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SALVADOR 2016
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SALVADOR 2016
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Prof. Dr. Pasqualino Magnavita
Universidade Federal da Bahia
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Thais Portela
Universidade Federal da Bahia
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Prof. Dr. Luis Antonio Baptista
Universidade Federal Fluminense
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Prof.ª Dr.ª Ariadne Moraes
Universidade Federal da Bahia
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Joaquim Viana
Universidade Federal da Bahia
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RESUMO
ABSTRACT
The minor urbanism is the elected field in the framing of this work, based in the
bid of it as holder of an application potency liable of interfering in hegemonic
urbanistic practices. Inside that field we propose the construction of the concept
of Urban (micro)Planning as an artifice to an creative resistance micropolicy
acting in the development of politic awareness and empowerment of architects
and urbanists. Our pursue, therefore, tracing concordances and divergences
between three different perspectives in three authors: Jane Jacobs, Jan Gehl
and the collectives called Urban Designers for the construction of a detailed
view of urban microplanning. Three chosen concepts were chosen, deriving
from the difference (philosophy) will be used as ethic-aesthethic-politics guides
to analyze such practice. We suggest this guidness of Urban (micro)Planning
through the concepts: “care of the self”, “singularization” and “multitude”, as bet
on the consolidation fo this awareness and empowerment – the hypothesis:
such conceptual methodological tool can achieve even more an affirmative
posture of live in the microplanning practices.
AGRADECIMENTOS
Aos professores que tive durante todo meu percurso dentro e fora das salas de
aula.
Luis Antônio Baptista, Thais Portela, Joaquim Viana e Ariadne Moraes, por
aceitarem fazer parte da minha banca, e por toda a atenção, carinho e
colaboração.
SUMÁRIO
MOVIMENTO 6. RETICÊNCIAS
6 Não há conclusões em práticas processuais ...p.179
BIBLIOGRAFIA ...p.183
10
As cidades deveriam ser lugares dignos para todas as pessoas viverem. Mas ao invés
disso as cidades vêm sendo cada vez mais dominadas pelo capital, pelas grandes
corporações em aliança com o Estado. E, cada vez mais, elas têm se transformado
em lugares de produção de lucro em vez de lugares para se viver. Nós estamos
criando cidades para o investimento do capital e não cidades para as pessoas
viverem.
E eu acredito que isso só pode acontecer se a maioria das pessoas da cidade viver
como expectadores do que está acontecendo ao invés de participantes dela. O
resultado é a falta de democracia na cidade. Quando as vozes das pessoas não são
escutadas a participação das pessoas é minimizada. E, ao mesmo tempo, as pessoas
sentem uma profunda insatisfação por viver no tipo de cidade que o capital constrói. E
como resultado, nós observamos por todo o mundo protestos urbanos massivos. E,
claro, aqui no Rio de Janeiro, e também em São Paulo e em outras cidades do Brasil
houveram protestos massivos em julho de 2013, E muitos destes protestos
contestavam a qualidade da vida urbana. As qualidades da vida cotidiana em um
ambiente que não é construído para o interesse das pessoas, mas para o interesse do
capital.
Nós temos que virar esse jogo. E as únicas pessoas que podem virar esse jogo é o
povo. Nós temos que pensar como gostaríamos que a nossa cidade fosse. Nós temos
que pensar a respeito de uma cidade que está aberta à discussão, aberta ao debate,
aberta para considerar diferentes investimentos, investimentos em moradia para todos,
investimento em saúde, educação, todas as coisas básicas que precisamos para viver
uma vida digna e em um meio ambiente digno. Para mim, é assim que o futuro deveria
ser. E a única maneira que podemos definir esse futuro é organizando um movimento
político que tome a cidade de volta para as pessoas e que tire daqueles que a usam
para o lucro. Então, todos nós temos que perguntar a nós mesmos: O que faríamos se
a cidade fosse nossa? O que faríamos se pudéssemos tomar a cidade de volta? E isso
parece, para mim, ser uma das maiores questões políticas do nosso tempo. Ela traz a
luta política para o coração da cidade. Ela traz uma grade luta para que a gente se
torne participante ativo do nosso futuro, Arquitetos ativos do nosso próprio futuro.
Acredito que isso é algo que todos nós desejamos, Tosos nós queremos. Então, o que
faríamos se a cidade fosse nossa?
Fala de David Harvey para o movimento Se a Cidade Fosse Nossa
Rio de Janeiro, junho de 2015
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MOVIMENTO 1. APROXIMAÇÕES
Neste primeiro movimento desta tese estão contidos textos que são de grande
importância para que o desenvolvimento das ideias aqui propostas sejam, não
diremos “alcançadas” – posto que não é nosso intuito “o alcançar” de uma meta
singular por aqueles que por ventura atravessem as páginas desta pesquisa –,
mas, sim, para que este processo de pensamento em urbanismo seja uma
companhia tão produtiva quanto possível, que este trabalho possa tornar-se um
intercessor com o qual nosso leitor seja capaz travar diálogos férteis – dando
origem a outros processos –, onde nossas pontuações (em sua maioria
composta por interrogações e reticências) sejam mais acessíveis. São
aproximações, como intitulado neste movimento, que julgamos necessárias
para o acompanhamento deste trabalho.
1.1 Introdução
1.1.1 - Percursos de um pensamento em Urbanismo
Podemos dizer que, diferente do que costuma “se dar” durante o período de
construção da tese, não houveram grandes mudanças nas bases deste
trabalho desde seu projeto. Contudo após a última qualificação antes de sua
apresentação de defesa, com os apontamentos feitos pelos membros de nossa
banca, percebemos que a função pretendida na prospecção do conceito de
(micro)Planejamento urbano tocava com alguma intensidade a constituição da
consciência, ou, para usar outro termo caro a Paulo Freire, o empoderamento
dos alunos e profissionais da AU. Tal pontuação teve como consequência uma
singela mudança de direção no eixo deste. Não de forma a abandonar as
questões almejadas, mas, sim, no sentido de agregar, mesmo que sutilmente,
como um olhar de relance, sobre a questão da educação na graduação e nas
práticas deste saber. Não nos aprofundaremos na problemática pedagógica da
graduação ou das práticas que tomam corpo na formação dos arquitetos
urbanistas – proposta que pode se efetivar no futuro em uma pesquisa de pós-
15
Para tanto, a estratégia que tomamos nos movimentos que seguem a este
movimento introdutório de aproximação – onde apresentamos parte importante
dos de nossos intercessores e algumas das ferramentas conceituais
1
Retirado do site do PPGAU-UFBA
http://www.ppgau.ufba.br/node/136
16
A temática deste texto pode parecer estranha e não relevante ao corpo de uma
tese, contudo, a linha de pesquisa na qual este trabalho se inscreve – Teoria e
Crítica da Arquitetura e Urbanismo – e o campo da docência, como base e
anteparo para a prospecção de um conceito que se justifica à nossa grande
área do conhecimento (tarefa que nos cabe aqui), são por si o combustível de
sua manufatura. Em outras palavras, nosso intuito aqui se coloca no exercício
propositivo de uma crítica necessariamente criativa que lance, além das
problematizações, vislumbres de possíveis territórios que ajam como linhas
flexíveis, ou mesmo de fuga, a escritura desta tese ante às práticas que
consolidam hegemonicamente e de maneira escalonada, as instituições:
Universidade, Escolas de Arquitetura e Urbanismo, os Profissionais e
Pesquisadores e suas práticas, o resultado de tais práticas na construção
efetiva da cidade, e, por fim, também dos modos de vida urbanos que nesta
são produzidos.
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Tal colocação sobre o tecnicismo da graduação pode parecer conflituosa com a existência de
disciplinas, dentro da grade curricular da maioria dos cursos de AU, como “Sociologia urbana”,
18
construção crítica o que vai contra o texto constitucional de 1988 que disserta
sobre “a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” como coloca
Heckert e Passos (2009) – segundo tal indissociabilidade a práxis de pesquisa,
de incitação ao pensamento crítico e propositivo, teria o mesmo peso em todas
as instâncias do ensino superior. Parece-nos importante perceber que a
universidade tem o papel preponderante na formação dos profissionais que
constituem o mercado de trabalho, alvo destas críticas. Colocando de outra
forma, é necessário questionar também a práxis do ensino superior! Tomar o
foco do descontentamento para (muito) mais próximo, e problematizar também
com o funcionamento produtivista das universidades.
“Antropologia cultural”, entre outras – e com variações em suas nomenclaturas –, aliadas em alguns
casos às disciplinas de “Projeto urbano” que levam em consideração referenciais bibliográficos mais
interessantes à construção de um pensamento crítico, mas devemos ponderar sobre como se dá a
avaliação e o aproveitamento efetivo destas disciplinas. E também pesar que mesmo estas disciplinas
com base sociológica normalmente se encontram dentro do campo dos estudos urbanos, campo
normalmente menos “importante” que o campo do projeto arquitetônico.
3
Dado do Portal da CAPES/MEC. Acessível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20018:cursos-de-pos-
graduacao-tiveram-crescimento-de-23-nos-ultimos-tres-anos&catid=212
data de acesso 15 de julho de 2016
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Mas para ser levada a sério a avaliação deve tocar em aspectos que até agora
não receberam a devida atenção. Onde está, de fato, o problema nas
instituições brasileiras? Na publicação artigos e livros? No número de teses
defendidas? Ou na enorme burocracia que o sistema de financiamento à
pesquisa e avaliação gera, consumindo um tempo precioso que poderia estar
sendo utilizado nas atividades de ensino e pesquisa? Na escassez de recursos
humanos? Na concentração dos investimentos em áreas de rápido impacto
econômico? Já está mais do que na hora de pensar de maneira crítica não
apenas a forma da avaliação, como também o que é avaliado e para que é
avaliado.
O que se pode afirmar é que existe uma corrida desenfreada pela produção de
trabalhos acadêmicos, e tal corrida tem como consequência um aumento na
superficialidade e muitas vezes até uma reprodução esvaziadas de sentido,
que não levam a alguma contribuição qualitativa, mas simplesmente
quantitativa. Questão que ressona na infinidade de congressos onde os
trabalhos não são “postos para conversar”, para discutir, e onde não se criam
redes, mas, que ao mesmo tempo, podemos encontrar em excesso o terrível
“ego acadêmico” em exibição – a produção em escala industrial, a corrida pelo
inflamento dos curriculum lattes, onde tudo e qualquer coisa torna-se
forçosamente aproveitável e interessante. No estado de coisas no qual nos
encontramos não há espaço para a maturação do conhecimento adquirido. Não
se questiona os métodos positivistas de pesquisa, sobretudo no campo das
ciências humanas e humanas aplicadas, hoje incapazes de lidar com a
complexidade social, na busca pela captura d“A” verdade cientifica que ignora
o perspectivismo e segue na tarefa da reprodução, tida como imparcial, que
separa o objeto do pesquisador, a teoria da prática e afirma a universalidade
dos métodos prêt-à-porter.
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Nesta práxis reprodutiva corremos o risco da paralisia, uma vez que no reforjar
das práticas de pesquisa, e também dos “círculos-de-amizades acadêmicas,
dos apadrinhamentos”, das “disputas por território e por alunos-asseclas”
vemos a ascensão de professores que recebem e receberão a terrível herança
de seus velhos orientadores de atuar dentro dos mesmo limites. Neste estado
de coisas somos obrigados a lidar com o extremismo da racionalidade moderna
que não aceita formas não padronizadas, não pautadas na tradição positivista,
a alteridade da ciência, suas outras formas possíveis, em outras racionalidades
possíveis.
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Segundo o Portal da CAPES/MEC:
“O desenvolvimento do sistema se deu em todas as regiões do Brasil. A região Norte teve 40% de
crescimento, seguida pelo Centro-Oeste com 37% e Nordeste com 33%. Sul e Sudeste, regiões com
maior número de programas de pós-graduação, tiveram crescimento de 25% e 14%, respectivamente.
