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DICIONARIO DA LITERATURA MEDIEVAL GALEGA E PORTUGUESA ORGANIZAGAO E COORDENACAO DE GIULIA LANCIANI E GIUSEPPE TAVANI CAMINAO ALCOBACENSES, CODICES como uma nota sobre a fundagio da Ordem de Cristo (BNL, Alc. 73, com trad. port. no Ale. 218), 0 memorial sobre a fundagio de Alcobaga (BNL, Alc. 82), ete Os textos historiograficos produzidos e copia- dos om Aleobaca durante a Idade Média redu- zem-se praticamente aos que acabamos de indi- cur. Todavia, nfo podemos também deixar de mencionar os que, sendo também redigidos an- tes de 1500, se encontram na biblioteca monés. tica em transcri¢6es posteriores ao século xvi, € que devem ter sido, na sua maior parte, reco: Ihidos pelos mencionados autores da Monarchia lusitana e pelos seus sucessores ¢ de que eles se serviram para compor esta c outras obras histé- Ticas. Lintre esses manuscritos, contam-se no- meadamente exemplares das crénicas de *Fer- nao Lopes (BNL, Alc. 296, 311) de Gomes Eanes de "Zurara, (BNI, Ale, 411, 317), de *Rui de Pina (BNL, Alc. 291, 292, 295), de "Duarte Galvao (BNL, Alc, 290, 294), e do Li- vro de Linhagens do Conde D. Pedro (BNL, Alc. 313) (vid. Livros de Linhagens). Além dis- 50, uma grande quantidade de textos menores ¢ de documentos dispersos, incluidos em numero- sos volumes de misceléneas histéricas recolhi- das por Fr. Bernardo de Brito, Fr. Anténio Brandao, Fr. Francisco Brando, Fr, Matias da Conceigio, Fr. Bento de Sio Bernardo, Fr. Ma- uel da Rocha, Fr. Manuel dos Santos ¢ outros monges dos séculos xv e xvut, Entre estes tex- tos, encontram-se por vezes alguns inéditos, que nao foram analisados nem publicados, co- ‘mo por exemplo os de uma abundante recolha de curtas régias dos séculos xv e xv (no BNL, Alc. 297), uma colectanea de textos e documen- tos sobre a historia dos franciscanos (BNL, Ale. 390), ¢ outros escritos que a sucinta suma. riagio do Inventério dos eddices alcobacences (vid. Aleobaca) da Biblioteca Nacional nio per- mite avaliar suficientemente. Nao pode, porém, deixar de se notar que estas miscelaneas. nao contém praticamente nada de origem propria- mente alcobacense nem mesmo propriamente cistercionse, 0 que parece confirmar a sua qua- se completa auséncia, ao contrério do que avontecia em Santa Cruz de Coimbra, de onde procederam numerosos textos cronisticos, ana- listicos ou memorialisticos dos séculos xu a xv. O interesse dos monges brancos portugueses por obras de literatura espiritual e moral, que a biblioteca manuscrita de Alcobaca testemunha cloquentemente, tinha, portanto, pouca corres- pondéncia no campo historiogratfico, a nao ser ue incluamos neste campo os escrites hagiogrd- 36 ficos. Sendo assim, pode-se dizer que, apesar dos precedentes acim indicados, Fr, Bernardo de Brito, o primeiro historiador alcobacense da €poca moderna, representa de facto uma verda- deira mutagao rclativamente as tradigdes ant tiores da comunidade. Este facto no deixa de surpreender se tivermas em conta que, sendo a abadia o santuirio onde ficaram as sepulturas de varios reis da primeira dinastia, nomcada- mente de Afonso II, de "Afonso III e de Pe- dro (¢ onde ficaria também a sepultura de “Sancho TI se fosse cumprida a sua vontade de ser transludado de Toledo para Aleobaga), seria de esperar que a preservacao dos corpos régios suscitusse 0 culto da respectiva memoria por parte da comunidade religiosa que estava encar- tegada de celebrar 0s seus aniversdrios. Ora, 0 linico texto que se pode relacionar com a ¢sco- Iha do mosteiro para sepultura de reis € 0 Chro- nicon mencionado em primeiro lugar. O con- traste que acabamos de sulientar néo pode deixar de significar que a coneepgio de Histéria dominante do mosteiro antes do fim do sécu- lo xv era o da Historia Sagrada, isto é, de um interesse pelos acontecimentos temporais reser- vado apenas para aqueles que manifestavam a intervenelo de Deus ¢ que podiam de alguma maneira conduzir 0 homem @ salvacio. Bu. Peres, D., «A propésita do “Chronicon aleobacen: ces, in Revista Poruuguesa de Histria, 1, 1941, 148-150; De: vid, P., ides hisiorigues sur la Galice ct fe Portugal ds ve au ame siete Lisboa-Puns, 1547, 261.90: Biblioteca Nacional de Lisboa, inventinio dos’ Cidices Aleobacenses, Lisboa, 19%- m7. J. Mattoso ALCOBACENSES, CODICES. Ver Alcobaga © Cédice. ALFONSO X. Quarenta e quatro poesias lit cas, na sua maioria satiricas (sio apenas trés as “cantigas de amor, ¢ uma *cantiga de amigo, alids de paternidade contestada), sio atribuiveis ao rei castelhano (nascido em 1221 em Toledo, falecido em Sevilha em 1284, rei a partir de 1252), que foi também, e mais quis ser, poeta mariano com as *“Cantigas de Santa Maria, Um {al conjunto de textos, infelizmente muito dani- ficado no decurso da tradigao, embora conte- nha