão e
interpretação imagética. Foram avaliados, assim, os valores e as condições em que se
opera a produção cinematográfica brasileira atual e as rupturas e continuidades nas
quais a mesma foi constituída, além de sua relação com diversos agentes como o
Estado, a mídia impressa e audiovisual.
O mesmo se deu no tocante à trajetória dos diretores Sérgio Bianchi, Lúcia
Murat e Eliane Caffé. Desnaturalizando a noção de autor enquanto categoria analítica de
uma obra fílmica, demonstrou-se como a mesma resulta de um acúmulo de capital
simbólico dentro do campo do cinema brasileiro e as variantes que inferem nesse
processo (tempo de atuação no campo; número de longas- metragens; número de
prêmios em festivais nacionais e internacionais; capacidade de intervir nas discussões
políticas atinentes ao campo etc), principalmente na construção de um lugar de
autoridade para difundir imagens de Brasil.
A ligação entre representação do passado e nação construída pela cinematografia
brasileira atual e sua projeção no tempo atual nos propiciaram a percepção de que os
usos do passado nas narrativas cinematográficas e suas relações com o presente

210
sinalizam a presença dos jogos identitários enquanto estratégias discursivas que
afirmam ou contestam o poder de nomear de certos grupos instituídos; além disso, ao
encenar a localidade da cultura por narrativas que particularizam ou totalizam o Brasil,
os filmes o fazem ressaltando o caráter arbitrário dessas disputas pelo direito de
significar.
Mesmo não possuindo o estatuto de representação “científica”, as obras
analisadas se apropriam de certos discursos ligados às categorias discursivas presentes
no pensamento social brasileiro, filiando-se a tradições intelectuais que estudam as
disjunções narrativas em torno da nação partindo de noções como “raça” e classe,
principalmente, desautorizando por procedimentos fílmicos relacionados aos gêneros
narrativos (drama, épico, farsa) e outros formais (enquadramentos, cortes, campo-
contracampo etc), além de figuras de linguagem neles articuladas (ironias, metáforas,
metonímias, alegorias) o lugar de outras tradições letradas que retratam a viabilidade do
Brasil por narrativas pacíficas que priorizam o contato (seja inter-pessoal, seja social)
como forma de sociabilidade dominante na retórica nacional.
A dimensão política da produção e da circulação dos filmes encontra-se na
tensão entre o pedagógico e o performativo em torno das imagens do povo e do popular,
evidenciando as estratégias narrativas relacionadas a este enquanto micro-narrativas
construídas paulatinamente nas práticas sociais representadas; ademais, os filmes
agenciam o presente a partir das temáticas desenvolvidas e no diálogo explícito com
outros meios de comunicação, o que faz com que estes possam estar presentes na
retórica das contra- narrativas que mobilizam o cenário político e social contemporâneo.
Finalmente, algumas imagens de Brasil consolidadas no imaginário coletivo e na
memória do campo cinematográfico, sobretudo aquelas formuladas durante o regime
discursivo do nacional-popular (leia-se, favela, sertão e subúrbios), continuam sendo
resgatadas pelas narrativas cinematográficas contemporâneas, incorporando a elas as
estratégias discursivas de outros campos (político, televisivo), sendo que o breve estudo
de caráter comparativo empreendido no último capítulo possuiu grande valia em situar
os filmes dentro da categoria “cinema brasileiro contemporâneo”.

211
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21/01/2004 (autoria não identificada).

224
Anexo
Depoimento Joatan Berbel (em e-mail enviado pelo prof. João Luiz Vieira)

Prezados Listeiros,

Participei do Seminario: Audiovisual e Governo Lula- avaliações e


desafios, que contou com a participação na mesa de debates dos seguintes: Glauber
Piva - Secretário Nacional de Cultura do PT; Gustavo Dahl - Presidente da
Ancine; Paulo Thiago _ Presidente do Sindicado Nacional da Indústria
Cinematográfica; Nilson Rodrigues - Diretor da Ancine; Marcelo Laffitte -
ex-Presidente da ABD; Deputado FEderal pelo PT - LUiz Sérgio; Luís Carlos
Barreto; Orlando Senna - Secretário da SAV/Minc; Manoel Rangel - Diretor da
Ancine; Leopoldo Nunes- Secom-PR e Hamilton Pereira-Presidente da Fundação
Perseu Abramo.
Se a matéria do Jornal O Globo, de hoje, no Segundo Caderno, fala em
bate-boca e foca os temas tratados apenas na questão da bilheteria, posso
lhes assegurar que quem não foi ao Seminário perdeu muito mais. Aliás
fiquei surpreso com a pequena frequencia de cineas tas, pois, os pouco mais de 80
participantes representavam mais os cineclubistas e os núcleos de produção
audiovisual dos movimentos sociais. De resto, além dos palestrantes eu, o
Roberto Farias, Alice Andrade e André Klotzel de SP.

