Rua
da
GLÓRIA
2
1993
CARLOS AUGUSTO DE FIGUEIREDO MONTEIRO
Rua
da
GLÓRIA
2
As Armas e as Máquinas
(1896 – 1921)
1993
b
À Mãe Graci
c
Sumário
A VIRADA DO SÉCULO......................................................................................... __
1. Panorama Mundial ............................................................................................ __
2. O Brasil República e o Federalismo Mitigante ................................................. __
3. Os Estados Fracos: o Piauí................................................................................ __
4. Teresina quase Cinqüentenária ......................................................................... __
O SOLDADO CIDADÃO ......................................................................................... __
1 . Gerson Edison Senta Praça na Polícia ............................................................. __
2. Gerson e Julia: Encontro e Casamento.............................................................. __
3. Um Princípio de Carreira .................................................................................. __
4. De Tenente a Major Fiscal ................................................................................ __
A FAZENDEIRA E O AGRIMENSOR....................................................................
1. O Sítio de Santo Antonio no Berlengas ............................................................ __
2. O Extrativismo no Piauí: O Início do Ciclo da Carnaúba................................. __
3. Os Caprichos de D. Serginha: Seu Segundo Casamento .................................. __
4. O Serviço das Águas. Pombo e Mariquinha ..................................................... __
O ASSASSINATO DO MAJOR FISCAL ................................................................ __
1. Introdução ......................................................................................................... __
2. A Conjunção de Fatos ....................................................................................... __
2.1. A Trama Clerical ....................................................................................... __
2.2. O viés Militar............................................................................................. __
2.3. O Jogo Político e o Encaminhamento de uma Tragédia ........................... __
2.4. A Condição Pessoal................................................................................... __
3. A Tragédia Consumada..................................................................................... __
4. Repercussão Nacional. Os Proventos Políticos da Exploração de um Cadáver __
A CIDADE E AS MÁQUINAS ................................................................................ __
1. A Navegação e os Primórdios da Industrialização............................................ __
2. A Borracha na Amazônia e o Sonho da Maniçoba no Piauí: Um Sonho que se
Desfaz............................................................................................................... __
3. O Major Santidio e a Usina Elétrica ................................................................. __
4. D. Sergia e o viver na Aparência ...................................................................... __
D. JULIA E SUA MISSÃO....................................................................................... __
1. A Trajetória de D. Julia: Entre a Família e o Curso da Política........................ __
2. Um Ano Após a Tragédia: a Família e a Corporação ....................................... __
3. Absolvição do Criminoso: A Guerra, a Seca e a Gripe Espanhola................... __
4. A Morte do Capitão Ludgero ............................................................................ __
OS JOVENS LEÕES ................................................................................................. __
1. Atribulações de D. Serginha ............................................................................. __
2. A Casa da Rua de Santo Antonio e a Vida na Cidade ...................................... __
3. O Major na Usina e a Política no Estado .......................................................... __
4. O Despertar dos Leões ...................................................................................... __
ESTREITANDO OS LAÇOS.................................................................................... __
d
“Então, reconstruiremos; somamos tudo, uma vez mais, numa
unidade conjuntiva, uma VIDA isolada no SUPREMO;
concentramos DIVERSIDADE e toda a infindável produção do
ato. Assim conhecemos IDENTIDADE, um conceito, ou
melhor, uma VIDA invariável, que não se torna naquilo que
anteriormente não era a coisa imutável em si mesma,
interrompida por qualquer intervalo; e conhecendo isto,
conhecemos ETERNIDADE.”
PLOTINO (205-270)
Terceira Enéada – Sétimo Tratado
Tempo e Eternidade.
e
f
Prólogo
–1–
O Major sorveu o último gole de café com leite, depositando, pensativamente, a
xícara sobre o pires. O sabor da bebida neutralizava o gosto acentuado do azeite de coco
babaçu na fritura dos bolinhos que D. Julia vinha trazendo, aos poucos, da cozinha. As
crianças menores perambulavam sonolentas, esfregando os olhinhos, do quarto para a
varanda. O relógio marcava nove horas.
Levantando-se da mesa, o Major vai até o quarto e volta abotoando os últimos
botões do dolmã de brim cáqui do uniforme, já surrado, da Força Pública. Apanha uns
papeis e o quepe. Passa em frente à folhinha, na parede, e arranca a folha referente ao
dia anterior. Fica no marcador a data: 11 de dezembro de 1912. Nesta quarta-feira, antes
de chegar ao quartel, precisava falar com o Governador. Pôs o quepe sobre a cabeça e
encaminhou-se para o corredor, avisando a mulher que já se ia. D. Julia vem
acompanhar o marido até a porta da rua e pede: - “Não venhas muito tarde para
almoçar. Lembra-te que andas doente e necessitas dos alimentos às horas certas”. O
Major balbucia alguma promessa enquanto desce os batentes da calçada alta. O largo de
São Benedito estava tranqüilo àquela hora. Uma ou outra pessoa atravessava-o indo
para ou vindo da igreja dos capuchinhos.
i
O Major Gerson desce a passos firmes a Rua Grande com destino ao Palácio do
Governo. Entre uma saudação ou outra aos passantes que cruzam com ele o Major
Fiscal da Força Pública vai pensando. Amanhã era o aniversário da mulher, que
completaria vinte e sete anos. Vinha sendo uma brava companheira nestes oito anos de
casados nos quais já lhe dera seis filhos. Perderam dois deles. A menina era muito
pequena ainda mas a perda do seu Gersinho de quase dois anos fora um golpe terrível
que o transtornara. Agora Júlia estava grávida de novo, já no terceiro mês. Havia de ser
um menino para reparar a grande perda, se é que era possível substituir aquele amado
garotinho que a meningite lhe roubara.
O Major atravessa o largo do Amparo, em diagonal, em direção ao Palácio. Tem
um ligeiro acesso de tosse que ele procura abafar levando o lenço à boca. Precisava
curar-se. Não andava nada bem do peito e sentia-se cada vez mais fraco. Ainda bem que
estava de saída para Floriano, no próximo dia 20, passar uns dias na fazenda do amigo
Fernando Marques, para fortificar-se. Precisava de leite e repouso. Estes últimos meses
de campanha eleitoral turbulenta e feroz o haviam esgotado. A manutenção da ordem na
capital caro lhe custara. Até inimigos e ameaças de morte. Felizmente, após a posse do
Miguel Rosa as coisas se acalmaram. Era momento de descansar, embora por poucos
dias. Mas precisava, antes de partir, falar com Miguel sobre o problema da linha de tiro
da Força Pública. Tomara que ele o pudesse atender logo. Ontem fizera algumas
compras para a viagem na loja do Horácio Giardini e naquela do Edmundo Genuíno.
Mas precisava comprar uma lembrança para Júlia, para os anos dela, amanhã. Passaria
na loja do Santinho; ele e Celsa poderiam dar-lhe uma boa sugestão para o presente. O
Major sobe a calçada do Palácio do Governo onde as sentinelas prestam-lhe
continência. O Major Fiscal sobe a escadaria do palácio.
–2–
O bote vem cortando as águas barrentas do Parnaíba em sua rotineira travessia
da Vila das Flores, do lado do Maranhão, para a cidade de Teresina. Àquela hora o
fluxo de passageiros já era maior. Os passageiros desembarcam e sobem a barranca do
rio. Taboas fazem um arremedo de proteção contra o barro molhado da barranca do rio.
Os passageiros se dispersam. Dentre eles o mais bem vestido e apessoado toma a
ii
direção da rua Paissandu. Bem vestido, de terno completo, botinas e chapéu finos o Dr.
Chico Falcão vai subindo a rua. Entra na Farmácia Colect.
– Bom dia Dr. B. Sã
– Bom dia Dr. Chico Falcão. Veio para sua injeção?
– Sim, se possível.
– Pois não.
Enquanto o farmacêutico ferve seringa e agulhas, abrindo a ampola de “Thersil”,
o bacharel tira cuidadosamente o paletó. Enquanto arregaça a manga aparece, bem
visível em sua ilharga o coldre com o revólver. Tem um acesso de tosse que o
convulsiona todo. O farmacêutico espera que ele se acalme e aplica-lhe a injeção.
Enquanto o farmacêutico volta a atender alguns fregueses ao balcão o bacharel
recompõe-se, despede-se e chega até a porta da farmácia. Vê a figura magra do Major
Fiscal subindo, distraidamente, a rua Paissandu e entrando na loja do Santinho.
De repente, como um raio, o sangue sobe a cabeça do bacharel que se diz:
chegou a hora da vingança. É agora ou nunca. Há oito meses que esperava por aquela
oportunidade. Desde então sentia a terrível humilhação da surra que os meganhas lhe
haviam infligido naquela terrível noite da sexta-feira santa, na semana das fatídicas
eleições. Além de perder o emprego e ser derrotado por aquele governo indecente do
Antonino Freire, tinha que aturar este ostracismo imposto pela vitória do patife do
Miguel Rosa. Os dois e este nojento polícial eram seus supremos inimigos. Agora, via-
se ali, armado para a vingança, a alguns passos do seu desafeto. Trêmulo o bacharel
desce apressadamente a rua e entra na loja do comerciante Francisco José dos Santos e
Silva, o Santinho.
O Governador não se encontrava em palácio. Após esperá-lo uns minutos, o
Major resolve ir ao quartel onde lhe aguarda a papelada a assinar. Mas, antes passará na
loja do Santinho. O Major Gerson saúda o caixeiro e ultrapassa o balcão para dentro do
corpo residencial da casa, a procura dos sobrinhos. Celsa está nos seus afazeres da
manhã, Santinho está voltando ao interior da casa a procura de algo. Celsa, sobrinha de
Júlia, promete vir ajudá-lo na loja logo, logo. Enquanto isso, salta aos braços do Major o
Zuquinha, o primogênito do casal. Nascido em 1910 está agora na idade em que se fora
o querido Gersinho. O Major, carente da presença do filho afeiçoava-se cada vez mais
ao garotinho que vem correndo para o interior da loja. Apanhando uma pequena
iii
espingarda de brinquedo ele desafia o militar: “Te dou um tiro!” Este apanha um
revolver de brincar e retruca. Trava-se um duelo entre o militar de 32 e o garoto de 2
anos, no interior da loja, entre mostruários e gôndolas de mercadorias. Os duelantes
nem se deram conta de que entrara alguém.
O caixeiro dirige-se ao freguês e pergunta:
– Em que posso servi-lo?
– Desejo um púcaro de pasta Lubin...
Enquanto o caixeiro vai ao depósito, em busca do artigo, o bacharel Chico
Falcão nota o jornal depositado sobre o balcão. Pega-o, abre-o como se estivesse lendo.
Retira o revolver Smith & Wesson nº 58.858, calibre 38 e o coloca entre as folhas
abertas do jornal. O “duelo” continua. O caixeiro vem voltando com o pedido do
freguês. “Te mato! Te mato! continua o duelo. De repente o garotinho afasta-se
correndo mais para o interior da loja.
O bacharel empunha a arma e grita:
– “Quem te mata sou eu!”
O Major vira-se surpreendido e recebe um tiro no peito e outro no ombro. Mais
outro que se perde. O soldado empalidece e murmura:
– “Matou-me, bandido!”
E cai por traz de uma vitrine. O caixeiro, perplexo, vê o assassino com a arma
fumegante, dirigir-se à porta. Santinho vem correndo do interior da casa, ainda a tempo
de ver o bacharel, arma em punho, na soleira de sua loja, e sair correndo, rua abaixo.
Santinho transpõe o balcão e grita para a rua:
– “Pega o assassino! Pega!”
–3–
São 11 horas da manhã, quando dois homens fortes e em traje de trabalho vêm
passando por trás da Igreja das Dores em direção à rua de Santo Antonio.
– Vamos apressar o passo Pombo, diz o mais velho dos dois. Já são onze horas e
D. Serginha põe o almoço à mesa a esta hora exata. Se nos atrasamos ela começa a
resmungar, com sua rabugice...
É mesmo Major, diz o mais moço.
iv
Vinham da usina, à beira do rio, na Veneza – chamado assim pelos charcos
d’água da margem do rio e da confluência do grotão “Palha de Arroz”. Santidio
Monteiro, o Major e José Belizário – o Pombo – seu auxiliar, cuidavam da ampliação do
serviço de abastecimento d’água, que – desde os primeiros anos do século – haviam
trabalhado na implantação, ao tempo do governo Álvaro Mendes. Agora vinham
falando sobre a instalação da Usina Elétrica, uma promessa do Governador Antonino
Freire que o seu substituto Miguel Rosa, desde a posse, vinha cumprindo. Vinham os
dois falando justamente sobre os engenheiros e técnicos da Siemens, uma firma alemã
muito famosa que vieram para planejar as instalações e trazer as máquinas. Serviço
importante do qual estavam participando.
Logo ao chegar ao canto do largo perceberam que havia gente correndo, de
várias ruas, isolados ou em pequenos grupos, em direção ao centro. Algo devia ter
acontecido. Algo de grave. De súbito deram-se conta de que havia toques frenéticos de
cometa no batalhão da Polícia Militar. De repente perceberam uma tropa de polícia, em
acelerado, descendo em direção ao rio. Apesar da pressa pararam para assuntar. O que
teria sido? Alguns passantes, juntavam-se em pequenos grupos. Gente simples do povo.
O Major pergunta:
– O que foi?
– Que aconteceu?
– Foi um crime. Lá na rua Paissandu. Agorinha mesmo. Tem gente correndo pra
lá Ouvi dizer que um doutor, matou a tiros de revólver um major da polícia. Coisa de
gente graúda, importante... Tem tropa da polícia correndo pra todo lado atrás do
assassino, que está fugindo... Vamos apreciar? É uma grande confusão. O pau vai
comer...
O Major Santídio e Pombo se entreolham. Coisa de política. A campanha fora
terrível. Coisa de Maçonaria. Padre metido no meio de política. O governo venceu.
Tinha que dar nisso... Aí vem problema grosso para o Governador Miguel Rosa.
– Será que a Usina Elétrica sai? perguntou o Pombo. – Deixa pra lá. Depois nos
inteiramos do que aconteceu. As notícias correm depressa. Por hora já estamos bem
atrasados. Apressando o passo, disse o Major:
– “Vamos enfrentar a ira de D. Serginha...”
E entraram, a passos rápidos, na rua de Santo Antonio, no rumo do Barrocão.
v
vi
A Virada do Século
1. Panorama Mundial
Considere-se aqui, como início dessa nova etapa da crônica, o ano de 1896 que,
por muitas coincidências, tanto no que se refere à História quanto à vida da família, bem
merece a condição de marco divisório. A “virada” do século bem pode ser focalizada
aqui como os quatro últimos anos do século XIX e os quatro primeiros do século XX,
embora, no sentido de “belle époque” ela seja bem mais ampla (1880-1914).
1896 é tomado como marco na economia mundial, representando o início do 30
ciclo longo que, a partir dai, do cavado que marca o princípio da fase ascendente (a) que,
atingindo a sua crista em 1921 inaugura também o momento que Ignácio Rangel
caracteriza como a Segunda Dualidade Brasileira. Após a fase recessiva (1873-1896), a
economia mundial muda de orientação, havendo para isso, como ajustamento
compensador, alcançado os progressos tecnológicos da eletricidade, dos motores a
explosão interna – geradora da indústria de automóveis e das linhas de montagem – e os
grandes avanços da aplicação química na produção de sintéticos. Isto que será tido como
a Segunda Revolução Industrial trará nova época de ascensão econômica aos centros
hegemônicos do ocidente e hemisfério norte. Se a Abolição e a República foram
ajustamentos produzidos no nosso país para enfrentar a evolução dos tempos, esta fase de
ascensão no pólo dominador, externo, se não imporá, vai certamente repercutir em nossa
organização interna, ao sabor do jogo do poder mundial que assume novas feições.
Quando em maio de 1898, dois anos após o marco inicial, o primeiro ministro
britânico Lord Salisbury declarou, em discurso famoso: “As nações do mundo podem, a
rigor, ser divididas entre mortas e moribundas”, ele estava querendo se referir ao
contraste entre os impérios coloniais afirmados e aqueles em desaparecimento. Era um
modo de classificação próprio mesmo de um chefe de governo daquela que ainda era a
maior potência mundial.
Sede da primeira revolução industrial, Inglaterra detivera, até a pouco, a cômoda
posição de quase único país industrial, produtor de manufaturas a exportar, detentora da
maior frota marítima a impor os fretes e dotada de maior poder de expansão dos capitais
acumulados. Moribundos seriam os grandes impérios do Oriente Médio – como o
1
Otomano, em franca dissolução entre o médio ocidente e a própria Europa – e a China,
o grande império asiático.
Mas a Inglaterra, embora o Império Britânico fosse o maior do mundo, não estava
mais sozinha em vitalidade de crescimento, industrialização e acumulação de capitais.
Entre 1876 e 1880 detivera ela 16,3% das exportações mundiais contra 11,7% dos
Estados Unidos da América. O resto do mundo – Ásia, África, Oceania e América Latina
– fornecedor de matérias primas respondia com 21,7%117. No momento que antecede à
primeira grande guerra (1913) os Estados Unidos aumentaram sua quota de 11,7% para
14,8%, enquanto a Inglaterra declinou para 13,1%. A nação americana tinha a vantagem
de contar, além da industrialização e recursos em combustíveis, com um vasto território
que já atingira a costa do Pacifico e propiciava-lhe terras para uma agricultura capaz de
lhe assegurar alimentos dentro do seu próprio território. O arquipélago britânico, neste
particular, apelava para a Commonwealth, com os fluxos do Canadá e Austrália.
No início do século, os produtos ditos primários correspondiam ainda a cerca de
dois terços de todos os bens em circulação no comércio mundial e a maior parte deles, o
maior fluxo comercial era aquele constituído pelos produtos alimentícios. Deles todos o
trigo era o mais valorizado e a expansão do seu comércio, na virada do século, responde
pelo desenvolvimento de países como o Canadá e, na América do Sul, aquele da
República Argentina. O comércio das carnes tem também o seu momento de expansão, e
nisso os Estados Unidos estavam bem abastecidos e ainda exportando para o Reino Unido
– que, com seu crescimento industrial e urbano, era o maior mercado importador de
carnes: dos USA e Argentina, da Austrália, Nova Zelândia e Dinamarca. A agora
República do Brasil, tinha a oferecer aos países industrializados o café – que duraria ainda
por longo tempo – e, efemeramente, a borracha da Amazônia. O cacau do Sul da Bahia
despontava e competia com a produção africana da Costa do Ouro. O algodão, após a
guerra de Secessão Americana, diminuíra muito e o açúcar perdera a vez para o Caribe.
Mas a Inglaterra não se via ameaçada apenas pelos Estados Unidos da América.
No próprio continente europeu, havia sérios rivais que cresciam perigosamente. A
Alemanha, unificada em 1870 e retomando da França a Alsácia-Lorena, igualara-se à
Inglaterra na produção de ferro e aço e sua produção de carvão equivalia àquelas da
117
Segundo Malcolm Falkers – História Econômica – 1900-1914. In: História do Século XX – vol.1, p.
22-3 – Rio de Janeiro, Abril Cultural, 1968.
2
França e Bélgica juntas. Não só a sua industrialização crescia, notadamente no campo
da química, como a drenagem de seus recursos para a militarização – notadamente no
equipamento de modernização da marinha –, introduzira urna nova variável no
equilíbrio de forças da Europa Ocidental.
A posição do Império Britânico no mundo anulara por completo os antigos
impérios coloniais pioneiros na conquista dos mares e descobrimentos de novas terrais.
Os grandes feitos ibéricos resumiam-se à geração dos novos países que, na América,
passaram à constituir a quase totalidade da América Latina, mais tropical e composta
pelo contraste entre o rosário de países hispânicos, de organização republicana e aquela
grande unidade lusa que, após quase setenta anos de única monarquia do Continente,
aderira há pouco a República.
Enquanto a Inglaterra se preocupava com o ouro da África do Sul (Guerra dos
Boers) e a dominação da China (Guerra dos Boxers), os Estados Unidos encarregavam-
se de subtrair à Espanha os domínios insulares no Caribe (Cuba) e nas guirlandas
asiáticas (Filipinas). Portugal via-se ameaçado na África, nas costas leste e oeste, pelas
aspirações crescentes da Alemanha. A África Negra, tornara-se o alvo da partilha no
novo fluxo colonialista europeu, principalmente pelos recém-emergentes da
industrialização (Alemanha, Bélgica). O norte da África era motivo de disputa pela
pseudo “proteção” da Inglaterra (Egito), França (Tunísia e Marrocos) e Itália (Líbia e
Abissínia).
O ano de 1896 é, também para os Estados Unidos da América, um marco bem
significativo. Foi o ano de eleições presidenciais marcadas pela forte disputa entre os
democratas, representando a voz agrícola do meio oeste, de Willian Vennings Bryan118,
voz poderosa que implicou na tremenda reação dos grandes industriais a favor dos
republicanos. Foi o momento mesmo em que se firmaria o principio dos grandes
investimentos dos magnatas industriais no financiamento de campanhas políticas nos
Estados Unidos. A favor do candidato republicano – William McKinley – Mark Hanna,
o magnata do aço, de Cleveland, investiu grosso e pesado e mobilizou as forças
industriais assegurando a vitória dos republicanos. Com o assassinato de McKinley
(1901), assumiu o poder Theodore Roosevelt, inaugurando unia forma de expansão e
colonialismo conhecida como a política do “big stick” (grande porrete) símbolo de
118
Que proclamara num discurso não estar de acordo em “crucificar a humanidade numa cruz de ouro”.
3
ameaça aos europeus nos seus intentos de avanço econômico sobre a América Latina,
domínio “natural” dos Estados Unidos.
A ampliação do comércio a escala mundial e a grande expansão do capitalismo
nesta virada do século sintonizava com um intenso e amplo surto de movimentos
migratórios. Os grandes formigueiros humanos do extremo oriente canalizavam-se para
as “plantations” e ocupação de novas áreas pelo colonialismo europeu. Chineses
afluíram para as plantações de borracha da Malásia e para a Indonésia. Indianos
dirigiam-se maciçamente para a África do Sul, para as cidades crescentes e para as
novas áreas conquistadas e, sobretudo efervescentes com a exploração de ouro e
diamantes. A mineração na África repetia o papel anterior daquela da América em favor
do progresso e riquezas européias.
Mas os movimentos migratórios não se restringiam aos países muito populosos
do oriente. A própria Europa, industrializando-se crescentemente, não podia assegurar
recursos a urna população que, deslocada dos campos, não encontrava absorção na
indústria. Ao mesmo tempo se inaugurava a questão operária, dando margem ao
florescimento das idéias marxistas119 e sua aplicação na prática política das “massas”.
Conseqüência direta da revolução industrial as diferenças crescentes entre a
burguesia enriquecida, diminuta, e a massa de obreiros, trabalhando muitas horas e
recebendo baixa remuneração, introduziram a “Questão Social” desde a metade do
século XIX. Os grandes movimentos operários em Chicago iniciados a 10 de maio de
1886 institucionalizaram aquela data como dia universal do trabalho. No ano em que
aqui no Brasil se proclamava a República instalava-se em Paris a II Internacional
Socialista, adotando a vertente do marxismo. Em 1891, enquanto se fundava na
Alemanha o movimento da Social Democracia, a Igreja Católica, sob o pontificado de
Leão XIII produzia a encíclica “Rerum Novarum”, traçando as normas da teoria social
segundo a Igreja. Em 1906 criava-se, na Inglaterra, o Labour Party (Partido
Trabalhista).
A virada do século também foi o momento em que se principia a falar em
sociedade de massas, com a imprensa a fomentar e intervir diretamente no consumo e
na orientação política. Aumenta consideravelmente a tiragem e venda de jornais, e,
119
Se o manifesto do Partido Comunista (1848) e a publicação de O Capital (1867) eram anteriores, este
estágio de industrialização aumentara os problemas da classe operária, que vão eclodir da passagem do
século até as revoluções russas (1905-1917).
4
sobretudo formam-se “cadeias” de jornais criadores de fatos e condutores da opinião
pública. O magnata americano William Handolph Hearst, que se vangloriava de haver
promovido a guerra Hispano-Americana, era imitado na Inglaterra por Alfred
Harmsworth, futuro Lord Northcliffe, com o Daily Mail, “o primeiro jornal britânico de
grande tiragem”. O jornalismo popular atingia a Austrália (The Truth) e a África do Sul
(Rand Daily Mail).
O Japão que, desde a grande reforma Meiji (1868) se voltara à aceitar normas
ocidentais, teve na instalação da imprensa popular de grande tiragem a prova definitiva
de sua capacidade de imitar a vida do ocidente. No Oriente, o Japão é a nação diferente
que se lança aos próprios meios de Desenvolvimento ocidental, inclusive em idéias
expansionistas que, desenvolvendo-se sobre o domínio do Pacífico, irá colidir com os
interesses dos Estados Unidos e, para o Continente, com a China e o Império Russo.
Os trânsfugas e excedentes deslocados da sociedade de massa européia irão
também dirigir-se em importantes fluxos migratórios na virada dos séculos.
E os Estados Unidos vão ser a grande força atratora desses deslocados. Calcula-
se, que entre 1900 e 1910, ou seja, no primeiro decênio do século XX, entraram cerca de
nove milhões de imigrantes naquele país. Na última década do século passado o Brasil
receberia imigrantes europeus, notadamente alemães – para colonização agrícola
patrocinada pelo governo – e italianos, tanto para o campo, em substituição à mão de
obra escrava para as fazendas de café no Sudeste quanto para as cidades. Considera-se
que 1898 foi o ápice do movimento, quando o Brasil recebeu cerca de 145 mil
imigrantes. Já em 1899 o número cairia quase pela metade (77 mil).
A economia teria, no cenário mundial, como padrão dominante na virada do
século, uma grande expansão que no esquema dos ciclos Kondratieff se exprimem pela
fase ascendente (a) de 1896 a 1921. E a característica básica deste período seria o modo
como a demanda dos países industrializados – o polo externo – através de seu progresso
industrial e tecnológico, de seus capitais e até, por vezes de sua mão-de-obra
especializada, possibilitaram o desenvolvimento do comércio com os países produtores
de matérias primas – os vários polos internos. Nesse período ascendente os preços dos
produtos primários se elevaram relativamente aos dos bens manufaturados, provocando
surtos de prosperidades nos países exportadores de produtos primários ou agrícolas.
5
Por outro lado esta relação não significava grande vantagem para estes últimos
porquanto, na realidade, era uma estratégia habilidosa da economia capitalista. O
aumento dos preços dos produtos primários era um meio de possibilitar aos psíses seus
exportadores obter divisas para fazer face aos juros dos investimentos que os psíses
“vivos” aplicavam neles na construção de ferrovias, instalação de força e luz, de
fábricas, etc. Estabeleciam-se os elos da dependência entre os pólos e suas periferias.
A este surto expansivo da economia mundial correspondia o progresso
tecnológico da segunda revolução industrial. Novos impulsos na ciência (1859) causam
sensação. Enquanto a mensagem de Faraday é incorporada na grande aplicação da
eletricidade, as idéias biológicas de Darwin causavam mais impacto pela controvérsia
religiosa desencadeada pelo evolucionismo. O Positivismo de Comte., contudo, reforça
o prestigio da ciência no lado da análise da sociedade. O lado tecnológico responde com
o aporte dos grandes pioneiros, Edison, Marconi, Ford. O romantismo é substituído pela
visão mais crua da realidade. O que se inaugurara em França no meio do século, com
Flaubert firma-se agora no realismo de Zola, o grande defensor de Dreyfus, o caso que
abalou o mundo ao final do século.
A nova onda de colonialismo põe a nu sociedades primitivas até então não
reveladas. O nascimento da Antropologia desvenda aspectos insuspeitados no homem.
Culturas orientais, bem mais antigas que as européias, passam a ser percebidas e a
introduzir influências nos artistas do ocidente. Gravuras japonesas impressionam Van
Gogh, escalas cromáticas orientais são assimiladas por Debussy. A Grande Exposição
de Paris de 1890 apresenta um acervo considerável de arte de povos primitivos.
A visão de poder social do homem, capaz não apenas de interpretar o mundo
mas de mudá-lo, dada por Karl Marx (1848) acrescenta-se agora a revelação do seu
interior, do seu inconsciente, com a contribuição de Sigmund Freud (1899)120. Quando,
em 1905, Albert Einstein publica os seus artigos formulando a teoria da relatividade, um
passo extraordinário fora dado no domínio da Ciência. A nova visão do universo,
revolucionava todo o suporte teórico da Física de Newton que vigorava desde o século
XVII. É o ponto de partida que, juntando-se a teoria dos quanta e abrindo o universo da
microfísica, revolucionará todo o suporte da ciência; um divisor d’água que, embora
120
Toma-se aqui, ainda que simbolicamente a proposta de Marx nas suas Teses contra Feuerbach (1845) e
de Freud, a Interpretação dos Sonhos (1899).
6
condicionando toda a evolução científica e progresso tecnológico do século XX,
demorou (e tem demorado ainda) a ser percebido. Quando Picasso estampa na face de
uma de suas Demoiselles d’Avignon uma máscara africana, dando início ao cubismo, é
todo o universo das artes plásticas que estará irremediavelmente abalado.
A desconfiança de que a “razão” tão apregoada na ciência não era suficiente a
tudo explicar e a admissão da possibilidade de considerar a força da intuição e poder
criador do homem – pelo filósofo Bergson – é um movimento suave de renovação. Mas
há, por outro lado, a contestação violenta. Embora falecido em 1900 e havendo parado
de produzir em 1888, Nietzsche abalaria todo o corpo do pensamento filosófico vigente.
Sua obra, veemente e versátil, a partir do “Assim Falou Zaratustra” (1884), é a negação
de todo o sistema de valores vigorando no século XIX, abrindo amplas perspectivas ao
futuro. Daí o sentido polêmico e sempre em discussão de sua obra, que o tornou o
arauto, o portador da outra “modernidade”, aquela que inauguraria uma nova era de
pensamento.
121
Segundo o testemunho de Salvador de Mendonça, citado por Francisco de Assis Barbosa “A Transição
do Império para a República” – CULTURA, Ano VII, nº 485, p. 4 – Suplemento do O Estado de São
Paulo, edição de 11 de novembro de 1989.
7
de Ouro Preto, o encargo de chefiar o último Gabinete do Império sob o qual o
movimento militar proclamou a República.
Ainda hoje questiona-se sobre a proclamação da República, inclusive se teria
sido uma “quartelada” da qual o povo esteve afastado. Quanto a este afastamento isso
até hoje continua valendo. O povo, a massa – que não adquiriu foros de cidadania –
sempre esteve afastado, assistindo o que, na maioria das vezes é feito em seu nome. O
que não poderá ser mais questionado é sobre a relevância maior do 13 de maio de 1888
sobre o 15 de novembro de 1889. O fato econômico não só sobrepujou mas, inclusive,
condicionou o político, que foi conseqüência imediata daquele.
O que importa mais discutir é o papel que os dois, conjuntamente, representaram
como “mudança” na estrutura social e política do psís. Neste particular não admira que
a Abolição tenha ocorrido na vigência de um gabinete conservador. Se é verdade que os
fazendeiros perderam a escravaria – o que além de inevitável já estava sendo
substituído, no Sudeste Cafeeiro, o pivô econômico, pelo imigrante, colono – eles
conservariam intactos os seus latifúndios. A simples abolição desacompanhada de
mudança no regime de posse da terra pouco significou. Para alguns senhores de terras, a
libertação da massa de escravos representou a liberação de um encargo, pois que o
sustento da escravaria representava antes um peso, para aqueles que enfrentavam
problemas de produção agrícola. Os negros viram-se libertos teoricamente posto que
sem meios de sustento. Senão unia “reforma agrária” pelo desmantelo dos latifúndios –
ainda à base da produção monocultora – pelo menos uma modificação no sistema de
acesso a novas terras teria que ter sido mudado. Continuou vigorando o sistema de
compra segundo a Lei de Terras de 1850 o que significava praticamente o alijamento
dos escravos do campo e o seu afluxo às cidades, à marginalidade e ao subemprego. Ou
marginal urbano ou servo da gleba, foi a escolha deixada à população negra. A falta de
mudança econômica (posse de terra) iria repercutir negativamente na estrutura social
(marginalização dos negros) que, reforçando o número vultoso das outras etnias e
mestiços, aumentaria mais ainda a diferença entre classes sociais extremadas.
No último decênio do século passado, após Abolição e República a população
brasileira andava por volta dos 14 milhões de habitantes o que, em nossos dias,
equivaleria aquele contingente acumulado (implodido) na região metropolitana de São
8
Paulo. É a partir daí que as cidades principiam a crescer significativamente, sobretudo a
capital da República, o Rio de Janeiro que começa a distanciar-se das outras.
Mas quais teriam sido as mudanças, ao nível político, trazidos pela República?
Assim como, após a independência as instituições permaneceram – inclusive as forças
armadas – no novo império, a República – embora transição interna na nação em
nascimento – continuou praticamente com os mesmos quadros políticos. Assinala-se o
grande fato de que, a Guerra do Paraguai contribuiu, de vários modos para uma séria
mudança de mentalidade nas forças armadas, notadamente no exército. Enquanto a
oficialidade entrou em contato direto com a massa do povo – pobre, sofrido, inclusive
os escravos – a oficialidade estava eivada do positivismo de Comte. Daí o papel do
exército face a Abolição e a República. Se o movimento – foi proclamado pelo Exército
e os primeiros presidentes foram militares isso não invalida o fato de que não houve no
Império uma participação civil tão enfaticamente decisiva em prol de uma militância
efetiva e elaboração de um ideário “republicano”.
Os quadros dos políticos profissionais pouco se alteraram. Passados os dois
presidentes militares, os três primeiros civis haviam sido Conselheiros do Império.
Grande parte dos cargos públicos não sofreu solução de continuidade – do Império para
a República122. A historiografia monarquista, de um lado, procurou fazer crer que a
República havia sido uma simples “quartelada”. De outro lado há aquela outra corrente
que procura enxergar uma “ruptura”, alegando dissolução da ordem jurídica
estabelecida, mudanças fundamentais na legitimação do regime e mudanças nas
lideranças políticas. Estas últimas foram antes um produto do decorrer do tempo sem
evidências flagrantes de uma verdadeira ruptura. Quanto aos dois primeiros, seria o caso
de procurar identificá-los não ao longo do tempo republicano – com suas várias etapas –
mas no que foi produzido e está estampado na Constituição de 1891.
Há um certo consenso entre os analistas daquela peça que sua produção girou
entre a tendência civilista de aproximá-la da organização republicana dos Estados
Unidos e a militarista, cheia do positivismo de Augusto Comte., o que, já de si, era um
divisor d’águas mais do que uma aglutinação ou convergência de idéias. Havia antes
divergência. De um lado unia visão liberal inspirada nos ideais republicanos franceses
122
Um dos exemplos flagrantes é aquele do Almirante Arthur Silveira da Motta, o barão de Jaceguay –
aquele amigo do Imperador que o convenceu da conveniência do embarque da família imperial ocorrer
durante a noite – que continuou a frente da empresa nacional de navegação.
9
da revolução de 1789 e da americana de 1861 cujo representante poderia ser Ruy
Barbosa. De outro a visão, um tanto “ditatorial” peculiar ao credo positivista. Segundo
observações de Francisco Iglesias:
Ante essa dificuldade pela duplicidade de visões, talvez o melhor aspecto a ser
analisado na avaliação do caráter de ruptura ou permanência seja a questão do
“federalismo” da República. O ponto de partida das 13 colônias da costa atlântica da
América do Norte para a formação dos Estados Unidos tem substanciais diferenças com o
sistema colonial luzitano com as capitanias (hereditárias e da coroa) passando a Províncias
no Império. A Constituição de 1824 deu ensejo a grandes debates sobre a “questão federal”
já que aquela carta – conseqüência da outorga do Imperador – visava a política unitária
contra a qual viriam as reações do Código de Processo e do Ato Adicional.
A Constituição de 1891 ao preconizar (ou mesmo exigir) tratamentos desiguais
às diferentes unidades – os agora Estados da República Federativa – dirigia-se teórica e
aparentemente à perspectiva federativa. O trabalho livre, assalariado (conseqüência da
Abolição) e a prática de uma política descentralizada (preconização da República) eram
tidos como significativos sintomas de ruptura, de construção de uma nova ordem. A
prática se encarregaria de demonstrar que a realidade seria bem outra.
A dualidade de visões entre civis, liberais e militares positivistas, de inicio, foi
logo tomada pela segunda corrente que, consoante o próprio ato da proclamação,
ocupou o poder republicano no seu inicio: os marechais Deodoro e Floriano. As rédeas
do Estado ficam em suas mãos, no momento mesmo em que se elaboram a Constituição
Federal e aquelas dos diferentes Estados. A análise dessas peças é algo de fundamental
a caracterizar as tendências e oscilações entre as duas linhas divergentes. O Rio Grande
do Sul, por exemplo124, elaborou uma carta exacerbadamente positivista à base mesmo
de compreensão da norma política naquela unidade sulina que de Julio de Castilhos por
123
Francisco Iglesias: República (1889-1989) – CULTURA, Ano VII, nº 485, p. 3 – Suplemento do jornal
“O Estado de São Paulo”, edição de 11 de novembro de 1989.
124
Não fora o afastamento abusivo do objetivo principal, valeria a pena exemplificar pelo menos as
diferenças entre as constituições dos Estados do Piauí e do Rio Grande do Sul, pelo menos como uma
continuidade comparativa realizada a propósito da Balaiada e da Revolução Farroupilha.
10
Borges de Medeiros até Getúlio Vargas vai num “continuum” que possibilita a
compreensão das relações daquele Estado na Federação.
O primeiro decênio da República – o último do século – foi de dificuldades. A
mudança do regime e a ação dos militares no poder, viu-se a par com dificuldades
financeiras - para a sintonia com o pólo externo – e revoltas – ajustamentos no pólo interno.
A circulação de papel moeda em 15 de novembro de 1889 era estimada em cerca
de 200.000 contos de réis. O café e a borracha eram nossas principais fontes de divisas,
respondendo o primeiro com 22 milhões de libras e o segundo com 5 milhões. Cumpria
liberar as forças novas capazes de substituir a estrutura agrária, antiquada do Império.
Deve-se a Rui Barbosa a estratégia de – na falta de capital acumulado – ampliar as
possibilidades de emissões substituindo-se o lastro em ouro pelos títulos da dívida
federal. Na realidade era uma tentativa de imitar o que Lincoln havia feito nos Estados
Unidos como meio de diversificar a economia e acelerar o processo de industrialização.
Se os modelos europeus tentados como transplante no início do nosso império
mostraram-se inadequados, agora também, no início da república o modelo americano
teria que enfrentar as especificidades de nossa realidade.
Batizada pela imprensa como o “Encilhamento” – transposição da expressão
turística dos últimos preparativos e retoques dados aos animais antes de sua entrada na
raia – fazia-se, em termos financeiros, tal analogia significando a preparação para a
entrada no jogo ou corrida da “concorrência”. Embora tenha resultado na geração
efetiva de mais de trezentas empresas o encilhamento foi, antes, uma orgia
especulatória, uma corrida às fortunas fáceis implicando no circulo vicioso de mais
emissões e mais desvalorização da moeda. Firmas fantasmas criavam-se, até que
(meados de 1890) se tomaram medidas tais como a formação de Sociedades Anônimas
somente com o capital totalmente subscrito.
Com a queda de Deodoro e a entrada do seu vice, Floriano, a circulação de papel
moeda havia mais que duplicado (de 200 para 514 mil contos de réis) e a divida externa
já alcançava os trinta milhões de libras. A revolta da armada é um transtorno militar na
capital da república, expandindo-se para o Sul (Desterro, SC) e para o Nordeste (Recife)
onde se formou a “armada de papelão”. As questões civis não eram menos importantes.
O “federalismo mitigado” deu ensejo a grandes conflitos como a Revolução Federalista
11
no Rio Grande do Sul e Canudos no sertão da Bahia. Estes são episódios mais graves,
extrapolando de uma simples rivalidade entre Estados e a Federação.
Floriano Peixoto teve a habilidade de apoiar-se na aristocracia rural, mediante
aliança com o Partido Republicano de São Paulo, viveiro da cafeicultura e com as
nascentes classes médias da crescente população urbana. Aliás o divórcio entre a
Capital Federal e as maiores cidades, vai agravar o distanciamento entre a urbanização e
o campo ao mesmo tempo que o federalismo mitigante desencadeia os conflitos entre os
Estados, as desigualdades regionais e a formação de alianças e oposições entre os
elementos da Federação.
A população da República à entrada do século era de cerca de 14 milhões de
habitantes o que hoje equivale à região metropolitana de São Paulo. A população rural
ainda é largamente predominante, pois aquela das cidades equivale apenas a 11,3% da
população total. Desta população urbana cerca de 4,23% é representada pela população do
Rio de Janeiro com cerca de meio milhão (522 mil). São Paulo já ultrapassara (240.000) a
população do Recife (100.000) mas era ainda inferior à Salvador (285.000). A Capital
Federal, retratada no “O Cortiço” de Aluisio de Azevedo (1890) já registra a influência do
fluxo de emigração estrangeira através dos seus 40% de brancos (contra os 30% de negros
e 30% de mulatos). f a cidade insalubre que a partir de 1903 irá transformar-se pela
campanha urbano-sanitarista de Pereira Passos com a ajuda de Oswaldo Cruz.
O crescimento urbano exigia uma melhora no sistema de comunicações. Embora
incipiente, houve um grande aumento no movimento dos Correios que, dos 50 milhões
de objetos distribuídos em 1890, em 1910 chega a 543 milhões (decuplicou).
As estradas de ferro – o próprio símbolo do progresso – haviam passado de 1860
a 1890 a um aumento de 9.750 Km (18.850 a 28.600). Mas os desequilíbrios regionais
se espelham quando se considera que 77% desse total estava concentrado no Sul, dos
quais 23,3% só em São Paulo. O norte do País, em estados como o Amazonas (e o
Piauí), os trilhos só aparecerão no segundo decênio do século XX. E a diferença entre a
borracha e o café nos domínios aquáticos da Amazônia e planálticos do Sudeste.
Os quadros políticos do país vão passar à hegemonia de São Paulo que, após a
aliança com o Marechal Floriano, fornecerá os três primeiros presidentes civis (outrora
conselheiros imperiais). Era algo que o fastígio cafeeiro parecia exigir como legitimo.
Desde o final do Império que os paulistas reclamam. De um lado contra “os anéis da
12
engrenagem centralizadora”125. De outro, em nome de que a representação política
deveria ser proporcional a seu significado econômico. Não aceitavam, desde o Império,
que o poder estivesse entregue às áreas empobrecidas.
