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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ARQUITETURA E URBANISMO

SÉRGIO MIGUEL PRUCOLI BARBOZA

APROXIMAÇÕES A UM “URBANISMO MENOR”: A


CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE (micro)PLANEJAMENTO
URBANO PARA A CONSTITUIÇÃO DE MICRO-REVOLUÇÕES
CRIATIVAS E DAS PRÁTICAS LIBERTÁRIAS EM PROJETOS
URBANÍSTICOS

Área de concentração: Urbanismo


Linha de pesquisa: Teoria e Crítica da Arquitetura e do Urbanismo
Doutorando: Sérgio Miguel Prucoli Barboza
Professor orientador: Pasqualino Magnavita

SALVADOR 2016
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SÉRGIO MIGUEL PRUCOLI BARBOZA

APROXIMAÇÕES A UM “URBANISMO MENOR”:


A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE (micro)PLANEJAMENTO
URBANO PARA A CONSTITUIÇÃO DE MICRO-REVOLUÇÕES
CRIATIVAS E DAS PRÁTICAS LIBERTÁRIAS EM PROJETOS
URBANÍSTICOS

Tese apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo do Departamento de
Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em
Arquitetura e Urbanismo.
Orientador: Prof. Dr. Pasqualino
Magnavita

SALVADOR 2016
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SÉRGIO MIGUEL PRUCOLI BARBOZA

APROXIMAÇÕES A UM “URBANISMO MENOR”:


A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE (micro)PLANEJAMENTO
URBANO PARA A CONSTITUIÇÃO DE MICRO-REVOLUÇÕES
CRIATIVAS E DAS PRÁTICAS LIBERTÁRIAS EM PROJETOS
URBANÍSTICOS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e


Urbanismo do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em
Arquitetura e Urbanismo.
Comissão Examinadora

____________________________________________
Prof. Dr. Pasqualino Magnavita
Universidade Federal da Bahia

____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Thais Portela
Universidade Federal da Bahia

____________________________________________
Prof. Dr. Luis Antonio Baptista
Universidade Federal Fluminense

____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ariadne Moraes
Universidade Federal da Bahia

____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Joaquim Viana
Universidade Federal da Bahia
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RESUMO

O urbanismo menor é o campo elegido para a construção deste trabalho por


apostarmos neste como possuidor uma potência de aplicação passível de
interferir nas práticas urbanísticas hegemônicas. Dentro de tal campo
propomos a construção do conceito de (micro)Planejamento urbano como
artificio para uma micropolítica de resistência criativa que atue no
desenvolvimento da conscientização e do empoderamento político de
arquitetos e urbanistas. Buscaremos, para tanto, traçar concordâncias e
divergências entre três diferentes perspectivas em três autores: Jane Jacobs,
Jan Gehl e os coletivos denominados Urban Designers para a construção de
um campo reflexivo acerca do microplanejamento urbano. Três conceitos
escolhidos, advindos da filosofia da diferença serão utilizados como
balizadores ético-estético-políticos para analisar tal prática. Propomos o
balizamento do (micro)Planejamento urbano pelos conceitos: “cuidado de si”,
“singularização” e “multidão”, como aposta da consolidação desta consciência
e empoderamento – a hipótese: tal ferramenta conceitual metodológica pode
concretizar ainda mais uma postura política em afirmação da vida na prática do
microplanejamento urbano.

Palavras-chave: Urbanismo, cidade, planejamento urbano, filosofia da


diferença.
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ABSTRACT

The minor urbanism is the elected field in the framing of this work, based in the
bid of it as holder of an application potency liable of interfering in hegemonic
urbanistic practices. Inside that field we propose the construction of the concept
of Urban (micro)Planning as an artifice to an creative resistance micropolicy
acting in the development of politic awareness and empowerment of architects
and urbanists. Our pursue, therefore, tracing concordances and divergences
between three different perspectives in three authors: Jane Jacobs, Jan Gehl
and the collectives called Urban Designers for the construction of a detailed
view of urban microplanning. Three chosen concepts were chosen, deriving
from the difference (philosophy) will be used as ethic-aesthethic-politics guides
to analyze such practice. We suggest this guidness of Urban (micro)Planning
through the concepts: “care of the self”, “singularization” and “multitude”, as bet
on the consolidation fo this awareness and empowerment – the hypothesis:
such conceptual methodological tool can achieve even more an affirmative
posture of live in the microplanning practices.

Keys-words: Urbanism, city, urban planning, difference philosophy


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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais e irmãos por todo o apoio, torcida e paciência.

Aos amigos que tornaram esse percurso menos dolorido e solitário,


especialmente Hanke, Nanda, Mari e Diogo.

Aos funcionários do Café Tabaco que ao longo desse período e de extensas


quantidades de cafeína se tornaram verdadeiros camaradas.

Aos amigos adquiridos em Salvador, sobretudo os queridos Tiago, Vanessa e


Luis Guilherme, pela companhia e partilha nos dias soteropolitanos e além.

Ao meu mais novo irmão Osnildo, grande amigo, companheirão de república e


confidente querido.

Aos professores com quem tive o prazer de aprender no PPGAU-UFBA.

Aos professores que tive durante todo meu percurso dentro e fora das salas de
aula.

Luis Antônio Baptista, Thais Portela, Joaquim Viana e Ariadne Moraes, por
aceitarem fazer parte da minha banca, e por toda a atenção, carinho e
colaboração.

Sobretudo e muito especialmente ao meu querido mestre orientador


Pasqualino, cujas palavras me faltam para descrever o tamanho de meu
carinho, respeito e admiração. Obrigado por todas as conversas,
ensinamentos, paciência... E inspiração.
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Rude vento noturno arrebatou-me


Para longe da terra, nu e impuro.
Perdi as mãos e em meio ao oceano escuro
Em desespero o vento abandonou-me.

Perdido, rosto de água e solidão,


Adornei-me de mar e de desertos.
Meu paletó de azuis rasgões abertos
Esconde amanhecer e maldição...

Um deserto menino me acompanha


Na viagem (que flores deste caos!)
E em rosa o sol me veste e me inaugura.

Dou às praias de Deus: a alma ferida,


As mãos envenenadas de ternuras
E um buquê de carnes corrompidas.

(Manoel de Barros, A viagem)


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SUMÁRIO

MOVIMENTO 1. APROXIMAÇÕES ...p.11


1.1 Introdução
1.1.1 Percursos de um pensamento em Urbanismo ...p.12
1.1.2 Apresentação da tese ...p.15
1.1.3 O que pode uma tese? ...p.17
1.2 Pressuposições
1.2.1 Urbanismo e Subjetividade ...p.27
1.2.2 Urbanismo como arte: provocações para outros desejos de cidades
...p.37
1.2.3 Francis Bacon pinta uma cidade: O que pode um urbanismo menor?
...p.46
1.2.4 Urbanismo entre Biopoder e Biopotência ...p.57

MOVIMENTO 2. MICROPLANEJAMENTO URBANO


2.1 O paradigma do Urbanismo na cidade da Revolução Industrial ...p.69
2.2 Jane Jacobs: além da crítica aos modernos ...p.78
2.3 Jan Gehl: novos contornos à arquitetura ...p.90
2.4 Os Urban Designers ...p.98
2.5 Microplanejamento urbano segundo a prática ...p.104

MOVIMENTO 3. BALIZAMENTOS NA DIFERENÇA


3.1 A (Filosofia da) Diferença na construção de outros horizontes ...p.111
3.2 Foucault e o Cuidado de si: praticas libertárias do sujeito ...p.113
3.3 Guattari e a Singularização: o coletivo que escapa ...p.117
3.4 Negri e a Multidão: a máquina coletiva que mira o infinito ...p.121

MOVIMENTO 4. APROXIMAÇÕES AO CONCEITO DE


(micro)PLANEJAMENTO URBANO
4.1 Movimentos que se encontram: praticas, politicas, criação e resistências
...p.124
4.2 Pensar a prática do (micro)Planejamento Urbano no campo do Urbanismo
Menor: Estratégias e pistas p.130
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MOVIMENTO 5. EXPERIMENTO DOCENTE EM URBANISMO MENOR


5.1 (micro)Planejamento urbano como conteúdo e instrumento de uma
pedagogia da autonomia crítica em urbanismo ...p.134
5.2 Narrativas rizomáticas de uma experiência em urbanismo menor:
(micro)Planejamento na prática docente p.147

MOVIMENTO 6. RETICÊNCIAS
6 Não há conclusões em práticas processuais ...p.179

BIBLIOGRAFIA ...p.183
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As cidades deveriam ser lugares dignos para todas as pessoas viverem. Mas ao invés
disso as cidades vêm sendo cada vez mais dominadas pelo capital, pelas grandes
corporações em aliança com o Estado. E, cada vez mais, elas têm se transformado
em lugares de produção de lucro em vez de lugares para se viver. Nós estamos
criando cidades para o investimento do capital e não cidades para as pessoas
viverem.
E eu acredito que isso só pode acontecer se a maioria das pessoas da cidade viver
como expectadores do que está acontecendo ao invés de participantes dela. O
resultado é a falta de democracia na cidade. Quando as vozes das pessoas não são
escutadas a participação das pessoas é minimizada. E, ao mesmo tempo, as pessoas
sentem uma profunda insatisfação por viver no tipo de cidade que o capital constrói. E
como resultado, nós observamos por todo o mundo protestos urbanos massivos. E,
claro, aqui no Rio de Janeiro, e também em São Paulo e em outras cidades do Brasil
houveram protestos massivos em julho de 2013, E muitos destes protestos
contestavam a qualidade da vida urbana. As qualidades da vida cotidiana em um
ambiente que não é construído para o interesse das pessoas, mas para o interesse do
capital.
Nós temos que virar esse jogo. E as únicas pessoas que podem virar esse jogo é o
povo. Nós temos que pensar como gostaríamos que a nossa cidade fosse. Nós temos
que pensar a respeito de uma cidade que está aberta à discussão, aberta ao debate,
aberta para considerar diferentes investimentos, investimentos em moradia para todos,
investimento em saúde, educação, todas as coisas básicas que precisamos para viver
uma vida digna e em um meio ambiente digno. Para mim, é assim que o futuro deveria
ser. E a única maneira que podemos definir esse futuro é organizando um movimento
político que tome a cidade de volta para as pessoas e que tire daqueles que a usam
para o lucro. Então, todos nós temos que perguntar a nós mesmos: O que faríamos se
a cidade fosse nossa? O que faríamos se pudéssemos tomar a cidade de volta? E isso
parece, para mim, ser uma das maiores questões políticas do nosso tempo. Ela traz a
luta política para o coração da cidade. Ela traz uma grade luta para que a gente se
torne participante ativo do nosso futuro, Arquitetos ativos do nosso próprio futuro.
Acredito que isso é algo que todos nós desejamos, Tosos nós queremos. Então, o que
faríamos se a cidade fosse nossa?
Fala de David Harvey para o movimento Se a Cidade Fosse Nossa
Rio de Janeiro, junho de 2015
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MOVIMENTO 1. APROXIMAÇÕES

Este trabalho, como já posto em seu sumário, não é apresentado em capítulos,


mas em movimentos. A escolha por movimentos, e não capítulos, se dá por
motivos estéticos. Isto porque este se encontra mais próximo de um processo
onde determinadas intensidades o atravessam direcionando os sentidos aqui
tomados. Não aspiramos assim uma metodologia clássica, definida, onde
perguntas são apresentadas e respostas a estas perguntas são propostas. De
fato, nos interessam mais a análise e o desenvolvimento das perguntas do que
o desvelar de respostas. Posto de outra maneira, as inquietações que deram
origem a este trabalho e as que surgiram no decorrer de sua escrita, se
acomodam melhor sob o rótulo de “movimento” e sua procesualidade do que
na clausura da determinação dos “capítulos”.

Neste primeiro movimento desta tese estão contidos textos que são de grande
importância para que o desenvolvimento das ideias aqui propostas sejam, não
diremos “alcançadas” – posto que não é nosso intuito “o alcançar” de uma meta
singular por aqueles que por ventura atravessem as páginas desta pesquisa –,
mas, sim, para que este processo de pensamento em urbanismo seja uma
companhia tão produtiva quanto possível, que este trabalho possa tornar-se um
intercessor com o qual nosso leitor seja capaz travar diálogos férteis – dando
origem a outros processos –, onde nossas pontuações (em sua maioria
composta por interrogações e reticências) sejam mais acessíveis. São
aproximações, como intitulado neste movimento, que julgamos necessárias
para o acompanhamento deste trabalho.

Este movimento de apresentação de nossa “tese-processo” foi dividido em


duas partes, a introdução e pressuposições. Na introdução apresentamos o
problema, nosso entendimento dos contornos e proposições de um trabalho de
tese. Na segunda parte apresentamos pressuposições para um
acompanhamento produtivo dos enunciados que compõem os movimentos
seguintes.
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1.1 Introdução
1.1.1 - Percursos de um pensamento em Urbanismo

[...] a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência


histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o
papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem
sua existência com um material que a vida lhes oferece... (FREIRE, 2001, P.30)

O presente trabalho apresenta-se como um ponto em um percurso. Trata-se de


um processo de pensamento em Urbanismo. Nossa proposta é a prospecção
de um conceito, o (micro)Planejamento urbano, conceito que proporemos a
partir da pesquisa exploratória sobre o microplanejamento urbano. Tema
bastante em voga entre pesquisadores, gestores e militantes que tem como
foco de interesse a qualidade de vida urbana e a construção do habitat urbano.
Necessariamente encontramos tal discussão nas escolas superiores
brasileiras, sobretudo nos saberes das ciências sociais, e também nas escolas
de Arquitetura e Urbanismo (AU), sendo uma temática conhecida dos
graduandos e jovens profissionais da área.

Como conceito, o microplanejamento urbano, tal como nos deparamos hoje,


apresenta-se sem definições mínimas e aplicado em uma diversidade bastante
ampla de situações. Podendo ter seu entendimento associado à questão de
escala de trabalho em urbanismo, assim como às ações insurgentes daqueles
não assistidos pelas politicas urbanas, também como ações que estão para
além dos projetos de objetos urbanísticos e da pretensa alçada do urbanismo
em seu entendimento mais tradicional, dentre outras possibilidades. Seu ponto
comum é que estas intervenções, em sua imensa pluralidade, se dão no
espaço urbano.

Podemos dizer, assim, sem ousadia, que o microplanejamento ainda não se


efetiva como conceito, em uma concepção mais tradicional, mas antes, deve
ser considerado como uma idéia composta de uma amálgama de intenções e
problematizações consideráveis. Nesta conjunção de fatos, surge esta tese
como aposta, que a manufatura do conceito, ou melhor, da ferramenta
conceitual metodológica do (micro)Planejamento urbano pode consistir em uma
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potencialização deste, e uma instrumentalização passível de interferência na


formação e consequentemente na prática urbanística hegemônica.

A crítica que acusa a instituição da AU como hegemônica, aliada, ou cooptada,


a interesses elitistas é ampla e polifônica, independe de referencial teórico. Das
bases do marxismo – com as falas de Friedrich Engels sobre Londres do
século XIX –, aos neomarxistas – como o contemporâneo David Harvey –, ao
pensamento da diferença (ou pós-estruturalismo, como alguns preferem) – com
extensa produção, sobretudo em Michael Foucault e Félix Guattari –, e
certamente ainda muitos outros, questionarão a forma de construção da cidade
e o saber que se propõe como direcionador desta forma de “fazer cidade”. A
aposta então toma lugar dentro do campo que entendemos como urbanismo
menor (campo sobre o qual dissertaremos adiante neste trabalho, no texto
1.2.3 “Francis Bacon Pinta uma cidade: o que pode um urbanismo menor”) na
elaboração do conceito de (micro)Planejamento urbano. Esta aposta faz-se
tendo como intuito a forja de um operador libertário que potencialize a
conscientização de uma revolução molecular. Aposta que nos situa no plano do
ensino, mas também como repertório para os profissionais, para aqueles que
são portadores do desassossego com o modus operandi da AU. Nos quais,
diremos humildemente, que estamos incluídos.

A exploração que faremos em busca da formação deste conceito se dá


inicialmente pelo trabalho de constituir uma paisagem de concordâncias e
divergências entra as perspectivas de microplanejamento urbano na obra de
três intercessores, a jornalista e ativista americana Jane Jacobs; o arquiteto e
professor dinamarquês Jan Gehl; e os coletivos denominados de Urban
Designers. Então passaremos por um balizamento que se constituí a partir da
articulação de três conceitos-chaves inerentes à Filosofia da Diferença, estes
conceitos são “cuidado de si”, do psicólogo, filosofo e professor francês Michel
Foucault; “singularização”, do psicanalista e filosofo francês Félix Guattari; e
“multidão”, do ativista e filosofo italiano Antonio Negri e do professor e filosofo
americano Michael Hardt. Tal balizamento, que se edifica no tripé ético-
estético-político, dá-se na aposta de consolidação de uma consciência e uma
14

postura política de afirmação da vida dentro de práticas de


(micro)Planejamento urbano.

Como dito anteriormente, nossa proposta de tese é um ponto de um percurso


que se iniciou na insatisfação despertada ainda na graduação em Arquitetura e
Urbanismo, com a formação tecnicista de arquiteto urbanista, na ausência de
um pensamento crítico sobre a produção arquitetônica e urbanística e suas
consequências nos modos de existência. E o fortuito encontro com os diálogos
presentes, e que são caros à formação deste pensamento, nos saberes da
Psicologia, da Antropologia, da Filosofia e das Artes, cuja força foi vital para
forjar uma dissonância necessária em nosso entendimento das possibilidades
de atuação e de ressignificação, por sua vez, no saber da Arquitetura e
Urbanismo. Após a graduação, a vivência que efetuamos na edificação de
nossa dissertação de mestrado, em Psicologia Institucional, na
problematização e desconstrução do Urbanismo, a partir da Análise
institucional e do conceito de Subjetivação, foi crucial para consolidar o desejo
de desestabilizar contornos daquilo que se institui como o saber Arquitetura e
Urbanismo. Assim, finalmente, nos encontramos no ponto em que esta tese de
doutoramento e suas errâncias se efetivam.

Podemos dizer que, diferente do que costuma “se dar” durante o período de
construção da tese, não houveram grandes mudanças nas bases deste
trabalho desde seu projeto. Contudo após a última qualificação antes de sua
apresentação de defesa, com os apontamentos feitos pelos membros de nossa
banca, percebemos que a função pretendida na prospecção do conceito de
(micro)Planejamento urbano tocava com alguma intensidade a constituição da
consciência, ou, para usar outro termo caro a Paulo Freire, o empoderamento
dos alunos e profissionais da AU. Tal pontuação teve como consequência uma
singela mudança de direção no eixo deste. Não de forma a abandonar as
questões almejadas, mas, sim, no sentido de agregar, mesmo que sutilmente,
como um olhar de relance, sobre a questão da educação na graduação e nas
práticas deste saber. Não nos aprofundaremos na problemática pedagógica da
graduação ou das práticas que tomam corpo na formação dos arquitetos
urbanistas – proposta que pode se efetivar no futuro em uma pesquisa de pós-
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doutorado –, mas ousaremos propor que a reflexão pretendida nestas páginas,


nesta busca por um conceito operador se posicione no âmbito da resistência
criativa, na possibilidade de fissura ante a prisão hegemônica e elitista que
despotencializa fazeres outros em AU e na edificação do espaço urbano.

1.1.2 Apresentação da tese

Este trabalho de tese se encontra na área de concentração de Urbanismo, e


especificamente na linha de pesquisa de “Teoria e crítica da Arquitetura e
Urbanismo", apresentada pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal da Bahia como:

Atualização permanente do corpo de idéias (teorias) que serve de


base para ações de Teoria e Crítica associadas ao ensino e à
prática em Arquitetura e Urbanismo, implicando a observação da sua
complexidade na interação entre indivíduo (profissional, acadêmico) e
sociedade, visando o questionamento permanente da sua pertinência
(crítica)1.

Pretendemos a prospecção do conceito de (micro)Planejamento urbano que


nos sirva como ferramenta operadora de um projeto de resistência criativa,
atuando na tomada de consciência por parte dos atores da AU, para tanto
iremos em primeiro plano, aprofundar os estudos acerca do
microplanejamento, como conceito, que julgamos, ainda não devidamente
explorado e divulgado, e, em segundo plano, alcançar pistas e orientações
(uma vez que a pretensão às regras vai de encontro à flexibilidade e à
singularidade de tal ação) que possam servir para o balizamento desta prática
comprometidas com a construção do comum. Buscaremos nos aproximar e
situar no âmbito do urbanismo menor.

Para tanto, a estratégia que tomamos nos movimentos que seguem a este
movimento introdutório de aproximação – onde apresentamos parte importante
dos de nossos intercessores e algumas das ferramentas conceituais

1
Retirado do site do PPGAU-UFBA
http://www.ppgau.ufba.br/node/136
16

metodológicas muito caras à nossa perspectiva dentro do urbanismo –,


colocam-se segundo nossa errância no pensamento crítico urbano na seguinte
dinâmica:

 Movimento 2: Microplanejamento Urbano – apresentação das principais


vertentes deste conceito “em aberto” segundo o que consideramos seus
principais expoentes, Janes Jacobs, Jan Ghel e os Urban Designers,
juntamente com a análise crítica destes, e a busca por um confluências
e divergências desta produção

 Movimento 3: Balizamento na Diferença – Pontuaremos neste ponto


nossas três ferramentas conceituais metodológicas, os conceitos de
Cuidado de Si, em Michel Foucault, Singularização, em Félix Guattari, e
Multidão, em Toni Negri, como aposta de que estes são capazes de
operar na construção do conceito de (micro)Planejamento urbano

 Movimento 4: Aproximações ao conceito de (micro)Planejamento urbano


– Neste movimento articularemos nossos dois movimentos anteriores
com o intuito de alcançar um conceito de (micro)Planejamento urbano
que possa efetivar-se como ferramenta conceitual de interferência e
desestabilização sobre o urbanismo hegemônico.

 Movimento 5: Experimento docente em Urbanismo Menor – Aqui a


dinâmica proposta questiona a pratica docente do urbanismo tradicional
(hegemônico) e a aposta na proposição de um urbanismo menor através
do (micro)Planejamento urbano como prática de resistência criativa.

 Movimento 6: Reticências – Onde apresentaremos nossas inconclusões


de um processo ainda em desenvolvimento.
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1.1.3 O que pode uma tese?

"Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura,


mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da
sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a idéia
de que eles são agentes da "consciência" e do discurso também faz parte desse
sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar "um pouco na frente
ou um pouco de lado" para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar
contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto
e o instrumento: na ordem do saber, da "verdade", da "consciência", do
discurso". (FOUCAULT, 1979, p.71)

A temática deste texto pode parecer estranha e não relevante ao corpo de uma
tese, contudo, a linha de pesquisa na qual este trabalho se inscreve – Teoria e
Crítica da Arquitetura e Urbanismo – e o campo da docência, como base e
anteparo para a prospecção de um conceito que se justifica à nossa grande
área do conhecimento (tarefa que nos cabe aqui), são por si o combustível de
sua manufatura. Em outras palavras, nosso intuito aqui se coloca no exercício
propositivo de uma crítica necessariamente criativa que lance, além das
problematizações, vislumbres de possíveis territórios que ajam como linhas
flexíveis, ou mesmo de fuga, a escritura desta tese ante às práticas que
consolidam hegemonicamente e de maneira escalonada, as instituições:
Universidade, Escolas de Arquitetura e Urbanismo, os Profissionais e
Pesquisadores e suas práticas, o resultado de tais práticas na construção
efetiva da cidade, e, por fim, também dos modos de vida urbanos que nesta
são produzidos.

Para alguns campos do saber o olhar sobre suas próprias práticas, e a


desnaturalização destas já é uma realidade – poderíamos citar aqui a
Psicologia e a Comunicação como exemplos. No campo da Arquitetura e
Urbanismo está é uma prática ainda em construção, e sua grande crítica
estabelecida parece só acontecer no âmbito da pós graduação e com foco
maior nas ações do perverso mercado da especulação imobiliária, da cidade
transformada em negócio, em mercadoria – o que nos leva a considerar que à
graduação cabe a formação tecnicista2, enquanto à pós-graduação cabe a

2
Tal colocação sobre o tecnicismo da graduação pode parecer conflituosa com a existência de
disciplinas, dentro da grade curricular da maioria dos cursos de AU, como “Sociologia urbana”,
18

construção crítica o que vai contra o texto constitucional de 1988 que disserta
sobre “a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” como coloca
Heckert e Passos (2009) – segundo tal indissociabilidade a práxis de pesquisa,
de incitação ao pensamento crítico e propositivo, teria o mesmo peso em todas
as instâncias do ensino superior. Parece-nos importante perceber que a
universidade tem o papel preponderante na formação dos profissionais que
constituem o mercado de trabalho, alvo destas críticas. Colocando de outra
forma, é necessário questionar também a práxis do ensino superior! Tomar o
foco do descontentamento para (muito) mais próximo, e problematizar também
com o funcionamento produtivista das universidades.

O Ministério da Educação alardeia que “dados de produção intelectual apontam


um aumento de 34% na publicação de artigos em periódicos científicos
(171.969, em 2012)”3. E o que significa este aumento de 34%? Pode-se afirmar
algum avanço na qualidade das pesquisas que fazem parte desta super-
produção? Recentemente Alvaro Biachi, em texto intitulado “Avaliação
acadêmica: muito além do jardim” (BIACHI, 2014) escreveu sobre a máfia das
publicações de pesquisas no Brasil, a repercussão das artimanhas tupiniquins
na comunidade cientifica internacional e as consequências dessas práticas.
Sobre o processo dúbio de avaliação dos trabalhos postos para publicação
coloca Bianchi:

É obviamente necessário repensar a avaliação e imaginar formas e processos


de avaliação que permitam captar tendências que fogem à fria razão numérica.
Atualmente os recursos mobilizados para a avaliação são escassos; a utilização
de métodos quantitativos de avaliação não produziu resultados mais objetivos;
os avaliadores não são avaliados; não há nenhum mecanismo de controle
externo; e a avaliação adquiriu um caráter normativo, associado à distribuição
de recursos.

“Antropologia cultural”, entre outras – e com variações em suas nomenclaturas –, aliadas em alguns
casos às disciplinas de “Projeto urbano” que levam em consideração referenciais bibliográficos mais
interessantes à construção de um pensamento crítico, mas devemos ponderar sobre como se dá a
avaliação e o aproveitamento efetivo destas disciplinas. E também pesar que mesmo estas disciplinas
com base sociológica normalmente se encontram dentro do campo dos estudos urbanos, campo
normalmente menos “importante” que o campo do projeto arquitetônico.
3
Dado do Portal da CAPES/MEC. Acessível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20018:cursos-de-pos-
graduacao-tiveram-crescimento-de-23-nos-ultimos-tres-anos&catid=212
data de acesso 15 de julho de 2016
19

O foco da avaliação no Brasil não está na atividade do docente e sim no


desempenho do programa de pós-graduação ao qual ele está vinculado. Desse
modo a avaliação determina o montante e recursos que um programa obterá.
Obviamente as avaliações tendem a reproduzir o status quo. Programas
melhor avaliados obtém mais recursos e desse modo aumentam a
possibilidade de serem melhor avaliados no futuro. Quando o financiamento
está vinculado exclusivamente ao desempenho o resultado torna-se
conservador.

Na conclusão do texto Bianchi pontua algumas questões que afirmam uma


realidade das universidades:

Mas para ser levada a sério a avaliação deve tocar em aspectos que até agora
não receberam a devida atenção. Onde está, de fato, o problema nas
instituições brasileiras? Na publicação artigos e livros? No número de teses
defendidas? Ou na enorme burocracia que o sistema de financiamento à
pesquisa e avaliação gera, consumindo um tempo precioso que poderia estar
sendo utilizado nas atividades de ensino e pesquisa? Na escassez de recursos
humanos? Na concentração dos investimentos em áreas de rápido impacto
econômico? Já está mais do que na hora de pensar de maneira crítica não
apenas a forma da avaliação, como também o que é avaliado e para que é
avaliado.

O que se pode afirmar é que existe uma corrida desenfreada pela produção de
trabalhos acadêmicos, e tal corrida tem como consequência um aumento na
superficialidade e muitas vezes até uma reprodução esvaziadas de sentido,
que não levam a alguma contribuição qualitativa, mas simplesmente
quantitativa. Questão que ressona na infinidade de congressos onde os
trabalhos não são “postos para conversar”, para discutir, e onde não se criam
redes, mas, que ao mesmo tempo, podemos encontrar em excesso o terrível
“ego acadêmico” em exibição – a produção em escala industrial, a corrida pelo
inflamento dos curriculum lattes, onde tudo e qualquer coisa torna-se
forçosamente aproveitável e interessante. No estado de coisas no qual nos
encontramos não há espaço para a maturação do conhecimento adquirido. Não
se questiona os métodos positivistas de pesquisa, sobretudo no campo das
ciências humanas e humanas aplicadas, hoje incapazes de lidar com a
complexidade social, na busca pela captura d“A” verdade cientifica que ignora
o perspectivismo e segue na tarefa da reprodução, tida como imparcial, que
separa o objeto do pesquisador, a teoria da prática e afirma a universalidade
dos métodos prêt-à-porter.
20

Nesta práxis reprodutiva corremos o risco da paralisia, uma vez que no reforjar
das práticas de pesquisa, e também dos “círculos-de-amizades acadêmicas,
dos apadrinhamentos”, das “disputas por território e por alunos-asseclas”
vemos a ascensão de professores que recebem e receberão a terrível herança
de seus velhos orientadores de atuar dentro dos mesmo limites. Neste estado
de coisas somos obrigados a lidar com o extremismo da racionalidade moderna
que não aceita formas não padronizadas, não pautadas na tradição positivista,
a alteridade da ciência, suas outras formas possíveis, em outras racionalidades
possíveis.

Em artigo intitulado “Pesquisa-intervenção como método, a formação como


intervenção”, Ana Heckert e Eduardo Passos (2009) colocam e reafirmam o
ponto:

Os estabelecimentos de ensino superior encontram-se, na atualidade, voltados


seja à preparação em um mercado de trabalho entendido como realidade já
dada e fixada, seja na preparação precoce de pesquisadores. Ao mesmo
tempo, no cotidiano das universidades docentes e discentes veem-se às voltas
com um produtivismo que tem produzido com efeito repetições apressadas,
pesquisas descoladas dos desafios que percorrem a vida cotidiana de boa
parte dos brasileiros(as), temáticas e problemas de pesquisa pautadas em
evidências que não são problematizadas, dentre outras questões. (p.382)

Na afirmação dos dados quantitativos vemos se alardear o crescimento do


número de Programas de Pós-Graduação (PPG), e consequentemente a
ascensão de vagas e da produção de dissertações de mestrado e teses de
doutorado, que parece, à primeira vista, um acontecimento promissor –
somente nos últimos três anos o crescimento foi de 23%4, segundo o Ministério

4
Segundo o Portal da CAPES/MEC:
“O desenvolvimento do sistema se deu em todas as regiões do Brasil. A região Norte teve 40% de
crescimento, seguida pelo Centro-Oeste com 37% e Nordeste com 33%. Sul e Sudeste, regiões com
maior número de programas de pós-graduação, tiveram crescimento de 25% e 14%, respectivamente.
[...]
O crescimento da pós-graduação brasileira também pode ser percebido em outros indicadores, como a
produção intelectual e o número de mestres e doutores titulados. Dados de produção intelectual
apontam um aumento de 34% na publicação de artigos em periódicos científicos (171.969, em 2012) e
no número de estudantes que obtiveram título de mestre ou doutor, que saltou de 50.411 em 2010
para 60.910 em 2012”.
Dado acessível em:
21

da Educação. Não é questionável a necessidade de investimento no ensino,


não só superior, mas como um todo – não é arriscado afirmar que o
investimento maciço no ensino superior, em detrimento do ensino de base e
fundamental, ajuda na construção da figura do graduando cada vez menos
capaz à potência do pensamento crítico.

Porém as políticas por trás de tal crescimento, assim como das metas de
produção impostas aos professores e aos graduandos, mestrandos e
doutorandos, na forma da números de artigos, participação de congressos,
horas em sala de aula, ou seja, a forma como se dá tal crescimento tem em si
um papel na consolidação de uma forma de ensino superior que coloca em
cheque se o papel da universidade é produzir conhecimento ou apenas
fornecer mão de obra ao mercado – tal como André Dahmer coloca em sua
famosa “tirinha” Os Malvados5. Descreveremos a cena fabulada (?). Um
professor, em uma sala de aula, lança um discurso “de verdades” aos alunos:

– “Vou ficar aqui um bimestre falando sobre coisas que desconheço e vocês
não notarão. Em dois anos, os mais espertos irão entender que aqui não é um
templo do conhecimento e sim um mercadinho imoral de diplomas. Quando
saírem desta ilha da fantasia, vocês irão trabalhar de sol a sol sem sequer saber
quem lhes oprime”.
– “Vai ter chamada?” – replica um dos alunos.

Consideramos que a conquista do diploma sem o desenvolvimento da


capacidade crítica constitui um sujeito com poucas possibilidades de resistir e
criar ante a perversidade do modo de produção6 do contemporâneo, e que na
contramão desta afirmação, uma boa formação pode incitar sujeitos criativos
capazes de constituir realidades mais libertadoras e menos aprisionantes. E

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20018:cursos-de-pos-
graduacao-tiveram-crescimento-de-23-nos-ultimos-tres-anos&catid=212
data de acesso 15 de julho de 2016
5
Sobre a tira de André Dahmer, devemos considerar também que à formação consta mais que apenas
“saber quem oprime”. E não podemos nos esquecer da fala foucaultiana, que abre este texto, e que
considera que a universidade não se encontra fora, em um pedestal platônico de pureza, mas dentro da
sociedade, constituída e instituída por toda a complexidade de problemas.
O trabalho de André Dahmer pode ser acessado em:
http://www.malvados.com.br/
6
É importante entender, como cita Luis Antônio Baptista, que: “o modo de produção capitalista [...] não
é restrito somente ao econômico, mas produz um olhar do homem sobre si e sobre o mundo”
(BAPTISTA, 1999, p. 109)
22

sob uma perspectiva onde devemos nos implicar na construção do mundo, com
toda a complexidade das lutas e jogos de força, menos vale um diploma que a
capacidade de pensar e resistir à captura pelo controle e disciplina do
Capitalismo Mundial Integrado7. Sobre a obtenção do diploma, e sua função
Michael Foucault coloca:

"Sabe de uma coisa, o diploma serve simplesmente para constituir uma


espécie de valor mercantil do saber. Isso permite também que os não
possuidores de diplomas acreditem não ter direito de saber ou não serem
capazes de saber. Todas as pessoas que adquirem um diploma sabem que ele
nada lhes serve, não tem conteúdo, é vazio. Em contrapartida, os que não tem
um diploma dão-lhe um sentido pleno. Acho que o diploma foi feito
precisamente para os que não o têm". (FOUCAULT, 2011, p,328)

Entendemos que a produção de teses e dissertações tem um papel na


instituição desta forma produtivista e positivista que tem tomado a
Universidade. E assim nos propomos a efetivação da aposta em um rumo
tomado por alguns trabalhos de doutoramento que tornaram-se fortes
intercessores na criação de instabilidade do status quo acadêmico e na
concepção de suas ciências.

 Em 1943 Georges Canguilhem defendeu sua tese denominada O


Normal e o Patológico (1982). Sua tese tornou-se um livro homônimo,
e, hoje, mais de 70 anos após sua publicação, segue sendo uma das
mais importantes obras dentro de sua área, para a discussão do
conceito de saúde, e não apenas dentro desta área, mas atravessando e
perturbando os limites entre outros saberes. Esta obra foi capaz de
trazer uma outra luz à constituição do que se entende por “patologia” e
“normalidade”.

7
O termo capitalismo mundial integrado, proposto por Félix Guattari como alternativa à “globalização”, se
aproxima mais de seu real sentindo econômico, social e subjetivo, fundamentalmente um movimento do
capitalismo neoliberal instalado globalmente. “O capitalismo é mundial e integrado porque potencialmente
colonizou o conjunto do planeta, porque atualmente vive em simbiose com países que historicamente
pareciam ter escapado dele (os paises do bloco soviético, a China) e porque tende a fazer com que nenhuma
atividade humana, nenhum setor de produção fique de fora do seu controle” (GUATTARI; ROLNIK, 2005,
p.411).
23

 No ano de 1961 Michael Foucault defende sua tese de doutoramento,


intitulada A História da Loucura na Idade Clássica (1978), tal tese
tornou-se um dos livros mais importantes no estudo da saúde mental, e
através de sua pesquisa da arqueologia de saberes, como analises das
práticas, dá visibilidade à forma como se deu a invenção da “loucura”. A
tese de Foucault foi um passo fundamental em seu desenvolvimento
crítico ao longo de sua produção (que se tornaria posteriormente a
genealogia dos poderes e do cuidado de sí).

 Em 1968 Gilles Deleuze recebeu o título de doutor por sua tese intitulada
Diferença e Repetição (2006), tese que se tornou um dos livros mais
importantes deste autor e um dos livros mais importantes de filosofia
escritos no século passado.

 No ano de 1985, o arquiteto Carlos Nelson dos Santos, apresenta a tese


para concurso de professor-titular8 da Escola de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) intitulada A
cidade como um jogo de cartas (1988). Este trabalho que também se
tornou um livro homônimo aborda as reflexões do autor sobre o
desenvolvimento e a formação urbanos, sua ordenação e seu controle.
Mesmo após a morte do autor, no final da década de 80, sua obra ainda
é muito difundida e ainda exerce forte influência.

 Mais recente e dentro do campo da arquitetura e do urbanismo,


encontramos a tese de Paola Berenstein Jacques, defendida no ano de
1998, intitulada “Un dispositif architectural vernaculaire: les favelas a Rio
de Janeiro”, da qual parte deu origem ao livro Estética da Ginga
(2007), no qual a autora disserta sobre as favelas – sua edificação
processual, sua organização urbanística autônoma e traça paralelos
com a obra do artista Hélio Oiticica durante seu período no Morro da
Mangueira (na cidade do Rio de Janeiro). Este livro é responsável por
despertar o interesse de uma grande quantidade de alunos de AU pela

8
Apesar de não ser uma tese de doutoramento, acreditamos que o livro-tese de Carlos Nelson dos
Santos se encaixa nos bons exemplos da produção acadêmica.
24

pesquisa, e hoje, pode ser considerado, como leitura obrigatória para os


estudos desta temática.

Estes, dentre outros pesquisadores produziram trabalhos de tese que por suas
qualidades excepcionais, talvez geniais, tornaram-se objetos portadores de
enunciados capazes de provocar novas perspectivas em suas áreas (saúde,
filosofia e urbanismo respectivamente), foram capazes de transformar e alçar o
pensamento, alheios a simples reprodução, com suas bases fincadas
profundamente na criação em uma potência elevada. Esta suposta genialidade
destes autores não deve ser posta como objetivo comum, como meta que deve
ser alcançada, mas como fortes exemplos de obras que possuem em si um alto
potencial de liberdade criadora do pensamento, inovações e experimentações
que devem ser exemplo a uma produção, mesmo que não genial, inspiradora e
que leve em si o sentido e a intensidade da edificação de realidades
revolucionarias.

Contudo, assumiremos a ousadia de questionar, baseado na vivência e na


experiência do cotidiano universitário, que atualmente muitos trabalhos de tese,
e mesmo dissertações, são publicados, e se tornam livros, mas, será que estes
levam em si essa qualidade de criação de outras formas de pensar,
independente de seus campos? Faz-se necessário pontuar que nesta
argumentação estamos atentos ao possível fascismo e ressentimento (que nos
atravessa de maneira geral), e que não encontramos como resposta qualquer
tipo de restrição no universo do ensino superior, o que colocamos aqui é que a
ação e a intenção de abertura do nível superior deve ser observada e
questionada em seu modus operandi para que relativo ao crescimento de seus
sujeitos e produtos, tenhamos também o crescimento deste potencial analítico
e criativo. E assim levamos, como munição retórica, tais questionamento
relevantes, sobretudo com as atuais políticas e regras às quais os programas
de pós-graduação estão subjugados. É imperativo questionar as regras da
produção acadêmica onde a qualidade dos trabalhos construídos torna-se
menos importante que a contabilização geral de dados. Dados que servem ao
marketing das instituições superiores e que forçosamente são tidas como prova
da eficiência destes para fins da política de Estado.
25

Afirmaremos, após tais exposições, que uma tese pode ser mais que uma tese.
Uma tese, para além da representação de um objeto, pode tornar-se um
dispositivo capaz de trazer à tona processos e neles provocar interferências.
Uma tese pode ainda fazer-se um intercessor no sentido que a leitura de um
trabalho que leva em si a criação, a invenção, é capaz de promover um (bom)
encontro e despertar novas intensidades e sensibilidades. Como coloca
Deleuze:

O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Podem ser


pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos
ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda.
Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios
intercessores (2006, p. 156).

Afirmaremos então que a tese em si tem pouco valor, e que o que nos
interessa nela é a capacidade de arrebatar, criar fissuras, instituir novas
formas, produzir novos movimentos no pensamento. Novamente, afirmaremos
que a tese, assim como todo produto de pesquisa, é uma pesquisa-
intervenção, é um processo de produção de subjetividade, o que destrói a
polaridade entre teoria e prática, tornando-as necessariamente ações
intrínsecas. Como afirmam Heckert e Passos “[...] todo conhecer é um fazer,
construindo no mesmo movimento a si mesmo e o mundo” (2009, p.377) e a
partir desta fala devemos “compreender a formação, a produção do saber
como processos de coemergência de si de mundo nos abre a possibilidade de
fazê-la funcionar como um potente dispositivo de intervenção, como usina
produção” (p.380).

A confecção de uma tese se encontra dentro do processo de formação e de


pesquisa-intervenção, e assim posto, estabelecida a aposta e a (má 9) vontade,

9
Como coloca Deleuze: “Mas, ao contrário, há alguém, mesmo que seja apenas um, com a modéstia
necessária, que não chega a saber o que todo mundo sabe e que nega modestamente o que se julga ser
reconhecido por todo mundo. Alguém que não se deixa representar e que também não quer
representar quem quer que seja. Não um particular dotado de boa vontade e de pensamento natural,
mas um singular cheio de má vontade, que não chega a pensar nem na natureza e nem no conceito”
(DELEUZE, 2006, p. 191).
26

e mesmo na construção de outro modelo de ciência possível, lançamo-nos


neste percurso do pensamento.
27

1.2 Pressuposições
1.2.1 Urbanismo e Subjetividade

Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de


diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo... Os edifícios
e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas produzem
uma subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de
subjetivação (GUATTARI, 1992, p.157, 158).

Assim o arquiteto e o urbanista se encontram imprensados, de um lado, entre


o nomadismo caótico da urbanização descontrolada ou unicamente regulada
por instâncias tecnocráticas e, por outro lado, entre seu próprio nomadismo
mental se manifestando através de sua projetualidade diagramática
(GUATTARI, 1992, p.178).

Para compreender o momento em que culminamos no problema apresentado


nesta tese é interessante retroceder as colocações alcançadas em nossa
dissertação10: a questão da subjetividade posta como perspectiva para a
análise deste grande objeto que é o urbanismo. Tais pontuações atingidas
durante o mestrado e que consideramos aqui como pressuposições para o
melhor entendimento deste trabalho, deste percurso de desenvolvimento de
nosso pensamento crítico sobre o tema.

O “pensamento da diferença”, ou “filosofia da diferença” tem contribuído com


discussões nas mais diversas áreas, direito, artes, psicologia, comunicação,
geografia, ciências sociais, etc. No que toca a Arquitetura e o Urbanismo, o
espaço arquitetônico e urbanístico encontramos em Michel Foucault e Felix
Guattari os autores deste grupo de pensadores que mais “dispensaram tempo”
na reflexão direta do “fazer cidades”. Para a escrita de nossa dissertação
tivemos como interlocutor principal Félix Guattari, e seu livro Caosmose
(1992), sobretudo nos textos “Espaço e Corporeidade” e “Restauração da
Cidade Subjetiva”. A escrita de Guattari aponta a questão da subjetivação na
direção da produção contemporânea da AU, da necessidade de apreender e

10
Dissertação de mestrado intitulada: “Entre corpos e cidades: pensamentos e interferências sobre a
construção de cidades e modos de vida”, realizada no mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) em 2011. No qual buscamos
analisar a cidade como corpo social e suas reverberações no campo da Arquitetura e Urbanismo (AU) no
contemporâneo. Tal ação/reflexão se deu sobre dois pontos: primeiro a partir da Análise Institucional
como movimento de institucionalização deste corpo-cidade e deste poder-saber
28

cartografar11 a produção de subjetividade inerente aos objetos e à atividade do


arquiteto urbanista.

A apreensão e cartografia pontuada por Guattari se dão por meio de afetos


estéticos complexos, da agregação de territórios existenciais que indicarão um
enunciador parcial por detrás de entidades tão diferentes e heterogêneas
quanto a formação do eu, as partes do corpo (real e imaginário), os traços
étnicos, as relações de vizinhança e o espaço arquitetônico (GUATTARI, 1992,
p.161). Ao passo propositivo, o autor disserta, também, acerca de um potencial
de resingularização da vida através de novas experiências de habitat, de uma
cidade subjetiva, onde outros modos de produção, outras coletividades, outras
mentalidades menos predatórias possam surgir. Suas colocações, apesar de
terem duas décadas, ainda são, indiscutivelmente, atuais, e servem ao
propósito de alertar-nos sobre os rumos que a edificação das cidades têm
tomado, como também, nos apresenta caminhos para um devir urbano, e
consequentemente um porvir humano, vivo em sua potência de criação.