[...]
O crescimento da pós-graduação brasileira também pode ser percebido em outros indicadores, como a
produção intelectual e o número de mestres e doutores titulados. Dados de produção intelectual
apontam um aumento de 34% na publicação de artigos em periódicos científicos (171.969, em 2012) e
no número de estudantes que obtiveram título de mestre ou doutor, que saltou de 50.411 em 2010
para 60.910 em 2012”.
Dado acessível em:
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Porém as políticas por trás de tal crescimento, assim como das metas de
produção impostas aos professores e aos graduandos, mestrandos e
doutorandos, na forma da números de artigos, participação de congressos,
horas em sala de aula, ou seja, a forma como se dá tal crescimento tem em si
um papel na consolidação de uma forma de ensino superior que coloca em
cheque se o papel da universidade é produzir conhecimento ou apenas
fornecer mão de obra ao mercado – tal como André Dahmer coloca em sua
famosa “tirinha” Os Malvados5. Descreveremos a cena fabulada (?). Um
professor, em uma sala de aula, lança um discurso “de verdades” aos alunos:
– “Vou ficar aqui um bimestre falando sobre coisas que desconheço e vocês
não notarão. Em dois anos, os mais espertos irão entender que aqui não é um
templo do conhecimento e sim um mercadinho imoral de diplomas. Quando
saírem desta ilha da fantasia, vocês irão trabalhar de sol a sol sem sequer saber
quem lhes oprime”.
– “Vai ter chamada?” – replica um dos alunos.
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20018:cursos-de-pos-
graduacao-tiveram-crescimento-de-23-nos-ultimos-tres-anos&catid=212
data de acesso 15 de julho de 2016
5
Sobre a tira de André Dahmer, devemos considerar também que à formação consta mais que apenas
“saber quem oprime”. E não podemos nos esquecer da fala foucaultiana, que abre este texto, e que
considera que a universidade não se encontra fora, em um pedestal platônico de pureza, mas dentro da
sociedade, constituída e instituída por toda a complexidade de problemas.
O trabalho de André Dahmer pode ser acessado em:
http://www.malvados.com.br/
6
É importante entender, como cita Luis Antônio Baptista, que: “o modo de produção capitalista [...] não
é restrito somente ao econômico, mas produz um olhar do homem sobre si e sobre o mundo”
(BAPTISTA, 1999, p. 109)
22
sob uma perspectiva onde devemos nos implicar na construção do mundo, com
toda a complexidade das lutas e jogos de força, menos vale um diploma que a
capacidade de pensar e resistir à captura pelo controle e disciplina do
Capitalismo Mundial Integrado7. Sobre a obtenção do diploma, e sua função
Michael Foucault coloca:
7
O termo capitalismo mundial integrado, proposto por Félix Guattari como alternativa à “globalização”, se
aproxima mais de seu real sentindo econômico, social e subjetivo, fundamentalmente um movimento do
capitalismo neoliberal instalado globalmente. “O capitalismo é mundial e integrado porque potencialmente
colonizou o conjunto do planeta, porque atualmente vive em simbiose com países que historicamente
pareciam ter escapado dele (os paises do bloco soviético, a China) e porque tende a fazer com que nenhuma
atividade humana, nenhum setor de produção fique de fora do seu controle” (GUATTARI; ROLNIK, 2005,
p.411).
23
Em 1968 Gilles Deleuze recebeu o título de doutor por sua tese intitulada
Diferença e Repetição (2006), tese que se tornou um dos livros mais
importantes deste autor e um dos livros mais importantes de filosofia
escritos no século passado.
8
Apesar de não ser uma tese de doutoramento, acreditamos que o livro-tese de Carlos Nelson dos
Santos se encaixa nos bons exemplos da produção acadêmica.
24
Estes, dentre outros pesquisadores produziram trabalhos de tese que por suas
qualidades excepcionais, talvez geniais, tornaram-se objetos portadores de
enunciados capazes de provocar novas perspectivas em suas áreas (saúde,
filosofia e urbanismo respectivamente), foram capazes de transformar e alçar o
pensamento, alheios a simples reprodução, com suas bases fincadas
profundamente na criação em uma potência elevada. Esta suposta genialidade
destes autores não deve ser posta como objetivo comum, como meta que deve
ser alcançada, mas como fortes exemplos de obras que possuem em si um alto
potencial de liberdade criadora do pensamento, inovações e experimentações
que devem ser exemplo a uma produção, mesmo que não genial, inspiradora e
que leve em si o sentido e a intensidade da edificação de realidades
revolucionarias.
Afirmaremos, após tais exposições, que uma tese pode ser mais que uma tese.
Uma tese, para além da representação de um objeto, pode tornar-se um
dispositivo capaz de trazer à tona processos e neles provocar interferências.
Uma tese pode ainda fazer-se um intercessor no sentido que a leitura de um
trabalho que leva em si a criação, a invenção, é capaz de promover um (bom)
encontro e despertar novas intensidades e sensibilidades. Como coloca
Deleuze:
Afirmaremos então que a tese em si tem pouco valor, e que o que nos
interessa nela é a capacidade de arrebatar, criar fissuras, instituir novas
formas, produzir novos movimentos no pensamento. Novamente, afirmaremos
que a tese, assim como todo produto de pesquisa, é uma pesquisa-
intervenção, é um processo de produção de subjetividade, o que destrói a
polaridade entre teoria e prática, tornando-as necessariamente ações
intrínsecas. Como afirmam Heckert e Passos “[...] todo conhecer é um fazer,
construindo no mesmo movimento a si mesmo e o mundo” (2009, p.377) e a
partir desta fala devemos “compreender a formação, a produção do saber
como processos de coemergência de si de mundo nos abre a possibilidade de
fazê-la funcionar como um potente dispositivo de intervenção, como usina
produção” (p.380).
9
Como coloca Deleuze: “Mas, ao contrário, há alguém, mesmo que seja apenas um, com a modéstia
necessária, que não chega a saber o que todo mundo sabe e que nega modestamente o que se julga ser
reconhecido por todo mundo. Alguém que não se deixa representar e que também não quer
representar quem quer que seja. Não um particular dotado de boa vontade e de pensamento natural,
mas um singular cheio de má vontade, que não chega a pensar nem na natureza e nem no conceito”
(DELEUZE, 2006, p. 191).
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1.2 Pressuposições
1.2.1 Urbanismo e Subjetividade
10
Dissertação de mestrado intitulada: “Entre corpos e cidades: pensamentos e interferências sobre a
construção de cidades e modos de vida”, realizada no mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) em 2011. No qual buscamos
analisar a cidade como corpo social e suas reverberações no campo da Arquitetura e Urbanismo (AU) no
contemporâneo. Tal ação/reflexão se deu sobre dois pontos: primeiro a partir da Análise Institucional
como movimento de institucionalização deste corpo-cidade e deste poder-saber
28
11
Por cartografia compreendemos a metodologia processual de apreensão e acompanhamento dos
movimentos da produção da subjetividade. Surgida em par com o conceito de rizoma, de Deleuze e
Guattari (1995). Para Passos, Kastrup e Escóssia (2009) a cartografia coloca-se como um mapa-móvel,
isenta da formulação de regras e protocolos, onde não cabe a representação, mas o próprio
engendramento daquilo que se pensa, e estratégias de pesquisa que fogem a metodologia clássica na
criação de territórios existenciais.
29
12
O entendimento das composições harmônicas ou desarmônicas passa pelo campo da ética segundo o
pensamento da diferença, e por ética, nas palavras de Luiz Fuganti (sem ano): “Chamamos ética não a
um dever para com a Lei ou o Bem, nem tampouco a um poder de segregar ou distinguir o puro do
impuro, o joio do trigo, o Bem do Mal, mas a capacidade da vida e do pensamento que nos atravessa em
selecionar, nos encontros que produzimos, algo que nos faça ultrapassar as próprias condições da
experiência condicionada pelo social ou pelo poder, na direção de uma experiência liberadora, como
num aprendizado contínuo. Fazendo coexistir as diferenças, conectando-as ao acaso dos espaços e dos
tempos que as misturam e tornam seus encontros, ao mesmo tempo, contingentes e necessários num
plano comum de natureza adjacente ao campo social (pois a vida não existe fora dos encontros e dos
acontecimentos que lhe advém), afirmamos o que há de fatal nestes encontros, algo como o sentido
superior de tudo que é. Pois é querendo o acontecimento, que liberamos algo que se distingue dos
simples fatos cotidianos”.
30
A subjetividade pode ser pensada então como sendo formada por dobras. Mas
as dobras são a própria rede, ou melhor, nós somos a própria rede, assim
como o sistema econômico, político, educacional etc. também são. As dobras
são formas que se produzem e conferem um sentido específico para o que
chamamos desejo, trabalho, arte, religião, ciência etc. As dobras não são nem
interiores e nem exteriores e sim formações provisórias de um entre que
mistura finitos materiais de expressão em ilimitadas combinações (MACHADO,
1999).
Voltando a Guattari:
31
O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas
visíveis e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de
sensação, [...] máquinas portadoras de universos incorporais que não são,
todavia, Universais, mas que podem trabalhar tanto no sentido de um
esmagamento uniformizador quanto de uma re-singularização libertadora da
subjetividade individual e coletiva (1992, p158).
13
Expressões que fazem referência respectivamente: ao termo “não-lugar” de Marc Augé (2008), que
denotam espaços arquitetônicos como shoppings malls, aeroportos, hospitais, desprovidos de uma
identidade que os liguem a um lugar, desconectados de seu entorno, passiveis de estarem em qualquer
lugar; e ao termo “nenhum lugar” de Luis Antonio Baptista (1999), cunhado no texto “História do lixo
urbano”, para compreender os espaços não-legais, não-formais, não edificados por uma “arquitetura
oficial”, ou que cumprem uma função de exclusão e “morte social” para indivíduos “desajustados”, ou
ainda espaços abandonados pela especulação imobiliária.
32
Na explosão deste CMI, nas grandes e médias cidades, vivemos a cada dia em
paisagens mais iguais, independentemente dos deslocamentos geoculturais.
Esmagamento de singularidade que Guattari chama de “cidade-mundo do
capitalismo contemporâneo”14, ou “cidade genérica”15 para o arquiteto Rem
14
Guattari nos fala dessa cidade-mundo do capitalismo contemporâneo como explosão
descentralizadora do capitalismo que não pode mais ser focalizado em uma única cidade, mas em um
arquipélago de cidades ao longo de todo o globo, interligadas telematicamente pelos meios de
comunicação. “*...+ focos urbanos altamente desenvolvidos, espécies de campos fortificados das
formações dominantes de poder, ligadas por mil laços ao que poderia denominar intelligentsia
capitalista internacional” (GUATTARI, 1999, p.171).
33
15
As cidades genéricas, sob o aspecto arquitetônico, são construções contemporâneas do capital que,
espalhadas ao redor do mundo, constituem relevos uniformes, descaracterizando e se sobrepondo aos
marcos e elementos do genius loci (espírito do lugar), com paisagens cada vez mais semelhantes.
Segundo Guizzo: “A cidade para ele não tem história, é toda igual, genérica, sem valor, e isso tudo irá
justificar a utilização de tábula rasa, ou seja, justificará a destruição de parte da cidade existente para
construir novos projetos. Sua perspectiva possibilita o surgimento de arquiteturas e projetos urbanos
isolados em relação à cidade existente, ao modo de viver de um lugar, de uma cultura, de uma estética,
e que não preveem nenhuma participação de quem ali vive” (2008, p.76-77).