“... fortalecia-se a idéia de que não convinha a São Paulo entrar com capital e
trabalho para, em contrapartida, receber administradores de outras terras e
leis formuladas por gente estranha”.127
Instaura-se aqui, aquilo que será uma pedra de toque em nossa história política
onde, a grande extensão territorial, acolhedora de paisagens regionais diferentes e
contrastantes, e os mecanismos diferenciados de desenvolvimento, geram, ao lado das
desigualdades regionais, conflitos pelo poder na organização político administrativa..
Os conflitos emanam de unia falta de compreensão da realidade geográfica do país
como um todo que requer uma visão holisticamente integrada e não um somatório entre
partes contrastantes e conflitantes.
Este problema basilar da edificação da nação – o que ainda hoje perdura e está
por ser alcançado – no início da República assume vieses disfarçados entre propósitos
teóricos e realidades práticas divergentes que ainda hoje nos afligem.
A flagrante falta dessa compreensão e da sintonia entre governo central e as
realidades regionais é suficientemente demonstrada no trágico episódio de Canudos,
cabendo a Euclides da Cunha fazer a veemente denúncia no seu clássico “Os Sertões”
(1902). Quanto ao princípio de que o poder político é função da força econômica128 –
125
Segundo Tácito de Almeida (1934), transcrito por Suely Robles Reis de Queiroz.
126
Segundo Sérgio Buarque de Holanda (1972) citado por Suely Robles Reis de Queiroz.
127
Suely Robles Reis de Queiroz – “O Papel dos Militares”. CULTURA, Ano VII, p. 11 – Suplemento
Cultural do “O Estado de São Paulo”, edição de 11/11/1989.
128
Em 1960 quando já não havia nenhuma dúvida de que o polo econômico fundamental do Brasil é o
Estado de São Paulo, dali mesmo viria a demonstração cabal da invalidade desse princípio. O sucesso
político do Sr. Janio Quadros que ao longo de 13 anos ascendeu de vereador, prefeito de capital a
Governador do Estado com tanto sucesso, ao ser “exportado” ao nível nacional foi uma verdadeira
calamidade. Deixando-se de lado a personalidade paranóica daquele político, promessa de “estadista”
esperado por iludidos 6 milhões de eleitores, revelou-se eminentemente provinciano, não apenas no
13
difícil de aceitar numa organização federalista – ela acaba se impondo, senão de direito,
mas de fato. No início de nossa vida republicana isso principiou a ser demonstrado no
governo de Campos Salles, realmente aquele da passagem do século (1898-1902), com
a sua estratégia de “política dos governadores” e de “verificação de poderes”. A
estratégia de Campos Salles, quando conseguiu o saneamento das finanças, com
Joaquim Murtinho como ministro da Fazenda é, hoje em dia, interpretada como tendo
sido, na realidade, uma adaptação de nossas finanças às necessidades do capitalismo
internacional. Se isto representou uma vinculação do nosso país (pólo interno) ao centro
do poder hegemônico na economia mundial (pólo externo) houve - no nível da política
interna – uma verdadeira negação do federativismo em proveito do poder central129.
A “política dos governadores” foi antes de tudo, um modo de sacralização das
oligarquias locais em aliança com o poder central. E isto foi feito à base de assegurar
aos senhores de terra – tanto aos cafeicultores (barões do império) do Sudeste, quanto
aos coronéis (do sertão algodoeiro) do Nordeste a inviolabilidade de seus latifúndios. A
Abolição estava a requerer – senão uma “reforma agrária”, tido sempre como
necessidade que nunca se efetiva – pelo menos uma modificação no sistema de acesso
às novas terras que, pela Lei de 1850 continuava a ser mediante “compra” o que
favorecia os próprios senhores de terras. Assegurou-se assim o entendimento “nacional”
pelo denominador comum patrimonialista, o que satisfazia aos proprietários de terra e as
oligarquias regionais. Por outro lado, a instituição das comissões de “verificação de
poderes” que confirmava para o governo federal as eleições dos Estados, isto é, a
confirmação dos eleitos que não contrariassem os interesses do governo central, era o
poderoso elo da aliança entre este e os oligarcas locais. Assim a política dita dos
Governadores proclamada como medida fortalecedora do federalismo foi, antes, a sua
mais completa negação. Dai Sergio Buarque de Holanda dizer que a república tornou-se
“o império dos fazendeiros”
personagem mas em sua equipe paulista. O que foi tão bom para o Estado líder não o foi para o Brasil.
Aliás a visão política de qualquer presidente não pode ser calcada em visão de província, nem de classe,
mas de uma concepção holística de nação, do que, infelizmente, somos carentes ainda hoje.
129
Ao término do seu governo, Campos Salles recebeu telegramas de parabéns do banqueiro Rothschild -
a cujos bancos havia pago as dividas – e teve o trem que o levava de volta a São Paulo, apedrejado pela
população suburbana do Rio de Janeiro, vitimada pelo desemprego.
14
3. Os Estados Fracos: O Piauí
Com a queda do Império a República repercutiu de diferentes maneiras nas
antigas Províncias – agora transformadas em Estados da república federativa. Maior
confusão seria registrada no Rio Grande do Sul. Até a posse de Júlio de Castilhos
(12.11.1891) sucederam-se nada menos que 18 governadores. Mas a oposição a este
líder, visto como um tirano ligado ao poder central, pregava um federalismo concreto,
propondo uma completa autonomia estadual em relação ao poder central. Estas
divergências entre federalistas (Maragatos) e legalistas do poder central (Pica-paus)
resultaria na mais violenta das guerras civis que já abalaram o país, naquele estado
sulino, entre 1893 e 1895. Na Bahia, houve um contratempo de dois dias quando
Hermes da Fonseca, presidente e comandante de armas, apesar de irmão de Deodoro
quis levantar-se em favor da monarquia. Em São Paulo o Partido Republicano Paulista,
contrário à solução militarista, colocou-se contra Deodoro. O governo coletivo – o
triunvirato Prudente de Moraes, Rangel Pestana e Sousa Murça – foi unia solução
provisória que antecedeu a escolha de Deodoro em favor de Bernardino de Campos.
Mas logo os grandes senhores compreenderiam – como o fez o Conselheiro Antonio
Prado – que a flexibilidade política era uma chave favorável a bons negócios, e que a
economia em mudança solicitava a aliança de liberais ou conservadores em torno do
projeto financeiro130. Em Minas Gerais não houve solução de continuidade. O
conselheiro Affonso Penna – ministro do Império em várias pastas (Guerra, Agricultura
e Justiça), adere ao novo regime e dirige a Assembléia Estadual que elaborou a
Constituição (1891).
Os estados menores não poderiam deixar de ser “pacíficos” e para eles, Deodoro
designou militares de sua plena confiança. Para o Estado das Alagoas, sua terra natal,
foi designado o seu irmão o ainda Tenente Pedro Paulino da Fonseca. O Amazonas
recebeu outro Tenente (Ximeno de Villeroy). O Piauí mereceu posto mais elevado. Para
ali foi enviado um filho da terra, naquela época no posto de Coronel: Gregório
Thaumaturgo de Azevedo.
A gestão do futuro Marechal que deu ênfase ao saneamento das finanças e
criação de várias mesas de rendas, logo seria motivo de oposição, durando apenas seis
130
Antonio Prado, o hábil conselheiro do Império e chefe político, em janeiro de 1890 (dois meses após a
proclamação da República), fundou o Banco do Comércio e Indústria de São Paulo, logo alçado a
principal organismo de crédito do Estado.
15
meses (26.12.1889 a 04.06.1890), seguindo-se-lhe o vice-governador Joaquim Nogueira
Paranaguá. Dois governadores nomeados e dois vice-governadores de durações muito
curtas chegaram até a Gabriel Luis Ferreira, eleito pelo Congresso Constituinte e, assim,
o primeiro governador constitucional d6 Piauí. Durou apenas o segundo semestre de
1891, pois em dezembro o governador seria deposto pelo Marechal Floriano.
Gabriel Ferreira era um filho da terra piauiense (Valença), magistrado - em cuja
gestão foi criado o Tribunal de Justiça com 5 desembargadores (01.10.1891). Era
homem de fortuna, e o construtor da bela casa de arquitetura neoclássica do tipo das
mansões do sul algodoeiro dos Estados Unidos, que hoje é o Palácio de Karnak131. Era
cunhado do Senador Theodoro Pacheco e pai, dentre outros filhos, do governador João
Luis Ferreira e do Chanceler Felix Pacheco.
O Tenente Coronel do Exército João Domingos Ramos, constituiu, com o
advento de Floriano, uma junta de Governo provisório tendo mais cinco membros
recrutados na elite local (Dr. Higino Cícero da Cunha, Clodoaldo Freitas, José Eusébio
de Carvalho Oliveira, Elias Firmino de Sousa Martins e José Pereira Lopes), que não foi
aceita pelo Marechal “chefe de Governo” que determinou ao militar assumir o poder até
a manutenção da ordem, o que foi feito de dezembro de 1891 a fevereiro de 1892,
quando foi aclamado pela Câmara Constituinte Coriolano de Carvalho e Silva, que
governou o Piauí durante um quadriênio (11.01.1892 a 01.07.1896).
A 13 de junho de 1892 foi promulgada, pela Câmara Constituinte, a Constituição
do Estado, assinada pelos vinte deputados. Neste quadriênio também teve lugar o
primeiro pleito municipal republicano para escolha do “Intendente” e conselheiros
municipais, inclusive na Capital. Também desse período é a conclusão das obras e
inauguração (1894) do Teatro 4 de Setembro o ainda hoje tradicional centro cultural em
Teresina.
O último governador do século XIX e primeiro do século atual, bem como o
primeiro governador do Piauí eleito por sufrágio universal e direto foi o Coronel
Raimundo Arthur de Vasconcelos (01.07.1896 a 01.07.1900). Oficial do Exército era
131
Tendo sido residência, passou após a ser, pelo seu proprietário, transformado em Instituto (de Karmak)
de ensino secundário. Posteriormente o palácio foi adquirido e residência do Barão de Castelo Branco
até que, no governo de Mathias Olimpio de Mello, passaria a ser Palácio do Governo do Estado do
Piauí.
16
também Bacharel em Matemática, Ciências Físicas e Naturais, jornalista, deputado
federal e senador pelo Piauí.
Nesse governo teve início a obrigatoriedade, imposta pelo Governo Federal, do
registro civil de nascimentos e óbitos (1897). A realização de eleições para os
Conselhos Municipais em novembro, por todo o Estado foi muito conturbado. Houve
questões sérias no Amarante com lutas entre capangas e políciais e derramamento de
sangue, e também nas Barras, onde a oposição acusava o Cel. Trazíbulo de promotor de
violências.
17
O coronel Manuel da Paz teve, além da Intendência Municipal, destacada
participação política como deputado estadual, e no Conselho Municipal, Presidente da
Assembléia Legislativa, condição através da qual até assumiu interinamente o Governo
do Estado. Presidente da Junta Comercial e um dos fundadores da Associação
Comercial Piauiense. Pai de muitos filhos terá dois varões: Manoel, também prefeito
nos anos vinte (em meio a muitas confusões) e Raimundo, secretário da Instrução
Pública (também com forte oposição) e suas filhas tiveram o maior destaque na
sociedade teresinense da virada do século. Isto o tornará sogro de vários homens de
destaque na cidade: Dr. Higino Cunha (D. Corina); Dr. Abdias Neves (D. Cristina);
Coronel Costa Araújo (D. Clotilde); Gumercindo Saraiva (D. Adélia); Antonio
Monteiro (D. Julia).
Sua administração viu-se a par com sérios problemas surgidos com o
crescimento da cidade sobretudo em matéria de higiene, saneamento. A construção do
Matadouro Municipal, a organização do transporte de carne para o Mercado em carro de
boi especial para aquele fim; a proibição de venda de carne verde fora do mercado,
espalhando-se em mui Los açougues e vendas anti-higiênicas pelas ruas, e uma
pitoresca campanha contra os porcos nas ruas que levam o Intendente a declarar: “o
porco, em Teresina, tem força para derribar a República”. Tenta a limpeza das ruas e o
escoamento do lixo.
Aliás, na passagem do século, a cidade guardava ainda, descalça e sem infra-
estrutura sanitária mínima, aquele misto de vida urbano-rural de que lhe dotara, na
origem, o seu fundador. O gado andava pelas ruas e somente em 1905 surgirão as
primeiras posturas municipais coibidoras de um uso difícil de terminar132.
A entrada do século XX foi saudada com grandes festas na administração
Portellada, que em 1899 passa a exigir que haja “planta” para a construção de qualquer
edificação na cidade. A capital não tem ainda serviço d’água. A prefeitura mantém 3
poços de abastecimento de água potável, dois deles no subúrbio. Os habitantes
adquirem-na de aguadeiros que a apanham do rio Parnaíba in natura133 Malgrado a
condição de terra de currais e fazendas, a capital já principia a apresentar “crises” de
abastecimento com problemas de aumento do preço da carne verde. Note-se, porém, que
132
O que não é difícil de imaginar pois somente em 1938 foi feita a proibição da existência de estábulos
(as famosas “leiterias”) dentro do perímetro urbano.
133
Além de muito barrenta, a navegação fluvial já poluía consideravelmente as águas do rio.
18
por todo o início do século, em seus dois primeiros decênios, o quilo de carne esteve
entre 500 réis só ultrapassando o mil réis em 1922 (ver gráfico). A receita da prefeitura
municipal entre 1895 e 1901 oscilou entre 41 a 51 contos de réis. De 1902 (ano do
cinqüentenário) a 1906 ela oscilará em torno de 80 contos.
Já na administração do Intendente Benjamim de Sousa Martins (07.01.1901 a
01.01.1905) político oriundo da oligarquia da velha capital, gozando de grande prestígio
na época, inclusive na capital, a ponto de ser eleito para administrá-la, luta-se para
melhorar o aspecto das ruas e praças da cidade, abrindo-se algumas novas e aumentando
o numero de lampiões de querosene de 117 para 140, colocando-os em postes de
aroeira.
Já cinqüentenária a capital dá margem a notícias pitorescas como esta a seguir,
colhida na página 2 do jornal “O Estado”, nº 34, edição de 16 de maio de 1903:
“FATOS DIVERSOS
Levamos ao conhecimento do Sr. Chefe do Município uma reclamação
bastante justa.
Teresina, a famosa cidade digna de ser visitada pelo estrangeiro mais
exigente na opinião de nosso colega “O PIAUHY” está transformada em
campo de criar devido a um alcandorado respeito ao direito de propriedade,
em prejuízo do bem público.
É considerável o número de vacas e outros animais que andam pelas ruas
mais freqüentadas do nosso centro emporcalhando tudo, atropelando as
crianças e derribando as cercas dos quintais.
Há poucos dias a cerca do quintal de nosso amigo Capitão Ludgero
Gonçalves foi derribada por uma vaca de leite, e não é justo que fatos como
estes continuem a se dar numa cidade que quer ser civilizada e numa
administração ciosa dos seus deveres.
O Sr. intendente municipal prestaria um relevante serviço ao município que
administra se pusesse em execução a postura municipal sobre o assunto.”
19
setembro de 1902, tendo como redator chefe o Dr. Clodoaldo Freitas134. Talvez esse fato
explique as muitas noticias sobre o Capitão Ludgero e sua família pois, como ficou
registrado anteriormente135, uma grande amizade uniu este homem público ao meu
bisavô. Nesse momento os amigos ligados ao Barão de Castelo Branco, estavam em
oposição à oligarquia de Valença (Nogueira). Na realidade era um capitulo da mesma
novela da disputa entre oligarquias locais. No momento, a oligarquia de Campo Maior
(Castelo Branco) estava alijada do poder.
O editorial de abertura do jornal, em seu primeiro numero é bem expressivo. Sob
o titulo de “Nosso Ponto de Vista” tem como palavras iniciais:
134
Os primeiros números (1 a 17) deste periódico estão no Arquivo Público do Piauí, Seção de Jornais,
num volume encadernado (doação) na coleção particular do Sr. Joel Oliveira.
135
Veja-se RUMO A CIDADE NASCENTE, Cap. “Campo Maior”, pp. 98-99.
136
Notícia publicada em “O Estado”, nº 27, de 30 de março de 1903.
137
O nº 47 do “0 Estado”, edição de 15 de agosto de 1903, publica um telegrama de Belém, datado do dia
9, nos seguintes termos: “Ufanos nomeação Clodoaldo lente Faculdade de Direito Pará enviamos vosso
intermédio congratulações – Ass) Joaquim Freitas, Raimundo Freitas, Lauro Pinheiro.
138
Na coletânea de recortes de seus escritos, existente na Casa de Anísio Brito, encontramos artigos dessa
fase.
20
Neste início de século, malgrado as limitações da capital, admira a qualidade da
imprensa pela variedade e mesmo até qualidade das informações. Além do “O Piauhy”
órgão já de certa tradição que atravessa as primeiras décadas do século, do “A República”
nascido para a propaganda republicana, e deste “O Estado”, fundado em 1902, há também
“A Pátria” tendo o Dr. Miguel Rosa como redator gerente, acompanhado no corpo
redatorial pelos Drs. Abdias Neves, jurista e Antonino Freire, engenheiro139.
Na época de Hearst na América e das grandes tiragens, a edição desses jornais
teresinenses muito compreensivelmente é “semanal”. Mas o noticiário é bem
interessante, cobrindo vários assuntos de interesse, num espectro variado.
Reclama-se do abate às árvores à margem do rio Parnaíba, advogando-se em duas
colunas da edição do “0 Estado”, nº 12 de 29 de novembro de 1902 sobre as
conseqüências do desmate no desempenho do rio e em sua navegação. Denuncia-se “o
plano imperialista” em artigo assinado por Ivo Pery, da política de Theodore Roosevelt na
Venezuela, lembrando que “A Argentina, O Brasil, O Chile têm credores...” e, a propósito
dos empréstimos que o Estado do Pará entabola para fazer no exterior adverte o perigo
que isto representa para a União: “urge, portanto, que cessemos os empréstimos estaduais
no estrangeiro...” (“O Estado” nº 24, 7 de março de 1903). Noticia-se os feitos de Santos
Dumont em Paris, e o desafio que nosso patrício recebera de M. le Comte. de ia Vaux
para atravessar, em balão, o Mediterrâneo (“0 Estado” nº 9, 12 de novembro de 1902).
Para uma região de pecuária há anúncios de interesse como importação de gado
de raça ou este:
139
Com redação à Rua Bella nº 27, deve ter sido fundado em 1902 pois o seu nº 13 data de 24 de janeiro
de 1903. Pode-se acompanhá-lo com facilidade de consulta até 1905.
21
A nível nacional o Estado do Piauí enfrentava, mais uma vez, o problema
portuário. O Sr. Ministro da Fazenda – o Dr. Leopoldo de Bulhões – acabara (julho de
1903) de proibir a entrada de navios de longo curso no contestado porto de Tutóia. E
isto sob a alegação de não ser ele “alfandegado”. Tal medida era altamente prejudicial
aos interesses comerciais do Piauí, sobretudo do porto da Parnaíba que, por ter
Alfândega, assegurava a fiscalização no deita. Diante de tal medida houve protestos na
imprensa da capital nos seus quatro jornais (O Piauhy, A Pátria, O Estado, A
República). O Governador Arlindo Nogueira telegrafa ao Deputado Anísio de Abreu. A
Associação Comercial como um todo protesta. Juntam-se protestos das principais firmas
comerciais de Teresina (Manoel Raimundo da Paz, Manoel Thomaz, Irmão & Cia.
Ltda., Gil Martins & Cia., Leocadio Santos, Irmão & Cia. Ltda. e outros mais). Forma-
se uma comissão de pessoas notáveis140 (“O Estado” nº 43, 18.07.1903).
Já havia sido enviado à Lisboa, em Missão especial o Sr. Simplício Coelho de
Rezende a fim de procurar mapas e documentos para fundamentar as pretensões do
Piauí ao deita do rio Parnaíba, pelo menos em parte dele, em sua pendência com o
Estado d.o Maranhão. Comentava-se o relatório por ele enviado (“A Pátria” nº 13,
24.01.1903).
Na política local, a oposição ao Governo Arlindo Nogueira era forte. Na
Parnaíba, os Morais Correa, adversários do governo estavam sendo atacados e
ameaçados e lançavam veementes protestos para a capital. Em Valença um dos chefes
políticos locais – Norberto de Castro Velloso – atacava a oligarquia dos Martins. Em 15
de março, o Sr. José de Sousa Martins assinava um protesto ao jornal “O Estado”
(30.05.1903) chamando aquele de “famigerado”.
Em agosto do mesmo ano despedia-se de Teresina o Sr. Franz Steindachner, do
Museu de Viena d’Áustria, Chefe da Comissão Zoológica que estivera em estudos e
coleta pelo sul do Estado e tomava o destino de Belém, de onde retornaria a Europa.
Esta noticia, ligada a outras avulsas sobre a exploração da maniçoba, consubstancia o
interesse da indústria européia em novos recursos vegetais e animais, desencadeadores
do extrativismo que terá na exploração da cera de carnaúba o elemento de maior
destaque pelo volume e valor. Mas tal exploração será variada, abrangendo um espectro
140
Na reunião presidida pelo Monsenhor Lopes, fizeram parte e foram signatários: Dr. Jacob Gayoso,
Manoel da Paz, Leocádio Santos, Dr. Antonino Freire, Al. Lysandro Nogueira, Dr. Raimundo de Arêa
Leão.
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muito amplo, o que terá a maior repercussão pelo ataque à biota em prejuízo das
condições de navegabilidade – já de si não muito fácil – do rio Parnaíba.
Os últimos invernos haviam sido suaves e especulava-se sobre os perigos de
uma grande seca, entre junho e agosto de 1903.
Em agosto, o jornal “A Pátria” (nº 40 – 02.08.1903) reproduzia uma resenha
crítica assinada por Xisto da Cunha sobre a obra “Os Sertões” de Euclides da Cunha,
publicada num jornal de São Luis do Maranhão. No ano seguinte da sua publicação
aquela veemente peça de denúncia do desconhecimento da realidade sertaneja e dos
erros do Governo da República sobre uma questão regional, já repercutia pelo país
inteiro chegando até o Piauí.
O mundo católico perdia o Papa Leão XIII. As artes plásticas nacionais perdiam
o pintor Victor Meireles.Noticia-se que o Liceu Piauiense possui um retrato do ex-
Imperador D. Pedro II pintado por aquele artista catarinense141.
A sociedade teresinense perdia alguns membros ilustres como o Tte. Cel.
Manoel Thomaz de Oliveira, um dos empresários da navegação a vapor no Parnaíba,
falecido em Lisboa a 16 de maio de 1903. Em janeiro falecera o Cap. Antonio Francisco
Freire, tio do Dr. Antonino Freire e sogro do Dr. Miguel Rosa. Outra sentida morte fora
a de D. Altina Couto, mãe do Dr. Henrique Couto (avó do Acadêmico Deolindo Couto)
e sogra do Dr. Clodoaldo Freitas.
Em compensação, elementos novos faziam sua entrada na sociedade local.
Dentre estes destaca-se a chegada do Dr. Eurípides de Aguiar, Doutor em Medicina pela
Faculdade da Bahia. Os Aguiar, cujo chefe era o Desembargador Helvídio Clementino
de Aguiar, residiam na fronteira Flores. Além de médico Eurípides de Aguiar teria um
destacado papel na vida política piauiense ao longo da primeira metade do século XX.
Acontecimentos sociais importantes foram alguns casamentos, conforme o
noticiário:
O ESTADO – Nº 40 – 27 de junho de 1903.
Casam-se hoje a tarde, civil e religiosamente a Exma. Sra. D. Isaura de
Castro Dantas, filha do Sr. Tenente Coronel Sinval de Castro e Silva e o Sr.
Antonio Augusto de Castro Velloso. Nossas profalças.
141
Onde andará esse retrato?
23
Recebemos – participação do casamento do nosso distinto amigo Capitão
Jeremias Arêa Leão com a Exma. Sra. D. Eulina Cardoso de Arêa Leão,
dileta filha do Coronel Cardoso.
O casamento realizou-se a 31 do mês passado na Fazenda Invejada,
residência do Cel. Cardoso com grande assistência de convidados.
ANÚNCIO
Leques de plumas, brancas e a cores, meias de cores para homens e
senhoras, colarinhos modernos, alpacas pretas e de cores, Perfumarias finas e
outros artigos. Recebeu e Vende.
Joaquim C. Branco
142
Só após as grandes cheias de 1924 e 1926 causadoras de grandes inundaç5es e prejuízos, a área
comercial mais fina, migrou para mais longe, em torno da atual Praça Rio Branco.
24
O Soldado Cidadão
25
prestar serviços junto à Secretaria de Estado do Governo, onde esteve no expediente, de
9 de julho de 1896 a 16 de julho de 1897, quando retornou à Companhia.
Aqui, em que pesem os dotes de instrução do rapaz, é bem possível que tenha
havido influencia do cunhado Satyro Pinto de Oliveira, conceituado junto aos políticos
desde os seus tempos de Secretário da Câmara Municipal. Grau de instrução e físico
delicado devem ter sido canalizados como atributos para colocar o rapaz em serviço
burocrático. A 27 de agosto de 1898, no seu segundo ano de polícia, “passou a prompto
de empregado na Secretaria de Estado do Governo sendo na mesma data empregado na
Secretaria do Comando cio Corpo”. O último ano do século vai ser de reforma na
Polícia e de melhoria para o jovem cabo. A 6 de março, sendo reorganizado o Corpo, foi
promovido ao posto de 2º Sargento e designado para auxiliar do tenente ajudante do
Pessoal, continuando, porém, a desempenhar o serviço de escrituração na Secretaria do
Corpo. Logo depois, a 28 de abril, foi promovido ao posto de Sargento Secretário, “por
merecimento e em atenção às suas habilitações e serviços prestados”.
Tão logo definiu sua situação no Corpo de Polícia, Gerson transferiu mãe (Dadá)
e avó (Luciana) da União para Teresina, mantendo as duas sob seus cuidados enquanto
viveu. Não ficou registro de onde houvesse instalado sua pequena família.
Provavelmente em alguma casa de aluguel a altura do seu soldo e não muito distante da
praça da Independência onde ficavam o quartel e a casa da irmã.
Como teria decorrido a rotina de vida do jovem Gerson Edison nestes seus
quatro primeiros anos de Polícia Militar em Teresina, exatamente os quatro últimos
anos do século XX? Não é difícil imaginar que tenham decorrido entre a caserna, a sua
casa e a casa da irmã Lydia. Satyro Pinto, seu cunhado, possuía uma grande casa na
Praça da Independência (atual D. Pedro II)143. O quartel da Polícia que, sem sede
própria andara de leu em leu, encontrava-se naquele então em casa de família, grande, e
desadaptada, no outro canto da praça. A casa de Satyro, do outro lado, na esquina
oposta ao Teatro 4 de setembro, era uma pequena chácara que vinha por toda a quadra,
em fatia que daria para três fachadas de casas médias, até a rua Grande. A casa da praça
foi a residência da família Oliveira por todo o tempo de vida de Satyro144, passando
143
Inicialmente denominada Praça Aquidaban, teve seu. destino de área aberta desde o nascedouro da
capital quando foi o bivaque do comboio trazido pelo Tte. Marques. Chamou-se da Independência, João
Pessoa após o assassinato do líder paraibano e, finalmente, D. Pedro II.
144
No meu tempo – anos 30, 40 – era a residência da Professora D. Lélia Avelino, da Escola Normal.
26
depois para a casa menor, construída na Rua Grande ainda em vida de Satyro, no meio
do terreno, tendo na esquina um pomar cheio de frondosas mangueiras (onde será
construída após a Casa do Dr. Gayosinho). Ai foi, no meu tempo de menino, a Casa de
tia Lydia, que, após sua morte, seria do seu filho Luciano.
Parece, assim, que a vida do jovem cabo-sargento girava em torno dessa praça,
já que casa da irmã e quartel estavam nos cantos opostos da mesma. O serviço
burocrático seria acompanhado de alguma rotina militar - exercidos de ordem unida,
linha de tiro, etc. É fato conhecido que o jovem, de saúde delicada, era meticuloso e
moderado nos seus hábitos. Não fumava nem bebia álcool. Apurava-se na medida de
suas estreitas posses, no vestir-se. Era meticuloso e considerado elegante, no seu porte
esguio e relativamente alto para os padrões da terra.
É certo também que tenha se esforçado muito para aumentar os seus
conhecimentos trazidos da União. Já que a Polícia naquela época não deveria ter escola
de aperfeiçoamento, deve ter sido mais um esforço autodidático. Muito dado a leitura,
gostava particularmente de poesias. Deixou vários cadernos onde selecionava em cópias
com sua bela escrita, poemas e modinhas em voga. Interessava-se em escrever, pois
logo mais vai meter-se na imprensa local. Sua vida social e circulo de relações deve ter-
se ido formando na casa da irmã, a esta altura com filhos moços e adolescentes. Era casa
movimentada. Fazia-se musica – cada sobrinho cultivando um instrumento.
Da relação completa dos filhos de Lydia - Satyro: Inhá, Humberto, Guiomar,
Samuel, Laura, Heitor, Clarice, Luciano, Gastão e Iracema, a maioria deles já nascidos
formavam a família Pinto de Oliveira naquele final do século. Parece que, dentre os
sobrinhos Gerson tinha afeição especial por Samuel, a quem chamavam Inhô e que,
mais tarde, – quem sabe até mesmo por influência do tio – entraria para o Corpo de
Polícia. E irá o destino ligar, em sua trama, os dois militares – sobrinho e tio – no
trágico fim deste último.
Fora da família e do quartel e além dos estudos deveria haver algum lazer junto
aos companheiros de armas. Os jovens políciais – como seria normal – dividiam-se
entre as festas religiosas nas três igrejas – novenas, quermesses, missas, procissões, para
olhar as moças de família e as escapadas para a beira do rio, com vista as raparigas ou
“mulheres damas”. Mas talvez nesses dois campos Gerson fosse também moderado. As
festas religiosas o deveriam atrair pelo lado social e festivo pois nunca foi
27
temperamento místico e mais adiante será agnóstico e Maçom. Quanto às raparigas
também deve ter sido senão abstêmio – por timidez ou uma certa obsessão com higiene
que parece ter sido um traço marcante de seu caráter – pelo menos discreto.
Uma noite, numa novena em S. Benedito, sua atenção caiu sobre uma mocinha
em meio a um grupo de jovens de sua idade que passeava no adro da igreja antes que a
novena principiasse. Era Júlia Dias, filha caçula do Capitão Ludgero. Mas isso já se deu
após a passagem do século e seus festejos.
Nesta crônica Júlia foi deixada em seu nascimento (12.12.1885) que implicou na
morte de sua mãe Celsa Olympia e sua entrega à Sinhá Moça (Francisca) a irmã mais
velha que assumiu o papel de mãe. Vejamos o que sucedeu à pequena Júlia e à família
do Capitão Ludgero Gonçalves Dias desde aquele momento até a passagem do século.
28
GERSON EDISON DE FIGUEIREDO – 1880-1912
Major Fiscal do Corpo da Polícia Militar do Estado do Piauí
Malgrado o grande amor que sempre nutri por minha avó, apostaria na vitória de
Yayá pois a comparação de ambas, no final dos quarenta entrada dos cinqüenta,
descontado o desgaste do tempo, mostrava que Yayá deveria ter sido mais bela. De
físico pelo menos. Talvez Júlia fosse um temperamento menos tímido e mais gracioso
que o da irmã. Aliás, após os oitenta, Yayá, atacada pela arteriosclerose dizia: o Gerson
engraçou-se primeiro por mim, mas Sinhá Moça crente que Júlia era menos bonita,
projetou-a para que ela fosse a pretendida. Minha avó achava graça e refletia: “vai ver
que durante toda a vida ela pensou isto e só agora está revelando. Coitada da Mundica,
ela sempre se fez de vítima”.
Júlia, a caçula que perdera a mãe, sem dúvida foi cumulada de mimos tanto por
Sinhá Moça – sua efetiva mãe – como pelas irmãs mais velhas. Marocas (Maria Amélia)
que foi sua madrinha de crisma, também a mimava muito. Após casar-se com o
industrial Agnelo Fernandes, e residindo em São Luis, teve a afilhada com ela por uma
29
temporada. Júlia seria não muito distanciada em idade dos filhos da irmã madrinha.
Lembro-me que ela sempre me dizia que tinha ido pela primeira vez a escola, em São
Luis, quando ali viveu uns tempos com “minha madrinha Marocas”. Calculo eu que isso
deve ter sido por volta de 1892-93, quando ela teria 7, 8 anos.
De volta a Teresina estudaria num Colégio Imaculada Conceição, sobre o qual
não achei referências. Em todo caso esta passagem foi bem concretizada através de um
pano de amostra. Este é um quadrado de 50 cm de lado, em linho belga, cheio de vários
tipos de letras e números, bordados em ponto de cruz. Os de língua inglesa designam
este tipo de bordado, do mesmo modo – “sampler” – um registro de vários tipos de
pontos e de letras para marcar roupas com monogramas. Havia um bem maior que
pertenceu a minha mãe, mas que foi estragado por um vidro de tintura de iodo que se
lhe derramou. O menor, este a que me refiro, minha avó o deu a minha prima Vilma,
sua primeira neta. No centro em meio as cercaduras marginais de letras e números está
bordado: “Júlia Dias – Colégio Imaculada Conceição. Teresina, 1898”. É bem o tipo de
bordado que as meninas aprendiam a fazer nos seus 13 anos.
Não sei se teria sido neste colégio que Júlia foi colega de D. Dulce Gayoso, que
viria a ser esposa do Dr. Américo Celestino de Sá. Em todo o caso lembro-me que
minha avó referia-se ao fato de ter sido colega de D. Dulce, de quem gostava muito.
O casamento de sua irmã Celecina, com Abílio Pedreira Veras, deve ter acontecido
por volta de 1890 pois o primogênito do casal nasceu a 17 de julho de 1892 e recebeu o
nome do avô paterno: José Alves Veras. Este foi o Zuca, apenas 8 anos mais moço que sua
tia Júlia. Foram grandes amigos por toda a vida. O primo Zuca foi um personagem muito
querido por todos e muito importante na família. Tio Abílio tinha sua casa à rua da Estrela
(atual Des. Freitas) esquina da travessa que hoje é denominada Almirante Barroso145.
Em realidade era uma grande chácara, uma daquelas do primitivo traçado da
cidade, de 40 x 40 braças, que se limitaria hoje pelo cruzamento das ruas Des. Freitas e
Benjamim Constant (perpendiculares ao rio Parnaíba) e pelas travessas 13 de Maio e
Alte. Barroso (paralelas ao rio). Durante muitos anos o terreno permaneceu propriedade
da família. Próximo a casa de esquina, a medida que se casaram as filhas mais velhas,
foram construídas algumas casas para sua residência e outras, ao longo da rua da
145
No exato local onde era a casa ergue-se hoje o Edifício Mafrense, fazendo face à Praça Landri Salles
ou Praça do Liceu.
30
Estrela, para aluguel. Até o final dos anos trinta, início dos quarenta do século atual
permaneceu esta situação após o que se deu o retalhamento e venda, já na velhice do
casal.
A rua da Glória, paralela e anterior à da Estrela, foi, no meu tempo (anos 30, 40)
o limite da área urbana central, isto é, aquela que tinha calçamento de paralelepípedos e
arborização. A rua da Estrela permanecia desnudada, sem calçamento, cheia de poças
d’água ou de lama onde os sapos coaxavam terrivelmente às noites e com abuso de
mosquitos. No final do século era pois uma chácara, na interfácie do urbano-rural. Onde
hoje é a bela Praça do Liceu (Landri Salles) era um espaço aberto que se limitava ao
norte por um afloramento rochoso, de arenitos, ao pé do qual se abria uma baixada
coberta de capim. Por tais qualidades era um espaço “de domínio comum”, isto é, onde
ao cair da tarde as pessoas deixavam os animais a pastar. Os animais eram deixados ali
“à peias”, o que, com o tempo foi atraindo os amigos do alheio que furtavam os
animais. Os ditos “ladrões de peias”. Um dia apareceu morto, com o crânio partido, um
negro e, a pastar, uma bonita égua cardã que tinha uma das alças da peia desamarrada e
o casco da pata traseira direita manchado de sangue. Desvendava-se o mistério. O negro
fora furtar a égua e esta o matara com um certeiro coice. A égua assassina ficou famosa.
E o local passou a ser chamado “Baixa da Égua”. Mais tarde foi aberto um poço, dito
“da Nação”, obra pública para o abastecimento dos moradores das vizinhanças, em água
potável. Daí foi chamado “Largo do Poço”146, denominação que ainda alcancei na
minha infância, e referencial à casa de tio Abílio.
Em frente à casa havia uma frondosa n1armorana, uma árvore muito bonita que
dava uma flor curiosa seguida de um grande fruto castanho que continha algumas
amêndoas dentro. Só crianças se atreviam a comê-las. Esta árvore foi uma espécie de
talismã ou referencial mítico para a família. Mais tarde, se construiria o prédio do Liceu
Piauiense na outra borda da faixa, no alto, além do afloramento de arenitos, entre este e
a chácara do Dr. Manoel (Mano) Castello Branco. Durante todo o meu curso
secundário, passei pela sombra da marmorana da casa do tio Abílio, diariamente, a
caminho e de volta das aulas.
146
Informações que relembradas, podem ser confirmadas na obra de A. Tito Filho “Memorial da Cidade
Verde”, Teresina, 1978. p. 67.
31
32
A CASA DA MÃE CELÉ
Residência do Coronel ABILIO PEDREIRA VERAS e sua ewsposa Celecina Dias Veras, à esquina da Rua da Estrela com o Largo do Poço
Os Pedreira e Veras eram gentes do Maranhão, vindos de Caxias para fixar-se
em Teresina. Provavelmente eram ligados à família Cruz, também caxiense, e que
desempenharia importante papel na introdução da ferrovia (Cajazeiras) e indústria
(Fiação e Tecelagem). O Dr. Gentil Pedreira, irmão de D. Francisca – mãe de tio Abílio
– foi um conceituado médico da capital na virada do século. Tio Abílio tinha o irmão
mais velho, Acrísio Veras, professor e um mais moço, Anísio que, no início do século,
era proprietário de uma das (duas) empresas funerárias da capital. Segundo um anúncio
no “0 Estado”, nº 24 de 07.03.1903, ficava situada à rua dos Negros (atual Eliseu
Martins) canto da travessa 13 de maio147. A única irmã de tio Abílio chamava-se Alvina
e era conhecida por Inhá. Foi casada com o inglês Thomas Pearce, comprometido na
navegação a vapor no rio Parnaíba. Seria, em segundas núpcias (de ambos) a mulher de
meu avô paterno Santídio Monteiro.
Tio Abílio Veras iniciou-se como mecânico na navegação do rio Parnaíba mas
teve atividades muito diversificadas, como veremos adiante. Teve o seu auge nos anos
dez, início dos anos vinte do século atual. No início do século era um homem vigoroso,
nos seus trinta anos. A esta altura já haviam nascido os primeiros filhos: José
(homenagem ao avô paterno) Celsa (homenagem à avó materna), Abelardo, Antonia
(Doninha). Talvez já fosse nascido Gerson que se houver nascido em 1900 como
parece, já testemunha a amizade firmada entre o Sargento Gerson Edison e seus futuros
cunhados.
Sendo tio Abílio um homem de posses e tia Celé muito amorosa com a família, a
casa da rua da Estrela era o centro de reuniões da família, sobretudo aos domingos,
numa tradição conservada ao longo dos anos. O Capitão Ludgero ao entrar o século
novo, já estava nos seus 67 anos e possivelmente já era reformado, pois não há
lembrança de que entre meu avô Gerson e este bisavô Ludgero tenha havido
conhecimento de caserna. Seu filho José já migrara para Belém do Pará. Seu filho
Arthur, ainda solteiro e em casa, visitaria o irmão mais adiante. Sinhozinho, no exército
e casado com a prima Marocas Braga já tinha, crescidinha, a filha única Benedita
147
A outra funerária era aquela de R. Campos & Cia. Armadores de Primeira Classe, onde o preço dos
caixões variava entre 30 e 500 mil réis. Interessante notar que, no início do século ainda se usava em
Teresina a expressão “armadores” para as pompas fúnebres, arcaísmo que subsistiu apenas no Rio
Grande do Sul. Talvez por influência açoriana ainda hoje em Porto Alegre os agentes funerários são
designados “armadores”.
33
(Didita). Sinhá Moça, agora a Dinda dos vários sobrinhos, continuava à frente da casa –
ainda de cobertura de palha – a matriz da família.
Júlia, aos 16 ou 17 anos, naquela noite, no adro de São Benedito devia estar com
a irmã Mundica e outras amigas comuns. Certamente estaria com ela sua melhor e
inseparável amiga Zuzu, apelido de Maria de Jesus da Costa Pereira. Zuzu morava
perto, numa chácara de quadra inteira, entre as ruas da Glória e do Amparo, cruzada ao
oeste pela antiga travessa do cemitério, por onde se saía em São Benedito. Era filha de
Berilo Pereira e sua esposa D. Sulica (apelido talvez de Maria Justina) que era da
família Costa. Talvez tia do Dr. Giovani Piauiense da Costa e do Major Vaz da Costa.
Zuzu tinha mais duas irmãs: Herotildes e Marcolina. Zuzu casou-se com Arthur Freire,
1lerotildes com o Sr. Sizifo Correa (dos Correa da União) e Marcolina foi segunda
mulher do Dr. João Osório Porfírio da Mota, advogado, desembargador e administrador,
futuro Secretário de Governo e conhecido homem público.
34
O jovem sargento deve ter tido em Júlia o seu primeiro amor. Júlia, de seu lado,
já tinha tido tinia paixãozinha anterior por um certo Júlio, moço rico, filho de Príncipe
Imperial (atual Crateús), aquele rico município do alto Poti que o Piauí cedeu ao Ceará
em troca daquele de Luiz Correa (antiga Amarração). Apesar de já pertencer ao Ceará
desde 1880 alguns rapazes da terra ainda vinham estudar em Teresina. Tal seria o caso
desse moço Júlio, que seria, se bem me lembro, um Correa Lima, parente de D. Júlia
mulher do Sr. Alfredo Machado, moradores na rua da Glória, não muito distante da casa
do Cap. Ludgero. Deve ter sido um namoro de longe que não foi adiante. Após umas
férias o rapaz não mais voltou a Teresina. Mas deixou em Júlia aquela lembrança de
primeiro amor do qual é difícil de esquecer. E assim ela me contou o caso porque toda a
vida fui muito perguntador e interessado no passado e no repositório de estórias e
memórias das pessoas que me eram queridas.
Talvez o namoro do Sargento Gerson com a menina moça Júlia Dias tenha
principiado em fins de 1901 ou início de 1902. No aniversário dela a 12 de dezembro de
1902, Gerson deu-lhe o diário “Violetas Poéticas” a que já me referi anteriormente148 no
qual o presente era, dissimuladamente, oferecido por “unia amiga”. Combinação feita
para que, caldo nas mãos do Cap. Ludgero, a “amiga” seria apontada como Zuzu
Pereira. Ingenuidades daqueles tempos.
