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UM MAPA DA EPISTEMOLOGIA PÓS-GETTIER

Adilson Koslowski1

1. Introdução
O objetivo deste texto é fornecer um mapa abrangente ao leitor
principiante e desejoso de uma visão geral da Epistemologia. Um mapa sobre
os principais problemas e teorias que os epistemólogos vêm discutindo nas
últimas cinco décadas na chamada Epistemologia Analítica. Pensamos que
fornecer ao principiante uma visão global sobre o assunto é didaticamente útil.
Mesmo que a generalidade implicará em superficialidade, auxiliará na
compreensão dos problemas e nos estudos futuros de aprofundamento 2.
2. Esclarecimentos histórico-terminológicos
Comecemos com alguns esclarecimentos de terminologia. A disciplina
filosófica Epistemologia é também chamada de Teoria do Conhecimento ou
Gnosiologia (ou Gnoseologia). Ambos os termos têm a mesmo significado
‘teoria’ (lógos) e ‘conhecimento’ (epistême, gnóse). Portanto, são sinônimos.
‘Gnosiologia’ é atualmente pouco usado. Porém, no uso dos termos o
significado varia. Às vezes Epistemologia ou Gnosiologia são termos
compreendidos como sinônimo de Filosofia da Ciência. Contudo, evitaremos
esse uso mais amplo de Epistemologia.
A disciplina da Epistemologia tem sua origem no início da Modernidade
com o filósofo René Descartes (1596-1650). Todavia o tema do conhecimento
se remete aos primórdios da filosofia. Muitas disciplinas da Filosofia, hoje
campos autônomos, foram, durante muito tempo, estudadas dentro de outras
disciplinas mais tradicionais. A Epistemologia era abordada frequentemente
dentro da Metafísica. Contudo, na Modernidade, Descartes impôs que uma
filosofia crítica deve começar com uma epistemologia que ofereça uma base
segura na qual todo o restante iria se alicerçar. Assim, filósofos como Locke
(1632-1704), Berkeley (1685-1753), Hume (1711-1776), Kant (1724-1804)
seguiram os passos cartesianos. Estabeleceram primeiramente uma
epistemologia como fundamento da reflexão filosófica. A rainha da Filosofia, a
Metafísica, cedeu lugar à serva, a Epistemologia. Contudo filósofos
contemporâneos como Wittgenstein (1889-1951), Russell (1872-1970), Frege
(1848-1925) argumentaram que antes da Metafísica e mesmo da

1
Professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe –
UFS/DEL e do Núcleo de Ciências da Religião - UFS. E-mail: kadilson@ibest.com.br
2
Existem boas introduções à Epistemologia. Entre elas destacamos LUZ, Alexandre M. O que
é “conhecimento”? In Revista da Fapese, v. 2, n. 2, p. 37-52, jul./dez. 2006 e A filosofia e o
conhecimento. In CASTRO, S. (org.). Introdução à filosofia. Petrópolis: Vozes, 2008.
Contudo, focado mais sobre o problema da análise do conhecimento. Um excelente texto é de
STEUP, Mathias. Epistemologia. Trad. Carvalho et alii. Disponível em: http://investigacao-
filosofica.blogspot.com.br/2012/05/traducao-de-epistemologia-de-matthias.html. Acesso em:
24/jul./2012.
Epistemologia deveríamos estabelecer uma Filosofia da Linguagem que nos
proporcionasse os limites do que pode ser dito com sentido (PORTA, 2002).
A Epistemologia Analítica é fruto dessas reflexões em torno da
linguagem. No início da Filosofia Analítica o problema do conhecimento não era
obviamente o foco principal, mas a linguagem. Contudo, mais tarde, o modo de
fazer filosofia dessa Escola influenciou a maneira de abordar filosoficamente o
conhecimento humano e assim nasceu a Epistemologia Analítica. Essa
epistemologia abordou o conhecimento através de sua expressão linguística e
utilizou as técnicas inovadoras da lógica contemporânea devida a Frege e
Russell para elaborar uma teoria do conhecimento (Cf. GLOCK, 2011).
3. Os usos dos verbos conhecer/saber
Um dos primeiros problemas abordados pela Epistemologia Analítica,
não é de se estranhar, é uma análise de conhecer/saber. A primeira coisa que
temos que fazer é saber se usamos esses verbos ou o substantivo de um só
modo. Notamos que o uso dos verbos conhecer/saber não é o mesmo. Pelo
menos temos três significados de conhecer/saber: habilidade, familiaridade e
proposicional. Por exemplo, ‘Maria sabe andar de bicicleta’ o verbo saber
nesse caso é usado no sentido de Maria ter a habilidade de andar de bicicleta.
É uma habilidade pessoal, adquirida pelo treino e repetição. ‘José conhece
Maria’ é um uso diferente. O verbo significa que José tem familiaridade com
Maria, tem contato com Maria. E por fim, ‘José sabe que Maria tem 15 anos’. O
verbo nesse caso está sendo usado para expressar que José possui um
conteúdo proposicional, isto é, uma proposição. Uma proposição é o significado
de um enunciado descritivo que pode ser verdadeiro ou falso. Porém, existe
muito desacordo em relação a que tipo de coisa é uma proposição entre os
filósofos. Esse três usos são bastante reconhecidos e cada um deles é muito
importante. Contudo, o conhecimento proposicional é aquele que recebeu
maior atenção. Fundamentalmente porque é aquele isso que transporta as
informações do senso comum, da ciência e da filosofia. Aquele tipo de
conhecimento que filósofos e cientistas se ocupam grande tempo de sua
atividade e são transmitidos culturalmente para as próximas gerações através
dos livros, nas salas de aula e de muitos outros meios hoje possíveis. Podemos
nos apropriar do conhecimento proposicional de pessoas já há muito tempo
mortas através da linguagem de um modo relativamente fácil comparado ao
conhecimento por contato ou por habilidade.
4. Conhecimento proposicional
O que é então conhecimento proposicional? Uma das estratégias para
saber o que é conhecimento proposicional é buscar uma definição do termo.