alguns exemplares que provam 0 grande nf- vel artistico alcangado por Alfonso X como trovador, nao pode obviamente represemtar de forma adequada 0 papel fundamental por cle desempenhado no ambito da lirica profana ga- ego-portuguesa. A sua figura esté no centro da actividade poética ibérica do século xu, por ele ervorajada ¢ patrocinada antes de ser por ele proprio praticada; a sua corte foi o lugar de en- contro de um grande niimero dos poetas gale- g0-portugueses mais representativos e de mui- tos trovadores provencais, que encontraram em Alfonso X nao s6 0 patrono como também © inteligente e interessado interlocutor para ques- toes requintadamente literdrias e cientificas, ccujas aulorizadas respostas so por alguns deles (Guiraut Riquier e N'At de Mons) versificadas. ‘Nao se conhecem os seus escritos em proveneal, lingua que no entanto era por ele perfeitamente conhecida; a sua decisiva opcao pelo galego- -portugués como lingua da poesia (quer profana quer religiosa) é demonstrada, entre outras coi- sas, pela ‘tengio hilingue com Dom *Arnaldo, rna qual ele responde nessa lingua & questo que the fora proposta em provencal A sua produgio em verso chegou até nds gra~ Gas apenas a duas cépias coloccianas Bc V do século xvi, nao se encontrando sinais da sua poesia de amor, aliés muito escassa, no, antigo cancioneiro A, reservado a este género. A parte duas tengdes, colocadas regularmente entre as poesias do primeiro interlocutor (trata-se de B 1512, proposta por *Vasco Gil, ¢ de B 1624/ V 1158, propostas por "Pai Gomez Charinho), la é transerita de forma compacta, embora de forma desigual, nos apégrafos coloccianos, on- de as suas poesias, contra qualquer critério de distingio por géneros, se encontram todas reco- Ihidas na primeira secedo, por sua vez reserva da, no méximo, ao género amoros0: € evidente 4 tentativa de ‘apresentar numa tnica recolha toda a poesia disponivel do rei castelhano. Da- do que ela precede imediatamente a producdo amorosa (ade amor e «de amigo») do rei D. *Denis (cuja poesia de maldizer € alids transcrita muito mais a frente na seogdo apro- priada), uma tal contiguidade faz sobressair um Principio de agrupamento bascado na condigdo (real) dos poctas. Além disso, 0 conjuiito alfon- sino apresenta no seu interior outras peculiari- dades que merecem ser apontadas. E, evidente- mente, formado por dois subgrupos, um deles dado apenas por B, 0 outro simultancamente por Be V, Enquanto este iiltimo (B 478-496) JV 61-79, mas para 478 B interrompe-se, depois do verso inicial, no fim do papel) é totalmente satirica (19 textos), 0 outro subgrupo que o pre cede e que & apenas dado por BB (de 456 a 477, com 3 textos sem numeragao: um total de 25 textos) apresenta-se excepcionalmente hetero- ALFONSO X 6ne0, a0 ponto de acolher também louvores marianos; além disso, 08 textos sao muitas ve- zes fragmentarios, ¢ a sua autonomia € por ve- zes confusa. Contém, de facto, por orde1 1 cantiga de amigo, 8 poesias satiricas, 1 tengo também satirica proposta ao rei por um tal *Garcia Pere (nao sc conhecem outros textos da sua autoria), ainda 1 texto de maldizer, mais 2 louvores marianos, dos quais um fragmentiirio (para 0 qual o tinico testemunho é B, tendo si- do excluida da grande coleccio mariana em to- das as suas diferentes fases de redaccao), 3 «cantigas de amor» e um fragmento em caste lhano de género incerto entre o amoroso © 0 parddico; seguem-se 5 ‘cantigas de escarnho maldizer, das quais a primeira falta no primeiro verso e aparece anexa ao fragmento que prece- de; mais um fragmento ow texto de uma tinica estrofe sob a forma de «antiga de amigo», mas vez parédica, depois 1 cantiga de maldizer, a ja citada tencdo bilingue, que tal como as ou- tras nao é de iniciativa de Alfonso X, ¢ por fim um verso isolado, primeiro de um texto que tal- \ez corresponda a V 61 (duas estrofes: aqui fal- ta a estrofe inicial). Estu especial situagéo da transcri¢éo leva a pensar que, enquanto o segundo subgrupo pa- rece ter sido regularmente examinado para ser inserido ou no numa recolha ordenada por gé- neros, 0 primeiro apresenta-se como uma espé cie de cSpia nao ordenada ou residual passada excepcionalmente para uma grande colectinea ordenada. Eé preciso também sublinhar que este subgrupo comega com uma dupla rubrica de atribuicao, a primeira das quais, implicando um tal Dom Sancho de Portugal, torna incerta a paternidade alfonsina do primeiro texto, a fa- ‘mosa «cantiga de amigo» Ay eu coitada. Como menos relevantes surgem as restruturagées co- loccianas em B referentes ao grupo comum aos dois testemunhos do século xvi (em V, no eI tanto, como jai se disse, o primeira texio € a falo): 0 tiltimo texto esta interrompido porque © papel que © contém foi mudado de sitio (da f, 110v para af. 371), onde