34
16
Através de modos de existência, ou modos de vida, Delgado (1999) propõe um entendimento onde o
urbano, ou a urbanidade, torna-se uma forma-subjetividade, sendo produzido incessantemente como
um trabalho do socius sobre si mesmo, não como estrutura e sim como constante estruturar-se. Modo
de vida que se dá não somente sobre a pele das cidades, mas onde estas relações produto e produtoras
de uma subjetividade urbana possam alcançar - incluindo o rural (ou o campo). Desta forma o autor
destaca a imagem do urbano da imagem da cidade, e coloca-se contra o antagonismo entre urbano e
rural, e afirma um novo antagonismo entre o urbano e o comunal, este como relações de vizinhança
cálidas e próximas. E mesmo a história do urbano seria diferente de uma história da cidade.
35
Voltamos assim a Félix Guattari (1992) que em seu livro Caosmose, mais
especificamente no texto “Restauração da cidade subjetiva”, escreve que “o
porvir da humanidade parece inseparável do devir urbano”, e indo mais
adiante:
17
Alain Badiou na fala intitulada “Existe algo assim como uma política deleuziana?” (tradução nossa),
contida no livro Deleuze político: nueve cartas inéditas de Gilles Deleuze (ZARKA et al, 2010) dirá
acerca do conceito de política que consideramos: “(...) a política é uma máxima de criação, mas não uma
criação em si. Quando a política não é uma máxima para a arte, a ciência ou a filosofia, não pode ser
outra coisa que uma análise do capitalismo” (p.23). Falamos, então, da máxima de criação de Nietzsche,
ou da crítica radical histórica. Política do pensamento, pensamento que se desdobra em política da arte,
política da ciência e política da filosofia. Política como criação vital de algo novo. Dirá ainda Badiou:
“Mas o que é uma máxima política da ação que envolve as criações humanas tomadas na sua
totalidade? O quê é uma máxima política, se a máxima se encontra na arte, na sexualidade, no devir
humano? Penso que é de fato, uma máxima ética antes de uma máxima política. Deleuze escreve: “O
que mais falta é a crença no mundo. Quase perdemos o mundo. Nos foi retirado. Se você crê no mundo,
precipita os acontecimentos de uma forma que escapa ao controle”. Ao meu juízo, se torna claro que
crer no mundo, precipitar os acontecimentos, fugir ao controle são as máximas éticas de Deleuze”
(p.24).
E, indo mais além, três máximas: “a máxima negativa (“fugir ao controle‟), a máxima subjetiva (“crer no
mundo‟) e a máxima criativa (“precipitar os acontecimentos‟)” (p.24). O autor nos fala de uma política e
uma ética “deleuzianas”, uma postura ante o mundo, defendida pelo filósofo da diferença. A política
trata, portanto, de uma postura ante nossa forma de nos relacionarmos com o que nos cerca, trata de
uma forma de estar no mundo e de construí-lo.
18
Giorgio Agamben na introdução de O poder soberano e a vida nua, nos fala que os gregos
usavam dois termos distintos para expressar o que entendemos por vida. Esses dois termos eram zôê,
que significava o “simples facto de viver, comum a todos os seres vivos”, e bios “que indicava a forma
ou maneira de viver própria de cada indivíduo ou grupo” (AGAMBEM, 1998, p.11)
36
19
Segundo Michel Foucault (2006) existe uma co-produção entre saber e poder. Não existe relação de
poder que não constitua um campo de saber, da mesma forma que não existe um saber que não
presuma e constitua uma relação de forças.
37
20
MORA, M. “O urbanismo está morto”. Entrevista com o arquiteto Frank Gehry publicada
originalmente no jornal El País, traduzido por Clara Allain para a Folha de São Paulo em 31 de janeiro de
2010.
38
O urbanismo não pode estar morto, pois, concordando com Delgado, o oficio
de criação do urbano coloca-se para além somente dos projetos, e também nas
mãos daqueles que habitam a urbe. Cabe perceber que pontuando a questão
desta maneira, e divergindo da fala de Frank Gehry, apenas somos levados a
uma problematização ainda mais complexa: A pluralidade e a diferença que
deveriam surgir dessa pretensa posse da vida na urbe encontram-se coagidas
no consenso de uma insensibilidade, da falta de anseio na participação dessa
construção de urbanidade, como questões aceitas e naturalizadas por um
processo de subjetivação homogeneizadora, como coloca Suely Rolnik:
subjetividades prêt-à-porter (2002). Assim como a própria produção da AU que
se encontra muito mais como reprodução de modelos preestabelecidos e
espaços “espetacularizados” que na criação de novos espaços, outros modos
de existência na experimentação de outras cidades possíveis. Ameaça de
paralisia do urbanismo, como modo de vida no pluralismo das singularidades,
em prol de um modelo hegemônico que cria “trajetórias sócio-profissionais
predeterminadas” (GUATTARI, 1992, p.169), a serialização do viver. Mas a
fórmula foucaultiana que demarca que onde há poder, há resistência 21 segue
vigorando, e tanto nas instancias da AU – na produção dos espaços –, como
na instancia dos corpos – da ocupação dos espaços –, outras possibilidades
aos modelos e modulações surgem e se espraiam silenciosamente.
21
Entendemos por práticas de resistência os processos de criação que escapam ao
prescrito e delineiam outras formas de ação imprevisíveis e não programadas. Ações
que se agenciam com outras práticas e vão contra movimentos de submissão e
reprodução de processos instituídos. (HECKERT, 2004) Ana.
42
[...] Trata-se de “duplicar” a relação de forças, de uma relação consigo que nos
permita resistir, furtar-nos, fazer a vida ou a morte voltarem-se contra o
poder. Foi o que os gregos inventaram, segundo Foucault. Não se trata mais de
formas determinadas, como no saber, nem de regras coercitivas, como no
poder: trata-se de regras facultativas que produzem a existência como obra de
arte, regras ao mesmo tempo éticas e estéticas que constituem modos de
existência ou estilos de vida (mesmo o suicídio faz parte delas). (1992, p.123)
A vida artista constitui a construção efetivada pelo sujeito com foco em uma
vida generosa, ágil, intensa, que se coloca na contramão às formas de vida
assujeitadas da ordem hegemônica burguesa, conectada a uma comunidade
na qual todos se voltam à estética da existência – onde os modos de produção
individual e coletivo estão interessados em fazer da vida uma obra de arte.
A vida como obra de arte nos remete a estética, entendida como ato de
criação, mas a constituição de tais modos de existência, ou estilos de vida, não
cerceados também passam pela ética entendida como oposição a moral, como
“conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em
função dos modos de existência que isso implica”.
22
Termo utilizado por Deleuze para caracterizar o homem produzido pela sociedade disciplinar no texto
“Póst-Scriptum sobre a Sociedade de Controle”(1992).
43
Mais que uma mera análise da iniciativa de Nilson Garrido como uma proposta
a ser instituída e implementada, como uma política pública, ou mesmo a ser
analisada como uma ação voluntária-cidadã salvadora de crianças e jovens “do
mundo das drogas”. A academia-biblio-brinquedoteca nos interroga a respeito
dos sentidos de uma cidade, a partir dos seguintes questionamentos: O que
este espaço enfrenta? O que ele afirma? As fricções, a porosidade trazidas
tanto pela imagem do viaduto do Café [...] são, por nós, tomadas, conforme
sugere Benjamin, como Imagens do Pensamento, cujo sentido não é traduzido
por ilustração, ou representação, mas sim por força possível de produzir
estranhamento – interpelação. Interpelação, esta que se faz a uma certa
ordem que segmenta os corpos, tempos e espaços; e que enfrenta
cotidianamente a construção de um espaço uníssono, aplainado e
geometrizado; ou ainda, que enfrenta a assepsia das cidades “cartões-postais”
onde nos parece que nada está acontecendo, – sob o entendimento de que
acontecimento é irrupção, jogo tenso das forças que apontam para a
incompletude como sinal de inesgotabilidade das tramas da existência, das
táticas do viver que rompem com a inexorabilidade do presente e, a todo
instante, recriam sentidos que vivificam a cidade, e cidades que vivificam os
sentidos da existência. (RODRIGUES; BAPTISTA ; FERREIRA, 2007)
1.2.3 Francis Bacon pinta uma cidade: O que pode um urbanismo menor?
23
Entende-se por serialidade o caráter repetitivo e vazio de um estilo de existência concernente a um
funcionamento de grupo “prático-inerte” (GUATTARI, 1992, p.187)
48
24
Marcel Duchamp (1887-1968), artista francês de grande influência e renome que atuou em diversos
grupos e atravessou movimentos artísticos atuando como pintor e escultor.
25
Joseph Beuys (1921-1986), artista alemão que atuou em vários grupos. Trabalhou com escultura,
performances, instalações e se firmou como um dos grandes nomes da arte no século passado.
26
John Cage (1912-1992), músico americano, compositor, teórico musical, escritor. Seu trabalho teve
grande influência no século XX.
27
No texto 1.12, Pressuposições da Fundamentação teórica deste trabalho: Urbanismo e Subjetividade,
desta tese falamos sobre o conceito de Subjetividade e a inserção desta perspectiva sobre os objetos
arquitetônicos e urbanísticos
49
28
Nos referimos aqui sobretudo à obra de Deleuze, Guattari e Michael Foucault e sua bibliografia.
50
A pontuação primeira que faremos aqui, talvez a mais óbvia, estaria posta na
consideração sobre a concepção dos objetos e a responsabilidade ante tal
produção. Encontramos nos quadros de Francis Bacon, e na arte conceitual,
uma independência da obra, que se coloca sobretudo na questão da autoria
não totalitária29 e na concepção contrária do objeto finalizado, mas que segue
em novas conjunções relacionais. Do lado da produção arquitetônica e
urbanística, encontramos a autoria definida, burocratizada e utilizada como
portfólio de divulgação publicitária de um serviço. O fenômeno comumente
chamado de “arquitetura de grife” é um exemplo onde a contratação de um
arquiteto de renome, um starchitect, coloca a autoria, a assinatura do arquiteto
num patamar mais importante que o projeto em si, sendo uma das marcas do
Modelo Barcelona de urbanização, e uma marca do que Guattari chamou de
cidade-mundo do capitalismo contemporâneo geradora de paisagens cada vez
29
Chamamos aqui de autoria não totalitária tanto a não reclamação de uma obra (como pode ser
observado em Duchamp), como obras em que não cabe assinatura (como em Beuys), obras passíveis de
reprodução (como no caso das partituras de Cage), ou mesmo onde a autoria não se coloca, por si,
como uma das grandes questões da obra o que contrastaria diretamente ao fenômeno da “arquitetura
de grife”.
51
30
As cidades genéricas, sob o aspecto arquitetônico, são construções contemporâneas do capital que,
espalhadas ao redor do mundo, constituem relevos uniformes, descaracterizando e se sobrepondo aos
marcos e elementos do genius loci (espírito do lugar), com paisagens cada vez mais semelhantes.
Segundo Guizzo: “A cidade para ele não tem história, é toda igual, genérica, sem valor, e isso tudo irá
justificar a utilização de tábula rasa, ou seja, justificará a destruição de parte da cidade existente para
construir novos projetos. Sua perspectiva possibilita o surgimento de arquiteturas e projetos urbanos
isolados em relação à cidade existente, ao modo de viver de um lugar, de uma cultura, de uma estética,
e que não preveem nenhuma participação de quem ali vive” (2008, p.76-77).
31
Tradução nossa, para o original: “La empresa que asume el proyectista es la de trabajar a partir de un
espacio esencialmente representado, o más bien, concebido, que se opone a las otras formas de
espacialidad que caracterizan la labor de la sociedad urbana sobre sí misma: espacio percibido,
practicado, vivido, usado, ensoñado… Su pretensión:mutar lo oscuro por algo más claro. Su
obcecamiento: la legibilidad. Su lógica: la de una ideología que se quiere encarnar, que aspira a
convertirse en operacionalmente eficiente y lograr el milagro de una inteligibilidad absoluta.