O Seminário foi rico porque reuniu os representantes do Governo - SAV e


Ancine - que fizeram um amplo relato das realizações da Gestão atual com a
participação de Paulo Thiago e Luis Carlos Barreto completando e
reconhecendo, pelo menos, que a atuação de Gilberto Gil foi fundamental
para que a cultura atingisse o grau de reconheciment o que hoje desfruta.

Paulo Thiago, quando falou da necessidade de se fazer reuniões a portas


fechadas, estava se referindo ao cons tante clima de desavença que é
retratado pela mídia.

Para mim, com muita satisfação, foi ver que a ANCINE conta hoje com uma
Diretoria - Gustavo, Nilson, Manoel e futuramente Leopoldo - altamente
qualificada e comprometida com o desenvolvimento do audiovisual
brasileiro. Infelizmente o jornalista Bruno Porto, repórter de O Globo, não levou em
conta a exposição que o Manoel Rangel fez como visão estratégica para o
audiovisual brasileiro. Assim como critiquei duramente sua atuação no
episódio da Ancinav, faço questão de reconhecer o notável amadurecimento e
a clareza de idéias apresentada pelo Manoel. Não posso deixar de destacar a
trajetória do Leopoldo Nunes que sacrifica sua carreira cinematográfica para se dedicar ao
importante papel de articulador no atual governo. Sua nomeação para a Diretoria da Ancine, que
depende de uma votação no plenário do Senado, é mais do que justa e
necessária. Completando o time o Nilson Rodrigues que tem uma boa percepção
da complexidade do mercado do audiovisual. O Gustavo Dahl que cumpre o seu
mandato ainda este ano, deixa um feito memorável que o inscreve no panteão
dos grandes nomes do cinema como Paulo Emilio Salles Gomes, Almeida Prado,
Cosme Alves Neto, Glauber e os demais. Não será exagero defender sua
continuidade na liderança desse time.

Penso que, independente do governo que virá, temos hoje um conjunto de


gestores que são ao mesmo tempo apaixonados pela causa do audiovisual
brasileiro, competentes e maduros para entender a complexa e difícil
tarefa que os desafia e por outro dispõem de vontade e dedicação.

Foi muito bom ver o Luis Carlos Barreto, que se identifica como membro do
PCB-Partido do Cinema Brasileiro do qual também faço parte, defender o
projeto ticket cultural como forma de permitir o acesso da população de
baixa renda aos bens culturais produzidos no BRasil. Sua afirmação "nunc a
se produziu tanto filme, mas nunca de viu tão pouco" soa como um sinal dos
tempos, pura clarividência. A justa bronca dos Cineclubistas quando reclamam

225
a sua inclusão como agentes da difusão cultural que podem ampliar em muito
o contato do povo brasileiro com os filmes e videos é também um ponto forte e
mostra como a democracia é produtiva. A atuação dos grupos de produção Nós
do Morro, Cufa e outros deve ser entendida como um avanço no desenvolvimento
do audiovisual brasileiro, são novos atores que já estão aí e que podem
trazer novos pontos de vista, inovações e um novo olhar.

Foi consenso, entre os palestrantes, de que há muito o que fazer no tocante


à distribuição no Brasil e este é o gargalo de todo o sistema. Fiquei
otimista quando vi que em cada discurso há uma visão dialética que admite
a importância de cada setor, de cada segmento como parte da solução do
problema. A criação de uma Distribuidora e Programadora Cultural resultante
da soma de esforços do CTAV e Cinemateca Bras., anunciada pelo Leopoldo
Nunes é muito interessante e pode ser a ponte com as TVspúblicas.