pode ser recupera- do, embora riscado com um trago obliquo (da estrofe vit até ao fim: cfr. Ferrari, «Formazio- ne», 97 113; E. Gongalves, em Romania, 104, 1983, 406-407). Se a estes problemas juntarmos os propriamente textuais — a verséo esta mui- tas vezes deteriorada e € de dificil restaura- ao—, € muito compreensivel que nao tenha cxistido até agora uma edi¢éo critica do conjun- to da poesia profana alfonsina, embora Rodri- gues *Lapa tenha publieado a maior parte nas 2 ALFONSO X suas Cantigas d’escarnho e de mal dizer (an, 1-35, 330, 422, 430: a esta edigio faz-se aqui re feréncia) © S. “Pellegrini tenha claborado edi ges exctnplares de textos individuais. Quanto a temética, esta € em grande parte comum a tratada pelos principais poetas que frequentavam a sua corte, com os quais dialoga directamente (“Pero da Ponte em primeiro lu- gar; © companheiros que o desafiam para ten- ges, como Garcia Perez, Pai Gomez Charinho, ‘Vasco Gil ¢ 0 provencal Dom Amaldo) ou indi, reclamente ("Bernal de Bonaval, *Afons’Eanes do Coton, "Pero Garcia d’Ambroa), demons. trando uma participacao viva c concreta na vida literdria da corte. Infelizmente, de muitos dos SCus textos satiricos escapa-se-nos ainda (como, de resto, de muita poesia de acasifo ligada a si tuagdes contingentes desconhecidas para nés) 0 sentido, ou os sentidos e se se trata de «escar- nhos» (entre outras coisas, o grande mimero de nomes prdprios de desconhecidos, muitas vezes caricaturalmente deformados, aumenta a difi- culdade). Para a ilustrarmos, convém recordar ¢m primeiro lugar os textos mais interessantes de diversos pontos de vista e por isso até agora mais estudados, De entre todos a curta «cantiga de amigo» Ay ew coitada, cuja atribuicao a San- cho I de Portugal — aceitando a primeira das duas rubricas em B — motivada pelo substanti vo «guardar do *refram entendido como topé- rnimo (foi o fundador da cidade da Guarda, mas nao ha qualquer documento sobre a actividade poética deste rei: é a conhecida hipétese Caroli- na Michaélis de *Vasconcelos), comportaria conscquéncias de grande relevo para a antigui- dade do género ecantigas de amigo», excepci nalmente documentavel assim j no final do sé- culo x. Dando crédito, por outro lado, 4 segunda indicagao de autor, que atribui ao rei castelhano todo o grupo de textos que se segue, € enlendendo «guarda no sentido de «services de guarda» em que esta ocupado o amigo att- sente, motivo t6pico do género (assim faz Pelle- arini no estudo mais cuidado sobre este texto), cairiam por conseguinte as implicagdes de uma cronologia tio alta do texto. O rei portugués mencionado em rubrica seria mais provavel- mente Sancho II, ligado por estreitas relacoes de amizade ¢ alianca ao rei castelhano (revela. das em particular durante a guerra civil de 1245-1248), que Ihe teria oferecido as suas poe- sias, entre as quais a poesia em questio (seria além disso de no excluir uma passigem pela Guarda de Afonso ainds infante, na época lu- gar-tenente do rei Fernando IIT em Leao: pode- 38 tia pois justificar-se também neste vaso uma in- terpretacao de «Guarda» como topénimo; cfr. Oliveira, 1991). O género cantigas de amigo ndo esta portanto muito representado na produ- Gio potica de Alfonso X que chegou até né apenas se conhece um exemplar em estado fragmentério, que devido A presenga excepcio- nal de uma «tia» no papel da mie, pode ser lida como uma parédia (de facto é compilada por Rodrigues Lapa entre as Cantigas de escarnho ¢ mal dizer, n,* $), mas o rei castelhano conhece ¢ sabe na verdade praticar os artificios mais ti picos, como, por exemplo, o paralelismo ¢ uso do refram, como o demonsiram alguns dos Seus textos satiricos que imitam a ligeira e geo- métrica estrutura (e igualmente alguns «lores» marianos). Objecto de atencio e duma dis- cussio ainda em aberto sio os dois textos polé- micos contra Pero da Ponte (Lapa, nn. 15 ¢ 17), ‘nos quais Alfonso X acusa este pocta de ter roubado os «cantares> a Afons'Eaties do Co- ton, ou melhor, de o ter matado para se apode- Tar deles depois de ter bebido muito (n. 15); € além disso, de compor versos inspirados pelo deménio © & maneira de Bernardo de Bonaval, ‘mas néo segundo 0 modelo provengal, que & 6 tinico «natural», tao estulto é 0 tema neles tra- tado (n. 17), Também aqui, embera a referén- ¢ia final aluda a uma malfadada bebida em Vila Real (cidade fundada em 1255) e 0 tom seja jo- £080, sao tocadas ao de leve questies mais sé- rias relacionadas com o plagio literdrio e com a legitimidade ou dignidade da razon, isto é, do tema a tratar em versos: se a primeira nio pare ce muito sentida na Idade Media, a segunda é de grande actualidade naguela altura entre os ttovadores provengais. O proprio rei Alfonso discutiu certamente com os que frequentavam a sua corte, como