O namoro progrediu com a ajuda de Celé e Abílio, de quem Gerson se
aproximara e fora acolhido com muita simpatia. Principiara uma amizade forte entre
eles. Com esses patronos não deve ter sido difícil evitar a oposição de Ludgero que se
mostrava muito exigente quanto aos pretendentes à mão de suas filhas. Mundica, por
exemplo, contava sempre com o embargo do pai, nos vários candidatos que se lhe
apresentavam. Um dos rejeitados que me recordo de ouvir os comentários foi o Sr.
Cavour Miranda149, um notável mecânico da navegação a vapor que viria a ser um
homem bem abastado, com um palacete à rua da Glória que, do final dos anos quarenta
ou início dos cinqüenta seria a sede do River Clube. Com muitos méritos a considerar, o
pretendente era rejeitado por ser um homem sem estudos, capaz de boçalidades como
aquela de referir-se a “melhas de seda”.
148
Rumo à Cidade Nascente – Cap. Campo Maior, pp. 25 a 27.
149
Amigo e colega do tio Abluo Veras o Sr. Cavour deveria ser da sua idade (1870), pois o próprio nome
está a indicar a época da popularização do conde, notável na unificação da Itália.
35
A fé de ofício do Sargento Secretário registra que a 27 de setembro de 1900
entrou ele “em gozo de 30 dias de licença concedidos pelo Sr. Governador do Estado,
para tratamento de saúde”. Deve ter sido dessa época a carta dirigida a sua mãe e
enviada da União, para onde ele fora descansar em casa de parentes. Do pequeno acervo
de cartas encontradas no baú de minha avó Júlia, esta era a única de seu período de
solteiro. Como estava muito deteriorada eu fiz uma reconstituição e colagem em papel
transparente após o que coloquei-a dentro de um livro pesado - atlas ou volume de
enciclopédia – para, com o passar do tempo, esquecer de retirá-la e trazê-la de volta
para junto das outras cartas. Foi realmente uma lástima tal extravio pois que na carta ele
se referia a vários parentes, dando notícias à mãe e a avó Luciana. Lembro-me bem que
o objetivo da viagem havia sido o de recuperar-se de um “incômodo” o qual, segundo
ele, já havia passado. Lembro-me que um dos personagens a quem ele se referia na carta
era a sua prima Pepita, que viria a ser madrinha de crisma de sua primeira filha, ou seja,
minha mãe.
Em 1901 nota-se o seguinte registro: Na ordem do dia nº 7 do dia 12 de janeiro,
com que o Major Carlos Francisco de Oliveira passou o comando do Corpo ao
Comandante Efetivo Tte. Cel. Segismundo Cícero de Alencar Araripe. Assim
expressou-se aquele oficial:
O ano de 1902 seria decisivo para o jovem Gerson. Além da descoberta do amor
afirmado ingenuamente naquela lembrança de aniversário para “a amiga” Júlia, tinha ele
que tomar uma decisão séria. Estava completando agora os cinco anos (1896-1902)
pelos quais, voluntariamente, se havia Engajado no Corpo de Polícia. A experiência a
esta altura deve lhe ter parecido válida e resolve nele permanecer e continuar carreira.
Mas suas disponibilidades eram muitas, seus anseios maiores, e além do militar havia
interesses de integração e afirmação social na cidade. Havia movimentos operários com
os quais simpatizava, havia jornais – escrever sempre o atraíra. Sentia-se predisposto a
uma vida cheia de atividade, dedicada a caserna mas participando dos eventos da
36
cidade, quem sabe integrando a vida de soldado aquela de um cidadão consciente e
responsável.
O jornal “O Estado”, no seu número 5, edição de 14 de outubro de 1902, à
página 3, registra o seguinte acontecimento:
.......................................................................................................
37
“Para chegar a conclusão negativa não me é preciso recorrer a silogismos ou
empregar grandes esforços de lógica. Os Estatutos, a este respeito, são
claríssimos e por assim dizer, não admitem interpretações”
.......................................................................................................
.......................................................................................................
.......................................................................................................
Se o Conselho, até agora, durante a sua curta administração, não praticou ou
só ato menos correto, pelo qual se pudesse por em dúvida a retidão de sua
justiça, coco compreender-se a advertência a ele feita pelo peticionário de
que, se não procedesse no presente caso com a divida justiça o futuro da
associação seria tenebroso?
É que o peticionário, convicto como estava de que, pelo direito, não poderia
ser atendido a sua pretensão quis levantar poeira aos olhos dos Conselheiros
com a objurgatória exortiva para ver se dest’arte conseguia pegar o barro à
parede.
Em conclusão sou de parecer que seja indeferida a reclamação do
peticionário Manoel José de Sousa, por ser ela contrária ao direito e à justiça,
em face dos estatutos desta Sociedade, como ficou demonstrado, pelos
fundamentos acima expostos.
Teresina, 4 de janeiro de 1903
O Procurador da Sociedade
Gerson Edison de Figueiredo
38
Mas é claro que o tipo de associação é peculiar ao tipo de operário. Tem-se a
impressão, no caso da capital do Piauí, que o operário aqui é visto como o “artista”, o
executor quase artesanal de um ofício – pedreiro, funileiro, marceneiro, sapateiro, etc. –
um tipo de mão-de-obra categorizada, que funciona “individualmente” e que apenas
desperta para unir-se sob o caráter de auxilio mútuo (mutualista) e recreativo.
No caso, especifico do meu avô – seria um militar interessado
paternalisticamente na classe operária? Seria este o caso? – ele não se detém apenas
nesta liga. Ele também será fundador do Centro Proletário, cuja sede ainda hoje ex is [e
na rua da Glória. Quando em menino, passava pela calçada do Centro Proletário, via,
pelas janelas abertas a galeria de retratos na parede atrás da mesa da presidência. Entre
os retratos havia um do meu avô, exatamente igual aquele que havia na nossa sala de
visitas, em casa de minha avó. Eu espantado perguntava se meu avô havia sido
proletário. Minha avó respondia que ele havia sido um dos fundadores do Centro
Proletário e que era muito interessado na questão dos operários. Se tiver tempo e
condições, será o caso de aprofundar uma pesquisa neste tópico que aqui, nesta crônica,
ficará apenas registrado.
Ao lado das associações operárias a vida do meu avô Gerson Edison será
marcada, também, por sua vinculação à Maçonaria, o que veremos mais adiante.
Com referência à vida militar no Corpo de Polícia do Estado, no ano de 1903 a
fé de ofício registra:
39
Era difícil de compreender esta volta precipitada da Parnaíba. Seriam razões
políticas? Deve ter sido simplesmente paixão. Havia resistências do velho Ludgero a
vencer, e um afastamento longo vinha prejudicar os seus planos de casamento.
Provavelmente firmou ele algum compromisso ou acordo de cavalheiros com os
superiores para que após resolvida a questão amorosa, retornaria ele à Parnaíba.
Retornando à Teresina em maio, menos de três meses depois, o jornal “O
Estado” nº 47, edição de 15 de agosto de 1903, à página 3, estampa a seguinte noticia.
A paixão do Alferes deveria ser algo de muito forte pelo que se depreende de
uma carta – a única disponível do período de noivado - tão inflamada e tão piegas que
demonstra que se um afastamento momentâneo era tão difícil de suportar, quanto mais a
permanência na longínqua Parnaíba (sete dias de vapor descendo o rio Parnaíba). A
carta, em papel especial, de boa qualidade, em folha dupla, 11,5 x 16,5 cm, com um
ramo de violetas impresso a cores no canto superior esquerdo da folha, não menciona
nem local nem data. Coisas de apaixonado:
Julinha
Aqui estou desde o dia 25, como um pobre condenado em cuja masmorra
não entra um raio de sol. Uma pessoa sobre quem desabasse uma montanha
não ficaria mais esmagado do que eu. O que eu sinto nem eu mesmo sei
dizer. Compreendo apenas que é uma dor extraordinária e quase sobre-
humana; um sentimento indecifrável e indefinível. Não há expressões
humanas capazes de definir o que eu tenho sofrido estes três dias, para mim
mais longos do que as noites do inferno. Só tu mesmo, minha adorada
Julinha, poderá conceber o que eu sinto. Consulta ao teu coração cheio de
ternura, conta as suas pulsações contínuas e saberás o que eu sofro.
Não terei forças para resistir até o dia 10, minha querida Julinha, até o dia 5
aí estarei a teu lado recebendo a luz vivificante d’esses teus olhos e o
orvalho do teu riso terno e casto, Desde o dia que daí saí, tenho estado a
balbuciar uma prece fervorosa e ardente para que Deus te conserve sob a sua
guarda e por isto creio que nada terás sofrido ainda.
A nossa graciosa Maria do Carmo ficou boa? Deus queira que sim. Adeus
minha formosa Julinha, até breve. Saudades do
Teu noivo extremíssimo
Gerson
40
A graciosa Maria do Carmo é, naquele então, a última nascida dos filhos de Celé
e Abílio. Maria do Carmo nascera em 1902 e era o gracioso bebê da casa dos Veras. A
relação dos primeiros filhos que se terminara com um Gerson – homenagem ao futuro
cunhado – fora acrescida de João Batista e agora com esta menina. Maria do Carmo
viria a ser a grande amiga da primeira filha de Gerson e Júlia. Morena de olhos verdes
foi a mais bela da casa e foi moça de muito sucesso na Teresina dos anos dez e vinte.
Talvez por isso mesmo, Leve muitos namorados, foi noiva algumas vezes, noivados que
se desmancharam. No final dos anos trinta, casou-se com o solteirão Odilon Nunes , de
quem foi dedicada esposa, zelando pelas suas condições de trabalho para que ele
pudesse realizar sua enorme tarefa de pesquisador e oferecesse enorme e inestimável
contribuição à História do Piauí.
O retorno de Gerson da Parnaíba evitou-lhe graves problemas já que a oposição
ao governo Arlindo Nogueira era forte naquela cidade. Ainda naquele início de maio os
jornais “A Pátria” e o “O Estado” (nº 33, de 09.05.1903) publicam telegrama daquela
cidade:
“Seguiu para o Estado do Pará o distinto moço Arthur Dias, filho do nosso
velho amigo Capitão Ludgero Gonçalves. Desejamo-lhe boa viagem”.
Era o irmão de Júlia que partia em visita ao irmão José – o mais velho dos
homens – que já se encontrava trabalhando em Belém. Deve ter sido uma viagem
experimental mas que não deve ter seduzido o rapaz que, ao cabo de algum tempo,
voltou para a casa do pai. O capitão Ludgero, agora aos 70 anos era um homem forte
que se deslocava ainda em viagens. “O Estado” nº 44 de 25 de julho – em seu noticiário
41
da página 3 - registrava que: “Regressou do interior do Estado o nosso velho amigo
Capitão Ludgero Gonçalves”.
Logo mais, em outubro, iria realizar-se o casamento de Júlia e Gerson conforme
registro no ofício de notas, Livro nº 05, do Primeiro Cartório do Registro Civil de
Teresina, PI – folha 34, sob o nº 64, onde consta o seguinte:
42
3. Um Princípio de Carreira
O Alferes Gerson Edison alugou uma casa de morada inteira na rua da Estrela
(já era Des. Freitas como se viu na certidão) mais abaixo da casa de Abílio Veras, do
lado esquerdo da rua, dito “lado do sol”, que tinha estampada sobre a porta principal,
em baixo relevo de argamassa, uma estrela de cinco pontas. Ainda alcancei esta casa de
pé e designada como “a casa da estrela”. Ali instalou-se com a jovem em companhia da
mãe (Militina) e da avó (Luciana). Ao contrário do que seria de esperar não houve
conflitos entre as mulheres. A sogra era já um tanto calada e um tanto estranha mas
ainda não se havia manifestado a depressão nervosa em que mergulharia uns poucos
anos após. A avó adotou plenamente a jovem ainda por entrar nos vinte e foram grandes
amigas, desde o início.
Não tenho idéia de quanto seria o soldo de um Alferes do Corpo Militar de
Polícia do Piauí, por volta de 1904-1905. Certamente seria baixo, mas o custo de vida
também não deveria ser tão alto, sobretudo nesses tempos de restauração das finanças
nacionais pelo Governo Campos Salles.
Em Teresina, um quilo de carne verde no mercado custava, normalmente, 500
réis, elevando-se nos momentos de crise a 800 réis. No armazém da firma Manoel
Thomaz, Irmão & Cia. Ltda., Sucessores – uma barrica de açúcar de Pernambuco
custava 34$000, uma ancoreta de vinagre nacional custava 12$000, uma garrafa de
vinho branco especial custava 2$500, um maço de linha Alexandre custava 3$600.
Talvez não fosse proibitivo ao Alferes, num arroube de extravagância, adquirir no
Centro Elegante do Sr. Juca Feitosa, algum acessório daquele variado sortimento de
“novidades parisienses” anunciadas pela loja150.
Embora muito ligado à irmã Lydia e ao genro, Gerson integrou-se muito com
Abílio e Celé. Freqüentavam-se muito e o Alferes era apreciado tanto pelo concunhado,
fraternos amigos, quanto pela cunhada. Esta tinha predileção por este cunhado que sabia
cativar a suas graças. Com sua caligrafia notável agradava a cunhada copiando-lhe as
orações e as modinhas. Gostavam muito de música. Enquanto na casa de Saturo e Lydia
fazia-se música instrumental variada, na casa de Abílio e Celé, cantava-se modinhas.
Alguns tocavam violão, inclusive Júlia que tinha bom ouvido e dedilhava
razoavelmente.
150
Anúncios publicados no “A Pátria”, nº 208, de 11 de novembro de 1905.
43
A caligrafia de GERSON EDISON segundo um fragmento do seu caderno de modinhas
44
Já as relações com Sinhá Moça não foram tão fáceis nos primeiros tempos.
Talvez Gerson não visse com bons olhos a forte ascendência dessa mãe adotiva sobre
Júlia. Não recebia de bom grado as bandejas de comida, doces, bolos e outros agrados
com que Sinhá Moça procurava cumular a filha recém salda de casa. Um dia de humor
menos feliz pediu à cunhada que encerrasse o envio de comida à sua casa pois o
sustento da família era competência do marido. Isto causou um certo mal estar entre os
dois. Quanto ao Capitão Ludgero, foi uma conquista lenta. Mas não demorou para que o
velho Capitão apreciasse o caráter altivo e os méritos do genro e a ele se afeiçoasse com
moderação. A opinião das cunhadas, outras irmãs de Júlia era variada. Tia Marocas
acompanhava Dinda (Sinhá Moça) achando-o um homem difícil, autoritário e nervoso.
Yayá Mundica seguia Celé e achava-o boa pessoa e fácil de tratar. Estes foram ecos que
chegaram a mim, quando menino perguntador queria saber a opinião de todos sobre
tudo. Lembro-me bem que Dinda não disfarçava suas reservas. Dizia-me ela; “Seu avô
era um homem de muito caráter, uma boa alma, mas, infelizmente, doente, e
neurastênico”.
Nesses primeiros tempos de vida nova de casado entre caserna, associações
operárias e vida muito mergulhada na família não houve lugar para monotonia. Casados
em outubro de 1904 os primeiros sintomas de gravidez de Júlia levaram à forte
perturbação, com enjôos, perda de peso e outras complicações. E para agravar aquilo
acontecia nos meses de seca e maior calor. Teresina, apesar de ser pequena ainda tinha
um sítio que definia um clima local peculiarmente quente. Abílio Veras costumava fazer
sair da cidade, a mulher e filhos para outro lugar mais fresco. Naquele “verão” de 1905
resolvera alugar casa no Campo Maior e para lá conduzir a família, a mulher e os filhos
menores pois os outros estavam na escola e só iriam em dezembro, no principio das
águas, com a chegada das férias. Com a aquiescência de Gerson, Celé resolveu levar
com ela a irmã Júlia para ver se ela passava melhor e se fortificava para o parto.
Além de lugar bonito, menor e mais fresco o Campo Maior era lugar ancestral e
com parentes e amigos era mais fácil não só conseguir morada como também ter uma
convivência mais agradável.
Desse período de separação, logo no primeiro ano de casado, minha coleção de
cartas inclusive – duas que Gerson dirigiu à mulher. Como costumam ser, estas cartas
revelam bem o temperamento de Gerson Edison.
45
Muito desgastadas pelo tempo, com o papel por vezes rasgado, e as vezes
incompletas, estas duas cartas revelam o que se segue:
Aqui esta carta se interrompe, pois que há apenas fragmentos da última folha.
Por esses fragmentos percebe-se, com dificuldade, algumas mensagens como:
Lembranças que manda a Lydia... e de avó Luciana ... um certo vestido preto que irá por
ele (Abílio?)... um certo burrinho que já estaria pronto a disposição dela ... (certamente
alguma das crianças de ...)
46
Não há menção a Campo Maior mas a distância para a viagem a cavalo (3 dias
aproximadamente), ajusta-se ao caso. A preocupação com a saúde da mulher e as
alternativas de volta dão idéia da meticulosidade do Alferes. O Lúcio seria um
empregado de confiança de Abílio, condutor da tropa e posto a disposição para atender
Celé naquela temporada. Precioso para mim foi a menção ao irmão José Maria
(Zézinho) no Rio Grande do Sul, deixando bem claro que sua residência era em Santa
Maria.
A Benilde (comediante) a que alude na carta, era uma prima – neta daquela
Liduina, irmã do Capitão Ludgero, cujo pai – irmão de Marocas e Hortênsia – não me
recordo o nome. Benilde Bittencourt Braga era o seu nome. Seu pai, da União casara-se
em Caxias (família Bittencourt) e lá residira. Além de Benilde havia seus dois irmãos,
Odilon e João Antonio. Este último foi coletor de renda na União em casa de quem nos
hospedamos, minha mãe e eu, uma temporada. Tia Benilde, como a chamávamos ficou
solteira e era muito prestativa. Esteve sempre ligada tanto à casa de minha avó Júlia
como a nossa própria casa. Pena que não se possa atinar se a referência a ela como
“comediante” é pilhéria, brincadeira ou censura.
Registro especial deve ser feito aqui a propósito da encomenda do livro de
Fagundes Varella. Qual teria sido o livro a que se refere? Note-se a preocupação do
polícial militar, em encomendar livros de poesias e compartilhar a leitura dos poetas, os
nossos, com a esposa. Mais interessante é o seu “desagrado” pela obra de Fagundes
Varella. Certamente o jovem poeta estava sendo comentado e ele ainda não o conhecia,
daí a encomenda. Esta opinião, como veremos, mudará. Quando, seis anos mais tarde,
Gerson vier a sofrer a perda de um filho, tal como o poeta do Cântico do Calvário, ele
irá fazer do poeta o intérprete de sua própria dor.
Três dias após aquela carta, tão cheia de recomendações, o Alferes envia outra,
desta vez apaixonada e melosa, fazendo lembrar aquela do noivado.
47
sombrios, sem um raio de sol as vezes, insípidos e tediosos sempre, as noites
trevosas, frias e intermináveis. Rara é a tarde em que posso ir até a rua da
Glória e isso mesmo para voltar logo às carreiras, acossado pela chuva.
Assim passo as tardes e as vezes os dias preso no nosso quartinho, num
marasmo estúpido, olhando através dos vidros da janella o cahir torrencial da
água nas ruas, As noites, então o martyrio ........
Já tomei horror ao leito que para mim mudou-se em cêpo de tortura. A
insônia rebelde povoa-me o espírito de visões negras e aprehensões sinistras
e o pesadello substituiu-me o repouso pelo sofrimento. E em torno de mim,
as paredes, os moveis, o tecto, o silêncio e até os próprios terrores da insônia
tudo traz-me a recordação dolorosa da ausência de um ente que és tu, minha
cabocla.
Estou sciente da tua resolução de não demorar até maio e não irei de
encontro a tua vontade. Visto isto manda pelo Lucio o cavallo, caso seja
certo que elle venha no dia 4, conforme me informou o Abluo. Caso
contrário eu alugarei um aqui e irei até o dia 15. Preciso fazer uma
ponderação – Consta-me que mudaram-se da casa em que estavam. Ignoro si
a nova casa tem acomodações sufficientes para todos. Assim, preciso que me
previnas porque si a minha estada ahi vier causar ainda maiores
incommodos, eu procurarei determinar a minha ida, de modo a demorar-me
muito pouco ahi.
Vó Luciana disse-me que acredita pouco nas tuas saudades e que só quem se
mortifica sou eu; que tu estás em muito boas companhias e mais cercada de
diversões que eu. Será assim mesmo? Eu acho que ella tem alguma razão.
Eu já tive occasião de te passar dois telegrammas, um a 19 e outro a 24.
Recebeste-os? – O Zézinho enviou para ti um retrato da Dulcelyra, Guardei-
o para te entregar quando vieres. Te escrevi a 26, enviando as pílulas que
pediste assim como uma lata de doce para a Celé e uma caixa de passas para
os meninos. Receberam?”
(Aqui se interrompe a carta)
Sabedor de que Júlia optara por retornar mais cedo para junto do marido, abre-se
ele agora nesta carta todo amoroso. As referências à rua da Glória, significam visitas à
casa do sogro e cunhados. Avó Luciana é mencionada com carinho e continuam as
notícias sobre o irmão do Rio Grande do Sul. A foto a que ele se refere, da menina
Dulcelyra, esteve no álbum de família e chegou até o meu tempo de menino. Mais tarde
viria outra foto de um garoto que havia sido batizado com o nome do tio. Há registro
também na memória familiar que Jose Maria pediria ao irmão Gerson autorização (?)
para acrescentar o “Edison” a seu próprio nome, como para que se estreitassem ainda
mais os laços entre os irmãos, tão amigos apesar de já tão distanciados um do outro.
Continua a não haver menção a Campo Maior. Mas há outros fatos que se
guardaram na memória de tão repetidos que foram. Desta temporada ficaram muitas
referências ao primo Honório, ou seja, o Coronel Honório Bonna Neto ou H. Neto com
48
ele próprio se assinava e como foi batizada a rua de Campo Maior em sua
homenagem151. Honório foi um cidadão do maior destaque no Campo Maior, onde
inclusive chefiou a Guarda Nacional. Fazendeiro tradicional foi homem de muitos dotes
inclusive musicais. Exímio flautista e acordeonista, compôs várias peças, inclusive um
conjunto de 10 valsas que eram famosas no norte do Piauí. Foi chefe político e após a
revolução de 30, ardoroso partidário de Getúlio Vargas com quem se correspondia
como chefe político local.
A menção, na carta, a uma mudança de casa, realmente ocorreu e isso para ficar
próximo à casa desse primo. Parece que era na mesma quadra. Desta temporada ficou
registrada uma anedota pitoresca, muito repetida na família. Honório era extremamente
simpático, com uma prosa cativante, muito bem informado, dotado de um excelente
humor, sempre pronto a fazer pilhérias e graças com os amigos. As rodas formavam-se,
todas às tardes, na calçada de sua residência, juntando-se ali muitos vizinhos e amigos.
Dessa “temporada” de 1904 ficou a seguinte piada.
Uma noite, reunidos à porta da casa de Honório, havia uma grande roda de
pessoas, conversando, ouvindo Honório tocar e prosear. De repente alguém distraído
soltou um sonoro peido. Na roda estava uma senhora por portuguesa a quem Honório
gostava de arreliar. Incontinente, ao ruído, disse Honório: “Senhora Maria Tereza,
contenha-se!” Ao que, indignada, responde a senhora: “Mas que calúnia, Senhor
Honorinho. Veja bem o moço que eu cá não tenho as minhas correias frouxas!” A roda
de amigos explodiu em gargalhadas. E a expressão “ter as correias frouxas” foi
incorporada ao repertório de códigos da família. Aos 28 anos de idade, casado com
Benvinda Figueiredo (Sinhazinha de apelido) o casal estava principiando a série dos
muitos filhos que tiveram.
Minha avó gostava demais desse parente e sempre se relacionou bem com o
casal e seus filhos. Quando ia a Teresina, Honório sempre visitava sua prima Júlia. Em
retorno, nas raras ocasiões em que viajava e passava por Campo Maior, minha avó tinha
uma parada obrigatória para visitar Honório e Sinhazinha. Guardei boa lembrança do
casal e recordo bem a última vez que vi o Coronel Honório. Foi em 1944 quando, de
passagem para umas férias em São Benedito, na Serra Grande (Ceará), pernoitamos em
151
Honório Bonna Neto, nasceu em Campo Maior a 8 de fevereiro de 1876 e faleceu na mesma cidade a 7
de julho de 1972, faltando apenas quatro para o centenário. Seu irmão, o Capitão Ovídio Bonna, mais
moço que ele, ultrapassou (lúcido) o centenário.
49
Campo Maior numa pensão. De manhã cedo, logo após o café, acompanhei minha avó
na sua visita ao primo Honório. Era forte, vigoroso e bem conservado nos seus 68 anos.
Após esta um tanto longa, mas gostosa, digressão, retornemos aquele abril de
1905, época de chuvas (final das águas) quando Júlia retorna à Teresina para continuar
sua acidentada gravidez.
No dia 27 de agosto daquele 1905 nascia – num parto difícil - uma menina a
quem o pai deu o nome de Gracilde152. Iniciava-se a série de filhas às quais o Alferes
Gerson Edison colocava nomes pouco convencionais mas felizmente não tanto
estapafúrdios. A primogênita, uma menina saudável foi batizada na igreja de N.S. do
Amparo, sendo padrinhos o avô materno – o Capitão Ludgero e a avó paterna – D.
Militina. Mais tarde, a madrinha do crisma seria Pepita Figueiredo, prima de Gerson, da
União.
Enfraquecida durante a complicada gravidez e debilitada pelo parto, Júlia viu-se
impossibilitada de amamentar a filha. Não houve problema, porquanto Celé, que
continuava a rotina de seus partos, dera a luz a seu sexto filho, um garoto que se
chamou Tancredo153, e passou a amamentar a sobrinha. Daí, por ter sido “mãe de leite”,
a menina Gracilde, a conselho de D. Júlia, passou a chamar aquela tia de “Mãe Celé”.
Tal designação generalizou-se, pois não somente os outros filhos de Júlia adotaram a
designação, como esta foi se alastrando pelos outros sobrinhos. Em vez da tia houve
assim uma “Mãe Celé” que dali se espalharia também aos sobrinhos netos, como eu.
“Mãe Celé” de muitos e muitos filhos. Designação que assentou bem a quem foi dotada
de uma amplo sentimento maternal e que foi muito amada por todos os seus filhos,
verdadeiros e postiços.
Por uma caprichosa coincidência o primeiro aniversário de casamento do casal
Gerson-Júlia foi comemorado rumo à Parnaíba. No dia 30 de outubro o Alferes
embarcava, com a família, com destino à cidade da Parnaíba, desta vez não mais como
delegado de polícia mas “como comandante do destacamento e agente fiscal
encarregado de arrecadação da divida ativa dos municípios da Parnaíba, Amarração e
Buriti dos Lopes”. O retorno a Parnaíba deve ser computado mais como o cumprimento
152
Somente após o casamento, quando requereu averbação do nome de casada, alterando aquele de
solteira Gracilde Dias de Figueiredo para Gracildes de Figueiredo Monteiro, a pedido do marido, foi
incluído um s ao nome original.
153
Este garotinho viria a morrer quando já principiava a andar, por ter – burlando a vigilância dos
familiares – comido o conteúdo de uma armadilha para envenenar ratos.
50
de um trato de cavalheiros entre o Alferes e seu Comandante, pois que o Governo do
Estado havia mudado. Ao Dr. Arlindo Nogueira, sucedera o vitorioso nas eleições Dr.
Álvaro (de Assis Osório) Mendes - aquele que daria seu nome à rua Grande da capital –
que, empossado a 01.07.1904 não chegaria a completar seu mandato por falecimento a
5.12.1907. Era de notável família de Oeiras, um magistrado muito respeitado. Quando
de sua eleição para Governador era Senador da República, abrindo uma vaga que foi,
por eleição, preenchida pelo Dr. Raimundo Arthur de Vasconcellos. No seu Governo
seria inaugurado o primeiro serviço de abastecimento de água de Teresina, a edificação
de várias obras públicas do porte, e ocorreu a visita do Presidente Afonso Pena (1906).
Chegado a Parnaíba em novembro, logo o Alferes tomou conhecimento das
novidades ocorridas em Teresina. O Governador Álvaro Mendes não estava bem de
saúde. Reunia-se com seus correligionários políticos a fim de escolher a chapa para as
eleições federais que se realizaram a 31 de janeiro vindouro. Isso no inicio de
novembro. O jornal “O Piauhy” na edição de 8 de dezembro estampa em manchete:
Efetua-se hoje o casamento do Dr. Álvaro Mendes com a Sra. Maria dos Anjos
Mergulhão.
Cabe aqui uma digressão. O Governador que era viúvo, vivia maritalmente há
alguns anos com esta senhora, viúva, que tornara sob sua proteção. Toda a sociedade
sabia do fato. Ao sentir a saúde ameaçada, num gesto muito louvável resolveu
regularizar a situação. Na qualidade de Governador do Estado levou a companheira ao
altar e ao juiz. D. Maria dos Anjos foi pessoa muito prezada em Teresina. No meu
tempo de garoto ginasiano a conheci, morena, mignon, de porte altivo, cabelos grisalhos
e fisionomia que guardava sensíveis testemunhos de uma grande beleza na juventude.
Vivia ela na rua do Amparo, quando principia a subida para o Alto da Moderação, numa
bela casa de esquina, numa chácara que guardava a primitiva designação da quadra no
nascedouro da cidade: As Laranjeiras. Ela gostava das maluquices do meu pai e nos
honrava em casa com sua visita.
Com a maior nitidez e a mais viva recordação relembro urna visita que ela nos
fez durante a qual narrou a minha mãe a sua romanesca existência. Desde o seu
casamento mal sucedido com um sargento da Polícia, tuberculoso e mau caráter que a
fez sofrer na cidade de Floriano onde servira. Entre a sua viuvez e o encontro com Dr.
Álvaro Mendes havia um mundo de episódios realmente dignos de uma novela. Eu
51
ouvia a tudo fascinado, sobretudo porque D. Dos Anjos era de uma vivacidade e um
poder de narração realmente extraordinário. O grande lance final, sobretudo, era
emocionante. Passara-se na sacada do Palácio do Governo, o velho, na Praça Mal.
Deodoro. Naquele dia havia ocorrido urna tragédia no rio: duas irmãs haviam se
afogado nas águas agitadas cio Parnaíba. Ela acorrera à sacada para ver passar o triste
cortejo com os corpos das moças que haviam sido resgatados às águas. Ela estava
absorta e com pena das moças. Nisso o Governador acercou-se dela e segurando-a pelos
ombros propôs-lhe casamento. Já entristecida pela tragédia das afogadas, aquela
proposta a perturbou mais ainda e ela rompeu num profundo pranto, o que assustou o
Governador. Levou tempo para que ela pudesse se controlar e explicar o seu
agradecimento. E ela terminava a narrativa com muito “brio’. “E, assim, minha filha
(dirigindo-se à minha mãe) o Dr. Álvaro, da sua posição do mais alto posto deste Estado
desceu as escadarias do Palácio do Governo para oferecer a uma rapariga pobre como
eu, o seu braço e tornou-me como legitima esposa”. Uma tal estória de amor não
poderia ser esquecida e .... a reproduzo aqui em homenagem àquela grande dama.
Logo após o casamento o Dr. Álvaro Mendes passou o Governo do Estado às
mãos do Vice-Governador, eleito com ele, o Dr. Areolino Antonio de Abreu. E a 11 de
dezembro embarcou para a Parnaíba, com o intuito de demorar-se os três meses de
licença em tratamento de saúde. Tratamento esse que provavelmente incluía banhos de
mar. O Governador retornaria ao cargo mas não se restabeleceria.
Naquele dezembro de 1905 faleceu no Rio de Janeiro, o Dr. Gabriel Ferreira, ex-
governador do Piauí, pai de Félix Pacheco e João Luiz Ferreira. Sua residência em
Teresina fora o belo Palácio de Karnak que, há vários anos era residência do Barão de
Castelo Branco.
Retomando o fio da narrativa com a chegada de Gerson na Parnaíba, aquela cidade
estava apaziguada. Os Correas estavam livres do governo de Arlindo Nogueira. Ao Cel.
Jonas de Morais Correa sucedeu-lhe na Prefeitura Municipal o seu irmão Luiz Antonio de
Morais Correa, aquele em cuja homenagem seria dado o nome ao município de Amarração.
Somando o exercício do Cel. Jonas (1901-1904) ao de Luiz (1905-1912) são mais de dez
anos de Morais Correia na Prefeitura. Um dos fatos retidos na memória da família, dessa
fase parnaibana, foi a amizade que se iniciou e firmou entre Gerson Edison e aqueles
dirigentes da cidade, solidificada pelos laços de fraternidade da Maçonaria.
52
A cidade da Parnaíba neste início de século devia ser muito interessante.
Malgrado as limitações era uni dos (poucos) portos na costa norte, e o “grande porto”
do Piauí dominando o rio, cuja navegação a vapor já havia completado seu quarto
decênio. Ainda há pouco, em 1900, havia sido criada mais uma companhia a “Empresa
Fluvial” formada inicialmente pela associação de capitais do comerciante Manoel
Thomaz de Oliveira com os coronéis Joaquim Dias de Sant’Anna e Deocleciano
Ribeiro, passando logo após a vinculação exclusiva com a firma comercial de Manoel
Thomaz e seu irmão Pedro Thomaz. Manoel Thomaz faleceu precocemente em 1903
durante uma viagem à Europa (Lisboa). Era natural do Rio Grande do Norte e fixara
residência, instalando-se no com~reio de Teresina, em fevereiro de 1887, com 27 anos
de idade, pois nascera em 1860. Logo casou-se (D. Victalina Maria de Oliveira) e teve
oito filhos154. De minha lembrança conheci o comerciante Aphrodisio Thomaz de
Oliveira (Dôta, de apelido) com a mais sortida loja de ferragens da cidade, sita à praça
Saraiva, onde ostenta tia fachada a data de sua fundação (1888); o Professor Agripino
Oliveira, que estudou na Inglaterra e foi meu professor de inglês no Liceu; o
farmacêutico Arthur Oliveira, e D. Clarice, esposa do comerciante Djalma Baptista. Por
morte de Manoel Thomaz, que seria homenageado, dando nome a um dos vapores da
Companhia Fluvial, a navegação continuou sob seu irmão Pedro Thomaz que irá
associar-se ao inglês Thomas Pierce, fundando a firma Oliveira, Pierce & Cia.
A navegação a vapor florescia, havia grande animação de lanchas e as grandes
barcas ou alvarengas subiam e desciam o rio em comboios puxados pelos vapores, que
levavam passageiros. O comércio da praça era o mais ativo do Estado e ali se haviam
instalado firmas européias dentre as quais já se destacava a Casa Inglesa. A história
dessa firma - a quem se deveu a lançamento da cera de carnaúba na Europa e na
América – em si mesma, seria uma crônica à parte, pela importância que teve na história
econômica do Piauí. Parece que, ao iniciar-se o século ela era ainda um conglomerado
de sócios numa firma inglesa com alguns sócios residindo na Parnaíba. Por esta época o
de maior projeção era ainda o velho Paul Singlehurst que teria sua própria firma de
comércio e navegação, armando navios para o longo curso e para o rio Parnaíba,
conforme registrei no volume anterior desta crônica. Mais tarde um jovem funcionário
154
Estas informações foram coligidas a partir do necrológio publicado no jornal “O Estado”, nº 35, edição
de 3 de maio de 1903. Sua morte ocorreu em Lisboa a 16 daquele mês de maio.
53
James Frederik Clark, assumiria a direção. Aqui casou-se com uma moça da sociedade
local, D. Magdalena Castello Branco, criando uma ilustre família da Parnaíba.
Posteriormente seria homenageado pela cidade com um busto erguido sobre uma
alegoria da palmeira (carnaúba) cuja cera ele tivera importante papel na sua
comercialização.
Havia firmas alemães e francesas. Dentre estas a Casa Francesa de Martin
Hoyer. Falavam-se línguas estranhas, o que confundia os nativos para quem tudo era a
mesma “estranja” sem atinar com diferenças de nacionalidades e línguas. E os tipos
populares da época davam demonstração disto em cenas pitorescas, algumas das quais
recolhidas por Alarico da Cunha, um importante intelectual parnaibano da primeira
metade do nosso século155.
O negro Amaro (Augusto Ribeiro) um ex-escravo do Cel. João Adelino Ribeiro,
e que depois de liberto empregou-se na Casa Inglesa como criado de quarto do velho
Singlehurst – e que era dado a grandes porres durante os quais fazia discursos pelas ruas
- quando mais sóbrio contava vantagens de sua convivência com os ingleses. E discutia,
divergindo da velha Joana, serviçal da Casa Francesa. E armava-se a confusão, sob a
grande figueira próxima ao Porto das Barcas no centro da Parnaíba:
155
O diálogo entre Amaro e Joana, retirei de uma crônica de Alarico da Cunha, publicada sob o título
“Tipos Populares na Cidade e. no Sertão (Folclore)”, no Almanaque da Parnaíba de 1935, a página 121.
O acréscimo me foi contado pelo filho de Alarico (Jehoshua Buda) que foi meu colega no curso
científico no Liceu (1943), em Teresina.
54
“Inglês E bicho besta! Chamar navio de ‘estima’ ainda vá lá. Quem tem um
bicho daqueles, caro tem mesmo é que estimar ele. Mas ‘água’ uma palavra
tão fácil de dizer, eles diz é ‘uóta’. Vô-te!”
Foi nessa animada e comercial Parnaíba que nasceu a segunda filha do casal.
Malgrado as atribulações do primeiro parto de D. Júlia, apenas dez meses após, nasceu,
a 24 de outubro de 1906, a menina que se chamou Dulceide. E toda a vida ela teria
muito orgulho em ser Parnaibana, arengando com irmãos e primos que cultivavam o
bairrismo e a rivalidade entre a capital e a primeira cidade do Piauí. O batismo foi
realizado, no retorno à Teresina, tendo sido padrinhos da menina o médico Dr. Marcos
Pereira de Araújo – irmão de Justina, mulher do Cap. Cincinato de Arêa Leão e
Guiomar, segunda filha de Lydia e Satyro, garota ainda.
A vida na Parnaíba foi relativamente tranqüila. Numa época de mesas de renda
ainda escassas e Uni serviço bancário nacional quase inexistente o trabalho mais sério
era a coleta e expedição das arrecadações devidas pelos três municípios dos quais o
Alferes estava incumbido. Para romper com esta tranqüilidade ocorreu um episódio de
captura de bandido que o chefe de polícia solicitou ao Comandante do destacamento do
Corpo Militar de Polícia e que assim está registrado em sua fé de ofício:
55
O estado de saúde de Dr. Álvaro Mendes agravara-se. Com o seu falecimento no
cargo, assume o seu substituto legal o Vice-Governador Dr. Areolino de Abreu. Esta é a
grande noticia da edição do “0 Piauhy”, nº 932 de 06.12.1907, uma edição especial em
homenagem ao governador falecido.
Mas o rasga-mortalhas ou outra ave de agouro devia andar rondando o Palácio
do Governo, pois o Vice-Governador enfrentaria o mesmo problema – doença, licença e
morte em exercício.
O Alferes, reassumira a função de Secretário do Corpo e agora se reinstalara
com a família. Desta vez numa casa dando frente para o grande largo onde se localiza a
igreja de São Benedito, ficando mais próxima do Quartel. No cruzamento da própria rua
Grande com a antiga travessa do Cemitério. Ainda alcancei esta casa que tinha uma
característica. Uma calçada muito alta, pois que a casa havia sido edificada antes do
movimento de terra que se fizera para o largo. Ali, àquela altura, notava-se a borda do
terraço mais elevado, que é bem marcado na Avenida Frei Serafim (atrás de São
Benedito) e no Alto da Moderação, subida da rua do Amparo.
Com a entrada do ano novo de 1908 o Alferes Gerson Edison iria ver-se
envolvido num episódio, aparentemente insignificante mas que poderia ter degenerado
em sério conflito político no Estado do Piauí. Transcrevo, a seguir, o relato sumário do
caso tal como está narrado por A. Tito Filho156.
156
A. Tito Filho – “Governos do Piauí: Capitania, Província, Estado”. 3.ed. – Teresina, 1978, p. 44.
56
O registro da “fé de ofício” do Alferes ajuda a compreender o papel deste no
referido episódio.
157
A descendência do Dr. Areolino não se resume a estes dois. Além de Vladimir, havia mais Murilo,
José e Areolino e, das moças, além de Jacira, havia Durcila (mulher do farmacêutico B. Sá) e
Maroquinhas, que ficou solteira.
57
um colégio particular em Teresina, nos anos vinte – e Jacira, esposa do Cel. Filinto do
Rego Monteiro, chefe político, prefeito da União. Dr. Vladimir morreu moço. Mas
conheci e tenho boas lembranças da casa do casal Filinto-Jacira na União, onde vivi em
pequeno. Alcancei também a própria Mocinha, em sua casa na rua do Amparo - que
recebeu o nome do seu marido – pois minha avó e ela continuaram amigas e se
visitavam habitualmente. Lembro-me bem que tia Mocinha – como a chamávamos – era
um tanto gordinha, ofegante e, quando aflita costumava gaguejar. Da mesma geração da
minha avó guardaram na velhice, o hábito de vestir do inicio do século, com as saias ao
pé.
58
que firmara amizade com o jovem Santídio Monteiro no Rio de Janeiro, nos anos
noventa. Já havia sido Secretário de Estado de Obras Públicas e breve seria Governador.
O rasga-mortalha continuava pousado no Palácio do Governo e logo o Dr.
Anísio seguia, em licença, para o Rio de Janeiro, em tratamento (06.08.1908 a
15.01.1909), período em que foi substituído pelo Vice Antonio Freire. Antes da partida
do Governador licenciado, a 6 de agosto, no dia 3 o Tenente Gerson deixara o comando
da 3ª Companhia, seguindo para a Vila de Periperi como delegado de polícia e
comandante do destacamento.
Sua fama de corajoso e valente já se firmara na corporação e este novo encargo
ligava-se à repressão de urna série de “criminosos e bandoleiros” que vinham agindo no
Norte do Estado. Periperi, ainda urna vila, seria o centro de ação escolhido para que a
polícia “mantivesse a ordem”.