Conceptualización de la ciudad como territorio taxonomizable a partir de categorías diáfanas y rigidas a
la vez – zonas, vías, cuadrículas – y a través de esquemas lineales y claros, como consecuencia de lo que
no deja de ser una especie de terror ante lo inconmensurable, lo polisensorial, el súbito
desencadenamiento de potencias sociales muchas veces percibidas como oscuras. Y, por supuesto, se
niega en redondo que la uniformidad de las producciones urbanísticas no sirva, en el fondo, para ocultar
o dissimular brutales separaciones funcionales derivadas de todo tipo de asimetrías, que afectan a
ciertas clases, géneros, edades o etnias”.
52
Jacques nos fala de uma não-relação entre o que seria o objeto urbanístico e o
corpo do sujeito urbano, onde o ambiente projetado se coloca como cenário e o
usuário como espectador. Tal não-relação dá-se na não abertura para atuação
ou desenvolvimento de ações de posse do espaço construído e a consequente
53
passividade daquele que o atravessa sem afetá-lo e por ele afetar-se. Tal
condição ganha a denominação, já consideravelmente assimilada, de
espetacularização da cidade e tem suas bases filosóficas em Guy Debord e
seu conhecido livro A sociedade do espetáculo (1997). Em contrapartida
Jacques propõe que a inversão dessa relação de repulsão, ou seja, uma
relação de afinidade efetiva um “outro corpo urbano” que se se conforma por
transmutação, do jogo de forças, do objeto urbanístico e arquitetônico em
composição com o corpo do usuário, do sujeito urbano, torna-se, desta
maneira, corpo, dentro do campo das relações micropolíticas, onde a
consequência da interação e da afetação entre o corpo da cidade e o corpo
humano. E que esta relação de afinidade e afetação se coloca como condição
sine qua non para que o objeto se torne, ou ganhe, a condição de corpo.
entre sujeitos singulares. Nos deparamos então com uma falsa dicotomia que
diz respeito ao sujeito singular e a coletividade heterogênea. Por vezes o
entendimento de um coletivo carrega o signo da massificação, da massa, visto
como um aglomerado de iguais. Contudo, tal e qual o conceito de multidão de
Negri e Hardt (que abordaremos com mais profundidade no terceiro movimento
deste trabalho), que encontra relativo direto com a singularidade, compreende
e propõe um entendimento de coletivo não homogêneo (e assim distante da
massa de iguais).
32
Segundo Hannah Arednt a vida activa se dá somente quando o sujeito consegue alcançar toda a
expressão possível de uma vitalidade citadina. O que necessariamente envolve o labor da sobrevivência
quanto ser, o trabalho na produção de artefatos produzidos que conferem uma marca ao tempo da
própria existência deste homem, e, finalmente a ação política na gestão das organizações da vida na
história deste homem singular e que se difere dos demais homens à luz de uma determinada
constituição histórica.
57
33
Empoderar, segundo Paulo Freire, não é dar poder (conceder a quem não tem), mas ativar a
potencialidade criativa do outro não somente numa perspectiva psicológica, mas também como ato
social e político.
34
Manuscrito de Cláudio Ulpiano transcrito no site oficial de publicação de suas aulas, com o título “A
vida, a foraça da vida... Manuscrito 14”, não consta o ano, acessível em:
http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/?p=6533 acessado em 28 de janeiro de 2014
58
Devemos pontuar que tal forma de vida urbana, tão segregada, não ocorre sem
a participação dos habitantes da cidade. Afirmamos assim que não há
passividade nesta construção, e que tal forma é construída pelas ações de
todos, e assim é necessário a implicação de nossas práticas – o
questionamento foucaultiano se faz necessário: o que estamos fazendo de nós
mesmos? Existe uma construção para tal desejo de isolamento, tal clamor
pelas grades e pelo “não encontro” com o que não lhe é idêntico. Falamos da
exaltação de um regime domiciliar extremista, onde a rua e seus habitantes
devem ser temidos e evitados, onde o circular exclui o interagir, pelo medo.
Danichi Mizoguichi, em sua dissertação-livro Segmentaricidades: passagens
do leme ao pontal (2009) fala sobre a insegurança, como forma de controle
35
Faz-se necessário ressaltar que determinado arranjo que culmina numa determinada forma-
subjetividade é responsabilidade de todos. Responsabilidade que não encontra quantidade ou
especificidade por um determinado nicho profissional, responsabilidade que nos convoca a todos. Afinal
somos produto e produtores do meio, das relações que nos compõe.
59
social que cria cidades onde a vida como zoé, ou vida biológica, sob o risco de
dano ou perda – como exalta o mass media sensacionalista -, deixa que se
perca a bios, os modos de vida (p.63).
Gilles Deleuze nos dirá que o sujeito desta sociedade disciplinar será o sujeito
encarcerado, que passa de um espaço confinado a outro:
[...] primeiro a família, depois a escola ("você não está mais na sua família"),
depois a caserna ("você não está mais na escola"), depois a fábrica, de vez em
quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por
excelência (DELEUZE, 1992, p. 219).
36
O Panóptico, numa breve explicação, nada mais é que uma prisão em forma de anel (ou coroa), com
celas em sua extremidade, separadas entre si de modo a impedir a comunicação entre os internos, ao
centro desse círculo se localiza o alojamento do inspetor (ou diretor), conservando um espaço entre as
celas e este alojamento. Esta organização se dá de forma a permitir que o inspetor vigie todos os
internos sem ser visto, tendo a sua presença sempre como incerta pelos observados, roubando-lhes a
privacidade e criando um mecanismo de auto-vigia (PRUCOLI, 2005).
61
Michel Foucault, ao dissertar sobre o poder, deixa claro que este se constitui
como uma rede, uma multiplicidade de correlações de forças, e diz ainda que,
onde há poder, há resistência, e esta, nunca se encontra exterior ao poder,
pois deste não se escapa, “não porque englobe tudo e sim porque provém de
todos os lugares” (FOUCAULT, 1988, p.103). Entendemos por práticas de
resistência os processos de criação que escapam ao prescrito e delineiam
outras formas de ação imprevisíveis e não programadas. Ações que se
agenciam com outras práticas e que vão contra movimentos de submissão e
reprodução de processos instituídos (HECKERT, 2004). Fato é que a urbe é
múltipla, polifônica, estamos falando da metapólis37: da cidade de cidades,
territórios diversos dentro de um território maior. E esse poder da sociedade de
37
Termo cunhado pelo sociólogo francês François Ascher, no livro Metapolis Ou L'avenir Des Villes.
64
Aquilo que foge aos modos hegemônicos, o que investe na invenção, acontece
todos os dias e em todos os lugares, sem a necessidade de uma genialidade
singular, ou seja, se dá no grosso caldo das relações sociais. Desejos que vão
de encontro ao simulacro, libertando novas palavras, outros costumes, híbridas
redes de encontro e cooperação. E o desejo, como nos ensinam Deleuze e
Guattari, é agenciamento de desejo, propagando-se, potência constitutiva de
outras subjetividades, força viva, e para além de estarem passivas aos
controlatos do capital, são, em si, capital. Capital vivo que o sistema tenta
65
38
“Apesar de um tanto estranho, o comum *the common] ressalta o conteúdo filosófico do termo e
deixa claro que não se trata de uma volta ao passado, mas de um novo desenvolvimento. Nossa
comunicação, colaboração e cooperação não se baseiam apenas no comum, elas também produzem o
comum, numa espiral expansiva de relações. Esta produção do comum tende atualmente a ser central a
todas as formas de produção social, por mais acentuado que seja seu caráter local, constituindo na
realidade a característica básica das novas formas dominantes de trabalho hoje”. (HARDT; NEGRI, 2005,
p.14)
66
Seria possível, sem muita audácia, dizer que o processo de tal crescimento
urbano encontrava muito mais paralelos com a construção das favelas do
contemporâneo como aponta a Professora Paola Jacques, em Estética da
Ginga (2007), que à forma de urbanização da cidade da revolução industrial.
Isto porque a processualidade construtiva indicada nas favelas e periferias pela
autora, fora da legalidade e do planejamento urbano oficial, se deu, e ainda se
efetiva, a partir de modos construtivos artesanais, com materiais limitados, e
como dito antes, sem os especialismos técnicos e a legislação de edificação da
construção legal, tendo como consequências formais um traçado orgânico e
labiríntico. Ou seja, territórios onde não há a efetivação de um traçado vindo do
pensamento urbanístico ministrado em escolas de AU.
Ainda devemos pontuar, voltando mais uma vez ao cosmo brasileiro, que as
reformas urbanas higienistas relativas ao começo do século XX, apesar de
importantes, e que tem como expoente as reformas que se deram no Rio de
Janeiro, então capital brasileira, com os planos ministrados por Alfred Agache e
Pereira Passos, representaram um pequeno avanço ao compararmos com o
boom do processo urbano industrial (tardio em comparação às cidades
europeias e americanas) incentivado pelo Estado a partir da década de 30,
quando vemos o começo da mudança do epicentro econômico de agrário
exportador para industrial, e que se acelera no pós guerra (do fim da década de
40 ao até o início dos anos 80). Fato que é denominado pelo sociólogo
Florestan Fernandes como “revolução burguesa no Brasil” (MARICATO, 2001).
É a partir daí que vemos a população urbana brasileira saltar
exponencialmente de 26,3% em 1940 para 81,2% em 2000. Para
40
Em nossa dissertação (PRUCOLI, 2011, p.27), apresentamos o tema da analogia médica dentro do
saber urbanismo. Desta destacamos a seguinte citação inspirados por Henri Lefebvre:
“Henri Lefbvre (1999), no livro A Revolução Urbana, ressalta um ponto que parece passar despercebido
por grande parte dos arquitetos e engenheiros que estudam e edificam a cidade: a cidade em suas
expansões e retrações obedece a outras leis que divergem inteiramente da simetria desse corpo
perfeito. O modo de produção do capital é que produz nosso meio, fazendo antes uma cidade-
capitalista, ou uma “sociedade burocrática do consumo dirigido” (cidade da imagem, cidade do
consumo, cidade do medo, cidade da hierarquia, cidade do trabalho e do desemprego...). A cidade
urbana, de uma sociedade urbana, seria, então, algo a ser ainda definido, um processo, “mais que um
fato consumado, a tendência, a orientação, a virtualidade”. Os inchamentos e tumores se tornam então
efeitos da imersão da cidadecorpo em um modo de produção da vida em uma escala global. Não seria
insensato dizer que o próprio discurso dos urbanistas, surdo às questões ético-políticas, por sua vez,
advindo da instituição, do poder-saber, nada ou muito pouco polifônico, da arquitetura e do urbanismo,
ainda fortemente elitista, reatualiza modos de produção de tendência hegemônica. A cidade não é para
todos, e essa é, ainda, uma luta que dá nome a outro livro de Lefbvre: O direito à Cidade (LEFEBVRE,
2001)”.
73
41
Entrevista denominada “A Crise Urbana Brasileira” com professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, Carlos Vainer. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=BK_KG35rxuI
74
Vemos, neste mesmo período de tempo do século passado, uma série de bens
de consumo produzidos em escala industrial como a geladeira, o ar
condicionado, o fogão a gás, a televisão, mudarem o estilo de vida desta
sociedade urbana. Se as ruas eram então, no início deste processo
amplamente ocupada pelos pedestres, e onde boa parte da vida pública se
efetivava, em meados do século XX os carros passam a ocupá-la e a ter um
papel primordial nos grandes planos urbanísticos. Vias expressas são
implantadas rasgando o tecido urbano para que os carros ganhem espaço de
deslocamento sobre áreas consolidadas nas quais viviam os operários mais
pobres. Tais comunidades menos favorecidas são deslocadas para longe dos
centros urbanos, foco de grande interesse da especulação imobiliária. Vemos
um crescente esvaziamento dos espaços públicos em decorrência de uma
lógica domiciliar cada vez mais extrema e em contrapartida uma
“endemonização” das áreas comuns da urbe e seus habitantes que chega aos
dias de hoje impulsionadas por um aparato midiático muito forte e de grande
alcance (PECHMAN, 2009).