Contudo existem vários tipos de definição. Usualmente os filósofos buscam
uma definição explícita do conhecimento (MURCHO 2006; HEGENBERG,
1974). Uma definição explícita do conhecimento busca uma ou mais
propriedades (definiens – o que define) do objeto definido (definiendum). Ser
uma definição explícita deve satisfazer o critério de ser necessária e suficiente.
Um exemplo ajuda esclarecer. Se quisermos definir explicitamente água não
podemos apenas dizer que é um líquido, ou mesmo que é transparente, pois
certamente existem outros líquidos que possuem essas propriedades e não é
água, como é o caso do ácido sulfúrico. Portanto, pelo critério das definições
explícitas não delimitamos suficientemente. Mas se definirmos água como os
critérios da química, afirmando que água são dois hidrogênios e um oxigênio,
então temos propriedades que conjuntamente são necessárias e suficientes,
pois apenas a água contem as duas propriedades simultaneamente, e qualquer
coisas que as contém, é água. Agora podemos compreender esse tipo de
definição. Necessária no sentido de que a propriedade para que algo seja x se
um item não pode ser classificado como sendo um x se lhe falta essa
propriedade. Suficiente se a propriedade para algo seja x se um item pode ser
classificado como sendo x quando possui essa propriedade P não importando
que outras propriedades possam ter. Será que temos uma definição de
conhecimento desse tipo? Muitos filósofos responderam com otimismo a essa
pergunta.
O otimismo de possuirmos uma definição explícita do conhecimento
proposicional não parecia problemático. A definição era batizada como advindo
de Platão (429-347 a. C.) em seus diálogos Teeteto e Mênon. Essa definição
de conhecimento é chamada de definição tradicional, platônica ou tripartite do
conhecimento. Vejamos a primeira. Existe alguém que crê em alguma
proposição. Podemos entender o verbo crer como a atitude de um agente
doxástico (crente) diante de uma proposição. Esse agente doxástico pode ter
três atitudes para com a proposição de aceitá-la, de rejeitá-la ou de suspender
o juízo, visto que não consegue manter o juízo nem na sua aceitação e nem na
sua rejeição. Uma segunda propriedade é que a crença aceita seja verdadeira.
Mesmo que o epistemólogo não precise explicitamente aceitar uma definição
de verdade podemos assumir, a título de clareza expositiva, a verdade como
correspondência. A verdade é a correspondência entre a proposição e a
realidade. E a falsidade é quando a proposição não corresponde à coisa
nenhuma. Por fim, a última propriedade é que a crença esteja justificada.
Por que essa definição de conhecimento parece ser uma definição
explícita? Parece óbvio que para alguém ter conhecimento proposicional ele
deve aceitar uma proposição, pois do contrário ele não terá conhecimento
proposicional. Analogamente, se alguém quer ter uma maçã deve pegá-la, pois
senão não terá maça nenhuma. Portanto, a condição é manifestamente
necessária para alguém possuir conhecimento proposicional, isto é, aceitar
uma determinada proposição. Porém não é suficiente. Se um sujeito
acreditasse que três mais dois são sete, sabemos que o sujeito crê em algo,
mas de fato não conhece. Provamos apelando para nossas intuições. Algo que
muitos filósofos aceitam desde que não aja nenhuma objeção à própria
intuição. A propriedade que nos vem naturalmente à mente é que a crença
deve ser verdadeira, portanto, não é possível conhecimento falso e
conhecimento verdadeiro é apenas um pleonasmo. Mas isso é suficiente? Não
o é.
Não basta apenas ter uma crença verdadeira, pois isso não é suficiente.
Vejamos. Se José acreditar em certa sequência de números e jogar e
felizmente conseguir o prêmio, nós intuitivamente diremos que José não
conhecia os números (claro, se no jogo não houve trapaça). Portanto, mais
uma condição parece ser necessária. Essa condição é a de justificação. O
sujeito tem que ter certas razões ou evidências para aceitar a crença. O sujeito
tem que ter algum mérito em conhecer. Conhecer não pode ser um caso de
sorte.
Resumindo, conhecimento é crença verdadeira e justificada. Essa
definição começou a ser questionada por filósofos como Russell e Chisholm
(1916-1999). Mas foi apenas com o filósofo Edmund Gettier que a definição
provou-se não suficiente. Como Gettier provou que a definição não é
suficiente? Com o procedimento de contraexemplos. Para saber que uma
generalização está com um problema devemos submeter a teste. Para isso,
confrontamos uma implicação proposicional singular da teoria para descobrir
inconsistências.
5. Os contraexemplos advindos de Edmund Gettier
Gettier escreveu um artigo intitulado É crença verdadeira justificada
conhecimento? (1963). Nesse artigo muito pequeno ele construiu dois
contraexemplos a definição tradicional. Para que seus contraexemplos
funcionassem ele pressupôs duas alegações compartilhadas por muitos
epistemólogos. As duas alegações são de que uma crença justificada pode não
ser verdadeira e o princípio do fechamento. Para todo epistemólogo fabilista a
justificação não acarreta a verdade principalmente para o conhecimento
empírico, o que nos vem com a ajuda da experiência. Descartes, por exemplo,
é infabilista. Ele sustentava que uma crença justificada era necessariamente
indubitável, certa e verdadeira. Contudo, muitos epistemólogos
contemporâneos aceitam que nossas crenças perceptivas são falíveis, mesmo
que estejamos justificados em crer nelas. Portanto, o pressuposto de termos
crença justificada - pense na crença ‘A Terra está parada’ compartilhada por
muitos seres humanos ao longo da história - não acarreta a verdade, contudo a
crença era uma alegação bastante plausível. Outro pressuposto de Gettier é o
chamado princípio do fechamento. O princípio do fechamento afirma que a
dedução transmite conhecimento ou justificação. Se S (um sujeito cognitivo
qualquer) acredita justificadamente que P e P acarreta ou infere Q, então S
acredita justificadamente em Q. Assim, Se S acredita justificadamente que
chove, e S sabe quando chove então o chão fica molhado, então S acredita
justificadamente ‘o chão fica molhado’. Esse princípio igualmente parece
intuitivamente muito aceitável. Porém, existem filósofos que teceram críticas ao
princípio como Drestske e Nozick (1938-2002). Assim, a aceitação do princípio
permanece controversa.