Tratava-se, evidentemente, de uma missão perigosa, que deveria manter o
tenente em diligencias pelo interior Com um recém-nascido e mais duas crianças
pequenas não era prudente que D. Júlia o acompanhasse, pelo menos no início. Sua
missão duraria pouco mais de um ano (13.08.1908 a 27.09.1909) e é certo que D. Júlia e
filhas juntaram-se ao chefe da família em Periperi, mas isto ocorreu alguns meses
depois e não sei se pelo resto do período. Mas a casa do largo de São Benedito foi
conservada, o que significa que a missão era temporária. Lembro-me que minha avô
falava muito dos seus dias em Periperi, das aflições por que passara. Mas relembrava,
com carinho, as boas amizades que fizera, notadamente com a família Rezende. Deve
ter sido urna temporada muito árdua para o tenente, aquela de Periperi e as atividades
são tais que vale a pena seguir o que está registrado em sua “fé de ofício”
59
proveitosas diligências, pessoalmente dirigidas e pelos importantes serviços
prestados à Justiça e à Sociedade com a prisão de criminosos que infestavam
os municípios de Periperi, Itamarati, Piracuruca e Campo Maior. A 23 saiu
às 10 horas da noite, em diligência, capturando, no dia seguinte, no
município de Campo Maior os criminosos de morte: José Carneiro dos
Santos e João Rosa de Souza, com os quais regressou a Periperi. Em 1909.
Janeiro. A 1º seguiu em diligência para o município de Barras onde prendeu
o criminoso de morte, José Luiz de Souza, regressando no dia seguinte a
Periperi, A 5 seguiu para o lugar Sant’Ana, do município de Barras e
seguindo daí ao encalço do célebre criminoso Raimundo Mamão foi capturá-
lo em a tarde do dia seguinte no lugar “Alegre” do município de Itamarati;
regressou a 7 a Periperi sendo louvado por telegrama do Sr. Dr. Secretário de
Estado da Polícia, pelo bom êxito desta importante diligência. Seguiu a 31
em diligência para o Sitio ‘S. Luiz de Baixo’ do município de Itamarati, na
manhã do dia seguinte efetivou-se a prisão dos criminosos Felix Cardoso de
Macedo e Joaquim Cardoso de Macedo, depois de renhida luta provocada
pela resistência dos criminosos e irmãos destes, resultando a morte de um. A
5 regressou a Periperi. A 14 seguiu em diligência a Itamarati, regressando a
15. Março a maio. Sem alteração. Junho. A 1º seguiu por ordem do Governo
do Estado, em comoção da fazenda pública estadual, no município de
Piracuruca, regressando a 15 à vila de Periperi. Julho e agosto. Sem
alteração. Setembro. A 2 seguiu em diligência para o município de Itamarati,
regressando à vila de Periperi a 14. A 27 deixou a delegacia de polícia e o
comando do destacamento de Periperi, seguindo para o Corpo. Outubro. A 1º
apresentou-se ao Corpo ficando dispensado de serviço por 10 dias.
Apresentou-se para o serviço a 10, ficando por ordem do Governo do Estado
à disposição da Secretaria de Polícia, para dirigir o Serviço de Policiamento
da Cidade.”
158
Sei, ao certo, que o ano de 1905 não há jornais disponíveis, pois, por ser o ano do nascimento de
minha mãe, procurei localizar os eventos daquele ano. Talvez haja “O Piauhy” nos anos 1908-09, ou
talvez tenham sido postos fora de consulta. Seria preciso retornar ao arquivo.
60
Mas seria o caso de se pesquisar esta “onda” de casos de “perturbação da
ordem” ocorridos em 1908-09. A posição e o sitio de Itamarati (atual Pedro II) são
compreensíveis quando lembramos que a topografia dos festões de chapada que são a
Serra dos Matões e sistemas a ela associados favorece o esconderijo e defesa dos fora da
lei.
Mas qual seria a causa capaz de gerar esta série de insubordinações ou
“banditismo”? Note-se que, em dois casos (Bringel e dos Santos) os perseguidos pela lei
são irmãos. Que estaria acontecendo? Atrevo-me a fazer uma indagação que,
evidentemente não tenho meios de responder mas que poderia ser tomada como
“hipótese” para uma pesquisa posterior. Não seria uma reação de pessoas do campo
atingidas por alguma mudança no meio rural? Lembremo-nos de que, por esta época
está se desenvolvendo a exploração dos carnaubais para a extração da cera. É inegável
que este outro ciclo econômico regional, iria introduzir alterações sensíveis numa vida
rural dominada pela pecuária extensiva e por uma agricultura pontual ou linearmente
realizada – para o algodão (comercial) e para a subsistência. Uma subsistência que,
agora já se dirigia não apenas às fazendas mas às vilas e sobretudo às crescentes
cidades.
A exploração da cera de carnaúba era feita por “arrendamento” dos carnaubais,
se bem que, em alguns casos, o era pelo proprietário. Mas parece que isso foi mais a
exceção que a regra. No geral adotava-se o sistema de “arrendamento”. Isso virá
aumentar a decadência da pecuária posto que os fazendeiros tornar-se-ão cada vez mais
absenteístas. Muitos deles, vivendo na cidade, mantêm, por tradição e inércia, uma
pecuária, entregue aos vaqueiros. A renda agora lhe cairá nas mãos, líquida, proveniente
do produtor de cera.
Qual teria sido a conseqüência da exploração desse novo recurso natural na
estruturação agrária e sobretudo no gênero de vida da população rural? Por uma lado
abriram-se novas frentes de trabalho – pois há os catadores de folhas durante a safra
(auge da seca) e toda um mão de obra, não muito numerosa mas, de certo, significativa
para mudar os hábitos e rotina de vida, no processo de extração e beneficio da cera. Por
outro lado, o arrendamento dos carnaubais deve ter induzido alguma repercussão social,
quem sabe “pressão” para desocupar as terras arrendadas, criando conflitos com antigos
61
posseiros ou simples moradores “servos da gleba”. Como se vê trata-se de um
interessante tema à investigar.
O lado “militar” da missão repressiva não pode ser dissociado do que ela
representou em esforço e desgaste físico do Tenente Gerson que já era frágil de saúde.
Na realidade foram oito diligências, totalizando 24 dias efetivos de campanha, algumas
delas realizadas sem intervalo, ou, sempre com espaçamentos que não seriam
suficientes para recompor as forças. Acrescente-se, ainda que elas ocorrem do final do
período seco (novembro, dezembro de temperaturas muito elevadas) para o inicio do
período chuvoso (janeiro, fevereiro) onde se produzem fortes aguaceiros, torrenciais por
vezes. A última diligência, durou seis dias inteiros, com luta, troca de tiros e até morte
de um dos perseguidos. Tudo isso, a cavalo, não raro acampando ao relento. Por esta
campanha, que lhe valeria elogios, encômios e até promoção, ele pagaria o alto preço
pelo que lhe afetaria a saúde.
A família reinstala-se na casa do largo de São Benedito, esquina da rua Grande.
Após o nascimento de Zeneide (21 de março de 1908) e esta volta a Teresina (outubro
de 1909) aconteceram dois nascimentos cujas datas não sei precisar mais. Uma menina
– que se chamou Dinaura – não sobreviveu aos dois meses vitima de desidratação. O
outro foi um momento de glória para o Tenente, pelo nascimento do primeiro filho
homem que recebeu o nome integral do pai. Foi um belo garoto alourado que morreu de
meningite quando principiava a falar. Mais adiante veremos o efeito que esta morte
representou para Gerson, em cartas datadas de abril de 1911. Pelos meus cálculos
estimativos num intervalo de dez, onze meses entre os partos que vinham se firmando
entre o casal, Dinaura deve ter nascido em dezembro de 1908 e Gersinho em setembro
ou outubro de 1909.
A perda da quarta filha deve ter sido superada pelo nascimento do menino. A
escadinha de crianças, pouco espaçadas, a partir de Gracilde aos 4 anos, compunha urna
família feliz. A menina Zeneide era a graça da casa, sobretudo por ter uma linguagem
muito complicada a ponto do pai divertir-se em compor um “dicionário” da língua
falada pela filha, que era muito agarrada com o pai a quem chamava “Sinhô”.
A 20 de novembro daquele 1909 (já após o nascimento de Gersinho) durante o
comando interino do Corpo pelo Major Agostinho Ferreira de Castro, Gerson foi
62
chamado de volta para superintender o Expediente da Secretaria do Comando. Ao
retornar à chefia do policiamento da capital (25.11.1909) é elogiado pelo comandante
159
Houve aqui uma questão a registrar. O substituto legal, ou seja, o Vice-Governador, que era o Dr.
Antonino Freire, condicionou a sua presença no poder mediante uma confirmação pela escolha dos
deputados. Isto ocorreria somente a 20 de janeiro do ano seguinte. Daí sua posse ter ocorrido a 15 de
março de 1910.
63
até 15 de março. A fé de ofício não registra o motivo. Embora não se mencione para o
tratamento de saúde, no seria de admirar que o tivesse sido.
É bem provável que esse período de doença tenha sido aquele no qual as
relações entre Júlia e sua cunhada Lydia vir-se-iam abaladas. O incidente, tal como me
relatou minha avó deu-se do seguinte modo. Guardando o leito, adoentado, Gerson
recebeu, por um moleque da casa, um bilhete de sua irmã Lydia. Vinha em envelope
fechado e assim foi-lhe entregue por Júlia. Voltando esta a seus afazeres, mais tarde ao
levar unia mezinha ao marido, notou que, o bilhete fora rasgado em pedaços e jogado
dentro do urinol de louça160. O fato de ter rasgado o bilhete sem comentar o conteúdo do
mesmo aguçou a curiosidade da esposa. Quando, mais tarde, retirou o urinol do quarto
para limpá-lo, Júlia pacientemente reconstituiu, pedaço por pedaço, como num quebra-
cabeça, o bilhete no qual a cunhada oferecia ao irmão os seus cuidados pois que ela não
confiava que a esposa estivesse cuidando do irmão com a necessária eficiência. Se já
não havia muita simpatia entre as duas, as relações entre elas, a partir desse incidente,
esfriaram ainda mais.
A 20 de março, cinco dias após a posse do Dr. Antonino Freire foi, por ato deste
Governador, promovido ao posto de Capitão. Seguindo-se a fé de ofício, encontra-se:
160
Este urinol de pesada louça inglesa foi peça que acompanhou a família por muitos e muitos anos. Acho
que até minha saída para o Rio de Janeiro (1945) ele ainda existia, ao serviço pessoal de minha avó,
sempre junto à sua rede.
64
Na eleição de 1º de março, Hermes da Fonseca derrotara fragorosamente Ruy
Barbosa161, inaugurando um período de grande agitação nacional, irradiando da Capital
Federal para todos os Estados, em muitos dos quais houve intervenções.
Em Teresina, onde a receita municipal já atingira os cem contos de réis, fora
feita exigência de matricula para os carros e carroças que trafegassem pela cidade. O
Engenheiro José Pires Rebelo, realizara obras de vulto na capital e acabara de inaugurar,
em meio a festejos e regozijo popular, o novo jardim público na então Praça Uruguaiana
(atual Rio Branco), após o que, passara a Secretário de Estado de Obras Públicas,
deixando a Prefeitura Municipal às mãos do Sr. Adão de Medeiros Soares. As novas
eleições para Intendente, realizadas a 18.08.1910 conduziram ao cargo o Dr. Thersandro
Gentil Pedreira Paz, farmacêutico, comerciante e industrial. Sob os governos de
Thersandro e Antonino, a capital iria ter um dos períodos mais florescentes, pelas obras
importantes que foram realizadas dentre elas, o imponente prédio da Escola Normal,
com a Escola Modelo.
Os festejos da inauguração do jardim público não abalavam ainda o rumoroso
caso que se produziu entre o vigário da igreja de N.S. do Amparo – Monsenhor Joaquim
Lopes - e o Governo. Durante as obras da praça Uruguaiana, acusara aquele vigário, ao
Engenheiro Antonino Freire de atacar seriamente a estrutura do santuário. Em março de
1909, produziram-se sérios incidentes que serviriam de estopim à luta de certa parte da
igreja contra a Maçonaria e o Governo, que irá atravessar os governos Antonino Freire e
Miguel Rosa, e sobre os quais me deterei mais adiante.
Estes fatos ocorreram enquanto o então Tenente Gerson estava em Piripiri,
capturando os “fora da lei”. De setembro de 1903 até setembro de 1910 houve um hiato
de tranqüilidade na família. Deve ter sido ao final de 1909 que esta esteve em festa, pois
celebrou-se o casamento de Celsa – a primeira das filhas de tios Celé e Abílio Veras –
com o Sr. Francisco José dos Santos e Silva, filho do comerciante José dos Santos e
Silva e D. Maria Victoria Castello Branco. Era, portanto irmão de José Faustino, o
militar, a quem já me referi atrás, como amigo de Santídio Monteiro. Nascida
provavelmente em 1894, Celsa teria cerca de 15 anos, o que era comum naquela época
como idade de casar. O primogênito José Alves Veras (neto) era de 1892, estando, à
161
Segundo o jornal “O Piauhy” em sua edição de 8 de abril, o resultado da eleição presidencial no
Estado do Piauí, fora o seguinte: Marechal Hermes da Fonseca 12.176 votos e Ruy Barbosa 2.057
votos. Para Vice-presidente, Wenceslau Braz 12.137 e Alfredo Ellis 1.115 votos.
65
época do casamento da irmã, com 16 para 17 anos, prestes a partir para a Inglaterra,
com destino a Liverpool onde o pai intentava formá-lo engenheiro mecânico. O jovem
Francisco José seria conhecido toda a vida pelo apelido de “Santinho”. Por ser uni bebê
muito bonito, rosado e miudinho, a mãe e as tias, muito devotas, logo o puseram aquela
piedosa alcunha. Santinho era baixo de estatura, com tipo físico lusitano, rosado e
rechonchudo.
O novo casal da família – Celsa e Santinho – repetiriam em bondade e carinho,
numa espécie de segunda edição, o desempenho do casal Celé e Abílio, para a família.
Santinho prosperaria no comércio e indústria da capital, tendo o seu apogeu nos anos
dez e vinte do presente século. Em julho de 1910 nascia-lhes o primogênito, que
receberia o nome integral do avô paterno José dos Santos e Silva, neto. O mesmo,
conhecido por Zuquinha, abrir ia a série de quatorze filhos vivos do casal. Celsa
ultrapassaria a mãe Celé no numero de filhos.
Ao lado desse evento alegre, pelo lado da família de Júlia, havia, em contrapartida
um outro sombrio, que entristecia a casa do agora Capitão Gerson. Sua mãe, D. Militina
(Dadá), que já era sujeita a crises de depressões, agora mergulhara de todo nas brumas do
silêncio e da alienação. O que seria, ao certo, não sei definir, pelo que se contava em
família. Era silenciosa, triste e calma. Seria depressão nervosa? Seria caso de
esquizofrenia? Seu estado que já era de dispensar cuidados se agravara após a perda da
mãe. Avó Luciana, que era mencionada nas cartas de 1905 não o será mais naquelas de
1911, que veremos a seguir. Imagino que sua morte deva ter ocorrido naquele período em
que Gerson se achava em Periperi, quando mãe e avó ficaram com Lydia.
A presença da sogra, embora dócil, não deixava de inspirar cuidados. Sobretudo
após o dia em que foi encontrada debruçada, numa espécie de êxtase, contemplando os
belos olhos azuis da neta Zeneide, tendo à mão uma tesoura. Malgrado o desdobramento
na atenção e vigilância, Dadá permaneceu sob o teto do filho durante todo o tempo em
que este viveu.
66
O PRIMO ZUCA
JOSÉ ALVES VERAS, filho primogênito do Cel. Abílio Pedreira Veras e sua esposa Celecina Dias Veras. Foto
enviada da Inglaterra como cartão de Boas Festas para o ano novo de 1911, quando tinha 19 anos de idade.
A PRIMA CELSA
CELSA VERAS E SILVA, SEGUNDA FILHA DOS TIOS Abilio e Celsa e esposa do Capitão Francisco José dos
Santos e Silva, em foto tomada aos meus 17 anos, após o nascimento de Zuquinha, o primogênito.
67
A ascensão ao posto de Capitão, aliado à confiança que nele depositava o
Governador Antonino Freire, irá envolvê-lo em nova e importante missão. Passemos à
narrativa de sua fé de ofício:
“Setembro (1910). A 11 foi, por ato do Exmo. Sr. Dr. Governador do Estado,
nomeado delegado de Polícia na cidade de Picos a fim de tomar
conhecimento de alguns acontecimentos naquela cidade, para onde seguiu a
12 conforme consta ordem do dia o’ 86 daquela data, artigo 5 do detalhe 12.
Chegou a Picos a 21, assumindo, no dia seguinte o exercício do Cargo de
Delegado e Comandante do Destacamento. A 26 a noite seguiu em
diligência à vila de Simplício Mendes, onde chegou a 29 pela manhã
regressando, no mesmo dia, a Picos, Novembro. A 19 seguiu em diligência à
cidade de Jaicós, afim de inspecionar, por ordem do Governador do Estado,
a cadeia e o respectivo destacamento, regressando, no dia seguinte, a Picos.
A 25 deixou o exercício do cargo de Delegado de Polícia e o Comando do
Destacamento e seguiu para a cidade de Oeiras, onde chegou na tarde do dia
26, inspecionando, no dia 27, o destacamento e a cadeia. A 29 seguiu para a
cidade de Valença, permanecendo 8 dias nesta cidade, inspecionando o
destacamento, a cadeia e percorrendo o município, capturando criminosos,
Dezembro. A 9 partiu de Valença com destino ao Corpo onde se apresentou
a 13, ficando dispensado do serviço por 8 dias.”
No dia 10 havia nascido seu sexto filho, uma menina que receberia o nome de
Gersila, que teve como padrinhos o médico Dr. Antonio Luis de Arêa Leão e Raimunda
Dias, a Yayá, irmã de Júlia. A licença de urna semana, se foi suficiente a festejar o novo
rebento e brincar com os outros filhos, não deve o ter sido a descansar o corpo
enfraquecido, nessas longas e penosas viagens a cavalo pelo sul e centro do Estado do
Piauí.
Se agora nesta missão, foi mencionada a “captura de criminosos” no município
de Valença, este fato seria exceção pois que a missão revestia-se de caráter nítido de
estratégia política. Entre o Exército – ainda quase ausente – e a Guarda Nacional,
decadente e completamente voltada aos currais eleitorais dos senhores de tera7a, cabia
ao Estado apoiar-se na Polícia Militar. Partindo de uma missão de apaziguamento
político entre forças oligárquicas antagônicas em Picos162 e repressão em Valença, havia
o objetivo principal de analisar o estado efetivo das guarnições locais e cadeias públicas.
Aproximavam-se as eleições para o governo dos estados e, no quadro da política do
Marechal Hermes, o governo “deveria garantir as eleições”.
162
Picos já era um dos mais destacados municípios rio Sul do Estado, notadamente por sua produção
agrícola, mercê da ocorrência dos mais ricos “baixões” do sertão Piauiense. Para ali convergia um
núcleo de colonização italiana que se notabilizou pela introdução da cultura do alho. Aliás um tema que
– por sua peculiaridade – está a merecer um estudo.
68
Retornemos à fé de ofício, na qual se registra o julgamento de mérito da referida
missão.
“1911. Janeiro. Por ato de 15, do Exmo. Sr. Governador do Estado, foi
promovido ao posto de Major Fiscal do Corpo, conforme fez público a
ordem do dia nº 96, da mesma data. Na referida ordem do dia, manifestando
a sua satisfação por essa promoção, disse o Sr. Tte. Cel. Comandante que ela
‘nada mais indicava que confiança e consideração que o Governo do Estado
depositava na pessoa do promovido e um prêmio a seus reais serviços ao
bem público’. O Comandante do Corpo Sr. Tte. Cel. Antonio da Costa
Araújo Filho, louvou-o pela ‘comprovada inteligência, zelo, dedicação e.
incomparável atividade que sempre demonstrou no cargo de Ajudante onde
prestou os mais relevantes serviços e tornou-se um dos mais evidentes
cooperadores na obra patriótica do Estado, junto a pessoa daquele
comandante que nele via um dos seus mais dignos e esforçados auxiliares’ e
esperava que no novo posto a que fora elevado, continuasse a prestar-lhe ‘a
sua imprescindível cooperação com a mesma boa vontade e dedicação com
que se houve até então’”.
69
meningite. Parece que a morte de Gersinho ocorreu em março, mês em que a família
celebra os aniversários do Major Gerson e da terceira filha, Zeneide, ambos no dia 21.
Lembro-me bem da grande -foto tomada do garoto no seu esquife de “anjinho”.
Era uma bela criança, vestida de anjo, com a fronte cingida por uma grinalda de
pequenas flores, que parecia adormecida. O menino bisbilhoteiro que eu era, volta a
meia pedia para “ver o retrato do tio Gersinho que estava no céu”. Era “outra”
manifestação de “morte” que – aliada àquela do próprio avô – carregava a atmosfera de
perda e frustração que envolvia a casa de minha avó materna.
Os guardados do baú de minha avó preservaram três cartas do próprio punho do
Major que expressam muito bem o profundo golpe a que foi submetido aquele pai. As
cartas são dirigidas a sua mulher Júlia, minha avó, enviada, com as demais crianças para
fora de Teresina, para refazer as forças após aquela inestimável perda. Novamente aqui
– como naquelas cartas de 1905 – não é feita menção ao lugar para onde se recolhera a
família. Paira uma dúvida se teria sido São Pedro ou Campo Maior. Mas é bem mais
provável que tenha sido esta última, sobretudo pela menção a personagens, portadores
de cartas e noticias. Desta vez, D. Júlia estaria desacompanhada de Celé. A Raymunda,
mencionada, não deveria ser a irmã pois o cunhado a tratava por Mundica. É provável
que se tratasse de uma “cria” ou mucama de Sinhá Moça, designada para acompanhar
Júlia e filhos. O São Joaquim, ai mencionado como uma pousada intermediária na
viagem a cavalo, ainda não consegui identificar. Certamente será a fazenda de algum
conhecido.
A primeira carta é, toda ela, um grito de dor pela perda do filho e projetando
cuidados para a preservação das filhas.
“Theresina, 21-4-1911
Júlia
Foi hontem a primeira noite desde que aqui cheguei, que deixei de escrever-
te. Estava sob o guante da minha enxaqueca habitual. Em compensação fiz-
te hoje à tarde uma ligeira cartinha pela condução do Miguel Rosa.
As minhas cartas tem servido, talvez, para aregimentar as tuas máguas. Mas,
que queres, cara amiga? Sinto uma imperiosa necessidade de desaffogar as
apprehensães de minha alma dorida, dizimando minhas máguas no teu
coração amigo. É ........ levado a falar-te do nosso inesquecível filinho em
todas as minhas cartas, tanto mais quando não um atraso de viva voz
comunicar-te a minha dor. Sim, minha chorosa companhia ................
.................. (três linhas rasgadas, ilegíveis) ..........................
70
...........................................................................................
vibra nos espasmos da dôr, explodindo um amargurado pranto. Nem tu
immaginas as vezes que tenho me refugiado as pressas para ocultar as
minhas lágrimas. Em nossa viagem para ahi muitas foram as vezes em que
sentia fugir-me as forças ante a lembrança persistente daquele filho, cuja
ausência ali me fazia sentir em torno a desolação de um enorme fracasso(!)
...........................................................................................
Sentia quão ditosa seria aquella viagem se nos meus braços tivesse aquelle
corpo idolatrado e o meu rosto affagasse aquella cabecita loura, si os meus
olhos contemplassem aquella vivacidade – gracil e esperançosa; si os meus
ouvidos se deleitassem com aquella doce e infantil voz a chamar cheio de
doçura o seu papai Derso! Oh! Quantas e quantas vezes minha Gracizinha
não me fez explodir o peito relembrando-me com voz sentida phrases delle,
ora o gosto que elle tinha de andar a cavallo, ora o que elle diria si ali fôsse,
sentado na lua da minha sella! Quantas e quantas leguas andei em completa
abstração, absorto na saudade dilacerante desse filho cuja morte despedaçou-
me o coração. E agora na minha volta, que tristeza e que solidão. Por muitos
lugares passei sem dar por elles, tanto as minhas dolorosas meditações me
tornaram desapercebido de tudo que me cercava. E a noite em S. Joaquim,
nem mesmo o enfado da viagem conseguiu dominar-me abafando o meu
sentir. A presença do filho mais novo do Edmundo, a brincar pelo salão,
conturbava-me a alma em lancinantes recordações. Ah! minha filha, temos
soffrido muito. Por amor do que tivemos a desgraça .................... Cuida com
dedicação .............. nossa Graci, cujo estado morbido está me inquietando
sempre.
Tem as vistas sempre sobre Dulce e Zeneide para que se conservem sadias e
fortes. Dê a alimentação da Gersilla que não lhe produza desarranjos
intestinais, muito freqüentes e perigosos no período da dentição. Trata
sobretudo de ti, pois só assim me darás conforto e lenitivo ao meu pezar,
munindo-te de energias e forças nesse pesado encargo de creação de nossos
filhos. Por elles tudo sacrificarei, comodidades, ................, distrações,
devotando-me completamente ao bem estar e felicidade dellas, que sé
podemos assegurar por uma sólida educação baseada no amor, na virtude e
na moral. E não há meio de educação mais efficaz que o exemplo. Sejamos
pois bons, compassivos, sobrios e sobretudo amemo-nos muito, sejamos
muito ............ amor e união ...............
esposo do C
Gerson”
A segunda carta, datada de dois dias após a primeira é ainda um grito de dor
mas, ao tempo em que faz uma autocrítica do seu procedimento e promete encerrar as
lamentações, é um prantear mais apurado. A carta, felizmente completa, é feita em
papel melhor, tendo impressa em relevo no canto esquerdo duas mãos entrelaçadas entre
ramos de oliveira.
“Therezina, 23/4/1991
Júlia
71
Para não interromper o meu diário, não obstante te ter escripto hoje á tarde,
faço-te ainda estas linhas para dar curso as minhas mágoas, em direção ao
teu coração, recipiente fiel do meu mais sincero affecto. Visitei a tardinha,
quase ao lusco-fusco, o túmulo do nosso Gersinho, orvalhando de dorido
pranto um bouquet de estrellas, que ali depositei. Como sempre, dali voou a
ti o meu pensamento e refflectindo no teu viver ahi me reconheci réis de um
grande pecado. É que eu te levei para ahi afim de te destrahir da tua dor e,
entretanto, estava daqui a avivai-a a cada vez mais, em vez de mandar-te
consolações. Mas, que queres, minha filha, si eu não as encontro para mim e
nem sei fingir para os outros.
Seria mentir si eu t’as aconselhasse, seria trahir ao meu próprio sentimento, e
a um sentir tão profundo não se tráe. Aborrecem-me e irritam-me, dão-me
impctos de revolta e grosseria estas estultas e banaes consolações que a
hypocresia convencional inventa para fingir resignação aquelles que nunca
soffreram verdadeiramente. Como consolar-me se não me luzem ca dentro
ignotos brilhos de crença e fé numa outra vida? Para mim só existe a
realidade brutal e estúpida da morte, a certeza esmagadora do que perdi para
sempre o filho, o meu único filho, a minha melhor esperança, o penhor mais
seguro do meu futuro, o sol da minha vida. E quanto mais penso na
crueldade do destino, quanto mais considero na dor que te alcança o coração
de mãe, mais me volto contra a natureza, raciocinando como o poeta:
Nadam mil vidas numa gotta dagua,
Do pollem de uma flôr brotam mil flores,
E ao coração dum pai da-se esta magua?
E ao coração d’uma mãe dão-se estas dores?
Sim, si tantas vidas pollulam por todo o universo, se tantos seres
inuteis e até prejudiciais infestam a terra, para que roubar a existência de
quem era so inocencia e candura, alegria e felicidade de uma casal
desventurado? Para que desfechar tão rude golpe em dois corações
amoraveis? Consolem-se outros para quem a crença, fingida ou verdadeira,
de uma vida de eterna ventura, proporciona o grande bem de tornar
inconsistente a dor. Quanto a mim, para quem o sofrimento não tem
restrições, mais me rebello contra o destino ao pensar:
Hei de crer? Mas na minha consciência,
Não me luzem da fé ignotos brilhos.
Hei de orar? Mas a mão da Providencia
Tem garras para mim: rouba-me os filhos
Nas não é por não haver consollo para mim que deva estar a aguçar a tua
dor. De hoje em diante, absterei de fallar então doloroso assumpto para que
as minhas cartas não sejam causas de lágrimas.
Beija nossas filhinhas e abraça ao teu
esposo do C
Gerson”
72
“Therezina, 30/4/1911
Júlia
Não te escrevi estas duas últimas noites e hoje o faço com sacrifício. É que
soffro do estômago desde que cheguei. Parece que o iodureto sem o leite, e
as carnes más me irritaram muito os intestinos e por isso tenho tido
continuamente enxaquecas, dores de estomago e desarranjos intestinais.
Fiquei com um cavallo e um burro da condução do Dr. Domingos Monteiro.
Desejava poder sahir amanhã mas penso não ser possível. O Costa chegou
hontem e ainda não me entendi com elle a respeito de coisas do quartel. O
Inhô e o Cesar querem ir comigo. Se eu for sozinho não avisarei. Se for com
um companheiro passarei um telegrama dizendo simplesmente – Dois; si for
com dois companheiros, direi assim - Três, para tu saberes para quantas
pessoas deves providenciar almoço. Não assignarei o telegrama para
economizar mais um tostão.
Costa, Mariquinha, Mariinha e Domingos Monteiro dizem-me que tu estás
tão magra como fostes. D. Adelaide, entretanto, te achava mais gorda.
Talvez as dores de dente tenham diminuido a gordura que ias adquirir. Se
assim é, visto que nada aproveitas irei logo decidido a trazer-te no dia 15 de
maio, visto não poder passar todo o mez de maio fora da Capital. A
Raymunda que se anime pois que está perto de terminar o seu sacrifício.
Disse-me o Domingos Monteiro que dia mostrara desejo de vir com elle.
Mandei fazer entrega do teu doce de conformidade com as tuas ordens e
disposições, deixando de mandar apenas para a Zuzú, porque já tinha dado a
ella um queijo e a lata maior das que vieram ............ outros tres queijos dei a
minha mãe, Sinha Moça e Carmosina e o doce vindo primeiro distribui com
minha mãe, Sinha Moça, Mundica, Lydia Inhôzinho, Cesar. D. Aurora e
Zuzú. Do que mandaste agora pelo Wenceslau dei ao Abilio, Celsa,
Doninha, Joãozinho, Satyro, Luciano, Inhô e Mello, mandando também
entregar as duas latas que vinham sobrescritadas. De todas as duas vezes fiz
os pacotes em teu nome. Já vês que não sou tão egoísta como me julgas, a
ponto de mandares as coisa já destinadas para designadas pessoas. Como vês
também, dei tudo não ficando com a prova, E assim fiz porque senti que nem
de uma vez nem de outra tiveste a delicadeza ou a lembrança de mandar uma
lata especialmente para mim. Bem sei que o doce vinha à minha disposição
porém só encontraria ............ quando a minha mulherzinha houvesse
preparado e acondicionado especialmente para o seu regalo. Mas, já que eu
nada gozo nem mereço desses cuidados, melhor será que não coma doce. É
melhor que os outros comam e eu beba água. Não é assim, minha ingrata?
A respeito da Graci tenho a repetir-te ainda uma vez que a conservação da
saúde depende mais dos cuidados higiênicos do que dos medicamentos.
Menos remédio e mais dieta e cuidados, é o que serve.
Diz o Severo da Paz que me espere para o passeio a S. Luiz.
A Carmosina está cheirando a noiva. O Cazé, que foi alferes de polícia
(sobrinho do velho Ribeiro) esfaqueou mortalmente o nonagenário velho
Banja e está na cadeia.”
73
aquela época deveria ser Major, havia sido um dos bons prefeitos de Teresina
(20.02.1905 a 07.01.1909), filho da cidade de Campo Maior (1870). Ao servir no sul do
país casara-se com uma gaúcha, D. Ada. O casal teve muitos filhos dentre os quais
André (militar) e Henrique (fiscal de rendas) que seriam rapazes de destaque na vida
social de Teresina dos anos vinte. Residiam também na Rua da Glória. O “Costa” era o
Comandante do Corpo Militar de Polícia, também filho de Campo Maior. Engenheiro
Militar, Oficial do Exército era casado com D. Clotilde Paz, filha do Cel. Manoel
Raimundo da Paz, prefeito, governador, comerciante. O próprio Antonio da Costa
Araújo Filho seria também prefeito de Teresina (01.01.1917 a 24.01.1921). Comandante
e comandado foram bons amigos. A amizade das famílias continuaria após a morte de
Gerson, passando aos filhos. Ariovaldo (militar), Lineu (médico) as moças Erina (Sra.
Osmar da Costa Araújo), Zilda (Sra. Dr. José da Rocha Furtado), Angélica (Sra. Dr.
Asdrubal Martins) seriam, pelos anos afora pessoas muito queridas pela família. Havia
também caçula, bem mais moço, Manoel, como o pai, oficial do Exército.
Inhô e Cesar são colegas de farda. O primeiro o Alferes Samuel, seu sobrinho,
filho de Lydia e Satyro de Oliveira. Cesar era um grande amigo de farda, o futuro Major
Cesar de Oliveira. Ele e seu irmão, o farmacêutico Fernando Marques de Oliveira que se
radicara em Floriano, foram grandes amigos de Gerson. D. Adelaide era a esposa do Dr.
Miguel Rosa, futuro governador. O pitoresco ardil para economizar palavras no
telegrama demonstra como o numerário era curto. A distribuição dos doces e queijos
aos parentes e amigos íntimos – dentre os quais Zuzú Freire – serve para “cobrança” do
marido “ciumento”. O noticiário do final demonstra que o Major começava a ver ao seu
redor, dissipado o nevoeiro da amargura pela morte do filho.
Enquanto o primeiro semestre de 1911 fora marcado na vida do Major Gerson
pela infelicidade, ao longo do segundo, enquanto suas funções poderiam retemperar seu
equilíbrio emocional, sua saúde corpórea está em sensível declínio. O início da carta de
30 de abril (a última da série) deixa isso bem claro ao evocar a constância de
“enxaquecas, dores de estômago e desarranjos intestinais”. Embora não mencionado,
estes males acompanham a fragilidade maior: aquela do peito, ou seja, dos pulmões.
Seu humor não era nada bom, mantinha-se nervoso, facilmente irritável, à beira da
neurastenia. Corpo e espírito aliam-se para uma crise que, apenas uma sobre-humana
força de vontade de viver e de trabalhar evitam (ou adiam) um colapso.
74
O momento político nacional, nos primeiros meses do Governo do Marechal
Hermes163 agitava-se. No Rio de Janeiro, repercutiam ainda os ecos da rebelião na
Armada – a chamada “revolta da chibata” liderada pelo marinheiro João Cândido, mas
sobretudo pela aproximação das eleições para governadores dos Estados, onde seria
posta a prova a política das “Salvações”. Embora fosse um dos obscuros (e neutros)
estados, longe do poder do Café (São Paulo) com Leite (Minas Gerais) mais o
ascendente Rio Grande do Sul, entre 1º e 4 de junho realizava-se a Convenção Estadual
do Partido Republicano Conservador (PRC) que teria seu porta-voz no jornal “O
Piauhy”164.
Muito sintomaticamente o Comandante da Guarda Nacional – o Cel. Manoel da
Paz pede licença assumindo o comando daquela corporação o Cel. João Augusto Rosa,
enquanto já se dá como certa a candidatura do Dr. Miguel de Paiva Rosa, filho deste,
para o Governo do Estado. Isto será oficializado em Convenção do PRC, realizada a 12
outubro165.
163
O governo do Marechal inaugurava-se a 15 de novembro de 1910.
164
A edição desse jornal teresinense, nº 1.126, edição de 08.07.1911, publica o programa daquele partido.
165
Publicado no “0 Piauhy”, nº 1.143 de 17.10.1911.
166
Publicado no “A Cidade de Teresina”, nº 32 de 20.09.1911.
75
76
A Fazenda e o Agrimensor
77
A amizade é uma das doces consolações do moribundo.
A não ser ella, a partida deste valle, para quem tem família, seria o maior de
todos os suplicios!
Mas felizmente existe a amizade, e neste momento extremo invoco-a de toda
minha alma. Conheço que os meus dias estão contados!
Ahi ficam minha Esposa e meus inocentes filinhos, parte de minh’alma
extremecida! Muito confio e espero que lhes sirva de pai, tomando-os sob
sua guarda e dirigindo-lhe os passos no caminho do bem.
Peço-lhe do fundo d’alma, em nome de nossa amizade, que seja delles o
tutor, curando de sua educação, e bem administrando o pouco que lhes
couber por minha morte.
É V.C. também pai, e pai extremoso, reconheço, avalie, portanto, quanto a
idéia da morte me pesa como uma montanha de granito!...
Si ao menos tivesse tido a ventura de deixar creados meus pobres filinhos,
parece-me, morreria tranqüilo.
Mas deixo-os orphãos em tenra idade, em um mundo tão corrompido quanto
corruptor... Sirva-lhe de pai, peço-lhe do fundo de minh’alma; ampare-os,
ensinando-lhes amar a virtude e bem formando seus ternos corações.
Deixo vinha querida esposa inconsolável e inexperiente no meio de uma
sociedade tão viciada quanto interesseira!... Dispense-lhe sempre os seus
bons conselhos; auxilie na direção de seus negócios, lembrando-se de que
era ella a digna companheira de seu pobre amigo.
Tenho dois sobrinhos nos estudos, um no Rio outro no Ceará. Quero-os
como a meus próprios filhos, por cujo futuro trabalhava com empenho e
ardor, Seja também delles o tutor e faça todo possível para que não
abandonem os estudos.
Muito tinha ainda a pedir e recommendar-lhe, porem é tamanha minha
confiança em sua amizade e lealdade, que deixo de o fazer, mesmo por que
são grandes as commoções porque estou passando.
Adeus, meu bom amigo!
Sinto avizinhar-se a minha última hora!...
Confio-lhe minha Família e o futuro de meus filinhos.
Ensine-lhes a honrar a memória de um pai extremoso, que sempre trabalhou
para ser homem de bem.
Ainda uma vez, adeus!
Como o último pedido de um amigo moribundo, receba o seu saudoso
abraço do
Companheiro e amigo Certo
Joaquim Alves da Rocha
78
capital onde se tornara vigário das Dores. Embora, como vimos pela troca de cartas,
tenha havido um desentendimento entre os dois (1891).
Do novo amigo, o comerciante Polydoro, há contas-correntes dando conta das
relações entre os dois. Mas não deixa de ser um tanto curiosa a eleição deste homem de
negócios para tutelar a família do Capitão. É bem verdade que o vigário das Dores,
morrera, de um súbito ataque, em 1892. É verdade também que, embora família
numerosa os Rocha se concentravam em Jerumenha, fazendeiros gurgueianos que eram.
Os cunhados, irmãos inteiros de D. Sérgia, já não eram crianças; já haviam
ultrapassado os vinte anos mas certamente, pela mentalidade da época, eram ainda
discriminados como jovens, e principiavam a organizar suas próprias vidas. O Capitão
Cincinato casara há pouco e principiava sua família com D. Justina (Pereira de Araújo)
passando-se mais para as terras da mulher, agora seu patrimônio pessoal, maior do que a
parte herdada do seu pai. Afro era mais moço que ele.
Nos documentos do acervo de D. Mariquinha Rocha não encontrei menção à
data do falecimento do Capitão Joaquim, mas é bem provável, que não tenha se
distanciado muito da data daquela despedida ao Cel. Polydoro. Não há menção a
testamento mas certamente ele – meticuloso Como Costumava ser – não deixaria de
tomar essa providência necessária à garantia do patrimônio da esposa e das filhas. E,
veremos mais tarde, que há referências ao testamento deixado por ele, discriminando as
propriedades da esposa.
Parece certo que D. Sérgia, após a morte do marido, permaneceu no Sítio de
Santo Antonio, onde sempre havia vivido, salvo temporadas curtas no Amarante ou em
Valença. Adélia Carolina, a primogênita, já devia andar por volta dos seus quatorze
anos (1881-1895) abaixo de quem seguia a escadinha de meninas: Mariquinha e Julinha,
desabrochando e as pequenas Judith e Ottilia.
Saída do jugo do pai – o Alferes João Paulo – para aquele do marido, a partir dos
seus quinze anos D. Sérgia agora ao entrar nos trinta anos, via-se só, com as cinco
filhas. A “proteção e tutela” do escolhido pelo marido tinha uma distância de umas
quinze léguas da capital para o Sítio. Logo foi-se demonstrando que o desempenho do
compadre Polydoro, não podia funcionar. Ficou memória de que D. Sérgia o iria
considerar em breve, um “grande trapalhão”. Era chegada a hora em que ela deveria
demonstrar que não era tão inerte e inútil como deixava supor a seu encaminhamento
79
para vida, totalmente dependente dos outros. Como as moças de fazenda de sua época
não recebera estudo, privilégio dos homens. Mas não era boba, sabia contar –
aprendendo a contar bois com os irmãos e os moleques da fazenda – e não se deixaria
enganar facilmente.
Em torno do Sítio de Santo Antonio, não estava havendo problemas. Estes
estavam surgindo para os lados do Alto Longá, nas maiores fazendas de gado, agora
partilhadas entre os herdeiros. Desde os tempos do pai aquelas terras e seus rebanhos
eram coisa distante. Agora, desde a partilha do testamento do pai, conduzido pelo seu
falecido marido, havia problemas de limites das posses e, sobretudo roubo de gado. Um
certo coronel e chefe político local era uzeiro e vezeiro em incorporar o gado dos
vizinhos a seu rebanho que crescia cada vez mais. Na realidade era o inevitável conflito
entre fazendeiros absenteístas que deixavam seus rebanhos entregue aos vaqueiros e o
fazendeiro presente e ativo que permanecia em suas terras e, sem vizinhos para
intimidá-lo, facilmente dominava os humildes vaqueiros e aumentava – num regime de
criação à solta – os seus cabedais.
Para o espanto geral, D. Sérgia resolveu enfrentar a situação e ir espiar
pessoalmente a situação no Longá. Era preciso comparecer pessoalmente, promover a
demarcação das posses de terra e reformular o rebanho, contando o gado, marcando os
bois, e tudo o mais que fosse preciso.
O mais urgente era demarcar as posses e cercar os limites com os vizinhos que
estavam extrapolando e ferrando o gado solto a seu proveito.
Os irmãos precisavam arrumar-lhe uma pessoa capaz de resolver o caso dos
limites e demarcação das terras. Era caso para um “agrimensor”. Cumpria conseguir isto
na capital. O Capitão Cincinato conhecera o homem certo, um moço competente que
demarcara, para ele, umas terras com problemas de limites. Cumpria, pois, apelar para
os seus serviços. O irmão procuraria o tal moço quando fosse à Teresina. O quanto
antes.
80
O engenheiro Gustavo Dodt, em um famoso relatório produzido em 1870, numa
caracterização, embora parcial do território Piauiense por ele visitado (entre o eixo do
Parnaíba-Gurgueia e a Serra Grande) estimara o predomínio da pecuária em 70%, dando
apenas 2% para a lavoura restrita às pequenas manchas de brejos, vazantes, boqueirões
e veredas onde se podia plantar com sucesso. O resto, os 28% seriam de terras
improdutivas.