Guiraut Riquier (que Ihe colo- ca, como 6 sabido, a questi sobre'a necessida- de de distinguir entre os jograis com denomina- g0es diferentes correspondentes as diversas especializagdes artisticas), por exemplo, que concorda com cle em incentivar uma mudanca temética na cangdo de amor, que néo deveria Jouvar mais uma dama terrestre, mas sim a da- ma celeste Maria (sobre este projecto abre-se, como se sabe, a colectinca das Cantigas de San. fa Maria). Um outro texto problemitico € o fragmento de «antiga de amor» em eastelhano (mas também neste caso o género parece incer. to pela énfase quase caricatural do motivo do Pranto), pelas consequéncias de cardécter crono- Tégico que uma poesia cle amor nesta lingua Produziria (Lapesa). Representam sem equivo- cos 0 género amoroso as trés cantigas transmi das somente por B, execucoes elegantes (tam- bém metricamente) dos motivos entrelacados da «coita» ¢ da distancia da «senhor»: realce-se que em B 468 brilha uma das rarissimas compa racdes (com Paris e Trista) que se podem en- contrar na lirica galego-portuguesa. Do tema alegremente escatolégico da tencio bilingue foi possivel reconstruir a histéria (gracas a Pellegri- nie D’Heur): originado por contrafactum da fa- mosa canes Quan la frej‘aura venta, de Ber- nart de Ventadorn, foi transposto para tengao jocosa (sobre 0 motivo de uma viagem ao Ul- iramar de cem nobres damas que ficaram para- das; um «vento» corporal poderia resolver a si- tuagdo) na corte da Provenca, na qual 0 préprio conde Raimundo Berengario IV © propde a0 trovador Amaut Catalan, que por sua vez 0 re- prope com variagdes minimas (se for correcta a identificagéo com Dom Arnaldo) a corte al- fonsina, onde rei castelhano responde ama- velmente chamando 0 seu colega «amiral si- son, com uma singular expressio utilizada para uma donzela num outro seu texto ligeizo. Num outro nivel estilistico situa-se, pelo contri- rio, aquele pedago iinico, pelo éxito artistico, Non me posso pagar tanto, que melhor. nao po- de ser definide que como «canto de desconfor- to», que encontramos entre as poesias sat em Beem V (Lapa, n. 10). Texto de tom origi- nalissimo, de grande e sabia retdrica em parte provencalizante, que deixa vibrar com tons qua- se romanticos 0 estado de espirito amargo de um protagonista decidido a abandonar o estado social privilegiado (armas, amor ¢ luxo) de que desfruta — naquela terra onde estio a espreita os escorpi6es da «campina» que ferem o cora- gio —, para voltar ao livre mar do humilde mercador de azeite ¢ farinha. Alude-se aqui tal- ver 2 traicfo dos cobardes de muitos outros tex- 10s, ou a outras traigSes mais privadas e doloro- sas’ (um registo que ressoa por vezes também no seio das poesias marianas «personalizadas»: cfr. Bertolucci, «Un sondaggio»); se por detrés dele esto outias fontes literdrias ¢ outras in- temgoes parddicas, estas fundem-se perfeita- mente na identificagao litica. Na variedade tematica das restantes, pode-se sintetizar 2 série de apaixonados “sirventeses sobre a actualidade polftico-militar (todos com- preendidos no grupo de duplo testemunho). O rei censura os cavaleiros pusilénimes e trai- dores que no momento de avangarem contra 0s mouros se retiraram da «guerra», passando a aserra» e voltando para a sua «lerra»: esta tria- ALFONSO X de de palavras-chave, em rima ou fortemente sublinhadas, liga dois textos, Lapa 24 ¢ 26, aos quais se pode acrescentar 0 16, dirigida contra um deles, Dom Foan (sobre 0 mesmo tema poetizaram outros poetas que participaram nos ‘mesmos actos de guerra, como *Gil Perez Con- de, *Pero Gomez Barroso e *Afonso Mendes de’ Besteiros). Proximos destes, mas com um tom mais jocoso, sao 08 dois textos (9 © 21) contra os , em Troubsdours doc ef sroubadours galiciens- “portugais. Recherches sur quelques échanges ds la iérlure de PEurope ax Moyen-Age, Paris, 1973, 15-138; Id., «Le “irouver & la prosengale” selon Alphonse Xe, rbidem, 291-28: Ferrari, A., «Formazione e strttura del eanzoniere portoghe- se della Biblioteca Nazionale di Lisbona (cod. 10891: Colocci Brancuti)o, em Arquivos da Centro Cultural Portugués, XIV, 1979, 7-143 (+ 26 tub. £1.) 1d, Lingugggi rel in eomatt: trobadors ¢ trobadores>, em Role de Fologia, XXTX, 1984, 35-58; Flores Varela, C., +Malheurs royaux et bonheut bourgens. A propos «Pune chanson dAiphonse X le saye>, cin Verba, 15, 1988, 351-359; Gier,A., «Alphonse le Savant, pete lyrique et mécene des trobadours, em Curt ane! Poet Trand Congress of the Intemational Courtly Literature Society, Liverpool, 1981, 158-165; Gongaives, E., «Sur la Irique gale: sp-portgtise. 