Muito bem, uma vez estabelecido os dois princípios pressupostos nos
contraexemplos vejamos como eles funcionaram para mostrar que a definição
tradicional não é suficiente. Vamos criar um contraexemplo parecido com o de
Gettier. José toma carona quase todos os dias para ir e voltar à Universidade
onde estuda. O dono do carro Márcio tem um Ecosport 2012 vermelho. José
está justificado em acreditar que Márcio é um rapaz de boa índole e de que o
carro é de Márcio. Márcio alega que o carro é dele. José já viu os documentos
do carro em certa ocasião e nunca ouviu nada a respeito do carácter de Márcio
que o fizesse suspeitar de nada. José faz a seguinte inferência: “Existe alguém
na minha sala que tem um Ecosport 2012 vermelho”. Porém, o Márcio é um
falsário e tem um desmanche de carro. O carro não é dele. Por sorte, existe
outro rapaz na turma de José que tem um Ecosport 2012 vermelho e que José
não sabe. Em suma, a crença de José “Existe alguém na minha sala que tem
um Ecosport 2012 vermelho” além de crida, é verdadeira e justificada. Como
José chegou a isso? Através de uma crença falsa, mas justificada e de uma
inferência que, por sorte, é verdadeira. Mesmo que as propriedades da
definição tradicional sejam satisfeitas não cremos que José saiba: “Existe
alguém na minha sala que tem um Ecosport 2012 vermelho”. Foi apenas um
caso de sorte. Não há nenhum mérito epistêmico (FELDMAN, R, 2003).
O problema Gettier foi o que motivou os filósofos analíticos a tomarem a
análise do conhecimento como algo interessante e importante. De uma
disciplina secundária nas discussões acerca da linguagem a Epistemologia
Analítica começa a gerar uma intensa pesquisa em torno da análise do
problema de Gettier na busca de solução. Foi a partir das elaborações de
solução aos contraexemplos gettierianos que se definiram problemas e modos
novos de fazer epistemologia. A Epistemologia é reorientada a partir de Gettier.
Qual é essa nova orientação?
6. Reorientações da Epistemologia pós-Gettier
A Epistemologia Moderna é marcada por algumas características aceita
pela maioria dos epistemólogos até recentemente. Tentando, grosso modo,
descrever e generalizar essas características, desprezando certas diferenças
entre os modernos, são elas: certa noção de racionalidade, internalismo,
evidencialismo, fundacionismo e egocentrismo. Essas propriedades são
compreendidas primariamente como pertencentes ao conceito de justificação
epistêmica. Vejamos rapidamente cada um desses conceitos (PRITCHARD,
2006).
A racionalidade epistêmica é vista como um instrumento. E como
instrumento sua finalidade é maximizar as crenças verdadeiras e minimizar as
crenças falsas. Não podemos crer em tudo para maximizar as crenças
verdadeiras e nem minimizar rejeitando todas as crenças. Devemos achar um
meio termo. Nessa concepção, o agente doxástico é visto como alguém que
tem certos deveres em relação às suas crenças. Ele não pode crer em
qualquer coisa, pois isso faria dele um agente irresponsável epistemicamente,
igualmente não crer em nada. Note que existe um paralelo entre a moral e a
epistemologia. Assim como nossas ações têm certas regras que devem ser
obedecidas, a nossa razão igualmente tem certas regras a obedecer. Não
praticar essas regras é epistemicamente imoral. O filósofo John Locke
sustenta, utilizando terminologia teológica, que é um tipo de pecado não
obedecer à ética da crença. Segundo o filósofo e matemático inglês W. K.
Clifford (1845-1879), em seu artigo Ética da crença (1877) sustenta que o
imperativo categórico da ética epistêmica seria: “...é sempre incorreto, em todo
o lado, para qualquer pessoa, acreditar seja no que for com base em indícios
insuficientes”.
O internalismo é entendido primeiramente como uma propriedade da
noção de justificação. Para que S esteja justificado em crer em P, S deve poder
acessar as evidências, razões em sua consciência ou mente. Isso envolve a
possibilidade da introspecção e muito frequentemente da memória. Se S vê
uma cadeira, S pode acessar via introspecção de que tem uma percepção de
cadeira. Outra noção atrelada ao internalismo é o evidencialismo. O
evidencialismo também diz respeito à noção de justificação. Para que uma
crença esteja justificada ela precisa estar apoiada em evidências. É a
qualidade da evidência faz com uma crença esteja justificada ou não
justificada. Mas qual é qualidade que faz uma crença justificada? A resposta
mais frequente foi o fundacionismo. O fundacionismo afirma que para que uma
crença esteja qualitativamente justificada ou ela deve ser uma crença básica e,
portanto auto-jutificada ou receber a justificação através de uma crença básica
quando ela mesma não é uma crença desse tipo. Portanto, existem dois tipos
de crenças básicas e não básicas e são as básicas auto-justificadas que
justificam qualitativamente bem as crenças não básicas. Existem várias formas
de fundacionismo e o foco da diferença entre eles são quais as crenças
básicas e como se transmite a justificação de uma crença básica à outra não
básica. Nós voltaremos a tratar desse assunto mais abaixo. Veja, o
evidencialismo implica o internalismo. Além disso, o evidencialismo está
profundamente vinculado a uma compreensão deontológica de justificação. Por
fim, a noção egocêntrica sustenta que a justificação é baseada sempre nas
evidências que são acessíveis pelo agente doxástico conduzido pelas normas
epistêmicas. A justificação é individualista. Não existem evidências
epistemicamente legítimas fora do âmbito da consciência ou mente do sujeito
epistêmico. Essa epistemologia é profundamente cartesiana.