Toda a riqueza dos moradores dos sertões do Piauí, provinha, assim, do gado,
capaz de dar foros de nobreza pois capitais e haveres provinham de quem possuísse
mais numeroso rebanho.
O ciclo da borracha na Amazônia repercutira numa preocupação com o
extrativismo por todo o norte. Outros tipos de látex produzido nos cerrados – como
aquele da maniçoba – alimentaram grandes esperanças no meio norte, onde a facilidade
de penetração no cerrado, vegetação mais aberta e mais salubre que a mata amazônica,
talvez compensasse. Pelo início do século, procurou-se fomentar no Piauí a extração do
látex da maniçoba até que, lá no Governo Miguel Rosa (1912-1916), chegar-se-ía a
fazer estudos agronômicos especiais inclusive com a instalação de campos
experimentais, dirigido por um agrônomo francês chamado Emille Charropin.
Por outro lado a segunda revolução industrial européia ampliara o espectro das
transformações e aplicações químicas. Naturalistas europeus vinham pesquisar novas
essências e sondar suas possibilidades de aplicação industrial, sobretudo plantas
medicinais para a farmacopéia crescente.
Uma das palmeiras mais típicas das terras do meio norte é a carnaubeira,
produtora do coquinho carnaúba – de tão variadas utilidades para o habitante daqueles
sertões. O próprio Martius, que a classificou, exaltou sua importância como “árvore-
providência” ou “árvore-da-vida”167.
A área dos carnaubais coincide com a área de pecuária e é assim que a chamada
“civilização do couro” está intimamente associada à carnaúba. O tronco cilíndrico e
reto, foi a base das construções dos currais e moirões, do teto das casas de fazenda. A
palha, além da cobertura de casas, sustentou toda uma rica trançagem para os chapéus,
bolsas, surrões e utensílios domésticos. A própria cera – que será o grande apelo para a
167
A carnaubeira (Copernicia cerifera, Martius), não deve ser confundida com outras espécies que não
produzem cera, como o carandá de Mato Grosso (Copernicia australis, Mart.) o ouricuri da Amazônia
(Attalea excelsa) ou a produzem em qualidade inferior, como é o caso do licuri (Cocos coronata, Bondar).
81
indústria – já era conhecida e utilizada no fabrico de velas de iluminação. Aos poucos
vai-se aplicando a cera no tratamento dos couros, antes mesmo de se ampliarem suas
possibilidades polivalentes na indústria química.
Embora assuma densidades e concentrações maiores em outras regiões do
nordeste, com o Vale do Jaguaribe (Ceará) e Açú (Rio Grande do Norte), os carnaubais
do delta do Parnaíba e do eixo daquele rio tiveram decisiva importância na colocação do
produto na Europa. Adiante-se que foi por volta da Abolição que se promoveram os
estudos mais sérios e os maiores esforços de divulgação da cera na Europa. Como é
sabido que este esforço foi principiado pela famosa Casa Inglesa da Parnaíba, sobretudo
após a reformulação da primitiva firma para as mãos do jovem inglês James Frederick
Clark, cujo busto acha-se perpetuado sobre o tronco de uma carnaubeira em bronze na
cidade da Parnaíba, onde se radicou e constituiu família.
Não me foi possível encontrar ainda um estudo – com a profundidade e a
importância que o tema requer – sobre o início e a importância da exploração da
carnaúba na bacia do Parnaíba. Se ainda não está sendo empreendido é urgente que
venha a sê-lo. É um dos temas geográficos da maior importância, abrindo-se o desafio
ao interesse dos universitários de minha terra.
Embora sem apoio para apontar os passos decisivos nesta exploração extrativa
no Piauí, é preciso ressaltar o fato nesta crônica pois que o despertar da consciência para
este precioso recurso da flora é fundamental para a percepção do valor das terras do
Alto Longá até então domínio absoluto do gadame.
A pouco e pouco se vão aumentando os usos e aplicações da cera na
impermeabilização dos couros, no fabrico de pastas para proteção de madeiras (cera
para assoalho), utilização como material isolante em cabos e fios, lubrificantes, sabões e
sobretudo – para a preparação do ácido pícrico, de grande aplicação bélica – e formas
mais utilitárias e pacíficas como no fabrico dos fósforos de cozinha e até como
impermeabilizante junto as capas de cortiça na tampa das garrafas de bebidas. Graças ao
americano Edison, teve uma enorme aplicação na feitura dos primeiros discos
fonográficos. Evoluindo pelo início do século a cera de carnaúba tornar-se-ia o principal
produto da economia Piauiense no período entre as duas grandes guerras. Após o seu
ápice nos anos quarenta, caiu vertiginosamente.
82
Ao lado da carnaúba, o babaçu – outra árvore da vida no meio norte – teve sua
história. De grande utilidade na vida da população, oferecendo as suas pequenas
amêndoas embutidas nos cocos como fornecedora de leite e azeite de uso doméstico
alimentar, suas palmas à cobertura de tetos, e mesmo armação de paredes, à cestaria,
sem esquecer o palmito das palmeiras jovens – as pindovas. Esta outra palmácea,
abundante no vale do Parnaíba concentrou em torno de si um verdadeiro gênero de vida
daquelas populações pobres, principalmente no estoque remanescente da população
indígena. A trindade de palmeiras se completa com o buriti, árvore mítica do centro do
Brasil, a mais doméstica delas três, símbolo da fartura d’água, fornecedora de talos da
maior utilidade, além da polpa gordurosa dos seus frutos.
Atrás da carnaúba , no início do século, vieram entregar-se à extração comercial
muitas essências vegetais e produtos animais, notadamente peles. A exploração
exacerbada destes preciosos recursos iria conflitar de modo crescente com o regime
hidrológico na bacia do Parnaíba e promover, a passos longos, a condenação da
navegabilidade daquele rio.
Desenvolvido nos anos setenta o arame farpado tornava-se decisivo para as áreas
de criação de gado extensivo, para separar – quando não acirrar os conflitos – ente e
criação e lavoura . Em áreas arcaicas como aquela da pecuária Piauiense, com o gado a
solta, era um recurso que, embora dispendioso, fazia-se necessário nos limites mais
decisivos de propriedades.
83
aquele comportamento ousado, fora de propósito. D. Sérgia sorria e saboreava a sua
liberdade. E tomava gosto com a novidade.
Instalou a comitiva no O Bonito, a maior das Fazendas, de paisagem mais bela,
cortada de riachos cheios de lajes e de pedras. Gostava de conhecer as terras que eram
dela, herança do velho João Paulo e agora quinhão dividido com as filhas. Era preciso
tomar conhecimento e acertar os limites do que eram os seus domínios, separando-os
bem das fazendas vizinhas, pertencentes aos outros.
Um belo dia chega o agrimensor, o moço que iria assentar os limites, demarcar
as propriedades, traçar cercas se necessário.
Chega o jovem Santídio Monteiro. Homem enorme no seu porte de mais de
metro e oitenta, moreno, cabelo grosso, fartos bigodes em ponta. E cheio de atenções e
mesuras no trato. Um moço fino. Simpático. Trouxe alguns auxiliares. Montou
aparelhos e balizas. Arregimentou vaqueiros e peões. Examinou papéis. Testamentos.
Foi à vila – a antiga vila dos Humildes – ver no cartório a documentação. Arranjou-se
em casa do vaqueiro com seus ajudantes. Começou a trabalhar.
Aquele homenzarrão fazia reverências e meneios para a delicada e frágil
mulherzinha viúva recente. O porte dos dois, como que neutralizava a diferença de
idade. Ele aos 19, ela aos 31. Isso, naquele ano de 1896, o mesmo ano em que chegava
da União em Teresina o jovem Gerson Edison, para sentar praça na Polícia.
Não podendo tornar-se um engenheiro militar como fora seu sonho o jovem
Santídio Monteiro estava indo bem. Estava um agrimensor competente, um dos raros
daquela profissão na capital do Piauí. Não faltava serviço entre a agrimensura e as suas
atividades de mecânico, cada vez mais afeto às máquinas das embarcações e da fiação.
A prática era tudo. Estava se formando na escola da vida e se fazia um mecânico de mão
cheia. Quem sabe não chegaria a fazer o que os engenheiros faziam.
As posses dos pais não foram suficientes a fazê-lo estudar o necessário e
preparar-se para realizar o seu sonho de construir coisas, estradas, pontes, e o lançaria
ao mundo das máquinas com as quais – graças à sua intuição – estava cada vez mais
familiarizado, descobrindo-lhes o funcionamento e os segredos do seu desempenho.
Estava na força da idade. Idade de pensar em casar e constituir sua família. O destino
parecia sorrir-lhe colocando no seu caminho aquela delicada viúva – cheia de filhas, era
verdade – mas também cheia de terras, de bois, ..... Dava para perceber-se que não era
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tola, de deixar-se enganar. Era bem mais velha do que ele mais o seu aspecto miúdo e
delicado não deixava transparecer tanto aquela diferença. Parecia que o trabalho
naquelas fazendas do Longá era a grande oportunidade de sua vida. Era preciso saber
aproveitar a ocasião.
D. Sérgia demorava-se no Longá. Passavam-se os dias, foram-se alguns meses e
ela entretida naquela faina de fazendeira. Quem diria?
Saída das bonecas e dos braços das negras para o casamento, entrara nele sem
saber o que significava. O marido fora um bom homem. Mas ela não o escolhera. Foi-
lhe designado pelo pai. Pariu seus filhos, aproveitando os períodos de gravidez como
um alívio às cólicas menstruais tão fortes que a afligiam tanto e a obrigavam a
senapismos de mostarda queimante nas coxas. E até mesmo como um alívio ao “dever”
de servir ao marido. Tivera no marido um senhor, bondoso e que a protegia e mimava.
Mas sua vida conjugal fora uma obrigação cumprida e nunca um prazer fruído. Fora
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como que indiferente à luxúria que, bem ao contrário não fizera falta no Sítio, com os
homens, desde o seu pai, e sobretudo com seus irmãos Cincinato e Afro – belos e
fogosos rapazes que enlouqueciam as negras do Sítio e faziam suspirar as filhas dos
fazendeiros da região.
Agora, ao ver este moço medidor de terras sentia algo que nunca experimentara
antes. Um estranho apelo, uma força que a atraía com um imã atrai a agulha. Ao
experimentar a sensação de liberdade, D. Sérgia via-se desabrochar para o amor. A
menina de 15 anos ignorava aquilo que se lhe revelava agora com tanta força como a
coisa mais maravilhosa do mundo. Aos 31 anos, mãe várias vezes, era agora uma
mulher completa. Pronta para experimentar um grande amor.
Cercada de filhas, mucamas e vaqueiros por todos os lados D. Sérgia estava
protegida de dar livre curso aos seus impulsos. Por outro lado era mulher vaidosa e
extremamente orgulhosa. Não estaria nela viver uma aventura. A fazendeira seduzia o
medidor de terras que não pedia a Deus outra coisa. Sua estratégia de “Chevalier
Servant”, cuidando dos interesses da senhora, conquistando a afeição das crianças e das
mucamas, rendia mais do que a pretensão de mostrar-se um conquistador que domina.
Valia mais deixar-se dominar...
D. Sérgia retorna ao sítio. Medidas as terras no Longá, havia que medir as terras
do Berlengas. D. Sérgia está sempre em contacto com o medidor de terras, sempre
atencioso e solícito. Pelo resto de 1897 e pelo ano seguinte as relações se estreitaram a
tal ponto que não foi mais possível disfarçar o romance.
Se a decisão de cuidar das posses já havia escandalizado a todos, o romance de
D. Sérgia foi estarrecedor. Aquela mulher ficara maluca. Sobrepunham-se três
agravantes seríssimos na conduta da fazendeira, filha do Alferes João Paulo de Arêa
Leão, um homem tão rigoroso que parecia inadmissível que uma filha sua pretendesse
quebrar as normas sociais vigentes. Em primeiro lugar a brevidade da viuvez. Bem o
marido (que os vermos ainda não haviam destruído o cadáver) baixara ao túmulo e a
viúva – por ele qualificada de “inconsolável” – já procurava substituto. Sua carta a
Polydoro soava agora profética. A “sociedade corrompida quanto corruptora” ...
“sociedade tão viciada quanto interesseira” não se fizera esperar. Logo aparece um
corruptor, interesseiro, sem eira nem beira, para seduzir a viúva. O segundo aspecto era
a diferença de idade. A mulher, enlouquecida, deixava-se seduzir por um rapaz 12 anos
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mais moço que ela, quase que podendo ser seu filho... E isto era a prova mais eloqüente
e irrefutável do interesse e das más intenções do espertalhão... Por fim, e talvez o mais
grave, a filha do Alferes João Paulo, viúva de um Rocha, queria unir-se a um mestiço,
um belo rapaz mas visivelmente mulato, como sua mãe, uma tal Nhá Vicência, quase
negra, sobre cuja fidelidade conjugal ao português que subia e descia o rio, pairavam
dúvidas... Realmente era demasiada loucura ao mesmo tempo. D. Sérgia enlouquecera,
sem dúvida.
Por isso ela dispensou tutela. Formiga quando quer se perder cria asas... Tinha
que dar nisso. Os parentes e amigos aproximaram-se, sondaram, murmuraram, deram
conselhos, tentando demover D. Sérgia de cometer uma loucura. O que ninguém
esperava era que uma mulher pequenina e frágil fosse tão “opiniosa”, tão teimosa feito
uma mula, incapaz de deixar-se convencer por qualquer argumento. Os irmãos mais
próximos se não estimularam não se puseram declaradamente contra. Cincinato até já
era amigo de Santídio . Afro vivia sua vida de jovem fazendeiro bonito, despreocupado,
aproveitando a vida.
Os amigos do Cap. Joaquim Rocha entraram em ação. Escreveram-se cartas,
passaram-se telegramas. Os irmãos mais moços, ambos nos estudos, além de irmãos –
meio irmãos – eram sobrinhos do falecido. Haviam de dissuadir a irmã dessa insensatez.
O ano de 1898 foi o da grande luta que, malgrado tudo que se pode fazer para impedir o
casamento, resultaria inútil.
Os irmãos José Marques e Antonio Martins vieram de Fortaleza e do Rio de
Janeiro. Argumentaram, expuseram mil e uma razoes. Já era deslavada a teimosia
daquela mulherzinha. Passaram às ameaças. Foi pior. Costuma-se dizer que três coisas
são impossíveis de impedir: água morro abaixo, fogo serra acima e mulher quando quer
“se perder”. Positivamente D. Sérgia estava possuída pelo demônio.
Nem ante a ameaça de se lhe tomarem as filhas D. Sérgia desistiu do seu
casamento com Santídio Monteiro. Sob tal conflito não ficou lembrança nem da data
nem das circunstâncias sob as quais o casamento se realizou. A certidão de nascimento
de meu pai, o terceiro filho do casal, menciona que os pais do menino são “residentes
nesta capital, onde casaram-se civi1 e religiosamente”. Será necessário uma pesquisa
cartorial no arquivo. A família guardou, contudo uma cena passada na hora do
casamento. A filha menor, Ottilia Maria, entre os seis e sete anos de idade, à hora da
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saída para a cerimônia, corre para agarrar-se a mãe e ela a susta com o braço estendido.
Esta cena seria comentada e repetida, pelos tempos afora, e exposta como demonstração
do estado de espírito de uma mulher perturbada pela paixão por um homem a ponto de
anular o seu próprio instinto materno.
É fácil compreender-se o trauma que este casamento representaria para as cinco
meninas filhas de D. Sérgia. Elas seriam afetadas e marcadas – para o resto da vida –
por este trauma de rejeição materna. Os irmãos mais moços, indignados, tomaram as
meninas a seus cuidados e este ano de 1898 foi de grande agitação e tomadas de
providências, marcando uma cisão profunda na família. Antonio Martins precisava
retornar ao Rio de Janeiro, concluir o seu curso de engenharia, já no final. A atitude
insensata da irmã colocava mesmo a necessidade de que os irmãos e as filhas se
afastassem para bem longe.
José Marques interrompia de bom grado os estudos no Ceará. Era fazendeiro de
vocação e não aspirava a profissão liberal. Talvez por já ter alguma inclinação ou
aguçado algum sentimento pela necessidade prática ante a situação, resolve desposar a
menina mais velha Adélia Carolina. Malgrado o elevado grau de consangüinidade,
casam-se assim um primo – em primeiro grau – ao mesmo tempo que tio, com a menina
moça de dezessete anos.
Os dois irmãos lançam-se aos cartórios, tirando certidões de posses, comprando
e vendendo partes deles próprios e regularizando os bens das sobrinhas e providenciam
a migração para o Sudeste.
Com a venda de algumas terras e gado os irmãos adquirem uma fazenda no Sul
de Minas Gerais, nas lindes com o Estado do Rio de Janeiro, num lugar chamado Pedra
Lisa168. Nesta fazenda se instalam o casal José Marques-Adélia Carolina mais as quatro
irmãs desta enquanto Antonio Martins volta para a capital federal, não muito distante,
ultimar seus estudos.
Não seria difícil imaginar o que representou uma tal mudança para estas moças
já traumatizadas. Além da separação da mãe teriam que enfrentar uma mudança radical,
saídas do calor abrasador do Piauí para o frio do planalto sul mineiro. Mariquinha, a
segunda filha, jamais se esqueceria do frio intenso que sentia naquela Pedra Lisa. Vivia
chorando e pedindo para voltar para junto da mãe a quem chamava – Céu - uma
168
Foi-me impossível localizar tal ponto nos mapas. Provavelmente seria o nome da “fazenda”.
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possível corruptela do nome “Sérgia”. Mostrar-se-ia tão rebelde e teimosa quanto a mãe
e tanto reclamou, e tanto bateu o pé que foi mandada de volta ao Piauí.
Juntou-se à mãe, foi muito bem tratada pelo padrasto que se afeiçoou a ela –
seriam mesmo compadres e bons amigos pela vida afora. Iria algumas vezes ao Sul,
rever as irmãs e os tios, mas fixou-se em companhia da mãe, prestando a esta a maior
ajuda possível, inclusive na criação dos irmãos pequenos, nascidos do novo casamento.
Apesar de ser um “bom partido”, demorar-se-ia para casar, só o fazendo quando os
irmãos Monteiro já estavam praticamente criados.
Logo em seguida ao casamento de Sérgia e Santídio, os cunhados José Marques
e Antonio Martins tiravam certidões nos cartórios das posses das filhas do Cap. Joaquim
Alves da Rocha. Santídio preocupou-se em extrair aquelas posses passadas no
inventário do primeiro marido para a posse da viúva, D. Sérgia.
O acervo de D. Mariquinha, guardava a certidão, ou melhor, o pedido de
certidão formulado pelo segundo marido de D. Sérgia. Vale reproduzi-lo:
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Therezina, 24 de novembro de 1898
Santídio da Silva Monteiro
Fica bem claro que houve um testamento deixado por Joaquim Alves da Rocha,
separando bem por “meiação”, aquilo que era da viúva – aliás por herança do pai desta,
o Alferes João Paulo e compartilhados com Joaquim, como homem “cabeça do casal” –
e a outra metade repartida entre as filhas. Num rol de seis itens cinco tem aquela origem
já que o item seis foi obtido por compra. Foi muito comentado e repetido o fato de que a
cada filha de Joaquim Alves da Rocha do seu casamento com D. Sérgia, coube uma
fazenda.
Houve assim um testamento “julgado em sentença” a 24 de agosto de 1896. Isso
é muito importante para esclarecer uma separação que estava feita e bem discriminada.
Ao mudarem-se, com as sobrinhas, para Minas Gerais e Rio de Janeiro, os cunhados
venderam parte de suas próprias terras e gado, deixando outras. O legado de
Mariquinha, que retornou ao Piauí foi mantido intacto e depois do seu casamento,
ampliado inclusive por compra de partes do legado das irmãs.
Em regime de comunhão de bens Santídio-Sérgia tiveram bens definidos
legalmente. A amostra que vimos refere-se apenas a parte concernente às terras do
Berlengas, no município de Valença. É quase certo que um documento correspondente
deve ter existido ao referente ao município de Humildes, nas fazendas do Longá. Mas
desta parte não ficou nada no arquivo de D. Mariquinha que me dói dado a pesquisar.
Ciente do seu novo “status” de fazendeiro – pelo matrimônio – o jovem Santídio
procurou compenetrar-se de sua nova posição social. Tirou patente na Guarda Nacional.
Principiou pela de Capitão. É com esta patente que encontramos no jornal “O Estado”,
nº 35, de 23 de maio de 1903, em meio as notas diversas esta
O que é certo é que ficou conhecido por aquela de Major que o acompanharia
por toda a vida. Seu cunhado Cincinato foi mais alto, pois está mencionado em
documentos como Tenente Coronel, não obstante haver sido marcado pela patente de
Capitão, com que se tornou famoso em sua brilhante e aventurosa juventude.
Santídio era um homem urbano. Suas atividades no interior eram parte acidental
em sua vida, mais ligada à capital, aos vapores do rio, às máquinas em geral. Sua
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mulher era eminentemente do campo, onde vivera toda a sua vida, filha, mulher e ela
mesma fazendeira. Mas não foi difícil a Santídio convencer a D. Sérgia que a nova vida
dos dois deveria assentar-se em bases inteiramente novas e na capital. Teresina estava
exatamente a meio caminho entre o Alto Longá e o Berlengas, para onde o casal poderia
deslocar-se por temporadas para um e para outro local.
O casal vem instalar-se à rua de Santo Antonio, no início do Barrocão, na
esquina fronteira onde fora a casa do Tte. Henrique José Marques, avô de Santídio,
próximo onde viveriam D. Vicença e seu José Toma-Chegada, a tia Dinoca, enfim o clã
dos Marques e Monteiro. Não sei se a casa foi construída por Santídio. Talvez a tenha
adquirido por compra, naturalmente com o dinheiro de D. Sérgia. Trata-se de uma
morada inteira, de esquina, ainda hoje de pé e solidamente implantada, submetida a
algumas mudanças, inclusive na esquina onde as janelas se transformaram em portas
para um estabelecimento comercial.
Mas, pelo seu estilo arquitetônico deve ser construção dos anos noventa,
contemporânea da construção do Teatro 4 de Setembro (1894), possivelmente edificada
pela Companhia Construtora do Cel. Manuel da Paz. Suposição que se prende à
arquitetura ostentando janelas em ogivas mouriscas, como foi moda no último decênio
do século XIX. Era casa ampla e confortável, sem forro ou seja em telha vã mas com pé
direito alto . Mais adiante será descrita, pois a tenho bem nítida na memória. Ainda a
alcancei em sua posição transicional de uma quinta de periferia urbana, cujo quintal era
cortado atrás da casa pelo grotão que era o córrego que, ao lançar-se no rio Parnaíba,
recebia o nome de Palha de Arroz. O alinhamento retilíneo das ruas se terminava,
enviesando pelo início da rua do Barrocão. Para esta rua, em frente à casa havia um
gigantesco flamboyant que tingia de vermelho a paisagem pelos meses de outubro-
novembro. Próxima a ela, do outro lado da rua, ficava a casa de cidade do Cel. Manuel
Cardoso, grande fazendeiro dos Humildes e que ainda subsiste hoje, bem menos
importante que outrora.
D. Sérgia não deve ter estranhado muito a mudança, pois estava à beira da
cidade, numa casa espaçosa, onde podia ter suas negras e mucamas. Podia ter no quintal
espaço suficiente para as tropas de animais – cavalos e mulas – que faziam a ligação
com o Sítio do Berlengas e as fazendas do Longá.
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A CASA DO MAJOR SANTIDIO
Situada à Rua de Santo Antonio a partir de onde se bifurca a Rua do Barrocão (hoje Avenida José dos Santos e Silva). O entorno é reconstituição do
aspecto vigente no início dos anos trinta, segundo a memória do cronista.
Confortavelmente instalado o casal parecia feliz. Santídio esmerava-se em
entreter D. Sérgia, apresentando-a aos muitos parentes e amigos, divertindo a esposa
com as possibilidades da capital naquela época, sempre solicito e amoroso. D. Sérgia
era arredia, meio distante, sem dar-se a intimidades com os outros, mesmo parentes,
com um jeito meio seco, de prosa curta que era, não raro, tomada como sinal de orgulho
ou soberba. Mas era o seu jeito especial de moça de fazenda que só se sente bem em
casa, no meio de suas mucamas, dando ordens.
Em 9 de setembro de 1899 nascia o primeiro filho do novo casal, para D. Sérgia
mais uma menina, que se chamou Edith. Era morena de cabelos e olhos negros, de porte
mignon que nem a mãe. O fato de ter nascido no último ano do século valeu a minha tia
Edith, no futuro, muitas brincadeiras do marido que a arreliava dizendo aos sobrinhos:
Meus filhos, a tia de vocês é uma mulher do século passado!
D. Sérgia continuaria o ritmo bianual de seus partos mas Edith encerraria o rol
das mulheres. Em 30 de junho de 1901 nasceu um menino com que D. Sérgia
homenageou o pai, chamando-o João Paulo. Era também moreno e miúdo.
A terceira gravidez de D. Sérgia seria memorável por trabalhosa. Passou mal a
maioria do tempo e o parto foi o mais complicado, quase custando-lhe a vida. A cria
estava em má posição, meio atravessada. Faltou pouco para que a mãe sucumbisse num
complicado trabalho de parto muito longo que, finalmente as 21,30 hs. do dia 5 de
junho de 1903, trouxe ao mundo um menino enorme, de quase quatro quilos, rosado e
rechonchudo. Na aflição D. Sérgia valeu-se de São Raimundo Nonato e assim o garoto
batizou-se Raimundo. A mãe quase morta e enfraquecida, exaurida mesmo, não teria
como amamentar aquele bitelão enorme e faminto. Acudiu a cunhada Lydia, a mais
moça das irmãs de Santídio que, casada pela segunda vez mas sem filhos, pegou a criar
filhos dos outros. Morava do outro lado do rio, tinha a casa cheia e, no sítio não
faltavam mulheres paridas à volta para servir de ama de leite ao meninão.
Assim o bebê foi afastado da mãe ficando uma boa temporada com tia Lydia, e
aos seus muitos carinhos que a esterilidade aguçava. Depois de restabelecida D. Sérgia
quase não recebe de volta o filho a quem a cunhada se apegara. O pequeno Mundico,
como seria conhecido por toda a vida, era um menino enorme, rosado, claro, de olhos
claros – seriam de um castanho muito claro quase cor de âmbar – que encantou os pais.
Talvez pela separação forçada seria o filho favorito de D. Sérgia. O pai, após dois filhos
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morenos de olhos e cabelos negros , embora sem lembrar nos traços a sua negritude,
ficou fascinado com o bebê alvo e rosado, parecendo um alemão. O leite das amas e das
jumentas haviam feito dele um bezerro bem nutrido e esfomeado.
Com essa entrada fora do convencional, estreava na vida aquele que viria a ser
meu pai. Seria um original, por toda a sua vida. Sempre surpreendendo e espantando a
todos ao longo de 69 anos.
Em 1905 D. Sérgia dava à luz a seu último filho, um menino que se chamou
José, que, além de claro e rosado tinha olhos azuis. Uma foto – tirada pelo próprio
Santídio – no álbum de família, mostra tio Zeca, como era moda, portando vestidinho e
com os cabelos louros cacheados. E aquele que parece uma menininha.
Santídio fazia os filhos assinar-se Leão Monteiro. Cortando o Arêa parecia
querer criar uma nova família. Antonio Martins, sentenciaria mais tarde: ou é Arêa Leão
ou não é da família.
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O último filho de Santídio foi levado à pia batismal por aquele jovem amigo dos
tempos de sua passagem pelo Rio de Janeiro e que se tornara engenheiro: Antonino
Freire.
Com ele, Santídio iria juntar-se no empreendimento do serviço de abastecimento
d’água da capital, importante etapa que serviria de ponto de partida para outros
desempenhos significativos na infra-estrutura urbana da Capital do Piauí, à qual se
ligaria por longos anos.
Do casamento (1898) ao nascimento do último filho (1905) Santídio fora um
solicito marido da fazendeira, preocupando-se com a administração – mesmo que à
distância – das fazendas. Mas sua paixão pela mecânica e os trabalhos de agrimensura
não se findaram. Ao contrário, embora diminuídos o Major cuidava de municiar-se de
livros que encomendava e de ferramentas e máquinas. Uma oficina muito bem equipada
– a melhor da cidade, a nível particular – foi instalada no quintal da casa da rua de Santo
Antonio. E ali o Major Santídio fazia prodígios mecânicos, consertando máquinas feitas
no estrangeiro, e cujos segredos ele acabava sempre por decifrar e as consertava.
Sobretudo os motores que o fascinavam e eram a sua paixão.
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O censo municipal realizado em 1908 acusaria um total de duas mil casas na capital.
170
Em realidade o novo século encontra no Governo o Sr. Raimundo Arthur de Vasconcellos que passou o
cargo a 1º de julho de 1900 para o Dr. Arlindo Nogueira (1900-1904).
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Mendes há dois casos bastante expressivos deste fato: a instalação de um serviço de
telefones, por uma companhia particular pertencente ao Coronel Joca Broxado e aquela
da formação da Companhia das Águas, para instalação do primeiro serviço de
canalização e abastecimento domiciliar de água na cidade.
O prefeito eleito da capital nesta época era Domingos Monteiro, oficial do
Exército, filho do Campo Maior que depois de sua formação inicial no Rio Grande do
Sul radicou-se em sua terra natal, ali prestando grandes serviços como prefeito,
deputado estadual, além de ter sido o instalador do 25º Batalhão de Caçadores, que
solidificaria a presença do Exército Nacional no Estado do Piauí. Aguardando licença
do Exército para exercer aquela importante função pública o Major Domingos Monteiro
inaugurou o seu mandato a 2 de fevereiro de 1905.
Espírito aberto, Domingos Monteiro, em vez de fechar-se no “oficial” não só
apoiou como passou a estimular a iniciativa privada na realização de obras públicas. O
primeiro caso surgiu no calçamento da rua Grande. A Senhora Joaninha Portellada,
esposa do médico Dr. Raimundo de Arêa Leão, cansada de mandar os seus criados
molhar a rua para baixar a terrível poeira, na seca e calçar com algumas pedras e tábuas
a lama, nas águas, resolveu pedir autorização ao prefeito para assumir o calçamento
daquela rua no 6º quarteirão, aquele em que estava sua residência. O prefeito não
somente autorizou como sugeriu a proprietária que intermediasse com os outros
moradores, de frente à sua casa, para que dividisse a meias a despesa do calçamento
com paralelepípedos. Nestas condições a Prefeitura providenciaria o orçamento e a
execução das obras. Assim se iniciaria a prática do calçamento da cidade, que se
arrastaria por muitos anos segundo o interesse e as posses dos moradores. Naquela
época a receita da prefeitura atingia apenas 81 contos de réis, com quase equivalente
carga de despesas.
Foi reformulado o Código de Posturas Municipais. Proibia-se, por exemplo, aos
alfaiates, manter nas calçadas e meio da rua, fogareiros e ferros de engomar quentes,
produzindo sujeira de carvão e pondo em perigo aos transeuntes. Adotou-se o primeiro
sistema de numeração das casas e obrigava-se que nestas, fossem construídas latrinas
com fossas.
Um dos grandes inconvenientes era que as ruas viviam atravancadas de tropas de
jegues vendendo água coletada ao rio, por todas as casas. Daí a necessidade de dotar a
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cidade de um serviço de canalização e abastecimento domiciliar adequado. O Dr.
Antonino Freire já elaborara um projeto, quando Secretário de Obras Públicas no
Governo Arlindo Nogueira (1903) e a imprensa comentava:
“O ESTADO
Consta que o Sr. Arlindo Nogueira se resolveu, afinal, abandonar a
proverbial impassibilidade, a meter mãos à grande obra de canalização
d’água a esta capital ..........”
Assim comentava aquele jornal, recém fundado, dirigido por Clodoaldo Freitas,
em forte oposição ao Governo, “O Estado”, nº 47 de 15 de agosto de 1903. Comentava
ainda aquela nota que o Dr. Antonino Freire, Secretário de Obras Públicas, e “nosso
colega do “A Pátria” que “pelo seu caráter de jornal semi-oficial” não poderia arcar
sozinho com o vulto da obra que colocava, de início, o problema da estação de elevação
das águas do rio Parnaíba, “pela inconstância do seu canal”. Preconizava o jornal de
oposição que seriam necessários recursos e pessoal “de fora”.
Ante a falta de recursos do Estado, procurou-se passar a idéia adiante, atraindo
adesão de capitalistas locais, que não eram muitos. Não havendo muita escolha caia-se
sempre no mesmo tronco. A adesão ao projeto viria do Coronel Zés dos Santos,
comerciante filiado ao grupo da família Cruz que, proveniente do Maranhão, se
projetara para a capital do Piauí, participando dos maiores empreendimentos, como a
Fiação e Tecidos Piauienses, Estrada de Ferro Cajazeiras e da Companhia de Navegação
do Rio Parnaíba.
Levantados os capitais, o material e maquinaria. – segundo o projeto traçado
pelo Eng. Antonino Freire – seria importado diretamente da Inglaterra pela Casa Cruz
de Caxias. Planejado em 1905 já se inaugurava no ano seguinte.
A execução do projeto, segundo o plano traçado pelo engenheiro, seria dividido.
Na parte de engenharia e arquitetura ficava sob a responsabilidade do Dr. Antonino
Freire. A parte de topografia – agrimensura, escavações, alinhamento e nivelamentos
necessários à implantação da rede do sistema ficava a cargo do Major Santídio
Monteiro.
Aquela experiência pioneira do serviço de abastecimento de água na cidade de
Teresina (1905) foi muito simples e para previsão de vinte anos, objetivo que conseguiu
alcançar, apesar das dificuldades.
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De modo muito sumário o sistema constava das seguintes partes171:
Captação:
O ponto de captação no rio Parnaíba, a montante da cidade, foi localizado na
Quinta Parangaba, lugar que passava a ser conhecido como Veneza. Ali foi edificado o
prédio especial para as máquinas, ou seja, a instalação das bombas de sucção ou tomada
d’água do rio, e a bomba de recalque, impulsionadora da água captada, pela adutora, até
o reservatório.
Adutora:
Em cano de 12 polegadas (30cm) partia do ponto de captação pela rua Santa
Luzia até a Estrada Nova e daí até o Largo das Dores esquina da rua de S. José e daí,
tomando a direção de leste, seguia até o ponto do reservatório, no chamado Morro de
São João a 2 km de distância do ponto de captação.
Reservatório:
Sob a pomposa designação de “morro” era, na realidade o ponto cotado de maior
altitude na chapada interfluvial separando os rios Parnaíba e Poti. Naquela época ficava
fora da cidade e, naquele alto coberto de cerrado farto em pés de cajus, cajuís e pequis,
era um ponto privilegiado para os caçadores de aves e pássaros, notadamente papagaios.
Aquele reservatório, montado em espécie de torre de Castelo, quadrangular, tinha
capacidade para 500.000 litros.
A partir dali saía a rede de distribuição, contando com o desnível de 40 metros
entre o reservatório e o nível do rio.
171
No 3º volume de sua obra “Teresina Descalça”, o meu primo, Engenheiro Agrônomo Orgmar Marques
Monteiro, aprecia o sistema pioneiro, feito com a colaboração de seu tio (meu avô paterno) Santídio
Monteiro. No cap. Cia das Águas – entre as páginas 211 e 230. Dez anos após, o jornal “O Piauí”, nº 1251
de 25 de outubro de 1913, apresenta um sumário do sistema, já alterado, sob o titulo “Usina Elevatória
das Águas”.
98
eixo distribuidor d’água para a rede de canalização. Por isto a canalização secundária da
rede distribuidora tinha que ser interceptada, em pontos estratégicos de certos
cruzamentos de ruas por “monobras” onde se fechavam os registros durante os
momentos de recalque da água ao reservatório. Nestes momentos era necessária a
presença de “bombeiros”, com suas “chaves” para abrir e fechar, segundo o plano de
nível do “ramal”, sem o que apenas as cotas inferiores do nível topográfico da cidade,
por este precário sistema de vasos comunicantes, seriam aquinhoados de água. Havia
assim, em certos cruzamentos, uns quadriláteros cimentados, com tampas removíveis
para introdução das chaves dos bombeiros, que eram as “caixas de manobras”. Essas
caixas subsistiram na cidade, mesmo depois que, já obsoleto o sistema, foi sendo
melhorado.
Lembro-se bem que, bem pequeno eu associava a caixa de manobra que ficava
ao lado da casa de meus avós Santídio e Sérgia, no cruzamento das ruas de Santo
Antonio com aquela do Barrocão, a idéia de um túmulo. Talvez porque a primeira
ocorrência de morte da família fora a de meu tio João Paulo (1929). Durante algum
tempo, até que me fosse mostrada a sua sepultura no Cemitério de São José, eu julguei
que meu tio estivesse enterrado ali, junto à casa.
Como se viu era um sistema simples e precário que excluía qualquer tratamento
da água captada. Num rio de vazão caprichosa como o Parnaíba, sujeito a flutuações que
crescentemente atrapalhavam a navegação a vapor, a água que chegava às casas pelas
torneiras era muito ruim. Nas águas era cor de buriti, pela argila em suspensão. Na seca
era menos suja, mas a canalização estava sempre e entupir-se de lama ou areia. A Casa
das Máquinas, contudo resistiu às grandes cheias do rio, inclusive aquelas perigosas de
1924 e 1926. Só depois seria demolida.
A participação do meu avô Santídio nessa primeira obra irá vinculá-lo muito à
vida da cidade. Mas tarde, no governo Miguel Rosa ele estará envolvido na instalação
da luz elétrica.
Sua participação neste empreendimento da pioneira Cia. das Águas, que acabaria
se extinguindo e passando o serviço para o encargo do governo do Estado, é também
importante no âmbito familiar porque nesse trabalho firmar-se-ia uma aliança de
colaboração e amizade entre o Major Santídio e um moço que se integrará à família.
99
Num dos seus trabalhos de medições de terra para os lados de Regeneração – a
antiga redução dos índios, a terra do bravo cacique Bruenque – conheceu o Major
Santídio um mocinho muito esperto e inteligente que ele não hesitou em empregá-lo
como “balizeiro”. Todos conheciam e tratavam o rapaz pelo apelido de Pombo.
O Pombo era trabalhador e inteligente e por suas muitas qualidades não demorou
para que o Major a ele muito se afeiçoasse a ponto de propor-lhe que o acompanhasse e
viesse morar em Teresina, trabalhando com ele.
O nome verdadeiro do rapaz era José Belisário da Cunha, filho legítimo de
Benedito José da Cunha e D. Filomena Rodrigues da Silva, no município de
Regeneração. Seu pai morrera cedo, sendo ele, assim, arrimo de sua mãe viúva. Nascido
em 1886, estava com dezenove anos em 1905 ao participar do serviço de topografia e
canalização do sistema de abastecimento d’água de Teresina. Aceito o convite do Major
Santídio (28 anos), foi o braço direito dele na execução da obra. O rapaz estava
satisfeito. Conquistara a inteira confiança de Santídio e trouxera sua mãe para a capital,
instalando-se com ela numa casinha modesta mas confortável, não longe da casa do
Major Santídio com quem trabalhava. E assim Pombo tornar-se-ia uma espécie de lugar
tenente de Santídio Monteiro numa aliança que duraria muitos anos.
Depois de um romance complicado, cheio de lances novelescos, Pombo viria a
casar-se com D. Mariquinha Rocha, a filha de D. Sérgia que voltara para junto dela.
Mas isso ocorreria bem mais tarde (1922).
Não sei ao certo o ano em que Mariquinha retornou ao Piauí, deixando irmãs e
tios na fazenda da Pedra Lisa em Minas e no Rio de Janeiro. Mas é provável que a Céu,
como ela chamava a mãe, ainda não ultimara a sua série de filhos com Santídio. Talvez
ainda faltassem os dois últimos: Mundico e Zeca.
Já sendo moça feita – teria 19 anos em 1902 – passaria a ajudar a mãe na
organização da casa e com os irmãos pequenos. Sobretudo porque D. Sérgia, após a
nova série de filhos, passou a ser atacada de glaucoma, que diminuiria cada vez mais a
sua visão.
Mariquinha era de gênio forte como o era a mãe. E os seus irmãos do segundo
casamento muito devem a ela em matéria de carinho e disciplina. Pouco a pouco ela
assumia os encargos da mãe a frente da casa e nisso tinha todo o apoio de Santídio, com
100
quem se entendia muito bem. Era madrinha de um dos irmãos, não me lembro o qual, e
ela e Santídio tratavam-se por Compadre e Comadre.
Foi moça caseira, sem muitas festas e vida social. Restringia-se a agitada vida da
casa da rua Santo Antonio onde os garotos atraiam muitos outros à casa. Teve uma
amiga íntima, a moça Elmira que mais tarde seria a esposa do comerciante Antonio
Leôncio Burlamaqui Ferraz. Foram amigas fraternas durante toda as suas vidas.
Antes que D. Sérgia cegasse por completo – o que deve ter ocorrido por volta de
1915 – Mariquinha iria ao Rio de Janeiro, visitar as irmãs. Na realidade a desadaptação
ao planalto sul mineiro não seria apenas de Mariquinha. A desadaptação climática fora
mais ou menos geral. Além do que a mudança de fazendas de gado, extensiva e aberta
no Piauí, para fazenda de gado leiteiro, era também violenta. Não demoraria muito para
que José Marques de Arêa Leão se convencesse que a experiência da Pedra Lisa estava
em maus termos. Ao lado disso, o irmão Antonio Martins formado engenheiro civil,
tinha na cidade do Rio de Janeiro a sua melhor oportunidade de trabalho. Os dois
irmãos entenderam-se e a fazenda mineira foi substituída por uma chácara no bairro
carioca do Meier onde os irmãos juntaram suas residências com as sobrinhas. José e
Adélia tiveram dois filhos: um menino que recebera o nome do avô Joaquim e uma
menina chamada Francisca. O garoto, vítima de uma consangüinidade muito perigosa,
em pouco revelara-se retardado, tendo vivido dando muitos cuidados a Adélia. Acabaria
os seus dias interno no Juqueri, em São Paulo. A menina felizmente, não se viu afetada.
Foi saudável, casou-se e teve filhos saudáveis.
Durante esta temporada vivida no Meier ocorreram dois acontecimentos
importantes. Júlia Virginia, a terceira filha de D. Sérgia e Joaquim Alves da Rocha se
fizera uma bela moça. Era, sem dúvida, a mais bonita das irmãs. Não herdara os fortes
traços dos Rocha, morenos de vivos olhos negros. Saíra mais ao lado Arêa Leão, sendo
alourada e rosada. Na chácara do Meier recebia-se a visita do primo Antonio Marques
da Rocha, aluno da Escola Militar do Realengo. Era aquele sobrinho que, nas conta-
correntes com o comerciante Polydoro, Joaquim autorizava entregas de dinheiro.