Para compreender a fala de Guattari, e o que dela desenrolamos, devemos


partir, em primeiro lugar, de um entendimento especifico de “sujeito”.
Entendendo o sujeito como terminal dos processos que o atravessam, das
relações que travamos com o mundo, relações que nos afetam e nos
compõem. Sujeito como “pacotes de relações” (DELEUZE, 2008, p.217), como
processo aberto e contínuo, o que vai na contramão de qualquer concepção de
uma natureza do homem, posto que assim entendemos o sujeito como
resultado de uma construção continua e de seu momento histórico. A partir
desta afirmação e em paralelo com as pontuações guattarianas, vamos propor
que consideremos aqui que os objetos arquitetônicos e urbanísticos podem ser
pensados como corpos sociais que também afetam, de forma material e
imaterial, os corpos sociais humanos, e que com estes compõem relações

11
Por cartografia compreendemos a metodologia processual de apreensão e acompanhamento dos
movimentos da produção da subjetividade. Surgida em par com o conceito de rizoma, de Deleuze e
Guattari (1995). Para Passos, Kastrup e Escóssia (2009) a cartografia coloca-se como um mapa-móvel,
isenta da formulação de regras e protocolos, onde não cabe a representação, mas o próprio
engendramento daquilo que se pensa, e estratégias de pesquisa que fogem a metodologia clássica na
criação de territórios existenciais.
29

harmônicas ou desarmônicas12. Tal colocação encontra paralelo com a


afirmação de Paola Jacques ao dissertar sobre o empobrecimento da
experiência urbana, no texto “Corpografias urbanas” (JACQUES, 2008): “A
cidade não só deixa de ser cenário, mas, mais do que isso, ela ganha corpo a
partir do momento em que ela é praticada, se torna „outro‟ corpo”.

E, em segundo lugar, a partir dos processos de subjetivação, através do


conceito cunhado por Felix Guattari, de “subjetidades”, entendida como
“potencial de subjetivação parcial” que jaz nos objetos arquitetônicos e
urbanístico – como estes participam do processo de fabricação de
subjetividade, da experiência urbana.

A compreensão de subjetividade, como a usamos aqui, foge a sua definição


segundo o senso comum. Subjetividade é um conceito que deve ser melhor
entendido, e mais que um conceito é uma forma, uma perspectiva, para pensar
as relações que nos cercam e como somos afetados por elas e também as
afetamos. Afinal de que “subjetividade” tratam esses autores (da filosofia da
diferença), com os quais corroboramos? Usaremos para ajudar na
decodificação de tal conceito as palavras de Leila Machado (1999) na abertura
de seu texto “Subjetividades contemporâneas” sobre tal conceito, primeiro
apresentando do que não se trata: a subjetividade não corresponde à
identidade, estrutura psíquica ou personalidade, tão pouco ao antagonismo ou
polarizado da relação “interior e exterior”, como aspectos separados, de
determinação de um sobre outro. Segundo a autora:

12
O entendimento das composições harmônicas ou desarmônicas passa pelo campo da ética segundo o
pensamento da diferença, e por ética, nas palavras de Luiz Fuganti (sem ano): “Chamamos ética não a
um dever para com a Lei ou o Bem, nem tampouco a um poder de segregar ou distinguir o puro do
impuro, o joio do trigo, o Bem do Mal, mas a capacidade da vida e do pensamento que nos atravessa em
selecionar, nos encontros que produzimos, algo que nos faça ultrapassar as próprias condições da
experiência condicionada pelo social ou pelo poder, na direção de uma experiência liberadora, como
num aprendizado contínuo. Fazendo coexistir as diferenças, conectando-as ao acaso dos espaços e dos
tempos que as misturam e tornam seus encontros, ao mesmo tempo, contingentes e necessários num
plano comum de natureza adjacente ao campo social (pois a vida não existe fora dos encontros e dos
acontecimentos que lhe advém), afirmamos o que há de fatal nestes encontros, algo como o sentido
superior de tudo que é. Pois é querendo o acontecimento, que liberamos algo que se distingue dos
simples fatos cotidianos”.
30

Há uma crença de que a “natureza” da subjetividade estaria referida à


interioridade, à intimidade ou à idiossincrasia e, assim, tratamos uma forma-
subjetividade, que possui uma história e está inserida num contexto, como
sendo natural e não variável. A supervalorização da esfera privada é uma
forma-subjetividade bastante comum em nossos dias, contudo não é a única
possibilidade de forma para a subjetividade (MACHADO, 1999).

Seguindo, convêm distinguir, como aspectos que compõem a subjetividade,


dois outros sub-conceitos: modos de subjetivação (processos de subjetivação
ou ainda modos de existência) e formas-subjetividade. O primeiro deve ser
entendido como força que move o processo de transformação, a sobreposição
que cria novas formas e contornos ao que antes era dado, cristalizado. Ao
instituir-se, ao assumir um contorno, um território, tal modo de subjetivação dá
lugar à constituição de uma determinada forma-subjetividade.

Imaginemos uma rede cujos fios - constituídos por materiais de expressão


diversos, como: palavras, gestos, moedas, musicalidades, conhecimentos etc. -
se entrelaçam. Uma rede que não fosse lisa e sim estriada e cujos fios se
misturam em uma trama embaralhada. A rede e os fios que a constituem são
históricos. Pensemos que essa rede faça dobras, aproximando pontos
distanciados e distanciando pontos próximos. Mas as dobras que se formam
também se desfazem e outras então se formam em um movimento incessante.
Como um lenço que rola na areia e vai formando desenhos variados ao sabor
do vento. As dobras constituem então formas provisórias. Uma espécie de um
dentro que não é fechado e que continua sendo parte de um fora-rede.

A subjetividade pode ser pensada então como sendo formada por dobras. Mas
as dobras são a própria rede, ou melhor, nós somos a própria rede, assim
como o sistema econômico, político, educacional etc. também são. As dobras
são formas que se produzem e conferem um sentido específico para o que
chamamos desejo, trabalho, arte, religião, ciência etc. As dobras não são nem
interiores e nem exteriores e sim formações provisórias de um entre que
mistura finitos materiais de expressão em ilimitadas combinações (MACHADO,
1999).

É interessante perceber que podemos pensar os objetos arquitetônicos e


urbanísticos como materiais de expressão de grande complexidade – pois são
compostos por designs, texturas, cores, dimensões, relações de escala, e
ainda mais. Por consequência, a produção da AU, tem um papel na
composição da subjetividade.

Voltando a Guattari:
31

O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas
visíveis e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de
sensação, [...] máquinas portadoras de universos incorporais que não são,
todavia, Universais, mas que podem trabalhar tanto no sentido de um
esmagamento uniformizador quanto de uma re-singularização libertadora da
subjetividade individual e coletiva (1992, p158).

Pensar os objetos arquitetônicos e urbanísticos como parte do maquinário que


compõem os processos de constituição de subjetividades, incitando os corpos
à sedação ou à novas descobertas sensíveis, leva-nos a conceber a figura do
arquiteto urbanista como um dos personagens (e de maneira alguma o único!)
responsáveis pela construção da mecânica da subjetivação em seu caráter
espacial. Em um mundo onde os componentes subjetivos (arcadismos
religiosos e nacionalistas, mass media e outros tantos) proliferam “tanto para o
melhor quanto para o pior”, em velocidade intensa, a arquitetura segue a
passos lentos com sua programação ainda atada aos seculares dogmas da
forma e da função - que devem ser lidos como formalismo fetichista (ordenada
ao último, e cada vez mais perecível, modismo) e funcionalismo utilitário
(ordenado à captura máxima de um trabalho útil). Guattari questiona o
posicionamento dos arquitetos, em sua esmagadora maioria, como estando de
“braços cruzados face às questões que os assolam” (p.159). Contudo a
pretensa passividade dos arquitetos, seu não envolvimento na política da
subjetivação, é falsa, pois na construção desse anteparo para a vida, que é a
cidade, como obra urbana ou coletivo de unidades arquitetônicas, não há
passividade, não cabe passividade. Não perceber e não ativar a questão da
construção de um coeficiente de liberdade criadora, que jaz nesta produção,
nos levará fatalmente a um mundo onde viveremos em grandes “Não-cidades”,
ou em “Nenhuma-cidades”13. Arquiteturas e urbanismo prêt-à-porter, ou sua
ausência.

13
Expressões que fazem referência respectivamente: ao termo “não-lugar” de Marc Augé (2008), que
denotam espaços arquitetônicos como shoppings malls, aeroportos, hospitais, desprovidos de uma
identidade que os liguem a um lugar, desconectados de seu entorno, passiveis de estarem em qualquer
lugar; e ao termo “nenhum lugar” de Luis Antonio Baptista (1999), cunhado no texto “História do lixo
urbano”, para compreender os espaços não-legais, não-formais, não edificados por uma “arquitetura
oficial”, ou que cumprem uma função de exclusão e “morte social” para indivíduos “desajustados”, ou
ainda espaços abandonados pela especulação imobiliária.
32

Devemos questionar também as pontuações que afirmam que o devir da


cidade se apoia em dois pontos, como pólos para o qual tudo escapa e tudo
converge: o objeto construído (e sua coletividade) e o corpo humano (e sua
coletividade). Tal afirmação é bastante comum, e tende a descolar esses
objetos de uma superestrutura, do modo de produção que tem um forte peso
na instituição de seus contornos. Contudo, assumir essa superestrutura, ou
chamemos de Capitalismo Mundial Integrado, não é dizer simplesmente que a
discussão seria empreender “uma luta contra o sistema e esqueçamos da
cidade, e do corpo”. Assumir a transversalidade da questão é saber que o
movimento de institucionalizar outro poder-saber AU (assim como seus
profissionais e sua produção), e outro corpo sensível, passará invariavelmente
por uma mudança no próprio modo de produção. Seguimos:

Encontramo-nos aqui diante de um círculo de dupla direção: de um lado a


sociedade, a política, a economia não podem mudar sem uma mutação das
mentalidades; mas, de outro lado, as mentalidades só podem
verdadeiramente evoluir se a sociedade global seguir um movimento de
mutação. [...] Apenas uma experiência bem-sucedida de novo habitat
individual e coletivo traria consequências imensas para estimular uma vontade
geral de mudança. [...] Uma ordem objetiva mutante pode nascer do caos atual
das nossas cidades e também uma nova poesia, uma nova arte de viver
(GUATTARI, 1992, p.175).

Como pontua Guattari, não devemos desconsiderar novos e outros projetos


de/para as cidades, mas cabe colocar essa questão de forma transversal, nos
jogos de força foucaultianos. Saber que na gestão e na edificação da urbe
existem campos que estão intrinsecamente ligados.

Na explosão deste CMI, nas grandes e médias cidades, vivemos a cada dia em
paisagens mais iguais, independentemente dos deslocamentos geoculturais.
Esmagamento de singularidade que Guattari chama de “cidade-mundo do
capitalismo contemporâneo”14, ou “cidade genérica”15 para o arquiteto Rem

14
Guattari nos fala dessa cidade-mundo do capitalismo contemporâneo como explosão
descentralizadora do capitalismo que não pode mais ser focalizado em uma única cidade, mas em um
arquipélago de cidades ao longo de todo o globo, interligadas telematicamente pelos meios de
comunicação. “*...+ focos urbanos altamente desenvolvidos, espécies de campos fortificados das
formações dominantes de poder, ligadas por mil laços ao que poderia denominar intelligentsia
capitalista internacional” (GUATTARI, 1999, p.171).
33

Koolhaas. Segundo Paola Jacques, no texto “Zonas de tensão: em busca de


micro-resistências urbanas”:

Os atuais projetos urbanos contemporâneos são realizados no mundo inteiro


segundo a mesma estratégia: homogenizadora, espetacular e consensual.
Estes projetos buscam transformar os espaços públicos em cenários, espaços
desencarnados, fachadas sem corpo: pura imagem publicitária. As cidades
contemporâneas estão cada vez mais padronizadas e uniformizadas, são
espaços pacificados, aparentemente destituídos de seus conflitos inerentes,
dos desacordos, e dos desentendimentos [...] (JACQUES, 2010, p.108).

Sabemos que o esvaziamento político, radical, do espaço, simplesmente é


impossível. A pontuação de Jacques é justa, e nos fala de uma questão que
também é abordada por outros autores de calibre. Porém, não é demais frisar,
que sempre há política, mesmo que seja uma política da banalização, do não
cuidado com a vida, ou em outras palavras, uma ética que parte dos projetos
urbanos que tratam a potência do socius com desdém. Acreditamos que se
trata de uma configuração no jogo de forças que tende a uma relação
insensível, de sedação, de uma supervalorização do privado, de uma lógica
hegemônica do domiciliar em detrimento ao espaço coletivo, que por sua vez
apresenta dessin (projeto) e dessein (intenção), que engendram tais
padronizações, pacificações e despotencializações dos conflitos.

Outro personagem que foi um importante intercessor na construção de nossa


dissertação e no desenvolvimento crítico, e cuja escrita reforça a perspectiva
da subjetividade sobre o objeto urbano, foi o sociólogo espanhol Manuel
Delgado, que influenciado pelo trabalho de Lefbvre, repensa o conceito de
urbano ao caracterizar tal espaço como o lócus de vínculos frouxos e forçados,
intercâmbios, em grande parte programados, em que o grosso das relações
sociais se dá entre desconhecidos ou quase-conhecidos. Dessa forma o autor
descreve a imagem do urbano como algo que se dissolve, evapora, como uma

15
As cidades genéricas, sob o aspecto arquitetônico, são construções contemporâneas do capital que,
espalhadas ao redor do mundo, constituem relevos uniformes, descaracterizando e se sobrepondo aos
marcos e elementos do genius loci (espírito do lugar), com paisagens cada vez mais semelhantes.
Segundo Guizzo: “A cidade para ele não tem história, é toda igual, genérica, sem valor, e isso tudo irá
justificar a utilização de tábula rasa, ou seja, justificará a destruição de parte da cidade existente para
construir novos projetos. Sua perspectiva possibilita o surgimento de arquiteturas e projetos urbanos
isolados em relação à cidade existente, ao modo de viver de um lugar, de uma cultura, de uma estética,
e que não preveem nenhuma participação de quem ali vive” (2008, p.76-77).
34

névoa, mais do que a concretude do concreto. Urbano como modo de


existência16, que ultrapassa os limites da cidade e do campo, e se instala nas
relações de forma geral. Partindo de tal concepção que repensa o
entendimento do urbano, somos obrigados também a um reposicionamento do
entendimento do que vem a ser o espaço urbano e da figura do urbanista e sua
práxis. Seguindo com Delgado:

O urbano suscita um tipo singular de espaço social: o espaço urbano. Como


todo espaço social, o espaço urbano resulta de um determinado sistema de
relações sociais cuja característica singular é que o grupo humano que as
protagoniza não é tanto uma comunidade estruturalmente acabada – a
maneira qual a antropologia veio assumindo como seu objeto tradicional de
estudo –, senão, mas bem uma proliferação de emaranhados relacionais
compostas de usos, compromissos, impostações, retificações e adequações
mutuas que vão emergindo a cada momento, um agrupamento polimorfo e
inquieto de corpos humanos que só pode ser observado no instante em que se
coagula, posto que está destinado a dissolver-se de imediato. Esta modalidade
do espaço social é cenário e produto do coletivo fazendo-se a si mesmo, um
território desterritorializado em que não há objetos senão relações
diagramáticas entre objetos, loops, nexos submetidos a um estado de
excitação permanente e feitos de simultaneidade e confluência. Não é um
esquema de pontos, nem um marco vazio, nem um envoltório, nem a forma
que se vão impor aos fazeres. É uma mera atividade, uma ação interminável
cujos protagonistas são esses usuários que reinterpretam a forma urbana a
partir das formas em que acedem a elas e a dão sentido (2007, p.11, 12).

A empresa que assume o projetista é a de trabalhar a partir de um espaço


essencialmente representado, ou melhor, concebido, que se opõe às outras
formas de espacialidade que caracterizam o labor da sociedade urbana sobre si
mesma: espaço percebido, praticado, vivido, usado, sonhado... Sua pretensão:
mutar o escuro em algo mais claro. Sua obsessão: a legibilidade. Sua lógica: a
de uma ideologia que se quer encarnar, que aspira a converter-se em
operacionalmente eficiente e alcançar o milagre de uma inteligibilidade
absoluta. Conceitualização da cidade como território taxionomizável a partir de
categorias diáfanas e rígidas por vez –zonas, vias quadriculas – e através de
esquemas lineares e claros, como consequência do que não deixa de ser uma
espécie de terror ante ao incomensurável, o polisensorial. O súbito
desencantamento de potenciais sociais muitas vezes percebidas como escuras.
E, por consequência, se nega absolutamente que a uniformidade das

16
Através de modos de existência, ou modos de vida, Delgado (1999) propõe um entendimento onde o
urbano, ou a urbanidade, torna-se uma forma-subjetividade, sendo produzido incessantemente como
um trabalho do socius sobre si mesmo, não como estrutura e sim como constante estruturar-se. Modo
de vida que se dá não somente sobre a pele das cidades, mas onde estas relações produto e produtoras
de uma subjetividade urbana possam alcançar - incluindo o rural (ou o campo). Desta forma o autor
destaca a imagem do urbano da imagem da cidade, e coloca-se contra o antagonismo entre urbano e
rural, e afirma um novo antagonismo entre o urbano e o comunal, este como relações de vizinhança
cálidas e próximas. E mesmo a história do urbano seria diferente de uma história da cidade.
35

produções urbanísticas não sirvam, no fundo, para ocultar ou dissimular


brutais separações funcionais derivadas de todo tipo de assimetria, que afetam
certas classes, gêneros, idades e etnias. (DELGADO, 2007, p.14)

Voltamos assim a Félix Guattari (1992) que em seu livro Caosmose, mais
especificamente no texto “Restauração da cidade subjetiva”, escreve que “o
porvir da humanidade parece inseparável do devir urbano”, e indo mais
adiante:

O que conta, com as cidades de hoje, é menos os seus aspectos de infra-


estrutura, de comunicação e de serviço do que o fato de engendrarem, por
meio de equipamentos materiais e imateriais, a existência humana sob todos
os aspectos em que se queira considerá-las. (GUATTARI, 1992, p.172)

Afirmaremos então que o conceito de subjetivação, de produção de


subjetividade, nos serve como ferramenta tanto para a análise crítica das
práticas projetuais urbanas, quanto para a cuidadosa, inventiva e rigorosa
proposição imersa na complexidade de intensidades do socius. Que a
produção das subjetividades urbanas, dos modos de vida urbanos, que quanto
urbanistas ajudamos a criar, deve receber maior atenção. Ter ciência que o
urbanismo está imbuído de política e que devemos dar voz, através de nossas
práticas, a uma política17 comprometida com a vida além do zôe18.

17
Alain Badiou na fala intitulada “Existe algo assim como uma política deleuziana?” (tradução nossa),
contida no livro Deleuze político: nueve cartas inéditas de Gilles Deleuze (ZARKA et al, 2010) dirá
acerca do conceito de política que consideramos: “(...) a política é uma máxima de criação, mas não uma
criação em si. Quando a política não é uma máxima para a arte, a ciência ou a filosofia, não pode ser
outra coisa que uma análise do capitalismo” (p.23). Falamos, então, da máxima de criação de Nietzsche,
ou da crítica radical histórica. Política do pensamento, pensamento que se desdobra em política da arte,
política da ciência e política da filosofia. Política como criação vital de algo novo. Dirá ainda Badiou:
“Mas o que é uma máxima política da ação que envolve as criações humanas tomadas na sua
totalidade? O quê é uma máxima política, se a máxima se encontra na arte, na sexualidade, no devir
humano? Penso que é de fato, uma máxima ética antes de uma máxima política. Deleuze escreve: “O
que mais falta é a crença no mundo. Quase perdemos o mundo. Nos foi retirado. Se você crê no mundo,
precipita os acontecimentos de uma forma que escapa ao controle”. Ao meu juízo, se torna claro que
crer no mundo, precipitar os acontecimentos, fugir ao controle são as máximas éticas de Deleuze”
(p.24).
E, indo mais além, três máximas: “a máxima negativa (“fugir ao controle‟), a máxima subjetiva (“crer no
mundo‟) e a máxima criativa (“precipitar os acontecimentos‟)” (p.24). O autor nos fala de uma política e
uma ética “deleuzianas”, uma postura ante o mundo, defendida pelo filósofo da diferença. A política
trata, portanto, de uma postura ante nossa forma de nos relacionarmos com o que nos cerca, trata de
uma forma de estar no mundo e de construí-lo.
18
Giorgio Agamben na introdução de O poder soberano e a vida nua, nos fala que os gregos
usavam dois termos distintos para expressar o que entendemos por vida. Esses dois termos eram zôê,
que significava o “simples facto de viver, comum a todos os seres vivos”, e bios “que indicava a forma
ou maneira de viver própria de cada indivíduo ou grupo” (AGAMBEM, 1998, p.11)
36

Faz-se importante considerar, também, no plano da implicação política que


envolve o urbanismo como poder-saber19 e a subjetivação que a cidade
inaugurada por Haussmann e Cerdá não foi o primeiro intento de uma
planificação das cidades. Segundo Kuster e Pechman (2007) durante o
barroco, junto à concepção pictórica e a difusão da perspectiva, planos foram
traçados como ideais de uma lógica cortesã, mas, efetivamente, pouco se
alterou, ao menos em relação à cidade da revolução industrial. Não é uma
grande ousadia pontuar que o sucesso dos grandes planos urbanos acontece,
não por uma simples vontade dos desenhistas urbanos, mas por uma
necessidade criada por uma superestrutura, ou seja, como consequência da
revolução industrial. A grande migração de massas de trabalhadores
campesinos para a cidade faz surgir a necessidade que inaugura, junto ao
urbanismo moderno, disciplinas como a estatística, a sociologia, e o próprio
direito sobre outra lógica, como indica Foucault (2003). Falamos, então, de
uma interferência nos jogos de poder, de uma estratégia de controle, que, em
realidade, construirá uma nova forma-cidade, um novo modo de existência que
servem a um desígnio.

Seguindo a mesma lógica podemos concluir que o urbanismo da pós-


modernidade, em sua desestabilização da ordem unitária, no desmanche de
seu universalismo, sem um modelo base, se coloca como uma resposta no
campo das visibilidades a uma mutação, um outro arranjo das forças, dos jogos
de poder. Estamos falando de outro estado de forças que se dá a
transformação em direção ao capitalismo descentralizado. Em suas redes de
captura altamente dinâmicas, espraiado ao invés de um artifício centralizado e
totalizador.

Os objetos arquitetônicos que constituem a cidade trazem uma função


subjetiva que não deve ser deixada à mercê das apropriações do mercado,
ordenadas por “leis e circulares tecnocráticas”, fadados a tornarem-se objetos
de consumo. A elaboração das singularidades arquitetônicas, urbanísticas,

19
Segundo Michel Foucault (2006) existe uma co-produção entre saber e poder. Não existe relação de
poder que não constitua um campo de saber, da mesma forma que não existe um saber que não
presuma e constitua uma relação de forças.
37

paisagísticas, dessas “objeticidades” deve chegar à enunciação de novas


subjetividades coletivas. Guattari levanta os “coeficientes de liberdade criadora”
que devem habitar os projetos do novo urbano, onde se possa, por meio dos
movimentos de virtualização do atual e atualização do virtual reorganizar o
socius, uma dinâmica exigida pelo próprio socius.

1.2.2 Urbanismo como arte: provocações para outros desejos de cidades

I. Cidades que nascem póstumas

El siglo XX ha sido, entonces, el siglo de la urbanización. Antes de 1800, el


tamaño y las poblaciones de las concentraciones urbanas parecen haber
estado estrictamente limitadas en todas las formaciones sociales. El siglo XIX
vio la ruptura de esas barreras en unos pocos países capitalistas avanzados,
pero la segunda mitad del siglo XX ha visto cómo esa ruptura localizada se
convertía en flujo universal de urbanización masiva. El futuro de la mayoría de
la humanidad está ahora, por la primera vez en la historia, en las zonas en
proceso de urbanización. Las cualidades de la vida urbana en el siglo XXI van a
decidir las cualidades de la propia civilización. (HARVEY, 2004, p.178)
.
[...] o porvir da humanidade parece inseparável do devir urbano. (GUATTARI,
1992, p.172)

O renomado e muito influente arquiteto, ou “starchitect”, Frank Gehry, em


entrevista ao jornal espanhol El País20, disse que o urbanismo (nos EUA) está
morto. Afirmação pessimista que colocada junto às citações, de David Harvey e
Felix Guattari – pensadores provenientes de diferentes áreas, com diferentes
referenciais teóricos, mas que se encontram ao afirmar que o futuro das
cidades está intimamente ligado ao futuro da sociedade – torna-se algo ainda
maior. Afinal, e partindo deste encontro de pensamentos, se o urbanismo está
morto, ou moribundo, não é ousadia dizer que rumamos a um destino obscuro.
As razões de Gehry para tal afirmação de extrema-unção do urbanismo seriam
três, em primeiro lugar os projetos urbanos estariam “nas mãos das grandes
corporações de construtores”; o fato dos arquitetos “servirem aos clientes” e

20
MORA, M. “O urbanismo está morto”. Entrevista com o arquiteto Frank Gehry publicada
originalmente no jornal El País, traduzido por Clara Allain para a Folha de São Paulo em 31 de janeiro de
2010.
38

das grandes firmas possuírem seus próprios corpos técnicos de arquitetos e


que, por este motivo, não “chamam” ou “convidam” outros arquitetos para a
construção dos planos urbanos; e, por fim, Gehry diz que é necessário “mexer
demais com política”. Consideramos um pouco confusas as razões apontadas
por esse integrante do star system, na forma como foram colocas pelo próprio,
mas há pontos nesta fala que merecem ser considerados de maneira um pouco
mais aprofundada.

É importante pontuar que as intervenções urbanísticas que seduzem os


gestores públicos, por seu potencial poder de marketing eleitoreiro, colocam-
se, na esmagadora maioria das vezes, nos projeto de maior escala – o poder
de autoria d“A” grande obra –, o que resulta em contrapartida na negligencia
com operações na pequena escala. Tal foco nos “megaempreendimentos” leva
a contratação de grandes empreiteiras. Contudo, não é arriscado dizer que
antes das grandes construtoras, estão as grandes corporações, não se trata
apenas das grandes empreiteiras. Estas, indiscutivelmente, exercem uma força
arrebatadora na gestão das cidades, nos projetos urbanísticos, nas
transformações da urbe, e em tempos de grandes eventos no Brasil (Copa do
mundo no ano de 2014 e Olimpíadas em 2016 no Rio de Janeiro) tal questão
tornou-se bem visível – por mais que se tente esconder os desastres
(desapropriações indevidas, superfaturamentos de obras, licitações irregulares,
destinações contestáveis do dinheiro público) atrás de propagandas que
mostram o otimismo e a alegria do “povo brasileiro” em sediar tais
acontecimentos durante o horário nobre. Fato é que as grandes corporações
tem um papel cada vez mais decisivo no direcionamento do contorno dado às
cidades.

Sobre o segundo ponto posto por Gehry, os contratantes dos profissionais da


Arquitetura e Urbanismo (AU), são, em termos gerais, a classe média e alta –
que em sua esmagadora maioria são arrebatadas pela lógica domiciliar
extremista em detrimento aos espaços públicos, vendo na rua o lugar do caos
e da marginalidade (BAPTISTA, 1999) – e o próprio Estado, que se encontra
perdido por uma visão do urbanismo como gestão estratégica, perspectiva que
transforma a cidade num grande produto a ser rifado no mercado nômade dos
39

investimentos internacionais (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000). Tal


dualidade enuncia a passividade imposta(?) num pensamento comum do
arquiteto urbanista, como personagem que tem como única forma de atuação
na sociedade ser contratado por um cliente. Guattari questiona o
posicionamento de grande parte dos arquitetos, sem deixar de citar alguns
casos contrários, como estando de “braços cruzados face às questões que os
assolam” (1992, p.159), como já posto. Fato é que não estão os arquitetos
passivos, pois na construção desse anteparo para a vida, que é a cidade, como
obra urbana ou coletivo de unidades arquitetônicas, não há passividade, não
cabe passividade. Tal condição de imobilidade coloca-se como uma triste
postura política muito comum e não só presente no profissional da AU, postura
que se relaciona com a última questão apontada por Gehry.

O terceiro ponto, o descontentamento em “mexer com política”, denota algo


que está no campo da AU, entendida quanto instituição (produto, mas também
produtora de si mesma), o descuido e/ou despreparo para com a política.
Afirmação de vontade apolítica da AU que começa na formação dos projetistas,
voltada para o mercado, para a práxis projetual, com sua programação ainda
atada aos seculares dogmas da forma e da função, que devem ser lidos como
formalismo fetichista (ordenada ao último, e cada vez mais perecível, modismo)
e funcionalismo utilitário (ordenado à captura máxima de um trabalho útil), –
como coisa dada e imutável. Direcionamento demasiadamente voltado para
que tal ofício se encontre como mera ferramenta, tantas vezes dispensável, da
construção de uma estética fetichista da mercadoria produzida na construção
civil, a cidade. O próprio modelo departamental nas universidades estimula
uma apreensão do saber e sua prática, como par às engenharias e impõe
distanciamento das ciências humanas, destacando o oficio de projetar cidades
e o que seria projetar cidades para pessoas, parafraseando o título do livro de
Jan Gehl (2013). Tais questões levariam a pensar a AU como instituição isenta
à política, contudo existe política, sempre existe, cabe saber que tipo de
política, onde e em nome de que ela age e como instaurar outros movimentos
que possam colaborar para outra postura.
40

Voltando a afirmação feita por Frank Gehry, mas invertendo-a, transformando-a


em questão: Estaria o urbanismo morto? Pode o urbanismo morrer? Para
ponderar sobre tais questionamentos voltaremos a conceituação de
“urbanismo” do sociólogo espanhol Manuel Delgado, que como posto antes,
aponta para uma ideia de urbano que caracteriza este espaço como o lócus de
vínculos frouxos e forçados, intercâmbios, em grande parte programados, em
que o grosso das relações sociais se dá entre desconhecidos ou quase
conhecidos. O urbano como modo de existência. Interessante frisar que tal
caracterização do urbano encontra paralelo na fala, feita um século e meio
antes, de Friedrich Engels:

[...] estas pessoas cruzam-se apressadas como se nada tivessem em


comum, nada a realizar juntas, e a única convenção que existe entre
elas, é o acordo tácito pelo qual cada um ocupa sua direita no passeio,
a fim de que as duas correntes da multidão que se cruzam não se
constituam mutualmente em obstáculo; e, contudo, não vem ao espírito
de ninguém a idéia de conceder a outro um olhar sequer. Esta
indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo no seio
de seus interesses particulares, são tanto mais repugnantes e
chocantes quanto maior é o número desses indivíduos confinados neste
reduzido espaço. (ENGELS, 1975 [1845], p.35)

Ao concordar com Delgado sobre o urbano como um modo de existência,


somos levados a entender que o urbanismo, como construção de um modo de
vida urbano, conta com o trabalho dos projetistas apenas como um dos
elementos de sua formação na complexidade processual do socius. Como
coloca Delgado:

[...] a idiossincrasia funcional e sociológica do espaço urbano não está –


não pode estar – preestabelecida por um plano, não pode responder
mecanicamente às direcionalidades e aos pontos de atração
prefigurados pelos projetistas, posto que resulta de um número imenso
e imensamente variado de movimentos e ocupações transitórias e
imprevisíveis muitas delas, que dão lugar a mapas moveis e sem
contorno. Sociabilidade difusa, segmentada de formas mínimas e
inconclusas de interconhecimento, âmbito em que se expressam as
formas ao tempo mais complexas, mais abertas e mais fugazes de
convivência: o urbano, entendido como tudo o que na cidade não pode
deter-se nem cristalizar. O viscoso, infiltrando-se por entre os
interstícios do sólido e negando-o. Um universo derretido. (DELGADO,
2007, p. 13)
41

O urbanismo não pode estar morto, pois, concordando com Delgado, o oficio
de criação do urbano coloca-se para além somente dos projetos, e também nas
mãos daqueles que habitam a urbe. Cabe perceber que pontuando a questão
desta maneira, e divergindo da fala de Frank Gehry, apenas somos levados a
uma problematização ainda mais complexa: A pluralidade e a diferença que
deveriam surgir dessa pretensa posse da vida na urbe encontram-se coagidas
no consenso de uma insensibilidade, da falta de anseio na participação dessa
construção de urbanidade, como questões aceitas e naturalizadas por um
processo de subjetivação homogeneizadora, como coloca Suely Rolnik:
subjetividades prêt-à-porter (2002). Assim como a própria produção da AU que
se encontra muito mais como reprodução de modelos preestabelecidos e
espaços “espetacularizados” que na criação de novos espaços, outros modos
de existência na experimentação de outras cidades possíveis. Ameaça de
paralisia do urbanismo, como modo de vida no pluralismo das singularidades,
em prol de um modelo hegemônico que cria “trajetórias sócio-profissionais
predeterminadas” (GUATTARI, 1992, p.169), a serialização do viver. Mas a
fórmula foucaultiana que demarca que onde há poder, há resistência 21 segue
vigorando, e tanto nas instancias da AU – na produção dos espaços –, como
na instancia dos corpos – da ocupação dos espaços –, outras possibilidades
aos modelos e modulações surgem e se espraiam silenciosamente.

II. Urbanismo como arte

¿Qué es el arte? ¿La capacidad de producir el mundo de la voluntad sin


voluntad? No. Producir de nuevo el mundo de la voluntad sin que, en cambio,
quiera el producto. Se trata entonces de una producción de lo que crece de
voluntad por la voluntad e instintivamente. Con conciencia eso se llama
artesanía. Sin embargo, salta a la vista el parentesco con la generación, solo
que aquí renace la voluntad por completo.
*…+
Única posibilidad de la vida: en el arte. De lo contrario, alejamiento de la vida.
La aniquilación de la ilusión es el instinto de las ciencias: se seguiría el
quietismo si no hubiera arte. (NIETZSCHE, 2007, p.57)

21
Entendemos por práticas de resistência os processos de criação que escapam ao
prescrito e delineiam outras formas de ação imprevisíveis e não programadas. Ações
que se agenciam com outras práticas e vão contra movimentos de submissão e
reprodução de processos instituídos. (HECKERT, 2004) Ana.
42

O filosofo Friedrich Nietzsche ao falar da vida como processo estético, da arte


como o que possibilita e potencializa a vida, da invenção de novas
possibilidades de vida, e posteriormente a refração de tal pensamento,
sobretudo em Michel Foucault e Gilles Deleuze, demarcam a conceituação das
“estéticas da existência” e da “vida artista”. As estéticas da existência devem
ser entendidas como vidas, sempre no plural (o que impede as
categorizações), que fogem aos assujeitamentos, às padronizações e
serializações (termo caro a Sartre) burguesas. Tais modulações que criam o
homem encarcerado22 da sociedade disciplinar, reprimido e disciplinado pelas
instituições impostas (família, escola, quartel, hospital, presídio, etc.), onde se
naturalizam o moralismo, a segurança patrimonial, o individualismo, que
conjugam o inverso das estéticas da existência, as técnicas de si da cultura
burguesa. Como coloca Deleuze:

[...] Trata-se de “duplicar” a relação de forças, de uma relação consigo que nos
permita resistir, furtar-nos, fazer a vida ou a morte voltarem-se contra o
poder. Foi o que os gregos inventaram, segundo Foucault. Não se trata mais de
formas determinadas, como no saber, nem de regras coercitivas, como no
poder: trata-se de regras facultativas que produzem a existência como obra de
arte, regras ao mesmo tempo éticas e estéticas que constituem modos de
existência ou estilos de vida (mesmo o suicídio faz parte delas). (1992, p.123)

A vida artista constitui a construção efetivada pelo sujeito com foco em uma
vida generosa, ágil, intensa, que se coloca na contramão às formas de vida
assujeitadas da ordem hegemônica burguesa, conectada a uma comunidade
na qual todos se voltam à estética da existência – onde os modos de produção
individual e coletivo estão interessados em fazer da vida uma obra de arte.

A vida como obra de arte nos remete a estética, entendida como ato de
criação, mas a constituição de tais modos de existência, ou estilos de vida, não
cerceados também passam pela ética entendida como oposição a moral, como
“conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em
função dos modos de existência que isso implica”.

22
Termo utilizado por Deleuze para caracterizar o homem produzido pela sociedade disciplinar no texto
“Póst-Scriptum sobre a Sociedade de Controle”(1992).
43

Se como diz Nietzsche a única possibilidade da vida (em sua potência a de


criação) se dá na arte. Propomos aqui, e em paralelo aos conceitos colocados
anteriormente, e em contraposição ao urbanismo póstumo alardeado por Frank
Gehry, uma breve reflexão sobre o urbanismo como arte.

Uma primeira pista de um urbanismo que se ocupe com as estéticas da


existência e com a vida artista se dá no entendimento que tal construção dos
modos de vida urbanos necessariamente foge aos modelos e sistemas de
padronização, posto que é ato de singularização, efetivado como processo
histórico. A idéia da pluralidade, da diferença, e que um espaço que se
disponha à produção da diferença, de um “destino menos serial”, re-
singularizado, deve ultrapassar exatamente esses cenários estéreis de vidas
prêt-à-porter, e ir além, projetando, inclusive, outras relações nos modos de
produção e nas verdadeiras errâncias do desejo.

Para Guattari, ponto crucial para a existência dessa nova forma-cidade é


exatamente a necessidade de que os novos urbanistas consigam ir além de
projetar espacialidades. A cidade-mundo do capitalismo contemporâneo traz
em si, como principal questão, o nó entre o econômico, o social e o cultural. E,
de que forma, o que se produz a partir desse nó conforma no próprio destino
da humanidade, em suas futuras formas, suas segregações, suas elites, todos
os seus domínios. Existe aí um trabalho coletivo de ecologia social.
Estabelecer uma consciência de que outros estados de coisas, de errâncias, de
experimentações de novos habitats em que se possa “sentir e pensar
diferentemente de hoje em dia”, constituir a cidade como agente metabolizador
de um movimento de transformação. “Uma ordem mutante” pode nascer do
caos atual de nossas cidades, e, também, uma nova poesia, uma nova arte de
viver” (GUATTARI, 1992, p.175).

Variados focos de ações no campo da AU poderiam ser citados como vontades


de um urbanismo como arte. No meio acadêmico (via referenciais teóricos na
graduação e pós-graduação), no mercado dos projetos arquitetônicos (onde
profissionais defendem vias outras), na área de planejamento (na via de
políticas públicas que visam questões sociais importantes, antes ignoradas, e,
44

também, projetos em escalas mais “humanas”). Neste ponto tomaremos o


microplanejamento como exemplo de práticas projetuais arquitetônicas
passíveis de potencialização de insurgências. Pois, se a força dos movimentos
por uma cidade subjetiva, dentro da própria AU, ainda não é potente o
suficiente para alterar o modo de produção vigente, nem por isso não há
resistência. Não importa o quão assépticos se coloquem os planos urbanos, a
vida por estes, a contra gosto, teima, insiste, penetra, infiltra e afirma implosões
ao “estado dado”. Falamos de uma dobra da forma cidade ideal, que se efetua
com ações do(s) corpo(s). Ação que pode surgir de uma manifestação (singular
ou coletiva), da arte marginal que estampa paredes, criando novos arranjos e
novas formas, de pequenas invenções e “manhas”.

O brasileiro Marcos Rosa, arquiteto e professor da ETH Zurich, autor e


organizador do livro Microplanejamento: práticas urbanas criativas (2011),
leva ao estudo do objeto urbano uma clara e diferenciada proposta, distante
aos modos hegemônicos da edificação das cidades, junto a sua visão sobre a
temática que denota aspectos importantes, como um forte posicionamento
político do planejamento, a autoria coletiva, a abertura a transdiciplinaridade –
sobretudo com auxílio de bibliografia de pensadores da AU e de outras áreas,
como Saskia Sassen, Paola Jacques e outros –, e a percepção das
insurgências e subsequente potencialização das mesmas como ação
propositiva que se dá a posteriori. Em seu livro Rosa articula ações
insurgentes, criadas e geridas fora das instituições oficiais de Estado.

Tomaremos aqui o exemplo da academia de boxe Garrido, citada no livro de


Marcos Rosa, situada embaixo do viaduto do Café (viaduto Alcântara
Machado) em São Paulo, a academia criada pelo ex-boxeador Nilson Garrido.
Neste espaço distante do interesse especulativo e publicitário e das políticas
públicas, molas de caminhão e geladeiras são recriados como equipamentos
esportivos, como aparelho de musculação e saco de areia, atraindo jovens,
mendigos, catadores de material reciclado interessados na prática do boxe. O
jovem público fez com que fosse montada, em anexo à academia, uma
biblioteca e uma brinquedoteca. O espaço residual, desinteressante aos olhos
dos gestores da cidade, no qual se insere a academia Garrido transformou o
45

espaço social abandonado, conformou-se em local de encontro, seu simples


objetos esportivos – inventados, doados e encontrados –, complexificaram e
rearticularam uma estrutura abandonada às imediações da cidade, um lugar de
sociabilidade e de acolhimento. Como coloca Ana Rodrigues sobre a
academia/interferência:

Mais que uma mera análise da iniciativa de Nilson Garrido como uma proposta
a ser instituída e implementada, como uma política pública, ou mesmo a ser
analisada como uma ação voluntária-cidadã salvadora de crianças e jovens “do
mundo das drogas”. A academia-biblio-brinquedoteca nos interroga a respeito
dos sentidos de uma cidade, a partir dos seguintes questionamentos: O que
este espaço enfrenta? O que ele afirma? As fricções, a porosidade trazidas
tanto pela imagem do viaduto do Café [...] são, por nós, tomadas, conforme
sugere Benjamin, como Imagens do Pensamento, cujo sentido não é traduzido
por ilustração, ou representação, mas sim por força possível de produzir
estranhamento – interpelação. Interpelação, esta que se faz a uma certa
ordem que segmenta os corpos, tempos e espaços; e que enfrenta
cotidianamente a construção de um espaço uníssono, aplainado e
geometrizado; ou ainda, que enfrenta a assepsia das cidades “cartões-postais”
onde nos parece que nada está acontecendo, – sob o entendimento de que
acontecimento é irrupção, jogo tenso das forças que apontam para a
incompletude como sinal de inesgotabilidade das tramas da existência, das
táticas do viver que rompem com a inexorabilidade do presente e, a todo
instante, recriam sentidos que vivificam a cidade, e cidades que vivificam os
sentidos da existência. (RODRIGUES; BAPTISTA ; FERREIRA, 2007)

Parques, hortas comunitárias, associações culturais comunitárias, bicicletários


são outros dos exemplos trazidos por Rosa. Projetos-ações insurgentes, de
baixo custo e incríveis rentabilidades sociológicas. Projetos passíveis de serem
pensados, e de instigarem outros projetos possíveis. A visibilidade das ações
insurgentes marca algo muito interessante à prática da AU, a possibilidade de
propor não objetos, mobiliários urbanos, tantas vezes infundados, mas a
potencialização de uma energia já presente e necessária, em locais que em
sua maioria são desconhecidos e estranhos aos projetistas. Vale marcar que o
microplanejamento não trabalha apenas com insurgências, e tão pouco, em
espaços residuais periféricos, que, como mostra Jan Gehl, para recuperar a
sociabilidade de determinados lugares o exercício propositivo deve partir das
pranchetas. Mas mesmo tal proposição leva em conta que o ato de projetar
para pessoas, contrário a simplesmente projetar objetos arquitetônicos e
urbanísticos, deve se atentar a muitas variáveis, como se pode perceber na
46

obra literária e nos projetos de qualificação da experiência dos espaços


urbanos, da vida pedestrial de Gehl espalhados pelo mundo.

Como dito antes, o produto direto da AU é a cidade, e indiretamente o urbano.


Urbano que como afirma Delgado, por sua vez, é produto de uma
complexidade de corpos sociais (não só humanos, mas também arquitetônicos
e urbanísticos), das imensuráveis relações travadas entre esses. A aposta
propositiva que deve partir do urbanismo como arte não pode ser cega a tais
movimentos. A sensibilidade a ser despertada nos projetistas não deve vacilar
ante a virtualidade, e deter-se na pergunta: como projetar para o que virá a
ser? Propomos a idéia de uma errância amparada pelo acompanhamento dos
processos de subjetivação, percebendo: o que se institui, o instituído, os jogos
de forças atrás das formas. A criatividade que deve constituir os objetos
arquitetônicos e urbanísticos, munidos de poros, de potência para o diálogo
com o corpo, incitando falas singulares, afirmação da vida em sua
multiplicidade.

1.2.3 Francis Bacon pinta uma cidade: O que pode um urbanismo menor?

Em Bacon, aqueles que esperam não são espectadores.


(DELEUZE, 2007, P.20)

Ao adentrar no labirinto conceitual arquitetado por Gilles Deleuze, ao ganhar


alguma intimidade com seus métodos e dispositivos do pensamento da
diferença, nos deparamos incondicionalmente com a figura fabulada por
Deleuze do artista anglo-irlandês Francis Bacon (1909-1992). O intenso afeto
do filosofo francês pela obra de Bacon se desdobra por paralelos entre pintura
e pensamento. E tal afeto entre Deleuze e Bacon mostra não simplesmente
uma predileção de um filosofo por um artista, mas uma vertente de concepção
do mundo espelhada ante filosofia e arte. Em Francis Bacon: lógica da
sensação (2007), Deleuze nos coloca que existem três elementos centrais na
obra de Bacon, os dois primeiros elementos são os lugares e as Figuras. O
enquadramento criado pelo artista em seus quadros, dá aos lugares uma
47

condição dinâmica, onde ao contrário de uma cela, onde supostamente a figura


é aprisionada, enquadrada, os lugares criam itinerários [...] “de exploração da
Figura no lugar, ou em si mesma. É um campo operatório” (p.12). Os planos
que edificam o lugar em tais obras são compostos por sombras e superfícies
planas, tão presentes quanto a Figura. E deste encontro entre Lugar e Figura
dá-se o terceiro elemento, o Fato, o Acontecimento.

O Acontecimento como terceiro elemento da obra de Bacon, contudo, e


segundo Deleuze, acontece com um intuito de eliminação tanto do espectador,
como do espetáculo. Em substituição a idéia do espectador, surge a função do
testemunho. “São testemunhas não no sentido de espectadores, mas de
elemento-referência ou de constante em relação à qual se estima uma
variação” (p.21). A relação dinâmica criada por esses três elementos, distingue-
se da estática, da captura de um fragmento de um momento, denota a questão
do movimento em uma potência maior. Há movimento entre a estrutura
material (lugar), e há movimento da Figura (corpo). Ambos se movimentam,
propondo ações sobre si mesmos, criando um escape, criando acontecimento.
É interessante frisar que ao falar de movimento, Deleuze, coloca neste o peso
do movimento como dinâmica de criação, e não a repetição das trajetórias
serializadas23.

[...] não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças.