É neste momento histórico que vem à tona, pela batalha das forças
democráticas, de maneira processual, possibilidades interessantes de uma
atuação urbana menos perversa nas cidades brasileiras. Falamos então da
Constituição Federal de 1988 que pela primeira vez apresenta um capítulo
sobre a questão urbana – o que é uma oficialização do fato de que então temos
uma população brasileira tornada e assumida como majoritariamente urbana
urbana. O direito do uso capião urbano (a oficialização da posse de
propriedade aqueles que moram em terra sem contestação e de maneira
pacífica por mais de cinco anos) é um importante avanço na defesa de grande
parte das comunidades que habitam favelas e áreas periféricas contra a
expulsão e remoção destas dos interesses da especulação imobiliária, como
aconteceu amplamente no período da ditadura. Com isso fixa-se a idéia que
estes não devem ser removidos, mas antes urbanizados, acrescidos com
infraestrutura e condições dignas para seus moradores, como saneamento
básico e transporte público acessível. Outra ferramenta importante que advém
deste momento é o orçamento participativo e os planos diretores participativos
onde comunidades pela primeira vez ganham poder de intervir na gestão e na
legislação da edificação da cidade.
Porém, do lado das forças neoliberais, vemos a deformação e o mau uso das
ferramentas democráticas e da legislação, com o apoio dos gestores
municipais e a cooptação de lideranças comunitárias. Assim como vemos a
venda de novos modelos de urbanização vindos do “primeiro mundo”, em
especial o “modelo Barcelona” que demarca o que Vainer chama de City
Branding (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000), onde na aposta da criação
76
Talvez nos tenhamos tornado um povo tão displicente, que não mais nos
importemos com o funcionamento real das coisas, mas apenas com a
impressão exterior imediata e fácil que elas transitem. Se for assim, há pouca
esperança para nossas cidades e provavelmente para muitas coisas mais em
nossa sociedade. Mas não acho que seja assim. (JACOBS, [1961] 2000 p.06)
42
Tradução nossa para o texto em espanhol:
Los intelectuales son propensos a romantizar el pasado, de forma que cuando se habla de algo que está
muriendo históricamente se quiere dar a entender que el pasado muerto era mejor. Ésta es una ceguera
peculiar de mucho pensamiento utópico; puesto que el pasado era mejor que el presente, el futuro
debe restablecer el pasado. No es ésta mi intención: lo que puede aprenderse de la condición de la vida
urbana de hace cincuenta o setenta años es una perspectiva acerca de lo que encontramos a faltar hoy,
no una guía de cómo hay que levantar las ciudades en el futuro. De este modo, mi forma de pensar
discrepa de la de Jane Jacobs, en su fuerte y atrevido libro The Death and Life of Great American Cities,
pues ella tiene del pasado la idea de pequeñas e íntimas relaciones entre vecinos en la vida urbana y ve
estas relaciones susceptibles de restablecerse. Esta reanimación *…+ nunca podrá ser; necesitamos
encontrar alguna condición de vida urbana apropiada para una era opulenta y tecnológica.
79
foco muito especifico sobre a defesa que Jacobs efetua na disputa ferrenha de
modos de vida antagônicos, em voga naquele momento histórico (de meados
do século passado). Nos referimos à promessa da “vida urbana moderna” em
oposição às relações mais intimas e próximas de um conceito de vizinhança
advindos da protomodernidade dos subúrbios e defendido pela autora. Onde a
tecnologia e os aparatos tecnológicos tão comuns ao cotidiano, ainda não
faziam parte da vida e as formas subjetividades eram muitíssimo menos
movediças – para usar o termo caro à Manuel Delgado43 - discussão pleiteada
por Sennett já na década de 70 e de maneira inquestionável em nossos dias.
Porém não é somente desta problemática que trata a obra de Jacobs como
discutiremos neste ponto de nosso trabalho.
43
Em referência ao já citado livro Sociedades Movedizas
80
O urbanismo modernista criticado por Jacobs tem como alvo principal os ideias
contidas na “Cidade Jardim” de Ebenezer Horward (de 1898), na Ville Radieuse
de Le Corbusier (década de 1930) e no movimento “City Beautiful” de Daniel
Burnham (1893), que constituíam as diretrizes para a “anti-cidade”, os mega
projetos de re-urbanização norte americanos com suas segregações de
funções, uso intensivo dos automóveis e com núcleos residências voltados
para si. A autora problematiza e desmonta as justificativas da instauração da
cidade modernista de Moses em seu denegrir da situação então existente nos
bairros proletários de Nova Iorque (e demais cidades citadas no livro) com a
propagação de narrativas da riqueza das trocas sociais, do uso intensivo dos
espaços públicos, da noção de comunidade e o sentimento de coletividade que
haviam nestes territórios e como tal exposição de uma concreta rede de
vizinhança ajudava a combater a violência e o crime, tanto quanto oferecer e
manter uma variedade de funções e serviços (oferecidos por pequenos
negócios locais com fortes vínculos ao território e seus habitantes) que
tornavam tais locais algo muito distante da idéia de “tumores a serem
extirpados” pela máquina da cidade modernista.
44
83
Como posto por Jacobs há por parte dos arquitetos uma dificuldade muito
grande de perceber o espaço não somente como espacialidade, mas como
anteparo para tramas sociais complexas, e por vezes de uma riqueza que
deveria ser melhor explorada. Delgado em seu livro Sociedades movedizas
(2007), colabora com tal ideia e a traduz a partir de sua antropologia das ruas
(antropología de las calles) de forma mais direta sobre tal obscura legibilidade
e a incapacidade dos espaços projetados de alcançarem por si determinada
conjunção de sociabilidade. Dirá então:
E ainda, sobre tal vontade advinda por grande parte dos projetistas e suas
proposições, que de maneira inocente e equivocada, tal qual muitos dos
arquitetos modernos o fizeram, desastrosamente abstraindo de suas equações
projetuais tramas sociais preexistentes, Delgado disserta:
45
Tradução nossa para: COLOCAR TEXTO ORIGINAL
46
Poderíamos ainda citar Baudelaire, e seu poema “A une Passante” do livro Les Fleurs du Mal [1857],
que já foi utilizado à exaustão em artigos que versam sobre o olhar do poeta francês sobre a Paris em
transformação pelas mãos de Haussmann e seus bulevares. O poema de Baudelaire já atentava para a
brevidade e a efemeridade das relações advindas da cidade moderna. “Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais
où je vais”.
84
Não seria ousadia afirmar que é uma tarefa com certo grau de dificuldade
perceber, compreender a complexidade da conjunção de forças em jogo no
momento histórico em que a cidade moderna surge e se espraia, e não cair em
reducionismos. Podemos dizer que mesmo no cotidiano tais reducionismos
ante um objeto de ampla e profunda legibilidade como o objeto urbano ainda se
fazem presentes. Contudo, e voltando a Jacobs, entendendo que a crítica
destilada por esta autora, não pode ter como alvo único o papel que interpreta
Robert Moses, engenheiros, arquitetos e urbanistas e que por consequência
ausenta de responsabilidade a especulação imobiliária, a indústria
automobilística, siderúrgica e petroquímica, as instituições bancarias dentre
outros atores e forças maiores existentes que reduzem Moses, assim como
outros arquitetos e engenheiros, a um simples peão dentro de um jogo muito
maior. Jogo este que reduz arquitetos e urbanistas à um papel de projetistas
reféns de programas e designs pré-instituídos à “moda do momento”, e a
própria AU como instituição à um saber de tão pouca profundidade crítica no
que toca seu impacto no socius. Tal pensamento crítico, de maior
complexidade, talvez tenha estimulado a pesquisa e publicação dos livros
seguintes de Jacobs: Economy of Cities (1969) e Cities and the Wealth of
Nations (1984).
Outra advertência necessária seria sobre o foco do livro, que em seu título
original já deixava claro que se versava sobre a realidade estadunidense, The
death and life of great american cities, que em sua tradução para o
português teve amputado seu “recorte” nacional dando margem ao errôneo
entendimento uma crítica generalista a diferentes realidades urbanas. Sob esta
última advertência deve-se pontuar que o modelo de reestruturações urbanas
86
47
Fenômeno que, como posto antes, repete-se de maneira inconsequente desde a concepção do
urbanismo como disciplina no mundo ocidental pós revolução industrial, tendo como principais
expoentes históricos Haussman em Paris em meados do século XIX, e Moses em Nova Iorque em
meados do século XX.
87
Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela
funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da
segurança e da liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a
complexidade de usos das calçadas, que traz consigo uma sucessão
permanente de olhos. Essa ordem compõe-se de movimento e mudança, e,
embora se trate de vida, não de arte, podemos chamá-la, na fantasia, de forma
artística da cidade e compará-la à dança – não uma dança mecânica, com os
figurantes erguendo a perna ao mesmo tempo, rodopiando em sincronia,
curvando-se juntos, mas a um balé complexo, em que cada indivíduo e os
grupos têm todos papéis distintos, que por milagre se reforçam mutuamente e
compõem um todo ordenado. O balé da boa calçada urbana nunca se repete
em outro lugar, e em qualquer lugar está repleto de novas improvisações.
([1961] 2000, p.52)
conceber, produzir e fazer usos das cidades, algo solidamente mais plural e
coletivo para consolidar outras possibilidades menos danosas de vida na urbe.
Após o fim de sua graduação Jan Gehl iniciou um processo de divergência com
o pensamento típico de arquitetos e urbanistas em seu tempo, o pensamento
moderno comum neste período. Esta separação inicia-se, segundo o próprio,
com uma confrontação feita por sua esposa, uma psicóloga, que questionou
91
Contudo, Jan Gehl alcançou, com sua militância, ao longo de décadas, em prol
de uma cidade para pessoas, a atenção e o interesse tanto da comunidade
como dos políticos da gestão da cidade de Copenhagen. E neste espaço
urbano conseguiu um feito muito interessante: a instauração de uma secretaria
municipal focada em ações para os pedestres e na qualidade dos espaços
públicos. Segundo este pesquisador dinamarquês, prova de que vivemos uma
“ditadura automobilística” é que em qualquer município existem secretarias de
transporte, mas não há uma secretaria para desenvolvimento das ações
“pedestriais”. A influência do trabalho de Gehl na prefeitura de Copenhagen,
apesar de uma grande resistência em seu início, ao longo das décadas tornou
a cidade um modelo para o resto do mundo. No Brasil, a atual gestão da cidade
de São Paulo tem tomado ao longo dos últimos anos medidas de intervenção
em seus espaços urbanos inspirados nas ideias de Gehl, assim como Bogotá
na Colômbia e Nova Iorque nos Estados Unidos. Dentre as políticas
implementadas destacam-se a implantação paulatina de uma grande rede
cicloviária – a partir da lei municipal que obriga o município a implantar
anualmente uma quantidade mínima de ciclovias por ano –, o uso restritivo de
pista para ônibus e táxis em vias especificas da cidade – priorizando o
transporte coletivo e dinamizando-o –, e o fechamento da Avenida Paulista
durante os domingos para lazer. Todas estas ações enfrentaram duras críticas
de determinados grupos, da grande mídia, e de políticos de oposição. Contudo,
gradualmente todas estas ações tem ganhado apoio popular e se consolidado
a partir das consequências bastante visíveis e positivas.
Na prática, trabalhar com as três escalas significa operar com três disciplinas
muito diferentes, cada uma com suas próprias regras e critérios de qualidade.