Assim nasceu um romance entre os primos e a tradição de “fechamento” dos
Rocha manifestou-se em mais um casamento. Logo que saiu da Escola e se fez tenente,
Antonio Marques desposou Júlia Virgínia e partiram para Manaus, onde ele iniciaria sua
carreira de oficial do Exército. De Manaus Antonio Marques foi transferido para São
101
Luis do Maranhão. Ali nasceu o segundo filho: a menina Myrtes. O primeiro filho –
Osmar e a última – Arabella – nasceram em Teresina quando Julinha visitava a mãe.
O outro acontecimento foi de tristeza. José Marques faleceu muito moço
deixando a viúva com os dois filhos ao encargo do irmão Antonio Martins. Assim a
família de D. Sérgia passaria a ter dois núcleos. Aquele, distante dela, no Rio de
Janeiro, com suas filhas e netas “Rocha”, chefiados por Antonio Martins de Arêa Leão.
O outro seria aquele de Teresina, ao lado dela, com os filhos “Monteiro”, ajudados por
Mariquinha Rocha, a filha que servia de elo de ligação entre os dois núcleos separados.
Como se percebe a cisão na família não resultou, contudo, em inimizade ou
separação irremediável. Nesse ponto, fazem valer os laços familiares muito fortes, na
sociedade brasileira do Norte. Antonio Martins nunca disfarçaria o seu desagrado pelo
casamento da irmã. Sempre se referiu a seu novo cunhado como “O Cabra”, termo
nitidamente eivado de sentido pejorativo. Mas Santídio tinha um temperamento muito
calmo e amigável. Nunca demonstraria ressentimento.
A vida na família Monteiro continuava em paz em Teresina. Os meninos
cresciam. Edith, muito calma e tranqüila, vivia entre os cuidados da mãe e da meio-
irmã. João Paulo era um menino normal mas Mundico era cada vez mais endemoniado.
Desde pequeno foi arteiro e rebelde, havendo um repertório imenso de casos que a
memória da família guardaria para espanto das gerações seguintes.
Ao contrário de João Paulo, era turbulento e indisciplinado. Os dois brigavam
sempre. Conta-se o caso dos cajus no telhado como amostra do que faziam os garotos.
Sobre o telhado da sala de jantar um grande cajueiro do quintal deitava galhos
frondosos. A curta distância os cajus maduros caiam dos galhos sobre as telhas sem
machucar. Os dois garotos logo descobriram o fato e começaram a disputar os cajus.
Acertaram entre eles um pacto e fizeram uma divisão no telhado. A partir de uma
determinada fileira de telhas, por eles convencionada, o depósito de cajus e castanhas
que era o telhado ficava dividido em duas metades, pertencendo a cada um deles.
Certo dia, na época da safra dos cajus, ouviu-se um barulho infernal no telhado
enquanto caiam cacos de telha para todos os lados. Mundico e João Paulo estavam
atracados na maior luta. O primeiro chegara bem cedo ao telhado e constatara que não
havia cajus do seu lado e que provavelmente João Paulo por ali passara fazendo a
limpeza. Nisto, chega o irmão e os dois discutem até atracarem-se. Mariquinha aflita vai
102
para o quintal e grita: Mundico vem cá! Desce daí, deixa de briga que tenho dez tostões
para te dar! Desce e vem apanhar os dez tostões. Quando ele vem apanhar o “prêmio”
Mariquinha tira as mãos das costas que em vez do dinheiro escondia um relho e dá-lhe
uma boa relhada. Uma apenas, pois o garoto disparara.
Mundico nutria especial implicância para com a irmã Edith e estava sempre
deformando suas bonecas e fazendo tudo para aperrear a irmã que, por sua vez, se
entendia bem com João Paulo e eram aliados.
Mundico ia mal na escola, não tinha cuidado com os livros, atirando-os como
rebolo para derrubar frutas das árvores ou para assustar os passarinhos. Maltratava os
animais de estimação dos irmãos e dos vizinhos. Vinham reclamações de todos os lados.
Apesar de tudo isto era o favorito da mãe e do pai, e talvez por isso mesmo, fosse tão
levado. Zeca, o caçula, era menino quieto e amável.
Enquanto isso na chácara do Meier, após a saída de Julinha, Adélia cuidava da
casa, dos filhos e das irmãs menores Judith e Ottilia, entrando na adolescência.
Muitos anos depois Ottilia me contaria que Adélia era uma “irmã-carrasca”
muito exigente, rigorosa e enjoada. Judith era mais quieta e reservada. Concentrava-se,
ao contrário de Ottilia, nos estudos. Sempre foi mais tímida e mais reservada. Parece
que sofria muito com a falta da mãe, tão distante. De tia Judith, nunca ouvi reclamações.
Mas Ottilia, que era mais expansiva, falastrona e sem reserva, a qualquer propósito,
demonstrava a falta de sorte que a perseguira desde pequena. “Tive uma mãe que
abandonou a mim e a minhas irmãs para se casar com um negro!” – foi expressão que
ouvi dela, num dia especial de depressão e revolta. E eu, apesar de ser um sobrinho bem
recebido e tratado por ela, era neto daquele “negro”.
Deixemos, por ora, D. Sérgia e seus mundos separados por estes tempos de 1906
quando a capital do Piauí inaugura o seu serviço de águas – com a participação do
Major Santídio – e se prepara para, em festas, receber a visita do Presidente Affonso
Pena. Talvez por ter sido o criador de Belo Horizonte, tenha tido alguma curiosidade em
ver a primeira capital construída a partir do nada.
Foi uma visita que, malgrado a brevidade, e até abreviação, marcou época. A
casa em que ficou hospedado – naquela época uma das melhores mansões, no início da
Avenida Frei Serafim – pertencia a uma senhora muito rica – D. Lavínia Fonseca, de
apelido D. Encarnadinha, originária de Jerumenha. A fatalidade abateu-se sobre a
103
mansão quando sua proprietária, na década seguinte, foi dada como vitima do mal de
Hansen. A mansão foi abandonada de tal modo que nem os moleques se atreviam a
penetrar no quintal para apanhar frutas, que apodreciam. Como a casa foi
“apodrecendo” com o tempo. A maldição foi tal que ninguém queria sequer o terreno,
que acabou – muito depois – dando lugar a um posto de gasolina.
Naquele início de século a notícia alvoroçou os Piauienses, pelo ineditismo da
visita. Um presidente no Piauí!
Ainda nos meus tempos de menino ouvi os mais velhos cantarolar a quadrinha
com que o populacho celebraria a visita, cantando:
104
As Cinco Coroas, degradadas pelo tempo... no quintal.
105
O Assassinato do Major Fiscal
1 . Introdução
Na minha meninice, entre meus sete a dez anos (1934-1937) o quintal da casa de
minha avó, à Rua da Glória era o meu reino encantado. A mangueira (manguito do
Correio) e o grande pé de umbu-cajá, bem esgalhado e mais fácil de subir, eram o
refúgio de um menino que, desacompanhado de outras crianças, vivendo entre adultos,
tinha ali o seu refúgio. Embora convivendo bem com a família, sentia uma necessidade
de isolar-se, de pensar, criar suas outras vidas paralelas, seu reino de sonho e fantasia.
Em meio as duas árvores maiores, havia plantas menores. Na frente ficavam as plantas
ornamentais e flores de minha tia Dulce. Ao fundo as fruteiras de minha avó. Bem ao
fundo o galinheiro. No canto extremo, entre a edícula da sentina e a cerca do fim do
terreno havia uma espécie de pequeno barreiro, local de onde havia sido retirada a argila
para fazer os adobes da casa. Malgrado muitos anos de entulho, a depressão persistia, e
a sua irregularidade perigosa era coberta e camuflada pelo melão de São Caetano que
soltava sua ramada e subia a cerca do fundo.
Aquele canto era o esconderijo ideal e ali eu armava – a semelhança das
galinhas, que por ali punham ovos que eu descobria em minhas explorações – uma
espécie de “ninho” formado de velhos cofos de palha ou papelão de caixas quebradas.
Ali, muitas e muitas vezes, eu me escondia para pensar e fantasiar, deixando o
pensamento à solta, correndo livre, conjecturando sobre o mundo complicado no qual
eu estava ingressando.
Na parede dos fundos da sentina, apostas em pregos estavam cinco “coroas”
dependuradas. Eram belíssimas “coroas de defunto” daquelas ditas “de loja” onde a
folhagem era de metal e as flores de porcelana, algumas delas de “biscuit”. Tinham sido
da sepultura do vovô Gerson, indo para lá em ocasiões especiais – finados, aniversário –
e retornando à casa para escapar aos furtos. A principio eram guardadas nas caixas
originais, em cima do guarda-roupas do quarto da avó. Com o tempo e ao sol
inclemente elas foram perdendo o brilho, desmaiando as cores da porcelana,
enferrujando as folhas e armações de metal.
Já se havia passado um quarto de século da morte de meu avô – morte
assassinada, por um malvado que deixara uma viúva com cinco filhos às vésperas do
106
nascimento de um sexto. Ali estavam as cinco coroas, solenes, pregadas à parede,
decorando aquele meu insólito refúgio, no fundo do quintal. Como eu pensava muito
sobre os mistérios da vida que mal vinha descobrindo as coroas desbotadas eram um
anúncio da “morte”. As vezes eu sentia vontade de atacá-las e, munido de um talo de
buriti, emprestado das cercas do galinheiro, tentava abatê-las da parede. Um dia um
temporal forte fez desabar um grande mamoeiro sobre o “barreiro”. Foi pena, tão
carregado estava, mas minha avó aproveitou os mamões verdes: pôs nos ensopadinhos
de carne, fez doce com rapadura e coco. E o tronco do mamoeiro, embora frágil, por
algum pouco tempo tornou-se uma passarela ou uma ponte levadiça sobre o barreiro,
por meio do qual eu podia, mais facilmente, atacar as coroas. Algumas flores se
desprenderam e, separadas do conjunto da coroa, pareciam lindas.
Perguntei à dindinha Dulce se ela não gostaria de aproveitá-las para os seus
arranjos de flores – que ela fazia em papel ou seda – mas ela me disse que eram coisa de
cemitério, enfeite de túmulos e que não assentava bem pôr em casa essas lembranças
vivas da morte. Era pena, tão bonitas as flores rias coroas. Tão caras, mereciam ser
aproveitadas. Ela mesmo já tinha pensado em pedir ao Hercínio – marido de nossa
prima Iracema – para, com o seu talento de pintor, recuperá-las. Mas o tempo foi
passando, passando, talvez não valesse mais à pena... talvez valesse mais cuidar da
sepultura do vovô, com a grade de ferro já tão enferrujada e caindo aos pedaços... Mas
havia tanta coisa a fazer, de mais urgente. Os mortos precisam mais de orações do que
de luxo no cemitério. Por isso eu deveria, antes de dormir, nas orações, rezar também
pelo vovô. Mãe Julinha ficaria contente que eu rezasse pelo marido dela.
A sombra da morte de meu avô cobria toda a casa. Não eram apenas as cinco
coroas, já decadentes. Dentro da cômoda do quarto da avó, havia um relicário. O
uniforme ensangüentado, os objetos mais pessoais do morto e a coleção de jornais da
época, relatando o fato que abalara a cidade, o assassinato do meu avô por um tal Chico
Falcão. Nome de família que soava como a própria evocação cio demônio. Minha avó
explicava que, chegado o tempo, quando eu pudesse entender melhor as coisas, eu
deveria ler os jornais para me inteirar daquela triste estória.
Minha mãe e minhas tias haviam sido “órfãs de pai”. Meu tio Gerson, nascera
seis meses depois que mataram o avô Gerson. A vida de minha avó não havia sido nada
fácil. Fora uma vida de lutas para criar e educar os cinco filhos. Mas a Providência
107
Divina ajudara. Apesar dos apelos à Providência Divina, e as orações, eu notava que
minha avó nunca ia à igreja. E ela me dizia que aquilo tinha a ver com o assassinato de
meu avô. Havia um padre – outro malvado – metido na trama “política”. Política era
coisa “nojenta”, e mais nojentos os padres metidos em política. Adiante eu saberia a
história toda.
Embora ocorrida já há muito tempo, e em outra casa, havia sobre o lar de D.
Júlia Figueiredo, toda uma sensação permanente de perda, frustração, mágoa, difíceis de
disfarçar.
Passaram-se os anos, as coroas se deterioraram até o dia que o lixeiro recolheu
os seus últimos restos. Os jornais da gaveta da cômoda amareleceram, eu morei em
outras casas com meus pais. Quando um dia voltei de férias, já morando no Rio,
perguntei a minha avó sobre o relicário do avô, pelos jornais que eu deveria ler, onde
estava o conteúdo daquela gaveta da cômoda que me fora um mistério acuado em sua
decifração. E ela explicou-me que o tempo, que tudo destrói. , consumira o relicário. Os
cupins haviam atacado os jornais e os transformaram em pó, como as vestes
ensangüentadas. Sobraram poucos objetos172, que eu agora poderia ver... Mas havia
ainda a lembrança das palavras e conselhos de sua grande amiga, a Professora Firmina
Sobreira que, sendo espiritualista, pedira-lhe que ela destruísse aquelas lembranças
tristes e, sobretudo que não passasse ao filho homem e ao neto o sentimento de revolta
ou ódio que poderia ser gerado. O melhor seria o perdão e o esquecimento.
Assim, o material jornalístico que tantos anos estivera na gaveta da cômoda da
casa, viria a ser consultado pelo neto, decorridos três quartos de século na Casa de
Anísio Brito, o Arquivo Público do Estado do Piauí. Consulta e análise que, já aos
sessenta anos de existência procurou ser feita sem ódios, com a objetividade e isenção
possível a um ser humano imperfeito e desprovido do saber necessário a entender o
mundo. Embora se tratando de um avô que, sacrificado aos trinta e dois anos, fez
imensa falia à sua família, procurarei aqui seguir o objetivo básico desta crônica; a
família como objeto de estudo inserido numa realidade bem maior, no contexto social
da minha terra que esta sim, estou procurando avaliar ou entender.
172
Os objetos pessoais, transferidos para o baú de D. Júlia me foram dados por ela, algum tempo após: o
pince-nez, a caneta de cabo de madrepérola, fotografias, cadernos de poesias e modinhas copiadas por
meu avô, ... que hoje fazem parte do meu relicário.
108
Para que se possa compreender o fato que representou o assassinato do meu avô
Gerson Edison de Figueiredo, seria impossível abordá-lo dentro do contexto da
personalidade do morto e no âmbito restrito de sua família. Seu assassinato, se não
invalida o lastro pessoal, foi, antes de tudo um ato político. Dai, antes de ser do meu avô
materno trata-se do assassinato do Major Fiscal do Corpo Militar de Polícia do Estado
do Piauí no início do governo do Dr. Miguel de Paiva Rosa, no Piauí, e do Marechal
Hermes da Fonseca, na Presidência da República.
Torna-se indispensável tentar uma abordagem dos aspectos políticos daquele
momento (1912) do nível nacional ao estadual e dando as devidas conexões com as suas
componentes religiosas e militares.
2. A Conjunção de Fatos
Ao final do primeiro decênio do novo século a Inglaterra coroava Jorge V
(23.06.1911) que sucedia a seu pai o “eterno príncipe de Gales”, Eduardo VII, cuja
longevidade da mãe Victoria quase não o deixara reinar. Mas em apenas dez anos, as
mudanças nos austeros costumes valeriam o epíteto de uma “era eduardiana” que se
confunde com a “belle époque”. O grande escândalo do caso Marconi envolvendo
Lloyd George e os ministros Isaac Rufus e Herbert Samuels lembravam que corrupção é
uma variável permanente do poder que pode abalar mas não destrói os poderosos.
Francisco José da Austria-Hungria tem seu império em franco declínio. O Kaiser
Guilherme II envida todos os esforços para alcançar, quem sabe sobrepujar, a marinha
britânica e o aumento das armas pesadas. Há rumores de guerra no ar. O sobrinho
rebelde de Eduardo VII agora media forças com o primo Jorge V.
Depois da conquista dos ares pelo nosso Santos Dumont em Paris, no início do
século, Louis Bleriot ganha o prêmio de 1.000 libras do Daily Mail atravessando o canal
da Mancha, avivando o orgulho francês. Enquanto o conde Zeppelin creditava para a
Alemanha uma viagem de 654 km. Os automóveis tomam cada vez mais conta das ruas
pondo em perigo a vida dos transeuntes. Paris assiste ao fim dos ônibus puxados à
cavalo. A nova moda feminina escandaliza, com a discussão sobre a “jupe entravée”,
ainda entre os espartilhos e largos chapéus de plumas.
Numa equivalência à hodierna conquista do espaço e chegada do homem à lua,
vivia-se o momento glorioso da conquista dos pólos: Cook e Peary no Pólo Norte e Scot
109
e Amundsen no Pólo Sul. O naufrágio do Titanic (1912) abala o mundo chocado entre o
avanço tecnológico da navegação marítima e sua vulnerabilidade, a mercê do
inexplicável fatalismo.
Em 1912, com os Bálcãs em guerra, Einstein ganha o Prêmio Nobel de Física,
consagrando a “relatividade” (1905) e transpondo uma impor tanto soleira na ciência.
Em Viena, enquanto declina o império austro-húngaro, a criação artística é elevada. É
desse mesmo ano o Harmonielehre de Schoenberg, uma revolução na música. Os ballets
russos de Diaghilev, escandalizam Paris com o “Prelude à l’Apres Midi d’un Faune”, de
Debussy, na ousada expressão de Nijinsky.
A cisão entre os partidários republicanos do Taft e Roosevelt favorece a eleição
do democrata Woodrow Wilson à Presidência dos Estados Unidos (1912). O México
vive sua revolução, onde Porfírio Dias foi substituído por Francisco Madero, que
enfrenta reivindicações de vários líderes fortes, como Vila e Zapata.
Enquanto os automóveis ganham as ruas das grandes cidades, a nossa Amazônia
experimentava o auge e a queda do extrativismo da borracha, transferida para as
plantações inglesas da Malásia.
A 15 de novembro de 1910, tomara posse na Presidência da República o
Marechal Hermes da Fonseca, após uma campanha que, pela primeira vez no país,
tomara as ruas em comícios, diferentemente das anteriores. Malgrado o entusiasmo na
imprensa e nas cidades maiores a campanha “civilista” de Rui Barbosa fora derrotada. A
decisão do pleito revelava, em si, uma série de acontecimentos importantes na evolução
da nossa incipiente vida republicana.
Desde que a “política dos governadores” de Campos Salles instituíra e
solidificara a aliança dos grandes estados dita “café com leite”, pela primeira vez
quebrava-se este poderoso pacto. Mas, uma série de circunstâncias conjugadas, da qual
não se pode excluir o “acaso”, interveio no evento. A inauguração do pacto São Paulo-
Minas (café com leite) firmara-se no governo Rodrigues Alvos que teve como vice-
presidente Affonso Perna (1902-1906). Inicialmente, os primeiros presidentes civis,
paulistas, ex-conselheiros do Império, tiveram vice-presidentes do Norte. Prudente de
Morais, teve como vice o baiano Manoel Vitorino, enquanto Campos Salles teve o
pernambucano Francisco de Assis Rosa e Silva.
110
Nos primeiros anos do século o prestigio do Rio Grande do Sul crescera, nem
tanto por força econômica mas pelas figuras de políticos de vulto e presença no Exército
onde a grande maioria dos generais era gaúcha. Além de valores individuais que se
aliaram na política nacional, como o Senador Pinheiro Machado, que em 1905 chega a
Vice-Presidência do Senado.
Desde a aliança do PRP paulista com Floriano que São Paulo ocupara a
hegemonia política que agora se firmara com a aliança do mais rico com o mais
populoso e de maior eleitorado (Minas Gerais)173. A ascensão de Pinheiro Machado,
durante o governo Affonso Perna, estabelecera um franco entendimento entre o senador
gaúcho, no legislativo e o Ministro da Guerra – Marechal Hermes da Fonseca (irmão de
Deodoro) que estava realizando uma relevante obra de reestruturação e modernização
daquela arma. Inclusive a criação do Serviço Militar Obrigatório, o que contribuirá para
a maior presença do Exército Nacional por todos os Estados da Federação.
Preparando a sucessão e visando o rodízio entre São Paulo e Minas no poder
executivo, Affonso Penna escolhia David Campista, um carioca radicado em Minas
Gerais como seu representante na dobradinha café-com-leite. A morte de Affonso Penna
e a conseqüente subida de Nilo Peçanha à presidência – obra do acaso – deu ensejo a
que a ação do Senador Pinheiro Machado conseguisse o seu apoio à candidatura do
notável ministro da Guerra – Marechal Hermes – a presidência, barganhando-se o nome
de Wenceslau Braz, Governador de Minas Gerais, para a vice-presidência.
O partido republicano da Bahia, aproveitando os ecos repetidos (e exagerados)
da atuação de Ruy Barbosa na Conferência de Haia (onde fora “águia”), lança sua
candidatura para enfrentar o Marechal Hermes. Quebrado o pacto café com leite, São
Paulo resolve, por seu PRP, apoiar o candidato baiano. O resultado foi o que se viu.
Com fraudes e violências de ambas as partes – como era de esperar – e contra todo o
ardor da campanha urbana dos comícios “civilistas”, o Marechal Hermes e seu
companheiro Wenceslau Braz, venceram as eleições.
Dando o desconto da retórica camuflante dos discursos da campanha as forças
oponentes tinham o seguinte significado real. O civilista era voz do descontentamento
da classe dominante no setor agrário, sobre tudo ligado ao café do sudeste que, há pouco
aliada ao militarismo florianista e disso tirando partido, via agora o aparelho militar
111
afastar-se do projeto oligárquico. O bloco do poder, ou seja, aquele que graças ao
candidato Marechal era visto como militarista, obviamente ligava-se à classe dominante
mas naquele setor mais urbano, dos comerciantes de exportação-importação e parte do
agrário-exportador, que se aliava ao aparelho militar para utilizá-lo como instrumento
para reverter o projeto oligárquico na direção de outras hegemonias.
Para completar o quadro de tendências gerais a nível nacional deve-se considerar
ainda o caráter geral dos panoramas militar e religioso.
Em 1904, após o levante contra o Presidente Rodrigues Alves a famosa Escola
Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, foi definitivamente fechada. Herdeira da
Academia Real Militar (1810) esta escola de formação do Exército era, ainda,
eminentemente teórica, ministrando Matemáticas, Filosofia e Letras. Com o fechamento
da escola do Rio ficara a Escola de Guerra de Porto Alegre, onde se ministravam
primordialmente as disciplinas militares. No governo de Affonso Penna, ocorreram
sensíveis melhoramentos na organização do Exército. Reestruturaram-se os quadros
hierárquicos, criou-se o serviço militar obrigatório e realizaram-se, pela primeira vez no
país, manobras militares. Além da atuação de Hermes como Ministro da Guerra, o barão
do Rio Branco prestou também sua colaboração. Por idéia dele, e com seu prestígio de
chanceler, conseguiu que turmas de militares brasileiros fossem enviadas para servir no
Exército Alemão. As turmas iniciais de 1906 e 1908, em 1910 foram aumentadas,
enviando-se 22 jovens, dentre os quais os futuros generais Bertholdo Klinger e Euclides
de Oliveira Figueiredo. Este grupo futuramente174 designado – “os jovens turcos” iria
prestar relevantes serviços à modernização do Exército Brasileiro.
Mas em 1911, com Hermes na Presidência, criava-se no Rio de Janeiro, a Escola
Militar de Realengo que, em sua estruturação, ministrava um ensino estritamente
técnico militar, distanciado do primitivo academicismo positivista daquela da Praia
Vermelha. O Exército, a partir daí, vai expandir-se e deixar de ser localizado apenas no
Sudeste e Sul do país. Mas será uma progressão lenta, definindo-se sua presença nos
Estados, segundo o contingente populacional e a força econômica.
173
Os estados mais populosos eram, em ordem decrescente, Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Rio Grande
do Sul.
174
Em 1913, ainda no governo de Hermes, fundava-se a revista “A Defesa Nacional” onde se publicavam
inclusive artigos e regulamentos alemães. Esta revista, lançadora do slogan “Rumo à Tropa” é
incentivadora dos “jovens turcos”, designação esta em analogia com a renovação militar ocorrida na
Turquia.
112
Por volta de 1910 o Brasil, consoante o seu extenso litoral e continuando um
esforço dispendido durante o Império, era considerado a terceira potência naval do
mundo. Sua esquadra compunha-se de duas dúzias de belonaves175. Construído nos
estaleiros de New Castle, Inglaterra pela Companhia Vickers-Armstrong, o Minas
Gerais era o grande orgulho da nossa armada. Lançado ao mar em 1908 sua entrada na
barra de Guanabara foi um acontecimento que marcou época na capital da República.
Segundo um jornal da época as salvas feitas pelos navios, nacionais e estrangeiros,
surtos no porto do Rio cio Janeiro, “... saudavam no vulto de açodo ‘Minas Gerais’”, o
Brasil Novo, opulento e poderoso, que vai na sua rota de progresso e civilização com a
mesma galhardia com que o primeiro dos seus dreadnoughts entrou nas águas
espelhadas da Guanabara”.
Enquanto a oficialidade do Exército era composta de rapazes de boas famílias de
classe média, sem muitos recursos, aquela da Marinha, era o viveiro da elite e dos filhos
de famílias mais aristocráticas e abastadas. Em contrapartida os marinheiros provinham
do outro extremo da escala social. Recrutavam-se ali os rapazes das classes mais pobres
ou mesmo os elementos “desclassificados” incluindo-se um elevado contingente de
negros e mulatos, da massa desorientada e marginalizada, do contingente escravo. Daí
decorria a grande quantidade de motins que ocorriam nos navios brasileiros, tanto em
nossos portos quanto naqueles do exterior. Os motins e indisciplinas, em geral, eram
pretensamente resolvidos por uma disciplina severa que incluía castigos corporais em
humilhação pública. Desde 1891, quando da rebelião dos marinheiros do navio
“Primeiro de Março”, ocorriam, cada vez com mais freqüência, rebeliões e motins, até a
eclosão da “Revolta da Chibata” (22 de novembro de 1910). A severa punição de um
marinheiro, amarrado ao mastro e chibateado no convés do Minas Gerais, provocou
tremenda reação da marujada que, sob o comando de João Cândido Felisberto e outros,
exigia a eliminação “da chibata”.
175
A composição da esquadra era a seguinte: 9 destroiers: Amazonas, Pará, Piauí, Rio Grande do Norte,
Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Santa Catarina e Mato Grosso; 1 couraçado, Deodoro; 2 cruzadores:
Rio Grande do Sul e Bahia; 2 encouraçados: Minas Gerais e São Paulo. Note-se que a categoria das
belonaves sintoniza com a importância dos Estados que lhes dão nome. Faz falta o Rio de Janeiro.
Acontece que o encouraçado que deveria receber esse nome, mais potente que o Minas Gerais, por
pressão da Argentina junto ao governo inglês, foi vendido para a Turquia. Tinha 27.000 tons. e era
armado com canhões de 14 polegadas. Paraná, Goiás, Espírito Santo e Maranhão, aquela altura não
estavam homenageados. Note-se que o Piauí, como Pernambuco, emprestara o nome a um dos
destroiers.
113
Tomando, simultânea e sangrentamente, o Minas Gerais, São Paulo, Deodoro e
Bahia – as belonaves mais possantes – ameaçavam bombardear a cidade do Rio de
Janeiro. Ameaça que à falta de resposta, principiou a ser cumprida, gerando pânico na
cidade. Não tendo surtido efeito a parlamentação sugerida pelo Senador Pinheiro
Machado, o Senador Ruy Barbosa apresentou um projeto de anistia aos rebeldes, o que
levou-lhes a depor as armas a 26 do mesmo mês. Foram quatro dias de pesadelo. A esta
tentativa de evitar derramamento de sangue, a expressão das forças conservadoras viram
um sinal de debilidade do governo. A oposição em São Paulo, aproveitou o ensejo. O
jornal “A Fanfulla” escrevia: “É bem doloroso para um país forte e altivo ter de sujeitar-
se as imposições de 700 negros ou mulatos que, senhores dos canhões, ameaçaram a
Capital da República”. Ainda houve uma seqüela pois a 9 de dezembro ocorreu uma
revolta no Batalhão Naval na Ilha das Cobras, resultando em repressão violenta pelo
governo, seguida de estado de sítio. Mas por iniciativa do Senador Rui Barbosa, foi
aprovado um anteprojeto de revisão das normas disciplinares e definitiva extinção dos
castigos corporais na Marinha Brasileira.
Estes acontecimentos, logo após a inauguração do governo do Marechal Hermes,
prenunciavam a turbulência de que se viria sacudido o país, ao longo do seu mandato. O
quadriênio do Marechal Hermes foi um período de grande agitação e efervescência
política onde a imprensa nativa – imbuída daquele poder de “criar” os fatos – dedicou-
se a denegrir. Recorro aqui a uma apreciação insuspeita, posto que fora dos limites das
avaliações “historiográficas” mas da sensibilidade de um homem de letras de grande
estatura moral – o escritor alagoano Graciliano Ramos. Extraio aqui um trecho de sua
saborosa “Pequena História da República”176 referente ao período hermista:
“O MARECHAL HERMES
ÊSSE quadriênio (1910-1914) foi tormentoso. Talvez nenhum homem
público tenha sofrido o que o marechal Hermes da Fonseca sofreu. Os
jornais disseram dêle cobras e lagartos, teatrinhos populares meteram-no em
cena como personagem quase obrigatória de revistas ordinárias, a blague
carioca não o poupou.
Em geral ninguém se lembrava de atacar-lhe os erros, que foram numerosos
esforçaram-se por cobri-lo do ridículo, e isto contentou a insensatez
nacional. Êse homem respeitável e honesto, bom Ministro da Guerra no
quadriênio anterior, caiu nas malhas da politicagem, que o apresentou ao
país como um idiota. Insultando-o, a imprensa usou o calão baixo; todas as
176
Texto publicado na revista SENHOR, Rio de Janeiro, Abril de 1960 – pp. 63-67.
114
anedotas em que figurava um imbecil vestiram roupa nova; contra o
marechal todas as armas se utilizaram: a calúnia, a vaia, o cartão obsceno.
Tendo sido, em 1910, antagonista de Ruy Barbosa, um gênio que, segundo
afirmavam, assombrava o mundo, Hermes da Fonseca foi considerado
antônimo do prodígio. Isto pareceu razoável ao público indígena. O presidente
era um sujeito cego, surdo, insensível. E quando falava, dizia bobagens.
Mexeram-lhe na vida íntima, expuseram em letra de fôrma horríveis
minúcias em gíria de bordel. Nunca houve neste país torpezas semelhantes.
OLIGARQUIAS
HAVIA em alguns estados do Nordeste velhas oligarquias firmes. Contra
elas surgiram vozes tímidas de vagos demagogos que dificilmente poderiam
conseguir prosélitos. Usando os meios ordinários, permitidos pela
Constituição, êsses tipos ficariam sempre resmungando sem proveito.
A máquina eleitoral funcionava com defuntos, e a fabricação das atas no
interior só não causava indignação porque tida a gente se habituara àquelas
safadezas.
Para pagar êsse trabalhinho, a falsificação do voto que produzia o
governador e o deputado, o sindicato político da capital dava ao coronel da
roça plenos poderes para matar, roubar, queimar, violar. A vontade do chefe
do interior, quase sempre um analfabeto de maus bofes, não encontrava
obstáculos.
Essa gente foi varrida. E queixou-se de violências.
Talvez a intervenção em alguns estados do Nordeste tenha sido a coisa
direita realizada no governo do marechal Hermes.”
115
pública. Isso levou a estratégia dita das “salvações nacionais”. Estas consistiam em
colocar interventores militares no governo dos Estados para desalojar os clãs oligárquicos.
Após a eleição presidencial (1910), seguiu-se a série de eleições para
governadores, muitas em 1911 e algumas – como a do Piauí – em 1912. A primeira
experiência “salvacionista” coroada de êxito foi àquela ocorrida em Pernambuco.
Contra a continuação de Francisco de Assis Rosa e Silva – um patriarca que desde 1896
regia a política pernambucana, de modo absoluto – colocou-se o General Dantas
Barreto, amigo e ex-Ministro da Guerra de Hermes. Derrotado nas urnas, como era de
esperar, o general denunciou como fraudulenta a vitória de Rosa e Silva. Passando da
denúncia à ação armada, com o apoio do povo do Recife e do Exército o General Dantas
Barreto conquista o Palácio das Princesas e o poder, em novembro de 1911.
No ano seguinte consumiram-se outras “salvações” no Nordeste. Na Bahia, a
oligarquia dos Vianna (Aurélio) foi, com o apoio do exército, vencido por outra
oligarquia a dos Seabra (José Joaquim). No Ceará o patriarca Accioly, com grande
apoio e entusiasmo da população de Fortaleza foi derrubado pelo Coronel Franco
Rabello. Nas Alagoas, Euclides Maia foi deposto assumindo o poder o Coronel
Clodoaldo da Fonseca, primo de Hermes.
Estas quatro operações, realizaram, com êxito, “salvações” que, na realidade
consistiam em substituir velhas oligarquias arranchadas há muito tempo no poder, por
outras aliadas ao governo federal. O Nordeste, como se vê, foi o palco dessas
intervenções pelo campo fértil que sempre tem representado nessa matéria de definições
oligárquicas. A grande frustração, arquitetada por Pinheiro Machado foi não ter podido
aplicar a intervenção salvadora em São Paulo. Em verdade porque não se tratava ali de
vencer uma oligarquia ou um clã familiar qualquer, mas toda uma classe de
cafeicultores, coesos em torno do PRP estadual. Sua estratégia de criar o Partido
Republicano Conservador a nível nacional, reunindo em torno de si os adeptos de
Hermes da Fonseca (outubro de 1910) era um meio de fazer frente ao poder do Estado
de São Paulo que, entre outras vantagens, contava com uma Polícia Militar tão bem
preparada que tornava desaconselhável qualquer tentativa de intervenção federal.
Esta consideração vem completar a apreciação das componentes militares
implicadas no processo político. Se as Guardas Nacionais, transformada em veículo a
serviço dos senhores de terra, fomentavam e apoiavam os poderes oligárquicos locais, e
116
o Exército estava mobilizado em promover o prestigio e legitimar a força do poder do
governo Central, as Polícias Militares viriam a ser o apoio básico e indispensável aos
poderes estaduais. Aquele atributo que se apresentava tão vantajoso, naquele momento,
no Estado de São Paulo, passaria a ser uma aspiração das outras unidades da Federação.
Sendo elas tão díspares, econômica e politicamente, apresentavam “policias” nos mais
variados níveis, tendendo antes ao despreparo, sobretudo no caso dos pequenos estados
satélites dos mais fortes, na barganha do poder político.
Não será o caso de comparar o esforço de melhoria na Polícia do Piauí com a de
São Paulo. Mas os esforços dirigidos nos governos Antonino Freire e Miguel Rosa podem
ser relacionados àqueles de outros Estados “fracos”, como aquele do Amazonas, no caso
da aliança hermista para o candidato Jonathas Pedrosa (correligionário do Coronel
Bittencourt) e adversários de Silvério Nery. Relação que se verá mais adiante, posto que
fundamental para que se compreenda o assassinato do Major Fiscal da Polícia do Piauí.
É de assinalar-se também, para um possível acabamento do quadro nacional que,
conjugado aos movimentos e agitações sociais ligados à questão operária, associava-se
– no início dos anos dez – sinais de um radicalismo anticlerical. Mas é inegável que esta
ocorrência ligava-se mais aos centros urbanos e portuários já em vias de industrialização
no Sudeste. Desde 1896 que, no porto de Santos, circulava um jornal socialista,
intitulado “A Questão Social” que aconselhava a seus leitores “a combater três
inimigos: a sacristia, o capital e o quartel. O primeiro é a noite, o segundo é a fome, o
terceiro é a morte”. Bem mais agressivos eram os jornais “A Época” do Rio de Janeiro
e, sobretudo aqueles paulistanos: “A Terra Livre” e “A Lanterna”, que moviam
campanhas de desmoralização do clero. Se remontarmos a dita “questão religiosa” do
Reinado do Imperador D. Pedro II (1872-1874) podemos admitir que ficara alguma
herança do antagonismo entre clero e Maçonaria.
Tanto uma quanto outra dessas feições anticlericais – operária e maçônica – têm
que ser consideradas, segundo suas diferenças de graus nas diferentes regiões
brasileiras. Assim parece que, no Nordeste em geral e especificamente no caso do Piauí,
se não se pode negar, ou mesmo minimizar esta questão religiosa sob estas duas fácies,
será necessário admitir que havia importantes diferenças de graus. Se, como já tentei
apontar atrás, a questão operária revestia-se menos de um caráter reivindicatório e mais
de um caráter “mutualista”, a própria ação da maçonaria talvez fosse também muito
117
mais de caráter mutualista que de ação política ou, pelo menos que, o caráter político
fosse decorrência desse esforço de proteção mútua entre correligionários (irmãos).
No Governo do Marechal Hermes, os acontecimentos ocorridos no Piauí, como
que confirmando a regra, dão-se revestidos daquele caráter peculiar de “originalidade”
que decorre de sua própria fraqueza e marginalidade política. Ai os três elementos –
político, militar e religioso – requerem um foco especial na realidade do Piauí naquele
momento histórico.
Para maior clareza de análise parece necessário anteceder a ação política da trama
clerical o do viés militar, artifício apenas didático já que estão fortemente associadas e unidas.
177
Nos anos sessenta, quando professor no interior de São Paulo (Rio Claro, 1960-1964) eu iria constatar,
meio século após, este mesmo caráter. Ser maçon valia a um professor de Faculdade não vir a ser
perseguido pela administração ou deixar de ter renovado seu contrato, por exemplo.
178
Publicado em Carta CEPRO, v.11, nº 1, Teresina, julho/dezembro de 1986, p. 87 a 114.
118
brilhantemente interpretada análise a que, qualquer interessado no tema deverá recorrer.
Aproveito esta excelente análise para dela extrair o sumário introdutório à questão das
eleições, momento que, sem dúvida constitui o ápice daquela luta.
Ali ficamos sabendo que a Loja Caridade II do Teresina, foi fundada em 1859,
tendo alcançado, duas décadas depois, certa notoriedade entre os membros da vida
pública teresinense. Contudo estaria fadada a sofrer um longo recesso que vai desde
1864 até o final de 1873, quando já estava quase superada a famosa “questão religiosa”
que envolveu o poder imperial e os bispos D. Vital de Oliveira (bispo de Olinda) e D.
Antonio de Macedo Costa (bispo de Belém). Naquela época o caso não teve repercussão
em terras Piauienses, além do noticiário nos jornais. Um outro recesso iria atingir a loja
maçônica entre 1880 e 1896. A partir daí – desse ano de 1896 que é o marco divisório
do período considerado neste volume –, já no período republicano, é que a organização
maçônica vai crescendo em importância e caráter político.
Até que se atinja a confirmação clara de luta aberta entre a Igreja e Maçonaria no
Piauí (1902-1912), pode-se distinguir três fases antecedentes e características.
1ª Fase – 1859-1883
Considerando-se a presença da Igreja desde o descobrimento e colonização do
Brasil, toma-se aqui, nesta avaliação de relações com a Maçonaria, a data da fundação
desta, por sua loja Caridade II em Teresina, logo após a fundação da cidade. Mas a
atuação da loja maçônica, naqueles primeiros tempos foi caracterizada por uma fraqueza
que seria confundida pelos longos intermédios de recessão por que passou.
À fraqueza social e política da maçonaria sobrepunha-se, inquestionavelmente, a
soberania da Igreja. Lembre-se ainda que, nesses primórdios da Maçonaria no Piauí não
havia oposição e luta entre as duas forças. Será em 1864 – antes da Guerra do Paraguai –
que o papa Pio IX irá proibir qualquer ligação entre a Igreja e a Maçonaria. É sabido que
no Brasil, por ocasião da Independência – quando a ação política da Maçonaria foi
acentuada – havia padres filiados às lojas. No Piauí mesmo, é conhecido o episódio de
atrito entre o Presidente da Província, o Barão de Loreto Franklin Américo de Menezes
Doria (25.05.1864 a 03.08.1866) e o padre-maçon, vigário de Teresina, Mamede Lima179.
179
O padre Mamede Antonio de Lima foi aquele vigário da Vila do Poti que se juntou ao Presidente José
Antonio Saraiva, para na Vila Nova do Poti erigir a cidade de Teresina. A criação da loja maçônica
logo no início da cidade, deve estar ligada a ação desse primeiro vigário de N.S. do Amparo.
119
A Igreja de São Benedito
Projetada e construída pelo capuchinho Frei Serafim de Catania, inaugurada em 1886.
A MAÇONARIA
A Loja Cap. Caridade II, situada à Rua Bela, com sua fachada rebuscada, no pseudo estilo (Renascença”.
Hoje como em 1912.
120
O domínio da Igreja, ligada ao Estado naqueles tempos imperiais, na Província
do Piauí, decorria de uma unanimidade nacional inconteste pois em suas terras,
diferentemente das outras, sua estrutura e mesmo presença, era bem limitada. O
território provincial contava com apenas 29 freguesias, até o final do século, com uma
relação, aproximada, de um sacerdote para 20 mil habitantes. Como tem sido ressaltado,
não houve obra catequética de Jesuítas que por aqui criasse colégios, como em outras
unidades. Antes que se fundasse Teresina, com a morte do Padre Marcos de Araújo
Costa, fechava as portas o único colégio que, embora criada por um religioso, o fora por
sua iniciativa pessoal, em sua fazenda Boa Esperança (Jaicós), continuando um projeto
paterno.
A Igreja nunca deu muita importância aos sertões Piauienses, de população
rarefeita e dispersa em currais de gado. A primeira diocese no Piauí, foi criada, após
muitas tentativas, apenas no alvorecer do século (1901). O primeiro bispo só chegaria
ao Piauí em 1906.
2ª Fase – 1883-1890
A partir de 1883, já ao aproximar-se a República, começam a ecoar em terras
Piauienses, mais especificamente na imprensa da capital, os rumores da luta que já se
abrira entre a Igreja, e a intelectualidade, com implicações de ação maçônica. Teresina
viu-se entre os fogos cruzados das primeiras lutas. O clero de São Luis do Maranhão,
pelo seu órgão “A Civilização” principiou uma campanha, com sérios ataques a Tobias
Barreto e sua chamada “Escola do Recife”.