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Também na ordem interna, a ho- menagem de Alfonso de la Cerda (1331) pds ponto final a meio século de controvérsias pela coroa, enquanto as campanhas vitoriosas em Granada (1327-1330) colocaram as bases mini- mas para consolidar 0 poder do rei. No aspecto, politico-organizativo, um esforgo permanente alravés de reunides constantes de cortes levou 40 Ordenamento de Alcala (1348), base juridica da monarquia até ao Renascimento, Ao mesmo tempo, © scu casamento com Maria de Portu- gal, filha de D. Afonso TV, e 0 da sua irma Leonor com Afonso TV de Aragao estabelece- tam as bases da paz interior. Esta perspectiva foi quebrada pelas desavencas dos reis aragone- ses € pela morte daquele monarca (1336), a0 passo que © seu amancebamento piiblico ¢ ma- nifesta com Leonor de Guzman, cujos familia- res ocuparam os principais cargos e postos pi- blicos, provocou a ruptura com Portugal e com uma parte da nobreza, encabecada por D. Juan Manuel. Dai a instabilidade e os conflitos em varias frentes ao longo de todo 0 reinado, En- tretanto, os benimerines haviam tomado Gi- braltar (1333) e, em 1339, desembarcaram um. importante exército. Para ihes fazer frente, Al- a CANTIGA DE VILAO. cantares, de *Goneal'Eanes do Vinhal. Cantiga de seguir uma composicao nova bascada na apropriagéo, segundo determinadas conven- bes, de uma cantiga alheia, Distinguem-se trés ‘modos convencionais de seguir outra cantiga: © que. se diz requerer menos sabedoria consiste tHo-86 na apropriagio da sua mdsica, com a res- salva de que 0s novos versos da estrofe devem ser métrica_e acentualmente equivalentes aos do modelo; numa segunda modalidade, mais exigente, o novo texto deve também reproduzir as rimas da cantiga imitada; a terceira modali- dade acrescenta & primeira a exigencia de que 0 novo texto deve (a) reproduzir 0 sentido de al- guns versos da cantiga imituda, ou entio (b) re- produzir a letra do scu refrio dando-lhe, pelo novo enquadramento estréfico, outro sentido; a variedade (b), considerada mais dificil, é a mais apreciada. O exerefeio poético concretizado na cantiga de seguir tem, segundo Manuel Pedro Ferreira (1980), um fundo agonitico: 0 seguir supde um combate amigavel e piblico, normal- ‘mente presencial, entre dois trovadores, possivel- mente relacionado com a tradigdo do’ canto a0 desafio. As rubricas dos Cancioneiros denunciam trés cantigas como pertencendo ao tipo aqui considerado. Trés outras composicées profanas © a cantiga mariana n.° 377 podem igualmente incluir-se nesta categoria, Bus: D'Heur, J. M., e£:'Art de trouser du Chansonnier Co- locci-Braneuil. Edition et analyse», Arquivos do Centro Cult ral Portugués, 1X, Paris, 1975, 331-98; Ferreira, M. P., , in —0 Som de Martin Codar — Sobre a Dimensio musical da Lirica Galego- Portuguesa (Séeulas XII-XIV), Lisboa, Imprea- ‘sa Nacional-Casa di Moeda / Unisys, 1986; Tavani, Poesia Li rica 1950, 212-215. M. P. Ferreira CANTIGA DE VILAO. Género poético me- dieval, talvez de cunho «popular», mas no re- presentado nos cancioneiros galego-portu- gueses. A “Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional trata da cantiga de vildo no capftulo vu, de dificil leitura pelo mau estado do manuscrito, mas onde se consegue ler pelo menos que «Outrossy outras cantigas fazem os trobadores a que chamam de vildos». Na quarta linha deste capitulo ainda € posstvel adivinhar ums definigho negatva do géncro: [Estas tigas...] n son per al trobas, perque as non...»; seguem algumas letras que talvez se possam interpretar como escarnem», mas que também ¢ mais provavelmente se devem ler eescrevem> (a transcrigéo que desta linha deu 142 J.M. D’Heur néo parece aceitével: «nd sson per al errdas por que as nd escarnié no [.->). Seja qual for a leitura exucta deste breve capitulo, 0 que interessa 6 salientar que 0 and- imo autor da Arte de Trovar quis introduzir no seu sintético tratado uma referéncia particular a ‘um género poético que nunca aparece nos can- cioneiros © ao qual se faz apenas alusiio nas uas rubricas que precedem e, respectivamente, seguem a cantiga de ‘Johan de Gaia Vosso pai na rua (B 1433, V 1043; Tavani, RM, 66,7), a primeira das quais informa (mas a leitura da se- gunda linha é duvidosa): Diz iia cantiga de vilao: a pé dia torre baila corpo a rolos: Vedes o cos, ay, cavaleiro; a outra Esta cantiga seguiu Johan de Gaia per’a- quela de cima de viléos que diz, a re- fram, «Vedes lo cos, ay cavaleiro». E fe- © autor da Arte de Trovar leva portanto a sua fnsia classificatéria até ao ponto de criar, ou pelo menos de registar, a existéncia do géne- 10 (ou do subgénero) da cantiga de vilio in ab- sentia, isto é, apesar de nao haver nem sequer um exemplar deste tipo de composigo nos can- cioneiros galego-portugueses, onde tudo sc re- solve na citagdo de dois versos de uma cantiga ndo bem identificada — embora presumivel- mente bem conhecida na época — da qual Jo- han de Gaia aproveitou 0 refram para a sua