Idealmente, os três níveis deveriam ser tratados e amalgamados em um todo
convincente que fornecesse um espaço convidativo para as pessoas na cidade.
(GEHL, [2010] 2013. p.196)
A batalha de Gehl por uma mobilidade urbana mais inteligente dá-se tanto na
gestão quanto nos projetos. A crítica absorvida de Jane Jacobs sobre a lógica
modernista de priorização do uso da mobilidade via automóveis particulares,
em Gehl transforma-se em uma série de diagramas onde se expõe como criar
uma organização de ruas onde o ciclista pode trafegar em segurança. Para
consolidar essa aposta o autor utiliza impressionantes dados estatísticos de
Copenhagen como prova de uma luta que se trava ao longo de décadas.
Atualmente o transporte por bicicletas corresponde a 37% dos deslocamentos
na capital da Dinamarca. Contudo, o espaço para a mobilidade verde se
efetivar, vem da tomada de espaço do veículo particular e da criação de
medidas como pedágios e taxas de estacionamento. Medidas que apesar dos
efeitos quase imediatos, como já dito, foram recebidos com um grande clamor
contrário daqueles cujos hábitos de deslocamento se baseavam no transporte
particular. Jan Gehl pontua que esta recusa é normal e esperada, hábitos não
mudam sem algum desconforto.
A proposta que é apresentada por Gehl de uma ética em AU, coloca-se dentro
das regras da oficialidade, das legislações da construção urbana. Parte de um
ponto oposto ao modelo de urbanização de Barcelona e do City Branding no
sentido que não se trata de uma maquiagem ou da criação de um cenário
espetacular, mas antes de uma cidade que se torna atraente pela qualidade da
dinâmica urbana que oferece aos seus habitantes.
2.4 Os Urban Designers
Como podemos verificar no livro Design with the other 90% cities (SMITH,
2011) – que disserta sobre intervenções em áreas urbanas pobres e
99
vida útil muito breve – será consolidada com o apoio da internet, onde as
imagens dessa produção são propagadas a um público de milhões de pessoas
e inspiram uma retroalimentação e propagação de si mesma ao longo do globo,
até aonde se estender seu alcance. A street art é considerada, por alguns,
como o maior movimento de contracultura desde o Punk. Artistas-
transgressores como Space Invader, Zeus e Shepard Fairey farão parte da
constelação à frente dessa vanguarda, cujo expoente maior será Banksy
(considerado por alguns como o Marcel Duchamp de nosso tempo).
Não se pode abstrair o fato que nos espaços mais vulneráveis do tecido
urbano, e, sobretudo na realidade dos países subdesenvolvidos, onde a AU em
sua forma mais hegemônica não tem alcance, arquitetos, sobretudo jovens
arquitetos que não aspiram ao oficio de caráter mais elitizado, tem executado
trabalhos colaborativos junto a população destas comunidades e obtido
resultados interessantes e promissores. Os exemplos são inúmeros, e de
formas também muito diversas. Em Vitória um grupo de jovens arquitetos
recentemente desenvolveu um projeto de uma praça, em um lote vazio, no
Morro de São Benedito, utilizando pallets fabricados na marcenaria que
pertence a uma ONG que atua no local. Como a maioria de espaços urbanos
semelhantes, excluídos e onde o poder público é praticamente ausente, há
uma carência de espaços de convivência e lazer. Esta realidade, embora ainda
pontual, parece ganhar cada vez mais atenção e exemplos como este não são
raridade, como pode se averiguar em sites especializados, artigos e revistas.
104
Em muitos campos a (filosofia da) diferença foi usada para criar discussões e
apontar outros pontos de vista, questionar verdades, desnaturalizar saberes
criando fissuras em formas cristalizadas. Spinoza, Nietzsche, Deleuze,
Guattari, Foucault, Negri, Hardt, Agamben, Lazzarato, e dos brasileiros Suely
Rolnik, Cláudio Ulpiano, Luis Orlandi, Peter Pál Pelbart, Heliana Conde, Luis
Fuganti, Daniel Lins, figuram entre outros tantos nomes que construíram e
seguem construindo esta forma-filosofia que se coloca como uma das grandes
correntes do pensamento de nosso tempo.
Nosso intuito, como dito antes, é usar alguns destes conceitos, mais
especificamente: o cuidado de si, singularização e multidão. Este uso que
buscamos tem uma função de balizamento para a prospecção do conceito de
(micro)Planejamento urbano. A instituição do conceito de (micro)Planejamento
urbano apenas por suas práticas que se colocam em campo, e que por si, são,
muito interessantes, carregam uma potência e uma expressão que merecem
atenção, mas que, ao nosso olhar, parecem também vulneráveis e frágeis à
captura e a usos questionáveis. O balizamento na diferença então teria uma
função de ancorar dentro do que chamamos de urbanismo menor a ferramenta
conceitual do (micro)Planejamento urbano.
Oscar Niemeyer, em uma de suas falas mais conhecidas e poéticas disse que
a arquitetura não importava, que o que importava era a vida. Não entendemos
nesta fala que o produto arquitetônico e urbanístico da AU não tem valor, mas
que o que é realmente primordial é a vida da qual estes servem de anteparo. O
que propomos aqui está distante, cremos, da vontade inocente dos arquitetos
que acreditavam que a arquitetura e o urbanismo sozinhos seriam capazes
“salvar o mundo”, de trazer à tona um utópico mundo, uma nova realidade.
Nosso ponto, intensão, desejo, coloca-se distante da autoria solitária, na
antemão do sentido utópico de um plano de paz fúnebre do consenso, falamos
e propomos um lugar dentro das lutas e da história do homem, de uma forma
de produção dentro da AU que colabore com os devires minoritários, com a
potência plural e coletiva dos modos de existência outros, não uniformizadores
e não danosos.
113
Meu objetivo, já há mais de vinte e cinco anos, tem sido o de traçar uma
história das diferentes maneiras em que, em nossa cultura, os homens têm
desenvolvido um saber acerca de si mesmos: economia, biologia, psiquiatria,
medicina e penalogia. O ponto principal não consiste em aceitar este saber
como um valor dado, senão analisar estas chamadas ciências como “jogos de
verdade” específicos, relacionados com técnicas específicas que os homens
utilizam para entender a si mesmos48. (FOUCAULT, 1990, p.47,48)
48
Tradução nossa, para o original: “Mi objetivo, desde hace más de veinticinco años, há sido el de trazar
uma historia de las diferentes maneras em que, em nuestra cultura, los hombres han desarrollado um
saber acerca de sí mismos: economia, psiquiatria, medicina y penología. El punto principal no consiste
en aceptar este saber como un valor dado, sino en analizar estas llamadas ciencias como “juegos de
verdad” específicos, relacionados con técnicas especifícas que los hombres utilizan para entender a s[i
mismos.”
114
O termo, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não diz respeito a
qualquer individualismo – do simples “ocupar-se consigo” –, antes se relaciona
com a prática da liberdade, em seu entendimento original grego. Contudo a
epiméleia foi reconstruída ao longo da história ocidental, sobretudo pelo
cristianismo medieval, onde tal conceito se distanciou de seu significado da
Grécia Antiga, ligado a questão de uma moral bastante especifica e com uma
função bastante clara. Michel Foucault se lançou ao trabalho de entender este
conceito a partir da genealogia, do processo genealógico, de sua construção e
formação históricas, do poder contido no discurso do cuidado de si, enquanto
luta, enquanto mote desta luta, assim como o poder contido nesta e a disputa
por sua posse. Não é nosso intuito aqui versar longamente sobre este conceito
– trabalho já realizado por uma quantidade expressiva de dissertações e teses
das áreas de filosofia e psicologia e facilmente encontradas em qualquer base
de dados ou portais de universidades que são referência nestes backgrounds
teóricos –, mas, para que possamos trazer as problematizações foucaultianas
que nos interessam nesta senda do pensamento do filosofo francês sobre tal
conceito especifico, ousaremos compor, mesmo que de maneira muito
insipiente, uma breve e resumida apresentação.
Para os gregos antigos este conceito se aplicava, acima de tudo, como “arte de
viver”. Como explica a professora da UFF Heliana Conde:
Guattari seguirá neste texto dizendo que a cultura se coloca como uma
palavra-cilada, atrelada na produção hegemônica da existência, atuando como
“cultura-valor”, onde se possui esse valor cultura em meios intelectuais,
acadêmicos, cultos; também como “cultura-alma”, como ideia pouco mais
acessível de uma identidade cultural no âmbito de um território coletivo de uma
determinada civilização, como por exemplo a cultura européia, ocidental,
brasileira; e, finalmente, como “cultura-mercadoria” que corresponde a cultura
119
O último sentido posto por Negri, que coloca a multidão como potência para a
instituição de outras realidades, remete também a afirmação que a multidão é
“a carne da vida”. Posta como ator não apreensível, contudo, como
necessariamente uma multiplicidade ativa na produção de si mesma. A
multidão exerce uma dinâmica direcionada à plenitude da vida, e, para tanto
seus movimentos geram novas formas, ou novos contornos de vida. Como
coloca o autor:
2002 do livro Império e no ano de 2004 do seu livro Multidão e a explosão dos
movimentos democráticos após crise de 2008, sobretudo na Espanha, Estados
Unidos, Egito, Grécia, França, Chile, Turquia e Brasil, e a forma como estes
movimentos se articularam, os princípios da oportunidade histórica, da
similaridade dos modelos de resistência mais potentes aos modelos de
dominação e a insurgência de modelos cada vez mais efetivamente
democráticos, demonstram uma grande sintonia da teoria elaborada com a
realidade efetivada anos depois.
Algumas questões podem surgir ao leitor deste trabalho: Qual a função dos
conceitos-balizadores? Seriam estes realmente necessários? Por que não nos
basta chegar ao conceito pela análise das práticas? Antes de seguir no
resultado de nossa prospecção justificaremos nossa estratégia dos conceitos-
balizadores.
49
“A autoria anônima desse personagem – que se acredita individual, mas que também é,
possivelmente, coletiva – expõe intra e extramuros, rompe uma barreira histórica que separa os museus
e os espaços públicos. A pessoalidade de Banksy, “quem é?” ou “onde está?”, não importa. Assim como
não importa a obra e sim a ideia, tão pouco importa o artista. Importa a aproximação da contracultura,
da qual o graffiti sempre fez parte, aos “campos oficiais de arte” elevando-o ao status de arte,
127
removido e leiloado por mais de 400 mil dólares50. Mas a resistência deste
movimento à sua cooptação pelo poder do capital pôde ser presenciada, por
exemplo, quando o grafiteiro italiano Blu cobriu com tinta cinza suas próprias
obras, na cidade de Bolonha, como protesto desta apropriação da arte de rua
por grandes instituições comerciais e contra a criminalização dos grafites51.
Para tanto, nos parece importante deixar claro o território onde nos
encontramos, como uma perspectiva, dentro de uma infinidade de outras, para
a utilização do conceito de (micro)Planejamento urbano.
131
Dissemos antes (em nosso texto 1.12, “O que pode uma tese”) que a formação
em AU tem uma vertente tecnicista muito forte, que o lugar do pensamento
crítico parece estar enclausurado na pós-graduação – com exceções que
indicam a confirmação da regra. Operar o conceito do (micro)Planejamento
urbano nas disciplinas da cadeia, ou voltadas, ao urbanismo se coloca como
inserção para esta ferramenta-conceito no viés da pedagogia freiriana (que
trataremos mais adiante) de conscientização, empoderamento e libertação
destes projetistas. O (micro)Planejamento urbano como vertente do
planejamento aliada às forças de democratização dos espaços urbanos, num
polo oposto ao planejamento desenvolvimentista (centralista, tecnocrático e
autoritário), e ao planejamento estratégico (market friendly).