[...] A força tem uma relação estreita com a sensação: é preciso que uma força
se exerça sobre um corpo, ou seja, sobre um ponto da onda, para que haja
sensação. Mas se a força é a condição da sensação, não é ela contudo que é
sentida, pois a sensação, não é ela, contudo, que é sentida, pois a sensação,
“dá” outra coisa bem diferente a partir das forças que a condicionam. (p.62)

A obra de Bacon, pelos olhos de Deleuze, ganha ainda a perspectiva


micropolítica, ou molecular, o aspecto invisível das forças (se trata das forças e
não das formas) em conjunção de constante impermanência, pelo arranjo dos
três elementos que compõe sua obra. Elemento também comumente
encontrado na obra de artistas conceituais do século passado como Marcel

23
Entende-se por serialidade o caráter repetitivo e vazio de um estilo de existência concernente a um
funcionamento de grupo “prático-inerte” (GUATTARI, 1992, p.187)
48

Duchamp24 – ao reclamar a independência da obra sobre o autor –, Joseph


Beuys25 – com sua escultura social – e John Cage26 – com melodias onde o
silêncio evoca a irreprodutível sonoridade temporal de um território –, enfim,
artistas e movimentos, que evocam a potência do acontecimento para além da
obra como estado dado e finalizado. Falamos então da ressignificação
constante da própria obra, como perpetuo de novos encontros e novas
produções de acontecimentos. Uma evocação à heterogenia dos encontros.

A relação ativa e produtiva entre tais elementos, a processualidade deste


encontro de elementos é de suma importância para o entendimento do conceito
de sujeito para o Pensamento da Diferença. Como posto em uma de suas
aulas sobre Espinoza, Deleuze (2008, p.217) dirá que o sujeito é um pacote de
relações, um terminal que recebe e emite, é produzido e produz intervenções
de e para seu meio27. O conceito de subjetivação gerido pela Diferença irá
então se dedicar a captura dos processos de subjetivação, a cartografar um
arranjo de forças, a composição dos modos de vida e de existência, no sujeito
e seu coletivo. Afirmaremos que o Acontecimento como configuração de um
arranjo de forças afeta a constituição subjetiva tanto da produção artística
quanto do sujeito em sua singularidade, e mesmo em sua coletividade. O
Acontecimento, então, leva em si a potência de constituir-se como um território
existencial a ser somado no processo de construção de subjetividade, de
subjetivação.

Por tais, breves e superficiais, aproximações da obra de Bacon na perspectiva


de Gilles Deleuze, encontramos paralelos não meramente acidentais na
afeição do filosofo pela arte. A Obra de Deleuze e daqueles que comumente
são referidos parte de um Pensamento (ou Filosofia) da Diferença em alguns
momentos tocam a arte, e de maneira mais contundente o teatro, o cinema e a

24
Marcel Duchamp (1887-1968), artista francês de grande influência e renome que atuou em diversos
grupos e atravessou movimentos artísticos atuando como pintor e escultor.
25
Joseph Beuys (1921-1986), artista alemão que atuou em vários grupos. Trabalhou com escultura,
performances, instalações e se firmou como um dos grandes nomes da arte no século passado.
26
John Cage (1912-1992), músico americano, compositor, teórico musical, escritor. Seu trabalho teve
grande influência no século XX.
27
No texto 1.12, Pressuposições da Fundamentação teórica deste trabalho: Urbanismo e Subjetividade,
desta tese falamos sobre o conceito de Subjetividade e a inserção desta perspectiva sobre os objetos
arquitetônicos e urbanísticos
49

literatura. E embora tenham partido de pontos singulares em cada um destes


movimentos artísticos distintos, levaram na propagação de suas destilações
conceituais o potencial para ressignificar e desnaturalizar estados que se
propunham basicamente naturais e de aspiração à imutabilidade de uma
verdade estrutural e classicista. Ressignificação e desnaturalização não só
pontuais, mas também presentes na ancoração de desdobramentos
posteriores e ainda hoje com forte influência de tal trabalho intelectual sobre
novas e outras possibilidades de existência. Novamente, falamos destas
expressões artísticas como Acontecimentos que se desdobram em variações,
diferença em si mesmas, dos sujeitos envolvidos, da subjetividade.

Contudo, e ainda não meramente ao acaso, se a AU como arte ou expressão,


não acompanhou os movimentos de arte conceitual do século passado, tal
condição, não é ousadia arriscar, deu-se muito pelo ancoramento desta ao
mercado da indústria da construção civil e à gestão tecnocrática da urbe.
Diremos que o saber AU teve potencializado seu perfil mais tecnicista e
fetichista em prol de sua mercantilização, em contraposição ao abandono de
sua vertente artística, assim como sua vertente filosófica, e até mesmo política
e sociológica. Com tal afirmação não diremos, seria um erro, que a produção
artística, filosófica e política em AU não tenham de alguma maneira se
efetivado, mas que esta produção comparada à sua face mercantil é
consideravelmente mais frágil. E o resultado empírico de afirmação é bem
conhecido no cotidiano urbano, na produção hegemônica deste saber.

Dentro do que poderíamos chamar de bibliografia clássica da Diferença28,


encontramos uma atenção especial dada a cidade, ao urbanismo e às formas
de existência urbanas na obra de Felix Guattari e de Michael Foucault. Ambos
trabalharam com a construção subjetiva dos modos de vida urbanos. Enquanto
Foucault deu atenção à conformação da cidade da revolução industrial e a
expressão de seu conceito de biopoder, Guattari teve como foco as novas
subjetivações libertadoras possíveis nas cidades, assim como fez uma devida
cobrança sobre a responsabilidade da AU e de seus profissionais nas

28
Nos referimos aqui sobretudo à obra de Deleuze, Guattari e Michael Foucault e sua bibliografia.
50

consequências do fazer cidades em prática. Contudo Deleuze nunca teve um


foco especifico sobre as cidades em suas dissertações, senão brevemente e
sem a profundidades dos demais autores citados, como, por exemplo no caso
do texto “Como Criar para Si um Corpo sem Órgãos”, (DELEUZE; GUATTARI,
1996). Na ausência de um pensamento especifico sobre a cidade, nos
propomos ao exercício de pensar o que poderia o pensamento deleuziano
influenciar no ofício da confecção do habitat urbano. Inúmeros seriam os
caminhos para tal ponderação, contudo a pista que seguiremos, para tal
aspiração, será estabelecer uma conexão não efetivada na dissiparidade dos
caminhos trilhados entre arte e AU, como expressos antes. E assim
chegaríamos à questão que dá título a este texto: “Como seria uma cidade
pintada por Francis Bacon?”, e no que ela difere das práticas de fato
realizadas. A partir da conjunção destes pontos damos entrada na proposta
deste texto, uma breve argumentação sobre o conceito de urbanismo menor e
a relevância de ter na figura deste filosofo da Diferença como intercessor de
nossa tese.

A pontuação primeira que faremos aqui, talvez a mais óbvia, estaria posta na
consideração sobre a concepção dos objetos e a responsabilidade ante tal
produção. Encontramos nos quadros de Francis Bacon, e na arte conceitual,
uma independência da obra, que se coloca sobretudo na questão da autoria
não totalitária29 e na concepção contrária do objeto finalizado, mas que segue
em novas conjunções relacionais. Do lado da produção arquitetônica e
urbanística, encontramos a autoria definida, burocratizada e utilizada como
portfólio de divulgação publicitária de um serviço. O fenômeno comumente
chamado de “arquitetura de grife” é um exemplo onde a contratação de um
arquiteto de renome, um starchitect, coloca a autoria, a assinatura do arquiteto
num patamar mais importante que o projeto em si, sendo uma das marcas do
Modelo Barcelona de urbanização, e uma marca do que Guattari chamou de
cidade-mundo do capitalismo contemporâneo geradora de paisagens cada vez

29
Chamamos aqui de autoria não totalitária tanto a não reclamação de uma obra (como pode ser
observado em Duchamp), como obras em que não cabe assinatura (como em Beuys), obras passíveis de
reprodução (como no caso das partituras de Cage), ou mesmo onde a autoria não se coloca, por si,
como uma das grandes questões da obra o que contrastaria diretamente ao fenômeno da “arquitetura
de grife”.
51

mais similares. Seguindo a mesma crítica de Guattari, e solidificando a idéia de


uma massificação dos territórios urbanos nos encontramos com o conceito de
cidade genérica30 do arquiteto e teórico Rem Koolhaas. Somamos ainda a
contradição entre arte conceitual e AU a concepção do projeto arquitetônico e
urbanístico como obra finalizada, não processual e sua (falsa) independência
em relação aos usuários que dela usufruem na qualidade de espectadores, de
usuários passivos. Sobre tal questão pontou o sociólogo Manuel Delgado ao
descrever o trabalho dos projetistas urbanos:

A empresa que assume o projetista é a de trabalhar a partir de um espaço


essencialmente representado, ou melhor, concebido, que se opõe às outras
formas de espacialidade que caracterizam o labor da sociedade urbana sobre si
mesma: espaço percebido, praticado, vivido, usado, sonhado... Sua pretensão:
mutar o escuro em algo mais claro. Sua obsessão: a legibilidade. Sua lógica: a
de uma ideologia que se quer encarnar, que aspira a converter-se em
operacionalmente eficiente e alcançar o milagre de uma inteligibilidade
absoluta. Conceitualização da cidade como território taxionomizável a partir
de categorias diáfanas e rígidas por vez –zonas, vias quadriculas – e através de
esquemas lineares e claros, como conseqüência do que não deixa de ser uma
espécie de terror ante ao incomensurável, o polisensorial. O súbito
desencantamento de potenciais sociais muitas vezes percebidas como escuras.
E, por conseqüência, se nega absolutamente que a uniformidade das
produções urbanísticas não sirvam, no fundo, para ocultar ou dissimular
brutais separações funcionais derivadas de todo tipo de assimetria, que afetam
certas classes, gêneros, idades e etnias31. (DELGADO, 2007, p.14)

30
As cidades genéricas, sob o aspecto arquitetônico, são construções contemporâneas do capital que,
espalhadas ao redor do mundo, constituem relevos uniformes, descaracterizando e se sobrepondo aos
marcos e elementos do genius loci (espírito do lugar), com paisagens cada vez mais semelhantes.
Segundo Guizzo: “A cidade para ele não tem história, é toda igual, genérica, sem valor, e isso tudo irá
justificar a utilização de tábula rasa, ou seja, justificará a destruição de parte da cidade existente para
construir novos projetos. Sua perspectiva possibilita o surgimento de arquiteturas e projetos urbanos
isolados em relação à cidade existente, ao modo de viver de um lugar, de uma cultura, de uma estética,
e que não preveem nenhuma participação de quem ali vive” (2008, p.76-77).
31
Tradução nossa, para o original: “La empresa que asume el proyectista es la de trabajar a partir de un
espacio esencialmente representado, o más bien, concebido, que se opone a las otras formas de
espacialidad que caracterizan la labor de la sociedad urbana sobre sí misma: espacio percibido,
practicado, vivido, usado, ensoñado… Su pretensión:mutar lo oscuro por algo más claro. Su
obcecamiento: la legibilidad. Su lógica: la de una ideología que se quiere encarnar, que aspira a
convertirse en operacionalmente eficiente y lograr el milagro de una inteligibilidad absoluta.
Conceptualización de la ciudad como territorio taxonomizable a partir de categorías diáfanas y rigidas a
la vez – zonas, vías, cuadrículas – y a través de esquemas lineales y claros, como consecuencia de lo que
no deja de ser una especie de terror ante lo inconmensurable, lo polisensorial, el súbito
desencadenamiento de potencias sociales muchas veces percibidas como oscuras. Y, por supuesto, se
niega en redondo que la uniformidad de las producciones urbanísticas no sirva, en el fondo, para ocultar
o dissimular brutales separaciones funcionales derivadas de todo tipo de asimetrías, que afectan a
ciertas clases, géneros, edades o etnias”.
52

Em nome de uma pretensa “legibilidade”, o que se chama de “claro”, o que se


convenciona como “escuro”, opõe-se na visão que conforma o profissional do
saber AU e o “labor da sociedade”. Embebido pelos dogmas clássicos e
classicistas arquitetônicos, atravessado pelas forças do capital (que a todos
atravessam), incapaz de discernir o dissenso e a complexidade da multidão da
escuridão (como posto por Delgado), o arquiteto se afasta do artista conceitual
(e por consequência da política, das tramas sociológicas e filosóficas). Sua
produção assim se torna quase sempre marcada por segmentações e
assimetrias que impactam de maneira pouco fértil à heterogeneidade urbana, e
em algumas ocasiões flertando de maneira declarada com segregações
fascistas. Outra perspectiva, como marcado por Guattari, seria o entendimento
do papel do arquiteto como produtor de objetos arquitetônicos e urbanísticos
que carregam em si um potencial de subjetivação parcial (e sempre parcial) a
ser somado nos processos de subjetivação. Em composição, e não em
contestação, com “o labor da sociedade urbana sobre si”, e atento às
singularidades, e ainda mais, desejoso por tais singularidades e o
espraiamento destas.

A professora e pesquisadora Paola Berenstein Jacques, já citada neste


trabalho, que dentre outros pensadores do urbanismo no Brasil, em vários
textos crítica a relação prejudicial que se dá em consequência da produção dos
projetos urbanos no contemporâneo coloca:

Os novos espaços públicos contemporâneos, cada vez mais privatizados ou não


apropriados, nos levam a repensar as relações entre urbanismo e corpo, entre
o corpo urbano e o corpo do cidadão. A cidade não só deixa de ser cenário
mas, mais do que isso, ela ganha corpo a partir do momento em que ela é
praticada, se torna “outro” corpo. Dessa relação entre o corpo do cidadão e
esse “outro corpo urbano” pode surgir uma outra forma de apreensão urbana
e, consequentemente, de reflexão e de intervenção na cidade contemporânea
(2008).

Jacques nos fala de uma não-relação entre o que seria o objeto urbanístico e o
corpo do sujeito urbano, onde o ambiente projetado se coloca como cenário e o
usuário como espectador. Tal não-relação dá-se na não abertura para atuação
ou desenvolvimento de ações de posse do espaço construído e a consequente
53

passividade daquele que o atravessa sem afetá-lo e por ele afetar-se. Tal
condição ganha a denominação, já consideravelmente assimilada, de
espetacularização da cidade e tem suas bases filosóficas em Guy Debord e
seu conhecido livro A sociedade do espetáculo (1997). Em contrapartida
Jacques propõe que a inversão dessa relação de repulsão, ou seja, uma
relação de afinidade efetiva um “outro corpo urbano” que se se conforma por
transmutação, do jogo de forças, do objeto urbanístico e arquitetônico em
composição com o corpo do usuário, do sujeito urbano, torna-se, desta
maneira, corpo, dentro do campo das relações micropolíticas, onde a
consequência da interação e da afetação entre o corpo da cidade e o corpo
humano. E que esta relação de afinidade e afetação se coloca como condição
sine qua non para que o objeto se torne, ou ganhe, a condição de corpo.

Entender a importância desta co-produção entre o produto da AU e seu


usuário, o sujeito urbano, como coloca Guattari e Jacques, dentre outros, torna
claro o pleonasmo de termos como “urbanismo social”, ou mesmo “arquitetura
social”. Posto que o produto do saber AU é necessariamente social. E a
relação que se dá a partir deste, e mesmo uma não-relação, estabelece
influências e interferências dando novos contornos ao socius em sua conjunção
molar (no campo das formas) e molecular (no campo das forças), e como já
posto, soma-se na conjunção de forças no processo de construção da
subjetividade, na subjetivação. Pontuamos aqui a importância de compreender
a produção da AU como uma força, como matéria de expressão, dentre várias,
na conformação do sujeito e sua coletividade. O urbanismo e a arquitetura são
imperativamente sociais, e isto coloca num patamar mais elevado a
importância e os efeitos destes, ao mesmo tempo que convoca a concepção
projetual a uma perspectiva mais rigorosa e desprendida da simplicidade do
fetichismo da moda.

A partir desta ponderação, se a forma hegemônica, ou maior, de construção


das cidades passa por linhas tão duras, e distantes de uma construção
processual e coletiva e na continuação da empreitada de buscar possibilidades
de entender o que seria uma cidade na diferença deleuziana e como seria um
Urbanismo com tais propriedades. Proporemos então neste nosso percurso do
54

pensamento que tomemos foco sobre o conceito de “menor”. Tal conceito


surge na leitura de Deleuze e Guattari em Franz Kafka, no livro Kafka: por
uma literatura menor (DELEUZE; GUATTARI, 1977). Tal conceito não pode
ser entendido pela concepção do senso comum, pois não fala de uma menor
importância, no sentido comparativo de uma escala de tamanho ou proporção.
Para nos aproximarmos do que seria um “urbanismo menor”, devemos, mesmo
que brevemente, compreender melhor o que constitui e o que nos diz tal
conceito deleuziano em sua aplicação original da obra kafkiana.

Em sua aplicação sobre a literatura, a “literatura menor”, os autores relacionam


o termo “menor”, em primeiro plano, como perspectiva propositiva para além de
um “maior” – este que está no âmbito de uma língua estabelecida, ao instituído,
ao hegemônico –, ou seja, falamos de um projeto político. Em segundo plano,
mesmo sendo produto de uma minoria é sempre em nome de um grupo que se
expressa, trata-se de um agenciamento coletivo de enunciação. E finalmente
coloca-se como ação instituinte, de potência desestabilizadora, como
desterritorialização que ultrapassa o caráter individual da narrativa.

Aproximar-se então de um urbanismo menor, como aspiramos nesta tese, e de


uma cidade pintada por Bacon, seria possível a partir do estabelecimento de
algumas metas para uma cidade que pode ser vista como muitas, uma
multitude de cidades passível de constituir uma cidade da diferença, que em
nossa hipótese, é capaz de uma desestabilização dos dogmas que
cristalizaram o saber AU como um mero instrumento da construção civil e dos
fetichismos estéticos e do funcionalismo utilitarista (forma e função). As pistas
do percurso feito pelas artes e da filosofia do século passado então nos falam
da possibilidade de uma construção de um modo de edificação do pensamento
criativo em AU onde encontramos cidades outras:

A cidade metabolizadora de Acontecimentos – ou, A cidade porosa. Após


as questões apresentadas em Bacon e Jacques vemos a necessidade de
buscar na produção dos objetos urbanísticos e arquitetônicos para que estes
se tornem corpos passíveis de interação com o corpo dos usuários do espaço
urbano, para que com estes possam, então, constituir um habitat propenso aos
55

acontecimentos e a criação de singularidades. Falamos da requalificação da


lógica dos espaços públicos em detrimento da desqualificação da arquitetura
militarizada, da lógica domiciliar extremista, e da mudança do estigma do
usuário espectador à um componente desestabilizador e criador de/a diferença.

Esta cidade propensa ao Acontecimento se assemelha em parte à cidade


situacionista, à “criação de situações”, arquitetada por Guy Debord, Constant e
demais integrantes deste movimento. Contudo, no nível de viabilidade a cidade
situacionista coloca-se mais no campo das ideias, de uma idealização, como
uma abstração de desejos, como abstração projetual de intenções, que no
campo de um trabalho realizável, do ponto de vista da construção de
objetos/corpos arquitetônicos e urbanísticos. A efetivação de uma cidade
porosa, no entanto, desconsidera à crítica que seguramente advém do
urbanista tradicionalista (estruturalista e positivista), de ser tão idealizada
quanto a proposta situacionista. Isso porque o projeto urbano poroso, do
Acontecimento, dentro de uma perspectiva deleuziana do menor, de um
urbanismo menor, não aspira à totalização, aos grandes planos, assim como a
um estado final de seus objetos/corpos arquitetônicos e urbanísticos, à autoria
única e egoíca da obra e etc. Sob tais questões trabalharemos mais adiante.

A cidade da singularidade. Necessariamente a cidade propensa à criação da


diferença fala de uma mudança, de uma desestabilização do sujeito urbano
tornado espectador passivo, e busca um papel de atividade na construção do
Acontecimento. Falamos aí, e também, de um tema que já atravessou autores
como Jacques Rancierè, e mesmo autores nacionais que trabalham
diretamente com o urbanismo, como Ermínia Maricato, falam do dissenso. Não
nos aprofundaremos sobre tal conceito porque acreditamos que este é
contemplado e absorvido por outros conceitos que são caros aos nossos
intercessores mais diretos, no entanto, é importante entender que a apologia
ao dissenso diz respeito à política dos encontros, da heterogeneidade dos
modos de vida e à construção da concepção grega de cidade como lugar da
política. A construção da singularidade encontra terreno mais fértil quanto mais
houver o atrito com outras singularidades. A apologia a singularidade, de
maneira imperativa, leva ao encontro dos diferentes, ao dissenso, e a troca
56

entre sujeitos singulares. Nos deparamos então com uma falsa dicotomia que
diz respeito ao sujeito singular e a coletividade heterogênea. Por vezes o
entendimento de um coletivo carrega o signo da massificação, da massa, visto
como um aglomerado de iguais. Contudo, tal e qual o conceito de multidão de
Negri e Hardt (que abordaremos com mais profundidade no terceiro movimento
deste trabalho), que encontra relativo direto com a singularidade, compreende
e propõe um entendimento de coletivo não homogêneo (e assim distante da
massa de iguais).

A ponderação sobre tal questão da construção subjetiva e massiva, foi tema


do texto “A vida na berlinda” (2002) onde a Professora Suely Rolnik o aborda
com a expressão: “modos de vida prêt-a-porter”. Neste texto Rolnik atenta para
o risco da subjetivação dos modos de vida produzidos sobre o signo do capital
de maneira muito veloz, como um produto desestabilizador e desgastante, um
mundo de diferentes iguais, onde se vê o sujeito tornado consumidor de modos
de vida, que por sua vez, se tornam mercadorias de uma trajetória de
significações e espaços produzidos em uma verdadeira indústria da existência
que subjuga o sujeito urbano.

Uma apologia à singularidade, de maneira imperativa, leva ao encontro das


diferenças, ao dissenso, e a troca entre tais sujeitos singulares, falamos
consequentemente na produção de outra cidade.

A cidade da construção coletiva. Poderíamos dizer que tal edificação de


cidade remete à origem da pólis grega, contudo, como coloca Arendt (2010),
mesmo o berço da democracia, da cultura e do pensamento ocidental era
extremamente segregador, e a posse de fato do destino da cidade, da vida
activa32 descansava, e só poderia assim colocar-se sob características que não
alcançavam todos aqueles que viviam abrigados na pólis.

32
Segundo Hannah Arednt a vida activa se dá somente quando o sujeito consegue alcançar toda a
expressão possível de uma vitalidade citadina. O que necessariamente envolve o labor da sobrevivência
quanto ser, o trabalho na produção de artefatos produzidos que conferem uma marca ao tempo da
própria existência deste homem, e, finalmente a ação política na gestão das organizações da vida na
história deste homem singular e que se difere dos demais homens à luz de uma determinada
constituição histórica.
57

A construção de uma cidade verdadeiramente coletiva e democrática passa


pela idéia freiriana de empoderamento33, onde o sujeito urbano, em sua
multiplicidade, apodera-se do espaço urbano alterando-o e conformando-o em
um processo contínuo de disputas e acordos em um processo histórico.
Falamos então de uma relação com a produção em sua complexidade, não de
autoria individual, mas de uma autoria coletiva e mesmo anônima. Onde o
projeto coletivo é tido como um processo e não como obra acabada, e que,
indo além, abre-se à virtualidade dos acontecimentos coletivos em sua
potência de criação.

A cidade subjetiva. A cidade evocada por Guattari, em seu livro Caosmose


(1992), deve ser entendida, sobretudo, como um espaço de produção material
e imaterial da existência, onde o próprio destino da urbanidade está
intrinsecamente ligado ao destino da própria sociedade urbana. Destino que se
dá na mediação das esferas econômicas, políticas e sociais como formadoras
de uma consciência errante na produção de uma subjetivação de potencial
libertador.

1.2.4 Urbanismo entre Biopoder e Biopotência

A vida, a força da vida, é aquela que transforma os obstáculos em meios, meios


de desenvolvimento. Este processo está na base da invenção do homem. O
homem conduz a vida ao seu paroxismo: exalta-a, expande-a. Sobretudo
quando a vida lhe dá condições de possibilidade para a criação dos problemas.
E o problema não é uma deficiência do conhecimento, muito mais que isso – o
problema é aquilo que penetra nos horizontes para torná-los ilimitados e
sempre, invariavelmente, a serviço da vida. O homem, com o rigor da
matemática e a inventividade das artes, produz problemas e vai além de
qualquer limite; [...] (ULPIANO, sem ano)34

33
Empoderar, segundo Paulo Freire, não é dar poder (conceder a quem não tem), mas ativar a
potencialidade criativa do outro não somente numa perspectiva psicológica, mas também como ato
social e político.
34
Manuscrito de Cláudio Ulpiano transcrito no site oficial de publicação de suas aulas, com o título “A
vida, a foraça da vida... Manuscrito 14”, não consta o ano, acessível em:
http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/?p=6533 acessado em 28 de janeiro de 2014
58

Como afirmamos anteriormente, a forma dada à AU é apenas um dos vários


elementos que influenciarão na espetacularização da produção arquitetônica e
urbanística, enfim na produção da cidade contemporânea, e na experiência de
esvaziamento dos espaços públicos – em um modo-subjetividade que ative tal
ação. Contudo, não é por causa da complexidade desses processos que
podemos abrir mão da responsabilidade que os arquitetos e urbanistas
possuem35 e da necessidade de problematizar e agir na contramão das forças
hegemônicas de cerceamento da vida em sua potência de expansão.

A instituição de uma indústria do medo, a militarização da arquitetura, com


prédios cada vez mais blindados, vedados por redes de alta tensão, grades, e
sistemas de vigilância 24 horas, que nega e supervisiona toda e qualquer
relação com a rua, assim como os grandes condomínios, que para além da
militarização, se apartam do contexto urbano criando espaços segregados do
tecido urbano e ainda o bombardeio da mídia sensacionalista que rotulam
determinados territórios como seguros, tranquilos ou inseguros e
potencialmente perigosos, são parte do que nos faz, cada vez mais, afastarmo-
nos do encontro com a alteridade, com o outro, com a construção da
democracia real.

Devemos pontuar que tal forma de vida urbana, tão segregada, não ocorre sem
a participação dos habitantes da cidade. Afirmamos assim que não há
passividade nesta construção, e que tal forma é construída pelas ações de
todos, e assim é necessário a implicação de nossas práticas – o
questionamento foucaultiano se faz necessário: o que estamos fazendo de nós
mesmos? Existe uma construção para tal desejo de isolamento, tal clamor
pelas grades e pelo “não encontro” com o que não lhe é idêntico. Falamos da
exaltação de um regime domiciliar extremista, onde a rua e seus habitantes
devem ser temidos e evitados, onde o circular exclui o interagir, pelo medo.
Danichi Mizoguichi, em sua dissertação-livro Segmentaricidades: passagens
do leme ao pontal (2009) fala sobre a insegurança, como forma de controle
35
Faz-se necessário ressaltar que determinado arranjo que culmina numa determinada forma-
subjetividade é responsabilidade de todos. Responsabilidade que não encontra quantidade ou
especificidade por um determinado nicho profissional, responsabilidade que nos convoca a todos. Afinal
somos produto e produtores do meio, das relações que nos compõe.
59

social que cria cidades onde a vida como zoé, ou vida biológica, sob o risco de
dano ou perda – como exalta o mass media sensacionalista -, deixa que se
perca a bios, os modos de vida (p.63).

As grades dos dias atuais são então, concomitantemente, respostas ao


imperativo do medo vigente na cidade e obstáculos à acolhida do conflito e do
desentendimento criativos, à multiplicação das relações e dos afetos, ao
convívio; empecilhos à arte urbana do pertencer-se, à experiência citadina tida
como vivência política. [...] Quanto mais a cidade necessita se sentir segura,
mais ela descarta seu sistema de relações, e mais cidadela se torna; no lugar
da política imanente, aparece a transcendentalidade típica da polícia e de toda
uma indústria e um comércio de segurança (MIZOGUCHI, 2009, p.71).

Assim, a cidade como pólis, como lugar de embates e tensionamentos, de


sujeitos políticos, do encontro com a alteridade, tem se esvaziado. O dissensso
visto como algo a ser evitado. Seus espaços comuns marginalizados e
enfraquecidos pelo “medo dos maus encontros que impossibilita os bons
encontros” (ESPINOSA apud MIZOGUCHI, 2009, p.62).

Para nos aproximarmos um pouco mais do processo de despotencialização do


espaço público, e de como a AU tem sido utilizada como tecnologia parcial, ou
complementar, nas subjetivações hegemônicas, encontramos a idéia do
biopoder de Michel Foucault e suas expansões por outros autores. Contudo,
para chegarmos ao conceito de biopoder passaremos antes, e rapidamente,
pelo que Foucault chama de sociedades de soberania, de disciplina e de
controle. Essas sociedades produziram-se nesta ordem, porém, é necessário
afirmar que essas formas de poder sobre a sociedade não deixam de existir
sequencialmente, uma após a outra, como se uma substituísse outra. Os
períodos de tempo que as demarcarão serão registros de uma maior força, em
uma determinada geopolítica, que se refere à realidade européia. E ainda que
em nosso país não é difícil encontrar exemplos claros destas três modalidades
sobrepostas em vários territórios, mas sobretudo nos territórios de maior
vulnerabilidade social.

Na sociedade de soberania “todo indivíduo que infringia a lei, atingia a vontade


do soberano, pois a lei era a vontade do soberano” (FOUCAULT apud
60

CALDERON, 2003). E a consequência punitiva para quem se levanta contra a


figura do soberano eram mais que simples suplícios, eram um ritual político,
onde se expressavam a força física e material do rei em todo seu “brilho e
violência”. Desta maneira o poder se dava sobre a morte, como o direito de pôr
fim a vida. Pesava sobre o soberano, o poder de morte, de cessar a vida
mediante descompromisso com os contratos sociais, seja pelo ato de matar
biologicamente, ou por uma morte social – condenando ao esquecimento, nas
escuras masmorras. Tal forma é, então, sobreposta pela sociedade disciplinar,
no século XVIII.

Gilles Deleuze nos dirá que o sujeito desta sociedade disciplinar será o sujeito
encarcerado, que passa de um espaço confinado a outro:

[...] primeiro a família, depois a escola ("você não está mais na sua família"),
depois a caserna ("você não está mais na escola"), depois a fábrica, de vez em
quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por
excelência (DELEUZE, 1992, p. 219).

Neste ponto, a produção arquitetônica recebe grande influência de Jeremy


Bentham, com a criação de uma tecnologia de poder chamada de Panápticon 36
ou Panóptico, cujo trabalho, em primeira instância, seria aprisionar. Contudo,
tal projeto de cárcere possuía um intuito maior, que se espalhou como
tecnologia na arquitetura das escolas, dos hospitais, das fábricas, das casas,
nas cidades. O projeto encarcerador de Bentham, ou melhor, esta tecnologia
por ele criada, denota uma evolução de adestramento e controle social que
segue até nossos dias, e que ainda não dá indícios de seu fim. O que vemos
acontecer nesta sobreposição modal do poder é que antes, na sociedade de
soberania, este se dava no direito de morte, e neste ponto, na sociedade
disciplinar, passa a incidir diretamente sobre a vida, no encarceramento da
vida, como modulação estática na qual a produção da AU serve como

36
O Panóptico, numa breve explicação, nada mais é que uma prisão em forma de anel (ou coroa), com
celas em sua extremidade, separadas entre si de modo a impedir a comunicação entre os internos, ao
centro desse círculo se localiza o alojamento do inspetor (ou diretor), conservando um espaço entre as
celas e este alojamento. Esta organização se dá de forma a permitir que o inspetor vigie todos os
internos sem ser visto, tendo a sua presença sempre como incerta pelos observados, roubando-lhes a
privacidade e criando um mecanismo de auto-vigia (PRUCOLI, 2005).
61

tecnologia para um fim: a disciplina da vida. Voltamos às palavras do próprio


Foucault:

[...] o princípio da masmorra é invertido, ou antes suas três funções – trancar,


privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimam-se as outras
duas. A plena luz e ao olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que
finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha. [...] sobre aqueles sobre
os quais se exerce o poder, e ao mesmo tempo, para que os efeitos do poder
sejam visíveis, essa é a preocupação fundamental (FOUCAULT apud
CALDERON, 2003).

Neste ponto encontramos com o primeiro momento do biopoder, onde a


modulação da própria vida torna-se o alvo das estratégias do poder. E isso se
efetiva a partir de objetos arquitetônicos e urbanísticos, tirando da paisagem
das cidades tudo que não cabia em determinado ideal hegemônico: os loucos,
os delinquentes, os bêbados, os homossexuais, os moradores de ruas, os
desempregados... enfim, a alteridade.

Seguindo neste movimento de sobreposições modais do poder, Deleuze nos


fala de uma crise dos modelos de encarceramento, das forças disciplinares –
uma afirmação que deve ser pontuada: esta crise não acontece por um
enfraquecimento de seu poder contra o indivíduo, mas sobretudo porque o
poder que opera e espraia “modos sociais”, exige por algo mais. E assim, após
a segunda metade do século passado, a sociedade disciplinar será sobreposta
por outro sistema de ordem. Teremos, então, a sociedade de controle, cujo
poder será exercido “a céu aberto”, atravessando os corpos sociais e se
entranhando no cerne da vida, afetando-a em sua totalidade (biológica, social,
política, econômica...). Enquanto na sociedade disciplinar os indivíduos passam
de uma instituição-internato a outra – da família à escola e assim por diante–,
sempre recomeçando em cada uma destas, os controlatos, os modos de
controle, se expressam de maneira múltipla e inseparável, a curto prazo e em
rápida rotação, como uma rede sempre em mutação cuja função é que nada a
escape.

A materialidade da cela disciplinadora do panóptico leva a um molde de


subjetividade, como expressão da palavra de ordem, muda e ensurdecedora,
62

na concretude do construído, sendo uma consequência de uma tecnologia


arquitetônica de poder que se apóia em objetos materiais arquitetônicos e
urbanísticos (a casa, a escola, o quartel, o hospital, as grandes avenidas, os
bairros homogêneos...) e no imaterial normativo das regras sociais. Seu
“substituto”, o controle, se apresenta como a pura “eteriedade”, somente sua
produção se torna material. Mesmo a relação desta para com o indivíduo será
novamente imaterial: a imagem, citando Gui Debord (1997), “é a mediadora
das relações sociais”.

A explosão tecnológica das mídias de comunicação proliferam vorazmente as


imagens sedutoras da urbe privada e ostentosa, em cenários de vidas
assépticas, vinculadas à última moda europeia ou estadunidense são
reproduzidas à exaustão nas muitas novelas que se passam em lugares de
ostentação da riqueza, como, por exemplo, no bairro do Leblon, que dizem-nos
como devemos viver e como devemos viver as cidades. De outro lado, há o
caos “infernal” das ruas, dos subúrbios e favelas, como territórios de alta
periculosidade, onde habita a “marginalidade descontrolada”, e sua
perversidade elevada a última potência pelos gestores de informação e opinião
pública. Arquitetura e urbanismo prêt-à-porter, luxo ou lixo. “O marketing é
agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente dos nossos
senhores” (DELEUZE, 1992, p.224). Torna-se, então, o objeto construído, um
corpo no qual o controle se exercerá - o urbanismo se torna uma biopolítica.

Posto desta maneira, trabalharemos aqui, com a idéia de que os corpos


arquitetônicos são também atravessados pelos desígnios do controle, do
biopoder, convertendo-se em materiais de expressão dos processos de
subjetivação hegemônica. E ganhando novas formas pelo poder, que também
perpassa a espacialidade e dita imperativos à experiência urbana
(MIZOGUCHI, 2009, p.62).

A construção desse biopoder se encontra sempre ligada a superestrutura, aos


modos de produção capitalista. Como citam os autores do livro Império,
Michael Hardt e Antonio Negri: “o biopoder é outro nome da real submissão da
sociedade ao capital, e ambos são sinônimos da ordem produtiva globalizada”
63

(HARDT; NEGRI, 2001, p.37). Deleuze dirá que enquanto o homem da


disciplina é o homem encarcerado, o homem da sociedade de controle será o
homem endividado. Endividamento que deve ser entendido não somente sob o
viés econômico, mas também sob mecanismos de controle sociais invisíveis
como cobranças de status, da posse de bens, acesso a serviços, débitos na
participação do funcionamento das instituições entre outros. Relaciona-se
diretamente às trajetórias de vidas serializadas pontuadas por Sartre e
Guattari.

A produção urbanística, legal, das cidades, apresenta-nos variadas falas, mas


essas falas sempre serão ditas pelo capitalismo mundial integrado (CMI). Fala-
se dos condomínios fechados (ou “prisões felizes”). Fala-se de
sustentabilidade. Fala-se de gestão urbana. Fala-se de planejamento
estratégico. Porém, sob que viés? Sob formas de biopolítica da AU, de uma
visão atrelada aos modos de produção vigentes, a formas de viver, habitar a
cidade e produzir. O poder sobre a vida se expressa nos modelos de estar na
cidade. A cidade-mundo do capitalismo contemporâneo se edifica, a cada dia,
como parte do emaranhado subjetivo que nos constitui, como peças do
biopoder.

Michel Foucault, ao dissertar sobre o poder, deixa claro que este se constitui
como uma rede, uma multiplicidade de correlações de forças, e diz ainda que,
onde há poder, há resistência, e esta, nunca se encontra exterior ao poder,
pois deste não se escapa, “não porque englobe tudo e sim porque provém de
todos os lugares” (FOUCAULT, 1988, p.103). Entendemos por práticas de
resistência os processos de criação que escapam ao prescrito e delineiam
outras formas de ação imprevisíveis e não programadas. Ações que se
agenciam com outras práticas e que vão contra movimentos de submissão e
reprodução de processos instituídos (HECKERT, 2004). Fato é que a urbe é
múltipla, polifônica, estamos falando da metapólis37: da cidade de cidades,
territórios diversos dentro de um território maior. E esse poder da sociedade de

37
Termo cunhado pelo sociólogo francês François Ascher, no livro Metapolis Ou L'avenir Des Villes.
64

controle se expressa de forma diferente: cria estratégias, e adapta sempre seus


aparelhos de captura, em cada um destes. Mas, haverá sempre a resistência.

Peter Pál Pelbart, no livro Vida capital, afirma que na modernidade a


“resistência” aparece sobre um modelo dialético “de oposição direta das forças
em jogo, com a disputa pelo poder concebido como centro de comando” (2003,
p. 136). E indo além, dirá que no pós-modernismo, surgem outras formas de
enfrentamento, com posicionamentos “mais oblíquos, diagonais, híbridos,
flutuantes”, outros contornos de ação na resistência. Pelbart, neste mesmo
texto, nos apresenta uma idéia de resistência ligada ao biopoder. Este termo,
biopoder, tal como se apresenta, frequentemente, e talvez pela didática dentro
de uma vontade de controle hegemônico sobre a vida, suscita uma ação contra
a diferença, contra as singularidades, como ação de esmagamento
uniformizador da vida. Contudo, alguns dos estudiosos que expandiram tal
conceito foucaultiano, com base em Deleuze, foram capazes de fazer escapar
a biopolítica e associá-la a uma noção de vida – para além dos processos de
controle da bios e zôê –, conectando-o ao desejo e destituindo de passividade,
o corpo da população. Falamos, então, de uma perspectiva onde deve-se
ativar, antes de um poder sobre a vida, a potência da vida, a biopotência.
Como coloca Pelbart:

Passa de um sentido negativo para um sentido positivo, de uma dimensão de


disciplina, controle ou vampirização para uma dimensão intensiva, ontológica e
constitutiva. Ao poder sobre a vida contrapõe-se a potência da vida, mas essa
tensão é irresoluta e os múltiplos pontos de fricção ou de estrangulamento, de
irrupção ou de sufocamento, demandam uma cartografia complexa. [...] Quais
estratégias liberam a vitalidade sequestrada? (PELBART, 2003, p. 134).

Aquilo que foge aos modos hegemônicos, o que investe na invenção, acontece
todos os dias e em todos os lugares, sem a necessidade de uma genialidade
singular, ou seja, se dá no grosso caldo das relações sociais. Desejos que vão
de encontro ao simulacro, libertando novas palavras, outros costumes, híbridas
redes de encontro e cooperação. E o desejo, como nos ensinam Deleuze e
Guattari, é agenciamento de desejo, propagando-se, potência constitutiva de
outras subjetividades, força viva, e para além de estarem passivas aos
controlatos do capital, são, em si, capital. Capital vivo que o sistema tenta
65

sempre recodificar, reapropriar. E na potência inventiva de “qualquer um”, se


desvela “a biopotência do coletivo, a riqueza biopolítica da multidão” (p.139). O
filosofo italiano Antonio Negri nos dirá que a resistência ligada à multidão será
“a resistência contra todas as propostas de formatação da vida (...)” (NEGRI,
2006, p.179) na constituição das singularidades, singularidades que podem
compor com outras singularidades, criando vida em potência de expansão.

O desejo por modelos, modulações, pela unidade e identidade dentro do


biopoder, preza e despreza, faz viver, o que corresponde a seus desígnios, e
deixa morrer, o que não lhe interessa. A apologia pela diferença e
multiplicidade na cidade apresenta-se como uma necessidade na tentativa de
fazer oposição aos fascismos que parecem ressurgir a cada instante. Tal
construção de cidade, uma cidade que abrigue a multidão, levanta também a
questão de uma cidade voltada para a produção do comum38 – este conceito
está para Negri como tópico de suma importância. “O problema é compreender
que o público e o privado não tem mais significado, não tem valor algum. O que
é importante é conseguir construir o comum e que toda produção, toda
expressão, deve ser dada em termos do comum” (NEGRI apud MIZOGUCHI,
2009, p.77), ou seja, para além de levantarmos a bandeira do espaço público, é
necessário ponderar o que vem sendo produzido a partir do uso destes, que
possibilidades e usos são feitos no cotidiano (MIZOGUCHI, 2009).

A resistência então existirá na biopolítica do habitar. Mas como? Que territórios


existenciais serão estes? “Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas
armas” (DELEUZE, 1996, p.219). O que buscamos aqui são os desvios,
estranhamentos, o que foge ao modo hegemônico. Objetivamos dar visibilidade
às práticas de resistência que possam instituir outro poder-saber AU, outra
produção de cidade. Pensando a cidade como máquina produtiva, como
megamáquina, é nesse espaço urbano onde os fluxos produtivos e

38
“Apesar de um tanto estranho, o comum *the common] ressalta o conteúdo filosófico do termo e
deixa claro que não se trata de uma volta ao passado, mas de um novo desenvolvimento. Nossa
comunicação, colaboração e cooperação não se baseiam apenas no comum, elas também produzem o
comum, numa espiral expansiva de relações. Esta produção do comum tende atualmente a ser central a
todas as formas de produção social, por mais acentuado que seja seu caráter local, constituindo na
realidade a característica básica das novas formas dominantes de trabalho hoje”. (HARDT; NEGRI, 2005,
p.14)
66

institucionais se reúnem. Há que se ponderar a concepção de Félix Guattari à


urbanística, não somente sob o espectro espacial, mas também em seu
potencial de esmagamento uniformizador quanto de resingularização.
Encarceramento ou libertação da potência da vida.

Neste ponto, esperamos ter deixado claro, que é a sociedade sobre a


superestrutura capitalista que produz os “seres urbanos” e sua existência, nos
usos e desusos da cidade. Contudo, propostas de lugares fora dos padrões
moduladores e unitários podem contribuir para que na própria prática, novas
relações possam se instituir. Parece-nos que outras formas de projetar
poderiam ser, também, de ajuda para o processo de constituição de projetos de
espaços do comum.

O posicionamento dos urbanistas, como especialistas da urbe, como


intelectuais da construção teórico-prática de cidades, e de suas normalizações,
suscita uma reformulação. No encontro com este desconhecido espaço-tempo,
“falar pelo outro”, manipular a materialidade de um espaço que não nos é
familiar, e impor de maneira descuidada outro sentido a este espaço é um ato
de violência e covardia. O propor dos projetistas carece de uma percepção dos
processos e lutas que constituem os territórios urbanos, das relações de poder
e suas práticas de resistência. Buscar a construção de uma multiplicidade, de
efetivar um desejo de pluralidade, implica perceber e englobar as intervenções
que se efetuam nesses territórios. O arquiteto urbanista precisa reavaliar as
implicações de suas intervenções como efeitos nas relações de poder, que, por
sua vez, tais intervenções não se efetuam apenas como efeito da relação de
poder, mas de afrontamento entre poder e resistência, como indica Michel
Foucault em conversa com Gilles Deleuze (FOUCAULT, 1979) o papel que
aspiramos incitar é o de lutar contra o poder hegemônico e sua vontade de
esmagamento da alteridade.

A práxis conceitual da AU deveria atentar-se mais para o coletivo. Deixando um


pouco de lado “o sonho da cidade digital”, da espetacularização, o sonho
individualista e atrelado à estética, em seu sentido de senso comum, estética
fetichista, atém-se a uma “cidade manuseável” como construção coletiva, ética,
67

estética, política, a ser gasta, apropriada e reapropriada pelas vidas que a


atravessam. Que uma dobra possa dar-se no anteparo arquitetônico, talvez
seja esse um dos caminhos da resistência aos modos hegemônicos dentro da
própria instituição AU.

Faz-se necessário pontuar que a “bandeira hasteada”, da potencialização de


movimentos instituintes outros na AU, como parte desta biopotência, com foco
dentro e fora da academia, da vontade de consolidação de um pensamento
crítico contundente, com conditio sine qua non de reflexos diretos nas práxis
efetivadas, é uma bandeira também elevada por outros professores,
pesquisadores, militantes em algumas das mais importantes escolas de AU
brasileiras, assim como em outros países.

Alguns nomes, nos meandros desta luta pela consolidação de um território de


construção da biopolítica neste saber, saltam, outros arquitetos e coletivos
também chegam à superfície. Contudo “o saltar” destes nomes, nos parece não
ser demasiada ousadia afirmar, é exatamente o que denota o ainda pequeno
número de agentes na formação deste território. Território ainda em disputa
para firmar-se. Dentre estas instituições destacamos a FAU-UFBA, e UFRJ,
como expoentes deste subversivo embate – subversivo na visão daqueles que
ainda defendem uma perspectiva conservadora de manutenção dos contornos,
pouco ou nada polifônicos, deste saber – sendo responsáveis pela
contaminação de um número relevante de novos pesquisadores e profissionais
militantes.