cantiga: ¢ esta, alids, ndo ¢ uma cantiga de vi- lio, mas uma “cantiga de seguir, como resulta da segunda das rubricas alegadas («Esta cantiga seguiu Jodo de Gaia per'aquela de cima...»), Bust: Tavani, G., «As Artes Poéticas hispinicas do sécu- lo xut ¢ do inicio do xiv, na perspectiva das teorizagies pro- ‘vengaiso, in Literatura Medieval — Actas do IV Congresso da Associagdo Hispénica de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 Ov: ‘tubo 1991), org. de Aires A, Nascimento ¢ Cristina A. Ribel= 19, Lisboa, 1993, I, 25-34; D’Henr, J. M., «LAr de trouver, 4 chansoamier Coloce- Btencut. Edition et analyse», Argul+ vas do Ceniro Cultural Portugués, 1X, 1975, 321-398 [335]. G. Tavani CANTIGAS DE SANTA MARIA. A maior co- lectinea medieval de poesias em louvor da Vir- gem Maria e destinadas a ser cantadas, que “Alfonso X de Castela compés (como diz.na s0- lene intitulatio) e mandow juntar no prinefpio dos anos sessenta do século xm, Chegaram até nds em trés redacgdes diferentes (ou melhor, «edig6es»): um total de 420 textos (a primeira tinha apenas 100). Escritas em galego-portu- gués, a lingua privilegiada da lirica ibérica da altura, as “cantigas diferenciam-se por composi- bes de cardcter narrativo (miragres), na sua maioria, que ilustram os milagres de Nossa Se- hora como gestas gloriosas, composigdes de caréeter lirico (Joores), estas distribuidas de dez em dez. Todas exaltam a Mie de Deus vista so- bretudo como nossa indulgente advogada junto do seu Filho, e exortam a louvé-la (outras ain- da, poucas, celebram festividudes marianas ou de Cristo). Na colecyao mais vasta é evidente a ambigao de representar uma summa do género, de nao se limitar a recolher os milagres maria- nos ja internacionais em latim e em lingua vul- gar, relativamente a igrejas ¢ santuarios euro» eus (principalmente franceses) ¢ ibéricos (em especial, os de fundagao alfonsina, como Santa Maria del Puerto); a par dos de fonte confirma da c bem conhecida, so muitos os de fonte ain- da hoje desconhecida e provavelmente apenas oral. As trés «edigdes» sfio precedidas por uma mesma cantiga-prologo que ilustra 0 projecto de cantar exclusivamente Maria com toda a in- teligéncia ¢ a arte indispensével a um intrépido trovador. Este texto, que nao pertence a ne- nhum dos dois géneros principais que consti- tuem a recolha — mas se reporta a uma cancao provencal contemporinea —, ¢ que representa, por assim dizer, 0 seu manifesto programatico, € por sua vez precedido por uma espécie de frontispicio em versos, sete quadras heptassilé- bicas de rima alternada contendo 0 nome do autor € 0 contetido do livro (versos ¢ melodias sobre a Virgem), Além disso, embora o primei- 10 milagre tratado (n. 2) relativo a S. Ildefonso de Toledo (autor do De virginitate Sanctae Ma- rige) abra também outras recolhas de milagres marianos em latim e em lingua vulgar (como, por exemplo, a de Berceo), na recolha alfonsi- nna recebe um realce particular na medida em que 0 nome do santo protector de Toledo, lugar de nascimento do rei castelhano, & homologado a0 de Alfonso (a forma presente no miragre &, de facto, sempre, Affonso): este exalta assim indirectamente a exemplaridade de quem assu- ‘me como tema exclusive dos scus proprios tex- tos a Virgem Maria, de quem pretende ser, pre- cisamente, 0 scu trobador. Os textos de abertura sublinham o cardcter da coleetinca co- mo livro para Nossa Senhora, caracter que se "ANTIGAS DE SANTA MARIA apresenta como tal desde 0 testemunho mais antigo © numericamente mais reduzido. O texto de encerramento, chamado Pitigon, funciona de forma andloga (falta apenas na edigao mais sumptuosa, porque ficou incompleta); contém 0 pedido, depois do trabalho concluido, da re- compensa celeste, 0 galardon (ed, Mettmann 401, v. 99) que jé tinha pedido no prologo da colectinea (v. 42), ao qual o texto final se liga de uma forma perfeita, Este importante texto, rico em dados autobiogrificos, de dez estrofes de dez versos cada uma, representa a soma for- malmente perfeita da primeira colectinea de cem textos (0 simbolismo mariano do nimero Cinco ¢ dos seus miltiplos 10, 50 ¢ 100 é de fac- to 0 critério organizativo dominante de toda a coleetinea da primeira & dltima das suas redac- goes ¢ marca também o ritmo da ilustragao mi- nigturizada da edicao mais luxuosa; podemos recordar que um outro mimero sagrado, o 7, representa o médulo de uma outra obra alfonsi- na muito personalizada, o Setendrio, em prosa castelhana). As diversas fases de claboracdo, da compasicao de cada um dos textos reunidos nas diversas «edig6es», distribuem-se a0 longo de uum vasto niimero de anos: tendo por base as re- feréncias hist6ricas que, se podem extrair do texto, a primeira coleccao remete para um pe- riodo posterior a 1264, enquanto as outras duas se