O desafio de Gettier fez com que se desenvolvessem dois grupos de
filósofos como modos diferentes de resposta ao problema (existem, porém, os
mesclados). O primeiro grupo são aqueles que podemos chama-los de
tradicionais ou evidencialistas. Eles sustentam que a solução do problema
Gettier em relação à definição de conhecimento deve seguir as linhas gerais da
concepção moderna de razão, evidência, internalismo. Em suma, manter o
conceito de justificação como fora até agora compreendido com as
reformulações necessárias. Porém, a noção de conhecimento deve sofrer
reajustes sendo anexadas outras propriedades para resolver o problema
Gettier, necessariamente pelo menos uma quarta as três tradicionais. O
segundo grupo podemos chamar de não tradicionais, ou não evidencialistas. A
orientação geral é serem críticos da epistemologia moderna, alguns voltam
para noções da filosofia clássica grega (por exemplo, a de virtude) e desejam
estabelecer outro conceito de justificação capaz de solucionar o problema
Gettier e colocar a Epistemologia em um novo rumo (FELDMAN, 2003). Quais
são algumas razões para essa nova compreensão de justificação e
conhecimento? Vejamos algumas.
Os não evidencialistas vão, sobretudo, criticar as noções de razão,
evidência, internalismo, egocentrismo dos evidencialistas. Comecemos com a
noção de razão. Um dos problemas da noção de razão epistêmica é que ela é
normativa. S está justificado em crer em P somente quando não viola qualquer
de suas obrigações epistêmicas. O filósofo William Alston (1921-2009) notou
que tal concepção acarretava o pressuposto do voluntarismo doxástico. O
agente doxástico teria o poder de crer ou não e isso estaria disponível a ele por
um ato da vontade (voluntarismo doxástico). Assim, como é comumente
entendida a moral, a ação moral necessita que o agente tenha poder ou não
para fazer tal ação para ser responsável por essa mesma ação, se não tiver
poder, não pode ser culpado. Por exemplo, um brasileiro comum não pode ser
responsável pelos problemas políticos da Somália, pois não tem nenhum poder
no curso daqueles acontecimentos, portanto não tem nenhuma culpa ou
responsabilidade perante aqueles acontecimentos. Alston, todavia, notou que
em relação às crenças nós não temos – ou raramente temos – algum controle
sobre elas (involuntarismo doxástico). Elas se impõem. Se S percebe que é
dia, S não irá crer que é noite simplesmente porque deseja acreditar que é
noite. Se S acredita que não tem muito dinheiro no banco ou posses, não
conseguirá acreditar que é um milionário mesmo que isso seria uma crença
muito agradável. Portanto, a concepção deontológica da razão moderna não
parece estar correta. O filósofo evidencialista Richard Feldman em Ethics of
Belief (2000) procurou defender a noção deontológica de razão
compreendendo-a da seguinte maneira. A noção de responsabilidade
epistêmica seria semelhante à noção de papel social. Existem
responsabilidades para um sujeito se ele executa o papel do professor ou o
papel de pai. Contudo, mesmo que ele não possa ser capaz de realizar ou não
o papel existe um padrão de como deve fazê-lo. Igualmente, a noção de dever
epistêmico sustenta que o papel ideal do agente doxástico deve ser formar
suas crenças apoiadas nas evidências correntes. Esse problema e a solução
de Feldman ainda continuam controversos (MÜLLER, 2007).
A crítica geral dos não-evidencialistas é contra a noção de justificação
evidencialista, a saber, S está justificado em crer, descrer ou suspender o juízo
em relação a uma proposição P depende de que a crença de S se ajuste as
evidências que S possui em um determinado momento T (tempo). Além disso,
criticam a concepção gêmea de justificação, o internalismo. Para resolver o
problema de Gettier e possuir uma noção adequada de justificação, segundo
os não-evidencialistas, devemos abandonar o evidencialismo e o internalismo.
A ideia de externalismo começou a ganhar corpo com a tentativa de solução de
Alvin Goldman ao problema Gettier, com sua teoria causal de conhecimento.
Goldman notou que o problema de Gettier aparecia devido a elementos
externos à consciência de S. Esses elementos entravam em cena e levavam S
a ter crença verdadeira justificada num contexto de sorte, o que não seria um
caso de conhecimento. Goldman então sugeriu sua teoria causal para eliminar
o problema. S sabe que P se e somente se o fato P está causalmente
conectado de forma apropriada com a crença em P de S. Assim, nos casos
Gettier, existem elementos no contexto que não estão conectados de modo
causal, logo eles não são casos de conhecimento. Note o seguinte, não é
necessário que S esteja consciente ou possa acessar as conexões causais de
suas crenças. Se não houver essas conexões não é conhecimento
independente do acesso às evidencias causais das crenças que sustenta.
Portanto, o externalismo epistêmico sustenta que não é preciso S ter crenças
justificadas ou conhecimento através do acesso epistêmico às suas evidências
ou razões. Contudo essa definição de conhecimento de Alvin Goldman não foi
aceita. Ela possui vários problemas. Entre os problemas estão a
impossibilidade de conhecer generalizações, impossibilidade do conhecimento
matemático, é muito improvável que 2 mais 2 causem 4. Além disso,
conhecemos muitas coisas que não precisam estar vinculados a processos
causais, por exemplo, ‘José morreu’. Foram elaboradas várias teorias do
conhecimento nesse mesmo espírito como a teoria do rastraeamento da
verdade de Robert Nozick, o confiabilismo do próprio Goldman, a teoria da
garantia de Alvin Plantinga, a teoria da virtude de Ernest Sosa, a teoria das
virtudes de Linda Trinkaus Zagzebski. Essas teorias pretendem solucionar o
problema Gettier oferecendo um novo conceito de justificação anexado as duas
condições tradicionais de verdade e crença e estabelecendo uma definição de
conhecimento externalista (FELDMAN, 2003). O externalismo está vinculado a
uma visão naturalista de conhecimento. O conhecimento não é um fato moral,
mas um fato natural. Ele pode ser estudado igualmente pela ciência empírica
(biologia, psicologia, ciências cognitivas, inteligência artificial) que lidam com
fatos naturais. A epistemologia não é apenas um estudo a priori que lida com
conceitos. Não é apenas uma profissão feita na poltrona (armchair). Ela pode
ser feita no laboratório. Existem adeptos de formas radicais de naturalismo que
são chamadas de epistemologias naturalizadas que sustentam que a
epistemologia é apenas um capítulo das ciências naturais ou da psicologia. Um
dos famosos proponentes de naturalização radical da Epistemologia foi Willard
V. O. Quine (1908-2000). Porém, o externalismo não acarreta a epistemologia
naturalista.