Da mesma forma, é importante também pontuar que esse dissenso parece


encontrar um abrigo significativamente maior no âmbito do urbanismo
contemporâneo. Entendemos que mesmo nas disciplinas voltadas a proposição
de projeto arquitetônico existe a possibilidade da inserção de temáticas
comprometidas com novas estéticas da existência. Fora da academia,
personagens comprometidos com esta luta também são notados, alguns com
maior popularidade, como Lina Bo Bardi, Carlos Nelson, Sérgio Ferro, e o
coletivo europeu do Team X (responsável pela mais forte crítica interna aos
dogmas modernistas na metade do século passado).
68

MOVIMENTO 2. MICROPLANEJAMENTO URBANO

Neste segundo movimento de nosso trabalho exploraremos autores que


consideramos expoentes do que se entende como microplanejamento urbano,
como estes entendem em suas produções este conceito “em aberto”. São
estes autores a jornalista Jane Jacobs, o arquiteto Jan Gehl e os coletivos
denominados Urban Designers. Nosso intuito com este movimento, precisamos
deixar claro, não é o de traçar um denominador comum para o conceito. Mas
esboçar pela práxis quais são os possíveis contornos, mesmo que
incongruentes, que conformam hoje as principais características que compõe o
cosmo do microplanejamento urbano.
69

2.1 O paradigma do Urbanismo na cidade da Revolução Industrial

Para iniciarmos este movimento que trata das principais vertentes do


microplanejamento urbano é necessário considerar minimamente – ou de
maneira resumida, já que este não é o foco deste trabalho e tal pesquisa pode
ser encontrada em diversos autores –, o processo de urbanização e as
problemáticas advindas deste. Mesmo que o tema do microplanejamento possa
ser considerado como uma discussão contemporânea, devemos entender a
cidade e o urbanismo (as práticas urbanísticas postas em ação) num contexto
histórico, da sociedade ocidental e como produto do sistema capitalista e as
circunstâncias do surgimento deste tema. A avaliação que faremos, assim
como a perspectiva tomada aqui, tem o foco sobre a modificação do paradigma
da construção e planejamento da urbe, na forma de acepção das práticas de
construção da morfologia e as consequências destas sobre a experiência da
vida nas cidades com o advento da revolução industrial e do urbanismo
moderno. Entendendo esta como marco responsável pela mudança de
paradigma urbano e urbanístico que faz saltar hoje, mas num movimento que
começa a ser ouvido e criar interferências em 1961 com Jane Jacobs, o que se
esboça, em suas diferentes vertentes, como microplanejamento urbano.

Como se ensina, na formação dos arquitetos urbanistas, dentro das disciplinas


referentes a história da AU através dos períodos históricos, antes da cidade
que se edifica para abrigar a revolução industrial, a conjunção espacial se dava
de maneira orgânica, com construções sem afastamento umas das outras e o
traçado consideravelmente menos retilíneo e em muitos casos ainda
labirínticos. Falamos da cidade que se desenvolveu a partir do traçado
medieval e que apesar das escolas e teorias dos períodos que se seguiram,
sobretudo no renascimento, nas artes e na AU, ainda assim seguiu tendo como
característica mais marcante em sua paisagem a irregularidade de uma forma
de edificação bastante distante de qualquer ortogonalidade racionalista. São
incontáveis as cidades, sobretudo na Europa que ainda abrigam bairros deste
período – um exemplo sendo o Bairro Gótico da cidade de Barcelona, na
Espanha. No cosmo brasileiro, a cidade de Vitória, capital do Espírito Santo,
guarda ainda parte de tal traçado colonial que resistiu, mesmo com a
70

substituição das edificações originais por edifícios protomodernos e modernos,


e que manteve em um pequeno território de ruas, ladeiras e ruelas, algumas
acessíveis somente à pé, o registro da antiga cidade dos tempos do Brasil
Colônia. Assim como o centro antigo de Salvador, na região do Pelourinho. Tal
forma de edificar as cidades partia de um planejamento quase rústico, feito
antes a partir do olhar e tendo como balizadores os elementos que constituíam
o ambiente existente, e ao mesmo tempo com limitações de um fazer bastante
artesanal e materiais limitados. Não afirmamos que existia a ausência de um
planejamento, mas que as propriedades técnicas destes e mesmo a
capacidade de efetivação destes se coloca aquém das forças cotidianas,
insurgentes e artesanais.

Seria possível, sem muita audácia, dizer que o processo de tal crescimento
urbano encontrava muito mais paralelos com a construção das favelas do
contemporâneo como aponta a Professora Paola Jacques, em Estética da
Ginga (2007), que à forma de urbanização da cidade da revolução industrial.
Isto porque a processualidade construtiva indicada nas favelas e periferias pela
autora, fora da legalidade e do planejamento urbano oficial, se deu, e ainda se
efetiva, a partir de modos construtivos artesanais, com materiais limitados, e
como dito antes, sem os especialismos técnicos e a legislação de edificação da
construção legal, tendo como consequências formais um traçado orgânico e
labiríntico. Ou seja, territórios onde não há a efetivação de um traçado vindo do
pensamento urbanístico ministrado em escolas de AU.

Não é demais considerar que o marco da industrialização que conforma o


grande impacto do pensamento racionalista do movimento moderno, e
sobretudo em sua vertente no urbanismo, se efetiva em tempos diferentes, na
Europa, nos Estados Unidos e demais países desenvolvidos, e mais
tardiamente nos país em desenvolvimento, como no caso brasileiro. Contudo
sempre ligado, como condição sine qua non, de maneira direta ou indireta, ao
estabelecimento do desenvolvimento industrial nestes países e suas principais
cidades.
71

Como se sabe as primeiras grandes reformas urbanas a serem tornadas


modelos de urbanização, e que seguem sendo notas importantes nas escolas
de AU no contemporâneo39, se dão em Paris com Hausmann e em Barcelona
com Cerdà, mas pode-se dizer que tal movimento de transformação urbanística
que inicia a formação da cidade da revolução industrial, se alastra pelas
principais cidades europeias e americanas entre o fim do século XIX e o
começo do século XX, marcados pelo êxodo de trabalhadores campesinos que
irão constituir a mão de obra das industrias. Falamos então de um movimento
urbano que se caracteriza por um adensamento populacional nunca visto, de
multidões de pessoas, trabalhadores proletários, subempregados e
desempregados, crianças e adultos, que se aglomeravam, interagiam,
negociavam com pequenos comerciantes, perambulavam e habitavam
intensamente as ruas. Ou seja, um espaço ocupado basicamente por pessoas,
de uso primordialmente pedestrial, e que, em segundo plano, trafegavam
veículos de tração animal em baixa velocidade. Um espaço marcado por uma
grande pobreza, e condições de higiene bastante precárias e, contudo, com
forte intercambio social.

Neste exato momento em que multidões ocupavam as vias vemos o


surgimento e o remodelamento de saberes, com a função de dar suporte à esta
cidade, com o intuito de manutenção de uma determinada ordem pública e
estrutura hierárquica social. Como exemplos destes saberes podemos citar a
estatística, a medicina, o direito, a pedagogia, assim como a arquitetura e o
urbanismo, dentre outros. É também neste período que surge a força policial,
como conhecemos hoje, para a contenção dos distúrbios causados pela
multidão e reassegurar o comprimento das leis desta cidade industrial.

O urbanismo neste período se reconfigura e se conforma como um saber ainda


mais complexo em nome de uma forma especifica de progresso. As condições
insalubres, que tiveram como consequência a explosão de endemias, ocorridas
pela falta de estrutura da cidade ao abrigar um crescimento populacional tão
39
Como já foi discutido antes dentro do primeiro movimento de nossa tese, a formação tecnicista dos
cursos de AU discutem as primeiras grandes reformas urbanas dentro de uma crítica bastante limitada,
onde as questões sociais, e a verdadeira limpeza social efetivada por estas reformas simplesmente não
são discutidas.
72

exorbitante fez nascer a engenharia sanitarista e o movimento higienista, da


qual surge a associação do urbanismo aos saberes médicos. Este é o
momento exato em que se fixaram jargões da saúde que ainda hoje são
amplamente utilizados e a analogia da construção da cidade como organismo
vivo pelos urbanistas40. Embora o problema de falta de infraestrutura e da
insalubridade urbana fossem temas de atenção necessárias aos urbanistas e
gestores urbanos da época, através desta justificativa, intenções perversas de
segregação, hierarquia social e especulação imobiliária começaram a entrar
em cena na cidade industrializada.

Ainda devemos pontuar, voltando mais uma vez ao cosmo brasileiro, que as
reformas urbanas higienistas relativas ao começo do século XX, apesar de
importantes, e que tem como expoente as reformas que se deram no Rio de
Janeiro, então capital brasileira, com os planos ministrados por Alfred Agache e
Pereira Passos, representaram um pequeno avanço ao compararmos com o
boom do processo urbano industrial (tardio em comparação às cidades
europeias e americanas) incentivado pelo Estado a partir da década de 30,
quando vemos o começo da mudança do epicentro econômico de agrário
exportador para industrial, e que se acelera no pós guerra (do fim da década de
40 ao até o início dos anos 80). Fato que é denominado pelo sociólogo
Florestan Fernandes como “revolução burguesa no Brasil” (MARICATO, 2001).
É a partir daí que vemos a população urbana brasileira saltar
exponencialmente de 26,3% em 1940 para 81,2% em 2000. Para

40
Em nossa dissertação (PRUCOLI, 2011, p.27), apresentamos o tema da analogia médica dentro do
saber urbanismo. Desta destacamos a seguinte citação inspirados por Henri Lefebvre:
“Henri Lefbvre (1999), no livro A Revolução Urbana, ressalta um ponto que parece passar despercebido
por grande parte dos arquitetos e engenheiros que estudam e edificam a cidade: a cidade em suas
expansões e retrações obedece a outras leis que divergem inteiramente da simetria desse corpo
perfeito. O modo de produção do capital é que produz nosso meio, fazendo antes uma cidade-
capitalista, ou uma “sociedade burocrática do consumo dirigido” (cidade da imagem, cidade do
consumo, cidade do medo, cidade da hierarquia, cidade do trabalho e do desemprego...). A cidade
urbana, de uma sociedade urbana, seria, então, algo a ser ainda definido, um processo, “mais que um
fato consumado, a tendência, a orientação, a virtualidade”. Os inchamentos e tumores se tornam então
efeitos da imersão da cidadecorpo em um modo de produção da vida em uma escala global. Não seria
insensato dizer que o próprio discurso dos urbanistas, surdo às questões ético-políticas, por sua vez,
advindo da instituição, do poder-saber, nada ou muito pouco polifônico, da arquitetura e do urbanismo,
ainda fortemente elitista, reatualiza modos de produção de tendência hegemônica. A cidade não é para
todos, e essa é, ainda, uma luta que dá nome a outro livro de Lefbvre: O direito à Cidade (LEFEBVRE,
2001)”.
73

considerarmos a história do processo urbano brasileiro, chamado pela


Professora Ermínia Maricato de “tragédia urbana brasileira” devemos ressaltar
o fato histórico da escravidão no Brasil, de uma sociedade escravista e uma
cidade escravista, como cita Carlos Vainer41 (2015), além do intenso êxodo
rural advindo da crise agrária e que mantém, e aprofunda, como característica
histórica de nossas cidades a incapacidade de dar as mínimas condições de
dignidade àqueles que não fazem parte de uma pequena elite burguesa,
falamos de uma das sociedades mais desiguais do mundo ocidental, e logo de
uma cidade marcada pela segregação e um abismo muito grande entre
favorecidos e desfavorecidos.

A inserção do automóvel, embora tardia, deu-se nestas cidades do mundo


ocidental de forma paulatina, mas com um impacto brutal. Os primeiros carros
a circularem na cidade industrializada tinham um valor elevado, e cruzavam as
ruas compartilhando-as com a multidão de pedestres, e os demais veículos de
tração animal (não sem conflitos e acidentes fatais). Somente a partir da
década 10, nos países desenvolvidos, e a partir da década de 40, no Brasil,
com a produção industrial e o barateamento destes, ou seja, a maior
possibilidade do acesso do carro como bem de consumo, que faz com que uma
legislação automobilística fosse criada e se estabelecesse. E assim vemos a
rua ser tomada dentro dos meandros legais das leis, bem como dos novos
traçados urbanísticos, das pessoas para dar lugar aos carros. É importante
pontuar que o carro era visto neste momento como um ícone do progresso em
relação não somente a capacidade de deslocamento, mas também como o
substituto ideal aos veículos de tração animal que tinham um grande peso na
questão da higiene pública. Isso porque além dos cavalos ocuparem muito
espaço, em comparação aos veículos motorizados e sua capacidade de carga,
os excrementos produzidos por estes animais constituíam grande parte do
problema das condições de higiene. Na cidade de Nova Iorque, do começo do
século passado, historiadores contabilizam a assustadora quantidade de 1,3
milhões de quilos de esterco e 250 mil litros de urina eram depositados

41
Entrevista denominada “A Crise Urbana Brasileira” com professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, Carlos Vainer. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=BK_KG35rxuI
74

diariamente nas ruas e praças da urbe. Indo além, tal quantidade de


excrementos atraia insetos que ajudavam a perpetuar doenças. E eram
comuns na paisagem urbana deste momento histórico carcaças de animais
mortos que eram simplesmente abandonados nas ruas.

Vemos, neste mesmo período de tempo do século passado, uma série de bens
de consumo produzidos em escala industrial como a geladeira, o ar
condicionado, o fogão a gás, a televisão, mudarem o estilo de vida desta
sociedade urbana. Se as ruas eram então, no início deste processo
amplamente ocupada pelos pedestres, e onde boa parte da vida pública se
efetivava, em meados do século XX os carros passam a ocupá-la e a ter um
papel primordial nos grandes planos urbanísticos. Vias expressas são
implantadas rasgando o tecido urbano para que os carros ganhem espaço de
deslocamento sobre áreas consolidadas nas quais viviam os operários mais
pobres. Tais comunidades menos favorecidas são deslocadas para longe dos
centros urbanos, foco de grande interesse da especulação imobiliária. Vemos
um crescente esvaziamento dos espaços públicos em decorrência de uma
lógica domiciliar cada vez mais extrema e em contrapartida uma
“endemonização” das áreas comuns da urbe e seus habitantes que chega aos
dias de hoje impulsionadas por um aparato midiático muito forte e de grande
alcance (PECHMAN, 2009).

Se a cidade que antecede a indústria era construída por um foco citadino,


artesanal, orgânico em uma escala humana, vemos um outro extremo se
consolidar na cidade industrial, com a problemática e a logística que vem como
respostas a tal grandeza de problemas, aliadas, suportadas e incentivadas pela
indústria automobilística, petroquímica, por uma elite de grandes bancos,
empreiteiras e da especulação imobiliária. O fazer urbanístico e a legislação
urbanística se tornam extremamente técnicos e focados nesta grande escala
de trabalho das grandes intervenções. A cidade torna-se desenho logístico em
mapas de grandes escritórios e agências gestoras com a finalidade de atender
aos interesses financeiros de uma minoria abastada.
75

No Brasil, após o período da ditatura militar, marcado por um modelo de


planejamento centralista autoritário e tecnocrata (VAINER, 2015), vemos, a
partir de 1990 até 2000, uma disputa entre as forças democráticas, de
esquerda, que tinham o intuito de democratizar o Estado, o planejamento
urbano e a cidade; e as forças neoliberais, que nascem da elite burguesa, que
tinham o intuito de reduzir a intervenção do Estado para que o mercado
pudesse se estabelecer como força única na dinâmica urbana, ou seja, com a
submissão da cidade às forças de mercado.

É neste momento histórico que vem à tona, pela batalha das forças
democráticas, de maneira processual, possibilidades interessantes de uma
atuação urbana menos perversa nas cidades brasileiras. Falamos então da
Constituição Federal de 1988 que pela primeira vez apresenta um capítulo
sobre a questão urbana – o que é uma oficialização do fato de que então temos
uma população brasileira tornada e assumida como majoritariamente urbana
urbana. O direito do uso capião urbano (a oficialização da posse de
propriedade aqueles que moram em terra sem contestação e de maneira
pacífica por mais de cinco anos) é um importante avanço na defesa de grande
parte das comunidades que habitam favelas e áreas periféricas contra a
expulsão e remoção destas dos interesses da especulação imobiliária, como
aconteceu amplamente no período da ditadura. Com isso fixa-se a idéia que
estes não devem ser removidos, mas antes urbanizados, acrescidos com
infraestrutura e condições dignas para seus moradores, como saneamento
básico e transporte público acessível. Outra ferramenta importante que advém
deste momento é o orçamento participativo e os planos diretores participativos
onde comunidades pela primeira vez ganham poder de intervir na gestão e na
legislação da edificação da cidade.

Porém, do lado das forças neoliberais, vemos a deformação e o mau uso das
ferramentas democráticas e da legislação, com o apoio dos gestores
municipais e a cooptação de lideranças comunitárias. Assim como vemos a
venda de novos modelos de urbanização vindos do “primeiro mundo”, em
especial o “modelo Barcelona” que demarca o que Vainer chama de City
Branding (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000), onde na aposta da criação
76

de cenários espetaculares em zonas, sob a perspectiva da especulação,


degradadas, que levam em si o mote de impulsionar uma valorização
imobiliária estratosférica, a atração de fluxos turístico e de capital internacional.
Estamos, então, discutindo uma concepção onde a cidade não é apenas o
anteparo para o jogo capitalista, mas torna-se a própria cidade um produto, ou
mesmo uma empresa, na disputa internacional por investimentos. Vale
ressaltar ainda que o modelo de planejamento urbano defendido pelas forças
neoliberais, o planejamento estratégico, é uma importação, ou uma adaptação
do planejamento empreendedor e empresarial coorporativo, surgido na escola
de comércio de Harvard (VAINER, 2015) no fim da décade de 70, início dos
anos 80. Plano estratégico que vem a serviço do mercado urbano e da
valorização capitalista da cidade.

No embate destas forças vivemos o contemporâneo do urbanismo, com uma


aparente vitória do lado neoliberal, com práticas perversas que ainda seguem
ocorrendo com aprovação das instituições gestoras da cidade. E ainda da
constituição do urbanismo como instituição produtora de projetistas urbanos
tecnicistas onde a concepção dos projetos que intervém na paisagem das
cidades passam de maneira hegemônica pela espetacularização e
gentrificação dos espaços.

Até este ponto não tocamos na questão dos paradigmas do urbanismo


moderno, seus dogmas estabelecidos por Le Corbusier e cia dentro do
International Style. Sua ausência se justifica porque mais que as críticas aos
caminhos propostos pelo modernismo urbano (que veremos de maneira um
pouco mais aprofundada à frente nos textos onde apresentamos nosso olhar
sobre Jane Jacobs, Jan Gehl e suas respectivas obras) focamos sobre sua
aplicação e seu fazer efetivado. Importa mais entender a quem serve tal
movimento, suas aplicações e suas tecnologias e táticas. Diremos ainda que
pensar sobre tal ponto de vista nos leva a ultrapassar o pretenso antagonismo
entre modernidade e pós modernidade no urbanismo e discordar, dentro deste
campo urbano, com o antropólogo Bruno Latour (1994) e propor, que dentro do
saber AU, nunca deixamos de ser modernos no que tange o cliente e as
77

desastrosas premissas e consequências do sentido tomado e a cidade que de


fato temos ajudado a edificar.
78

2.2 Jane Jacobs: além da crítica aos modernos

Talvez nos tenhamos tornado um povo tão displicente, que não mais nos
importemos com o funcionamento real das coisas, mas apenas com a
impressão exterior imediata e fácil que elas transitem. Se for assim, há pouca
esperança para nossas cidades e provavelmente para muitas coisas mais em
nossa sociedade. Mas não acho que seja assim. (JACOBS, [1961] 2000 p.06)

A importância de Jane Jacobs e seu livro Vida e morte de grandes cidades


para o urbanismo muitas vezes é subestimada, e não são raras as falas de seu
ultrapassamento por teorias mais contemporâneas e mesmo que o trabalho
desta autora se encontra embebido de uma aura nostálgica. Crítica, que surge
de maneira clara, por exemplo, na fala do reconhecido sociólogo americano
Richard Sennett, no livro Vida Urbana e Identidad Personal:

Os intelectuais são propensos a romantizar o passado, da forma que quando se


fala de algo que está morrendo historicamente se quer dar a entender que o
passado morto era melhor. Está é uma cegueira peculiar e de um pensamento
muito utópico; posto que que o passado era melhor que o presente, o futuro
deve restabelecer o passado. Não é esta minha intenção: o que se pode
aprender da condição da vida urbana passados cinquenta ou setenta anos é
uma perspectiva sobre o que vemos ausente hoje, não um guia de como temos
que construir as cidades do futuro. Assim posto, minha forma de pensar é
discrepante a forma de Jane Jacobs, em seu forte e atrevido livro The Death
and Life of Great American Cities, pois ela tem uma idéia do passado de
pequenas e intimas relações entre vizinhos dentro da vida urbana e vê estas
relações suscetíveis a se restabelecerem. Esta reanimação [...] nunca poderá se
dar, necessitamos encontrar alguma condição de vida urbana apropriada para
uma era opulenta e tecnológica42. (SENNETT,[1970] 2001, p.95,97)

A crítica de Sennett à Jacobs não é desprovida de sentido, e voltaremos a esse


ponto mais adiante neste texto, contudo ainda que seja uma crítica bastante
sintética, no que toca esta obra, ainda é respeitosa e elegante mas tem seu

42
Tradução nossa para o texto em espanhol:
Los intelectuales son propensos a romantizar el pasado, de forma que cuando se habla de algo que está
muriendo históricamente se quiere dar a entender que el pasado muerto era mejor. Ésta es una ceguera
peculiar de mucho pensamiento utópico; puesto que el pasado era mejor que el presente, el futuro
debe restablecer el pasado. No es ésta mi intención: lo que puede aprenderse de la condición de la vida
urbana de hace cincuenta o setenta años es una perspectiva acerca de lo que encontramos a faltar hoy,
no una guía de cómo hay que levantar las ciudades en el futuro. De este modo, mi forma de pensar
discrepa de la de Jane Jacobs, en su fuerte y atrevido libro The Death and Life of Great American Cities,
pues ella tiene del pasado la idea de pequeñas e íntimas relaciones entre vecinos en la vida urbana y ve
estas relaciones susceptibles de restablecerse. Esta reanimación *…+ nunca podrá ser; necesitamos
encontrar alguna condición de vida urbana apropiada para una era opulenta y tecnológica.
79

foco muito especifico sobre a defesa que Jacobs efetua na disputa ferrenha de
modos de vida antagônicos, em voga naquele momento histórico (de meados
do século passado). Nos referimos à promessa da “vida urbana moderna” em
oposição às relações mais intimas e próximas de um conceito de vizinhança
advindos da protomodernidade dos subúrbios e defendido pela autora. Onde a
tecnologia e os aparatos tecnológicos tão comuns ao cotidiano, ainda não
faziam parte da vida e as formas subjetividades eram muitíssimo menos
movediças – para usar o termo caro à Manuel Delgado43 - discussão pleiteada
por Sennett já na década de 70 e de maneira inquestionável em nossos dias.
Porém não é somente desta problemática que trata a obra de Jacobs como
discutiremos neste ponto de nosso trabalho.

Se a crítica de Sennett pode ser considerada elegante, há muitas falas menos


respeitosas e mesmo referenciadas, que tendem a inferiorizar ou questionar a
obra de Jacobs nos dias presentes, falas que quase sempre partem de
profissionais da AU, que ainda levam em si a herança de uma “vontade
modernista” de constituir “a voz do especialismo”, e propor este saber,
sobretudo ao Urbanismo, como saber-poder de dominação exclusiva de tais
especialistas – muitas vezes como linguagem técnica não compartilhável com a
sociedade, o que alguns jocosamente chamam de “urbanês”.

Jacobs, uma estadunidense, jornalista autodidata, e casada com um arquiteto,


se envolveu visceralmente com a problemática urbana ao militar contra o
avanço das highways de Robert Moses no Greenwich Village, onde morava, e
ao lançar seu livro, no ano de 1961. Ousaremos afirmar que esta autora
alcança muito mais mérito que os arquitetos europeus do Team X que também
foram críticos ferozes do International Style dentro das discussões dos CIAMs
(Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), no período de 1947 à 1953.
A superioridade da crítica de Jacobs, no alcance desta, dá-se exatamente por
falar de um lugar exterior ao suposto tecnicismo, e por ter como público alvo
não somente os arquitetos e urbanistas, mas o cidadão médio, que assim foi
capaz de levar uma crítica poderosa, simples, criativa, original, instigante e

43
Em referência ao já citado livro Sociedades Movedizas
80

principalmente acessível ao grande público. Este acesso às informações


trazidas por Jacobs potencializou a conscientização, a politização e a
mobilização dos citadinos quanto ao destino dos espaços da cidade, até então
em poder incontestável dos especialistas. O inimigo de Jane Jacobs,
encarnado na figura do engenheiro Robert Moses, é o processo de
modernização tal como se efetivava na cidade de Nova Iorque e em outras
grandes cidades dos Estados Unidos. Suas pontuações contra o urbanismo
modernista, ou o planejamento e o desenho urbano ortodoxo – como coloca
em seu livro –, se dão pela via do empirismo, da observação, da escuta e da
experiência, uma etnografia de linguagem jornalística e, ao mesmo tempo,
apaixonada, o que possibilitou atingir, de tal maneira, um público, como dito,
que está para além dos profissionais da AU, se tornando uma grande
referência no tema do urbanismo, para a AU, para todas as ciências humanas
e todos aqueles que se aproximam do tema da edificação de “cidades”.

Voltando às críticas sofridas à obra de Jacobs, sob nossa perspectiva, e sobre


a influência do tema de nossa tese – o microplanejamento urbano –, o tema
central do livro Vida e morte de grandes cidades parece ter sofrido uma
diminuição de sua importância. Falamos de uma redução de seu conteúdo ao
qual se entende que tudo, ou o que interessa nesta obra, se resume à crítica
ao urbanismo moderno e a bandeira da diversidade de usos na cidade. E por
mais que seja impossível não observar a ferocidade e a objetividade dos
ataques desta autora ao movimento que suplantava e remodelava as grandes
cidades estadunidenses em seu tempo, outros aspectos importantes parecem
passar despercebidos de uma esmagadora maioria de leitores e comentadores
quando se expõe o conteúdo desta obra. Não acusamos uma hermenêutica ou
uma codificação contida neste, até porque trata-se de um livro claro, e a
claridade, a legibilidade, como já dito, é uma de suas grandes qualidades.
Então a suposição que nos surge é a de uma certa incapacidade de percepção,
ou mesmo uma má vontade, ou de excessiva luz que se lança sobre os pontos
já citados (a crítica aos modernos e a exaltação da diversidade urbana). Talvez
sob a orientação que rege nosso interesse, e a partir de nossa pressuposição
de que Jacobs tem um papel preponderante sobre nosso tema, do
planejamento em escala humana, assim como a captura de elementos que nos
81

ajudem a desenhar nosso conceito – problema maior de nossa tese – algo


tenha então saltado a nossos olhos. Mas antes é importante passar pelo óbvio.

O urbanismo modernista criticado por Jacobs tem como alvo principal os ideias
contidas na “Cidade Jardim” de Ebenezer Horward (de 1898), na Ville Radieuse
de Le Corbusier (década de 1930) e no movimento “City Beautiful” de Daniel
Burnham (1893), que constituíam as diretrizes para a “anti-cidade”, os mega
projetos de re-urbanização norte americanos com suas segregações de
funções, uso intensivo dos automóveis e com núcleos residências voltados
para si. A autora problematiza e desmonta as justificativas da instauração da
cidade modernista de Moses em seu denegrir da situação então existente nos
bairros proletários de Nova Iorque (e demais cidades citadas no livro) com a
propagação de narrativas da riqueza das trocas sociais, do uso intensivo dos
espaços públicos, da noção de comunidade e o sentimento de coletividade que
haviam nestes territórios e como tal exposição de uma concreta rede de
vizinhança ajudava a combater a violência e o crime, tanto quanto oferecer e
manter uma variedade de funções e serviços (oferecidos por pequenos
negócios locais com fortes vínculos ao território e seus habitantes) que
tornavam tais locais algo muito distante da idéia de “tumores a serem
extirpados” pela máquina da cidade modernista.

O Modernismo, ou International Style, propôs uma forma racionalista de ver e


agir sobre a cidade tendo como base diretrizes de separação, segregação de
usos (trabalho, residência, lazer...), as superquadras, os free standing buildings
– edificações que se suportam sozinhas, criadas de maneira independente,
descoladas de seu entorno –, a cidade do múltiplo passa ao singular, “cidades
de edifícios”, onde os planos eram efetuados nas grandes escalas, da
monumentalidade da arquitetura e urbanismo modernos. E ainda como afirma
Paola Jacques:

O urbanismo enquanto campo disciplinar e prática profissional


surge exatamente com o intuito de transformar as antigas
cidades em metrópoles modernas, o que significava também
transformar as antigas ruas de pedestres em grandes vias de
circulação para automóveis. (JACQUES, 2004)
82

Segundo Jane Jacobs a monotonia e a assepsia causada por este tipo de


urbanização ignora e reprime a vitalidade da cidade real, ou convencional,
encontrada exatamente pela diversidade de usos e os laços sociais
decorrentes do espaço como encontro de multiplicidades. Laços estes que são
uma distinta característica da paisagem protomoderna e proletária. É
interessante frisar que diferentes autores, de diferentes formações em
diferentes temporalidades encontram paralelismo em suas caracterizações do
ambiente urbano, não dos espaços de cortiços e subúrbios (e contudo não
faremos uma apologia cega e injustificada à situações de miséria, falta de
infraestrutura básica e condições mínimas de dignidade humana), mas sim
caracterizações do espaço urbano das grandes avenidas, boulevares nas quais
se encontravam o escoamento de um imenso capital humano em meio às
pomposas edificações das grandes instituições financeiras, comerciais,
administrativas, sob vigilância das forças de contenção e coerção de massas.

Vejamos três citações, respectivamente escritas pelo filosofo alemão Friedrich


Engels (de meados do século XIX), o paisagista brasileiro Burle Marx (década
de 70) e o sociólogo espanhol Manuel Delgado (final da década de 90):

“[...] estas pessoas cruzam-se apressadas como se nada tivessem em comum,


nada a realizar juntas, e a única convenção que existe entre elas, é o acordo
tácito pelo qual cada um ocupa sua direita no passeio, a fim de que as duas
correntes da multidão que se cruzam não se constituam mutualmente em
obstáculo; e, contudo, não vem ao espírito de ninguém a idéia de conceder a
outro um olhar sequer. Esta indiferença brutal, esse isolamento insensível de
cada indivíduo no seio de seus interesses particulares, são tanto mais
repugnantes e chocantes quanto maior é o número desses indivíduos
confinados neste reduzido espaço.”44 (ENGELS, [1845] 1975, p.36)

“Somos multidões de anônimos que não convivem, mas se confrontam


diariamente, com cada vez maior agressividade, para conquistar um espaço
para morar, para se locomover, para se divertir. E para ter um pouco de paz,
silêncio, tentamos ignorar os vizinhos, tramcamo-nos em casulos. Não
desfrutamos mais a vida urbana. Há cada vez menos o que desfrutar.”
(MARX,1998, p.87)

“Nos espaços urbanizados os vínculos são preferencialmente frouxos e


forçosos, os intercâmbios aparecem em grande medida não programados, os
encontros mais estratégicos podem ser fortuitos, domina a falta de certeza

44
83

sobre interações iminentes, as informações mais determinantes podem ser


obtidas por casualidade e o grosso das relações sociais se produz entre
desconhecidos, ou conhecidos „de vista‟.”45 (DELGADO, 1999, p.23,24)

Ao por lado a lado tais caracterizações de Friedrich Engels, Burle Marx e


Manuel Delgado46, fica claro que as análises das consequências da
urbanização modernistas na cidade habitada por Jacobs não são infundadas, e
ainda que são válidas em muitos espaços urbanos cotidianos.

Como posto por Jacobs há por parte dos arquitetos uma dificuldade muito
grande de perceber o espaço não somente como espacialidade, mas como
anteparo para tramas sociais complexas, e por vezes de uma riqueza que
deveria ser melhor explorada. Delgado em seu livro Sociedades movedizas
(2007), colabora com tal ideia e a traduz a partir de sua antropologia das ruas
(antropología de las calles) de forma mais direta sobre tal obscura legibilidade
e a incapacidade dos espaços projetados de alcançarem por si determinada
conjunção de sociabilidade. Dirá então:

[...] a idiossincrasia funcional e sociológica do espaço urbano não está – não


pode estar – preestabelecida por um plano, não pode responder
mecanicamente às direcionalidades e aos pontos de atração prefigurados pelos
projetistas, posto que resulta de um número imenso e imensamente variado de
movimentos e ocupações transitórias e imprevisíveis muitas delas, que dão
lugar a mapas moveis e sem contorno. Sociabilidade difusa, segmentada de
formas mínimas e inconclusas de interconhecimento, âmbito em que se
expressam as formas ao tempo mais complexas, mais abertas e mais fugazes
de convivência: o urbano, entendido como tudo o que na cidade não pode
deter-se nem cristalizar. O viscoso, infiltrando-se por entre os interstícios do
sólido e negando-o. Um universo derretido (2007, p.13).

E ainda, sobre tal vontade advinda por grande parte dos projetistas e suas
proposições, que de maneira inocente e equivocada, tal qual muitos dos
arquitetos modernos o fizeram, desastrosamente abstraindo de suas equações
projetuais tramas sociais preexistentes, Delgado disserta:

45
Tradução nossa para: COLOCAR TEXTO ORIGINAL
46
Poderíamos ainda citar Baudelaire, e seu poema “A une Passante” do livro Les Fleurs du Mal [1857],
que já foi utilizado à exaustão em artigos que versam sobre o olhar do poeta francês sobre a Paris em
transformação pelas mãos de Haussmann e seus bulevares. O poema de Baudelaire já atentava para a
brevidade e a efemeridade das relações advindas da cidade moderna. “Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais
où je vais”.
84

“A empresa que assume o projetista é a de trabalhar a partir de um espaço


essencialmente representado, ou melhor, concebido, que se opõe às outras
formas de espacialidade que caracterizam o labor da sociedade urbana sobre
si mesma: espaço percebido, praticado, vivido, usado, sonhado... Sua
pretensão: mutar o escuro em algo mais claro. Sua obsessão: a legibilidade.
Sua lógica: a de uma ideologia que se quer encarnar, que aspira a converter-se
em operacionalmente eficiente e alcançar o milagre de uma inteligibilidade
absoluta”. (DELGADO, 2007, p.14)

Antes de adentrarmos em nosso foco especifico do que na obra de Jacos mais


nos toca, faz se necessário deixar claro algumas advertências sobre a leitura
desta obra. Um primeiro ponto seria a temporalidade que nos distancia, através
dos mais de 50 anos de sua publicação original, a interferência de questões
que para Jacobs eram inexpressivas ou inexistentes, como por exemplo a
globalização – a integralização mundial do capitalismo –, e os avanços
tecnológicos responsáveis pelos intensos fluxos de comunicação. Podemos
inclusive pontuar que para alguns autores e pesquisadores, segundo algumas
vias dentro do pensamento dedicado aos espaços virtuais contemporâneos –
entendendo tais espaços etéreos como produto destes avanços –, há uma
concepção negativa quanto às tecnologias, já tão naturalizadas, que criam os
“espaços de convivência virtuais”, no que tange o empobrecimento da
experiência e das trocas na urbe. Tais interferências, e ainda outras,
culminaram em mudanças sensíveis nas relações do socius.

É necessário dizer também que a crítica dirigida diretamente aos arquitetos


urbanistas, como possuidores de uma suposta autonomia projetual é deverás
naïve, e discutível. Não que a AU como instituição não seja merecedora de
muitas e severas críticas sob muitos e amplos aspectos, como já fizemos
dentro deste trabalho – e é exatamente o que aqui nos motiva quanto trabalho
de pesquisa. O Movimento Moderno e seus dogmas urbanos foram criticados
dentro dos próprios CIAMs e culminaram em seu fim. Porém e mesmo sobre o
ângulo de seu tempo e território é tanto ou mais importante edificar uma
problematização mais ampla e profunda, uma vez que Jacobs não aborda
claramente que tais profissionais têm suas propostas severamente subjugadas
aos gestores políticos e às forças financeiras por trás destes.
85

Não seria ousadia afirmar que é uma tarefa com certo grau de dificuldade
perceber, compreender a complexidade da conjunção de forças em jogo no
momento histórico em que a cidade moderna surge e se espraia, e não cair em
reducionismos. Podemos dizer que mesmo no cotidiano tais reducionismos
ante um objeto de ampla e profunda legibilidade como o objeto urbano ainda se
fazem presentes. Contudo, e voltando a Jacobs, entendendo que a crítica
destilada por esta autora, não pode ter como alvo único o papel que interpreta
Robert Moses, engenheiros, arquitetos e urbanistas e que por consequência
ausenta de responsabilidade a especulação imobiliária, a indústria
automobilística, siderúrgica e petroquímica, as instituições bancarias dentre
outros atores e forças maiores existentes que reduzem Moses, assim como
outros arquitetos e engenheiros, a um simples peão dentro de um jogo muito
maior. Jogo este que reduz arquitetos e urbanistas à um papel de projetistas
reféns de programas e designs pré-instituídos à “moda do momento”, e a
própria AU como instituição à um saber de tão pouca profundidade crítica no
que toca seu impacto no socius. Tal pensamento crítico, de maior
complexidade, talvez tenha estimulado a pesquisa e publicação dos livros
seguintes de Jacobs: Economy of Cities (1969) e Cities and the Wealth of
Nations (1984).

Sob a perspectiva da subjetivação torna-se necessário problematizar também a


naturalização da questão, tão cara à teoria marxista, do axioma da propriedade
privada da terra, sua transformação em objeto de consumo, que não efetiva
sua posse à grande parcela da população. Naturalização que se institui a partir
do não entendimento e da negação do direito à cidade e que desta soma-se
como raiz da problemática conjunção do status quo da gestão das cidades.

Outra advertência necessária seria sobre o foco do livro, que em seu título
original já deixava claro que se versava sobre a realidade estadunidense, The
death and life of great american cities, que em sua tradução para o
português teve amputado seu “recorte” nacional dando margem ao errôneo
entendimento uma crítica generalista a diferentes realidades urbanas. Sob esta
última advertência deve-se pontuar que o modelo de reestruturações urbanas
86

onde bairros inteiros são substituídos por grandes empreendimentos47, são


seguidos em outros países, inclusive no Brasil (especialmente em São Paulo e
Rio de Janeiro), foram e são “importados e incorporados” em sua similaridade
perversa desde a década de 70 até nossa atualidade – o que denota a
importância desta obra aos dias que seguem.

Indo além da crítica, a autora promove também um belo discurso em defesa,


como já dito, da convivência da diversidade sob vários aspectos –
arquitetônicos, sociais-econômicos, culturais, da segurança pública, etc –, da
vitalidade dos espaço urbanos, da importância dos elementos que constituem
os espaços públicos – com especial dedicação às calcadas –, da sobreposição
de funções e do estabelecimento de redes de vizinhança para a formação de
laços comunitários de ajuda mútua, do senso de coletividade. Tais laços são
capazes segundo a experiência empírica de Jacobs de aumentar a segurança,
e impulsionar uma autogestão democrática, e ainda que a vivência informal das
ruas é capaz de consolidar e impulsionar a vida formal e o crescimento da
cidade como capital social potente e criativo. Tal olhar próximo aos
acontecimentos rotineiros da vida ordinária citadina, encontra-se como polo
extremamente opostos aos mapas da logística urbana dos planejadores, de
grandes escalas. Idiossincrasias de uma escala gregária de impossível
detecção aos grandes mapas metropolitanos.

A autora questiona a vida domiciliar extremista pregada pelos modos de


existência modernos. A privacidade totalitária de uma vida citadina que se
coloca como um obstáculo ao conceito de comunidade e de compartilhamento
da coisa pública. Dirá Jacobs:

Compartilhar é um termo legitimamente aversivo para um velho ideal da teoria


do planejamento urbano. Esse ideal é o de que, se há algo a dividir entre
pessoas, deve-se dividir ainda mais. O compartilhar, aparentemente um
recurso espiritual dos novos subúrbios, tem um efeito destrutivo nas cidades. A
exigência de partilhar mais afasta os moradores das cidades

47
Fenômeno que, como posto antes, repete-se de maneira inconsequente desde a concepção do
urbanismo como disciplina no mundo ocidental pós revolução industrial, tendo como principais
expoentes históricos Haussman em Paris em meados do século XIX, e Moses em Nova Iorque em
meados do século XX.
87

Quando uma área da cidade carece de vida nas calçadas, os moradores


desse lugar precisam ampliar sua vida privada se quiserem manter com seus
vizinhos um contato equivalente. Devem decidir-se por alguma forma de
compartilhar, pela qual se divida mais do que na vida das calçadas, ou então
decidir-se pela falta de contato. O resultado é inevitavelmente ou um ou outro;
tem de ser assim, e ambos têm consequências penosas ([1961] 2000, p.67)

A idéia de uma comunidade é atravessada por um entendimento onde a


privacidade se amplia para fora do espaço do lar, entrando em contado com a
privacidade daqueles que também habitam um terrritório – entendendo habitar
como um conceito ampliado no qual habitar torna-se fazer parte da construção
de um território –, e ao mesmo tempo, que ao entrar em atrito com a alteridade
do outro, posturas e ações são tomadas. A vida pública se efetiva com o ganho
da dinâmica política do citadino efetivado cidadão na tomada de decisões na
construção da cidade.

A desordem da cidade tradicional, não racional, é para Jacobs um evento de


difícil legibilidade. Não que essa difícil legibilidade seja um problema em si,
mas, simplesmente que a sensibilidade do olhar modernista sobre os
habitantes do espaço urbano não foi capaz de alcança-la, e que em muitos
casos seu intuito foi simplesmente suplantar “o velho” pelo “moderno”. Mesmo
a práxis da AU nos dias atuais prefere ignora-la, não há no desenrolar dos
projetos o tempo para uma imersão, e a sincera preocupação em buscar
compreender a conjunção de forças que conforma um determinado território –
salvo raras exceções –, tal percepção minuciosa, tal imersão é coisa que não
se ensina nas escolas e não se faz presente sob a débil justificativa de uma
proposição artística que deve partir do arquiteto urbanista. Não nos
colocaremos aqui, de forma alguma, contra a proposição criativa dos
arquitetos, mas sim ao tornar a capacidade propositiva uma desculpa, ou uma
justificativa que incapacite um olhar mais atencioso sobre um determinado
território consolidado. Neste ponto Jacobs nos anos 60 alcança a fala feita pelo
sociólogo contemporâneo Manuel Delgado em seus celebrados livros El
animal público e Sociedades movedizas, quando este fala da complexidade
de movimentos do socius sobre o espaço construído.
88

Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela
funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da
segurança e da liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a
complexidade de usos das calçadas, que traz consigo uma sucessão
permanente de olhos. Essa ordem compõe-se de movimento e mudança, e,
embora se trate de vida, não de arte, podemos chamá-la, na fantasia, de forma
artística da cidade e compará-la à dança – não uma dança mecânica, com os
figurantes erguendo a perna ao mesmo tempo, rodopiando em sincronia,
curvando-se juntos, mas a um balé complexo, em que cada indivíduo e os
grupos têm todos papéis distintos, que por milagre se reforçam mutuamente e
compõem um todo ordenado. O balé da boa calçada urbana nunca se repete
em outro lugar, e em qualquer lugar está repleto de novas improvisações.
([1961] 2000, p.52)

A metáfora utilizada por Jacobs do complexo balé do socius na calçada, no


espaço público, talvez tenha sido possível porque em seus relatos sobre as
várias comunidades estadunidenses, que são relatos que se encontram em um
lugar entre o jornalismo e a etnografia, encontramos histórias de redes
relacionais ricas que vão contra o que se pregava como ideal de cidade pelos
modernistas, chocando-se com a imagem progressista e asséptica dos modos
de vida urbanos modernos. Tais pequenas narrativas colaboram com sua
crítica a gestão das cidades norte americanas e indo além se aproximam
novamente de Delgado ao deixar claro que a construção do urbano está para
além do espaço urbano projetado.

Entendendo que o papel do arquiteto urbanista, enquanto suposto intelectual


da criação de cidades, se encontra junto da sociedade – num papel distinto das
práxis instituídas desde o surgimento do urbanismo como disciplina, no século
XIX, até os dias presentes – que as questões abordadas na obra de Jacobs
mostram sua potência mais simples e admirável: a construção do ambiente
urbano é um problema social e abrange todas os que habitam a urbe. Desta
forma a edificação de respostas aos impasses no desenvolvimento das cidades
são parte de uma consciência coletiva ainda não completamente ativa, situada
muito mais além do campo do saber da AU e seus profissionais. Voltamos
assim a idéia da biopotencia, da possibilidade de confecção de uma vida
criativa e afirmativa que como conditio sine qua non depende de um arranjo de
forças coletivas do socius.
89

INSERIR AQUI PARAGRAFO SOBRE O CONCEITO DE COMUNIDADE DO


ARTIGO DA SUZANA – IMPRIMIR

Não se pode discordar da importância da obra de Jane Jacobs, no entanto, não


é arriscado dizer que ainda não é dado crédito suficiente as ponderações e
proposições da autora, tanto no ensino dos profissionais da AU, e
consequentemente na práxis dos arquitetos urbanistas, como por parte dos
gestores políticos das cidades (Estado), de outros atores das ciências sociais
(geógrafos, sociólogos, economistas, etc) e do corpo social de maneira geral
(cidadãos). Prova disso é a luta ferrenha daquilo que se denominou de “direito
a cidade”, do direito e da responsabilidade da construção da cidade como
exercício coletivo e democrático da cidadania. Apesar da mensagem expressa
por Jacobs ainda não estar efetivamente absorvida nas práticas de
urbanização outros ativistas influenciados por sua obra seguem ainda na
militância pela edificação de cidades mais humanas, como veremos pouco
mais a frente. Assim como consideramos a ampliação do embasamento crítico
dos alunos de AU, para além de “lecorbusianismos”, os futuros projetistas
absorvessem a potência da obra de Jacobs.