disp6em a partir de 1270 até aos primeiros anos da década de 80 (a conclusio da edicao de luxo, representada pelo cédice F, ficou incom- pleta; em 1284, morreu Alfonso X), A notorie- dade do rei castellano como devoto trovador da Virgem Maria é testemunhada com seguran- a por uma canedo mariana composta em 1269 pelo trovador seu contemporineo Cerveri de Girona ¢ dedicada a Alfonso enquanto cantor de Maria (a donn’on vos chantatz, v. 2); no de- cénio 60-0, um outro trovador provencal, Gui- raut Riguier, encontrou na temética mariana ‘um profundo ponto de encontro com o seu pro- tector, apresentando-se — exaltando com 0 mesmo senhal, com as suas numerosas poesias, © novo amor por Maria — como aquele que melhor ouviu © convite, tantas vezes repetido por Alfonso, para dedicar as suas capacidades artisticas a cantar ndéo uma dama terrena, mas sim a dama celeste. Esta é uma outra linha es- truturante da colecedo, enraizada na prépria ra- zon do canto, marcada por uma viragem mos- trada e apontada como exemplar a todos os trovadores (jé antecipada por umu atitude and- Joga assumida pelo maior poeta mariano fran- 6s, Gautier de Coinei, cujos Miracles de Nosire 143 CANTIGAS DE SANTA MARIA Dame jé se demonstrou serem do conhecimento de Alfonso): explicita — e néo importa se real ou ficticia — 6 a referencia as liricas profanas compostas num perfodo anterior em honra de véos amores terrenos, agora rejeitados (de Al- fonso, alids, chegaram até nds trés *cantigas de amor). Outra caracteristica do grande empreen- dimento mariano alfonsino, directamente ligada a0 scu abjectivo de ser cantada (vid. Secgio Misica), est na extraordinaria variedade de formulas métricas utilizadas, sobretudo nos foo- res, enquanto para 0s textos narrativos, 0s mi- ragres propriamente ditos, 0 que € absoluta- mente dominante & 0 esquema zejelesco (ou do {ipo virelai) com as suas variagses. Os testemunhos que chegaram até nés do cancioneiro mariano alfonsino so quatro (s6 do loor n, 40 e de um fragmento nao atestado de outra forma temos um testemunho ulterior extravagante entre os versos profunos de Alfon- so X no *Cancioneiro Colocci-Brancuti, agora na Biblioteca Nacional de Lisboa), todos eles pergaminhos do final do século xin, ¢ repletos de anotagdes musicais; estao identificados, res- pectivamente, com as siglas To, E, T, F. 0 cb digo To, agora na Biblioteca Nacional de Ma- dnd, cota 10069, transmite-nos, talvez numa cOpia de pouco mais tarde, a primeira redaccio da colectinea de 100 textos mais os de abertura ¢ de encerramento acima recordados (seguem- -se cinco festas de Maria e cinco festas de Cristo e ainda 16 cantigas de Santa Maria). O e6dice E (Escorial j. b. 2) representa « redaccdo mais vasta de 402 textos (neles se baseiam as edicées modemas), aos quais fuzcm companhia outras 12 composigées, entre us quais voltamos a en- contrar as cinco festas de Santa Maria jé pre- sentes em To, ampliadas com um prologo e ou- tros textos marianos diversos. A operacio ‘comportou também, além de uma reorganiza- sao na montagem das unidades textuais que a constituem, a revisio da licdo dos textos, em particular na intiaulatio e na petigon, que conti- nham indicagies numéricas que jé néo eram pertinentes. A escansio decenal dada aosloo- ves ¢ sublinhada também por um programa ilu trativo que prevé uma miniatura de tema musi- cal cada dez textos (com representagies de miisicos que tocam diferentes instumentos), en- quanto uma grande miniatura, que precede 1 primeira cantiga, mostra Alfonso rodeado de dois coros (femininos ¢ masculinos, com uma folha de pergaminho nas maos) © por miisicos com os instrumentos no momento da execugio cantada do textos. Uma outra © mais lusuosa 144 edigdo da colect&nea conserva-se conjuntamen- te, embora incompleta na sua iiltima parte, em dois preciosos cédices ‘T (Escorial T, j. 1) ¢ F (Florenga, Biblioteca Nacional, II, I, 213), na qual o programa ilustrativo (que privilegia, em particular, com ilustragées de pagina inteira subdivididas em seis-oito vinhetas, 0 nimero cinco como ultimo algarismo do nimero que 0 marca na série) assume, ao lado do musical, proporcées ¢ qualidades tdo rclevantes que identificam o livro alfonsino de Maria como um livro para ser visto © nio s6 ouvido, ¢ uma mi- lagristica por imagens junta-se & milagristica em versos. O eddice T é 0 seu primeiro volume € transmite-nos um primeiro contingente de 200 textos (problemas de conservacio reduzem-nos a 195; neles encontramos também prosificacdes em castelhano relativas as primeiras vinte ¢ cin co cantigas, situadas dle preferéncia sob as ilus- traces de que constiluem, provavelmente, uma explicagio € um comentario), ao passo que F, que ficou incompleto, quer quanto ao nimero projectado dos textos a inscrir, quer na conchi- séo da notagio