A crítica aos editais, apresentada pelo Paulo Thiago e pelo Barreto, é


justa mas peca por analisar os resultados como problema e não a formula edital
como "o problema". Para mim, enquanto a política de fomento ao Audiovisual
estiver orientada para o atendimento da demanda - daí a razão do editais
como mecanismo de controle da demanda -, sem uma clara orientação para
objetivos estratégicos tais como: expansão do mercado nas salas de cinema em
tantos por cento, em tanto tempo; suprir as TVs públicas e comunitárias de
programação cultural e educativa; suprir as Universidades e Escolas públicas
de conteúdo para apoio educacional; vamos apenas gerar mais demanda e aí o
resultado é o que o Barreto bem percebeu "muita produção e pouc o consumo".
Enfrentar um mercado competitivo - tanto na produção, como na distribuição e exibição - com
mecanismos de incentivo que são orientados para a
individualidade de projetos de produção, que inibem a formação de
conglomerados economicos do setor, que inviabilizem a capitalização de
empresas, só pode gerar essa pulverização de recursos...com muitos filmes,
atendendo muita gente,mas sem capacidade competitiva!!!!! Isto é o que eu
chamo de política de atendimento de demanda.....o resultado é mais
demanda!!!

Fiquei espantado com a defesa que o Luis Carlos Barreto fez da tese do
Secretário Geral d Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães no livro "DEsafio
Brasileiro na era dos gigantes", pois penso que ele não se aprofundou no
real significado deste tipo de pensamento. Li um extrato do livro e fiquei
perplexo de ver como alguém ainda tem a coragem de defender teses que foram
muito difundidas nos anos 20 e 30 e que levaram ao fascismo e nazismo, e que na década de 60 e
70 sob a capa esquerdista produziram o sanguinário
regime de Pol Pot no Cambodja e a paranóica republica de Enwer Roxcha na Albania e
Romênia. O nacionalismo xenófogo é uma arma perigosa e a história já provou
o quanto de mal ela produz. Barreto também produziu uma curiosa definição de
"auto-sustentabilidade": "Com o ticket cultural o povo vai ver mais filmes
brasileiros e assim o mercado vai crescer e nós produtores seremos auto-sustentáveis" - a pergunta
é: autosustentáveis em relação a quem camarada? Ao incentivo fiscal? Ora os tickets não serão
objeto de incentivo fiscal?

Não entendi também a enfase em "Projeto Nac ional", ou "pautar o rumo que
este país quer para si", nos discursos dos representantes da Direção
Nacional do PT - Glauber Piva e Hamilton Pereira. Pois esse discurso, como alegoria, de uma
proposição política, quer indicar que o Brasil não tem um
projeto nacional? Isto somado à citação que Gustavo Dahl fez "Falta àElite
uma Estratégia de Desenvolvimento", quanto cita artigo de LucianoCoutinho,
ressoa à proposição revolucionária do anos 60 com um certo recheio de
retórica de Geisel/Golbery.....Glauber, o Rocha....deve estar rondando a cabeça dos petistas.

Sendo um Governo, inclusive o de Lula, a somatória de todos os segmentos do país, incluindo aí a


elite. Será que não faltou também ao PT uma estratégia de desenvolvimento?

Sendo o slogan do govêrno Lula, "Brasil um país de todos", qualquer projeto


passa pelo entendimento de todos, não é. O Projeto Nacional do PT deve levar
em conta a dialética do LULA e sua composição política para conseguir

226
governabilidade. Mas pode ser também uma retórica que venha a substituir o
desgatado slogan "ética na política" . Quem sabe?

Coube ao Secretário do Audiovisual - Orlando Senna, que ao invés de


discorrer sobre o tema da mesa "Construindo políticas para o segmento
audiovisual", preferiu fazer uma longo relato sobre os feitos de sua
gestão, onde destacou a hiperbólica afirmação de que "foi a primeira vez que se
fez uma política de audiovisual, porque as anteriores tinha sido só de
cinema", imitando as idiossincrasias do "mestre guia". Mas é perdoável, para quem, de
fato, deu uma grande contribuição para ampliação das ações da SAV.

Além de rever amigos, sai do seminário com uma visão mais otimista, e feliz
por voltar a conviver com uma das minhas grandes paixões.

A exemplo da Secretaria Nacional de Cultura do PT, os demais partidos


deveriam promover encontros como este, além é claro de que o Sindicado e
as Associações também.....não precisa ser de portas fechadas.

Ouvir o Manoel Rangel falar, durante 30 minutos, uma brilhante exposição


sobre o futuro do desenvolvimento do audiovisual brasileiro, sem mencionar
um única vez a expressão "auto-sustentabilidade sistêmica do audiovisual
brasileiro", foi muito bom!!!! que avanço!!!!!!

abrcs

JOatan

227

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