Em relação aos conceitos de fundacionismo e egocentrismo pode-se
notar rapidamente que o egocentrismo não é um requisito necessário a uma
visão externalista de conhecimento. Porém, vários externalismos são formas de
fundacionismo. Claro que não do tipo tradicional. Por exemplo, o confiabilismo
de Goldman sustenta que certas crenças quando formadas por processos
confiáveis produzem crenças verdadeiras. Essas crenças são básicas e podem
transmitir justificação a outras crenças. De modo semelhante à teoria da função
apropriada de Alvin Plantinga, se uma crença é formada por um aparelho
cognitivo gerador de crenças verdadeiras, essas crenças podem transmitir sua
justificação a crenças não básicas através de processos inferenciais. Todavia,
não existe necessidade do sujeito cognoscente saber quais mecanismos são
confiáveis ou estão funcionando apropriadamente para gerar crenças
justificadas ou conhecimento (Cf. PLANTINGA, 1993).
Em suma, vimos que os contraexemplos de Gettier foram importantes
para chamar a atenção dos filósofos analíticos sobre os problemas na análise
de conhecimento. Para solucionar o problema Gettier há basicamente duas
posições uma tradicional, vinculada aos filósofos modernos, que chamamos de
evidencialista e outra que busca responder de modo diferente ao problema,
buscando um novo conceito de justificação epistêmica que chamamos de não-
evidencialista. O não-evidencialistas criticam, sobretudo, as noções de razão
deontológica, o internalismo e o egocentrismo das teorias evidencialistas.
7. Teorias da justificação evidencialistas e o problema do regresso
Até agora vimos noções bastante gerais do conhecimento e da
justificação. Porém, como as crenças são justificadas? A maneira clássica do
evidencialista colocar o problema da justificação é através do argumento do
regresso ao infinito. Esse argumento é muito antigo. Tem suas raízes nos
filósofos gregos Aristóteles (384-322 a. C.) e Sexto Empírico (160-210 a. C.). O
argumento é a solução para certo tipo de dilema. Quando observamos algumas
de nossas crenças nós percebemos que elas ganham suas justificações de
outras crenças e estas de outras e assim por diante. Aristóteles formulou esse
argumento no contexto de uma teoria da prova. Quando podemos
justificadamente parar o processo e encontrar um fim nessa cadeia de
inferências? A está justificada por B, B está justificada por C. Quem é C?
Existem várias respostas para quem é C. Uma resposta é de que C é uma
cadeia infinita de crenças. Quase sempre se viu essa resposta como uma das
mais problemáticas. Não obstante existem dois filósofos que defenderam essa
concepção infinitista de justificação. São eles o pragmatista Charles Peirce
(1839-1914) que não chegou a desenvolvê-la e contemporaneamente Peter
Klein. Outra maneira de responder quem é a C é o coerentismo. Ele alega que
uma crença está justificada se ela é coerente às crenças de S. O ceticismo é a
posição que nega a existência de C, isto é, não possuímos crenças justificadas
ou são elas arbitrárias ou circulares. Por fim, o fundacionismo argumenta que a
parada se dá através de uma crença básica C, ela mesma justificada e que
justifica as demais. Lemos (2007, p. 47-48) apresenta nesses termos o
argumento do regresso:
(1) Algumas crenças têm justificação não básica. Algumas crenças são
justificadas sob a base de outras crenças. (2) Todas as crenças que têm
justificação não básica são suportadas por uma cadeia justificacional ou
evidencial. (3) Todas as cadeias justificacionais devem ou: (i) terminar em uma
crença não justificada, (ii) ser infinitamente longa, (iii) ser circular ou (iv)
terminar em crença básica justificada. (4) As opções (i), (ii), (iii) são
impossíveis. (5) Logo, a opção (iv) é verdade – algumas cadeias justificacionais
terminam em crenças básicas justificadas.

Esse problema é às vezes chamado de o problema da estrutura da


justificação. Como nossas crenças de um ponto de vista lógica, não
psicológico, ganham justificação na estrutura noética (epistêmica) de um
agente doxástico? As duas teorias evidencialistas mais famosas para a solução
do problema são o fundacionismo, o mais antigo e o mais aceito historicamente
e o coerentismo.
Vamos aprofundar um pouco melhor essas teorias evidencialistas: o
fundacionismo, o coerentismo bem como o infinitismo. Comecemos pelo
fundacionismo clássico ou radical. O fundacionismo é uma teoria da justificação
e da estrutura mais antiga e defendida pelos filósofos. Existem vários tipos de
fundacionismo, mas todos eles partilham de algumas teses comuns. Segundo o
fundacionismo as crenças são divididas em dois grupos as crenças básicas e
não básicas. As crenças não básicas recebem justificação através de algum
processo inferencial. As crenças básicas não necessitam de justificação, pois
são justificadas e não recebem justificação de outras crenças. A diferença entre
os vários tipos de fundacionismo ocorrem fundamentalmente porque existem
divergências em quais são as crenças básicas e quais são os processos
inferências que devem ser admitidos na teoria.
O fundacionismo clássico, radical ou cartesiano é um dos tipos de
fundacionismo. É chamado de cartesiano, pois se sustenta que René
Descartes foi um defensor de um tipo de fundacionismo parecido com o que
será descrito aqui, mas é difícil reconstruí-lo de modo não controverso. Em
relação às crenças básicas, o fundacionismo clássico sustenta que as crenças
básicas são sobre as verdades lógicas e matemáticas simples e sobre nossos
estados mentais. Essas crenças são infalíveis (não podemos estar enganados
a respeito delas). A transmissão da justificação se dá apenas através da
dedução. Assim, o fundacionismo clássico sustenta que S está justificado em
crer se e somente se: S é infalível sobre P ou S deduz de P de uma ou mais
proposições que ele acredita infalível. Vejamos isso melhor através de um
exemplo. Se S vê uma lapiseira sobre a mesa, então S tem uma percepção de
lapiseira. Essa percepção de lapiseira é um estado mental, um dado (sense-
data). E a crença nesse estado mental é básica (FELDMAN, 2003).