Indo além, o planejamento urbano como política pública sobre a tutela de


gestores arquitetos urbanistas, talvez, por isso, o encontramos como uma
língua técnica de difícil leitura, língua de especialistas, dominada unicamente
por estes profissionais. Tal afastamento, ou super proteção, tanto imposto
quanto produzido pelos profissionais da AU, tem reverberado em nossas
estreitas limitações, tanto em termos de percepção do fenômeno urbanos
quanto nas práticas de intervenção efetivadas na cidade. Contudo, a cidade
não é foco de estudos somente do saber AU, e, não é surpresa que boa parte
dos estudos mais importantes sobre a urbe, nas últimas décadas foram
redigidos por sociólogos, filósofos, psicólogos, historiadores e geógrafos. O
resultado de tal contorno dado a AU, como poder-saber, e a gestão da cidade
funcionalista por si mesma impeliu a origem da obra de Jane Jacobs e
daqueles que no contemporâneo seguem sua bandeira contra o urbanismo das
anti-cidades. Assim como o urbanismo pede a criação de outros modos de
90

conceber, produzir e fazer usos das cidades, algo solidamente mais plural e
coletivo para consolidar outras possibilidades menos danosas de vida na urbe.

2.3 Jan Gehl: novos contornos à arquitetura

Seguindo o rastro de Jacobs encontramos no pensamento e na obra de Jan


Gehl, arquiteto e professor dinamarquês de desenho urbano na escola de
arquitetura da Royal Danish Academy of Fine Arts em Copenhagen – tendo
também lecionado em universidades em Toronto, Melborne, Berkeley,
Guadalajara e outras cidades – o que pode se considerar como o ativismo mais
dinâmico e popular no presente à nível internacional dentro da AU, realizado
por um arquiteto. Desde o final da década de 60, Gehl vem atuando com
sucesso ao desenvolver idéias muito similares e com inspiração em Jacobs
porém tornadas em táticas projetuais de potencialização da vida urbana. Em
sua obra, Life bettween buildings (2011), seu primeiro livro publicado em
1970, e Cities for people (lançado em 2010), traduzido em sua versão
brasileira como Cidades para pessoas (2013), está clara a necessidade de
desenvolver espaços públicos passíveis de atrair pedestres, e a diversidade de
usos, áreas de encontro e convivência, também a otimização do uso das
bicicletas e do deslocamento à pé, e o traçado urbano voltado para uma
mobilidade urbana baseada nestes e no transporte coletivo, como solução aos
problemas de mobilidade causados pelo uso intensivo dos carros (acidentes,
poluição, tráfego, etc) e da falta de vitalidade urbana.

Após o fim de sua graduação Jan Gehl iniciou um processo de divergência com
o pensamento típico de arquitetos e urbanistas em seu tempo, o pensamento
moderno comum neste período. Esta separação inicia-se, segundo o próprio,
com uma confrontação feita por sua esposa, uma psicóloga, que questionou
91

que a AU se preocupava antes e principalmente com a forma e não com as


pessoas. Tal problematização provocou em Gehl uma inquietação que o
impulsionou à pesquisas no campo da psicologia e sociologia. O arquiteto
dinamarquês não deixa claro em que momento teve contato com a obra de
Jacobs mas a consolidação de suas críticas à praticas naturalizadas em AU
com as idéias de Jacobs é confirmada por Gehl inúmeras vezes em suas falas
e publicações.

O que nos causa certo estranhamento, ao dissertar sobre as bases da


produção de Gehl é a ausência de citações sobre Robert Sommer, psicólogo e
pesquisador estadunidense, tido como pai da corrente da psicologia conhecida
como psicologia ambiental (environmental psychology), autor do livro Personal
Space [1969]. Em seu livro Life bettween buildings são muitas e claras as
similaridades com as pesquisas feitas por Sommer e demais psicólogos
ambientais. Neste primeiro livro a quantidade de dados estatísticos e tabelas
das experiências ministradas por Gehl e seu grupo de pesquisa chegam a ser
exaustivos, e remetem às pesquisas de observação do comportamento
humano (que também têm em suas raízes no behaviorismo). Contudo em seu
livro mais conhecido e atual, Cities for people, nos deparamos com uma
linguagem muito diferente, e sobre este nos aprofundaremos mais, uma vez
que o próprio autor entende esta obra como uma coletânea de suas suas
pesquisas ao longo de 50 anos.

Até os dias atuais o estruturalismo das pesquisas estadunidenses são uma


forte influência na psicologia europeia e em suas pesquisas, Gehl, expõe
métodos e dados quantitativos que reforçam esse possível contato. Contudo
apenas no livro How to study public life (GEHL; SVARRE, 2013) Gehl cita
brevemente a obra de Sommer ao construir uma linha cronológica dos estudos
sobre a interação entre homem e espaço arquitetônico e urbanístico. Em uma
escala de trabalho menos impactante podemos citar a pesquisa em arquitetura
que seguiu caminho semelhante, ou bastante próxima, do arquiteto e
pesquisador catalão Josep Muntañola, professor da Universidad Politecnica de
Catalunya (UPC). O maior problema que vemos neste tipo de pesquisa
estruturalista de observação do comportamento humano advindas do
92

behaviorismo, é, como boa parte do pensamento do começo do século


passado, este tenta criar regras universais ao comportamento do homem e seu
espaço habitado, desconsiderando a idéia de que o homem é um produto sócio
histórico e que, como tal, estas interações não podem ser entendidas a partir
de formulações generalistas e aplicadas a esmo.

Contudo, Jan Gehl alcançou, com sua militância, ao longo de décadas, em prol
de uma cidade para pessoas, a atenção e o interesse tanto da comunidade
como dos políticos da gestão da cidade de Copenhagen. E neste espaço
urbano conseguiu um feito muito interessante: a instauração de uma secretaria
municipal focada em ações para os pedestres e na qualidade dos espaços
públicos. Segundo este pesquisador dinamarquês, prova de que vivemos uma
“ditadura automobilística” é que em qualquer município existem secretarias de
transporte, mas não há uma secretaria para desenvolvimento das ações
“pedestriais”. A influência do trabalho de Gehl na prefeitura de Copenhagen,
apesar de uma grande resistência em seu início, ao longo das décadas tornou
a cidade um modelo para o resto do mundo. No Brasil, a atual gestão da cidade
de São Paulo tem tomado ao longo dos últimos anos medidas de intervenção
em seus espaços urbanos inspirados nas ideias de Gehl, assim como Bogotá
na Colômbia e Nova Iorque nos Estados Unidos. Dentre as políticas
implementadas destacam-se a implantação paulatina de uma grande rede
cicloviária – a partir da lei municipal que obriga o município a implantar
anualmente uma quantidade mínima de ciclovias por ano –, o uso restritivo de
pista para ônibus e táxis em vias especificas da cidade – priorizando o
transporte coletivo e dinamizando-o –, e o fechamento da Avenida Paulista
durante os domingos para lazer. Todas estas ações enfrentaram duras críticas
de determinados grupos, da grande mídia, e de políticos de oposição. Contudo,
gradualmente todas estas ações tem ganhado apoio popular e se consolidado
a partir das consequências bastante visíveis e positivas.

Gehl reafirma Jacobs na aposta de que a criação de espaços de convívio e em


redes de comunitárias de vizinhança atuam na redução da insegurança, e
também que a requalificação de áreas urbanas degradadas não se dá apenas
pela gentrificação dos grandes projetos de destruição para a edificação de
93

espaços espetaculosos. Atuando como consultor Gehl atuou intervindo em


cidades como Londres, San Francisco, Seattle, Nova York, Melbourne,
Barcelona e outras.

Se em nosso texto anterior, onde dissertamos brevemente sobre Jane Jacobs,


trouxemos uma citação na qual o sociólogo Richard Sennett afirma que a
aposta contida em Morte e vida de grandes cidades, da manutenção ou
construção dos laços de vizinhança, é uma romantização de um passado e que
tal “reanimação [...] nunca poderá se dar” (SENNETT, [1970] 2001, p.95,96)
numa “era opulenta e tecnológica”. Tal problematização de que o espaço
público seria assimilado pelas redes virtuais e seus espaços não se
concretizou, e mais, segundo Gehl estes aparatos de comunicação auxiliam na
construção da sociabilidade.

Nos últimos anos, o desenvolvimento da vida nas cidades sugere um quadro


totalmente diferente. Aqui os contatos indiretos e o conjunto de imagens
retratando o que as pessoas fazem em outros lugares não compete com a vida
nos espaços públicos; ao contrário, estimula as pessoas a se juntarem e a
desempenharem um papel ativo. As oportunidades para estar lá em pessoa,
par encontros olho no olho, e o caráter de surpresa e imprevisibilidade das
experiências são qualidades vinculadas ao espaço da cidade como local de
encontro. (GEHL, [2010] 2013. p..26)

Como arquiteto, Jan Gehl, assimilou e apresentou outra perspectiva às


intenções presentes no trabalho de Jane Jacobs. Aplicando à teoria esquemas
simples de organização do espaço em categorizações da morfologia
arquitetônica e urbanística, usando, como Jacobs, uma linguagem muito
simples, capaz de ser muito bem entendida em suas falas – uma vez que são
raras as terminologias técnicas – mesmo por não arquitetos urbanistas e
ampliando seus leitores e apoiadores. Estando “dentro do jogo” e conhecendo
bem as “regras” deste, Gehl percebeu através da evolução cronológica do
desenvolvimento das cidades a negligencia da dimensão humana na gestão da
urbe e nas escolas de AU, na formação dos projetistas. O autor acusa, assim, a
problemática de dentro da própria instituição e apostando em movimentos
instituintes capazes de uma mudança no estado das coisas, não de fora, mas
de dentro das práticas e da formação de um pensamento crítico em AU voltado
à uma lógica mais humana, ou, ainda, menos perversa.
94

Gehl não chega a problematizar a revolução industrial e o modo de produção


capitalista em seus escritos, talvez por uma escolha estratégica já que tal
discussão parece interessar um percentual muito baixo de arquitetos e
urbanistas. Contudo, aposta na reconstrução de uma escala humana do
urbanismo. Reconstrução porque como deixa claro em seu livro Cidades para
pessoas, esta escala humana do urbanismo existia antes da cidade do
International Style, mas que foi deixada de lado e abandonada graças a grande
escala exercida tão intensamente no urbanismo moderno, o que denominou de
“síndrome de Brasília” – o planejamento realizado para grandes operações
logísticas, mas deficiente nas resoluções da pequena escala, ou escala
gregária.

Existem boas explicações racionais para justificar porque, em muitas situações,


o planejamento urbano se inicia do alto e de fora. Em geral, as prioridades são
assim elencadas: em primeiro lugar, os grandes contornos da cidade, então os
edifícios e, por úlitmo, os espaços entre eles. No entanto, a experiência de
décadas de planejamento urbano mostra que esse método não funciona para a
paisagem humana e para convidar as pessoas para o espaço da cidade. Pelo
contrário: em quase todos os casos, verificou-se a impossibilidade de garantir
boas condições para a vida urbana, quando a maioria das decisões de
planejamento é feita na maior escala e a proposta com a vida da cidade se
reduz a tratar somente das áreas remanescentes, no quadro geral.
Infelizmente, na maioria das cidades e empreendimentos, a conclusão é que a
dimensão humana está, lamentavelmente, perdendo terreno. (GEHL, [2010]
2013. p.196)

A escolha de Brasília para ilustrar a crítica de Gehl, não se faz ao acaso. A


origem da capital brasileira, que hoje abriga mais de 3 milhões de moradores,
como se ensina nas escolas de AU, deu-se a partir de um concurso ganho pelo
arquiteto Lucio Costa, onde o projeto proposto do novo centro administrativo
brasileiro era apresentado em uma grande escala com funções segregadas e
uma logística bastante clara. Junto à Shandigard de Le Corbusier, na Índia, são
as únicas cidades levantadas completamente segundo os dogmas do
modernismo desde seus primeiros rabiscos, e, que não por acaso, tem
problemas muito similares. Se na grande escala a ave de Costa impressiona,
da perspectiva humana, ela tem graves problemas. A aridez ao qual os sujeitos
que transitam por Brasília são lançados tem pouco a ver com o clima do
serrado, e muito mais com a ausência de um planejamento na pequena escala.
95

E infelizmente como afirma Gehl, tal metodologia projetual segue se


proliferando nas novas cidades chinesas, nos novos empreendimentos
europeus, assim como na rica cidade de Dubai (2013, p.197).

A cidade tornada máquina pelo pensamento urbanístico moderno, tendo seus


territórios segregados por funções distintas, na utilização de uma lógica
também mecânica de planejamento que recorrerá necessariamente à grande
escala para a resolução de problemas logísticos, de bairros, funções e da rede
de transporte, onde a representação de grandes porções, ou mesmo da
integralidade do traçado urbano pode ser visto. Também a escala média será
utilizada para o desenvolvimento de objetos arquitetônicos, dos espaços
públicos, de representação das formas e volumes. Mas a escala pequena, ou
humana, onde a perspectiva à nível dos olhou e na proximidade com o solo
esconde às linhas visíveis apenas nas escalas média e grande, se ausenta
dando lugares a sérios problemas advindos do lapso com esta escala. As
escalas de trabalho em urbanismo, são ilustradas por este autor de maneira
quase infantil, e são diferenciadas pelo conteúdo de suas representações. No
caso da grande escala é evocada a imagem de uma visual que se teria de um
avião, no caso da escala média de uma visual de um helicóptero, ou mesmo do
topo de um edifício alto.

O professor dinamarquês pontua que a escala pequena, ou humana, é a mais


importante das três escalas urbanas, mas a importância declarada desta se faz
de forma a tornar claro que é nesta escala, cuja atenção foi negada (com a
instauração do urbanismo como disciplina), que reside importantes escolhas
projetuais de traçado no que toca a relação direta dos sujeitos urbanos com os
objetos urbanísticos e arquitetônicos. Tal marcação se faz necessária porque
não se trata de uma superioridade de uma escala ante outra, repetimos: não há
primazia na importância de uma escala em relação a outra, todas as escalas
são importantes, afirma o autor, o que não podemos é seguir ignorando a
importância da escala humana. O urbanismo e o planejamento urbano
precisam do trabalho conjunto das diversas escalas
96

Na prática, trabalhar com as três escalas significa operar com três disciplinas
muito diferentes, cada uma com suas próprias regras e critérios de qualidade.
Idealmente, os três níveis deveriam ser tratados e amalgamados em um todo
convincente que fornecesse um espaço convidativo para as pessoas na cidade.
(GEHL, [2010] 2013. p.196)

O trabalho bem-sucedido de Gehl em Copenhagen ao longo das décadas


tornou a cidade em uma vitrine para o mundo e para os pesquisadores do
urbanismo. Assim como as diversas assessorias dadas por seu escritório em
cidades como Melbourne, Bogotá, Barcelona e Curitiba, levaram as ideias
deste para um lugar de fácil acesso no que toca a temática do urbanismo, do
planejamento urbano e da gestão das cidades. Suas palestras estão
disponíveis na internet e são várias as produções advindas diretamente de
suas falas por diversos outros atores sociais.

AS proposições urbanísticas são sintetizadas por quatro eixos do trabalho do


escritório de Gehl: Vitalidade, segurança, sustentabilidade e saúde. A vitalidade
está relacionada com a dinâmica das pessoas que caminham, pedalam, ou que
permanecem nos espaços públicos das cidades, ou seja, pela ocupação e pelo
uso das áreas comuns urbanas; a segurança está atrelada a vitalidade pois a
sensação de segurança surge de uma grande atividade humana, uma vez que
existem mais olhos acompanhando o que se passa dentro e ao redor dos
espaços; a sustentabilidade aqui ganha uma perspectiva chamada de
“mobilidade verde”, e consiste no deslocamento a pé, de bicicleta ou através de
transportes públicos coletivos, que por sua vez tem como consequências
benefícios econômicos e socioambientais, pela redução do consumo de
recursos naturais, assim como da emissão de poluição, a sensação de
segurança é um importante fator para uma boa mobilidade verde; por fim, a
cidade saudável diz respeito a saúde dos seus habitantes, e do uso da urbe
como agente convidativo a práticas não sedentárias de exercícios integrado ao
cotidiano. A política que envolve estes quatro eixos é uma política que atende a
qualidade da vida urbana. Gehl dirá ainda que os custos de implementação de
tal política é imensamente menor se compararmos com outros investimentos
sociais.
97

Parte das inquietações deste arquiteto dinamarquês foram naturalmente postas


em paralelos com as demandas de grupos que não estão, para a visão
tradicional do urbanismo moderno, dentro de um metiê convencional de
discussão sobre os rumos das cidades. É o caso do movimento do
cicloativismo, onde coletivos que levam a bandeira da mobilidade urbana,
denunciam a violência no transito, incentivam o uso das bicicletas como
transporte sustentável e saudável, fazem demandas às municipalidades por
uma estrutura de redes cicloviárias seguras aqueles que tem na bicicleta uma
opção de deslocamento inteligente.

A batalha de Gehl por uma mobilidade urbana mais inteligente dá-se tanto na
gestão quanto nos projetos. A crítica absorvida de Jane Jacobs sobre a lógica
modernista de priorização do uso da mobilidade via automóveis particulares,
em Gehl transforma-se em uma série de diagramas onde se expõe como criar
uma organização de ruas onde o ciclista pode trafegar em segurança. Para
consolidar essa aposta o autor utiliza impressionantes dados estatísticos de
Copenhagen como prova de uma luta que se trava ao longo de décadas.
Atualmente o transporte por bicicletas corresponde a 37% dos deslocamentos
na capital da Dinamarca. Contudo, o espaço para a mobilidade verde se
efetivar, vem da tomada de espaço do veículo particular e da criação de
medidas como pedágios e taxas de estacionamento. Medidas que apesar dos
efeitos quase imediatos, como já dito, foram recebidos com um grande clamor
contrário daqueles cujos hábitos de deslocamento se baseavam no transporte
particular. Jan Gehl pontua que esta recusa é normal e esperada, hábitos não
mudam sem algum desconforto.

A experiência acumulada e as pesquisas realizada ao longo destes cinquenta


anos dedicados à uma forma de projetar para as pessoas, também resultaram
em uma série de ensinamentos resumidos acerca da percepção humana e
como tirar proveito desta a partir de determinados lay outs do desenho urbano
que auxiliem nas atividades vitalizantes do espaço. A pontecialização dos atos
de caminhar, pedalar e permanecer, assim como da concepção do espaço
público como local de encontro, de atividades artísticas e de exercícios físicos.
A partir destas Gehl propõe a inversão da ordem de importância no
98

planejamento, tomando como prioridade a qualidade da vida, então os espaços


e por fim os objetos arquitetônicos. Como já foi dito antes tal ordenamento de
prioridade não seria uma invenção, mas antes uma retomada.

A proposta que é apresentada por Gehl de uma ética em AU, coloca-se dentro
das regras da oficialidade, das legislações da construção urbana. Parte de um
ponto oposto ao modelo de urbanização de Barcelona e do City Branding no
sentido que não se trata de uma maquiagem ou da criação de um cenário
espetacular, mas antes de uma cidade que se torna atraente pela qualidade da
dinâmica urbana que oferece aos seus habitantes.
2.4 Os Urban Designers

Sob a influência da obra de autores como Jane Jacobs ou Jan Gehl, ou


impelidos por outras inúmeras razões que podem ir de transgressões artísticas,
à ausência de políticas públicas sociais por parte do Estado, vemos grupos,
coletivos, sujeitos anônimos ou não, formados por arquitetos e também de não-
arquitetos, que denominaremos aqui, em sua heterogeneidade e complexidade,
em um conceito ampliado, de Urban Designers. Personagens que atuam em
toda a extensão da urbe, das áreas onde a pobreza torna ainda mais
vulnerável a existência urbana, mas, também em áreas abastadas onde a
própria AU em sua oficialidade edificou assepsia e aridez. Ações de
interferência urbana que se apresentam como processos, ações pontuais,
porém articuladas.

Para os designers urbanos uma questão é imperiosa, a intervenção sobre o


tecido social urbano. Talvez este seja o maior e mais visível dos
denominadores comuns deste grupo. E sob tal ponto encontramos uma
interessante aproximação a tão clamada participação dos habitantes na
construção de seu próprio habitat, para além da aceitação de proposições
apresentadas pelo especialismo dos projetistas da AU e da gestão dos
espaços. E assim uma importante aproximação com as intenções de Jacobs.

Como podemos verificar no livro Design with the other 90% cities (SMITH,
2011) – que disserta sobre intervenções em áreas urbanas pobres e
99

vulneráveis em diversos países –, há uma grande diversidade de ações


produzidas, incitadas e potencializadas (quando puramente insurgentes) por
designers urbanos – arquitetos, artistas e uma grande diversidade de outros
atores sociais –, com foco na inclusão, no direito à cidade por estratégias e
práticas que conformam novas abordagens ao urbanismo. O livro organiza
diversos projetos de diferentes instituições e coletivos, que apresentam um
paralelismo na potência de instituir práticas urbanas que divergem das
soluções do urbanismo convencional. Esse urbanismo múltiplo e inclusivo
coloca em primeiros planos as experiências dos moradores locais, em
detrimento ao tecnicismo dos experts. O campo de ação demonstrado nas mais
de duzentas páginas do livro é algo bastante amplo e de uma criatividade
pungente, são projetos que tratam da criação de módulos customizáveis de
baixo custo que se transformam em bicicletas, carros de mão, ou carros para
comercialização de comida de rua (COLOCAR IMAGEM), atendendo diferentes
necessidade de mobilidade dos cidadãos; serviços de atendimento de saúde
residenciais e comunitários, a pé e até mesmo de barco que diminuem as
distancias entre o indivíduo e posto de saúde (quando existentes); workshops
de práticas de construção para aqueles que se encontram não atendidos pelo
Estado, projetos de infraestrutura e paisagismo, cooperativas de hortas
comunitárias, complexos de moradia social altamente customizáveis, manuais
e cartilhas com princípios básicos de urbanização de assentamentos precários,
soluções construtivas de baixo custo e fácil manejamento, intervenções
artísticas na paisagem, mapeamento urbano de baixo custo, readequação de
edificações abandonadas para moradia e etc.

Uma parte importante deste movimento de intervenção nos espaços urbanos


acontece dentro dos meandros da arte (e não necessariamente também dentro
dos meandros da formação acadêmica em artes), sobretudo com o fenômeno
conhecido por street art, ou arte de rua. Fenômeno que surge na metade da
década de 90, mas que ganhará notoriedade no início da década passada.
Constituído, em seus meios de expressão, por uma hibrida forma de graffiti,
onde, além da tinta, são usados adesivos, stencils, pôsteres e esculturas. Essa
produção, mesmo efêmera, – trata-se de intervenções, na maioria dos casos,
ilegais em espaços públicos e privados que, por isso mesmo possuem uma
100

vida útil muito breve – será consolidada com o apoio da internet, onde as
imagens dessa produção são propagadas a um público de milhões de pessoas
e inspiram uma retroalimentação e propagação de si mesma ao longo do globo,
até aonde se estender seu alcance. A street art é considerada, por alguns,
como o maior movimento de contracultura desde o Punk. Artistas-
transgressores como Space Invader, Zeus e Shepard Fairey farão parte da
constelação à frente dessa vanguarda, cujo expoente maior será Banksy
(considerado por alguns como o Marcel Duchamp de nosso tempo).

Apesar da captura de parte deste movimento pelo capital, que literalmente


retira a arte de rua da rua levando-a para museus e galerias particulares, e que
neste movimento de cooptação lhe tira o que em si leva de maior intensidade, o
acesso público das ruas e consequentemente sua grande exposição, boa parte
destes interventores entendem de maneira muito clara que a proposta não está
na vinculação com o mercado e sim na contestação e rebeldia, mas, também,
numa afirmação política contra a hegemonia de um viver serializado,
mensagem que fez esse fenômeno ganhar um fiel e imenso público ao redor do
mundo. Os questionamentos trazidos por esse artista transformam a arte em
ferramenta, em ato de resistência criativa, inscrito na paisagem urbana,
ativismo em sua forma de apropriar-se da cidade como anteparo para as
questões que traz em cada trabalho.

A agigantada megalópole é um mar de construções e de seus intervalos, um


mar de corredores e de muros, um mar de vozes e de silêncios, um mar de
ontens e de hojes e de amanhãs, de simultaneidades e provisoriedades
arquitetônicas. É também uma imagem – em movimento. “A imagem da
skyline, da silhueta [da cidade] pode ser um símbolo de vitalidade, poder,
decadência, mistério, congestionamento, grandiosidade ou o que mais se
queira, mas, em cada caso, essa imagem vigorosa cristaliza e reforça o
significado” pretendido por tal simbolização, bem como o significado da cidade
em si e do que para ela conflui e a ela se incorpora: o significado das
conquistas humanas e de seus despojos, o significado da opção e do grau da
vida comunitária. Demarcar os locais é o Teseu grafiteiro, o princípio de locais
demarcados, afiliado ao de sítio específico, na espacialidade cresce à
especialidade o grafiteiro contemporâneo – espacialidade e especialidade
ambas no trânsito e na transitoriedade, tanto uma quanto outra no contínuo do
trajeto e no inventário social intrínseco à atuação em espaços abertos e
públicos. Registros. (SCHNEEDORF, 2009, p.36-38)
101

Tal ampla e diversificada gama de ações, mais ou menos distantes das


práticas tradicionais da instituição da AU, se encontram cada vez mais
divulgadas, em publicações de livros e revistas, também por artigos de
periódicos digitais, assim como por sites especializados em urban design.

Contudo, aos arquitetos e urbanistas mais apegados ao pensamento


tradicionalista, às práticas hegemônicas e ao entendimento limitado do conceito
da praxis do urbanismo, certamente, não faltarão críticas que diminuam tal
grupo tão difuso de ações e produtos concebidos nesse pacote de contornos
tão dinâmicos do que convencionamos e entendemos aqui como urban design.

Outra interessante influência do pensamento originado em Jane Jacobs se dá


em arquitetos que se propõe não a ações propositivas, mas a potencialização
de ações insurgente, tendo como foco os laços sociais, o senso de
coletividade, e a construção da cidadania e do direito a cidade. O brasileiro
Marcos Rosa, arquiteto e professor da ETH Zurich, já citado anteriormente,
insere-se nesta lista de autores e organizadores. Seu livro
Microplanejamento: práticas urbanas criativas, publicado em 2011, aponta
variadas ações insurgentes na cidade de São Paulo e o livro mais recente
Handmade Urbanism, publicado em 2013, aponta experiências similares em
cinco cidades diferente, Mumbai, São Paulo, Istambul e Cidade do México. Sua
forma de posicionar informações e sua visão sobre a temática denotam
aspectos importantes, como a autoria coletiva, uma abertura a
transdiciplinaridade, sobretudo com auxílio de bibliografia de profissionais de
outras áreas, e uma percepção das insurgências e subseqüente
potencialização das mesmas como ação.

Se a essa amalgama de criadores que interferem nos espaços urbanos


chamamos de designer urbanos, tomamos a idéia do Professor da faculdade
de Design da Universidade Federal do Espírito Santo Hugo Cristo Sant´anna
em seu pequeno livro Design sem designer (2013), onde o mesmo busca uma
definição ética para o entendimento do conceito de design a partir da vontade
de instituir um contorno mais amplo e interessante à pratica do design.
102

A hipótese central deste breve volume sugere que os argumentos mais


populares empregados para delimitar o campo e responder às perguntas
mencionadas (quem, o que, onde, como e desde quando) compartilham o
desejo, improdutivo na minha opinião, de conferir especialidade à atividade do
designer. Em busca de tal identidade singular, autores mantiveram o Design
preso às amarras a atividade daqueles que estavam, conscientes ou
inconscientemente, na condição de designers da cultura material de um
determinado grupo em algum lugar da história. (SANT´ANNA, 2013, p.10)

A partir da apresentação deste pesquisador e designer torna-se muito claro o


paralelo entre o trabalho do urbanista, sobretudo voltando a luz de Manuel
Delgado, onde o entendimento do urbano como um modo de vida, transforma a
todo e qualquer citadino em um urbanista, que por suas ações e posturas
contribui de alguma forma para a constituição do território existencial urbano. E
indo além esbarramos na vontade de centralização deste título nas mãos dos
profissionais da AU, vontade que contrariam falas como de Frank Ghery que
atestam a morte do urbanismo (em nosso texto 1.14 “Urbanismo como arte:
provocações para outros desejos de cidades”), ou do historiador e ativista Mike
Davis (2006), que por suas análises mostra que o crescimento dos territórios
informais se dá em uma taxa exponencialmente mais alta em relação ao
crescimento planejado e oficial sobre às rédeas da AU e do Estado. Sant´anna
dirá em seu livro que o design é um produto ordinário da evolução, da
superação e adaptação das faculdades humanas em sua produção material e
imaterial. E assim é tomada uma escolha, ou um direcionamento que
ultrapassa o limite técnico e se aposta na potência criativa. Aposta em que todo
ser humano é um designer. Aposta que atualizaremos ao dizer que todos os
habitantes da urbe são em algum grau designers na construção do urbano,
suas formas e forças.

Quanto a potencialização de ações insurgentes, cremos que é importante frisar


que a empreitada de estimular e consolidar propostas de atores sociais
externos à AU, de maneira alguma toma o lugar ou as possibilidades de
trabalho de arquitetos urbanista, e que, ao contrário, e como se tem visto, cria
novos territórios de atuação. Assim como reposiciona o projetista ante uma
postura outra, como dito por Foucault (1979), não à frente, mas junto das
forças sociais.
103

Não se pode abstrair o fato que nos espaços mais vulneráveis do tecido
urbano, e, sobretudo na realidade dos países subdesenvolvidos, onde a AU em
sua forma mais hegemônica não tem alcance, arquitetos, sobretudo jovens
arquitetos que não aspiram ao oficio de caráter mais elitizado, tem executado
trabalhos colaborativos junto a população destas comunidades e obtido
resultados interessantes e promissores. Os exemplos são inúmeros, e de
formas também muito diversas. Em Vitória um grupo de jovens arquitetos
recentemente desenvolveu um projeto de uma praça, em um lote vazio, no
Morro de São Benedito, utilizando pallets fabricados na marcenaria que
pertence a uma ONG que atua no local. Como a maioria de espaços urbanos
semelhantes, excluídos e onde o poder público é praticamente ausente, há
uma carência de espaços de convivência e lazer. Esta realidade, embora ainda
pontual, parece ganhar cada vez mais atenção e exemplos como este não são
raridade, como pode se averiguar em sites especializados, artigos e revistas.
104

2.5 Microplanejamento urbano segundo a prática

Como posto anteriormente nosso intuito com este segundo movimento é a


elaboração de uma análise de três práticas em três autores, práticas que
apostam em formas de construção do espeço urbano que fogem aos dogmas
cristalizados pelo saber urbanismo. Considerando então estes três
intercessores, Jacobs, Gehl e os urban designers podemos pontuar que na
prática do microplanejamento urbano encontramos uma considerável gama de
características possíveis:

Capacidade de análise e desenvolvimento do pensamento crítico – A


crítica é um agente metabolizador do microplanejamento urbano através da
capacidade de percepção de uma determinada conjunção de forças. A
competência de compreender um território existencial urbano, seus atores,
seus papeis, os alcances e limites postos, seus pontos de tensão, obstáculos
que impedem determinados fluxos, fraturas possíveis.

A capacidade de análise gera o desvelamento de agentes e situações ocultas.


Leva a luz jogos de forças que aspiram, muitas vezes, permanecer
desconhecidas. Falamos de algo que se aproxima ao conceito das caixas
pretas de Vilém Flusser. Fenômenos que precisam ser descontruídos e
entendidos em sua profundidade para que ações possam ter a potência
institucionalizadora de novos contornos, para acessar possibilidades outras.
Esta capacidade se é uma atribuição tanto para os atores que trabalham em
105

áreas do especialismo, inseridos nas instituições oficiais do planejamento das


cidades, na formação dos futuros profissionais, assim como para aqueles que,
fora do campo técnico, simplesmente habitam os espaços urbanos.

Legibilidade e acessibilidade dos discursos – A capacidade de


compreensão das propostas que justificam os enunciados de intervenção nos
espaços urbanos, os rumos pretendidos são uma questão essencial para que
haja uma participação de uma coletividade que fuja aos especialismos que hoje
direcionam os rumos da urbe. Escapar ao “urbanês” praticado no cotidiano é
uma condição necessária para que se possa alcançar uma autonomia e uma
consciência popular capaz de tomar seu lugar de participação ativa.

Atenção às redes sociais existentes – O labor do cuidado de apreensão das


redes de sociabilidade existentes em um território coloca-se como uma postura
que busca maior precisão para atuar tanto na vigilância, quanto na manutenção
daquilo que do socius emana de forma afirmativa na construção do comum,
tanto quanto naquilo que suas intervenções se propõem a criar como
interferências que desestabilizem determinados funcionamentos
encarceradores e nocivos.

Falamos então de um ponto na contrapartida da incapacidade de visualizar e


captar numa paisagem social aquilo que a polifonia de vozes denuncia e
afirma. Questão há muito criticada no âmbito da AU, que tem se modificado
com iniciativas cada vez mais numerosas, mas que ainda não coloca a questão
desta atenção num patamar de condição prioritária, como outras questões mais
técnicas e estéticas dentro do oficio projetual dos arquitetos e urbanistas.

Diversificação de funções – A pluralidade de atividades e funções, defendida


à primeira voz por Jacobs, atua contra o autoritarismo racionalista de
segregações programáticas que como posto em uma expressiva gama de
experiências provou-se causadora de um esvaziamento dos espaços e
promotora de situações de violência urbana.
106

Atenção aos espaços públicos de convivência – Falamos então de uma


dupla aspiração neste ponto. A primeira meta está ligada à percepção dos
espaços públicos como anteparo para uma trama sociológica de trocas e
compartilhamento. A segunda meta está no entendimento da importância de
incitar a função política destes encontros de intercambio e partilha a partir da
realidade das especificidades postas em cada caso.

Muito sobre o esvaziamento dos espaços públicos e os processos que fizeram


culminar em seu empobrecimento já foram debatidos por vários autores. Assim
como metodologias diferentes tem sido desenvolvidas e experimentadas na
tentativa de inverter situações de assepsia e aridez, aumentando o sentimento
de liberdade, apropriação e contemplação. Este foco é uma constante e um
dos pontos primordiais em nossos intercessores.

Participação dos habitantes na gestão e construção dos espaços urbanos


– a participação popular é uma pontuação também muito desejada,
independente do referencial com que se trabalhe. Os pensadores que se
dedicam ao estudo das cidades, que não se colocam a par com o pensamento
neoliberal, em suas diferentes vertentes, são enfáticos sobre a importância da
conscientização dos citadinos a respeito da forma-cidade que vem se
edificando no passado e em nosso presente. O entendimento da problemática
do habitat urbano

Proposições arquitetônicas e urbanísticas com atenção à qualidade da


vida urbana – A qualidade de vida nas cidades provou-se fora do alcance dos
dogmas da “forma e função”. Entender que o papel da AU como anteparo para
a vida deve ser seguido do questionamento “que forma de vida estamos
ajudando a existir com nossa produção como arquitetos e urbanistas? ”.

Buscar a qualidade de vida na prática dos projetos urbanísticos e


arquitetônicos estaria atrelado a dinamização da ocupação dos espaços
públicos, com as trocas sociais que ali se efetuam, com a concepção de
espaços passiveis de acolhimento, permanência, expressão, boa mobilidade,
segurança.
107

Potencialização da mobilidade urbana verde – Ampliação da mobilidade de


pedestres, ciclistas e transporte coletivo de qualidade e integrado. Visando com
esta benefícios econômicos e socioambientais. O uso sustentável de recursos
naturais, diminuição da emissão de gases poluentes, além espaços mais
seguros, com menor possibilidade de acidentes.

A forma da mobilidade baseada nos veículos particulares é no presente um dos


grandes problemas do nosso tempo, tendo sido um dos motivos da formatação
do desenho urbano caótico das cidades contemporâneas. Problema
consolidado nos modos de produção exploratórios da indústria siderúrgica,
petroquímica, automobilística. Assim como nos hábitos estabelecidos.

Compartilhamento de diagramas espaciais em AU – Esta característica


possui duas vertentes. A primeira é a assistencialista/preventiva, impelida pela
ausência de suporte técnico especializado, não realizado pelo Estado, e pelo
foco elitista e mercadológico no qual a AU se acomodou. Acontecendo então
nos territórios mais vulneráveis onde o processo de consolidação espacial das
construções ocorre de maneira informal e fora dos parâmetros legais. Através
de workshops, cartilhas, visitas de orientação, grupos de profissionais na forma
de coletivos, grupos acadêmicos e ONGs tem compartilhado técnicas de
construção básicas e orientações urbanísticas. O que, por mais simples que
possa parecer, surte um grande efeito na posterior implantação de
infraestrutura e nos espaços de circulação e permanências destas
comunidades carentes.

Outra vertente é a pedagógica em AU, com foco nos próprios projetistas e


estudantes, com diagramas que propõem lay outs de traçados urbanos de ruas
e calçadas em seus elementos (passeio, ciclovia, área permeável de
vegetação, área de estacionamento, pista de rolagem e iluminação) onde
arranjos específicos almejam maior segurança e bem-estar dos usuários.

Atenção para o uso das escalas de intervenção, em especial à pequena


escala – o uso conjunto e colaborativo das/entre as escalas é um importante
108

fator sobretudo no planejamento urbano. Cada escala tem uma função


especifica e segundo Gehl, é importante que os projetos de intervenção sejam
ponderados levando em consideração as articulações entre as diferentes
escalas. A atenção a pequena escala, ou escala humana, descartada
historicamente, é onde reside o maior impacto do ambiente projetado em seus
usuários.

Atenção à realidade de regiões subdesenvolvidas – Por um longo período


os modelos arquitetônicos e urbanísticos foram importados dos países
desenvolvidos e aplicados de maneira controversa na distante realidade dos
países subdesenvolvidos. Hoje, apesar da insistência de alguns gestores que
seguem esta pratica de cópia de cenários europeus e norte-americanos, vemos
uma interessante gama de trabalhos desenvolvidos vislumbrando a
problemática social especifica de territórios subdesenvolvidos. Apesar das
vontades de formulações universais, a atenção e a cautela para respostas
singulares para as singularidades territoriais tem se consolidado.

Conceito ampliado do habitar – no polo oposto da logica domiciliar


extremistas, diremos que a compreensão do ato de habitar se efetiva não
somente no espaço da casa, mas também em todos os espaços onde se
expressa a existência da vida urbana, sobretudo no espaço público urbano, nas
ruas, calçadas, praças. Ou seja, a concepção que mais que a casa, habitamos
a urbe em sua pluralidade de paisagens e territórios. A ampliação do habitar
coloca o questionamento da apropriação, e a manutenção destes como
produção do comum e para o comum.

A intervenção sem especialismo – Independente dos discursos autoritários


daqueles que buscam ter a exclusividade do poder de intervenção nos espaços
urbanos, a construção processual dos espaços urbanos é sempre coletiva e
está inserida nas posturas políticas do cotidiano. Entendendo que a construção
dos modos urbanos não passa somente pelos objetos arquitetônicos e
urbanísticos, mas sobre uma grande quantidade de layers materiais e mesmo
imateriais. O produto da expressão do socius deixará marcas, constituirá a
consolidação ou a negação de determinados contornos nos jogos de forças
109

que culminam, mesmo que por um momento fugaz em um determinado


território existencial.

A busca por um espaço urbano construído com a participação daqueles que o


habitam, talvez não agrade os puristas da estética pela estética, em seu
sentido mais corriqueiro, contudo, seguramente, as tramas sociológicas de
espaços assim nos contarão histórias, que mesmo desprovidas de alguma
espetacularização, nos apresentarão enunciados de criatividade, coletividade e
autonomia – como no caso da riqueza dos laços sociais de muitas favelas
brasileiras, a revés da situação de recursos muitos limitados.
Atenção e potencialização das insurgências – Se a vertente hegemônica da
AU coloca-se em um lugar de surdez à polifonia da cidade, nas práticas de
microplanejamento urbano contemporâneas estamos defronte com uma
atenção voltada a escuta das intervenções urbanas que vem a superfície das
paisagens das cidades como insurgências efetivadas no seio da ausência de
serviços e equipamentos não fornecidos pelo Estado.

Ao invés de atuar no desmonte destas insurgências como “ilegalidades”, se


propõe a potencialização destas. A atuação na construção de parceria com os
atores que gestionam estes serviços e equipamentos para a somatória de
forças contra a urgência de problemáticas reais para a edificação de realidades
menos perversas e mais interessantes.

Autoria coletiva – A autoria de múltiplos atores, a negação de uma assinatura


única, quando não a negação da autoria por completo no anonimato, sobre as
intervenções na urbe, além de marcar construções de olhares múltiplos e com
isso, possivelmente olhares mais interessantes, se posiciona mais próximo da
construção do comum. Não negaremos aqui, mais uma vez, a impossibilidade
da singularidade criativa de um sujeito, contudo, como demarca o livro de
Arantes, Vainer e Maricato, A cidade do Pensamento único (2000), é sobre a
égide de um modelo centralista, uníssono e não colaborativo de cidade que nos
encontramos e que negamos de maneira veemente.
110

A intervenção artística como fissura – A arte que toma como site-especific o


espaço público, os muros, nos coloca diante de questões locais, mas também
de questões globais, a apropriação forçada do espaço, a pobreza e aridez de
determinados lugares, o consumo desenfreado, o culto às celebridades, os
grandes complexos multinacionais, forçam à visibilidade sujeitos e situações,
questionam a serialização da vida, os conflitos étnicos, a violência urbana, o
capitalismo e a própria arte, entre outros. Estes nomes malditos às formas
clássicas de arte surgem como movimento ímpar, um fenômeno global, suas
obras-provocações estarão para além da apropriação da rua, dos muros, (e
também das calçadas, asfalto, bueiros...) como meio de expressão. As falas
desses artistas, levam sua arte para além do vandalismo ou da contestação,
suas obras levam em si uma mensagem desestabilizadora de modos de
existência.
111

MOVIMENTO 3. BALIZAMENTOS NA DIFERENÇA


3.1 A (Filosofia da) Diferença na construção de outros horizontes

Em muitos campos a (filosofia da) diferença foi usada para criar discussões e
apontar outros pontos de vista, questionar verdades, desnaturalizar saberes
criando fissuras em formas cristalizadas. Spinoza, Nietzsche, Deleuze,
Guattari, Foucault, Negri, Hardt, Agamben, Lazzarato, e dos brasileiros Suely
Rolnik, Cláudio Ulpiano, Luis Orlandi, Peter Pál Pelbart, Heliana Conde, Luis
Fuganti, Daniel Lins, figuram entre outros tantos nomes que construíram e
seguem construindo esta forma-filosofia que se coloca como uma das grandes
correntes do pensamento de nosso tempo.

Os conceitos que figuram nessa constelação de autores e livros encontram-se


num espaço entrelaçado, numa rede, num sentido de afirmação de uma vida
no paradigma ético-estético-político. Ético porque prima por uma harmonia dos
bons encontros nas escolhas e ações propostas. Estético porque trata-se de
uma incitação às experimentações e às ações criativas que levam em si a
vontade de transcendência do novo. Político porque trata-se de uma tomada de
postura afirmativa ante a existência (em sua pluralidade e infinitude).

Muitas vezes estes conceitos, da diferença, compartilham sentido, se


tangenciam, encontram-se muito próximos, se complementam, dão intensidade
uns aos outros, até se confundem sob olhares menos atenciosos.
112

Nosso intuito, como dito antes, é usar alguns destes conceitos, mais
especificamente: o cuidado de si, singularização e multidão. Este uso que
buscamos tem uma função de balizamento para a prospecção do conceito de
(micro)Planejamento urbano. A instituição do conceito de (micro)Planejamento
urbano apenas por suas práticas que se colocam em campo, e que por si, são,
muito interessantes, carregam uma potência e uma expressão que merecem
atenção, mas que, ao nosso olhar, parecem também vulneráveis e frágeis à
captura e a usos questionáveis. O balizamento na diferença então teria uma
função de ancorar dentro do que chamamos de urbanismo menor a ferramenta
conceitual do (micro)Planejamento urbano.

Entendemos que os conceitos eleitos aqui para tal balizamento encontram-se


numa linha, ou rede, articulam-se entre si, ousaríamos dizer, ainda, que estes
se apresentam numa escala ascendente de uma potência criativa de
resistência aos modos hegemônicos do CMI.

Oscar Niemeyer, em uma de suas falas mais conhecidas e poéticas disse que
a arquitetura não importava, que o que importava era a vida. Não entendemos
nesta fala que o produto arquitetônico e urbanístico da AU não tem valor, mas
que o que é realmente primordial é a vida da qual estes servem de anteparo. O
que propomos aqui está distante, cremos, da vontade inocente dos arquitetos
que acreditavam que a arquitetura e o urbanismo sozinhos seriam capazes
“salvar o mundo”, de trazer à tona um utópico mundo, uma nova realidade.
Nosso ponto, intensão, desejo, coloca-se distante da autoria solitária, na
antemão do sentido utópico de um plano de paz fúnebre do consenso, falamos
e propomos um lugar dentro das lutas e da história do homem, de uma forma
de produção dentro da AU que colabore com os devires minoritários, com a
potência plural e coletiva dos modos de existência outros, não uniformizadores
e não danosos.
113

3.2 Foucault e o Cuidado de si: Praticas libertárias do sujeito

Meu objetivo, já há mais de vinte e cinco anos, tem sido o de traçar uma
história das diferentes maneiras em que, em nossa cultura, os homens têm
desenvolvido um saber acerca de si mesmos: economia, biologia, psiquiatria,
medicina e penalogia. O ponto principal não consiste em aceitar este saber
como um valor dado, senão analisar estas chamadas ciências como “jogos de
verdade” específicos, relacionados com técnicas específicas que os homens
utilizam para entender a si mesmos48. (FOUCAULT, 1990, p.47,48)

Cuidado de si – O conceito de cuidado de si, ou epiméleia heautoû, é um


conceito que remonta aos gregos antigos, tendo como referência maior
Sócrates, mas que permeia inúmeros pensadores em diferentes escolas. Este
conceito ganhou diferentes significados ao longo dos séculos, sendo revisitado
por Michel Foucault em seus últimos anos de vida, tornado tema de livros como
A hermenêutica do sujeito, O governo de si e dos outros, de suas aulas no
Collège de France e também em entrevistas, seminários e documentários,
como Foucault por ele mesmo. É um dos grandes conceitos trabalhados por
este autor na sua derradeira fase, contribuindo com esta, chamada por seus
estudiosos de “genealogia” (do poder), onde trata a questão da subjetividade,
ou, das técnicas e tecnologias da subjetividade.