133
52
Pise a grama pode ser acessada em:
http://piseagrama.org/
53
Urban think tank pode ser acessado em
http://u-tt.com/
134
Como posto por Foucault e Deleuze, em alguns textos que versam sobre as
sociedades disciplinares, a instituição escola remonta, em sua estrutura física
arquitetônica e em suas políticas pedagógicas, à máquina panóptica de Jeremy
Bentham. A escola foi historicamente construída, desde as modulações de
controle disciplinares, como instrumento de tecnologia para uma modulação
especifica do sujeito, se colocando de maneira perigosa como estrutura
próxima à estrutura prisional, e mesmo aos quarteis militares. A escola e a
pedagogia, sobretudo na era moderna, com o advento da revolução industrial e
a cidade moderna, está ligada à uma forma de docilização, instrumentalização
e exploração das forças do homem. Estamos falando da mercantilização do
ensino voltado à construção, antes e em primeiro plano, à formação do
trabalhador, em segundo plano, à docilização dos citadinos, e em último plano,
quando este se faz presente, na assumpção da cidadania e na potência criativa
dos sujeitos, pelo risco que estes atributos causam ao status quo de uma
sociedade baseada na exploração do trabalho.
encaixarem perfeitamente dentro dos aparatos que instauram este poder como
peça da indústria mercantil da cidade capitalista.
Michel Foucault dirá que a política é inerente a todas as práticas, que todas as
práticas carregam em si uma política de instituição de uma determinada força.
Em Freire encontramos então um paralelo relacionado à educação e a
conscientização:
54
Consideramos que alguns aspectos que receberiam, sem dúvidas, críticas em algumas falas de Paulo
Freire, como a expressão usada “pensar certo” deve ser ponderada à luz de uma historicidade dos
fundamentos teóricos deste autor, advindas de leituras de um marxismo ortodoxo, ainda muito em
prática, onde certas polarizações são normais. Porém, acreditamos que este “pensar certo” em Freire
não deve ser compreendido como vontade de impor uma forma de pensar que caminhe em um sentido
de construção de uma verdade única de possibilidade. Mas, antes, uma possibilidade de pensar que
negue a reprodução de uma educação não crítica.
139
concessão do poder, dá-lo a quem não tem – ato que pressupõem inclusive
uma falsa superioridade e uma falsa inferioridade. Empoderar como conceito
freiriano versa sobre a ativação da potencialidade criativa do homem. Potencial
criativo que assume as esferas psicológicas, sociais e políticas, e que esta
incitação afete, não somente o sujeito, mas que este seja também capaz de
produzir tal afetação.
Esta colocação feita por Freire evoca, colocando o papel do educador, não na
figura central de quem dá o conhecimento, mas diferente, no papel de quem
cria condições para seu desenvolvimento, uma outra responsabilidade e um
outro jogo em plano. No entendimento tradicional da sala de aula, o professor
expõe o conteúdo e o aluno o recebe, na versão freiriana, o professor deve
fazer um esforço de construção de um momento crítico que convoca o aluno,
não mais como receptador passivo do conteúdo, a pensar analiticamente por si
próprio.
Assim Paulo Freire, seguindo na escrita deste livro, coloca questões aos
educadores, que de forma alguma se apresentam como formulações a serem
copiadas, mas antes, como pistas e indicações de sentidos possíveis e
desejáveis. Estas pistas também nos servem para a prática do
(micro)Planejamento urbano, pensado no âmbito da formação dos profissionais
da AU, tanto quanto na incitação para que estes tenham uma postura também
de educadores e incitem coletivamente, para além do especialismo, o cuidado,
o interesse, a crítica, e a criatividade para com estes objetos tão complexos e
abandonados às mãos do mercado e da tecnocracia que são a cidade e o
modo de existência urbano. Consideramos aqui não a totalidade das
pontuações de Freire, mas aqueles que julgamos os mais interessantes e que
mais podem nos ser úteis.
Um dos paradigmas que foi quebrado ao longo dos últimos anos foi o do
reconhecimento do curso de AU, bem como outras áreas do saber, como
sendo composto por um corpo discente extremamente elitista. As políticas de
acesso ao ensino superior aplicadas, até pouco tempo atrás, criaram
certamente uma nova paisagem nas escolas da arquitetura. E a interação em
sala de aula, considerando que a proveniência destes alunos não é mais
integralmente dos bairros mais nobres das cidades, pode e deve ser
143
aproveitada em sala de aula com interferências que podem ser positivas para
todos.
preciso ter ainda um caos dentro de si para gerar uma estrela cintilante”
(NIETZSCHE, 2005, p.16).
Admitimos que a confecção deste relato, de uma escrita que nos tomou muito
tempo e muitas ponderações, se constitui de anotações feitas em tópicos, por
discussões em sala de aula e conversas nos corredores, assim como pelos
trabalhos realizados pelos alunos e de uma reconstituição do pensamento
crítico sobre estes. A disciplina de Urbanismo I foi ministrada através de dois
semestres, tendo sido efetivado em três turmas, e no momento presente mais
duas turmas que se iniciaram. Outras experiências também fazem parte desta
148
Nossa aposta será a de efetivar uma, ou melhor, duas escritas que possam se
aproximar de dois movimentos diferentes em essência e que serão marcados
por fontes também diferentes. O primeiro movimento, mais estratificado,
estruturado, construído em um tempo cronos56, e o segundo movimento será
composto por momentos de inspiração, de afectação, marcados por um tempo
55
O conceito de biografema, nos foi apresentado durante o período do mestrado, como uma
ferramenta que vinha sendo trabalhada dentro do Programa de Psicologia e de Educação da UFRGS.
Segundo Costa “a prática de uma biografemática envolve a constituição de um retrato de vida, porém,
nunca acabado. O que há é o desejo de encontra-lo, um rosto sempre etéreo. Trata-se de um outro
tratamento para aquilo que a cultura nos oferece acerca do autor (atráves dos livros, fotos, manuscritos,
filmes, entrevistas, documentos, etc): a relação biografemática faz uso deste material, porém toma-o
como um depósito de signos soltos, prontos para pontilharem outros rostos, culminando em novos
jogos de mentiras e verdades. (COSTA, 2010, p.29)
56
Cronos e aion são dois tempos que foram foco da escrita de Deleuze (2011), de forma simplificada
diremos que cronos diz respeito a marcação, invariável e constante do tempo, o tempo do relógio, de
um computador, tempo de uma marcação racional; aion, por sua vez, é o não tempo, é o atemporal, o
distorcido, incoerente, irracional, esquizofrênico da intensidade de forças que “acontecem” (para usar
outro conceito deste mesmo pensador), trata-se do tempo que se ausenta quando um afeto de grande
magnitude nos desloca para além do tempo cronos.
149
aion – talvez esta seja uma narrativa como corpo sem órgãos57 (DELEUZE;
GUATTARI, 2006).
57
Pontuaremos, de maneira resumida, que o conceito de corpo sem órgãos (CsO) deve ser entendido
como uma prática de experimentação criativa, instituinte, desetabilizadora, e por isso como uma
postura antagônica à organizações estabelecidas (organismo). “É sobre ele que dormimos, velamos, que
lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades
inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos”. (DELEUZE;
GUATTARI,1996, p.9)
150
lançou-me um questionamento: “E por que tem que ser assim? Por que não
trabalhar com um referencial crítico em Urbanismo I?”. Tal ponderação,
feita repentinamente, nos desnorteou. Sua lógica era simples e certeira. Fui
lançado ao passado, quando era ainda um aluno na graduação e a disciplina
que iniciava a cadeira de urbanismo, seguindo um modo tradicional deste, na
leitura de Lynch foi tão pouco sedutora, inquietante e desafiadora.
58
Trecho retirado da ementa da disciplina de Urbanismo I desta faculdade que, como dito antes, não
divulgaremos o nome. Contudo seu conteúdo é bastante genérico e pode facilmente ser encontrado
com grande semelhança em ementas de uma grande quantidade de faculdades de AU brasileiras.
152
O território escolhido para trabalhar junto aos alunos foi o Centro da cidade de
Vitória, que como outros centros, territórios considerados “antigos”, em grandes
e médias cidades brasileiras, sofreu ao longo dos anos 80 e 90 um
deslocamento das instituições de gestão, do grande comércio e da população
de maior poder aquisitivo para outras áreas da cidade. Tal deslocamento
causou um abandono de investimento e manutenção desta área, este
esvaziamento foi responsável por uma alta quantidade de imóveis que foram
abandonados, esvaziamento dos espaços públicos e um paulatino crescimento
da violência, que colaboraram ainda mais para a desqualificação da área. No
fim dos anos 90 e início dos 2000, seguindo os modismos urbanísticos de
então, ações de intervenção pontuais começaram a ser praticadas tanto pelo
governo municipal quanto pela iniciativa privada.
Quando pela primeira vez tive a oportunidade de lecionar nesta escola privada,
na qual me encontro até hoje, tive uma surpresa que considero bastante
positiva. O quadro com o qual me deparei era bastante diferente do que se
156
59
Pontuaremos que ao falar das escolas públicas federais de AU, falamos de uma experiência anterior às
cotas raciais.
157
60
Cabe o questionamento da aprovação forçada por parte da rede de ensino médio, cuja tutela é do
governo estadual, para cumprir dados estatísticos falsamente positivos que não implementam em nada
a urgência de uma reforma do discurso pedagógico.
159
Por mais naive que pareça – e tantas vezes ideais realmente assim se
mostram –, acreditamos que a preocupação em tornar a carga teórica distante
do que seria fastidioso, e sim excitante e dinâmica é uma forma de atrair não
somente a atenção dos alunos, mas auxiliar na edificação de profissionais
também capazes de uma produção também mais excitante e dinâmica.
Esta questão leva à superfície uma realidade que parece estar em curso.
Enquanto cada vez mais escolas públicas de AU tem adotado experiências
mais que interdisciplinares, experiências transdisciplinares, com aulas de
atelier onde projeto de arquitetura e urbanismo, paisagismo, estruturas e outras
disciplinas se misturam em um espaço muito mais próximo com a realidade de
um estúdio de arquitetura, e onde estas matérias antes quase desconectadas
ganham um brilho muito mais interessante, vemos de outro lado, nas escolas
particulares – em uma parcela significativa gestionadas por grandes grupos
educacionais – uma forçada e muito tradicional metodologia disciplinar, e,
ainda mais, uma homogeneização do sistema de avaliação que não distingue
os campos dos saberes e forçam a mesma forma de avaliação por provas,
testes e trabalhos independente das singularidades de cada curso. Ou seja, na
disciplina de Atelier de Urbanismo I, tanto como em todas disciplinas da grade
do curso de AU, seriamos forçados a aplicar testes, provas e trabalhos,
independente do plano de aula. Situação que, em nossa disciplina,
contornamos com estratégias que falaremos mais à frente.
161
Ressaltaremos novamente que a ordem dos fatos aqui postos não obedece
necessariamente uma ordem cronológica, embora até se tente, mas, antes,
uma ordem cujo sentido nos parece mais interessante e explicativo daquilo que
vimos funcionar e que possui, segundo nosso crivo, alguma relevância, como
escolha e como comentário sobre.
61
A proposição de trabalhar com as análises críticas surgiu no período que lecionamos na Ufes, na
disciplina de “Urbanismo e Subjetividade”, já comentada antes, como forma de induzir uma leitura mais
atenciosa por parte dos alunos. Alguns alunos, após o fechamento desta disciplina disseram que esta
prática foi importante para que a leitura se tornasse uma prática mais habitual ao longo do restante da
graduação.