Existem várias críticas em torno do fundacionismo clássico. Vejamos
três delas. A primeira, o fundacionismo clássico não pode ser justificado
através de seus próprios critérios epistêmicos. Ele é uma falácia da auto-
referência. O fundacionismo clássico não é crença formal simples, não é um
estado mental e nem é provado por um processo dedutivo dessas crenças
básicas. Portanto, o fundacionismo clássico é uma crença não básica e
igualmente não justificada. A segunda crítica se dirige à infabilidade de nossos
estados mentais. Parece que nós podemos estar equivocados a respeito de
nossos estados mentais. Podemos pensar que estamos apaixonados e não
estarmos, termos a mão mordida por um animal, mas foi um alarme falso. A
terceira objeção é não parecer ser frequente aos humanos normais terem
crenças nos objetos exteriores baseados na inferência a partir dos estados
interiores acessados via introspecção. Por exemplo, tenho a percepção ‘bati
meu dedo com marte’, logo bati meu dado com martelo. Além de ser muito
estranho esse tipo de funcionamento cognitivo, isso implica que muito das
crenças sobre o mundo exterior formadas no dia-a-dia não são justificadas
(FELDMAN, 2003).
O fundacionismo moderado está comprometido com outras teses em
relação às crenças básicas e o modo de transmissão da justificação às crenças
não básicas. Para os moderados, as crenças básicas não precisam ser
infalíveis, a transferência pode ser dedutiva ou não dedutiva e entre as crenças
básicas podem estar às crenças perceptivas. Portanto, o fundacionismo
moderado tem caráter falibilista. Assim, uma crença justificada pode ser falsa.
Existem também várias objeções ao fundacionismo moderado, vejamos duas.
A primeira objeção sustenta que o fundacionismo moderado apela para
aspectos não doxásticos para justificar as crenças básicas, por exemplo, a
percepção. Segundo os críticos, a percepção não possui a propriedade de ser
justificada ou verdadeira, simplesmente não é cognitiva. Quem possui esse tipo
de propriedade são as crenças ou proposições. Logo, o fundacionismo não
consegue justificar suas crenças básicas através do apelo a estados não
doxásticos ou apela para estados doxásticos, eles menos necessitando de
justificação. A segunda crítica sustenta que segundo o fundacionismo a
experiência de S justifica a crença de S: “Existe um triângulo verde diante de
mim”, pode-se preguntar: Por que isso justifica essa crença de S? É possível
que o princípio subjacente seja: ‘S tem uma experiência de X então S está
justificado num primeiro momento em crer em P, pois tem sua origem
perceptiva em X’. Mas o princípio é falso, pois se S tiver um objeto geométrico
com muitíssimos lados S não está justificado em crer em X. Logo, o princípio
implícito não é suficiente para justificar todos os casos (FELDMAN, 2003;
LEMOS, 2007).
O coerentismo supõe que toda crença é justificada em virtude suas
relações com as demais crenças do sistema de crenças de um sujeito. Não
existe a distinção entre crenças básicas e não básicas. Apenas crenças podem
justificar outras crenças e cada crença justificada depende em parte de outras
crenças para a sua justificação. Para o coerentismo uma crença está justificada
se a crença é coerente com outras crenças. Claro que esta definição é bem
pouco esclarecedora. Um dos problemas do coerentismo é que ele não tem a
sua disposição, segundo os críticos, uma boa definição do que seja coerência.
Uma das formulações é de que S está justificado em crer em p se a coerência
do sistema de crenças de S é maior se ele a inclui e menos se S a exclui.
Vejamos isso num exemplo. Um índio conversando com um europeu escuta a
seguinte afirmação ‘Os rios em certas partes da Europa congelam durante o
inverno’. O índio a princípio não aceita esse tipo de crença, pois ela torna o
sistema de crenças do índio inconsistente com muitas outras crenças do índio
a respeito do comportamento da água. Num segundo caso, um médico
consultando um paciente adquire várias crenças: ‘S sente-se casado’, ‘S vai
muitas vezes ao banheiro urinar’, ‘S sente muita sede’. Uma crença que
aumentará a coerente das crenças acima é admitir: ‘S está com algum tipo de
diabetes’. Como podemos entender o que significa coerência? Não existe uma
resposta única a essa pergunta. O entendimento mais comum é de
inconsistência lógica. S não pode crer na afirmação e na negação de uma
mesma proposição, ‘isto é uma zebra’ e ‘isto não é uma zebra’. Outro
significado é a contribuição explicativa. Como o caso do médico dado acima. E
a inconsistência com alguma norma de formação de crença. Por exemplo, ‘as
crenças produzidas durante o efeito de certas drogas não são confiáveis’.
(FELDMAN, 2003).
Como o fundacionismo o coerentismo tem seus críticos. Uma crítica
famosa contra o coerentismo é o chamado argumento do isolamento. Como o
coerentismo não admite a experiência ou os estados mentais não doxásticos
como justificadores, não consegue explicar satisfatoriamente a relação entre o
sistema de crenças de S e a relação com o mundo. O sistema de crenças de S
é isolado e autônomo em relação à experiência de S, o que parece ser falso. A
experiência parece desempenhar um papel relevante na justificação das
crenças segundo os críticos do coerentismo. Contudo, dado os problema do
fundacionismo e inúmeras críticas alguns filósofos sustentaram versões de
coerentismo, entre as versões mais conhecidas são a de Laurence Bonjour (até
certo momento, ultimamente abraçou o fundacionismo) e Keith Lehrer.