48
Tradução nossa, para o original: “Mi objetivo, desde hace más de veinticinco años, há sido el de trazar
uma historia de las diferentes maneras em que, em nuestra cultura, los hombres han desarrollado um
saber acerca de sí mismos: economia, psiquiatria, medicina y penología. El punto principal no consiste
en aceptar este saber como un valor dado, sino en analizar estas llamadas ciencias como “juegos de
verdad” específicos, relacionados con técnicas especifícas que los hombres utilizan para entender a s[i
mismos.”
114

O termo, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não diz respeito a
qualquer individualismo – do simples “ocupar-se consigo” –, antes se relaciona
com a prática da liberdade, em seu entendimento original grego. Contudo a
epiméleia foi reconstruída ao longo da história ocidental, sobretudo pelo
cristianismo medieval, onde tal conceito se distanciou de seu significado da
Grécia Antiga, ligado a questão de uma moral bastante especifica e com uma
função bastante clara. Michel Foucault se lançou ao trabalho de entender este
conceito a partir da genealogia, do processo genealógico, de sua construção e
formação históricas, do poder contido no discurso do cuidado de si, enquanto
luta, enquanto mote desta luta, assim como o poder contido nesta e a disputa
por sua posse. Não é nosso intuito aqui versar longamente sobre este conceito
– trabalho já realizado por uma quantidade expressiva de dissertações e teses
das áreas de filosofia e psicologia e facilmente encontradas em qualquer base
de dados ou portais de universidades que são referência nestes backgrounds
teóricos –, mas, para que possamos trazer as problematizações foucaultianas
que nos interessam nesta senda do pensamento do filosofo francês sobre tal
conceito especifico, ousaremos compor, mesmo que de maneira muito
insipiente, uma breve e resumida apresentação.

Para os gregos antigos este conceito se aplicava, acima de tudo, como “arte de
viver”. Como explica a professora da UFF Heliana Conde:

[...] pode-se dizer que epiméleia heautoû remete a uma atitude


para consigo, para com os outros e para com o mundo; a uma
forma de conduzir o olhar do exterior para si mesmo; ou ainda,
e talvez primordialmente, a certas ações exercidas de si para
consigo, pelas quais „nos assumimos, nos modificamos, nos
purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos‟, sob a
forma de técnicas de meditação, de memorização do passado,
de exame de consciência etc. (CONDE, 2011, p.19)

Ao iniciar a prospecção genealógica da epiméleia, Foucault nos leva ao


pensamento greco-romano, à idade clássica da filosofia, nos apresenta um
quadro onde o cuidado de si, a conversão do olhar exterior e dos outros para si
e as ações advindas deste exercício denotam uma transformação do sujeito
que se encontra amparada pelo princípio de uma existência brilhante e
115

memorável. O jogo da verdade, ou gnôthi seauton, é peça necessária,


complementar e subordinada da epiméleia, como outro princípio no qual o
sujeito se defronta com um julgamento auto imposto para dar conta de si
mesmo e superar-se – a relação entre sujeito e verdade. Neste percurso do
cuidado de si, nos deparamos, pois, com a relação de uma existência e a vida
verdadeira. “A emergência da verdade no princípio e na forma de dizer a
verdade, do dizer a verdade aos outros, a si mesmo, sobre si mesmo e sobre
os outros” (FOUCAULT apud CALDERON, 2003). Foucault colocará então a
questão:

O que faz com que um discurso moral não seja só um discurso


moral, uma sub-forma de prescrever normas e condutas? O
que faz com que um discurso filosófico seja outra coisa, que
não coloca nunca a questão da verdade sem se interrogar, ao
mesmo tempo, sobre as condições de dizer a verdade? Ele
coloca também a questão das estruturas políticas no interior
das quais esse dizer a verdade terá o direito, a liberdade e o
poder de se pronunciar. (FOUCAULT apud CALDERON, 2003)

O entendimento desta condição de verdade, sua confecção inerente às


estruturas, instituições e como estas através da formação moduladora do
sujeito ganha expressão ou são encerradas. As conformações do
contemporâneo, advindas da antiga, porém não empoeirada logica do
panóptico voltadas a configuração de uma forma-homem e as verdades, morais
e normativas que guiarão este sujeito ao longo dos persursos pré-projetados
(pré-programados, serializados) que se colocam na contramão da liberdade.
Para Michel Foucault a liberdade só se chega pela prática. A liberdade é antes
de tudo uma prática constante.

As condições na Grécia Antiga que davam contorno ao cuidado de si, a


princípio, tinha foco nos jovens que deveriam exercer o poder, e para que este
poder fosse bem exercido e que o ocupar-se de si desvelasse o conhecimento
de si próprio. Posteriormente a epiméleia se desvencilhou da exclusividade dos
jovens políticos, se tornando uma questão que passava a ignorar idade e status
social. O objetivo que coloca-se no cuidado de si, não era simplesmente o
116

cuidado, mas sim a cidade como ferramenta não simplesmente da


individualidade, mas sim da coletividade.

A Igreja Católica na Idade Média, utilizou a epiméleia como uma prática de


voltar-se para si que despontecializava o sujeito, fragilizava-o perante a infinita
glória celestial da qual este sujeito encontrava-se como dependente, falamos
da lógica do pastoreio, do arrebanhamento guiado pela imagem da salvação
divina. O cuidado de si, como conjunto de ações do sujeito direcionadas a si
mesmo, sendo utilizado, sob tal luz, na constituição do rigor e da restrição da
moral e da verdade cristã. Tal concepção teve grande impacto sobretudo na
moral sexual contemporânea do mundo ocidental

Contudo como Deleuze aponta ao falar de Foucault, a questão da epiméleia,


não se faz por um requerimento de pesquisa histórico simplesmente, não é um
retorno ao entendimento do cuidado de si dos gregos. A questão de Foucault
nunca foi a história pela história, mas antes compreender como nos tornamos
que somos hoje e como poderemos nos tornar, em nosso presente, algo mais,
algo além. O entendimento das conjunções de forças, dos jogos de verdade, da
formação do sujeito e dos modos de vida, da subjetivação na composição de
territórios existenciais, sem dúvida, possuem um papel estratégico e o talento
para a subversão dos modos hegemônicos.
117

3.3 Guattari e a Singularização: O coletivo que escapa

No senso comum o entendimento da palavra singularização se encontra com


“tornar algo singular”, “único”, “destoante”, contudo, quanto conceito caro a
(filosofia da) diferença singularização denota um enunciado consideravelmente
mais complexo e interessante. Félix Guattari usa o conceito “singularização” ao
invés de “individualização”, dentro do plano maior da subjetivação, pois,
segundo o mesmo:
[...] falarei menos em termos de individualização do que em
termos de singularização. Quer dizer que a individualização
torna-se sempre, ao meu ver, algo que tende a reduzir a
complexidade da subjetividade. [...] O indivíduo, a captação do
indivíduo como tal, em sua unicidade, em seu caráter de
responsabilidade, etc., é sempre algo de redutor. Parece-me
que, ao contrário, a singularização, ela, pode operar-se
através desta movimentação, esta multivalência da
subjetividade... (GUATTARI, 2008).

Continuando na relação entre singularização e individualização, no livro


Micropolítica (GUATTARI; ROLNIK, 2005), mais especificamente no texto
“Cultura de massa e singularidade” Guattari escreve que sua proposição de
título homônimo para um debate na Folha de São Paulo foi modificada para
“Cultura de massa e individualidade”. A substituição, segundo o autor, não foi
apenas um problema de tradução e que tal escolha se encontra exatamente na
problemática da cultura de massa, onde indivíduos são produzidos como
coloca:
118

[...] indivíduos normalizados, articulados uns aos outros


segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas
de submissão – não sistemas de submissão visíveis e
explícitos, como na etologia animal, ou como nas sociedades
arcaicas pré-capitalistas, mas sistemas de submissão muito
mais dissimulados” (p.22)

Em nosso movimento um, no texto “Urbanismo entre Biopoder e Biopotência”


falamos sobre os sistemas de submissão aos quais Guattari se refere. E que
tais sistemas, e modos de existência, no contemporâneo, são produzidos pela
máquina capitalista que se articula na tentativa de garantir hegemonia e não
deixar que nada escape ao seu controle.

No polo oposto da máquina de subjetivação capitalista que se encontra a


possibilidade do desenvolvimento de modos de subjetivação singulares ou
“processos de singularização” que Guattari define como:

[...] uma maneira de recusar todos esses modos de


encodificação preestabelecidos, todos esses modos de
manipulação e de telecomando, recusá-los para construir
outros modos de sensibilidade, modos de relação com o outro,
modos de produção, modos de criatividade que produzam
uma subjetividade singular. Uma singularização existencial
que coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma
vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com
a instauração de dispositivos de mudar os tipos de sociedade,
os tipos de valores que não são os nossos. (p.22,23)

Não se trata, assim, somente de um processo de diferenciação, mas de um


projeto ético-estético-político de produção de si, do sujeito e do mundo, em
suas intensidades de pluralidade.

Guattari seguirá neste texto dizendo que a cultura se coloca como uma
palavra-cilada, atrelada na produção hegemônica da existência, atuando como
“cultura-valor”, onde se possui esse valor cultura em meios intelectuais,
acadêmicos, cultos; também como “cultura-alma”, como ideia pouco mais
acessível de uma identidade cultural no âmbito de um território coletivo de uma
determinada civilização, como por exemplo a cultura européia, ocidental,
brasileira; e, finalmente, como “cultura-mercadoria” que corresponde a cultura
119

de massa e não está ligado ao valor, ou a algum território cultural coletivo. A


esta “cultura mercadoria” estão atrelados equipamentos, os sujeitos que atuam
nestes equipamentos, teorias e ideologias do funcionamentos destes. O
processo produtivo de objetos semióticos (publicidade, livros, produtos
televisivos, etc).

Sobre este último entendimento de cultura, Suely Rolnik, no texto “A vida na


berlinda” (2002) escreve que a potência da vida enquanto força de invenção
entre os planos da subjetividade visível (mapas de formas de vida) e invisível
(diagrama flexível de sensíveis e a infinidade de fluxos) é alvo constante de
captura pelo CMI (capitalismo mundial integrado), além de estabelecer, em seu
alcance global, fluxos intensivos aos quais as formas subjetividades, em sua
pluralidade estão cada vez mais expostas num processo muito rápido de
engendramento de novas formas.

A tensão entre as formas subjetividade hegemônicas, as quais a autora chama


de subjetividade-luxo, e aquelas que se encontram “do lado de fora”, chamadas
de subjetividade-lixo, por si alimentam o capital e sua máquina
sobrecodificadora. Enquanto as subjetividades-luxo recebem status de
mercadoria a partir de objetos e formas de habitar, de verstir-se, de uma forma
de se relacionar, de pensar, as subjetividades-lixo ganham paisagens de
horror, violência e pobreza. O instaurado perigo de não pertencer ao lado de
dentro, reconhecido, desejado, territorializado é por si bastante lucrativo ao
modo de produção de vida capitalista.

Esse regime de captura e de exposição de fluxos mercadológicos forçados se


alimenta de força de criação tanto da vida social, como na arte, esta cada vez
tornada mais produto/fetiche pelo mercado, pela inserção na “cultura
mercadoria”. Contudo tal mecanismo perverso e sem dúvida muito poderoso,
também é responsável por uma reação avessa da criação de poderes de
afirmação da vida como potência de diversidade em escalas sem
comparações. Assim como é possível também efetuar desmontes, pela força
de invenção, escapando do que Rolnik chama de “narcotráfico de identidade”,
e recolocar-se a serviço da afirmação da vida.
120

Para desviar esse modo de subjetivação, é preciso dissolver o


medo, modular ritmos, abrir intervalos de desaceleração; não
como uma finalidade em si mesma, simples oposição à
aceleração, sob a forma de preguiça ou ócio, mas sim como
condição para escutar o rumor sutil das intensidades. [...]
Instalar-se no olho do furação dos fluxos que atravessam a
subjetividade, mantendo como norte a proteção da vida em
seu processo infinito de diferenciação, processo difícil mas
muito generoso. Descobrir que tensão é parte do movimento
da vida e que apenas momentaneamente ela se apazigua,
mas que isso só acontece de fato quando se faz um território
singular que absorve as intensidades e se oferece como forma
para seus signos, ainda que fugazmente. (ROLNIK, 2002)

A afirmação da vida, dentro dos processos de singularização, tão ressaltada


por Rolnik, remete também a ideia da vida artista, cara a Nietzsche e aos
filósofos da diferença. Na entrevista intitulada “A vida como obra de arte”
(DELEUZE, 1992) Gilles Deleuze disserta sobre tal assunto na obra de Michel
Foucault:
[...] pensar é poder, isto é, estender relações de força, com a
condição de compreender que as relações de força não se
reduzem à violência, mas constituem ações sobre ações, ou
seja atos, tais como “incitar, induzir, desviar, facilitar ou
dificultar, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos provável...
´É o pensamento como estratégia. [...] é a descoberta de um
pensamento como ´processo de subjetivação´: é estupido ver
aí um retorno ao sujeito, trata-se da constituição de modos de
existência ou, como dizia Nietzsche, a invenção de novas
possibilidades de vida. (DELEUZE, 1992, p.119,120)

Nesta citação de Deleuze torna-se clara a ligação do conceito do cuidado de si,


última fase do pensamento de Foucault, e do conceito de singularização.
Deleuze e Rolnik reafirmam ao tocar na questão da invenção artística de
modos de vida que escapam ao poder, e suas subjetividades pré-programadas,
serializadas, que a singularização, como processo de expressão, que foge a
imagem do sujeito, do indivíduo, e se coloca como processo coletivo, como
território existencial, invenção como resistência capaz de efetivar dobras nas
forças hegemônicas.
121

3.4 Negri e a Multidão: A máquina coletiva que mira o infinito

Para apresentar o dissertar brevemente sobre o conceito de multidão,


iniciaremos comentando sobre o conceito de povo e massa. Antonio Negri dirá
que independente da proveniência dos autores (Hobbes, Rousseau e Hegel
mais especificamente) o conceito de povo se assenta na “transcendência do
soberano” (2004), se coloca como um correlato do soberano. O conceito de
massa, como quantidade indefinida de indivíduos, é um conceito que se baseia
na medida, tendo sido constituído pela política econômica do trabalho, o que
faz, a sua vez, que se encontre como um correlato do capital. Ao conceito de
povo foge, na operação de uma unificação, a multiplicidade das singularidades,
ou, dito de outra forma, há uma dissolução do conjunto das singularidades em
uma massificação uniformizante. O conceito de massa não comporta tampouco
as singularidades, uma vez que se reduz à aglomeração de indivíduos que
operam sua produção de dentro da máquina exploratória capitalista.

[...] a multidão desafia qualquer representação por se tratar de


uma multiplicidade incomensurável. O povo é sempre
representado como unidade, ao passo que a multidão não é
representável, ela apresenta sua face monstruosa vis-à-vis os
racionalismos teleológicos e transcendentais da modernidade.
Ao contrário do conceito de povo, o conceito de multidão é de
uma multiplicidade singular, um universal concreto. O povo
constitui um corpo social; a multidão não, porque a multidão é
a carne da vida. (NEGRI, 2004, p.17)
122

Segundo Antonio Negri (2006) o conceito de multidão, indo no sentido inverso


dos conceitos citados acima, deve ser entendido a partir de três sentidos. O
primeiro é a redução do uno, como a multiplicidade de sujeitos, negando a
redução dos cidadãos à unidade. O segundo será compreender que a multidão
é um conceito de classe, entendendo classe como conjunto de força criativa do
trabalho, força produtiva, como um nome dado a uma realidade econômica,
sujeita aos caprichos do poder. E, finalmente, entender a multidão como
potência do desejo de instituir outras realidades, realidades recriadas à sua
imagem, “um grande horizonte de subjetividades” (NEGRI; HARDT, 2006,
p.129).
Ao dizer que a Multidão é um conceito de classe, Negri o fará porque esta é
sempre produtiva e encontra-se num estado perpetuo de movimento. A
multidão é explorada em sua produção, sendo compreendida como cooperação
social voltada à produção. Contudo, não se deve confundir este sentido da
multidão com o conceito de classe trabalhadora. Isto porque classe
trabalhadora limita-se na perspectiva da produção e ainda pela cooperação
social – que não é operada pela totalidade destes segundo o autor (2004).

O último sentido posto por Negri, que coloca a multidão como potência para a
instituição de outras realidades, remete também a afirmação que a multidão é
“a carne da vida”. Posta como ator não apreensível, contudo, como
necessariamente uma multiplicidade ativa na produção de si mesma. A
multidão exerce uma dinâmica direcionada à plenitude da vida, e, para tanto
seus movimentos geram novas formas, ou novos contornos de vida. Como
coloca o autor:

[...] o dispositivo de produção de subjetividade que encontra


na multidão sua figura comum, se apresenta como prática
coletiva, uma atividade constantemente renovada de
constituição do ser. O nome da “multidão” é, a um só tempo,
sujeito e produto da prática coletiva. (NEGRI, 2004, p.20)

Tal dispositivo de subjetivação inerente à multidão é posto como labor deste


socius singular sobre si mesmo. Remete à ideia do desejo de Deleuze e
Guattari, que contrapõe à falta psicanalítica, onde se entende o desejo como
potência de agenciamento de mais desejo, potência criativa que se sobrepõe
123

em construção, ou expansão perpétua. Nas palavras de Negri, “[..] é a


produção de nova pluralidade, de novas multidões” (2003,p.179). E ainda dirá:

[...] se a produção é produção de subjetividade, quer dizer, se


são subjetivos o produtor e o produto, e o processo produtivo
coincide com a esfera linguística do intelecto geral biopolítico,
então podemos explicar o nome comum “cooperação” como
aquela força que reúne os produtores aumentando sua
capacidade produtiva, e que, portanto, permite que a produção
singular da subjetividade se torne potência produtiva. (p.179)

Uma “constelação produtiva” se forma onde as potências-


diferenças da multidão começas a cooperar, criando uma nova
potência; [...] as singularidades procuram a cooperação, e as
multidões singulares forma a constelação, pois assim, podem
produzir mais, melhor podem ultrapassar continuamente a
medida singular de produtividade, abrir-se cada vez mais à
desmedida. (p.180)

Um conceito necessário para a existência da multidão é o conceito de comum.


Segundo Negri e Hardt, é o comum (the common), ou melhor, a descoberta do
comum, que faz com que a multidão, como negação da identidade e da
uniformidade, consiga se comunicar e agir como conjunto em seus platôs de
diferenças (NEGRI; HARDT, 2005, p.14). Assim como a própria multidão se
expande, em seus processos contínuos de diferenciação, também o comum é
produzido “numa espiral expansiva de relações”, conjuntamente.

Outro ponto que nos interessa neste conceito amalgama da multidão, é o do


primado da resistência. Para Negri e Hardt, o trabalho imaterial se coloca,
apesar de sua produção ser efetivada por uma “pequena minoria do conjunto
global” (NEGRI; HARDT, 2005, p.100), como a potência que cria os novos
contornos da vida social, das interações entre os indivíduos e mesmo da ética
de suas existências. É na capacidade do trabalho imaterial que os movimentos
de resistência encontram sua mobilidade, pelas transformações sociais –
“força, social, cultural e política” (p.101) – e suas redes de colaboração, para
operacionalizar práticas de liberdade. Além da luta contra a miséria e a
pobreza, os movimentos contemporâneos de libertação e resistência também
tiveram como bandeira o desejo nunca concretizado da “democracia do
governo de todos para todos”. Considerando a publicação original no ano de
124

2002 do livro Império e no ano de 2004 do seu livro Multidão e a explosão dos
movimentos democráticos após crise de 2008, sobretudo na Espanha, Estados
Unidos, Egito, Grécia, França, Chile, Turquia e Brasil, e a forma como estes
movimentos se articularam, os princípios da oportunidade histórica, da
similaridade dos modelos de resistência mais potentes aos modelos de
dominação e a insurgência de modelos cada vez mais efetivamente
democráticos, demonstram uma grande sintonia da teoria elaborada com a
realidade efetivada anos depois.

MOVIMENTO 4. APROXIMAÇÕES AO CONCEITO DE


(micro)PLANEJAMENTO URBANO
4.1 Movimentos que se encontram: praticas, politicas, criação e
resistências

Quero lançar noções e conceitos que se tornem correntes, que


se tornem não exatamente ordinárias, mas que se tornem
ideias correntes, que possam ser manejadas de vários modos.
Isso só é possível se eu me dirigir a solitários que vão
transformar as noções ao seu modo, usá-las de acordo com
suas necessidades. Tudo isso são noções de movimento, não
de escola. (DELEUZE apud BOUTANG, 1996)

Após as exposições feitas em nosso segundo movimento, acerca da produção


de Jane Jacobs, Jan Gehl e os coletivos de Urban Designers, e, no movimento
três, com a exposição dos conceitos escolhidos, cuidado de si, singularização e
multidão, que atuarão no papel de conceitos-balizadores, iremos propor, neste
momento de nosso percurso, a aproximação com o conceito de
(micro)Planejamento urbano, levando, então, em consideração as práticas e os
conceitos-balizadores. Ao propor uma aproximação e não uma definição
precisamos deixar claro antes que a criação de conceitos, ação primordial da
filosofia, segundo Deleuze e Guattari, não diz respeito a uma definição
encarceradora, limitadora, que engesse o conceito, mas antes com a
criação/fabricação do pensar. Um plano de imanência onde se dá a
experimentação de problemas e onde recolhemos elementos para a
constituição de um conceito. Não se pretende a um objeto-resposta, mas a um
processo de pensamento que faça frente ao problema que nos mobiliza
125

(DELEUZE; GUATTARI, 1992). Neste ponto então, cremos, que é possível


esboçar contornos, mesmo, e necessariamente, flexíveis para nossa meta de
elaboração de um conceito, baseando-se nas práticas e em balizadores ético-
estético-políticos.

Algumas questões podem surgir ao leitor deste trabalho: Qual a função dos
conceitos-balizadores? Seriam estes realmente necessários? Por que não nos
basta chegar ao conceito pela análise das práticas? Antes de seguir no
resultado de nossa prospecção justificaremos nossa estratégia dos conceitos-
balizadores.

Como já exposto, a máquina capitalista no contemporâneo age na captura


daquilo que a ela escapa, na tentativa de cooptar suas forças e subvertê-las
em proveito próprio. Citaremos aqui dois exemplos em ações que
consideremos dentro do campo do (micro)Planejamento urbano.

O primeiro exemplo diz respeito à mobilidade verde, a iniciativa do programa de


aluguel de bicicletas na cidade de São Paulo. Esta iniciativa incentiva o uso do
modal desafogando outras formas de mobilidade que hoje operam além de
suas capacidades. Esta pratica foi implementada há mais de 10 anos nas
principais cidades europeias. Trata-se de um sistema de bicicletas de aluguel
que podem ser acessadas mediante pagamento que se altera na validade
temporal de seu uso – tornando-se mais barato ao tempo de uso mais
prolongado e assim intensificando a escolha por tal modal. A validade do
acesso varia do período de um dia, um mês, e até um ano, na maioria dos
casos.

No caso da implementação na capital paulistana, deste projeto duas


instituições financeiras privadas entraram junto a gestão municipal gerando
dois projetos iguais, que, contudo, não dialogam, o Bikesampa, junto ao banco
Itaú, e o Ciclosampa, junto ao banco Brasdesco. Cada uma destas empresas
desenvolveu um modelo diferente de bicicletas e bicicletários (postos onde as
bicicletas são retiradas e deixadas após uso) com suas cores institucionais e
logotipos empresariais, para associar suas marcas com ao termo
126

“sustentabilidade”. Como dito acima, embora ofereçam serviços semelhantes,


os projetos são diferentes e operam sem a possibilidade de que uma bicicleta
de um possa ser deixada no bicicletário do outro, tão pouco, o serviço
comprado em um projeto pode ser acessado pelo outro projeto. Vemos esta
forma de adaptação do projeto europeu como uma aplicação no mínimo
questionável onde a gestão pública municipal de São Paulo cedeu direitos
excessivos aos “parceiros” privados (tornados na prática donos do serviço).
Não nos colocaremos em uma postura fundamentalista onde acordos entre
Estado e iniciativa privada não possam acontecer, e, porém, haja algo positivo
no caso paulista – afinal algo foi efetivado –, seremos críticos à extensão do
poder cedido a tais agentes particulares dentro do projeto. E nos sobra o
questionamento: o que acontecerá quando estas instituições resolverem tomar
suas bicicletas das ruas? Teremos uma ausência do serviço?

O outro caso de captura de um movimento que se iniciou fora dos modos de


produção hegemônicos que citaremos aqui é bem resumido no documentário
“Exit Through the gift shop” (BANKSY, 2010), que nos apresenta uma história
de “subversão da subversão”, de um “artista” que se utiliza de seus contatos no
mundo da arte de rua (street art), nos Estados Unidos e Europa, para criar um
negócio, onde indo contra a lógica deste movimento de contracultura produz
peças para comercialização, em escala quase industrial, sem conteúdo, se
utilizando de uma estética esvaziada de sentido e conceito (o quê, por si,
ridiculariza o mercado das artes).

O mercado das artes, desde o momento no qual se consolida o


reconhecimento dos artistas do street art, suas produções-manifestos se
posicionando contra a lógica tanto das práticas artísticas clássicas (ou
convencionais) quanto da construção da paisagem asséptica das cidades,
tenta se apropriar destas. A ação de captura da arte de rua chegou ao ponto
em que um muro grafitado pelo renomado e anônimo grafiteiro Banksy 49 foi

49
“A autoria anônima desse personagem – que se acredita individual, mas que também é,
possivelmente, coletiva – expõe intra e extramuros, rompe uma barreira histórica que separa os museus
e os espaços públicos. A pessoalidade de Banksy, “quem é?” ou “onde está?”, não importa. Assim como
não importa a obra e sim a ideia, tão pouco importa o artista. Importa a aproximação da contracultura,
da qual o graffiti sempre fez parte, aos “campos oficiais de arte” elevando-o ao status de arte,
127

removido e leiloado por mais de 400 mil dólares50. Mas a resistência deste
movimento à sua cooptação pelo poder do capital pôde ser presenciada, por
exemplo, quando o grafiteiro italiano Blu cobriu com tinta cinza suas próprias
obras, na cidade de Bolonha, como protesto desta apropriação da arte de rua
por grandes instituições comerciais e contra a criminalização dos grafites51.

Exemplos outros, dentro do campo do (micro)Planejamento urbano, podem ser


encontrados e não é difícil imaginar o uso das práticas insurgentes e contra
hegemônicas sendo usadas como fundamentação para justificativas da
argumentação neoliberal a favor da diminuição do Estado e suas regulações, e
a afirmação da livre regulação do mercado por si mesmo. E nesta perspectiva
de resistência vemos os conceitos balizadores escolhidos, como uma função
de condição para o conceito que almejamos aqui forjar.

Posto desta maneira, a função dos balizadores conceituais é estabelecer junto


às ações de (micro)Planejamento urbano uma postura implicada com a
resistência às forças hegemônicas que tentam apreendê-las e cerceá-las.

Assim, diremos que o conceito de (micro)Planejamento urbano, como


ferramenta metodológica conceitual, concerne às multiplicidades de práticas
que atuam conscientemente intervindo nos campos molares e moleculares dos
espaços urbanos. Interferência que se dá a partir de ações que: (a) incitem a
capacidade do desenvolvimento crítico ante a conformação do espaço urbano,
(b) levem em alta consideração as redes de sociabilidades estabelecidas no
território de atuação, (c) fomente a pluralidade de funções, (d) tenha especial
atenção a construção de espaços públicos de convivência, (e) incitação dos
habitantes na gestão e construção dos espaços urbanos, (f) proponham objetos

proporcionando respeito e escuta da street art. Mantendo-se, contudo, e surpreendentemente, avesso


tanto às armadilhas quanto às vantagens da fama. Banksy, desta maneira, coloca-se questionando e
redirecionando não somente o campo da arte urbana, como também o próprio jogo midiático e elitista
conformador dos grandes nomes da arte no contemporâneo” (PRUCOLI, 2011, p.80, 81).
50
O leilão aconteceu em 2008 e gerou grande repercussão internacional, uma dessas matérias pode ser
acessada no link:
http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL259686-7084,00.html
51
A matéria sobre o cobrimento das obras de Blu pelo próprio artista pode ser acessada no link:
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/03/22/Por-que-Blu-um-dos-mais-importantes-
grafiteiros-do-mundo-est%C3%A1-apagando-seus-murais
128

arquitetônicos e urbanísticos que se colaborem com a qualidade da vida


urbana, (g) incitem a mobilidade urbana verde, (h) se comprometam com a
acessibilidade da produção das estratégias e técnicas de construção das
espacialidades urbanas, (i) a atenção ao uso conjunto das escalas em AU, com
atenção especial à pequena escala, (j) atenção às singularidades dos territórios
de vulnerabilidade socioeconômica , (l) concepção ampliada do habitar, (m)
livre expressão e intervenção para além dos especialismos, (n) o cuidado e
potencialização das ações insurgentes, (o) busquem a autoria coletiva, e
finalmente, (p) que se utilizem das práticas artísticas como fissuras.

Se as estratégias de sobrecodificação das forças do CMI são múltiplas,


múltiplas serão também as formas de resistência criativa que surgem a todo
momento do trabalho do socius sobre si mesmo. As práticas citadas acima são
invenções do cotidiano, produtos das urgências, de linhas de fuga ao
hegemônico. Porém, não há neste jogo de “captura e fuga” qualquer
linearidade ou território permanentemente seguro. Esta disputa complexa se dá
numa complexidade rizomática, de forma descentralizada, uma guerrilha de
práticas de submissão e liberdade. Nosso intuito com a confecção do conceito
de (micro)Planejamento urbano não é apenas de agrupar este conjunto de
ações sobre tal nome, mas sim atuar na intensificação das práticas libertárias.
E por isso a implantação do conceito dentro do âmbito do urbanismo menor,
sob o balizamento dos conceitos do cuidado de si, singularização e multidão. E
sob tal pretexto nosso balizamento dirá que estas práticas terão como mote
maior, foco em algo que está para além da simples construção concreta do
objeto espaço urbano, e repousará sobre modos existenciais urbanos outros.

O balizamento das práticas que colhidas em nossos intercessores terão como


foco: (1) a atenção aos jogos de verdade, (2) a fuga das representações, (3) o
desmonte das construções morais e normativas como sistemas de submissão,
(4) buscarão intensidades capazes de efetivar dobras nas forças hegemônicas,
(5) terão como guia o desejo de inserção do sujeito nas práticas libertárias, (6)
na superação e reconfiguração do mundo, (7) buscarão a produção do comum,
(8) a construção de novos modos de sensibilidade, (9) novas de relacionar-se
com a alteridade, (10) com a produção do singular existencial, (11) com a
129

potência de invenção para a construção de outros mundos, (12) afirmar a


aposta em novas experimentações, (13) com o cuidado com a vida em sua
potência de expansão, pluralidade e redefinição incessável de seus contornos.

Posto de maneira resumida o (micro)Planejamento urbano, como conceito que


abarca uma pluralidade de práticas, se efetiva dentro do conceito um
urbanismo menor, mas seu foco, de maneira nenhuma se dá sobre o objeto
construído, senão sobre o poder de transformação que jaz neste, para
cooperar na construção de modos de existência criativos e libertários. Deve-se
perceber que tais obras e ações, mesmo que pontuais, possuem uma
articulação, no campo invisível das forças com a tarefa necessária de efetivar-
se como resistência criativa. Acreditamos que o (micro)Planejamento urbano
pode se constituir como uma perspectiva do urbanismo e assim afeta-lo com a
potência da vida revolucionaria artista. Esta perspectiva se soma a desejos de
outras abordagens possíveis no campo da AU, desejos que tem ganhado força
e alguma visibilidade ao longo das últimas décadas.
130

4.2 Pensar a prática do (micro)Planejamento Urbano no campo do


Urbanismo Menor: Estratégias e pistas

Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.


(DELEUZE, 1992, p.220)

As práticas e ações antecedem o conceito de (micro)Planejamento urbano,


como posto anteriormente. Então a questão que abre e intitula este texto, se
volta para uma resposta que situada no campo de uma atualização ainda no
porvir. Seria, julgamos, inocência acreditar que o trabalho de prospecção do
conceito, por si, pode conter a multiplicidade de um campo tão vasto,
constituído em diferentes paisagens, habitados por uma imensidão de atores e
de qualquer formar controlar ou dar sentido a suas práticas. As práticas de
intervenção no espaço urbano seguirão independente, do conceito cunhado,
das ideias contidas nestas páginas, estas irão adquirir novas formas, eclodirão
à urgência de novas forças. Então, o que nos motivas, aqui, são as operações
possíveis a partir da construção do conceito de (micro)Planejamento urbano
em um contexto bastante mais especifico, de dentro da instituição AU, ou na
consolidação de um território dentro deste saber que tenha a intensidade, a
força de desestabilizar e incitar a resistência criativa. E que de dentro deste
território, nos que nos cabe, tomar um papel ativo nas lutas dos espaços
urbanos contemporâneos.

Para tanto, nos parece importante deixar claro o território onde nos
encontramos, como uma perspectiva, dentro de uma infinidade de outras, para
a utilização do conceito de (micro)Planejamento urbano.
131

Sabemos e identificamos, num primeiro plano, ou, no plano mais imediato


possível, o local literal destas páginas, uma tese de doutoramento, que
pertence a um programa de pós-graduação de arquitetura e urbanismo; num
segundo plano, os limites do campo onde este trabalho se inscreve: o
urbanismo, teoria da arquitetura e urbanismo. Assim como os saberes que
tangenciam nosso objeto, que se interessam na apreensão do objeto urbano –
e seus objetos intrínsecos e correlatos: espaço urbano, cidade, o processo de
urbanização, etc. – e no desenvolvimento de estratégias e tecnologias –
saberes como a geografia, a sociologia, o direito, a psicologia, etc. Estamos
neste ponto ainda no campo acadêmico, num tema especifico e assim com
uma abrangência limitada. E que tem seu acesso voltado aos pesquisadores, a
formação dos graduandos; E finalmente, em um terceiro plano saímos da
elaboração acadêmica, e nos situaremos onde se efetivam as práticas, no
interior das instituições que questionam os fazeres legais e oficiais do espaço
urbano, sejam estas advindas dos profissionais arquitetos urbanistas atuantes
ou daqueles atores que de uma multiplicidade de outros lugares levam em si a
força instituinte do desejo de novas realidades.

Assim, como trabalho acadêmico, confeccionado no campo do urbanismo, da


teoria urbanística, com foco nos processos de urbanização, e naqueles que
estão ligados às práticas de gestão da conformação dos espaços urbanos, nos
situamos no campo do planejamento urbano. Pode parecer uma contradição
estabelecer tal localização, afinal, este é o local exato onde estão as práticas
hegemônicas que transformam a urbe em mercadoria, que dão a esta uma
forma esvaziada, um desígnio formal – como fetiche estético –, e função –
como exploração utilitária. Claro que, como dito anteriormente, existem uma
quantidade crescente de frentes democráticas atuando contra as forças
hegemônicas de construção perversa da cidade, tanto na academia, como no
nas proposições profissionais. Porém, os movimentos de transgressão à lógica
de produção capitalista selvagem, no qual ambicionamos nos posicionar, estão
contidos em uma minoria, em um movimento instituinte menor, dentro de um
campo de batalha em eterna conformação, e ainda na consolidação de um
território dentro deste saber há muito aprisionado pelo elitismo, pelas forças
econômicas, diminuído, sobretudo no caso brasileiro, à condição de mera
132

ferramenta da indústria da construção civil, das operações mercadológicas,


das disputas pelos capitais internacionais, como incremento ao proveito
máximo da especulação imobiliária.

Assumiremos como espaço primeiro de luta o campo acadêmico, a formação e


o desenvolvimento do pensamento crítico, assim como a apresentação de
práticas e metodologias projetuais em AU. Em segunda instancia aos
profissionais comprometidos com práticas outras para a construção de novas
paisagens menos nocivas.

Estabelecer-se neste campo pode parecer delimitar nossa produção do


conceito de (micro)Planejamento urbano a um outro confinamento, como
criticado acima, contudo, não vemos que este campo seja um limite, e sim um
propulsor. Entendendo que é na formação dos profissionais de AU, na
formação de um processo de pensamento que não fuja a pluralidade e a
riqueza da diferença, que podemos conjurar uma potência de espraiamento de
práticas mais interessantes, criativas e passiveis de estabelecer resistência às
incessantes tentativas de cooptação do CMI. Assim, como constituição teórica
que visa potencializar ações descentralizadas (e de modo algum torna-las outra
coisa).

Dissemos antes (em nosso texto 1.12, “O que pode uma tese”) que a formação
em AU tem uma vertente tecnicista muito forte, que o lugar do pensamento
crítico parece estar enclausurado na pós-graduação – com exceções que
indicam a confirmação da regra. Operar o conceito do (micro)Planejamento
urbano nas disciplinas da cadeia, ou voltadas, ao urbanismo se coloca como
inserção para esta ferramenta-conceito no viés da pedagogia freiriana (que
trataremos mais adiante) de conscientização, empoderamento e libertação
destes projetistas. O (micro)Planejamento urbano como vertente do
planejamento aliada às forças de democratização dos espaços urbanos, num
polo oposto ao planejamento desenvolvimentista (centralista, tecnocrático e
autoritário), e ao planejamento estratégico (market friendly).
133

Entendemos que a formação é um espaço de encontro com uma força


intercessora que produz uma afetação no pensar/agir, e não está, desta
maneira, limitada ao espaço da graduação. Publicações acadêmicas e não
acadêmicas, chegam cada vez mais a uma quantidade expressiva de pessoas.
Várias das práticas que aqui absorvemos no conceito de (micro)Planejamento
urbano, como por exemplo as hortas urbanas, mobiliário de baixo custo,
cartilhas de práticas e estratégias projetuais, intervenções artísticas no espaço
urbano, e etc. já fazem parte do fluxo cotidiano das informações que abundam
em revistas, páginas de internet, redes sociais. Práticas como as que estão
contidas em livros como Cidade para pessoas (GEHL, 2013),
Microplanejamento: práticas urbanas criativas (ROSA, 2011), Handmade
Urbanism (ROSA; et al, 2013), Design with the other 90% cities (SMITH,
2011), revistas digitais como a Pise a grama52, ou sites como o Urban think
tank53 e muitos outros. Esta grande exposição faz com que novas ações se
concretizem, incitem práticas que se adaptam, se superam, criam novas formas
como práticas que se espalham e se diversificam, e também reconfiguram os
sujeitos que as operam.

As práticas se efetivarão em um campo que ainda está se consolidando,


campo que se coloca como consequência da práxis e do ensino que se
estabeleceram como tradicionais, e que não dão conta dos desejos e
desassossegos dos sujeitos que habitam os dias que correm. Estas práticas,
tenham um caráter propositivo, ou de potencialização de ações pré-existentes,
não podem ser aplicadas como formulações exatas, o que iria contra toda a
lógica e o embasamento teórico deste trabalho, e estariam em paralelo com a
cartografia esquisoanalítica, da (filosofia da) diferença (PASSOS; KASTRUP;
ESCOSSIA, 2009), posta não como caminho (hódos) pré-determinado por uma
meta, o que configura o método (metá-hódos), mas antes uma forma oposta,
um hódos-meta, como um caminho que em seu processo definirá o que melhor
lhe serve.

52
Pise a grama pode ser acessada em:
http://piseagrama.org/
53
Urban think tank pode ser acessado em
http://u-tt.com/
134

MOVIMENTO 5. EXPERIMENTO DOCENTE EM URBANISMO MENOR


5.1 (micro)Planejamento urbano como conteúdo e instrumento de uma
pedagogia da autonomia crítica em urbanismo

Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de


um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da
cidade? (FREIRE, 2015, p.32)

Como posto por Foucault e Deleuze, em alguns textos que versam sobre as
sociedades disciplinares, a instituição escola remonta, em sua estrutura física
arquitetônica e em suas políticas pedagógicas, à máquina panóptica de Jeremy
Bentham. A escola foi historicamente construída, desde as modulações de
controle disciplinares, como instrumento de tecnologia para uma modulação
especifica do sujeito, se colocando de maneira perigosa como estrutura
próxima à estrutura prisional, e mesmo aos quarteis militares. A escola e a
pedagogia, sobretudo na era moderna, com o advento da revolução industrial e
a cidade moderna, está ligada à uma forma de docilização, instrumentalização
e exploração das forças do homem. Estamos falando da mercantilização do
ensino voltado à construção, antes e em primeiro plano, à formação do
trabalhador, em segundo plano, à docilização dos citadinos, e em último plano,
quando este se faz presente, na assumpção da cidadania e na potência criativa
dos sujeitos, pelo risco que estes atributos causam ao status quo de uma
sociedade baseada na exploração do trabalho.

No que toca ao saber AU, o excesso de tecnicismo e falta de capacidade crítica


constituem o mesmo processo de formação de atores lapidados para se
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encaixarem perfeitamente dentro dos aparatos que instauram este poder como
peça da indústria mercantil da cidade capitalista.

É importante considerar que a construção trágica dos espaços urbanos não se


deu na ausência da AU, e que os males, os tumores urbanos, são frutos de
uma forma de confecção das cidades modernas, são consequências desta
maneira de atuação, na qual a produção arquitetônica e urbanística é parte
ativa. Ou, de outra forma, os problemas urbanos são produzidos pelo próprio
urbanismo. A naturalização destas práticas, nos faz deparar com a cegueira
ante o produto desastroso de nossas ações, e a surdez à crítica de existir nas
cidades. É exatamente nesta lógica que práticas insurgentes criativas vêm à
tona por atores de campos outros que não a AU (hegemonicamente), e que a
produção das teorias inventivas, com potência crítica, sobre o urbanismo e as
cidades residem, com uma intensidade muito maior, hoje, em saberes como a
sociologia, a economia, a psicologia, a filosofia, etc.

Nos encontramos então, neste movimento de nosso trabalho de tese, com um


importante intercessor, o subversivo pensamento do professor Paulo Freire e
sua educação libertadora, instituída para “formar a consciência crítica e
estimular a participação responsável do indivíduo nos processos culturais,
sociais, políticos e econômicos” (FREIRE, 2001, p.9). Freire, além de ser um
dos grandes pensadores da educação com sua obra tendo intensa relevância
internacional, nos surpreendeu ao longo de nosso rápido mergulho em seus
escritos. Surpresa que se deu pela quantidade de semelhanças com nosso
background teórico e com questões que já perpassavam mesmo nossas
práticas docentes, o que só reforçou este encontro como um bom encontro,
como colocaria Espinoza.

Da vasta bibliografia escrita por Freire e por pesquisadores ligados à educação,


que comentam e desenvolvem suas ideias, nos apegamos aqui a três obras
apenas, Conscientização: teoria e prática da libertação (2001), Pedagogia
da autonomia: saberes necessários à prática educativa (2015) e Dicionário
Paulo Freire (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2010).
136

Para Freire alguns conceitos são centrais nas intenções da educação


libertadora. O próprio conceito de educação já demarca um território muito
próximo ao que aspiramos com nosso trabalho, e que acreditamos tem a
capacidade de torná-lo mais potente. Para este autor a educação é entendida
“como prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação
crítica da realidade” (2001, p.29). Tal conceituação traz a educação para fora
de uma postura estática e a transforma em ação, em prática ligada à
percepção crítica da realidade sob a qual “os homens são capazes de agir
conscientemente sobre a realidade objetivada” (p.29). Freire dirá que a
realidade em uma aproximação espontânea do homem se dá de maneira
ingênua, em uma experimentação rasa, onde não se dá a consciência crítica
ante a realidade na qual se encontra. Freire definirá a conscientização, então,
como:

A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera


espontânea de apreensão da realidade, para que chegarmos a
uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto
cognoscível e na qual o homem assume uma posição
epistemológica.

A conscientização é nesse sentido, um teste de realidade.


Quanto mais conscientização, mais des-vela a realidade, mais
penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos
encontramos para analisá-lo. [...] A conscientização não pode
existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato de ação-reflexão.
Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o
modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os
homens. (2001, p.30)

Posto desta maneira, a conscientização se constitui como uma prática de


compreensão da confecção da realidade, a hermenêutica da produção do
mundo que envolve o homem, para que este então possa atuar, modificando a
si como sujeito, e então ao tornar a realidade em objeto apreendido, encontrar
as formas de ação para modificá-la. Freire dirá ainda que a conscientização é
uma prática constante, um processo que deve ser permanente, para que
fugindo da ideia de um mundo feito, dado, naturalizado não nos peguemos
“submersos por novas obscuridades” (2001, p.31).
137

Michel Foucault dirá que a política é inerente a todas as práticas, que todas as
práticas carregam em si uma política de instituição de uma determinada força.
Em Freire encontramos então um paralelo relacionado à educação e a
conscientização:

[...] o processo de alfabetização política – como o processo


linguístico – pode ser uma prática para a domesticação dos
homens, ou uma prática para a sua libertação. No primeiro
caso, a prática de conscientização não é possível em
absoluto, enquanto no segundo caso o processo é, em si
mesmo, conscientização. Daí uma ação de desumanizante, de
um lado, e um esforço de humanização, de outro. (2001, p.31)

Para Paulo Freire, é necessário descodificar situações naturalizadas a partir de


um exercício de afastamento para que os alunos possam refletir junto ao
educador sobre uma determinada representação. Ativando uma reflexão que
parte da experiência destes, e em um processo de decomposição e
problematização dos elementos e das relações, assim se aproximando de um
modo crítico de análise do objeto-realidade (p.36). E estas análises indo além
da informação, são parte de uma análise de si, da “experiência existencial do
aluno”. Deve-se, diz Freire, buscar um tema gerador:

Procurar um tema gerador é procurar o pensamento do


homem sobre a realidade que está em sua práxis. Na medida
em que os homens tomam uma atitude ativa na exploração de
suas temáticas, nessa medida sua consciência crítica da
realidade se aprofunda e anuncia estas temáticas da
realidade.