162
62
Da resenha original em inglês obtida no IMDB:
“Through interviews with leading historians, urban planners, and government officials, CONTESTED
STREETS explores the history and culture of New York City streets from pre-automobile times to the
present. This examination allows for an understanding of how the city, though the most well served by
mass transit in the United States, has slowly relinquished what was a rich, multi-dimensional conception
of the street as public space to a mindset that prioritizes the rapid movement of cars and trucks over all
other functions. Central to the story is a comparison of New York to what is experienced in London, Paris
and Copenhagen. Interviews and footage shot in these cities showcase how curtailing automobile use in
recent years has improved air quality, mitigated noise pollution and enriched commercial, recreational
and community interaction. Congestion pricing, bus rapid transit (BRT) and pedestrian and bike
infrastructure schemes and looked at in depth. New York City, though to many the most vibrant and
dynamic city on Earth, still has lessons to learn from Old Europe.”
http://www.imdb.com/title/tt0867147/plotsummary?ref_=tt_ov_pl
163
Voltando à análise crítica, que foi solicitada nesta primeira aula, e que se fez
presente no planejamento das aulas seguintes, esta tem como momento de
sua confecção o espaço da sala de aula. Em uma aula de duas horas, a
primeira hora era reservada para a leitura dos textos e a escrita das análises.
Mas que é solicitada também na exposição de vídeos (documentários,
palestras, entrevistas e etc). Para a confecção as análises de textos, foram
dados artigos ou trechos de livros de no máximo 12 laudas, para que o tempo
fosse suficientes para tanto. E na hora seguinte, após uma breve exposição
iniciava-se um debate sobre os temas tratados. Posicionar o momento de
leitura dentro da sala de aula, segundo nossa experiência tem dado efeitos
mais interessantes que solicitar a leitura em casa. Na maioria das vezes,
quando os alunos chegam a ler, e é uma quantidade assustadoramente
pequena que o faz, fazem com um tempo de afastamento que transforma o
momento de debate em algo muito mais frio, quando sim, e outras vezes nos
levava a preencher o debate com um monologo expositivo. Com a leitura em
sala de aula e a escrita da análise crítica a participação dos alunos torna-se
muito mais intensa e interessada. Os textos escolhidos para as aulas seguintes
eram deixados em um leque de possibilidades dependendo dos interesses que
surgissem nos debates.
Ainda na segunda aula foi realizado a leitura de texto, tendo também foco no
tema da problemática urbana contemporânea, a responsabilidade de uma
forma “modernista”, por assim dizer, da construção de cidades e suas
consequências compartilhadas por todos no dia-a-dia. Nossa tentativa com o
documentário e o texto neste momento foi que apontar a necessidade de ir
além da forma racionalista de urbanização.
Ainda nesta segunda aula, após o primeiro debate, foi anunciado aos alunos
eles se organizariam em equipes de trabalho, com a advertência de que eles
deveriam abandonar os grupos de amizades e conformar os grupos tendo em
vista quatro aptidões especificas para que o desenvolvimento do trabalho
corresse bem. Estas aptidões seriam a desenvoltura de gestão das tarefas
entre os participantes e a comunicação nas orientações e apresentações, na
figura de um gerente, também que um dos participantes tivesse intimidade para
lidar com a teoria e com a escrita, a terceira aptidão seria que um integrante
que fosse responsável pela expressão gráfica dos projetos, e da diagramação
das pranchas e finalmente que o quarto integrante tivesse a capacidade criativa
para associar ideias, adaptar exemplos e atuar nas proposições mais a frente
no momento dos estudos em projeto urbanístico. Tais aptidões, como foi
explicado em aula, não excluiriam ou delimitariam o trabalho de cada aluno,
mas seriam questões, ainda que primárias, para serem notadas. Buscamos
com isso incitar desde o início que estratégias fossem formadas. Pontuamos
ainda que não seria permitido que os alunos trocassem de grupos, ou fizessem
o trabalho por conta própria. Que todos os problemas na interação dentro dos
grupos deveriam ser resolvidos entre eles, e no caso de algum impasse,
levados para a orientação.
Nas duas aulas seguintes fizemos uma aula totalmente expositiva sobre o
processo de urbanização do Brasil. Iniciando, contudo, com a problematização
que julgamos necessária da problematização dos conceitos de “urbano” e
“urbanismo”. Após uma construção do senso comum, posta pelos próprios
alunos (que corrobora com o que pensa a grande massa de profissionais
atuantes hoje), apresentamos as concepções do etnógrafo urbano Manuel
Delgado (presentes nesta tese), assim como, a partir destas, uma
reconstituição do papel/função do urbanista e seu trabalho. Com tais
exposições incitamos aos alunos traçar relações entre as aulas anteriores e tal
entendimento do profissional da AU, seu ofício e as consequências destes. Seu
papel não somente na edificação do espaço, mas na proposição e efetivação
da vivência que os espaços projetados, ajudando ou impelindo determinadas
formas de atuação social sobre si. Entender o sentido do termo “urbano”, nos
parece ter surtido um efeito bastante positivo nos alunos, uma vez que o
projeto, desta maneira se torna um meio para atingir uma determinada
conjunção social desejada pelo projeto urbano. Tornando o ato projetual não
um fim em si, mas um meio para.
Com a sala pronta para o inicio da aula, diante da nova turma de alunos
de Urbanismo I, resolvemos num ímpeto ler o comentário que nos havia
sido dirigido. A turma escutou quieta enquanto aquilo saía de um lugar
de algum anonimato e se tornava público. A primeira reação ao fim da
leitura do comentário foi o olhar atônito que os alunos nos lançavam.
“Meus caros, isso é uma sala de aula, não estou vendendo nenhum produto
para ninguém. Se alguém aqui quiser ir à ouvidoria ou à coordenação do
curso para fazer uma reclamação do meu trabalho, um direito de vocês,
reclamem do professor, não do vendedor. Todos vocês tem esse direito de
reclamar do meu trabalho de professor, porque isso é uma sala de aula, e
vocês são alunos e não clientes. Se alguém tiver problema com essa
concepção podem ir conversar com o coordenador. Caso ele me contradiga,
meu cargo está à disposição.” – disse num desabafo necessário. “Agora
vamos ao que nos interessa”.
No inicio do intervalo uma aluna nos procurou. “Não liga „praquela” turma
não, professor, tem um povo muito [...] ali”.
Como já foi colocado, existe no território escolhido para a atuação dos alunos
de Urbanismo I, uma série de objetos de grande interesse para a confecção do
projeto do Corredor Cultural, e para tanto, e utilizando o conceito de “Marco” de
Lynch, foi pedido a elaboração de uma apresentação sobre os Marcos
Históricos e Culturais do Centro de Vitória. Onde os alunos buscaram a história
172
Lynch, e nos dados técnicos presentes no Plano Diretor Urbano de Vitória uma
lista de elementos que deveriam servir de referencial para o olhar dos próprios
alunos quando em campo a esta lista apelidamos de checklist. Cada grupo
montou seu próprio checklist, e desde sua montagem algumas áreas de
interesse já puderem começar a se insinuar.
Como dito antes, dividimos o segundo bimestre em duas partes, isso porque
mesmo que este período da disciplina fosse voltado à parte propositiva, à
pratica projetual, a terceira parte culmina com a apresentação de um diagrama
de intenções onde as proposições estão em um estágio não tão desenvolvido e
só a partir daí adentramos na quarta e última parte do estudo final. A
apresentação do diagrama foi uma forma de colocar sob o crivo da própria
turma os primeiros ensejos de intervenção, assim como a diagramação e
apresentação das pranchas. Durante todas as apresentações, desde o primeiro
seminário a turma realizou um trabalho de crítica de sua própria produção,
apontando pontos positivos e negativos, focos de atenção interessantes,
recomendando autores, temas e projetos realizados. Este feedback era levado
para discussão com cada grupo e reforçava o trabalho de orientação,
percebemos também que esta exposição influenciou toda a turma a aumentar
os padrões das propostas produzidas.
175
fizeram uma visível diferença. Diferença esta que foi presenciada pelo
coordenador do curso de AU, convidado, num movimento estratégico, para
assistir as apresentações finais e que segundo o próprio estava extremamente
satisfeito com os resultados como um todo.
Nossa impressão ao momento final deste relato, mas não da experiência, é que
não há um segredo, uma forma genial, um “pulo do gato”, e nos parece claro –
o que pode ser um grande risco –, que a experiência docente na prática do
(micro)Planejamento urbano, é simplesmente a operação de uma ferramenta
de auxilio a formação crítica e de resistência criativa em AU. Experiência que
não precisa ter declarado o nome deste ou qualquer outro conceito, ou autor,
pois é uma forma plural de pensamento e prática que busca linhas de fuga para
formações outras, ao ser aplicada no campo docente.
Algum tempo depois do ocorrido nos veio uma questão. Raquel Rolnik
importante professora de urbanismo, renomada internacionalmente, irmã
de Suely Rolnik, um dos grandes nomes da (filosofia da) diferença na
América Latina e que certamente entrou em contato com essa vertente do
pensamento e foi por ele influenciada, e parece demonstrá-lo na
constituição de suas problematizações, não fica citando Deleuze, Guattari
ou Foucault. Se o pensamento é capaz de traçar linhas de fugas,
estratégias, criar resistências, fugir ao hegemônico, mas não cita a fonte,
torna-se assim menos? Ou ao contrário, tornar-se-ia mais?
MOVIMENTO 6. RETICÊNCIAS
6... Não há conclusões em práticas processuais
Parece salutar, neste último movimento do trabalho, avisar nosso leitor que
neste percurso, carregado no ombro dos nossos gigantes-intercessores, que
não há e não pode haver um fechamento. Seria incongruente com o
pensamento desenvolvido apresentado nessas páginas chegar a um
fechamento convencional: onde dados são apresentado, fórmulas foram postas
à prova e algo se encerra. Não há encerramento, somente reticências (...),
posto que as pontas soltas, muitas, que povoam densamente este trabalho são
extremamente bem-vindas, e que na nossa percepção, elas são a possibilidade
de convocação para novos trabalhos, novos caminhos do pensamento, novas
práticas de resistência e criatividade. Que o desejo com a confecção deste
trabalho já se efetivou em nós, cumprindo seu papel de interferência.
Não nos importa fechar nada, o que nos é caro aqui é abrir, fissurar. Nosso
intuito está no porvir, em sendas outras. Fazer parte de um movimento de
mistério no qual trabalhamos hoje, aspirando um porvir.
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Manoel de Barros, poema do livro Manoel de Barros: poesia completa (São Paulo: Leya, 2010)
originalmente publicado em Retrato do artista quando coisa {1998)
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Em nosso trabalho de conclusão da graduação, que tinha um hospital psiquiátrico como objeto, uma
história contada na sala de terapia ocupacional por uma das funcionárias do local, enquanto os internos
faziam tapetes de retalhos, ficou presa na memória e sempre ressurge, mesmo após todos os anos que
separam aquele trabalho deste, sempre ao falar das pequenas artimanhas da vida. Naquele lugar
opressor, alguns anos antes daquele momento, um casal de loucos se apaixonou, separados pelas
pesadas e encardidas paredes, separados pelas regras de horários, pela ausência de uma supervisão, por
uma porta de chapas de aço, que delimitava as alas masculina e feminina, sentados no chão, pela fresta
da porta, uma fresta de poucos centímetros, um tocava a mão do outro. Pela fresta as mãos se
acariciavam, asseguravam a presença um do outro, beliscavam-se em momentos de desentendimento.
Num momento de uma briga feia, um queimou a mão do outro com um cigarro. A fresta na qual as
mãos se espremiam e exprimiam a existência daquele encontro amoroso, fez perdurar ao longo do
tempo uma história que continuou após deixarem para trás o hospício. “Eles vão juntos ao CAPS (Centro
de Atenção Psicossocial), hoje tem uma filha” – dizia a funcionária. Entendemos ali, o que os livros
diziam sobre a potência da vida. Somente algo muito poderoso pode exercer tamanha intensidade, por
uma pequena fresta.
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