Brevemente algo sobre essa nova teoria da justificação evidencialista: o
infinitismo. Ela foi desenvolvida pelo filósofo americano Peter Klein. Klein
argumenta que as teorias rivais do fundacionismo e do coerentismo são teorias
falhadas de justificação. A primeira não consegue deixar de ser arbitrária e a
segunda não consegue deixar de ser circular. A proposta de Klein é a teoria
infinitista. Flores (2010) argumenta que o modo de colocar o problema da
justificação nos termos tradicionais do evidencialismo a partir do argumento do
regresso já é uma maneira que deprecia a possibilidade de uma teoria racional
da justificação através de um regresso infinito. Considera-se essa possibilidade
um absurdo. Para compreender melhor o problema da justificação não
devemos partir do argumento do regresso, mas da procura de uma teoria que
pare com a dúvida. Quando um sujeito está com dúvida ele procura justificação
e se ele encontra a justificação suficiente para P, então ele não precisa mais
recorrer a nenhuma a mais, pelo menos naquele momento (T). Assim, uma
proposição está justificada quando ela possui um conjunto infinito de
proposições que possam dirimir as dúvidas de S. Além disso, esse conjunto
infinito deve respeitar esses limites fundamentais: as crenças não podem ser
repetidas, serem infinitas, nem circulares ou arbitrárias. Note-se que o
infinitismo não possui crenças básicas e outras não básicas, nisso se
assemelha ao coerentismo. Apenas crenças justificam outras crenças.
Diferente do coerentismo, o conjunto infinito de crenças evita o problema da
circularidade. Uma das primeiras objeções à teoria é de que um sujeito finito
não pode possuir um conjunto infinito de crenças. Mas a teoria infinitista de
Klein não sustenta que o sujeito tenha infinitas crenças, mas apenas que
existam potencialmente infinitas proposições que possam justificar a crença de
S em T. O sujeito não precisa ter atualmente todas as infinitas crenças para
estar justificado, apenas o número suficiente que lhe tirem do estado de dúvida
e forneçam a esse sujeito as evidências suficientes para crer em P. Um
aspecto forte da teoria é que ela evita a dificuldade da arbitrariedade e da
cicuralidade. Porém não deixa de ter seus próprios problemas. Nem todos
concordam o infinitismo. Existem problemas, segundo alguns críticos, por
exemplo: Como sabemos que existe um conjunto infinito de crenças que
justificam alguma crença? Como distinguir uma série infinita de crenças
justificadas de uma série infinita de crenças injustificadas? Seria possível toda
crença estar justificada, se P tem um conjunto de crenças infinitas está
justificada, porém não P estaria também justificada se tiver seu conjunto infinito
de crenças?
8. O problema das fontes do conhecimento
Um conjunto de problemas epistemológicos é o problema em torno das
fontes do conhecimento. De onde vem nosso conhecimento? Qual é a gênese
do conhecimento? Na modernidade a discussão é historicamente e de modo
geral coloca em torno da dialética entre os racionalistas (Descartes, Spinoza
(1632-1677), Leibiniz (1646-1716)), os empiristas (Locke, Berkeley, Hume) e os
racioempiristas (Kant). Se esse é um modo preciso ou não de abordar o
problema não nos interessa nesse momento e não o seguiremos.
Segundo Robert Audi em Epistemology: a contemporary introduction to the
Theory of Knowledge (1998), podemos distinguir cinco fontes do conhecimento: a
percepção, a memória, a consciência, a razão e o testemunho. Vamos nos
deter em apenas três dessas fontes, a saber, a percepção, a memória e o
testemunho.
A percepção é uma fonte do conhecimento. Existem dois problemas
fundamentais: o problema da natureza da percepção e da justificação
epistêmica da percepção. Acerca do problema da natureza temos duas
clássicas respostas. A teoria do sense-datum e a adverbial. A teoria do sense-
datum sustenta que o objeto da experiência perceptiva são os sense-data, a
saber, objetos não físicos e dependentes da mente do conhecedor. A teoria
adverbial sustenta que perceber é estar em um estado de consciência sensorial
ou de aparecer de certo modo. Assim ver uma mesa circular é perceber algo
parecido à qualidade de ser circular ou circularidade. (BLAAUW e
PRITCHARD, 2005). Em relação à justificação epistêmica da percepção temos
três teorias clássicas: o realismo direto, o representacionalismo (ou realismo
indireto) e o fenomenalismo. O realismo direito sustenta que nós temos acesso
direto aos objetos físicos. É uma teoria considerada implicitamente aceita pelo
senso comum. O primeiro a sustentar essa teoria foi Aristóteles no De Anima.
O representacionalismo sustenta que o ato de perceber não é direito, mas
mediado ou pelas sensações, impressões, representações, ideias, fenômenos,
sense-data, qualia entre outros candidatos que estabelecem a conexão entre o
sujeito que percebe, o chamado “véu da sensação” e o mundo. Dois famosos
filósofos que sustentaram tal teoria foram René Descartes e John Locke. Por
fim, o fenomenalismo sustenta que os objetos físicos são feixes de impressões
sensíveis, atuais ou possíveis. Um dos seus defensores foi George Berkeley.
Segundo o argumento de Berkeley, se nós temos acesso apenas ao fenômeno
e não a coisa, não temos razões para inferir além dos próprios fenômenos a
existência de objetos físicos. Portanto, existem apenas fenômenos. (COSTA,
2002). Em suma, o realismo direito e o indireto são uma espécie de realismo,
enquanto o fenomenalismo é uma forma de idealismo. O realismo direto
sustenta que temos contato imediato, o indireto apenas mediato, enquanto o
fenomenalismo afirma que não existe nada além da própria mediação.
Em relação à memória ela não é propriamente uma fonte de
conhecimento, ela pode apenas reter o conhecimento. Em relação à
justificação epistêmica da memória tem-se levantado vários problemas. Um
problema geral sobre a justificação das fontes do conhecimento é da
circularidade como sustentou o filósofo William Alston, toda vez que queremos
justificar uma fonte fazemos uso da fonte que estamos querendo justificar. E
mais especificamente em relação à memória, a psicologia moderna mostrou,
por exemplo, os trabalhos da psicóloga Elizabeth F. Loftus (2003), através de
vários experimentos os problemas com o mecanismo da memória e sua baixa
confiabilidade em alguns contextos (BLAAUW, PRITCHARD, 2005).