Devemos perceber que as aspirações e os motivos contidos e


os objetivos contidos nas temáticas significativas são
aspirações, motivos e objetivos humanos. Não existem em
algumas partes fora, como entidades estáticas; são histórias
como os homens mesmos; consequentemente, não podem ser
captadas prescindindo dos homens. Captar estes temas é
entende-los, e compreender, portanto, os homens que os
encarnam e a realidade à qual se referem. (2001, p.37)

Este movimento freiriano de descodificação de uma realidade e encontrar um


tema gerador, nos parece ter um paralelo muito forte à invocação de Félix
Guattari para o uso da cartografia pelos arquitetos, a necessidade de inserção
e compreensão de um território existencial para então realizar proposições
138

capazes de compor com uma subjetividade não homogeneizada e


homogeneizante.

Outros conceitos que são centrais no vocabulário conceitual da obra de Freire


e que consideramos muito próximas de nosso intuito com o
(micro)Planejamento urbano são o conceito de “autonomia” e
“empoderamento”. Autonomia é uma das categorias centrais da obra de Paulo
Freire. Embora ligado a priori ao campo da educação, segundo o próprio autor
tal conceito é necessariamente expandido agregando a si o entendimento do
direito pessoal na construção de uma sociedade democrática que a todos
respeita e dignifica. Entendendo assim tal termo como “propiciador da
solidariedade e da comunidade” (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2010, p.53).

Segundo Freire o conceito de autonomia está intimamente ligado à prática de


libertação do ser humano das cadeias do determinismo neoliberal,
reconhecendo que a história é um tempo de possibilidades (2015, p.20). É um
“ensinar a pensar certo”54, como diria o autor, mas que entendemos como uma
outra forma que não o pensamento da reprodução serializada, uma forma de
pensar que se expressa como quem fala com “a força do testemunho”. É um
“ato comunicante, co-participativo” (FREIRE apud STRECK; REDIN;
ZITKOSKI, 2010, p.53). O processo de autonomia, de incitação ao pensamento
crítico e consciente, exigirá um exercício crítico e prático. Freire dirá acerca
deste “pensamento certo”: “O clima do pensar certo não tem nada que ver com
o das fórmulas preestabelecidas, mas seria a negação do pensar certo se
pretendêssemos forjá-lo na atmosfera da licenciosidade ou do espontaneísmo”
(2015, p.49).

Ao conceito de empoderamento, deve-se pontuar antes uma negação:


empoderar não pode ser entendido em um sentido onde tal prática é uma

54
Consideramos que alguns aspectos que receberiam, sem dúvidas, críticas em algumas falas de Paulo
Freire, como a expressão usada “pensar certo” deve ser ponderada à luz de uma historicidade dos
fundamentos teóricos deste autor, advindas de leituras de um marxismo ortodoxo, ainda muito em
prática, onde certas polarizações são normais. Porém, acreditamos que este “pensar certo” em Freire
não deve ser compreendido como vontade de impor uma forma de pensar que caminhe em um sentido
de construção de uma verdade única de possibilidade. Mas, antes, uma possibilidade de pensar que
negue a reprodução de uma educação não crítica.
139

concessão do poder, dá-lo a quem não tem – ato que pressupõem inclusive
uma falsa superioridade e uma falsa inferioridade. Empoderar como conceito
freiriano versa sobre a ativação da potencialidade criativa do homem. Potencial
criativo que assume as esferas psicológicas, sociais e políticas, e que esta
incitação afete, não somente o sujeito, mas que este seja também capaz de
produzir tal afetação.

Mesmo quando você se sente, individualmente, mais livre, se


esse sentimento não é um sentimento social, se você não é
capaz de usar a sua liberdade recente para ajudar os outros a
se libertarem através da transformação da sociedade, então
você só está exercitando uma atitude individualista do
empoderamento ou da liberdade”. (FREIRE apud STRECK;
REDIN; ZITKOSKI, 2010, p.147)

O conceito de empoderamento está intimamente ligado ao conceito de


conscientização, tanto que a tradução deste em algumas línguas, se deu com a
palavra empowerment. Se afirmará, então, que para Freire, empoderamento é
o eixo que une consciência e liberdade. É impossível ser livre, se não se tem
consciência. Não que a tomada de consciência, por si, leve o sujeito
diretamente à liberdade, porém, é inegável que a condição para a liberdade
está do desenvolvimento da consciência. É preciso entender o empoderamento
como um processo que advém das relações, das interações e trocas sociais
em que nos moldamos, e constituímos nossos contornos e, que no processo de
desenvolvimento, critico, problematizador da realidade, onde se desenvolve a
“conscientização”. O processo de conscientização, portanto, e segundo Freire é
que é responsável pelo acesso ao “poder” transformador para operar nas
relações sociais de exploração e subserviência, e assim, com posse deste
poder, acessar a liberdade e a libertação.

Pensar os conceitos Freirianos de conscientização, autonomia e


empoderamento dentro do (micro)Planejamento urbano, em sua ação de
formação de sujeitos ativos nas políticas da AU – e não somente sujeitos
passivos, formados por esta para que se mantenha um certo estado de coisas
– sem dúvida reforçam a crítica desenvolvida neste trabalho, e a necessidade
pungente de atuar como interferência para outras possibilidades mais
140

interessantes de arquitetos e urbanistas e, consequentemente, na produção de


espaços urbanos outros. Porém como dito por Freire estes conceitos como
processos não são operadores que se fecham exclusivamente no sujeito, mas
que, a partir desta formação, nele encontram um ponto de dispersão para
alcançar uma consciência, uma autonomia e um empoderamento coletivos. A
crítica feita neste trabalho à formação tecnicista e de uma falsa vontade
apolítica, rebate-se em uma conduta focada em si por parte destes
profissionais. E assim, nos parece, que o processo de formação que nos
interessa, coloca-se também em dois planos, do sujeito e deste sujeito para
com o mundo.

Partindo do ponto exposto acima, e da questão pedagógica da formação dos


estudantes de AU, assim como dos profissionais que buscam seguir sua
formação seguimos um pouco mais na obra freiriana. Todos os conceitos
tratados neste texto são ferramentas produzidas por Freire para atuar na
formação de um sujeito crítico passível de assumir o papel de agente instituinte
de realidades outras. Todavia, a obra deste autor de desenvolve também para
a formação daqueles que incitarão estes ensejos de mudanças. No livro
Pedagogia da autonomia se colocam pontuações voltadas aos educadores,
com exposições que entendem que é necessária uma reconfiguração dupla,
das práticas educativas, e consequentemente da figura do professor, como
difusor em sala de aula destas.

Talvez a grande mensagem de Freire neste livro, que se coloca num


movimento de consolidação das ideias já apresentadas, seja que “ensinar não
é transferir conhecimento, mas criar a possibilidade para a sua produção ou a
sua construção” (2015, p.24), “reforças a capacidade crítica do educando, sua
curiosidade, sua insubmissão” (p.28) e ainda no mesmo movimento

É exatamente neste sentido que ensinar não se esgota no


“tratamento” do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito,
mas se alonga à produção das condições em que aprender é
criticamente é possível. E estas condições implicam ou exigem
a presença de educadores e de educandos criadores,
investigadores, rigorosamente curiosos, humildes e
persistentes. (p.28)
141

Esta colocação feita por Freire evoca, colocando o papel do educador, não na
figura central de quem dá o conhecimento, mas diferente, no papel de quem
cria condições para seu desenvolvimento, uma outra responsabilidade e um
outro jogo em plano. No entendimento tradicional da sala de aula, o professor
expõe o conteúdo e o aluno o recebe, na versão freiriana, o professor deve
fazer um esforço de construção de um momento crítico que convoca o aluno,
não mais como receptador passivo do conteúdo, a pensar analiticamente por si
próprio.

A ideia de pensar criticamente está situada com muita proximidade do que


Deleuze diz sobre o pensamento “como ato perigoso”, entendendo que pensar
é poder, é estabelecer estratégias capaz de constituir modos de existência que
fujam ao hegemônico (DELEUZE, 1992, p.119,120).

Assim Paulo Freire, seguindo na escrita deste livro, coloca questões aos
educadores, que de forma alguma se apresentam como formulações a serem
copiadas, mas antes, como pistas e indicações de sentidos possíveis e
desejáveis. Estas pistas também nos servem para a prática do
(micro)Planejamento urbano, pensado no âmbito da formação dos profissionais
da AU, tanto quanto na incitação para que estes tenham uma postura também
de educadores e incitem coletivamente, para além do especialismo, o cuidado,
o interesse, a crítica, e a criatividade para com estes objetos tão complexos e
abandonados às mãos do mercado e da tecnocracia que são a cidade e o
modo de existência urbano. Consideramos aqui não a totalidade das
pontuações de Freire, mas aqueles que julgamos os mais interessantes e que
mais podem nos ser úteis.

A rigorosidade metódica é um dos primeiros pontos postos por Freire,


entendida como a capacidade de “aproximação” que deve ser incitada pelo
educador aos educandos. Colocar no espaço da sala de aula a noção, de uma
enorme satisfação, da compreensão que como seres ativos na produção da
nossa própria história somos todos capazes de intervir no mundo, e conhece-
lo. Compreender que tanto quanto o homem é uma produção histórica, também
142

o é o nosso conhecimento do mundo. E a superação do conhecimento posto,


num movimento onde ensinar, aprender, pesquisar estabelecem dois planos
um de reconhecimento de um estado dado, e o de desbravamento de novas
concepções do saber.

O segundo apontamento diz respeito a necessidade da pesquisa constante dos


conteúdos, uma pesquisa que busque o que na interação entre professor e
aluno, tenha o potencial de gerar em ambos inquietações, a incitação da
curiosidade de ambos, como força capaz de criar o comprometimentos entre
estes dois personagens com o conhecimento. O conhecimento que possa
habitar no campo do desejo e da paixão, capaz de afetação e de
desdobramentos na produção de um outro saber.

Outro ponto contido no livro é o respeito e a busca pela contribuição dos


saberes e experiências dos alunos no espaço da sala de aula. Como indaga o
autor:

Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos


de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder
público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos
e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das
populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde
das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros
ricos e mesmo puramente remediados dos centros
urbanos? Essa pergunta é considerada em si
demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz.
É a pergunta de subversivo, dizem certos defensores da
democracia. (FREIRE, 2015, p.31,32)

Um dos paradigmas que foi quebrado ao longo dos últimos anos foi o do
reconhecimento do curso de AU, bem como outras áreas do saber, como
sendo composto por um corpo discente extremamente elitista. As políticas de
acesso ao ensino superior aplicadas, até pouco tempo atrás, criaram
certamente uma nova paisagem nas escolas da arquitetura. E a interação em
sala de aula, considerando que a proveniência destes alunos não é mais
integralmente dos bairros mais nobres das cidades, pode e deve ser
143

aproveitada em sala de aula com interferências que podem ser positivas para
todos.

O quarto ponto que nos interessa na pedagogia da autonomia freiriana diz


respeito a superação pela crítica. O autor dirá que o desenvolvimento crítico
tem como resultado, não uma ruptura, mas uma superação. Isso porque a
incitação para envolver-se no desvelar de uma realidade se coloca como
movimento impulsionado pela curiosidade, que se inicia como “saber do senso
comum”, uma afetação que ao ser embebida gradualmente por um metodismo
cada vez mais rigoroso diante a aproximação com o objeto estudado. E ainda
que esta curiosidade permanece em sua essência, se modificando somente em
sua essência.

A curiosidade como inquietação indagadora, como


inclinação indagadora, como desvelamento de algo,
como pergunta verbalizada ou não, como procura de
esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta,
faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria
criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos
põe pacientemente impacientes diante do mundo que
não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.
(2015, p.33)

Seguindo, Freire escreve aos educadores da necessidade da reflexão crítica


sobre as práticas naturalizadas, e mesmo que este autor, no momento histórico
de seu pensamento separe teoria de prática, coisa que a (filosofia da) diferença
tenha abolido – no entendimento que esta não são de fato objetos distintos –,
deve-se focar, cremos, no enunciado mais que na forma cunhada pela teoria
marxista ortodoxa na qual se desenvolve o pensamento deste pensador. A
análise das práticas, em um movimento de desnaturalização, de
desconstrução, para empreender uma busca para a compreensão do
funcionamento e então poder atuar, de uma base crítica, nestas. Este
movimento, dirá o próprio autor, coloca “teoria e prática” em uma dinâmica na
qual estas se confundem.

É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem


que se pode melhorar a próxima prática. O próprio
144

discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser


de tal modo concreto que quase se confunda com a
prática (p.40).

Outro ponto que, neste espaço, nos toca diretamente, é o reconhecimento e a


visibilidade das diferenças culturais. Segundo Freire este ponto é um passo
fundamental para que o professor possa ser capaz de lidar com a alteridade
em sala de aula. O primeiro movimento para isto é a compreensão do próprio
educador como sujeito construído dentro de um processo histórico e social,
como ser não natural no qual se coloca como:

[...] ser pensante, comunicante, transformador, criador,


realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de
amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de
reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos
não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do
“não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do
meu eu. (p.42)

Uma vez compreendida a questão processual de si pelo educador, reconhecer


a alteridade dos alunos em suas diversas esferas, na amplitude do conceito de
cultura, e no diálogo e tratamento com estas diferenças com respeito,
dignidade, e o mais importante, o entendimento de que estas diferenças são
um potente metabolizador do ensino crítico do mundo. Como escreve Freire:

[...] passa despercebido a nós que foi aprendendo


socialmente que mulheres e homens historicamente,
descobriram que é possível ensinar. Se estivesse claro
para nós que foi aprendendo que percebemos ser
possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a
importância das experiências informais nas ruas, nas
praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos
pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos,
de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam
cheios de significação. (2015, p.44,45)

Esta colocação de Paulo Freire abrange algumas camadas diferentes, a


primeira e mais superficial, porém não menos importante, diz respeito ao
dissenso, a visibilidade e à troca com a diferença, como já posto antes.
Também coloca como a constituição do sujeito se dá no mundo, sem nenhuma
145

exclusividade ao espaço da escola como lugar de aprendizado. Esta pode


parecer uma afirmação também superficial, contudo ela esconde outras
questões em seu enunciado. Assumir esta ideia é assumir a importância do
espaço na constituição do mundo e suas relações, elevar a experiência do
mundo no que mais importa, a constituição daqueles que o habitam e
constroem. Ainda que as experiências destes espaços pelos alunos devem ser
consideradas como capazes de intervenção na própria sala de aula e na
construção do pensamento crítico. Voltando a ideia de que ensinar não é
meramente transmitir conhecimento, mas incitar a possibilidade para a
edificação deste e que este conhecimento “precisa ser constantemente
testemunhado, vivido” (p.47).

Freire pontuará ainda para os educadores sobre a necessidade de, além de


entender-se como processo histórico social, o sujeito, como processo, é um ser
inacabado, “certo, inequívoco, irrevogável” (p.52), e que, desta forma há
sempre a possibilidade de escapar às serializações da vida. O que leva nosso
intercessor, a colocar outro condicionante, o reconhecimento de ser
condicionado. Neste ponto Freire dirá eu a intensidade e a potência do
pensamento crítico pode fazer com que o ser condicionado supere-se tornando
a si mesmo como ser determinado.

Finalizaremos então com duas pontuações freirianas que muito afetam a


concepção deste trabalho na constituição de nossa meta, o conceito de
(micro)Planejamento urbano. Freire marcará a exigência de que o ato de
ensinar seja efetivado com alegria e esperança. A esperança de que juntos,
educadores e educandos podem “aprender, ensinar, inquietar-nos produzir e
juntos igualmente resistir aos obstáculos a nossa alegria” (p.70), e ainda que a
esperança é necessária para combater o determinismo e a história, esta última
entendida como tempo de possibilidades. E, ligado a esta exigência da alegria
e da esperança, a convicção de que a mudança é possível, “saber do futuro
como problema e não inexorabilidade”, que não há estados e contornos
naturais imutáveis, mas construções constantes e embates entre o instituído e
o instituinte. E que mesmo que o desconforto da mudança aconteça, como
ilustrou tão poeticamente Nietsche na fabula de seu profeta Zaratustra “é
146

preciso ter ainda um caos dentro de si para gerar uma estrela cintilante”
(NIETZSCHE, 2005, p.16).

Ao entrar em contato com a obra de Paulo Freire, suas teorias sobre a


educação crítica, e ser afetado por estas, devemos relatar uma enorme alegria
e surpresa, ao perceber os paralelismos entre este e nosso referencial teórico
da (filosofia da) diferença. Apesar do estruturalismo do espaço-tempo que
envolveu Freire e seu pensamento, e talvez porque seu foco esteja no
pensamento, há uma grande dinâmica e fluidez que se fazem intensamente
presentes na produção deste intercessor, que definitivamente não é um
pensador do consenso. Sua convocação aqui coopera para o posicionamento
estratégico de nosso conceito ferramenta do (micro)Planejamento urbano, de
nossa aspiração de instituir um território de má vontade (no sentido dado por
Deleuze), intempestividade e multiplicidade, que para tanto opera neste
trabalho, também na aposta de uma alfabetização crítica dos arquitetos
urbanistas.
147

5.2 Narrativas rizomáticas de uma experiência em urbanismo menor:


(micro)Planejamento na prática docente

O relato da experiência que tivemos ao lecionar a disciplina de Urbanismo I e


outros relatos de outros momentos que compõe este texto seguem com
algumas advertências necessárias à sua leitura. Em primeiro lugar esta
experiência não busca ou se pretende a ser vista como uma fórmula a ser
copiada. Tão pouco esta se apresenta como uma práxis finalizada em seu
planejamento (de aula), da qual estamos plenamente satisfeitos, sabemos que
este é apenas o começo de um processo de aprendizagem docente, e como
tal, existem muitos problemas a serem superados. Há nesta escrita tanto
momentos de vitórias quanto de derrotas, e ambas as experiências nos
interessam. Mais que uma exibição da qual somos orgulhosos este relato tem
como função problematizar o ensino convencional da cadeira de urbanismo e
colocar em cheque as próprias práticas propostas com o conceito de
(micro)Planejamento urbano. O território de onde esta escrita é confeccionada
é o quinto ano, a se completar, no espaço-tempo de lutas que é a sala de aula
do ensino superior em AU.

Admitimos que a confecção deste relato, de uma escrita que nos tomou muito
tempo e muitas ponderações, se constitui de anotações feitas em tópicos, por
discussões em sala de aula e conversas nos corredores, assim como pelos
trabalhos realizados pelos alunos e de uma reconstituição do pensamento
crítico sobre estes. A disciplina de Urbanismo I foi ministrada através de dois
semestres, tendo sido efetivado em três turmas, e no momento presente mais
duas turmas que se iniciaram. Outras experiências também fazem parte desta
148

escrita, compondo na justificativa de sua existência. Este relato, contudo, não é


um diário de campo, ou uma experiência descritiva convencional. Nomes e
quaisquer tipos de identificações estão ausentes nesta escrita, este certo
anonimato e descaracterização se dão porque nos importa a expressão da
experiência de um determinado espaço-tempo docente muito mais que
qualquer individuação, dado estatístico, resumo, fichamento ou rotulação. Este
texto encontra-se mais próximo do conceito de biografema55, ou mesmo de
uma narrativa rizomática, uma vez que para além do registro de dados em uma
ordem cronológica, ou qualquer tipo de ordenamento, apostamos na
possibilidade de criação que efetivaremos aqui e que pode advir da partilha
deste. Cremos que não cabe em nossa proposta uma narrativa numa linha
mais convencional, onde eventos são registrados em uma linha cronológica
ininterrupta e desenvolve-se uma forma ou estilo que irá capturar em demasia
estratificações e, com isso, deixar diluir determinadas experiência de afecção,
de momentos de inspiração como coloca Deleuze, do desenvolvimento do
pensamento crítico, como coloca Freire – o que de fato nos interessa.

Nossa aposta será a de efetivar uma, ou melhor, duas escritas que possam se
aproximar de dois movimentos diferentes em essência e que serão marcados
por fontes também diferentes. O primeiro movimento, mais estratificado,
estruturado, construído em um tempo cronos56, e o segundo movimento será
composto por momentos de inspiração, de afectação, marcados por um tempo

55
O conceito de biografema, nos foi apresentado durante o período do mestrado, como uma
ferramenta que vinha sendo trabalhada dentro do Programa de Psicologia e de Educação da UFRGS.
Segundo Costa “a prática de uma biografemática envolve a constituição de um retrato de vida, porém,
nunca acabado. O que há é o desejo de encontra-lo, um rosto sempre etéreo. Trata-se de um outro
tratamento para aquilo que a cultura nos oferece acerca do autor (atráves dos livros, fotos, manuscritos,
filmes, entrevistas, documentos, etc): a relação biografemática faz uso deste material, porém toma-o
como um depósito de signos soltos, prontos para pontilharem outros rostos, culminando em novos
jogos de mentiras e verdades. (COSTA, 2010, p.29)
56
Cronos e aion são dois tempos que foram foco da escrita de Deleuze (2011), de forma simplificada
diremos que cronos diz respeito a marcação, invariável e constante do tempo, o tempo do relógio, de
um computador, tempo de uma marcação racional; aion, por sua vez, é o não tempo, é o atemporal, o
distorcido, incoerente, irracional, esquizofrênico da intensidade de forças que “acontecem” (para usar
outro conceito deste mesmo pensador), trata-se do tempo que se ausenta quando um afeto de grande
magnitude nos desloca para além do tempo cronos.
149

aion – talvez esta seja uma narrativa como corpo sem órgãos57 (DELEUZE;
GUATTARI, 2006).

Em nossa trajetória acadêmica o urbanismo só se tornou um tema atrativo


somente após um longo percurso, já após a graduação quando os estudos
sobre (o pensamento d)a diferença naturalmente tomaram foco sob a
questão do espaço construído para além dos limites dos objetos
arquitetônicos, suas estéticas da moda, suas espacialidades, sua
mercadologia. Mais que apenas um conjunto de elementos morfológicos –
caminhos, pontos nodais, marcos, territórios –, entender o urbanismo como
jogo de anteparos projetados e edificados em relação direta com o socius,
aglomerados amorfos e movediços, a pluralidade infinda das formas e
conjunturas possíveis de organização das várias linhas, como
tecido/amálgama constituíndo as próprias formas e implicações de suas
possíveis tessituras. O urbanismo não foi, talvez, uma escolha, mas uma
insurgência na produção processual de nosso pensamento crítico em AU,
uma convocação.

Após alguns semestres trabalhando numa escola de arquitetura onde sou


responsável, até o momento, pela matéria de desenho (desenho em
perspectiva artístico voltado aos objetos arquitetônicos e urbanísticos) para os
alunos do primeiro período, me foi, então, oferecida a disciplina de Urbanismo I
(também chamada de Projeto de Urbanismo, ou Atelier de Urbanismo).
Questionei, prontamente, o coordenador do curso, pondo a ele que, como
estudioso de crítica das práticas urbanísticas contemporâneas, seria mais
interessante que assumisse a disciplina de Urbanismo III (tradicionalmente nas
escolas de AU a crítica encontra-se no final da cadeia das disciplinas de
projeto), onde poderia apresentar um trabalho de reflexão crítica do urbanismo
associada a temas e conceitos das ciências humanas (sociologia, psicologia,
arte e etc). Assim, disse que poderia, inclusive, trabalhar com minha pesquisa

57
Pontuaremos, de maneira resumida, que o conceito de corpo sem órgãos (CsO) deve ser entendido
como uma prática de experimentação criativa, instituinte, desetabilizadora, e por isso como uma
postura antagônica à organizações estabelecidas (organismo). “É sobre ele que dormimos, velamos, que
lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades
inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos”. (DELEUZE;
GUATTARI,1996, p.9)
150

de tese, e o referencial teórico sobre o qual me apoio. Ao mesmo tempo fugiria


da lastimável tarefa de ter a obrigação de trabalhar com o A imagem da
cidade (1997), de Kevin Lynch durante um fastidioso semestre com os alunos.
Ou mesmo, e ainda, como é prática em algumas escolas particulares, trabalhar
um semestre inteiro apenas com diagnóstico de uma área, graças ao tempo
reduzido de trabalho que se convenciona em cursos de AU de menor carga
horária de formação – em comparação às instituições públicas, as faculdades
privadas chegam a oferecer metade, ou ainda menos, da carga horária para a
aplicação das disciplinas de urbanismo. Contudo, o coordenador do curso

lançou-me um questionamento: “E por que tem que ser assim? Por que não
trabalhar com um referencial crítico em Urbanismo I?”. Tal ponderação,

feita repentinamente, nos desnorteou. Sua lógica era simples e certeira. Fui
lançado ao passado, quando era ainda um aluno na graduação e a disciplina
que iniciava a cadeira de urbanismo, seguindo um modo tradicional deste, na
leitura de Lynch foi tão pouco sedutora, inquietante e desafiadora.

Ao compararmos as disciplinas introdutórias de projeto de arquitetura (PA) e


projeto de urbanismo (PU), encontramos em PA experiências embebidas em
clientes fictícios fantásticos, terrenos exóticos e interessantes, programas
curiosos, e metodologias didáticas divertidas que seduzem os alunos novatos
ao oficio da produção dos objetos arquitetônicos. Enquanto, em um plano
oposto, as disciplinas de PU são pouco simpáticas, com pouco sucesso em
arrebanhar futuros projetistas e pesquisadores. Não queremos induzir uma
falsa noção, e assim afirmamos que seria um erro apontar que há menos
complexidade nas disciplinas de PA, o que em um primeiro olhar equivocado
dirão alguns para justificar a sobriedade póstuma do tratamento dado a PU na
docência tradicional desta. Novamente, diremos que esta seria uma justificativa
para uma problematização tola. Em ambos os casos, de PA e PU há um
excesso de tecnicismo e uma ausência do convite ao pensamento crítico, como
já posto neste trabalho de tese. Além disto há uma corrente de disciplinas
notadamente menor em PU, normalmente a metade dos semestres obrigatórios
pela grade curricular em comparação com a corrente de PA.
151

Voltando a situação posta pelo coordenador do curso de AU, do oferecimento


da disciplina de Urbanismo I, ao perceber as problemáticas que nos rodeavam,
não era possível resistir ao desafio de tentar confeccionar uma disciplina de
introdução ao projeto urbano que fugisse à lógica tradicionalista. E ainda, outro
ponto favorável, foi a experiência ocorrida durante a produção de nossa
dissertação, quando na execução do estágio em docência, exigido aos
bolsistas CAPES, realizamos uma disciplina optativa, na Universidade Federal
do Espírito Santo (Ufes), onde com a quebra de pré-requisitos, com a ajuda e
apoio do departamento de AU desta, tornou-se possível oferecer uma disciplina
acessível a vários cursos, tendo como mote o tema de nosso trabalho de
mestrado, que se intitulou, na forma de uma disciplina, então, como
“Urbanismo e Subjetividade”. Tal experiência foi tão rica e nos impulsionou de
maneira muito positiva na construção da dissertação que foi repetida, à pedidos
dos próprios alunos (dos cursos de AU, psicologia, artes, história e ciências
sociais) por três semestres além do primeiro e único obrigatório (durante os
semestres letivos do ano de 2010 e 2011). Esta experiência docente teve, a
partir da interação com os alunos uma fértil consequência, tanto para destilar e
reabsorver o conteúdo que expunha, quanto de falas destes que desvelaram
perspectivas até então ainda não vislumbradas. Como posto por Paulo Freire
em inúmeros textos, a vivência do lecionar é sim, também um acontecimento
de aprendizagem. E tal fértil experiência anterior reforçou ainda mais o desafio
de assumir a disciplina de Urbanismo I em uma perspectiva outra.

Com posse da ementa básica da disciplina nos deparamos com a seguinte


premissa:

“Levantamento e estudos relativos à percepção física-espacial


da estrutura morfológica do espaço urbano. Elementos da
paisagem da cidade. Análise e avaliação dos aspectos
constituintes das parcelas urbanas e suas implicações
funcionais e morfológicas. Problemas, qualidades e
potencialidades das áreas urbanas, e suas apropriações pela
população. Atividade de projeto em área consolidada58”.

58
Trecho retirado da ementa da disciplina de Urbanismo I desta faculdade que, como dito antes, não
divulgaremos o nome. Contudo seu conteúdo é bastante genérico e pode facilmente ser encontrado
com grande semelhança em ementas de uma grande quantidade de faculdades de AU brasileiras.
152

Ou seja, como elementos a serem considerados na construção da disciplina e


na proposição projetual, deveríamos abarcar o desenvolvimento de um olhar
aguçado dos elementos que constituem um determinado território urbano já
consolidado, assim como analisar traçado e parcelas, as consequências
funcionais desta morfologia e os problemas e potencialidades a partir dos
movimentos humanos em sua interação com estes. Sobre tais bases nos
parece totalmente possível estabelecer o uso da teoria elaborada no trabalho
de tese para o anteparo crítico de um território existente, assim como
referências mais sólidas para as proposições projetuais dos alunos. E a partir
destes elementos, nosso intuito foi de elaborar uma disciplina que fosse uma
introdução ao urbanismo gerando nos alunos interesse e satisfação com o
trabalho a ser confeccionado. Apesar da total ausência, em qualquer ponto da
ementa, que fizesse qualquer alusão ao pensamento crítico, entendemos que
“análise e avaliação” é exatamente a brecha freiriana que necessitávamos.
Estava posta a oportunidade de colocar em prática questionamentos e
apontamentos derivados de nosso percurso acadêmico, trabalhando com
nossos intercessores, com as ferramentas postas em análise e, enfim com todo
um conjunto de elementos que sempre tornaram o urbanismo como objeto,
algo rico, complexo e atraente.

Ao fazer uma fala em duas turmas diferentes de urbanismo em uma


faculdade do interior do estado, de Urbanismo II (de sexto período), e
Urbanismo IV (de oitavo período), respectivamente, iniciamos pedindo que
os alunos se apresentassem, dizendo o nome, a idade e o foco de interesse
em AU. A turma de Urbanismo II havia tido um péssimo professor no
semestre anterior, nos tinha contado a coordenadora do curso – uma
amiga de longa data –, “era amigo do dono da faculdade, trabalhava na
prefeitura da cidade, tinha sido secretário de obras da cidade” – cidade
que estava distante de ser um bom exemplo urbanístico – “os alunos
sempre reclamavam dele na ouvidoria, mas não podia despedi-lo, era
153

„blindado‟”. Nesta turma nenhum, dos mais de trinta alunos, expôs


qualquer interesse em urbanismo. A turma de Urbanismo IV havia tido
como professora nossa amiga coordenadora, uma arquiteta e pesquisadora
muito capaz, com quem compartilhamos ponderações bastante próximas.
Nesta turma pelo menos quatro alunos tinham interesse real em
urbanismo, e muitas outros disseram ter muita simpatia pela área. Em
faculdades privadas acreditamos ser ainda mais raro o interesse pelo
urbanismo, e, assim fomos surpreendidos. Quase impossível não tirar
algumas conclusões após tais falas. Um bom professor é um risco ao estado
das coisas.

O território escolhido para trabalhar junto aos alunos foi o Centro da cidade de
Vitória, que como outros centros, territórios considerados “antigos”, em grandes
e médias cidades brasileiras, sofreu ao longo dos anos 80 e 90 um
deslocamento das instituições de gestão, do grande comércio e da população
de maior poder aquisitivo para outras áreas da cidade. Tal deslocamento
causou um abandono de investimento e manutenção desta área, este
esvaziamento foi responsável por uma alta quantidade de imóveis que foram
abandonados, esvaziamento dos espaços públicos e um paulatino crescimento
da violência, que colaboraram ainda mais para a desqualificação da área. No
fim dos anos 90 e início dos 2000, seguindo os modismos urbanísticos de
então, ações de intervenção pontuais começaram a ser praticadas tanto pelo
governo municipal quanto pela iniciativa privada.

As propostas governamentais eram focadas na questão cultural (com a


abertura de pequenos museus e o financiamento de eventos na área) e em
uma experiência de habitação social (a compra de um hotel desativado que foi
transformado em um prédio residencial) enquanto as propostas privadas eram
mais diversificadas algumas mais interessantes (como o Centro Cultural SESC
Glória, e a instalação de alguns coletivos, novos bares e restaurantes,
154

pequenas casas de shows e um hostel) e outras muitíssimo questionáveis


(como a proposta de construção de um shopping center). Todas estas
embaladas sob o rótulo da “revitalização”. Mas pouco se efetivou no contexto
de uma gentrificação da área, e isto porque a especulação imobiliária capixaba
manteve seu foco em outras áreas da cidade. E os investimentos tanto públicos
como privados nunca tiveram o folego para tanto.

O tema escolhido para a disciplina neste território foi “Corredor Cultural”, em


uma parte especifica do Centro de Vitória que compreendia uma porção
considerável das duas principais avenidas que cortam o Centro, a Avenida
Princesa Isabel e a Avenida Getúlio Vargas (avenidas que tem uma grande
importância logística para a GV ligando o município de Serra aos municípios de
Vila Velha e Cariacica através de Vitória), a Praça Costa Pereira (um das mais
antigas com um importância histórica), a Rua Sete de Setembro (única rua
exclusiva para pedestres da cidade), e a Rua Gama Rosa (onde atualmente
acontece o foco da vida noturna no Centro, atraindo pessoas de toda GV). Tal
tema nos pareceu interessante considerando os equipamentos já existentes no
local (boa parte subutilizados), a importância histórica da região, e ainda, que
apesar da presença de equipamentos e desta vocação histórica, não se pode
considerar que haja um planejamento efetivo em que se efetive uma influência
positiva na vida do local para além de momentos esporádicos. Indo além, em
sua maioria, os alunos moram nas cidades ao redor de Vitória que
compreendem a região metropolitana, e o Centro e Vitória é um corredor no
qual a maioria destes passam com alguma regularidade, o que facilitaria
inclusive às visitas com os alunos. O local também é relativamente próximo da
faculdade o que ajuda ainda mais os alunos. Os limites estipulados
originalmente poderiam ser alterados, tendo espaços subtraídos ou
adicionados ao território de intervenção mediante justificativa dos mesmos.

Ao falarmos do corpo discente, dos alunos, é importante fazer algumas


colocações, que são determinantes para o entendimento desta experiência. Há
diferenças grandes, percebidas até este momento de nosso jovem percurso
docente entre alunos de escolas federais e particulares. Contudo, como
colocaremos aqui, não é dentro da diferença do que se estipula no senso
155

comum, onde alunos de escola pública, que passaram por um vestibular


concorrido são simplesmente melhores que alunos de escolas particulares. Um
fato importante que faz parte deste pensamento é a recordação de uma
conversa com uma, também jovem pesquisadora do urbanismo, que acabara
de lecionar em uma faculdade privada de Vitória e neste momento ainda
estávamos dando aula na Ufes (durante o período do mestrado e pouco após).
Dizia esta pesquisadora que a experiência de lecionar numa escola particular
era necessária e que deveríamos passar por ela. Necessária para
compreender a diversidade do ensino em AU, os desejos, pensamento e
perspectivas postas em prática, um ambiente muito distante de uma sala de
aula de uma escola pública.

Contudo, esta fala se colocava dentro do senso comum da diferença entre o


ensino público e privado, dicotomias como: bem comum e mercado, tecnicismo
e contextualização teórica, conformismo e problematização. Deixamos claro
que não é uma questão simplesmente de capacidade do aluno, mas antes da
proposta de formação, e da relação que se estabelece entre a escola e seus
alunos, bem como do background educacional em níveis fundamental e médio.
A escola na qual esta companheira de estudos havia trabalhado tinha como
proposta a preparação para o mercado de trabalho, inclusive fazendo parte de
seu slogan publicitário na época. O rigor dos trabalhos apresentados era
bastante baixo, trabalhos que eram avaliados de acordo com a baixa média
dos alunos, e não com o mínimo desejado e estipulado, uma relação clara de
mercantilização do ensino, onde a máxima “o cliente tem sempre razão” se
aplica aos alunos clientes, que não precisam se esforçar ou absorver
conteúdos, tendo como passe livre antes o boleto de mensalidade à dedicação
e ao conhecimento adquirido. Contudo, outra observação é necessária, são
raras as reprovações em disciplinas de projeto, mesmo em escolas públicas
federais, onde professores tem mais autonomia para fazê-lo quando
necessário.

Quando pela primeira vez tive a oportunidade de lecionar nesta escola privada,
na qual me encontro até hoje, tive uma surpresa que considero bastante
positiva. O quadro com o qual me deparei era bastante diferente do que se
156

pinta de um ambiente de ensino superior pago. A primeira surpresa foi uma


relação de autonomia bastante grande, abertura às ideias de intervenção nas
aulas e levar rigor às avaliações, colocando-nos em um lugar distante do
professor sequestrado pelos desejos e vontades dos alunos (entendidos por
clientes detentores da razão e do dinheiro da mensalidade). A segunda
surpresa se deu com os alunos. Os estudantes diferiam bastante tanto dos
alunos costumeiros de escolas públicas e privadas59, pois eram muito poucos
os jovens que se poderia considerar fazer parte de uma elite mais abastada –
diferente de uma concepção que vem se dissolvendo aos poucos de que AU é
um curso de estudantes ricos ou com considerável poder aquisitivo. Em sua
grande maioria o corpo discente desta escola era composto por jovens vindos
na “nova classe média” criadas pelas políticas sociais do governo federal do
início da primeira década de 2000. Poucos eram moradores de Vitória, sendo a
maioria das cidades periféricas, bem como estes, em sua grande maioria,
estudaram também em escolas públicas estaduais. Alguns eram os primeiros
de suas famílias a ingressar no ensino superior, alunos bolsistas de programas
como o Prouni e o Fies.

No primeiro semestre lecionando nesta faculdade estávamos seduzidos pela


ideia de participar da formação de arquitetos urbanistas, não apenas para
atuar onde, normalmente, a AU não tem alcance, mas formar
profissionais que efetivamente são parte destes territórios.

Uma aluna da disciplina de desenho, uma ótima aluna, que trabalhava


durante o dia, e mesmo assim, participava ativamente das aulas, em
certa oportunidade nos procurou, como por vez ou outra fazia para
conversar sobre a disciplina e a profissão. Nesta conversa ela disse que
trabalhava em uma loja de móveis modulados e que gostaria de trabalhar

59
Pontuaremos que ao falar das escolas públicas federais de AU, falamos de uma experiência anterior às
cotas raciais.
157

na área de decoração. Sonhava em projetar grandes projetos de interiores,


como aqueles que conhecia das revistas desta área, projetos altamente
elitistas. Na realidade boa parte dos alunos entendiam e desejavam o
trabalho em AU exatamente em sua imagem mais hegemônicas e
estratificadas. Algo que, jocosamente, chamávamos de “síndrome do
arquiteto Marcello Antony”, um ator global muito bonito, branco, de olhos e
cabelos claros, que muitos anos atrás assumiu um papel de um arquiteto
cool, bem vestido, antenado, culto, bem acompanhado, bem sucedido,
sempre com um tubo de projetos pendurado no ombro, em suma: um
modelo a ser desejado e a servir de inspiração.

De maneira alguma estamos dizendo que a área de desenho de interiores


esteja completamente fora dos limites para um profissional que vem de
realidades mais pobres e vulneráveis, ou mesmo que não se possam
efetivar práticas mais interessantes nesta área. Contudo é impossível
desconectar o poder da imagem que produz a caricatura do personagem
arquiteto de Marcello Antony e o que ela por si produz. Uma imagem
elitista, branca, burguesa, etc, etc.

A reflexão sobre a construção destas imagens hegemônicas e como estas


capturam os desejos, aspirações, e criam dívidas que dificilmente serão
pagas em sua busca nos tomou. Era um “balde de água fria” na nossa
esperança de formar um arquiteto urbanista da periferia e para a
periferia.
158

Alguns anos se passaram e reencontramos novamente com a mesma


aluna, cujo desempenho e participação na aula de urbanismo são tão bons
ou ainda melhores que na aula de desenho. Seguimos acreditando que
nada está dado.

Um dos maiores desafios, que havia experienciado na disciplina que já


lecionava, de desenho, situada no primeiro semestre da grade, era a diferença
do background educacional dos alunos. Enquanto uma parte era tão capaz
quanto um bom aluno de qualquer escola federal, outros apresentavam graves
lacunas de seus percursos de aprendizagem no ensino médio. Um grupo de
relativa expressão poderia inclusive se situar no que se rotula por
analfabetismo funcional. Tal desnível entre os alunos coloca-se como uma
grande dificuldade ao ato de lecionar, e ao se defrontar com a turma de
Urbanismo I, situada no sexto período da grade disciplinar, pude notar que boa
parte dos alunos que abandonaram o curso ao longo dos semestres (em
turmas sempre menores do que eram originalmente) eram, em sua grande
maioria, exatamente estes alunos com experiências problemáticas de um
ensino fraco e deficiente60. Ao avaliar tal questão somo levados
obrigatoriamente a problematizar a importância do estabelecimento de um novo
paradigma de ensino em suas diversas esferas. Falamos, de maneira mais
sucinta, de como experiências prévias de uma pedagogia duvidosa deixará
marcas negativas nos adultos que se formam em qualquer profissão, inclusive
nestes sujeitos que se tornarão futuros profissionais de AU. Não diremos,
contudo, afirmando uma posição determinista, que estes alunos estão
predestinados à mediocridade, mas, antes, que é necessário como
educadores, montar estratégias de desestabilização nesta trajetória que pode
levar, junto à retórica tecnicista e vazia de análise crítica – do que podemos

60
Cabe o questionamento da aprovação forçada por parte da rede de ensino médio, cuja tutela é do
governo estadual, para cumprir dados estatísticos falsamente positivos que não implementam em nada
a urgência de uma reforma do discurso pedagógico.
159

chamar do ensino clássico das escolas de AU –, a uma forma ainda mais


perversa de construção da urbe.

Por mais naive que pareça – e tantas vezes ideais realmente assim se
mostram –, acreditamos que a preocupação em tornar a carga teórica distante
do que seria fastidioso, e sim excitante e dinâmica é uma forma de atrair não
somente a atenção dos alunos, mas auxiliar na edificação de profissionais
também capazes de uma produção também mais excitante e dinâmica.

Tornou-se claro que dar corpo a tal desestabilização do formato de ensino


passaria por uma modificação do papel de simplesmente expor uma
proposição de tema, dar as bases legais e programáticas, expor exemplos de
projetos similares e orientar o processo projetual dos estudantes. A nosso ver
seria necessário entrar na base da questão conceitual, porém ao exercício da
teoria onde a leitura é vista como algo fastidioso seria necessário apostar em
outras mídias, aliadas à leitura, claro. Uma das marcas dessa “geração
Facebook” é uma forte opinião, nem sempre acompanhada de alguma base, e
gerar a discussão sólida, indo além, incitar o pensamento teórico em urbanismo
colocou-se para nós como meta, sem, contudo, abstrair à experiência da
proposição de projeto urbanístico, assim como as experiências de vida destes
alunos.

De maneira resumida dividimos então os momentos da aula em quatro partes


que se desenvolveram da seguinte forma: a primeira parte de introdução do
curso, apresentação da problemática contemporânea das cidades, exposição
de conceitos, e principais intercessores; a segunda parte seria o diagnóstico da
área, com sua análise morfológica e funcional baseada na bibliografia; a
terceira parte seriam os primeiros estudos propositivos de intervenção; e
finalmente a apresentação do estudo final de intervenção junto ao memorial
que remete às teorias apresentadas e às respostas projetuais urbanísticas.

Aqui nos demoraremos e faremos uma exposição mais aprofundada da


primeira parte de nossas aulas. Isso porque foi onde tentamos concentrar
momentos mais intensos voltados ao desenvolvimento do pensamento crítico
160

em urbanismo. Onde alcançando a meta imposta, por nós mesmos, teríamos


criado interferências a todas as partes seguintes que compõe com nossa
proposição na disciplina.

Uma questão interessante nos foi apresentada pelo coordenador do curso, a


necessidade de trabalhar a interdisciplinaridade. No sexto semestre letivo às
disciplinas de Projeto Arquitetônico IV, Paisagismo II, Geoprocessamento, e
Estética e Design (de pranchas) e Projeto Urbanístico I deveriam trabalhar de
forma integrada. Contudo, para além das disciplinas trabalharem na mesma
área, somente a disciplina de Geoprocessamento realmente trabalhou em
conjunto com nossa disciplina na criação de mapas que foram aproveitados na
apresentação final de nossa disciplina. Em nosso entendimento a pouca força
desta experiência interdisciplinar se deu, e segue da mesma maneira, pela falta
de interesse dos outros professores, ou, do que poderia resultar em um
trabalho extra para os mesmos.

Esta questão leva à superfície uma realidade que parece estar em curso.
Enquanto cada vez mais escolas públicas de AU tem adotado experiências
mais que interdisciplinares, experiências transdisciplinares, com aulas de
atelier onde projeto de arquitetura e urbanismo, paisagismo, estruturas e outras
disciplinas se misturam em um espaço muito mais próximo com a realidade de
um estúdio de arquitetura, e onde estas matérias antes quase desconectadas
ganham um brilho muito mais interessante, vemos de outro lado, nas escolas
particulares – em uma parcela significativa gestionadas por grandes grupos
educacionais – uma forçada e muito tradicional metodologia disciplinar, e,
ainda mais, uma homogeneização do sistema de avaliação que não distingue
os campos dos saberes e forçam a mesma forma de avaliação por provas,
testes e trabalhos independente das singularidades de cada curso. Ou seja, na
disciplina de Atelier de Urbanismo I, tanto como em todas disciplinas da grade
do curso de AU, seriamos forçados a aplicar testes, provas e trabalhos,
independente do plano de aula. Situação que, em nossa disciplina,
contornamos com estratégias que falaremos mais à frente.
161

Antes de começarmos a falar da experiência docente, em si, é necessário dizer


que esta escrita se baseou em três turmas diferentes já finalizadas, como já foi
dito, ao longo de dois semestres, no primeiro semestre tivemos uma turma
noturna com pouco menos de quinze estudantes, e no segundo semestre duas
turmas, uma matutina também com pouco menos de quinze estudantes e uma
turma noturna com mais de vinte e cinco estudantes e, atualmente, com mais
duas turmas em andamento uma matutina e outra noturna, ambas com vinte
alunos em média. Poucas mudanças foram feitas em termos do plano de aula,
e as mais consideráveis vieram no método de avaliação efetivado nas duas
últimas turmas, como colocado também adiante neste texto.