musical, quer na ilustragao mi: niaturizada (operagdes diferentes, como se sa- be, na elaboragio de um cédice), constitui o segundo, e transmite-nos 104 cantigas. As tela- goes textuais entre estes testemunhos terdo de set ainda mais bem definidas (veja-se, entretan- to, Mettmann 1986; Parkinson 1988). A tradi- G0 da poesia mariana alfonsina apresenta-se excelente no scu conjunto, mas nio imune, na- turalmente, aos crros de copia e sobretudo aos mal-entendidos de copistas no que diz respeito a relacdo entre versos da estrofe e versos do re fram (Parkinson 1987), A asseverada paternidade alfonsina (muitas vezes confirmada em cada uma das composi- es) de todos os textos é actualmente discutida (sem que, aids, se tenha chegado até hoje a qualquer fundada demonstracéo a este respeito: Mettmann 1986, que a reduz aos textos com re ferépcias autobiogréficas, remete para um trax batho ainda inédito que se espera), e prefere-se supor uma colaboragéo mais ou menos intensa de alguns dos intimeros poetas que frequenta- vam na altura a corte castelhana. Uma nota marginal no cédice remete para © nome do tro- vador *Airas Nunez, cuja actividade se desen- volveu no ultimo quarto de século, numa poesia em que encontramos efectivamente uma rima com a mesma série de palavras (Mettmann 1971). Também para este grande empreendi- mento alfonsino em yersos ¢ licito supor, apesar de muito diferente das outras realizagoes cultu- rais em prosa do rei Sabi, um papel andlogo a0 que cle nelas exerceu (escolha do tema, orientayao da forma de o tratar, revisio do tex- to), € que outros colaboradores deram também © seu contributo, pelo menos certamente na fa- se preparatéria da busca das fontes em latim (tradugoes) © em lingua vulgar,.c das fontes grais (sdo frequentes as alusdes 4 este respeito), E no entanto muito evidente uma acentuada personalizacio desta obra, quer no seu conjun- to, como real, anormal «rosario» ¢ livro merité- rio oferecida por Alfonso 4 Virgem Maria pela sua salvacio individual (destinado a colectinea a igreja em que ser sepultado, testamento 1284), quer pelo caracter autobiogrifico que muitos miragres apresentam. De facto, 0 rei castelhano nao s6 assume para si a primeira pessoa do falante nos textos liticos como se faz protagonista de textos nacrativos como sujeito de intervencdes milagrosas da Virgem Maria por ocasido de doencas (que até o contacto com 0 livro de Maria consegue curar, n, 209) e de si- tuagdes probleméticas de outro género resolvi- das gracas a eles; além disso, estende a outros membros da sua real familia ¢ a personagens da corte muito préximos dele esse mesmo privilé- gio. A proximidade da matéria dos milagres do autor do texto que # narra (ou melhor, a inser- gio do narrador, como protagonists, no scio da hist6ria narrada) € muito provavelmente esti- mulado pela posigdo andloga assumida pelo francés Gautier de Coinci, mas em Alfonso re~ cebe colaboragoes de tons autopromocionais mais intensas de si mesmo ¢ da sua familia, es pecialmente nos textos que se referem ao tilti- mo ¢ alormentado (também politicamente) pe- iodo du sua vida, Os problemas levantados pela abundiincia de um material narrativo t40 rico ¢ variado, a ser transposto para formas aptas ao canto, foram sem divide os mais diffecis de resolver; apare- cem no entanto brilhantemente ultrapassados gragas a operagoes de corte e a estratégias a nf vel sintactico conduzidas com grande seguranca (uso livre do enjambement também de estrofe a estrofe, assim como de hipérbatos e outras figu- ras de construgéo), ao mesmo tempo que se re- nuncia ao comentario e a omamentacao pura- mente decorativa (sio rarissimas as figuras de tipo metaférico ¢ mais frequentes as imediatas semelhancas evidenciadas pela posigdo em rima dos elementos comparados). A narracéo do acontecimento milagroso, que aparece fiel ¢ conservador em relacéo as fontes, em especial as latinas, emerge nitidamente, correspondendo CANTIGAS DE SANTA MARIA um ideal de brevitas respeitoso acima de tudo do significado simbélico profundo da interven- a0 do divino no humano que € inerente ao mi- lagre (diz-se muitas vezes que a narragao do mi- lagre — sem comentario — vale mais do que um sermao): ele ser4 tao resplandecente quanto ‘mais humilde for 0 nivel das coisas humanas do divino raras vezes abordadas e como excepedo (e aqui a gama das excepgdes ¢ dos ambientes atinge, na sua diversidade ¢ riqueza, todos os estados sociais). A felicidade do éxito desta for- mula de narrativa para 0 canto nao é, obvia- mente, perfeita em todos 0s casos, 0 que para alguns estudiosos é um indicio ulterior de pas- sagem para colaboragées diferentes, nas quais no entanto se impde como modelo imprescindi- vel. Bam. Edigbes: Valmar, L. 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