Das idéias revolucionárias da segunda metade do século XIX, o positivismo
deitara raízes no Brasil. Além do seu acolhimento no Exército, no ensino das academias
militares, ele encontrou campo fértil nas faculdades de direito. Como é sabido, neste
particular, destacou-se a famosa Faculdade do Recife. Ali o positivismo e o
evolucionismo viriam minar a concepção católica do Direito, em sua versão idealizada,
passando a propor uma “ciência jurídica” que encarnasse a sociedade como um “fato
social positivo”. As novas idéias extravasavam da faculdade, passando os seus adeptos a
militar suas idéias pela imprensa e por meio de conferências públicas.
No Piauí já principiara a chegada de bacharéis formados na escola
pernambucana. Assim, entre as farpas lançadas pelos cléricos de São Luís aos
121
intelectuais do Recife, acendeu-se o primeiro foco em Teresina. Isto ocorreu pela
fundação de um periódico intitulado “O Reactor”, fundado por Clodoaldo Freitas,
acompanhado de quatro parceiros, os também advogados Higino Cunha, Miguel de
Paiva Rosa e Abdias Neves – formados no Recife – e o militar Cap. Domingos
Monteiro. Este periódico do qual os arquivos infelizmente não dão testemunho, teve
tiragem irregular, surgindo, ao que parece, nos momentos em que se acendiam as
discussões ainda externas. Mas sabe-se que seu conteúdo era nitidamente anticlerical e
livre pensador. Assim atacava os padres do Maranhão em defesa dos intelectuais
pernambucanos.
A loja Caridade II esteve em recesso desde 1880 e só irá reabrir em 1896. Deste
modo o grupo de intelectuais da cidade de Teresina, juntou ao ocasional “O Reactor”
uma tentativa de revista mensal pomposamente intitulada “Revista Mensal de
Literatura, Ciência e Artes”. O lançamento do “O Reactor”, em 1884, ocorreu durante a
visita pastoral de D. Antonio Cândido Alvarenga, Bispo do Maranhão com jurisdição
sobre o Piauí, e com seus ataques diretos pode ser tido como o marco que formaliza o
início de um movimento anticlerical no Piauí. Os livre pensadores, engajados também
na campanha republicana, escaparam da luta por um ideário político e ao lado do
anticlericalismo, como que se “isolaram” em suas preocupações culturais ventiladas na
Revista Mensal. Segundo a apreciação de Paulo Gutemberg de Carvalho, o discurso
dessa revista
“... era culto, hermético para a média cultural Piauiense da época. Esse
discurso se revelou sem efeito, inoportuno e irrelevante considerando-se o
momento em que se deu: a hora, vésperas da vitória republicana, era de
questionamentos mais realistas. Preferiram mergulhar em discussões estéreis
enquanto toda a imprensa nacional e o parlamento debatia, por exemplo, o
casamento civil, o registro civil, a secularização dos cemitérios, a separação
entre o Estado e a Igreja, etc. Ao tempo em que estas questões eram motivo
de acesas polêmicas, no Piauí, os ‘livres pensadores’ se davam ao luxo de
fazer ‘altas’ considerações filosóficas esbanjando ‘conhecimentos’ de uma
forma que não atingia a opinião pública. Pura retórica inútil”180.
180
Oliveira. Op. Cit. p. 96.
122
do Maranhão – levaram-no a apelar a um capitão do Corpo de Polícia Militar, seu
cunhado, a prender o distribuidor do periódico e confiscar o impresso. Tal medida
implicou num imediato pedido de “habeas corpus” por parte dos “livre-pensadores” que
o juiz julgou prejudicado pelo fato de haver sido relaxada a prisão do distribuidor e
restituídos os exemplares do impresso.
O segundo esteve ligado à visita do pastor protestante (presbiteriano), norte-
americano, por nome George W. Buttler que, em setembro de 1887 apareceu para fazer
uma pregação evangélica. A realização de seus “cultos” começou a atrair a curiosidade
da população da capital. Quando até algumas famílias de projeção e distinção social
começaram a afluir a pregação, acessível, do Reverendo Buttler, o Cônego Saraiva,
apreensivo, mandou repicar os sinos das igrejas. Na imprensa de São Luis para onde se
dirigiu em seguida, o pastor, chegou-se a divulgar a notícia (falsa) de que este havia
saído de Teresina “escorraçado pelo povo”. Disto resultou um telegrama assinado por
48 pessoas de destaque na sociedade de Teresina, sob forma de carta dirigida ao pastor
declarando, em abono da verdade, ser falsa a notícia de que o pastor havia saído fugido.
Dentre os signatários – comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais – da
carta publicada no jornal “A Reforma”, de São Luis, em seu nº 28, de setembro de 1887,
encontram-se as assinaturas de Clodoaldo Freitas e Higino Cunha. Com isso, percebe-se
claramente que os livre-pensadores queriam sublinhar, no desagravo ao pastor
protestante, o caráter anti-clerical da atitude.
Esta fase, como se percebe, reflete apenas um prenúncio da questão, seja por que
ela é, de um lado, reflexo do que acontece em outros centros, e do outro, a inauguração
de um anticlericalismo que provoca apenas uma preocupação inicial e certa inquietação
no Clero, que a inda se sente suficientemente seguro.
Esta insegurança aumentará com a proclamação da República e a separação do
Estado da Igreja na organização institucional do novo regime. A fundação, em Teresina,
do primeiro órgão da imprensa como porta-voz do clero, em 1890 é o marco com que se
fecha esta fase.
3ª Fase – 1890-1902
181
O autor não menciona a data do episódio. Pressupõe ter sido por ocasião da visita pastoral do Bispo.
123
A fundação pelo Cônego Saraiva, do jornal “A Cruz” é a primeira tentativa de
reação da Igreja local. Teve duração efêmera, sem registro na memória dos arquivos e
que deveria refletir aqueles primeiros embates, promovidos pelos livre-pensadores
locais em ressonância a uma reação bem mais forte vinda de fora.
Devemo-nos lembrar de que o início do período republicano no Piauí –
consoante mesmo a fraca participação provincial em prol do movimento que foi, como
soe acontecer, recebido como fato consumado – foi de uma acentuada indefinição
política. Lembremo-nos de que da proclamação até 1892 o Piauí teve o poder político
variando entre duas juntas governativas e uma seqüência de nada menos que sete
governadores.
Mas é, certamente, um período no qual a nova geração de intelectuais locais vai
se articular em alianças políticas. Enquanto se articulam essas novas coligações de
forças para o “novo” regime, e ante a separação dos poderes civil e religioso, não parece
ter havido clima para novas retaliações ao clero. Mas as novas idéias, continuam a ser
divulgadas. Menos pretensiosamente que a produção da Revista Mensal, aparece, ao
longo do ano de 1893 na “Gazeta do Comércio”, novo órgão da imprensa local, uma
série de artigos de crítica religiosa onde, sob o rótulo de “Religião e Ciência”, o Dr.
Higino Cunha discorre, em 21 capítulos, sobre as disparidades entre os dogmas da
Igreja Católica e as verdades da ciência moderna.
Decorreu um certo tempo para que a população – inclusive os políticos e os
religiosos – se dessem conta de certas implicações contidas na Constituição de 1891
sobretudo aquelas relativas à norma eleitoral. Embora tivesse sido instituído o “sufrágio
universal” restringia-se o direito de voto às mulheres, aos analfabetos, aos pobres em
geral e às praças de pré. A discriminação também era estendida aos elementos religiosos
vinculados a ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades religiosas
sujeitas a voto de obediência, ou seja, sujeitas a normas ou estatutos que importassem
em renúncia da liberdade individual.
A separação do Estado da Igreja, decretada em 1890, a princípio, foi aceita em
tese pelos religiosos que viam com maus olhos uma certa “sufocação” do governo em
seus assuntos. Assim, não causou tanta celeuma. A medida que os membros do clero
foram percebendo as implicações contidas na parte eleitoral, e compreendendo o seu
verdadeiro significado político, é que se vai desencadear a reação clerical.
124
A reabertura da loja Caridade II em Teresina , após um recesso de dezesseis
anos, vai ser um ponto de aglutinação da classe política emergente. Aquela dos livre-
pensadores que vinham se indispondo com o clero. A (teórica) autonomia dos Estados
em elaborar suas constituições juntava-se este fato importante, ou seja, a sintonia entre a
exoneração da tutela do Estado sobre a Igreja e a negação de direitos políticos ao clero.
A partir daí tornava-se urgente aos interesses do clero que fosse criada uma
diocese no Estado do Piauí, até então sob a tutela daquela do Maranhão. Iniciou-se,
então, aberta campanha em prol da criação da diocese do Piauí, à qual não faltaria
mesmo o apoio dos políticos locais, já que além de significar maior “prestígio”,
pensava-se que a liderança de um bispo seria, talvez, mais proveitosa do que a ação
dispersa de vários padres isolados.
Os esforços do clero local concentraram-se na liderança de um sacerdote há
pouco chegado à Teresina: o Padre Joaquim de Oliveira Lopes, que aliado ao venerando
Monsenhor Raimundo Gil, ascendeu em prestígio na capital, definindo-se como líder da
campanha. A partir de 1897 – ano seguinte à reabertura da loja maçônica – o Padre
Lopes toma o comando da campanha pró-diocese ao mesmo tempo que iria defender a
Igreja da ação da Maçonaria.
Criada a diocese em 1901 e antes da designação do seu primeiro bispo,
procedeu-se a última visita pastoral daquele do Maranhão – D. Xisto Albano, em 1902.
Durante a visita do bispo maranhense deu-se a publicação do último número do “0
Reactor”, com sua pregação sobre o livre pensamento com acento anticlerical. A partir
daí pode-se identificar o marco de abertura da grande e terrível luta que se irá travar
entre a Maçonaria e parte do clero, liderado pe1o Padre Lopes que, conseguida a criação
da diocese, passa a luta da Igreja local, contra os políticos congregados na Maçonaria e
que eram exatamente o grupo de anticlericais que havia conquistado o poder. Assim,
após a reabertura da Loja Caridade II (1896), a medida que se entrou pelo novo século:
125
ambiente propício para desencadear uma ‘questão’ político-religiosa entre
Igreja e Maçonaria no Piauí, de sérias proporções, repercutindo tanto na
imprensa do Sul como no Congresso Nacional”182.
O autor faz bem ao caracterizar a luta como “político-religiosa” de vez que ela é
eminentemente política pois esta componente se eleva acima dos propósitos mutualistas
de sociedade secreta da Maçonaria e acima de qualquer questão “de fé”. Acrescendo
ainda que as componentes “pessoais” são muito fortes nesse embate e, em nosso país,
tem sido norma, infelizmente até hoje a superposição do pessoal ao coletivo em nossa
mentalidade “política”.
Além da intelectualidade e dos elementos de força política a maçonaria abria-se
a elementos de outros estratos sociais, nos escalões inferiores. E, compreensivelmente,
era uma própria estratégia de ampliar o espectro social da irmandade para dar-lhe maior
efetividade política. Os líderes precisavam de “intermediários” entre a cúpula e a
sociedade como um todo.
Lembremo-nos aqui que exatamente em 1896 – ano de reabertura da loja –
chegava a Teresina, para sentar praça na Polícia Militar o adolescente Gerson Edison.
Sua integração social à comunidade da capital, em seus propósitos de abrir o seu próprio
caminho e conquistar um lugar na sociedade, um espaço que teria que ser aberto apenas
pelo seu valor pessoal, já que não era filho da fortuna nem de família influente, seguiu a
trilha das agremiações: as sociedades operárias, a imprensa e (porque não?), a
Maçonaria.
Não tenho meios de precisar a data de entrada de Gerson Edison na Maçonaria
mais é certo que, ao casar-se, em 1904, ele já pertencia à irmandade. E pelo que foi
relatado até aqui, vemos que ao atingir o posto de Major Fiscal do Corpo Militar de
Polícia do Estado do Piauí ele já se encontrava ligado por fortes laços – sociais,
políticos e de fraternidade maçônica – às duas figuras máximas do poder político do
momento: Antonino Freire e Miguel Rosa, governadores em sucessão.
Como o objetivo da presente crônica é sobretudo encarar a família em foco
como meio de entendimento social, cumpre abordar o assassinato do Major Fiscal como
fato social, que se liga diretamente a esta “questão” que abalou o Piauí no início do
século. Após esta análise é que focalizarei o seu significado dentro da família, vendo aí
182
Oliveira. Op. cit. p. 99.
126
– sem preocupação de forjar um herói – o que representou o assassinato do meu avô e a
interpretação do fato sócio-político no seio da família.
A importância do fato requer que ele seja analisado com cuidado, em sua
sucessão cronológica de eventos. Trata-se, pois, da fase decisiva que em 1902, com os
eventos da visita de D. Xisto Albano, e a entrada do Padre Lopes na questão, pode ser
considerada já como própria LUTA entre Igreja e Maçonaria no Piauí, definida no
período de 1902-1914. Adoto aqui, após a caracterização de três fases “antecedentes”, a
delimitação que lhe foi dada por Guttemberg de Oliveira. Contudo, vou permitir-me, na
abordagem dessa luta, ressaltar alguns eventos que – se não abordados por aquele
historiador183 para os propósitos do seu artigo de caracterização geral – serão relevantes
para o entendimento do assassinato do Major Fiscal que é um dos eventos que
configuram o momento do ápice da luta.
Após aquela progressão de fases que “prepararam” o desencadear da luta, esta
pode ser realmente definida no segmento temporal que vai de 1902 a 1914,
desenvolvendo-se ao longo dos governos:
183
Para os objetivos do artigo, os eventos que apontarei aqui, não fazem falta. Talvez tenham sido
deixados deliberadamente de lado, por irrelevantes a caracterização geral e compreensão da luta em sua
essência. Mas, a minha busca pessoal na Casa de Anísio Brito, revelou-me acontecimentos que me
permito exibir aqui. Em todo o caso estes acréscimos serão apenas um complemento ao que foi tratado
no referido artigo.
127
Este caráter cumulativo, agravador progressivo do mal estar, corresponderia às
manobras que antecedem à batalha ou o embate final. Vejamos assim, o desenrolar das
manobras. O manejo das forças para suas manobras na luta, requerem uma certa idéia de
sua composição e estratégias de ação.
Se a Clodoaldo Freitas cabe a primazia de haver inaugurado o movimento anti-
clerical em Teresina, aglutinando o primeiro grupo de intelectuais que iria ingressar na
Maçonaria, logo após a reabertura da loja (1896), e seu papel tenha sido destacado
dentro da irmandade, foram-se definindo três lideranças que, diversificadas em
tendências, pelo próprio temperamento e atributos pessoais, se completam. Higino
Cunha, mercê de seus méritos de estudioso de filosofia e de magistrado – que o levava a
ser chamado de “o mestre” – era uma liderança intelectual, nem sempre muito coerente.
Com sinais de habilidade política e força-moderadora, mostrava-se, por vezes, com um
louvável espírito diplomático e conciliador, como o demonstrará no episódio da
chegada do primeiro bispo. Após a luta passou a historiar o episódio de maneira a
desculpar o Pe. Lopes e criticar os exageros dos seus correligionários. Por isso não falta
quem o julgue sem isentá-lo de uma certa pusilanimidade e oportunismo. Abdias Neves,
também intelectual e escritor respeitado representou um papel de grande coerência na
luta, assumindo sua posição de ateu e livre-pensador, disposto a mobilizar a Maçonaria
na luta anticlerical e crente da importância política sobretudo no auge da crise
sucessória quando propõe a propaganda da luta para fora do Estado do Piauí. Miguel
Rosa, advogado, jornalista, impetuoso de temperamento, quando Secretário de Estado
da Educação enfureceu os padres por preconizar uma escola pública descomprometida
de qualquer culto religioso. Será ele que entrará em luta aberta contra o Padre Lopes,
numa luta que passa ao terreno pessoal. Era o líder mais ferrenhamente anticlerical e o
mais radical dos maçons. Muitos outros intelectuais e membros das profissões liberais
tinham maiores preocupações com o poder político e com as benesses que dela
pudessem fluir para seus negócios. A massa dos membros menores era coadjuvante,
encarregada do grosso da ação, na ambivalência da ascensão social e o beneficio da
ação mutualista da organização.
No campo contrário, a liderança do Padre Joaquim Lopes não pode revestir-se de
um caráter religioso, significando defesa da fé, já que se tratava, antes, de reconquistar a
184
Os governadores, eventuais substitutos foram José Lourenço e Manoel da Paz.
128
força política da Igreja, enfraquecida pelas medidas republicanas e acentuada no Piauí
pela ascensão de maçons anticlericais ao poder. Toda sua estratégia era política o que se
comprova pelo fato de que, não hesitava ele em aliar-se a elementos livre-pensadores,
inclusive maçônicos, desde que estivessem em oposição ao governo. Procurou atrair à
sua causa – que além de política, não disfarçava sérias componentes “pessoais” – forças
do poder econômico como a aliança com os fortes comerciantes e industriais – com o
Coronel Zés e a família Cruz, da Companhia de Navegação e da Fiação e Tecelagem.
Mais tarde quando vai unificar estas forças ao partido político que, de modo irreal, é
proposto como partido “Católico”, e que virá a ser a “União Popular”. O rótulo de
“união” pode deixar supor (ao estudioso de hoje) que a divergência política poderia
advir do antagonismo entre as mentalidades agrárias, atrasadas e urbanas progressista.
Isto de nenhum modo é verdade. De igual modo a liderança do Padre Lopes não pode
ser generalizada ao clero do Estado do Piauí, porquanto há vários exemplos de padres
partidários do governo e que, por isso mesmo, escapam aos ataques da Maçonaria. Um
grande aliado do Padre Lopes, na sociedade e elite teresinense, será o Dr. Elias Martins,
de uma família muito católica, que deve ter acreditado na componente de “defesa da fé”.
Logo em 1902, concomitantemente aos incidentes da visita do Bispo do
Maranhão, o Padre Lopes recusou-se a rezar missa em sufrágio da alma de um “maçon”.
Como o pedido partira do Dr. João Rosa, Secretário de Estado da Fazenda e pai do Dr.
Miguel Rosa, este mobilizou a Maçonaria contra o sacerdote.
Iniciou-se, a partir daí, uma inimizade de morte entre o Padre Lopes e a família
Rosa, que ganhou o campo da Maçonaria e da política. Guttemberg Oliveira185 aponta o
episódio e a sua repercussão na imprensa em quadrinhas pitorescas publicadas contra o
Pe. Lopes e Gil Martins no jornal governista “0 Piauhy”.
Em 11 de junho de 1905 o Dr. Miguel Rosa é eleito Venerável da Loja Caridade
II. Com o seu radicalismo ele abre as baterias contra o sacerdote inimigo, proferindo, no
mês seguinte, uma conferência pública intitulada “O Padre Lopes e sua obra”186.
Guttemberg Oliveira transcreve em seu citado artigo, trechos da conferência de Miguel
Rosa, publicado nas folhas do jornal “0 Piauhy” em sua edição de 12 de agosto de 1905.
Ali percebe-se que o chefe da loja maçônica contesta o caráter religioso da campanha do
Padre Lopes, ressaltando seu caráter nitidamente político, com a intenção deliberada de
185
Oliveira. Op. cit. p. 102.
129
cortar a sua carreira política, indispondo-o com os católicos, uma comunidade tão
grande.
Esta conferência implicou em reação por parte do padre que, por meio de um
órgão da imprensa teresinense de então, “A República”, passou a dar resposta. Na
minha pesquisa na Casa de Anísio Brito não encontrei sinal deste periódico. Mas, há um
pequeno acervo do jornal “A Pátria” que contém a série de artigos por meio do qual o
Dr. Miguel Rosa, redator gerente daquele órgão, brindou o Padre Lopes com
estarrecedores ataques. Seria do maior interesse retratar aqui o “duelo” o que não é
possível pelo já exposto. Embora com escrúpulos e toda a reserva a impropriedade do
fato de apresentar um dos lados da contenda, passarei a extrair alguns excertos dos
artigos de Miguel Rosa, por dois motivos: a) o conteúdo dos mesmos faz menção às
respostas do outro lado; b) a exposição apenas do lado de um dos contendores não
significa favorecimento do mesmo, porquanto os ataques de Miguel Rosa não são nada
abonadores para ele. Ao contrário, o nível dos ataques, de ordem pessoal é tão baixo que
causa espanto.
Este jornal “A Pátria”, uma edição semanal, tinha como redatores responsáveis,
além do gerente (Miguel Rosa), Abdias Neves e Antonino Freire. Tinha sua redação à
Rua Bela nº 27 e deve ter sido inaugurado em 1902 porquanto o seu nº 13 é de 24 de
janeiro de 1903. Pelo corpo redatorial percebe-se que está intimamente comprometido
com a ordem maçônica187.
A série de artigos de Miguel Rosa – inicialmente prevista como celebração de
uma “novena” em intenção do Pe. Lopes – chega a ultrapassá-la chegando até a 11ª
trezena. Está contida entre os números 208 e 220, respectivamente entre as datas de 11 a
29 de novembro de 1905, três meses após o nascimento da primeira filha do Alferes
Gerson Edison. O periódico “A Pátria”, semanal em sua origem, agora (1905) já é
matutino.
Sob o rótulo de O JESUITA PEQUENO, que acompanhará a série de artigos,
aparece n’ “A Pátria”, nº 208 de 11 de novembro de 1905, aquele que principia a série:
186
Idem. p. 102.
187
Note-se aqui que é deste nº 13, que procede o “parecer” da Liga Protetora Operária, exarado pelo
Conselheiro Gerson Edison. Este fato parece indicar que o jovem alferes, a esse tempo, já devia
pertencer à loja maçônica ou que, tinha bons termos de amizade com os redatores. Colaborando com
eles – como se verá mencionado mais adiante – não era difícil co1ocar matéria da Liga Operária.
130
“Muito intencionalmente, ainda não havia publicado o derradeiro artigo do
triduo em louvor ao santo vigário do Amparo. Fizera, comigo mesmo, o
propósito de secundar a Domingos Monteiro e mostrar até onde chega o
atraso, a má fé do padre Lopes, truncando nomes, mutilando opiniões para
ajeitar o seu desejo.
E hoje, seria a véspera da festa porque no “República” desta manhã o padre
certamente me insultará e domingo, indubitavelmente tenho que conter-lhe
na missa, levá-lo de charola pelo Barrocão (onde dizem estar aparecendo na
mula-sem-cabeça) e talvez rezar-lhe um terço, depois da prática do estilo.
Mas desisto do meu plano primitivo e nada digo sobre o cemitério dos Altos.
Ali enterrou Domingos Monteiro o farcola do Sr. Lopes e isto depois de
meter-lhe pancada de criar bichos.
Ora, eu não dou em defuntos. Ressuscita Lázaro, e volta.
E prepare-se o público para a festividade de amanhã, porque sei que o padre
encomendou um artigo insolentíssimo contra mim.
Miguel Rosa gr ∴ 7∴”
“...............................................................
.... Filho de homem que perdeu a razão atormentado pelo remorso de suas
ladroeiras, bem cedo o expulsaram do lar paterno. Para não aprender as
velhacarias do pai? Não; porque o leproso escandalizava a sociedade de sua
terra com os atos mais indignos, prostituindo-se ao primeiro moleque. E o
enviaram para o teto de um padre.
................................................................
................................................................
.... enviou-o para o Seminário do Maranhão. Ali um padre italiano
espadaúdo e sanguíneo, tomou-os a seus cuidados e assim logrou o formigão
Lopes cantar a sua missa nova.
Mas ficou doentinho, não engrossou jamais a voz e continuou a fazer jús ao
apelido de ‘boi-vaca” com que os colegas o mimoseavam em Valença.
...............................................................
...............................................................”
Como se vê no mais brilhante “machismo” o ataque começa à pessoa do padre,
em sua suposta sexualidade. Daí prossegue focalizando sua chegada à Teresina, onde
após captar a confiança de Monsenhor Gil o enreda como responsável (tesoureiro) na
trama de sua desonestidade no trato do dinheiro que, em nome da criação da diocese,
angariara no interior do Estado. Esta capacidade teria sido tão forte que o padre
recebera, de um sertanejo espirituoso a alcunha de “padre pente-fino”. E acentua a
131
traição do padre ao seu protetor ao imputá-lo responsável pelo desaparecimento do
dinheiro arrecadado.
A 2ª novena, como seria de esperar, é dedicada a responder às acusações que o
padre fizera a ele e a seu pai (Cel. João Rosa) em um outro órgão da imprensa
teresinense intitulado “0 Tempo”, sobre o qual não foi possível encontrar nada no
arquivo público.
A 3ª novena (A Pátria, nº 211 de 18.11 .05) principia:
Criada, desde 1901, a diocese do Piauí, depois de cinco anos, havia sido
nomeado o primeiro Bispo, D. Joaquim de Almeida, filho do Rio Grande do Norte e que
chegará à Teresina a 12 de março do ano de 1906. Percebe-se aqui que, estando próxima
a chegada do primeiro bispo, ê imputada ao padre a intenção de envolvê-lo na luta. Isto
seria bem conveniente para que a querela pessoal e política ampliasse o seu espectro
para abranger o caráter nitidamente “religioso”.
Naquela mesma edição do jornal, fica-se sabendo, na coluna dos “Fatos
Diversos” que a reunião de ontem a noite (18.11) a sessão da Loja Capilutar Caridade
II, prolongara-se até as 10 horas da noite e que, na noite da próxima quarta-feira, 22, às
132
7 da noite no lugar de costume, haveria uma sessão extraordinária. Isso dá uma idéia da
gravidade da situação.
A edição do “A Pátria” do dia 22 já está na 6ª novena. Têm seqüência aqui as
ofensas e acusações ao padre, e registra-se a entrada do Dr. Júlio Rosa, irmão de
Miguel, na contenda, pois que, vindo juntar-se ao irmão, na defesa deste e do pai,
promete uma resposta ao padre dentro de sete dias. Ao que Miguel Rosa, finaliza esta
novena, do seguinte modo:
“Mal sabe o meu irmão que quebrei quase todos os dentes do cachorro. Que
ladre, portanto. Mas, lendo o meu artigo de ontem o pobre animal apenas
uiva porque não pode, não é capaz de respondê-lo.
Miguel Rosa”
Sem pretender nenhum endosso a esta acusação grave de Miguel Rosa ao Padre
Lopes, vou inserir aqui uma estória de família que, destituída de qualquer atestado de
verdade, poderá ser associada a esse fato.
Sem que seja possível apontar a data da ocorrência, ficou na tradição oral da
família Gonçalves Dias o fato de que, a penúltima filha do Capitão Ludgero – a
Raimunda ou Mundica como era chamada pelos irmãos, voltara, certo dia, muito
alvoroçada da Igreja do Amparo onde fora confessar-se. Contou às irmãs que, durante a
confissão o sacerdote, que outro não era senão o Padre Lopes, no meio do ato,
perguntara-lhe se ela já havia sido acometida de “maus pensamentos”. Ante a
dificuldade da confessante em atinar com o que fosse um “mau pensamento” o
confessor resolveu ajudá-la, didaticamente, com a pergunta elucidativa: “Você já viu
um par de cachorros emendados? Sabe do que se trata? Já teve vontade de fazer o
mesmo com um rapaz?” Esta estória correu aos ouvidos das irmãs, chegou aos irmãos e,
por eles, ao velho Capitão que proibiu terminantemente às filhas a prática da confissão.
Da geração de minha avó – e tios-avós – a estória passou à geração de minha
mãe e tios e chegou até a minha, ou seja, a de minhas primas, a quem Raimunda (Yayá
para as sobrinhas netas) repetiu o caso. Era uma estória de família que passara a ilustrar
o anticlericalismo do Capitão Ludgero e um visível afastamento das minhas tias-avós da
133
igreja, embora todas elas tivessem os seus oratórios e rezassem em casa. Desde a Dinda
(Francisca, a Sinhá Moça) até Júlia, mulher do Major Gerson, minha avó. Com o
assassinato daquele, a estória passou a juntar-se como ilustração ao mau caráter do
pároco, tido como autor intelectual do crime.
No meio de tanta paixão e baixeza de nível da disputa política é necessário dar
um desconto. A figura do Padre Lopes é bastante polêmica, girando em torno de
extremos. Para uns ele era um santo homem devotado à Igreja. O seu caráter político,
unânime para seus correligionários, justifica-se em defesa da Igreja. Para seus
adversários o mínimo que dele se dizia está refletido no apodo com que ele era mais
comumente designado: o maligno.
Sem nenhuma preocupação em afirmar, pode-se ta1vez aventar a hipótese de
que essa estória passada com a cunhada de Gerson tenha chegado, por intermédio deste,
à Maçonaria, ou pelo menos aos ouvidos do amigo Miguel Rosa, que a utilizaria como
munição em seus ferozes ataques.
Note-se o fato de que o aconselhamento aos pais de afastar as filhas do
confessionário, soa, nesta novena, de modo vago. Contudo, em novena seguinte – com
mais precisão naquela de nº 10, que portanto já era referida como trezena (A Pátria nº
218 de 26.11.1905) há, em meio a um rol de acusações, ordenadas pelas letras do
alfabeto, naquela da letra “o” aparece:
“.....................................................................
.......................................................................
o) porque fez propostas indignas a uma senhorita no próprio confessionário”.
o que significa que, a haver (se for o caso) relação entre a estória de Raimunda Dias e o
seu aproveitamento na querela, ela poderia ajustar-se ao aconselhamento em face de
alguma inconveniência. Se viesse a ser em relação ao caso especificado como “proposta
indigna”, a acusação viria a ser uma perversa calúnia. Será possível que, no afã de
denegrir-se a imagem de um inimigo se possa recorreu a qualquer coisa, mesmo a
despeito de incorrer numa enorme contradição? Uma das primeiras preocupações havia
sido a de atingir o padre em seu ser biológico ou psicológico, como um notório caso de
homossexualismo passivo. De repente, o mesmo alvo, torna-se a figura de um perigoso
sátiro de batina a atacar as mocinhas no confessionário.
No decorrer da análise o cronista terá muitos elementos para conduzi-lo à idéia
de que o Padre Lopes não deve ter sido “flor que se cheirasse” pois a sua vileza política
134
e outros traços de sua personalidade induzem a esta concepção. Mas, desde o início da
“questão”, nesta disputa Igreja X Maçonaria, ela demonstra que o seu líder radical da
segunda foi extrema e desnecessariamente violento, expressando-se num nível que
passou a ser, antes, uma “mancha” na memória do homem público que ele foi, em cujas
realizações não faltam obras de mérito.
Retornando à apreciação da 10ª trezena, encontra-se no mencionado rol de
acusações contra o Padre Lopes, o seguinte item:
“.....................................................................
.......................................................................
f) porque acompanha o enterro dos Maçons ricos, mesmo depois de
sofrer afrontas (o caso do meu saudoso Mestre Dr. Jacob Gayoso) e
não acompanha o saimento dos Maçons pobres (o caso do meu
inesquecível Ir. ∴ Thomaz Baptista) e não encomenda sequer o
cadáver dos desprotegidos da fortuna (o caso do meu saudoso Ir. ∴
Joaquim Cunha).
135
Gerson Edison, então Alferes, terá o seu período de missão na Parnaíba (30 de
outubro de 1905 a março de 1907).
A 12 de março de 1906, em meio a muitos festejos chega à Teresina o primeiro
bispo, da “independente” diocese do Piauí, criada desde 1901. Vinha o prelado imbuído
das melhores intenções apostólicas, disposto inclusive a fundar o Seminário para
acolher as novas vocações. Trouxe consigo 22 seminaristas e um especialista em
Economia Agrícola, para colaborar junto aos diocesanos da zona rural do Estado.
A Maçonaria – para neutralizar as intrigas já tecidas pelo Padre Lopes –
participou da recepção, de modo diplomático, já que o Dr. Higino Cunha foi um dos
oradores encarregados de saudar o prelado. No seu artigo, Guttemberg Oliveira refere-
se ao episódio reproduzindo inclusive trechos do discurso do Mestre. É uma saudação
muito diplomática e conciliadora.
“Como porta voz da elite dirigente e de uma mentalidade que não rezava
mais pela cartilha da igreja na expressão do padre Chaves, o mestre deu bem
o seu recado. A realidade, porém, era outra, pois as hostilidades entre o clero
e a Maçonaria ainda existiam, mesmo que latente, e esta situação de trégua e
expectativa durava tão somente pelo fato de D. Joaquim se posicionar a
favor do padre Lopes na sua atividade política e sacerdotal”
“A intenção dos maçons sugerida nas entrelinhas do discurso de Higino
Cunha, era que D. Joaquim utilizasse sua autoridade de chefe da igreja no
Piauí e pusesse fim a atividade política do clero liderada pelo padre Lopes.
Mas, quando, o bispo toma conhecimento da situação e é convencido pelo
clero de que sem prática política a igreja não resgataria e nem manteria sua
influência diante da população, ele ratifica a orientação do Padre Lopes em
continuar a militância política da Igreja. Logo que D. Joaquim se recusa a
repreender a ação política do padre Lopes, não custou ver a público os
ataques difamatórios contra sua pessoa e críticas ao bispado até mesmo em
jornais de fora, com a “Pacotilha” de São Luis do Maranhão”188.
188
Oliveira. Op. cit. p. 104.
136
A ala mais moderada da Loja Caridade II consegue que o Dr. Miguel Rosa,
extremamente radical, se afaste, provisoriamente, da luta. A morte do Governador
Álvaro Mendes, em dezembro, abre agora a questão da substituição legal do Dr.
Aerolino de Abreu (também doente). A tumultuada passagem dos substitutos legais
nesta fatídica seqüência de mortes chega ao governo eleito do Dr. Anísio Auto de
Abreu, que tem como Vice-Governador, o Maçom Dr. Antonino Freire, engenheiro,
realizador de obras de vulto como membro de governos anteriores.
Isto era um sério perigo para o clero. Com tal fatalidade de mortes de
governadores a probabilidade de um Maçom no governo pioraria a situação da Igreja.
Assim, exatamente nesse momento de inauguração do novo governo tem lugar uma
grande ofensiva daquela contra a Maçonaria. O Dr. Anísio de Abreu é empossado a 1º
de julho de 1908. Neste mesmo mês o bispo D. Joaquim lança uma Carta Pastoral ao
seu clero, ao ensejo do jubileu sacerdotal do Papa Pio X e exaltando a sua encíclica
“Pascendi Domini”189, aproveita o ensejo para lançar um tremendo libelo acusatório
contra a Maçonaria.
Esta, desde a posse de Anísio de Abreu (julho de 1908) com Antonino Freire
como o Vice-Governador, agitou-se.
Como era de esperar – ante a fatal idade das doenças que atacavam os
governadores – o Dr. Anísio de Abreu, entra em licença para tratamento de saúde na
capital federal. Assim, para desespero do clero filiado ao Pe. Lopes, o Dr. Antonino
Freire, como legal substituto, assume o poder no período de 06.08.1908 a 15.01.1909.
A luta cresce em intensidade, mas não será agora, durante os cinco meses de
Antonino Freire no governo que o ápice da luta será atingido. Ela está em franco
progresso. Ante os ataques diretos do bispo em sua carta pastoral a Loja Caridade II,
que criara o periódico “A Luz”, lança uma edição especial rebatendo os ataques do
prelado. O jornal favorável à Maçonaria “O Monitor” em sua edição de 27 de agosto de
1908 lança as mais graves acusações contra D. Joaquim inclusive de desonestidade e
dilapidação dos bens da igreja no Piauí.
189
Esta encíclica é um libelo da Igreja contra o “Modernismo”. Como se sabe, o início do século foi um
momento de grandes mudanças. Na ciência a relatividade de Einstein (1905). Nas artes – que
canalizava para si os aspectos visíveis do “modernismo” – o pintor Pablo Picasso com sua tela “Les
Demoiselles d’Avignon” (1907) iniciara o cubismo. Sinais da transição para a nova “modernidade”.
137
As acusações baseavam-se no fato de que, para custear suas ambiciosas obras de
apostolado e solidificação da Igreja no Piauí, o bispo promovera a venda de bens e
fazendas do patrimônio de N.S. do Carmo de Piracuruca o que, por se tratar de uma
fundação, seria uma venda ilegal. Mesmo elementos do clero não puderam disfarçar o
mal estar que tal venda causara. Além de ser considerada por alguns padres uma venda
realizada muito abaixo do valor real, o produto da venda, pela inexperiência do bispo
em questões de finanças, fora desbaratado. A Maçonaria preferia crer na incorporação
pessoal dos bens da Santa.
Logo irá tornar-se claro o fato de que, o primeiro bispo, em que pese suas boas
intenções, não era homem de pulso forte para uma liderança e que esta está, claramente,
nas mãos do padre Lopes. Está este imbuído da idéia de uma “igreja triunfalista”, a qual
é indispensável a ação e prática política. Assim ele ataca, dirigindo a sua estratégia de
ação em duas frentes. De um lado ele define o seu partido político – inicialmente
pretendido “católico” – como “União Popular”, para acentuar um caráter de
descontentamento do “povo” contra o governo e os maçons. De outro ele se empenha
em criar e multiplicar as “irmandades” católicas nas igrejas da capital e do interior190.
O Dr. Anísio de Abreu, de volta do Rio de Janeiro, reassume o Governo a 15 de
janeiro de 1909. Sabia-se que o seu estado de saúde não era animador. Além dos seus
méritos de homem honrado, intelectual respeitado e político decente, a doença
contribuiu para grangear-lhe uma aura de simpatia. A grande campanha do c1ero de
Teresina, contra o governo era sensivelmente amortecida pela indulgência e respeito que
o sentimentalismo do povo dirigia ao governador doente. Assim, os anticlericais e
maçons aproveitaram este estado de ânimo popular chegando a realizar passeatas de
solidariedade ao governo pelas ruas da cidade.
O ano de 1909 foi um ano terrível e a capital do Estado esteve sempre
sobressaltada a medida que se acentuava a luta do clero contra o governo e a maçonaria.
Para agravar ainda mais a situação, a sucessão presidencial inicia a famosa campanha
“civilista”, a mais ardorosa de todas até então travadas. A disputa entre o candidato do
governo, o Marechal Hermes (militarista) e aquele da oposição, Ruy Barbosa (civilista),
190
A propósito dessas irmandades – integradas naquele esforço de reconquista do espaço de prestígio da
Igreja – vale a pena ler o que sobre este dado escreve o “Brazilianist” Ralph della Cava em seu estudo
sobre o Padre Cícero, intitulado “Miracle at Joazeiro” , New York , Columbia University Press, 1970.
138
encampado no Piauí, não consegue ultrapassar o ardor da luta local entre clero e
governo.
Vale lembrar que o futuro Major Fiscal era então o tenente Gerson Edison
(10.01.1908) que, na maior parte deste ano, esteve fora de Teresina. Como já se viu ele
esteve em missão, como delegado em Periperi, combatendo “foras de lei” no período de
3 de agosto de 1908 até primeiro de outubro deste ano de 1909.
Em 30 de janeiro houve eleições para o Congresso Nacional. Foram diplomados
Joaquim Ribeiro Gonçalves, para o senado. E para a Câmara dos Deputados: novamente
Joaquim Ribeiro Gonçalves, Álvaro Teixeira Mendes, João Gayoso e Joaquim Cruz.
Havendo Ribeiro Gonçalves optado pela Senatoria, uma nova eleição colocou naquela
vaga o jornalista Félix Pacheco que se diplomou a 21 de agosto.
A prefeitura da capital também sofreu mudanças com a eleição e depois renúncia
do Cel. Emilio Cesar Burlamaqui, tendo sido eleito o Engenheiro Pires Rebelo que
iniciou uma série de obras e melhoramentos, a partir de outubro.
Ao longo desses meses a luta entre o Pe. Lopes contra o Governo e a Maçonaria
não arrefecia. A 19 de maio o Padre Lopes diz que fora ameaçado por anticlericais que
para fazê-lo, “invadiram” a Igreja de N.S. do Amparo na intenção de agredi-lo. A 26 de
novembro ele vai ao interior, pretextando desobriga para casamentos mas, na realidade
para arregimentar homens armados. Os ataques do “O Monitor” continuavam fortes
contra o clero e este passou a ameaçar o diretor do periódico, o bacharel Aurelio Brito.
Ocorre um protesto contra as ofensas do “O Monitor” ao clero, assinado por 356
membros da “União Popular” no qual se prevenia e ameaçava Aurélio de represálias.
Na quinta-feira, 2 de dezembro, dia de saída do “O Monitor” os grupos armados,
arregimentados no interior pelos padres, entram ostensivamente na cidade postando-se
em proteção ao quartel general do clero: a residência do bispo, a redação do “O
Apóstolo”. Armava-se o clero no Paço Episcopal, para revidar um iminente ataque da
polícia do Governo. No auge da confusão dá-se o falecimento do Governador Anísio de
Abreu. Ante a situação grave, o vice Antonino Freire, para tomar posse como substituto
legal, exige a ratificação da Assembléia Estadual confirmando-o no cargo. Agora pode-
se compreender a exigência. Enquanto isto o Governo é assumido pelo Presidente da
Assembléia Estadual, o Coronel Manoel da Paz.
139
A exigência de Antonino Freire foi uma manobra política muito hábil porquanto
demonstrava isenção de ânimo para usar do seu legítimo direito de vice-Governador. A
presença de Manoel da Paz no governo (6 de dezembro) era uma garantia para os
membros da Loja Capitular Caridade II191 e assim Antonino aguardaria, de cabeça
erguida, o veredicto dos membros da Assembléia.
O espalhafatoso cerco do Paço Episcopal, foi manobra defensiva organizada
pelo próprio clero, posto que fora feita ante a alegação deste que apregoava que o
governo pretendia depor, e deportar, o bispo D. Joaquim. Este boato correu o país, o que
obrigou o deputado Félix Pacheco a subir à tribuna da Câmara dos Deputados para
esclarecer, na Sessão de 15 de dezembro de 1909, dizendo que no Piauí não havia
perseguição religiosa como era apregoado pela imprensa adversária e o que havia era
uma expressão do oportunismo político da União Popular, que explorava o incidente.
Em janeiro a Assembléia Estadual ratifica o Dr. Antonino Freire, vice-governador,
como substituto legal do falecido governador. Mas a sua posse só ocorrerá no dia 15 de
março de 1910 passada a eleição para Presidente da República (10 de março) na qual o
resultado no Piauí foi de 7.965 votos para Hermes da Fonseca e 1.491 para Ruy. Alguns
dias antes da posse (10 de março) o Governador em exercício, Manoel da Paz, justifica
a ação do governo no incidente do Paço Episcopal, em mensagem publicada no Jornal.
“O Piauhy” declarando, inclusive, que a pretendida deposição do Bispo não passava de
“rebates da exploração e do espírito de oposição aos administradores do Estado”.
Assim, este episódio que podia ter tido funestas conseqüências, foi contornado
pelo governo, que acabou se saindo bem uma vez que, para evitar futuras complicações,
o bispo D. Joaquim foi transferido para a diocese de Natal. Como arremate o bispo
publica uma “Carta de Despedida” aos Piauienses onde responsabilizava a União
Popular pelo radicalismo que conduziu a termos tão extremados a desavença com a
Maçonaria. Termina fazendo uma exortação a que se perdoe a todos os que injuriaram a
Igreja e o clero.