Por fim, o testemunho. Muito ou mais radicalmente a maioria do que
conhecemos é devido à fonte do testemunho. O testemunho como fonte de
conhecimento foi negado por filósofos da modernidade como Descartes e
Locke que sustentaram ser o testemunho uma fonte não confiável. David Hume
foi mais generoso com essa fonte, contudo o conteúdo do testemunho deveria
ter a possibilidade de ser reduzido à experiência do agente doxástico. Milagres,
por exemplo, não poderiam ser cridos, pois estariam além da experiência do
ouvinte e, portanto, possivelmente fruto do engano e da mentira. (Cf. HUME,
cap. 10, p. 153-182). Uma visão otimista do testemunho, encontramos na obra
do filósofo escocês Thomas Reid (1710-1796), uma exceção no contexto
Moderno. O problema da justificação epistêmica do testemunho tem sido, em
nossos tempos, encontrar uma teoria que não cai na simples rejeição tout court
da confiabilidade do testemunho o que nos leva a um ceticismo de grande
parte do que acreditamos e nem o extremo oposto, o credulismo, aceitar todo e
qualquer testemunho. (BLAAUW, PRITCHARD, 2005).
Muito ainda poderia ser dito para tornar o mapa mais completo, como
por exemplo, sobre os que alegam a impossibilidade de uma epistemologia
como é o caso dos céticos e relativistas, isso é, a possibilidade de oferecer
certas regras universais que nos permitem dizer quando temos crença
justificada ou conhecimento ou pelo menos a certo setor do conhecimento
humano como o moral, o artístico, o religioso ou o científico. Vamos terminar
caracterizando a Epistemologia depois de vermos alguns dos seus principais
problemas. Uma caracterização de Epistemologia pode feita através de
algumas perguntas fundamentais: O que é conhecimento? O que podemos
conhecer? Como conhecemos o que conhecemos? O que não devemos fazer
é caracterizar o que se entende hoje por Epistemologia com algumas
realizações passadas de Epistemologia. Por exemplo, pensar que a
Epistemologia seja a busca da certeza ou achar fundamentos absolutos como
fizera Descartes. Bem como, tentar legitimar as disciplinas científicas como
fizera Kant em sua Crítica da Razão Pura, ou mesmo refutar o ceticismo. Essas
maneiras são muito limitadas e circunscrevem a Epistemologia apenas ao que
alguns filósofos fizeram em suas epistemologias (GRECO, 2008).
9. Conclusão
Este texto teve como objetivo dar ao estudante uma visão geral ou um
mapa dos principais problemas da Epistemologia contemporânea que vem
sendo feita após Gettier. O quadro não é completo, mas oferece ao estudante
uma referência essencial. Vimos que os problemas da análise e da justificação
têm sido até o momento assuntos centrais no debate epistemológico. Nos
últimos dez anos, porém existe uma gama enorme de trabalhos em torno das
fontes do conhecimento, a recuperação das discussões em torno do
testemunho, bem como problema como o valor do conhecimento, o desacordo
também ganharam espaço. Em suma, hoje a Epistemologia é um campo
altamente complexo com vários programas de pesquisa em torno de vários
problemas: conceitos fundamentais (normas, razão, desacordo, crença),
análise, justificação, estrutura do conhecimento, fontes e espécies de
conhecimento (moral, científico, estético, religioso, semântico), ceticismo,
respostas ao ceticismo, epistemologia formal (utilização de métodos das
ciências formais para elucidação de problemas epistemológicos), História da
Epistemologia, assuntos metaepistemológicos (epistemologia pragmatista,
feminista, evolutiva, experimental, reformada). Uma das maneiras mais fácies
de se aproximar da Epistemologia é, depois de um conhecimento de seus
problemas gerais, tomar um tema de seu interesse e aprofundar. Ler a
literatura relevante da área e pensar em soluções próprias a esses difíceis e
recalcitrantes problemas epistemológicos, contribuindo assim para elucida-los
e, quem sabe, solucioná-los.
REFERÊNCIAS
AUDI, Robert. Epistemology: a contemporary introduction to the Theory of
Knowledge. London: Routledge, 1998.

BLAAUW, Martijn; DUNCAN, Pritchard. Epistemology A-Z. Finland: Palgrave


Macmillan, 2005.
DUNCAN, Pritchard. What is this thing knowledge? New York: Routledge,
2006.
FELDMAN, Richard. Epistemology. New Jersey: Prentice Hall, 2003.
FLORES, Tito Alencar. Infinitismo e justificação epistêmica. In Ensaios de
Epistemologia contemporânea. Or. Sartori, C. A e Gallina, A. L. Ijuí: UNIJUÍ,
P. 244-263, 2010.
GETTIER, Edmund L. É a crença verdadeira e justificada conhecimento?
Tradução Álvaro Nunes. In Analysis 23 (1963, pp. 121-123). Disponível em:
http://www.filedu.com/egettieracrencaverdadeirajustificada.html. Acesso em:
24/jul./2012.
GLOCK, Hans-Johann. O que é filosofia analítica? Porto Alegre: Artmed,
2011.
GRECO, J; SOSA, E. (Eds.). Compêndio de Epistemologia. São Paulo:
Loyola, 2008.
HEGENBERG, Leonidas. Definições: termos teóricos e significado. São Paulo:
Cultrix e Edusp, 1975.
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os
princípios da moral. São Paulo: UNESP, 2003.
LEMOS, Noah. An introduction to Theory of Knowledge. New York:
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LOFTUS, Elizabeth F. Make-believe Memories. In American Psychologist 58,
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MULLER, Felipe de Matos. A noção deontológica de justificação epistêmica. In
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PLANTINGA, Alvin. Warrant and proper function. New York: Oxford, 1993.
PORTA, M. A Filosofia a partir de seus problemas. São Paulo: Loyola, 2002.
Sugestão de leitura:

DANCY, Jonathan. Epistemologia contemporânea. Lisboa: Edições 70.

DUTRA, L. H. A. Introdução à Epistemologia. São Paulo: UNESP, 2010.

MOSER, P; DWAYNE, H; TROUT, J. D. A Teoria do Conhecimento. São


Paulo: Martins Fontes, 2004.

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