Ressaltaremos novamente que a ordem dos fatos aqui postos não obedece
necessariamente uma ordem cronológica, embora até se tente, mas, antes,
uma ordem cujo sentido nos parece mais interessante e explicativo daquilo que
vimos funcionar e que possui, segundo nosso crivo, alguma relevância, como
escolha e como comentário sobre.

No primeiro momento da disciplina, em sua introdução iniciamos a primeira


aula com uma apresentação da proposta do Atelier de Urbanismo I e a
exposição do que convencionamos chamar de “análise crítica”61, trabalho que
seria exigido a partir de textos, de documentários, e entrevistas e seria
contabilizado na nota dos estudantes. Expomos que realizar uma análise
crítica, em primeiro plano nega imperiosamente o que se entende por resenha
ou resumo e sua objetividade e racionalismo de abarcar uma ideia em sua falsa
totalidade, e afirma o que Deleuze, ao falar sobre a docência (DELEUZE apud
ZARKA, 2010), dirá que ao aluno lhe convém, que lhe desperta interesse, que
o “acorda misteriosamente” de um estado “meio adormecido”, que desperta
emoção (sem a qual não há inteligência, segundo o mesmo), o que de alguma
maneira o toca, lhe remete à uma experiência prévia tida em uma outra aula,
em um artigo ou livro lido, um filme, a vivência da cidade, bairro, rua que

61
A proposição de trabalhar com as análises críticas surgiu no período que lecionamos na Ufes, na
disciplina de “Urbanismo e Subjetividade”, já comentada antes, como forma de induzir uma leitura mais
atenciosa por parte dos alunos. Alguns alunos, após o fechamento desta disciplina disseram que esta
prática foi importante para que a leitura se tornasse uma prática mais habitual ao longo do restante da
graduação.
162

habita, e mesmo uma dúvida ou questionamento qualquer que venha a emergir


do intercessor em questão. Podendo ser escrita sem limite de tamanho, e sem
formatação definida.

E assim nesta mesma primeira aula expomos o documentário americano/


europeu Contested Streets62 (2006), que expõe as transformações do tecido
urbano ao longo do século passado e as questões advindas desta
transformação do urbanismo contemporâneo pela problemática urbana da
cidade de Nova Iorque e as respostas que estavam sendo implementadas por
cidades como Paris, Londres e Copenhagen neste mesmo período. E pedimos
esta primeira análise crítica para a aula seguinte. Situar este documentário na
aula inaugural nos pareceu importante por várias razões, a primeira razão é o
processo de urbanização do longo do século passado e as consequências da
forma hegemônica do pensamento urbanístico.

Também consideramos este documentário interessante por apresentar o


processo de urbanização como questão tratada por uma série de saberes para
além da AU, como a história, a economia. Ao longo do documentário fizemos
várias interrupções para lançar aos alunos questionamentos sobre os
acontecimentos ali expostos, e trazendo, sobretudo as questões
contemporâneas, advindas do urbanismo moderno para o cosmo das cidades
brasileiras e das políticas urbanas que tem se colocado, as interrupções
também surgiam por alunos em momentos de dúvida, ou quando gostariam de
falar algo relativo ao documentário. Impressionou-nos como os alunos
responderam de forma positiva em todas as turmas a esta abordagem.

62
Da resenha original em inglês obtida no IMDB:
“Through interviews with leading historians, urban planners, and government officials, CONTESTED
STREETS explores the history and culture of New York City streets from pre-automobile times to the
present. This examination allows for an understanding of how the city, though the most well served by
mass transit in the United States, has slowly relinquished what was a rich, multi-dimensional conception
of the street as public space to a mindset that prioritizes the rapid movement of cars and trucks over all
other functions. Central to the story is a comparison of New York to what is experienced in London, Paris
and Copenhagen. Interviews and footage shot in these cities showcase how curtailing automobile use in
recent years has improved air quality, mitigated noise pollution and enriched commercial, recreational
and community interaction. Congestion pricing, bus rapid transit (BRT) and pedestrian and bike
infrastructure schemes and looked at in depth. New York City, though to many the most vibrant and
dynamic city on Earth, still has lessons to learn from Old Europe.”
http://www.imdb.com/title/tt0867147/plotsummary?ref_=tt_ov_pl
163

Voltando à análise crítica, que foi solicitada nesta primeira aula, e que se fez
presente no planejamento das aulas seguintes, esta tem como momento de
sua confecção o espaço da sala de aula. Em uma aula de duas horas, a
primeira hora era reservada para a leitura dos textos e a escrita das análises.
Mas que é solicitada também na exposição de vídeos (documentários,
palestras, entrevistas e etc). Para a confecção as análises de textos, foram
dados artigos ou trechos de livros de no máximo 12 laudas, para que o tempo
fosse suficientes para tanto. E na hora seguinte, após uma breve exposição
iniciava-se um debate sobre os temas tratados. Posicionar o momento de
leitura dentro da sala de aula, segundo nossa experiência tem dado efeitos
mais interessantes que solicitar a leitura em casa. Na maioria das vezes,
quando os alunos chegam a ler, e é uma quantidade assustadoramente
pequena que o faz, fazem com um tempo de afastamento que transforma o
momento de debate em algo muito mais frio, quando sim, e outras vezes nos
levava a preencher o debate com um monologo expositivo. Com a leitura em
sala de aula e a escrita da análise crítica a participação dos alunos torna-se
muito mais intensa e interessada. Os textos escolhidos para as aulas seguintes
eram deixados em um leque de possibilidades dependendo dos interesses que
surgissem nos debates.

Ainda na segunda aula foi realizado a leitura de texto, tendo também foco no
tema da problemática urbana contemporânea, a responsabilidade de uma
forma “modernista”, por assim dizer, da construção de cidades e suas
consequências compartilhadas por todos no dia-a-dia. Nossa tentativa com o
documentário e o texto neste momento foi que apontar a necessidade de ir
além da forma racionalista de urbanização.

Usamos o artigo “9 cenas, algumas obscenas” (2007), do professor e


historiador Robert Pechman, que descreve sobre o anteparo da pintura, através
de diferentes épocas, e, no contemporâneo, da propaganda de mídia impressa
e televisiva, a construção processual de um imaginário que conformou uma
determinada acepção do objeto “rua”. A breve exposição feita a partir da
temática do texto, e do documentário assistido na primeira aula, começou com
164

a incitação da atenção dos alunos com a pergunta “Existe? E se sim, qual ou


quais as relações possíveis entre o documentário Contested Streets e o artigo
que acabaram de ler?”. A relação não é de difícil acesso mesmo a uma
percepção mais distraída e logo se desvela a resposta monossilábica “rua”,
sendo logo seguida de respostas mais elaboradas como “a rua na história
sendo abandonada”. Continuamos a exposição e abrimos o debate puxando a
questão para o cotidiano nos espaços habitados pelos alunos.

Ainda nesta segunda aula, após o primeiro debate, foi anunciado aos alunos
eles se organizariam em equipes de trabalho, com a advertência de que eles
deveriam abandonar os grupos de amizades e conformar os grupos tendo em
vista quatro aptidões especificas para que o desenvolvimento do trabalho
corresse bem. Estas aptidões seriam a desenvoltura de gestão das tarefas
entre os participantes e a comunicação nas orientações e apresentações, na
figura de um gerente, também que um dos participantes tivesse intimidade para
lidar com a teoria e com a escrita, a terceira aptidão seria que um integrante
que fosse responsável pela expressão gráfica dos projetos, e da diagramação
das pranchas e finalmente que o quarto integrante tivesse a capacidade criativa
para associar ideias, adaptar exemplos e atuar nas proposições mais a frente
no momento dos estudos em projeto urbanístico. Tais aptidões, como foi
explicado em aula, não excluiriam ou delimitariam o trabalho de cada aluno,
mas seriam questões, ainda que primárias, para serem notadas. Buscamos
com isso incitar desde o início que estratégias fossem formadas. Pontuamos
ainda que não seria permitido que os alunos trocassem de grupos, ou fizessem
o trabalho por conta própria. Que todos os problemas na interação dentro dos
grupos deveriam ser resolvidos entre eles, e no caso de algum impasse,
levados para a orientação.

Além das análises críticas, também trabalhamos ao longo do semestre com


seminários, uma vez que o tempo era e é por demais reduzido, dividir capítulos
de livros entre as equipes de alunos era uma forma de trazer o conteúdo,
mesmo que de forma reduzida, para todos.
165

Nas duas aulas seguintes fizemos uma aula totalmente expositiva sobre o
processo de urbanização do Brasil. Iniciando, contudo, com a problematização
que julgamos necessária da problematização dos conceitos de “urbano” e
“urbanismo”. Após uma construção do senso comum, posta pelos próprios
alunos (que corrobora com o que pensa a grande massa de profissionais
atuantes hoje), apresentamos as concepções do etnógrafo urbano Manuel
Delgado (presentes nesta tese), assim como, a partir destas, uma
reconstituição do papel/função do urbanista e seu trabalho. Com tais
exposições incitamos aos alunos traçar relações entre as aulas anteriores e tal
entendimento do profissional da AU, seu ofício e as consequências destes. Seu
papel não somente na edificação do espaço, mas na proposição e efetivação
da vivência que os espaços projetados, ajudando ou impelindo determinadas
formas de atuação social sobre si. Entender o sentido do termo “urbano”, nos
parece ter surtido um efeito bastante positivo nos alunos, uma vez que o
projeto, desta maneira se torna um meio para atingir uma determinada
conjunção social desejada pelo projeto urbano. Tornando o ato projetual não
um fim em si, mas um meio para.

Após tal discussão, iniciamos uma exposição baseada nas transformações


sociais e morfológicas das cidades brasileiras. Utilizamos para tanto dados do
livro Brasil Cidades (2001) da professora Ermínia Maricato, focando nas
principais políticas urbanas e suas consequências desastrosas, naquilo que a
autora chama de “tragédia urbana brasileira”. Nosso intuito neste ponto, além
de expor dados assustadores trazidos por Maricato, seria entender o papel do
Urbanismo, quanto instituição, nesta. Como anteriormente, traçamos direções
paralelas e elos com as aulas anteriores.

Abrimos a aula com o conceito de empoderamento em Paulo Freire. O


primeiro slide mostrava uma foto do homem com a face marcada pela
idade, com uma grande barba branca, pesados óculos de uma armação
robusta e um ar astuto e bondoso ao lado de um breve texto sobre o
conceito em questão.
166

“O urbanismo encontra pares mais raros que a arquitetura. Qual a relação


que vocês conseguem traçar entre este conceito e nossa aula de
urbanismo?” – os alunos permanecem quietos. Em um canto da sala uma
aluna sorri, reconhece Paulo Freire, é surpreendida pela presença do
senhor das grossas lentes numa aula de urbanismo. Alguns não
reconhecem a foto, mas sim o nome, como o subversivo comunista e
parecem incomodados. Eles se entreolham, cochicham. Alguém propõe que
os arquitetos devem trabalhar para o povo – talvez pelo que se passou nas
aulas anteriores. Prometemos voltar aquele slide em outro momento da
aula.

“Gente, estamos em uma aula de Urbanismo I. Aproveito para dizer


porque alguém pode estar perdido. Vai que tem alguém perdido... Pode
ficar se quiser também, não tem problemas” – brincamos. “Mas se
estamos numa aula de urbanismo, o que é afinal urbanismo?” –
novamente os alunos se entreolham, porém desta vez alguns se arriscam a
algumas respostas. “Urbano é o que diz respeito à cidade”, “É o tecido
urbano”, “O conjunto da arquitetura”. E então intervimos com outra
pergunta: “Será que urbano e cidade são a mesma coisa?” – Se
entreolham mais uma vez, alguns dizem que sim, outros que não, estão
divididos, estão ponderando. Jogamos mais uma questão: “E o que é
urbano?”. As indagações seguidas atraem a atenção de todos, mesmo
daqueles que fecharam a cara para Paulo Freire. “E se contarmos para
vocês que esta pergunta, dirigida a arquitetos, profissionais formados, teria
o mesmo tom de incerteza nas resposta que receberíamos? Se dissermos
que boa parte, uma parte expressiva teriam dúvidas para responder?
Vocês achariam estranho?” – Os alunos estão sérios.

Após uma rápida pausa seguimos: “Algum professor de Projeto (de


Arquitetura) já deu essa quantidade de teoria ou simplesmente dão um
lote, um tema, um programa e uma quantidade de taxas e coeficientes?”
– Cochichos e respostas em um tom de voz quase inaudível. Alguns alunos
parecem irritados, e, provavelmente, boa parte desta ira estava sendo
voltada em nossa direção – havia ferido parte considerável do ensino que
tiveram até ali. Outros querem saber “aonde aquilo vai dar”. A aluna que
reconheceu Freire esconde o sorriso com a mão, parece achar graça do
167

estado em que se encontrava a sala, do momento que fomentamos.


Continuamos, voltando a pergunta sobre urbanismo: “Gente, vou lhes dizer
que não há uma única resposta para o que é urbano, mas que as respostas
que vocês deram foram um tanto genéricas e como futuros profissionais é
interessante que estejam aptos a uma resposta mais aprofundada. Mas isso
dependerá do teórico que vocês usarem como base pra esta resposta”.
Trocamos o slide e apresentamos aos alunos Manoel Delgado, “sociólogo
conhecido entre os pesquisadores do urbanismo, isso em nível de mestrado
e doutorado e vocês já podem dizer que sabem quem é e estudaram algo
dele a partir de agora.”

Assim apresentamos os conceitos de Delgado sobre urbano, cidade e


urbanismo, com citações extraídas de seus livros. O texto é denso, os
alunos têm dificuldades de compreendê-lo, e absorver o que os parágrafos
projetados no quadro. Vamos então quebrando, “rachando” oração por
oração deste autor até que tudo é absorvido, traduzido em palavras mais
simples, em exemplos. Falamos da necessidade e da coragem que os
alunos devem ter para enfrentar textos mais densos, e que só neste
enfrentamento novos limites de leitura podem se estabelecer. Questionamos
após a apresentação dos conceitos: “Somente urbanistas fazem urbanismo?”
– muitos respondem que não. “Quem constrói a cidade e o espaço urbano?”
– “Todos que neles habitam” – uma quantidade bastante razoável
responde e uma satisfação grande nos invade. Eles entenderam que o
espaço urbano é uma construção, e uma construção coletiva.

“Quantos de vocês conhecem ou já ouviram falar em Frank Gehry?” – a


turma em peso afirma que conhecem o arquiteto americano. “Quantos de
vocês sabem quem é Jean Nouvel?” – uma quantidade razoável diz
conhecer o arquiteto francês. “Tadao Ando?” – a resposta afirmativa se
repete. “Norman Foster?”, “Mario Botta?” – o número se reduz, mas
ainda assim é expressivo. “Me citem um urbanista” – um silêncio se
coloca, após alguns momentos alguém cita Lucio Costa, com alguma
incerteza, outro responde Le Corbusier, também de maneira vacilante.
“Quantos de vocês já ouviram falar em Ermínia Maricato?” – e o silêncio
retorna, os alunos se entreolham. Passamos para outro slide, figura a capa
do livro Brasil cidades e um pequeno e resumido texto apresentando
168

Ermínia Maricato. “Esta senhora é uma das mais importantes pensadoras


do urbanismo na América Latina, brasileira, professora aposentada da
Usp, militante das políticas urbanas democráticas, autora de vários livros
sobre o urbanismo no Brasil e vocês não conhecem ela. Por que será?”. Os
alunos quietos se entreolham, cochicham entre si. “Não se preocupem,
vamos sanar este problema”. E assim começamos esta parte da aula com
dados extraídos do livro de Maricato, colocando em primeiro plano que o
nome da história do urbanismo no Brasil seria “A tragédia urbana
brasileira”, e com tal nome, não era de se esperar um final feliz.
Seguimos apresentando, questionando, interagindo com os alunos passando
por todas as questões das reformas sanitaristas, ao processo de
industrialização, os modos de produção e as mudanças nos modos de vida e
o surgimento da vida urbana, o surgimento da especulação imobiliária, a
expulsão das comunidades pobres, sobretudo no período da ditadura, a crise
das décadas perdidas (80 e 90), até pontuar os modelos contemporâneos
de urbanização e suas problemáticas, as questões caras ao urbanismo, que
contudo só são postas com profundidade a nível de pós-graduação (e ao
saber isso os alunos parecem sentir um certo orgulho). Estes conteúdos se
estenderam por duas aulas, onde os alunos acompanharam com muita
atenção.

Ao final da última aula sobre este tema, todos já cansados e


aparentemente com muito a ser processado, um aluno perguntou: “Se a
construção da cidade obedece ao mercado e a AU é parte deste problema,
como isso se resolve? Como podemos fazer diferente?” – a turma olhava
em nossa direção, pareciam concordar com o desenvolvimento do colega
que levou a tal questionamento. Em silêncio alcançamos o cursor do
teclado e freneticamente voltamos os slides até a tela onde figurava a
imagem de Paulo Freire ao lado do pequeno texto sobre o conceito de
autonomia. Parte do texto estava marcado em negrito e dizia: „Autonomia
é libertar o ser humano das cadeias do determinismo, reconhecendo que a
história é um tempo de possibilidades. Todo processo de autonomia e de
construção de consciência nos sujeitos exige uma reflexão crítica e prática,
de modo que o próprio discurso teórico terá de ser alinhado a sua
aplicação‟. Ainda em silêncio o aluno assentiu com um movimento da
cabeça. “Bom final de semana” – dissemos e todos se foram.
169

Para sedimentar os apontamentos de Maricato relativos ao processo de


urbanização brasileiro, sobretudo no que tange práticas de cunho perverso que
marcaram a trágica história urbana de nosso país, e ainda pontuar sobre a
fresquíssima contemporaneidade dos mega eventos acontecidos e em vias de
acontecer (respectivamente a Copa do Mundo de futebol ocorrida em 2014 e
os Jogos Olímpicos de 2016), trouxemos para o espaço da sala de aula uma
longa entrevista (VAINER apud PASSARINHO, 2015) na qual o professor
Carlos Vainer da UFRJ, disserta sobre este processo e acusa que muitas
destas práticas acontecidas num período nebuloso e pretensamente afastado
temporalmente, obliterados nas trevas da era ditatorial, seguem manchando e
consagrando de maneira nefasta o urbanismo no Brasil. Em vários momentos
fizemos pausas no vídeo da entrevista para reforçar as falas de Vainer, densas
e repletas de muita informação, bem como para tirar dúvidas dos alunos. Foi
pedido também desta entrevista uma análise crítica.

Na aula que se seguiu introduzimos um personagem (já trabalhado nesta tese)


importante para a direção que aspiramos traçar na disciplina e que nos
acompanhou por todo o percurso do semestre não como mais importante
intercessor, mas certamente como o mais facilmente assimilado pelos
estudantes: o arquiteto dinamarquês Jan Gehl. A escolha por trazer Gehl se
deu por ser uma personalidade já conhecida no universo da AU e ter uma
linguagem acessível, distante do complexo “urbanês”, assim como uma crítica
também bastante justa às práticas dos arquitetos e urbanistas. Gehl já havia
aparecido no documentário Contested Streets ao falar das políticas urbanas
implementadas na cidade de Copenhagen ao longo dos últimos 50 anos, sendo
este arquiteto, professor e pesquisador uma referência global contemporânea
com uma extensa captação de suas falas em documentários, entrevistas,
palestras, para além de seus livros.

Gehl certamente não é um autor acima de críticas e suspeitas, contudo,


considerando as variáveis, como a dificuldade de compreensão de textos por
parte dos alunos, a notoriedade deste e a atenção dada ao seu mais recente
livro Cidade para Pessoas (2013) apostamos neste autor como uma
170

possibilidade de intercessor junto aos alunos da disciplina. Trabalhamos o


primeiro capítulo do livro de Gehl em sala de aula, como introdução ao seu
pensamento, e já divididos nos grupos, foram repassados os outros capítulos
mais importantes do livro. Para a apresentação dos dois seminários sobre o
livro de Jan Gehl, separamos para cada seminário uma aula onde
apresentamos uma entrevista com o próprio, e, posteriormente, no restante da
aula os alunos reunidos em grupos discutiram os respectivos conteúdos,
tiraram dúvidas e organizaram o trabalho entre os integrantes. Além da
apresentação em si, foi pedido que fosse feita uma análise crítica de casa
apresentação. As apresentações, em formato PDF e mais aprofundadas em
texto, posteriormente foram partilhadas entre os grupos, e assim todos os
alunos tiveram acesso a todo conteúdo trabalhado de forma resumida.

Estávamos no conselho de classe e o coordenador do curso nos entregou o


envelope contendo a avaliação de nosso trabalho em Urbanismo I feita
pelos alunos. Abri o envelope e me deparei com um conteúdo diferente do
que estava acostumado. A avaliação da disciplina seguia sendo positiva e
acima da média necessária para que a administração da faculdade nos
deixasse em paz – essa instituição, segundo os colegas professores, não é
das mais conhecidas por agir com truculência contra o corpo docente, mas
tão pouco há ausência de histórias até próximas sobre. Mas voltando ao
comentário que me fez ferver o sangue. As linhas muito bem escritas,
com escrita formal, eram direcionadas ao serviço de SAC. Literalmente.
A pessoa em questão se dizia ultrajada como consumidor que pagava
regularmente sua mensalidade e estava recebendo um serviço de baixa
qualidade.

O conselho de classe havia terminado pra mim, ponderava


incessantemente sobre a reclamação, procurava consistência entre as notas
da avaliação e o comentário do “cliente insatisfeito”. Pensava se havia ou
não abertura para o dialogo com um aluno insatisfeito sobre a dinâmica ou
o conteúdo ministrado. A conclusão que cheguei foi que não era
simplesmente uma busca por quem fez algo errado ou certo, aluno,
professor, administração, se a reclamação era justa ou injusta. Reli mais
uma vez o comentário. Tocou o sinal que marcava o começo das aulas.
171

Com a sala pronta para o inicio da aula, diante da nova turma de alunos
de Urbanismo I, resolvemos num ímpeto ler o comentário que nos havia
sido dirigido. A turma escutou quieta enquanto aquilo saía de um lugar
de algum anonimato e se tornava público. A primeira reação ao fim da
leitura do comentário foi o olhar atônito que os alunos nos lançavam.

“Meus caros, isso é uma sala de aula, não estou vendendo nenhum produto
para ninguém. Se alguém aqui quiser ir à ouvidoria ou à coordenação do
curso para fazer uma reclamação do meu trabalho, um direito de vocês,
reclamem do professor, não do vendedor. Todos vocês tem esse direito de
reclamar do meu trabalho de professor, porque isso é uma sala de aula, e
vocês são alunos e não clientes. Se alguém tiver problema com essa
concepção podem ir conversar com o coordenador. Caso ele me contradiga,
meu cargo está à disposição.” – disse num desabafo necessário. “Agora
vamos ao que nos interessa”.

No inicio do intervalo uma aluna nos procurou. “Não liga „praquela” turma
não, professor, tem um povo muito [...] ali”.

Apresentamos em uma aula, de maneira bem sucinta, a concepção morfológica


funcional de Kevin Lynch e seu Imagem da Cidade (1997), pontuando seus
principais conceitos (caminhos, limites, marcos, pontos nodais, etc) e
identificando-os na região metropolitana de Vitória, com o intuito de ajudar no
vocabulário dos alunos em relação ao diagnóstico da área. Pensando no
trabalho final de diagnóstico da área de intervenção no primeiro bimestre. Foi
pedido que partindo da teoria de Gehl cada grupo desenvolvesse uma lista de
analisadores para a primeira visita de campo no terreno. A partir deste
momento passamos às primeiras apresentações com os grupos.

Como já foi colocado, existe no território escolhido para a atuação dos alunos
de Urbanismo I, uma série de objetos de grande interesse para a confecção do
projeto do Corredor Cultural, e para tanto, e utilizando o conceito de “Marco” de
Lynch, foi pedido a elaboração de uma apresentação sobre os Marcos
Históricos e Culturais do Centro de Vitória. Onde os alunos buscaram a história
172

destes, descrições morfológicas e do então estado em que se encontravam,


especificidades sobre como funcionavam e da importância destes para o
entorno imediato e metropolitano.

Na aula seguinte às apresentações foi realizada uma prova teórica com as


temáticas que haviam perpassado a aula até aquele momento. Ao falar sobre a
prova faz-se necessário voltar ao tópico das avaliações da disciplina, assim
como às estratégias que criamos para um melhor desenvolvimento da mesma.
O método de avaliação é imposto pela faculdade, há apenas uma estrutura de
testes, provas e trabalhos para todos os cursos. No curso de AU, em todas as
disciplinas os alunos são avaliados em dois bimestres, sendo que em cada
bimestre é exigido a aplicação de um teste, uma prova e dois trabalhos. O valor
do teste e da prova somados resultam em dois terços da nota total do bimestre
e os trabalhos o um terço restante.

No primeiro bimestre dividimos a avaliação em um teste teórico individual (com


perguntas de caráter geral sobre as aulas expositivas, artigos e o conteúdo do
livro de Jan Gehl) e a apresentação do diagnóstico do território com o valor
referente a prova. A apresentação de duas aulas seminários e a entrega das
análises críticas foram avaliadas como os trabalhos bimestrais. No segundo
bimestre a pré apresentação das propostas tiveram o peso de teste, e a
apresentação final o peso da prova. Um questionário foi passado sobre o
conteúdo do livro de Gehl, sobre o tema da gentrificação e sobre
sustentabilidade urbana a serem respondidos dentro do memorial da
apresentação final, nossa intenção foi de assim obter por parte dos alunos um
texto mais conciso e que raramente é cobrado nas disciplinas de projeto
arquitetônico e urbanístico. Julgamos que a falta de atenção sobre a
construção do texto do memorial de projeto dentro da graduação em AU
colabora para a fraca contextualização, a ausência de conceitos, a fragilidade
de interferências em projeto por outros atores da construção civil, e por fim
para a banalização e o fetichismo estético do partido arquitetônico “defendido”
pelo arquiteto urbanista.
173

Já no primeiro teste percebemos uma diferença no rendimento da turma da


manhã em relação a turma da noite, embora de maneira geral o conteúdo
tenha sido bem absorvido pelos alunos, e mesmo as notas mais baixas
estavam próximas da média. Tanto no teste como nas análises críticas
detectamos uma grande dificuldade com a escrita. No período que lecionamos
para uma sala composta por alunos de vários cursos na Ufes, já era nítida a
diferença da capacidade da escrita dos alunos de AU e dos outros cursos
(psicologia, sociologia, história, etc). Tal deficiência acreditamos, é fortalecida
pela fraca carga de leitura e os poucos exercícios de escrita exigidos na
graduação. Mesmo a escrita do memorial descritivo de projeto, como já dito,
quando apresentado, é superficial e raramente é avaliado como parte da nota.

Neste ponto demos um respiro aos alunos e exibimos o documentário Exit


through the gift shop (2008) que fala sobre o surgimento da arte de rua
(street art). Nosso intuito com essa aula-filme foi introduzir formas outras de
intervir sobre o urbano que não somente a construção de um projeto
urbanístico. Introduzindo o labor do socius sobre seus espaços, o que torna
estes, espaços vivos e pulsantes. Pontuamos assim três grandes grupos de
interesse de intervenção urbana, a intervenção projetual urbanística, a
intervenção artística e a intervenção político normativa. Entendendo a primeira
como a confecção de projetos, a mais óbvia e esperada; a segunda como
intervenções quase sempre efêmeras e não necessariamente dentro dos
padrões da legalidade, porém muito rica e potente; e finalmente intervenções
que se colocavam no campo das normas da lei, em suas variadas esferas,
assim como de ações que visam estabelecer novos comportamentos passíveis

de consequências desestruturadoras dos estratos espaciais.

Nas orientações para a confecção do diagnóstico foi bastante discutido o papel


do mesmo no desenvolvimento dos estudos propositivos projetuais que
tomariam lugar no segundo bimestre e que o entendimento da proposta seria
um fator importante para guiar os balizadores deste diagnóstico e a
apresentação do mesmo. Antes da primeira visita em campo com os alunos foi
pedido que cada grupo desenvolvesse com base na teoria de Jan Gehl, Kevin
174

Lynch, e nos dados técnicos presentes no Plano Diretor Urbano de Vitória uma
lista de elementos que deveriam servir de referencial para o olhar dos próprios
alunos quando em campo a esta lista apelidamos de checklist. Cada grupo
montou seu próprio checklist, e desde sua montagem algumas áreas de
interesse já puderem começar a se insinuar.

As visitas em campo com os alunos ocorreram em dois dias, durante o horário


de aula com os alunos da manhã e em um sábado de manhã com os alunos da
noite, neste caso específico, por ventura, ocorreu no mesmo dia da “Virada
Cultural de Vitória” – evento com shows em diferentes palcos, todos dentro do
território que estipulamos para a confecção do estudo propositivo.

Os diagnósticos apresentados tiveram pontos em comum, contudo muitos


grupos desde este ponto começaram a demonstrar interesses singulares,
aprofundando em pontos específicos suas apresentações. Alguns dos dados
apresentados por alguns grupos demonstravam fontes extras de pesquisa
bastante diversas entre jornais locais, autores, documentários, vídeos de
internet, julgamos essa pluralidade de fontes bastante interessante.

Como dito antes, dividimos o segundo bimestre em duas partes, isso porque
mesmo que este período da disciplina fosse voltado à parte propositiva, à
pratica projetual, a terceira parte culmina com a apresentação de um diagrama
de intenções onde as proposições estão em um estágio não tão desenvolvido e
só a partir daí adentramos na quarta e última parte do estudo final. A
apresentação do diagrama foi uma forma de colocar sob o crivo da própria
turma os primeiros ensejos de intervenção, assim como a diagramação e
apresentação das pranchas. Durante todas as apresentações, desde o primeiro
seminário a turma realizou um trabalho de crítica de sua própria produção,
apontando pontos positivos e negativos, focos de atenção interessantes,
recomendando autores, temas e projetos realizados. Este feedback era levado
para discussão com cada grupo e reforçava o trabalho de orientação,
percebemos também que esta exposição influenciou toda a turma a aumentar
os padrões das propostas produzidas.
175

Algo que tentamos incentivar desde o começo da disciplina e se relaciona com


o feedback das apresentações foi a não competição entre os grupos, mas
antes a cooperação e o entendimento que esta cooperação entre grupos
poderia fortalecer as ideias defendidas. Incentivamos também que uma pessoa
de cada grupo participasse do momento de orientação dos outros grupos,
observando o que se discutia assim como o andamento de todos os projetos.

Em um dos momentos de orientação de projeto um grupo parecia não ter


lugar, este grupo já havia faltado algumas orientações, havia um ar de
desanimo que pairava nestes estudantes. “Eles são uma turma difícil” – já
havia escutado essa fala de alguns dos professores. “Professor, não sabemos
o que fazer”, “Como assim?” – retruquei. Eles disseram então que não
tinham ideias, que não tinham inspiração e, assim, não conseguiam sair
do lugar. Os outros grupos estavam trabalhando, sobrava trabalho para ser
feito, estavam correndo contra o tempo. “Pessoal, mas e o trabalho teórico,
o diagnóstico que vocês produziram? Eles apontam problemas,
potencialidades, questões que habitam nosso território de trabalho.
Passamos por exemplos, situações, cidades, práticas pontuais, políticas de
intervenção urbana, intervenção artística. Não há nada que vocês podem
adaptar? Que seja interessante?” – mas o grupo parecia „morno‟, sem
animo. Não sabíamos o que fazer, e se haveria algo a ser feito.

O grupo apresentou um trabalho na média ao final do semestre letivo,


foram aprovados, mas a falta de vontade estava impregnada no semblante
destes alunos e no trabalho produzido por eles. “O que poderíamos ter feito
diferente?”, “Haveria algo a ser feito que não fizemos?”, “O que na
história daqueles alunos ali, e talvez não só no espaço da faculdade, foi tão
despotencializante?” – apesar de no processo de uma aula haver um
momento onde realidades diferentes passam a compartilhar o mesmo
espaço da sala de aula, e que na maioria dos casos alianças, para além do
„produto acadêmico‟, sejam travadas, derrotas parecem vez por outra, mais
vezes do que desejamos, vir à tona.

Ao nos aproximarmos da apresentação final dos estudos propositivos da


disciplina teríamos que, pelo regimento da faculdade aplicar uma prova, como
176

dito antes. Com a aprovação do coordenador propusemos aos alunos uma


prova com um nível de questões muito acima do que normalmente seria
aplicado, mas que teria como contra partida, ser feita em casa com duas
semanas de antecedência, e que constaria como parte do trabalho final. As
perguntas apresentadas à turma foram feitas e posicionadas de forma a montar
uma introdução ao memorial descritivo e a consolidar as justificativas projetuais
apresentadas. Tendo assim uma nota especifica somente para o memorial, e
questões que deveriam ser respondidas mediante pesquisa na bibliografia
exposta e em artigos e livros acerca dos temas pontuados, “paradigmas
contemporâneos do processo de urbanização”, “sustentabilidade em
urbanismo”, “gentrificação urbana” e “urbanismo e mobilidade social”. Lidando
assim com um déficit que parece ser generalizado pelas escolas de AU: a
incapacidade de composição da escrita por parte dos alunos.

Notamos algumas diferenças na produção dos estudos nas diferentes turmas.


Vários fatores parecem ter influenciado tais diferenças, desde disciplinas
ministradas previamente, e a forma como estas foram ministradas, como a
disciplina de “sociologia urbana”, a procedência e o background educacional,
um certo asco a própria crítica às práxis políticas inerentes à AU, a não
vontade de aceitar o processo de desnaturalização pelo desenvolvimento
analítico crítico.

Uma notável diferença se deu entre os estudantes dos períodos matutinos e


noturno. Em termos de concepção das proposições notamos uma certa falta de
ousadia, de ideias desafiadoras, um medo de ir além, pairando sobre todas as
turmas. Mas aliado a isso, as turmas do matutino, menores em quantidades de
alunos, tiveram como consequência um tempo de orientação
consideravelmente maior por aula que as turmas do período noturno. Os
alunos do matutino notadamente traziam mais material para discussão, tinham
mais repertório. Os alunos do noturno, em sua grande maioria, trabalham
durante o dia, chegam mais cansados no espaço da sala de aula. Apesar de
tentarmos com avidez transformar o espaço da faculdade em espaço de
produção, ao máximo possível para reduzir o tempo gasto fora da faculdade, o
tempo a mais, em casa e em orientação por grupo, dos alunos do matutino
177

fizeram uma visível diferença. Diferença esta que foi presenciada pelo
coordenador do curso de AU, convidado, num movimento estratégico, para
assistir as apresentações finais e que segundo o próprio estava extremamente
satisfeito com os resultados como um todo.

Nossa impressão ao momento final deste relato, mas não da experiência, é que
não há um segredo, uma forma genial, um “pulo do gato”, e nos parece claro –
o que pode ser um grande risco –, que a experiência docente na prática do
(micro)Planejamento urbano, é simplesmente a operação de uma ferramenta
de auxilio a formação crítica e de resistência criativa em AU. Experiência que
não precisa ter declarado o nome deste ou qualquer outro conceito, ou autor,
pois é uma forma plural de pensamento e prática que busca linhas de fuga para
formações outras, ao ser aplicada no campo docente.

Pouco tempo após a defesa de nossa dissertação, participamos de um


processo seletivo para professor substituto da disciplina de Urbanismo III
em uma faculdade de AU. Ao contrário do que se esperava, e pela
ausência do professor efetivo que já estava afastado por um pós-doutorado,
uma banca de avaliação formada por um grupo bastante conservador
sorteou pontos bastante distintos à ementa em questão – que abordava
tópicos da sociologia e da teoria crítica urbanística –, e não por acaso,
arriscaremos pontuar. Nosso ponto sorteado foi uma surpresa, e conhecidos
que também estavam na seleção, pessoas bastante capazes, se
encontravam na mesma situação. “Uso e ocupação do solo” foi o ponto que
nos cabia dissertar num curto espaço de tempo, pouco mais de 24 horas
após o momento do sorteio.

O desespero e a desolação se apossaram. “Soubesse que iriamos fazer uma


prova de avaliação docente relativa a disciplina de Urbanismo II –
aplicação de fórmulas que geravam um loteamento – não teria nem
perdido tempo”, era o pensamento que nos assaltava. “Que fazer?
Desistir?”, “Talvez essa fosse a exata intenção da banca de seleção” este
pensamento, a sua vez fez acordar nossa “má vontade”, e, então, reagir.
Após uma coleta minuciosa de livros e artigos de personagens importantes
do urbanismo e de virar a noite trabalhando, preparamos uma aula sobre
178

a história do uso e ocupação do solo na urbanização das grandes cidades


brasileiras da década de 40 ao contemporâneo. Hoje sabemos ao que se
pretende uma aula avaliativa, e que cometemos vários erros nesta
primeira seleção, que não foram repetidos nos anos que se seguiram.
Contudo, uma fala feita por uma das professoras da banca segue ecoando:
“Esperava ter visto você falando de Deleuze”. No momento não soube
reagir, e as palavras faltaram.

Algum tempo depois do ocorrido nos veio uma questão. Raquel Rolnik
importante professora de urbanismo, renomada internacionalmente, irmã
de Suely Rolnik, um dos grandes nomes da (filosofia da) diferença na
América Latina e que certamente entrou em contato com essa vertente do
pensamento e foi por ele influenciada, e parece demonstrá-lo na
constituição de suas problematizações, não fica citando Deleuze, Guattari
ou Foucault. Se o pensamento é capaz de traçar linhas de fugas,
estratégias, criar resistências, fugir ao hegemônico, mas não cita a fonte,
torna-se assim menos? Ou ao contrário, tornar-se-ia mais?

Como prática de autonomia e empoderamento através da formação crítica-


criativa-de-resistência, novamente reafirmamos, não é uma fórmula pronta à
ser aplicada, e sim, antes uma ferramenta conceitual metodológica de batalha,
que carece de um estado de atenção constante para buscar estratégias
especificas ante o dinamismo das configurações que encontramos em sala de
aula e nos conteúdos das ementas. Pontuamos, assim e também, que o
conceito de (micro)Planejamento urbano serve, não apenas a disciplina de
urbanismo I, mas em qualquer das outras disciplinas da cadeia de urbanismo, e
mesmo se estabelecendo como uma postura e uma prática. Mesmo em uma
disciplina de urbanismo que tenha como foco loteamentos (tradicionalmente
uma temática explorada em urbanismo II), pode ser abordada de forma a
problematizar índices, taxas e as porcentagens formuladas entre os elementos
urbanísticos.
179

MOVIMENTO 6. RETICÊNCIAS
6... Não há conclusões em práticas processuais

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.


Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
(Manuel de Barros63)

Parece salutar, neste último movimento do trabalho, avisar nosso leitor que
neste percurso, carregado no ombro dos nossos gigantes-intercessores, que
não há e não pode haver um fechamento. Seria incongruente com o
pensamento desenvolvido apresentado nessas páginas chegar a um
fechamento convencional: onde dados são apresentado, fórmulas foram postas
à prova e algo se encerra. Não há encerramento, somente reticências (...),
posto que as pontas soltas, muitas, que povoam densamente este trabalho são
extremamente bem-vindas, e que na nossa percepção, elas são a possibilidade
de convocação para novos trabalhos, novos caminhos do pensamento, novas
práticas de resistência e criatividade. Que o desejo com a confecção deste
trabalho já se efetivou em nós, cumprindo seu papel de interferência.

Não nos importa fechar nada, o que nos é caro aqui é abrir, fissurar. Nosso
intuito está no porvir, em sendas outras. Fazer parte de um movimento de
mistério no qual trabalhamos hoje, aspirando um porvir.

63
Manoel de Barros, poema do livro Manoel de Barros: poesia completa (São Paulo: Leya, 2010)
originalmente publicado em Retrato do artista quando coisa {1998)
180

Ao trabalho de prospecção do conceito de (micro)Planejamento urbano,


sabemos com uma imensa alegria, que sua existência se dá em um momento
posterior às práticas, e estas não necessitam dele, como invenções da
urgência, como invenções e manhas da vida ante ausência e opressão de
forças hegemônicas, cujo maior erro é desmerecer, desvalorizar a vida.
Sabemos, contudo, que a vida sempre escapa, sempre encontra um jeito,
opera por frestas64. Como ferramenta conceitual metodológica, operadora de
da dupla função de transformação do sujeito e por este do mundo, dentro da
instituição Arquitetura e Urbanismo não sabemos se a estas páginas caberá a
poeira do esquecimento em algum arquivo universitário, ou algo além.

Nosso intuito com a prospecção do conceito de (micro)Planejamento urbano,


no inicio desta jornada era o de tentar fortalecê-lo, fazê-lo expandir, buscar
munição no tripé ético-estético-político da (filosofia da) diferença para que suas
práticas, advindas de movimentos de resistência criativa, pudessem oferecer
maior resistência ao poderosíssimo movimento de captura do CMI. E foi uma
surpresa quando percebemos que, ao nosso manuseio do conceito, uma
questão em nós veio a superfície.

As inquietações que atuaram em nós, os desassossegos que “atormentaram a


alma”, tudo aquilo no qual fez surgir a convocação para a realização deste
trabalho, são parte deste percurso do pensamento. O urbanismo menor, o
(micro)Planejamento urbano, são, nos parece agora, no fechamento destes

64
Em nosso trabalho de conclusão da graduação, que tinha um hospital psiquiátrico como objeto, uma
história contada na sala de terapia ocupacional por uma das funcionárias do local, enquanto os internos
faziam tapetes de retalhos, ficou presa na memória e sempre ressurge, mesmo após todos os anos que
separam aquele trabalho deste, sempre ao falar das pequenas artimanhas da vida. Naquele lugar
opressor, alguns anos antes daquele momento, um casal de loucos se apaixonou, separados pelas
pesadas e encardidas paredes, separados pelas regras de horários, pela ausência de uma supervisão, por
uma porta de chapas de aço, que delimitava as alas masculina e feminina, sentados no chão, pela fresta
da porta, uma fresta de poucos centímetros, um tocava a mão do outro. Pela fresta as mãos se
acariciavam, asseguravam a presença um do outro, beliscavam-se em momentos de desentendimento.
Num momento de uma briga feia, um queimou a mão do outro com um cigarro. A fresta na qual as
mãos se espremiam e exprimiam a existência daquele encontro amoroso, fez perdurar ao longo do
tempo uma história que continuou após deixarem para trás o hospício. “Eles vão juntos ao CAPS (Centro
de Atenção Psicossocial), hoje tem uma filha” – dizia a funcionária. Entendemos ali, o que os livros
diziam sobre a potência da vida. Somente algo muito poderoso pode exercer tamanha intensidade, por
uma pequena fresta.
181

movimentos, apenas instrumentos e apostas, em um hall muito grande de uma


força maior em sua pluralidade no embate contra o hegemônico e o status quo.

Há algum tempo observamos, com muita curiosidade, como os temas dos


trabalhos acadêmicos surgem por convocações existenciais. Como certos
sujeitos com fortes veias artísticas são conclamados por trabalhos adornados
por poesia, lirismo e defesas de novas estéticas; sujeitos expostos à violência
urbana (real ou midiática) se voltam para dissertações e teses sobre a
militarização da arquitetura e o medo; aqueles mais obcecados por uma
vontade racionalizadora efetuam escritas de textos que clamam por novas
ordens e ordenamentos; etc. E este trabalho não é diferente. Parece-nos obvia
a questão da formação e de uma vontade de potencia que possa se efetivar em
práticas outras desse saber arquitetura e urbanismo. Esta fala, por sua vez,
pode parecer estranha, talvez carregada da intimidade de parte da existência
do autor, e assim desnecessária ao texto acadêmico. Contudo, se estamos
desde o inicio deste texto assumindo que nos interessa o percurso de nosso
pensamento na teoria urbanística, no movimento de desnaturalização das
práticas em AU – movimento ainda em luta pela consolidação de um território –
, as convocações e os intercessores que surgem na tentativa de atendê-las,
esta pequena escrita de nossos desassossegos, tornam-se assim parte deste
processo.

Percebemos, como posto no inicio deste movimento, que as insurgências que


fizeram despertar o conceito de (micro)Planejamento urbano, dele, de sua
existência, são totalmente independentes. E que, assim, supomos, o leitor
principal deste nosso trabalho, a pessoa para quem talvez este produto
importe, seja pela primeira vez em muitos anos de nossa labuta acadêmica,
aqueles diretamente envolvidos pela instituição AU. E posto este velho-novo
campo, a esta ferramenta conceitual metodológica, a sua operação e seu
produto se volta a fazer fluir fluxos, através de processos de desenvolvimento
crítico, autonomia, conscientização, de “alfabetização política”.

Talvez não tenhamos reforçado suficientemente em nossa escrita, que a


interferência pretendida ao tocar na questão da formação, não se coloca de
182

forma alguma na construção de profissionais que tenham seu foco apenas na


prospecção conceitual. Inclusive porque, ao entendermos que um conceito se
efetiva apenas quanto ferramenta conceitual metodológica capaz de uma
operação, de uma prática, de efetivar uma interferência, já se demarca a
dissolução da barreira entre teoria e prática, assim como ao intelectual se
evoca um lugar outro, como posto por Deleuze e Foucault, em “Os intelectuais
e o poder” (FOUCAULT, 1979), não mais no papel de conjurar ideais-
bandeiras, que aos “soldados rasos” cabe entoar, mas de encontrar lugar no
seio das lutas. Ou, colocando de outra maneira, não tomamos o
desenvolvimento crítico como fim, mas antes como meio para criação de linhas
de fuga, de práticas outras, capazes de escapar a reprodução dos velhos
modos que se travestem em novas mascaras para os mesmos fins.

Temos certamente mais indagações que certezas ao fim destas páginas, e me


recordo assim de uma pergunta de François Ascher, replicada por um
professor na época de nossa graduação. “Como projetar para a virtualidade?” –
era o questionamento sincero deste. Creio que esta pergunta se justifica aqui
também, mas diferente dos já não tão poucos anos que separam aquele
momento deste, arriscamos uma resposta. “Projetando processualmente”.
183

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