Este conselho, longe de ser aceito pelo Padre Lopes enfureceu ainda mais. “O
Apóstolo”, sob a orientação do padre e de Elias Martins, continuou seus ataques à
Maçonaria e ao Governo Antonino Freire.
191
O Cel. Manoel da Paz era sogro de dois dos líderes maçônicos: os Drs. Higino Cunha e Abdias Neves.
140
Depois de sua volta à capital, no início de 1910, o Tenente Gerson – após sua
licença – vai promovido a Capitão (20 de abril), já pelo novo governador, Antonino
Freire e de setembro a dezembro irá desempenhar-se da missão que o governo lhe
confiará de, como delegado de Picos, proceder a uma inspeção geral nas guarnições e
destacamento do Corpo Policial do Sul do Estado.
Neste mês de abril de 1910, quando o Governo havia ganho as eleições federais
e seus correligionários do Piaí mantinham-se no poder, a Assembléia Estadual escolhe o
Cel. Manoel da Paz para exercer o cargo de Vice-Governador. Entrado o ano de 1911 o
governo solidifica sua posição aderindo ao Partido Republicano Conservador, com o
qual Pinheiro Machado tecia sua estratégia de ação nacional. O padre Lopes, por outro
lado, vociferava. Não se conformava com a derrota que a saída do bispo representava
para a Igreja e a crescente força do hermismo, beneficiando e consolidando o poder
estadual em mãos dos seus inimigos mortais. A própria atuação de Antonino Freire,
realizando obras na capital, cuidando da educação – com o apoio da mestra Firmina
Sobreira – inclusive com criação, em bases sólidas, da Escola Normal – era motivo de
desespero para o pároco do Amparo. Além do mais, Antonio vinha dando atenção ao
Corpo Militar de Polícia do Estado, principiando reformas e dando-lhe recursos, numa
acintosa arregimentação de forças para assegurar aos correligionários maçons, inimigos
da igreja, a continuidade no Governo do Estado. Vendo que está difícil competir no
campo político, acentua o lado “religioso”. E lança mão de um estratagema, de grande
efeito teatral para dominar a cena192.
O Engenheiro Pires Rebello, então prefeito de Teresina – e que renunciaria ao
cargo para tornar-se Secretário de Estado das Obras Públicas no Governo Antonino
Freire – estava realizando uma reforma completa no jardim da praça Uruguaiana (que
logo mais tornar-se-ia a Praça Rio Branco). Esta praça – como ainda hoje o é – situa-se
aos fundos da primeira igreja de Teresina: Nossa Senhora do Amparo, naquele então,
com mais de meio século (1852-1911). As escavações para as obras passaram, assim,
junto ao templo, em sua parte traseira. Isto foi o bastante para que o padre Lopes
lançasse no “O Apostolo” uma tremenda acusação contra o governo. O título do Artigo
era: “A Mão Negra” – onde dizia que os inimigos governistas haviam posto a mão na
192
Este episódio escapou ao tratamento de Guttemberg Oliveira em seu citado artigo. Por isso, acho que,
vale a pena destacá-lo aqui. Considero que ele é extremamente elucidativo do caráter do padre Lopes e
de sua capacidade ardilosa para atrair a atenção e manipular a atenção pública a seu favor.
141
Casa de Deus, pois que com aquela obra dispensável, estavam abalando os alicerces do
templo, na deliberada intenção de derrubá-lo. De nada adiantou que os engenheiros
declarassem que não havia nenhum efeito danoso da escavação nas fundações do
edifício religioso. O padre apela para o histerismo e a teatralidade. A 25 de março (de
1911) lança um “incendiário” boletim aos fiéis, conclamando-os e à população da
cidade, em geral, para, em procissão solene, acompanhar a retirada das imagens do
templo, prestes a cair. A operação foi realizada com grande estardalhaço, repique de
sinos nas igrejas, foguetório e imprecações contra o governo. A mais tradicional igreja
de Teresina ficou entregue aos morcegos.
A praça foi re-inaugurada, também em meio a grandes festas. A igreja continuou
de pé pelos tempos afora. O padre teimava em deixá-la fechada ao culto, esperando a
sua “queda”. Dois anos depois – precisamente a 8 de dezembro de 1913 (dia de N.S. da
Conceição) os capuchinhos – que desde os tempos do frei Serafim de Catânia, faziam
missões no Piauí – resolveram reabrir a igreja e verificar a sua condição. Após pequenos
consertos e uma grande limpeza, o templo, tão querido aos teresinenses, foi reaberto. A
tragédia de 1912 já havia ocorrido, o padre Lopes estava no ostracismo. No dia 27 de
março de 1914 – três anos e dois dias após a sua retirada – as imagens, também em
procissão, retornaram aos seus altares.
Em minha pesquisa nos arquivos não encontrei números do “O Apostolo” que
me permitissem documentar o caso. Mas houve muitas referências avulsas ao mesmo,
que ficaram na memória dos teresinenses. Finalmente no jornal “O Piauhy”, nº 1.273, de
28 de março de 1914 (dia seguinte a procissão de retorno das imagens), encontrei uma
nota sob o cabeçalho “A Igreja do Amparo” noticiando a reabertura e relatando o caso.
A nota conclui assim: “A igreja nunca ameaçou ruir. Era simplesmente uma torpíssima
exploração política do satânico padre Lopes”. O Piauí estava exatamente na metade do
Governo de Miguel Rosa (01.07.1912 a 01.07.1916).
Se este episódio serve a ilustrar a capacidade de artimanhas do padre Lopes
imagine-se o furor de que foi tomado o pároco no momento em que o Partido
Republicano Conservador do Piauí, confirmando os murmúrios de articulações que já
haviam eclodido até no Rio de Janeiro, lança a candidatura do Dr. Miguel de Paiva Rosa
à sucessão de Antonino Freire. Qualquer maçom, anticlerical já seria terrível. Imagine-
se então aquele endemoniado Miguel Rosa que o ofendera da maneira mais baixa e mais
142
vil naquela maldita “trezena” de 1905. Era demais! Urgia mobilizar todos os meios
possíveis e até os inimagináveis para evitar que uma tal desgraça se abatesse sobre a
igreja e o seu clero. Logo Miguel Rosa! O mais radical dos maçons!
Torna-se fácil conceber-se, agora, o ardor e desespero da luta que se travou na
capital – e no interior do Estado – desde aquele setembro de 1911, quando já se tinha,
por certa, a candidatura Miguel Rosa até aquela fatídica Semana Santa chuvosa de abril
de 1912, quando o candidato do governo, como era de praxe, venceu a eleição.
Chegado a este ponto, retornemos agora para apreciar as componentes policiais
militares com as quais o governo utilizou para garantir-lhe ou dar-lhe cobertura a ação
política.
Lembremo-nos que, após sua missão bem sucedida no Sul do Estado e receber
os melhores elogios dentro da Corporação, o Capitão Gerson Edison, vai alçado, no
início de 1912, ao posto de Major Fiscal do Corpo Militar de Polícia. Isto significava
que ele galgava o mais alto posto dentro da corporação pois que, acima daquele, havia
apenas o Comandante que, obrigatoriamente, era um oficial do Exército. O Governador
Antonino Freire, nos seus planos de melhoria da corporação, para fortificá-la como
garantia do governo na ação política, conta com o Major Fiscal, colega de imprensa,
irmão da Maçonaria, enfim, um amigo confiável.
143
de definido e marcante. Assim era a situação em 1911-1912, já no Governo do Marechal
Hermes. Consubstanciando sua obra de melhoria do Exército, quando Ministro da
Guerra de Affonso Penna, Hermes acentuava a modernização do mesmo com a criação
da Academia Militar de Realengo (1911). O prestígio do Exército será seu veículo de
intervenção nos estados em nome das “salvações”.
A Guarda Nacional, como corporação para-militar do início, após a reforma de
1850 evoluíra cada vez mais no campo político, gerando o “coronelismo” que era
dirigido ao processo eleitoral. A composição da corporação, recrutada entre pessoal
subalterno aos coronéis, tornara a corporação em verdadeira montadora de “currais
eleitorais”.
Ao lado dessa função eleitoreira havia a face “social” que conferia a seus
integrantes mandatários dignidade e ascensão na escala social. A adesão àquela
organização fechava-se – tão diferentemente do início (1831) – às classes privilegiadas
que pagavam emolumentos e selos, anualmente.
Uma notícia publicada no “O Piauhy” (nº 2.155, de 22 de novembro de 1913)
embora do ano seguinte, pela proximidade, pode dar uma idéia da “corporação”. Trata-
se de um edital de Instruções sobre o “Pagamento de Selos e Prazos”. Por estas
instruções fica-se sabendo uma série de informações úteis à caracterização da Guarda
Nacional, a saber: que os oficiais tinham suas patentes assinadas pelo Presidente da
República, referendadas pelo Ministro da Justiça e registradas na respectiva Secretaria
de Estado; que o prazo legal (isento de multas) para o pagamento do selo de patentes é
de 2 meses para o Estado do Rio, 6 meses para os Estados de Amazonas, Goiás e Mato
Grosso e 4 meses para os demais (um critério ditado pela distância da Capital Federal).
Acrescentava-se ainda que as multas para os atrasos eram proporcionais a duração: 10%
a mais sobre o valor do selo nos primeiros 3 meses, 20% nos três seguintes, sendo que
após 6 meses não se receberia mais as multas.
É de interesse registrar o valor dos emolumentos a ser pagos (expresso pelo
selo), segundo as diferentes patentes:
Patente Acordo Selo
Tenente Coronel 456$000 (mil réis)
Coronel 376$700
Major 315$000
Capitão 107$000
1º Tenente 90$000
144
2º Tenente 60$000
Observa-se aqui que o quadro das patentes difere daquela de 1850 pois que não
há mais aquela do Alferes, que era abaixo do Tenente. Outra relação que se poderia
fazer193 é lembrar que o valor estipulado para a renda mínima anual para o membro da
corporação, e a subseqüente lei eleitoral, era de 200$000 (duzentos mil réis).
As instruções incluem também a descrição e tabela dos uniformes da milícia –
que são quatro, por ordem de importância além de um “grande uniforme” de uso
facultativo. O uso de uniforme era regulado “a vista de recente aviso do Ministro do
Interior que obriga os senhores oficiais da Guarda Nacional a se apresentarem nas
ocasiões solenes e nos dias de festa nacional”194.
Esta recomendação de pompa e circunstância era pouco obedecida pelo interior
onde se acentuava a rentável função eleitoreira. Mas já devia ser notória a decadência da
“milícia” como força para-militar. Imperava a função política.
Assim, naquele momento político do Piauí, a preparação para a transmissão do
poder já estava articulada. Como vimos atrás o Comando da Guarda Nacional do Piauí
havia sido colocado às mãos do Cel. João Augusto Rosa, pai do candidato Miguel de
Paiva Rosa. As articulações com os coronéis do interior davam sérias esperanças senão
a quase garantia de sucesso.
Contudo a ação do clero, liderada pelo padre Lopes, em grande parte – havia
vários padres do interior nas fileiras governistas – aliada as presenças de algumas
incômodas oligarquias locais que não sintonizavam com as hostes governistas,
causavam alguma reação “perigosa”. O próprio padre Lopes já se mostrara capaz de
arregimentar homens e armas como ocorrera no episódio do Cerco ao Paço Episcopal.
Para esses casos específicos o exército – quase ausente – e a Guarda Nacional –
decadente em caráter militar – era preciso recorrer ao Corpo Militar de Polícia. Mas as
condições da corporação naquele momento não eram nada boas. Cumpria alocar
recursos (sempre escassos) para a corporação, mas isto era algo que não poderia ser
feita a curto prazo. Mas, para conquistar a corporação era preciso principiar a dar maior
193
Com mais de meio século (63 anos) seria necessário fazer a correção deflacionária.
194
A título de curiosidade, a descrição do 1º uniforme é a seguinte: Capacete com penacho; dolman com
alamares de cordão de ouro; calça com galão de ouro; dragonas; espada; fiador de ouro; talim verde em
seda dourada; luvas brancas de pelica e salteiras, sendo esta só para os oficiais superiores e de Estado
Maior. – O signatário das instruções, que a concluía com a saudação “Saúde e Fraternidade”, era
Rivadavia da Cunha Correia.
145
atenção. A missão do Capitão Gerson Edison ao Sul do Estado fizera uma boa inspeção,
trazendo um relato con1pleto sobre as reais condições das guarnições e destacamentos
dispersos pelo interior. A nomeação do Capitão para a função de Major Fiscal era
endossada pelo Comandante o brilhante Oficial do Exército – Antonio da Costa Araújo,
de uma tradicional família do Campo Maior.
Os estados mais fortes da federação possuíam boas Polícias Militares. Nesse
particular nenhum superava o Estado de São Paulo que se dava ao luxo de possuir a
melhor Força Pública que tivera o requinte de receber a colaboração de uma Missão
Francesa. Num momento em que o Exército Nacional enviava jovens oficiais para
instruir-se no Exército Alemão (os futuros “jovens turcos”) a cooperação francesa ao
Estado de São Paulo era igualmente valiosa: além de diversificar as técnicas e
estratégias militares. Fora graças ao valor de sua polícia militar que o governo do
Marechal Hermes não ousara intervir naquele estado, embora ele fosse o maior foco de
oposição.
Mesmo alguns estados fracos estavam dando atenção especial a suas polícias
militares. Isso pode ser bem ilustrado pelo que aconteceu nesta mesma época de
intervenções e pactos salvacionistas. Veja-se a entrevista publicada no “Correio da
Manhã” do Rio de Janeiro, edição de 26 de dezembro de 1912195, sob o cabeçalho – O
Amazonas de Novo em Foco. O Governador Bittencourt é obrigado a renunciar pela
Força Pública do Estado. Em meio a matéria encontra-se o seguinte trecho:
195
A notícia em questão caiu-me, sob os olhos quando pesquisava na Biblioteca Nacional, para levantar
noticiário sobre o assassinato do Major Gerson Edison.
146
de caçadores com 400 homens. sendo 200 para atender aos destacamentos do
interior e 200 para a capital; creando uma guarda civil de 150 homens. Ora,
assim procedendo o futuro governador ia dispensar, pelo menos, 60 oficiais
na sua maioria amigos do Coronel Bittencourt e inimigos de Silvano Ney.’
– Por que fugiu o Coronel Bittencourt?
‘Porque não teve força moral, porque estava desprestigiado pela opinião
pública do Estado, depois que assinou o acordo com o Marechal Hermes,
para a eleição de Jonathas Pedrosa’.”
147
Batalhões de Floriano e Jaicós vieram aquartelar-se em Teresina, sendo
oficialmente, pelo Decreto nº 529, de 15 de maio de 1912, transformados no
2º Corpo de Polícia. O de São João do Piauí veio até Floriano, voltando dali,
por ser desnecessária sua vinda para Teresina,
Ganhando as eleições, o Governador promulgou a Lei nº 680, de 20 de junho
de 1912, concedendo aos oficiais que serviram nos diferentes Batalhões
Patrióticos, organizados para defesa da autonomia do Estado, as honras do
posto em que se achavam na época de sua dissolução.
Para completar a ajuda a seus Coronéis Comandantes de Batalhões
Patrióticos o próprio Miguel Rosa, ao assumir o poder, fez inserir na Lei nº
751, de 02 de junho de 1913, que fixou o efetivo da Polícia para o ano de
1914, o seguinte dispositivo do artigo 40: ‘O Governo mandará cunhar
medalha de ouro para oficiais e praças que mais se distinguiram nos
Batalhões Patrióticos, organizados para defesa da autonomia do Estado, no
ano próximo findo’. As medalhas nunca foram cunhadas.
A Câmara Municipal, pela Lei nº 46, de 13 de julho de 1912, estabeleceu no
artigo 1º: ‘Em homenagem aos relevantes serviços prestados à ordem e à
tranqüilidade pública do município desta Capital, e talvez deste Estado, pelo
Tenente Coronel Constantino de Morais Correia, benemérito comandante do
invicto Batalhão Patriótico Delenda Coriolano, fica, desde a publicação da
presente Lei, denominado Constantino Correia, o bairro onde está situado o
próprio estadual Pirajá. A Polícia Militar, partindo a iniciativa do Governo,
não podia se opor a essa anomalia. Naquela época, o Exército era
representado entre nós por mero destacamento.
Dissolvidos os Batalhões Patrióticos, o Governador Miguel Rosa elevou ao
máximo os efetivos da Polícia, e deu várias outras vantagens à Corporação.
...........................”196
196
Este trecho, parte de um capítulo intitulado: “Os 150 Anos da Polícia Militar do Piauí (1835-1985)
Síntese Histórica”, é trecho de uma publicação da qual recebi xerox de uma parte. O Major José
Vasconcelos Rocha, chefe da 5ª Seção do EM, que teve a gentileza de remeter-me esta e outras
informações de Teresina para Florianópolis, infelizmente não me forneceu o nome da publicação.
148
no poder. O Governo do Estado está nas mãos do Engenheiro Antonino Freire que tem a
seu crédito uma série de realizações importantes.
Note-se aqui que, neste particular, o Piauí já escapava a regra da hegemonia
oligárquica do interior rural. Será preciso pensar nesse aspecto, sem dúvida relevante: o
declínio da zona rural, ainda a mantinha entregue em sua maioria à pecuária extensiva e
declinante, com agricultura de subsistência e pequena fração comercial (algodão). A
realidade econômica do espaço rural Piauiense não fora capaz de criar oligarquias
suficientemente fortes para controlar o poder; em contrapartida, poder-se-ia admitir que,
a vida urbana, embora tão incipiente no passado, já principiava a fazer-se sentir. Força
que se revelava, pelo menos no centro comercial (Parnaíba) e administrativo (Teresina)
comunidades aptas a assumir o controle político.
Se ainda no início do século se poderia falar em oligarquias rurais no poder –
como no caso de Arlindo Nogueira (Valença) – a seqüência Álvaro Mondes
(magistrado), Areolino de Abrcu (médico, professor), Anísio de Abreu (magistrado) já é
uma expressão de elite urbana, gerada na nova Capital no seu meio século de existência.
A presença de Antonino Freire (engenheiro civil) confirma essa tendência. Não se afasta
mesmo a possibilidade de que sua preocupação com a educação e com a infra-estrutura
urbana da capital tenham vindo em desagrado das pequenas oligarquias rurais do
interior. Embora as cidades Piauienses não fossem ainda de porte destacado, deve-se
considerar ainda que o início do extrativismo, com a carnaúba (recurso local) e os
esforços com a maniçoba – reflexo complementar à hévea da Amazônia – fazia ênfase
nos recursos naturais coletados e destinados à exportação. Este novo ciclo veio reforçar
a função comercial, inicialmente na Parnaíba, como po1o aglutinador da exportação via
marítima mas secundada pela capital e outros núcleos interiores.
Tudo parece passar-se de modo a confirmar o esquema da “dualidade brasileira”
de Rangel quando na “segunda” a aliança entre o senhor de terras e o comerciante
reverte a ordem de importância passando o segundo à condição de “sócio maior” e
colocando o outro como coadjuvante. A iniciativa industrial, por sua vez, mais ligada ao
comerciante reforça o seu papel e sua força política. A nova geração de bacharéis e
profissionais liberais aumenta os quadros dos políticos.
Com o advento do Governo do Marechal Pormos e a transição do poder estadual
de Antonio Freire para Miguel Rosa, não se verifica a presença de oligarquias rurais
149
arraigadas ao poder, a ponto de requerer intervenção “salvadora”. Os elementos no
poder ou aspirando a ele são alianças na elite urbana que entrou em sintonia com o
pacto de Pinheiro Machado, aglutinada no Partido Republicano Conservador , que fez
do jornal “O Piauhy” o seu porta voz . A oposição a ele será, também, essencialmente
urbana, sendo difícil estabelecer qualquer distinção clara de ideário político ou proposta
partidária que não seja a de estar dentro ou fora do poder.
Uma das características marcantemente locais é a presença, na oposição, de uma
fração clerical, cuja aparência e retórica “religiosa” não chega a convencer ou disfarçar
a colocação eminentemente política. De um lado, a oposição acolhe também alguns
elementos de peso na vida comercial – industrial da cidade. O que poderia induzir a uma
diferenciação por alguma aspiração mais “progressista” e inovadora na economia
regional. Mas, assim como a conotação “religiosa”, qualquer distinção quanto a
proposta “econômica” será também falha. São duas facções antagônicas, aspirando à
continuar ou ingressar no poder, de tal modo semelhantes como o foram os
conservadores e liberais do Império. São facções urbanas, secundadas ambas pelos
suportes oligárquicos locais do - interior. O núcleo agrícola do Amarante que se vai
demonstrar como um lar te elemento de oposição, pode ser anulado ou neutralizado pelo
apoio que o centro comercial da Parnaíba oferece ao governo.
O coronelismo do interior pende indisfarçavelmente a favor dos detentores do
poder no Estado e no Governo Federal. Antes mesmo que o PRC oficializasse a
candidatura do Dr. Miguel de Paiva Rosa – bacharel pela Faculdade de Direito do
Recife, advogado, professor, jornalista – como se viu atrás, a Guarda Nacional no
Estado foi colocada sob o comando do seu pai, o que assegurava a mobilização dos
coronéis e seus respectivos currais eleitorais pelo interior do Estado. Embora a
Convenção estadual do PRC para a oficialização das candidaturas do Dr. Miguel Rosa
para Governador, e Cel. Raimundo Borges da Silva para Vice-Governador, só venha a
realizar-se em 12 de outubro de 1911 a imprensa do Rio de Janeiro lá noticiava tanto
esta candidatura quanto o apoio do Governo Federal.
Antecipando-se ao lançamento da candidatura do governo, as oposições, da
capital, em veemente campanha jornalística lançam como opositor o Dr. Odylo Costa –
bacharel, Juiz de Direito da cidade maranhense de S. Francisco mas residindo em
150
Teresina e militando na imprensa local. Tal candidatura é lançada pela dita “União
Popular”. Usa-se sempre o nome do “povo”.
As eleições para o Congresso Nacional à vaga de um Senador e quatro
Deputados Federais, realizada em 30 janeiro de 1912, não deixarão dúvidas sobre a
força do governo no processo eleitoral. Todos os candidatos eleitos foram elementos
pertencentes ao Partido Republicano Conservador, a saber para senador, o Marechal
Pires Ferreira ; para deputados federais: Dr. João Henrique da Silva Gayoso, Dr. Félix
Alves Pacheco, Dr. Joaquim Pires Ferreira e Dr. Raimundo Arthur de Vasconcellos.
No início de fevereiro, o Piauí pranteia a morte do Velho Marquês de Paranaguá,
ministro, chefe de Gabinete do Império, que aos 91 anos de idade falece em sua Vila
Natal de Parnaguá, no sul do Estado.
A amostra fornecida com o resultado da eleição para o Congresso Nacional,
deixa claro a quase impraticabilidade de sucesso da oposição em atingir o governo do
Estado. Como conseqüência, a 23 de fevereiro, o Dr. Odylo Costa desiste de sua
candidatura em favor do Tte. Cel. Coriolano de Carvalho, aquele que lá fora o primeiro
governador constitucional da República, no Estado do Piauí. Esta sugestão não foi
aceita, de pronto, pela União Popular. Pensou-se em outros militares, concordando-se na
necessidade e oportunidade de um miltitar para fazer frente ao candidato do governo.
Mas acabou por fixar-se em Coriolano.
Enquanto isso a oposição tenta, por vários meios, anular o pleito para o
Congresso Nacional, basicamente sob alegação de fraude e uso de força e coação. O
duelo pela imprensa da capital é áspero. Do lado do governo, o órgão do PRC é “O
Piauhy”. Pela União Popular os jornais “A Cidade de Teresina” e “O Apóstolo” este,
um tablóide de caráter “religioso”. Os boatos correm soltos. “O Piauhy” noticia que o
Tte. Cel. Coriolano de Carvalho fora transferido do Comando Militar do Ceará, em
Fortaleza, para aquele do Mato Grosso. A “Cidade de Teresina” ainda insiste nas
fraudes nas eleições federais. A 23 de março a União Popular, finalmente, decide-se
pela candidatura do Tte. Cel. Coriolano de Carvalho. A escolha deste militar,
considerado como uma esperança de sucesso, vem colocar o Estado do Piauí, mais uma
vez, na contra mão de todo o processo nacional. Enquanto o Governo Federal do
Marechal Hermes recorria aos militares para intervir nas “salvações” nos outros Estados
151
do Nordeste, aqui o apoio, já obtido em favor da candidatura civil, coloca o “militar” em
oposição ao governo central. Que nome se poderia dar a esta exceção à regra?
Em meio a maior agitação e acusações mútuas de fraude e violência, realizam-se
a 7 de abril de 1912 as eleições. No dia 14 os jornais anunciam os resultados: Dr.
Miguel de Paiva Rosa – 13.362 votos; Tte. Cel. Coriolano de Carvalho – 1.258 votos. O
candidato da situação estadual, apoiada pelo governo central, obtivera cerca de 92% dos
“votos” do “sufrágio”
A “União Popular”, artificialmente composta por uma oposição clerical seriada
na capital e conduzida por motivação muito mais pessoal que “religiosa”, mostrara sua
debilidade ante uma situação que contava com a Guarda Nacional, a Polícia Militar sem
esquecer a Maçonaria. Mas a derrota não iria arrefecer o ardor da luta que se
concentrava na capital do Estado. Os esforços da União Popular, embora débeis, serão
veementes entre a eleição e a posse de Miguel Rosa, bem como irão ocupar o decorrer
do seu governo.
Uma eleição tão especialmente agitada ocorreria, segundo a trama do destino,
fatalidade ou acaso, na Semana Santa. Além disso as chuvas de abril, especialmente
copiosas naquele abril de 1912, mantinham a capital sob fortes aguaceiros. A eleição
marcada para o domingo de páscoa, no dia 7, estava sendo precedida por chuvas
diluvianas. De um lado era bom, para acalmar a população, obrigada a permanecer em
suas casas. O governo tomara – ou intentara tomar “medidas preventivas para assegurar
o sossego público”, proibindo inclusive o porte de armas. Os oposicionistas da União
Popular se exprimindo através dos ataques publicados no “O Apóstolo” e no “A Cidade
de Theresina”, reclamavam das medidas repressivas do governo e por vezes obtiveram
do poder judiciário permissões para seus membros que se sentiam ameaçados pela
situação. A ronda policial na cidade fora reforçada. A situação era particularmente
tensa.
Na noite da Sexta-feira da Paixão, as chuvas continuavam a castigar a capital.
Um grupo de rapazes, da oposição ao Governo Antonino Freire e da Candidatura
Miguel Rosa, reuniu-se em um botequim-restaurante, de propriedade do Sr. Agostinho
Monteiro, sito à travessa Dr. Simplício Mendes, entre as ruas Grande (Dr. Álvaro
Mendes) e a Praça Uruguaiana (atual D. Pedro II).
152
Agrupados à algumas mesas, a tornar cerveja, encontravam-se os jovens Srs.
Antonio Cícero Correia Lima, Dr. Francisco de Moura Falcão Costa (bacharel em
Direito), Adelino Moura (funcionário), Antonio Castelo Branco da Rocha, José Gomes
Avelino (caixeiro da loja do Sr. José Portellada) e Luiz do Rêgo Filho. Bebiam cerveja,
discutiam política e, naturalmente, falavam mal do governo e da falta de garantias da
oposição naquelas eleições.
O mais titulado do grupo era o Dr. Chico Falcão, irmão do jornalista e Juiz
Odylo Costa, um dos lideres civis da União Popular, conduzida pela facção clerical do
Padre Lopes, que abrira mão de sua candidatura em favor do Coronel Coriolano. Chico
Falcão havia sido demitido da função de inspetor de ensino do Estado, por perseguição
política. Era filho do Coronel José João de Oliveira Costa, mais conhecido como João
Costa, já falecido, e de sua esposa D. Emilia Francisca de Moura Costa. Fora, desde
pequeno, criado pelo seu tio e padrinho, o Coronel Falcão, de quem herdou o
sobrenome que o diferenciou dos irmãos. Além de Odylo de Moura Costa, tinha como
irmãos o bacharel José de Moura Costa, funcionário público, residente no Maranhão e o
cirurgião dentista Octávio de Moura Costa, com consultório à rua Bella nº 21. Nascera,
o Dr. Francisco Falcão, em Teresina, a 25 de dezembro de 1887 à rua Grande, casa de
nº 8.
Atraídos pelo ruído de alguns tiros, acorreram ao botequim do Sr. Monteiro, dois
soldados da patrulha que foram rechaçados pelo grupo de rapazes, mais numeroso e
armado. Desautorizados e desacatados os soldados foram queixar-se ao Delegado de
plantão naquela noite – o Cap. Barnabé Pereira de Araújo, que segundo seu depoimento
no inquérito que se seguiu , disse ter acorrido ao local perguntando ao grupo de rapazes
sobre o autor dos disparos. Prontamente o Sr. Antonio Cícero Correia Lima identificou-
se como o autor e desafiou-o a ir desarmá-lo. Ainda segundo o depoimento do delegado:
“Vociferando impropérios o Sr. Francisco Falcão avançou para mim dando-me com a
mão nos peitos, enquanto o Sr. José Avelino, armado de bengala e Antonio Cícero, de
cadeiras, atiravam-se, agressivamente, aos soldados, procurando espancá-los”.
Criou-se assim, uma situação bastante embaraçosa para o delegado que manda
um dos soldados a procura de reforço na tropa. Continuando na descrição do tumulto
que se formara, e seus baldados esforços em desarmar o moço recalcitrante:
153
“... o que não consegui por ter o Sr. Major Gerson Figueiredo, oficial
rondante, mandado retirar as praças, no intuito de fazer cessar o conflito e
acalmar os ânimos exaltados dos imprudentes moços.
Nesta ocasião foi tomada pela força um revolver do Sr. Luiz do Rêgo Filho,
que passo às mãos de V. Excia. juntamente com outro tomado do
Comerciante Antonio Francisco de Almeida e uma carabina miniê, armas
estas que foram apreendidas pela patrulha em outros pontos da cidade. Nada
mais ocorreu digno de menção”197.
Esta versão – de defesa fraterna – pode ser enriquecida com um outro precioso
documento que serve bem a ilustrar a gravidade da campanha e o acirramento das
paixões políticas naquele então. Trata-se de algo publicado no único exemplar do “O
Apóstolo” encontrado – em lastimável estado de conservação – na Casa de Anísio Brito,
durante a minha pesquisa pessoal. E um privilegiado momento nesta análise posto que o
é único em que me é dada a possibi1idade de confrontar as apreciações adversárias.
Esta raridade preciosa, trata-se do nº 256 – Ano V – Edição de 21 de abril de
1912 do “O Apóstolo” – Órgão da “União Popular” – Publicação Semanal – Redator
Chefe: Elias Martins – Assinatura annual 6$000 – que insere, a modo de editorial, em
sua primeira página:
197
Sob o título: O Inquérito do Dia 6 de Abril – A parte oficial do Capitão Barnabé – o depoimento acha-
se reproduzido pelo jornal “O Piauhy” em sua edição de 28.12.1912.
198
Do “Boletim” lançado pelo Dr. Odylo Costa em defesa do irmão, no dia 21 de dezembro de 1912, após
o mesmo ter assassinado o Major Gerson (11.12.1912).
154
“INVENTARIO POLITICO
A ação dissolvente do governo que morre esgotando as energias do Estado
deixando-o prostrado no leito do sofrimento.
Centenares de contos foram dispendidos com a instrução pública para a qual,
salvo honrosas exceções, atualmente escorraçadas, os professores foram
recrutados entre os parentes do governo e outros do mesmo farelo, figuras
chatas, verdadeiros filhotes nomeáveis pela nulidade. No interior do Estado,
sem o embargo dos melhoramentos prometidos, as autoridades públicas
continuam entregues a um pessoal re ...... (rasgado).
A parte algumas professoras respeitaveis que se dedicam ao magistério a
instrução pública não representa um simulacro de seriedade: o professorado
não tem aptidão para um simples exame das quatro operações fundamentais.
No liceu, a mocidade, sob os impulsos da altivez de caráter, foi obrigada a
levantar-se para chicotear na imprensa os absurdos de um diretor
acamalhado que pretendeu levá-la a ponta-pé.
Nem um sã melhoramento nas obras públicas.
A imprensa oficial tornou-se uma regateira audaciosa, cantarolando insultos
à virtude e hinos triunphantes ao deboche, num frenesi do Messalina
descarada. Todas as torpezas de Miguel Rosa são glorificadas pela imprensa
barregan, transformaria em alfange para sacrificar a honra piauhiense.
Nas finanças é triste o nosso Estado.
Além da sommas avultosas, roubadas ao thesouro e estragadas pelo Sr,
Miguel Rosa na viagem ao Rio de Janeiro, onde fora a negócios de sua
candidatura, os últimos recursos do Estado foram absorvidos no suborno
escandaloso do eleitorado e na sustentação de capangagem criminosa para a
chacina do adversário.
A Intendência Municipal, entregue ao Pharmaceutico Thersandro Paz, sob as
ordens do Governador, deixando em completo abandono a limpeza da
cidade, onde a fedentina dos cachorros mortos se cruza com a exalação
nephitica dos charcos, passou pela vergonha – se este sentimento inda lhes
resta – de ver penhorados seus bens, castigo rigoroso da velhacaria à custa
da qual desejava sustentar-se.
A bancarrota da Itendencia privou-nos da .................. não existe uma sã
bodega que lhe confie 40 réis de querozene.
É desolador o aspecto da capital: durante o dia lixo, pantanos, espinhos,
matapasto; à noite trevas, ladrilhos de cães, entulhos e barrancos por toda a
parte.
A empresa das águas é um sorvedouro de dinheiro.
Enquanto o Sr. Manuel da Paz, engenheiro improvisado, suga 500$000 para
os farranhos habituais, seu genro Abdias Neves, a vitima do fiasco
impreterível, quando sonhou representar o povo no Congresso Nacional,
percebe outro tanto, segundo nos consta, vendido para a apuração dos
deputados federais.
Por complacência, passamos agora o tenebroso veu do silencio sobre a gorda
pechincha dada a uma senhora para, na Capital Federal, estudar os processos
da instrução primaria e trazer-nos o aperfeiçoamento da didactica verdadeira.
155
A tudo isto acrescente-se o influxo corruptor de Miguel Rosa, perverso
assassino da honra alheia, levantando mãos sacrílegas para expulsar as
imagens das escolas, banindo o nome de Deus do coração da infância, para
semear o germenn da descrença, alimento das paixões e fonte de todos os
vícios repulsivos.
Ai fica o inventário das brilhateiras políticas do Governo que estribucha nos
paroxismos da morte, condenado à execração pública, aterrado pelo espectro
de crimes hediondos praticados em nome do direito e da justiça.
A peste, a fome, a guerra, despovoando os lares, dilacerando os corações,
lançando para os abismos do túmulo populações inteiras, não seriam tão
funestas no Piauhy como foi o Governo do Sr. Antonino Freire mascarado
com as artimanhas da hipocrisia, verdadeiro sepulcro ornado de flores e
contaminado de vermes e podridões.
Tudo isto era pouco.
Não se tinha vertido o sangue piauhiense. O punhal assassino ainda não
rasgara as entranhas inocentes.
Sexta-feira da Paixão foi o dia escolhido para a carnificina.
Três moços ordeiros, três membros das melhores famílias Piauienses, três
oposicionistas foram barbaramente espancados pela polícia ficando impunes
os criminosos.
O sangue dos inimigos molhou a terra e o furor do governo recrudescia.
Não fosse prudência de nosso querido chefe Dr. Elias Martins e a mais
terrível cathastrophe teria desabado sobre nossa capital.
Uma recoa de capangas se postara a sua porta vociferando insultos e
disparando tiros.
Os numerosos amigos do eminente chefe quiseram repetir na altura estupida
provocação. Foram detidos nesse movimento de repulsa e aprestados para a
reação, logo que tombasse a primeira victima.
Felizmente os agressores retrocederam.
Nem o socego das famílias é poupado pela fúria sanguinária da
capadocagem do governador.
Nas a hora fatal do ajuste de contas se aproxima.
Dentro em breve o Piauhy receberá o Coriolano para lhe restaurar os
créditos, punindo o roubo, a dehonra, o selvagismo doentados hoje na currul
de Cesar.
Miguel Rosa já sente os calafrios do terror.
Sua projetada viagem para o Rio é a fuga do criminoso sentindo no dorso as
vergastadas da justiça ..... levando na fronte o estigma da maldição do povo.”
Além desse editorial há outras matérias que exibem um nível de virulência e baixeza
rios ataques que em nada assentam a um órgão religioso, defensor apostólico da fé.
Um ótimo exemplo disso pode ser constatado por esta nota, contida na mesma
edição do “O Apóstolo”:
156
“EQUIDEO PATRONATO
A egua pampa Coló Freitas acompanhada do potrinho Christino Castelo
Branco constituidos advogados do negro velho Farias na ação possessiva de
manutenção intentada pelo Coronel Benjamim Martins na qualidade de
Presidente do Conselho Municipal de Theresina embarafustaram
desenbestados pelo fôro desta capital, supondo escaramuças em algum
hipódromo. A egua, descrepita e corcomida pelo plan, sempre foi e continua
sendo, de uma ignorância pasmosa em matéria de direito; o potrinho, este
permanece in albis a respeito de tudo o que concerne às letras.
Avaliem, pois, o que não haviam de fazer essas duas alimarias ........
......................................................................”
e por ai vai, demonstrando bem que imprensa marrom já existia por essa época. As
vitimas de tais insultos eram nada menos do que dois dos mais ilustres juristas e
intelectuais Piauienses, representando duas gerações: Dr. Clodoaldo Freitas, que chegou
a lecionar na Faculdade de Direito em Belém do Pará e o Dr. Christino Castelo Branco,
jurista de renome em Teresina e no Rio de Janeiro, onde concluiu sua brilhante carreira.
Dr. Christino era o pai do grande jornalista, acadêmico Carlos Castelo Branco.
Vale registrar que, datado de 21 de abril, duas semanas após a proclamação dos
resultados da eleição a União Popular está ainda à espera de Coriolano. O que
demonstra que a refrega não se encerraria com a vitória de Miguel Rosa e irá prosseguir,
com mais violência ainda.
Detenhamo-nos no trecho em que o episódio do botequim da travessa Dr.
Simplício Mendes, apresenta “três” rapazes oposicionistas como vitimas, cujo sangue
regou a terra.
A esta segunda versão do episódio, juntemos uma terceira que provém da
memória recolhida pela família do Major Gerson. Quando o Cap. Barnabé refere-se ao
surgimento do Major, “em ronda pela cidade”, há um equivoco a esclarecer. Se o Major
estivesse oficialmente em patrulhamento ou ronda da cidade, como era rotina fazê-lo,
Leria sido ele – superior em patente ao delegado – que teria registrado o depoimento no
inquérito instaurado. Naquela noite chuvosa, o Major guardava o leito, curtindo uma de
suas freqüentes enxaquecas. Com a família já recolhida ouve bater a porta. Era o seu
sobrinho, o Alferes Samuel de Oliveira (filho de Lydia e Satyro), que vem expor ao
Major Fiscal a gravidade do incidente que está ocorrendo no botequim. Expõe-lhe o
Alferes – este sim em patrulhamento naquela noite – que o capitão delegado se estava
157
quase acovardando perante o grupo de moços, armados alguns deles, e que uma séria
complicação poderia resultar dali. Exorta ao tio e oficial superior que venha intervir.
Apesar dos protestos veementes de D. Júlia, que incrimina Samuel por não
conceder sossego ao tio mesmo quando doente e de folga, o Major põe a farda e
acompanha o sobrinho. Para quem conhece Teresina, sobretudo na vida calma daquele
tempo, sabe que a distância entre o botequim e a casa do Major no largo de São
Benedito é pequena. Sobretudo para ir a cavalo, com a ronda da polícia.
Ao chegar ao botequim o Major já encontra a confusão formada, com o
“desarma – não desarma’ entre os soldados e os moços. Ele já percebe que alguns
soldados, do reforço chegado, estavam espancando alguns rapazes, entre eles o Dr.
Falcão. Espancar um rapaz “formado”, um “doutor”, já não era coisa que se fizesse.
Sobretudo bater no irmão de um líder oposicionista, seria fornecer um prato cheio aos
adversários do governo. Os gritos do Major são de Alto! Alto! em vez de “Batam-lhe,
matem-lhe” – uma estranha ordem para ser proferida perante o público.
Polícia é polícia! Ninguém é ingênuo a ponto de não admitir que houve
bordoadas a solto, pela soldadesca humilde ante filhinhos de papai arrogantes que se
recusavam a entregar as armas. O Dr. Chico Falcão teria tido suas hemoptises
pulmonares pela tuberculose que, no verdor dos seus 25 anos já contraíra, como muitos
e muitos jovens daquele tempo. Inclusive o Major Fiscal, nos Seus 32 anos. A mão
caprichosa do destino colocara frente a frente duas vítimas. Um pai de família que
fazendo carreira na polícia, nas agruras de uma vida pobre e difícil – um bacharel
solteiro, de família abastada vindo de estudos no Recife e São Paulo para fruir dos
empregos que a carreira que o prestígio político da família lhe traria com facilidade.
Ambos já afetados dos pulmões, e, portanto, já condenados num tempo em que a
tuberculose era doença fatal.
Principiaria a germinar, naquela noite, uma semente de ódio no coração do
jovem bacharel Falcão, alimentada pelo ardor da luta política que se tornará mais
acirrada após a vitória de Miguel Rosa. Ódio dirigido ao ex-governador Antonio Freire,
que o demitira de um cargo púb1ico dirigido ao futuro governador Miguel Rosa, em
cujo governo, sabia-se bem, não teria qualquer possibilidade de proveito pessoal; ódio
ao Major Fiscal, agente policial repressor e – agravante sério – de nível social inferior, a
158
quem creditava a humilhação de uma surra. E por essa própria condição seria dos três
odiados aquele mais vulnerável à preparação de sua vingança.
O editorial do “O Apóstolo” demonstra bem que o Padre Lopes não havia
entregue os pontos nem aceitara a derrota da União Popular. O caráter “militar” do
Coronel Coriolano – tábua de salvação à qual se agarraram os clericais oposicionistas –
ainda poderia ser explorada e, quem sabe, render alguns proventos.
Aferrada ao epíteto “militar” a oposição intenta associar o caso piauiense a
manobra de “salvação nacional” no vizinho Ceará, esquecendo-se de que o pacto entre o
candidato civil Miguel Rosa já havia sido selado com a Presidência do Marechal
Hermes. Desse abril tumultuado e tormentoso até a data de 3 de junho, quando a
Assembléia Legislativa Estadual reconhece e proclama eleito Miguel Rosa para
Governador e o Cel. Raimundo Borges para Vice-Governador, a oposição lança mão de
todos os meios numa ação tão acirrada que a própria situação chega a por em dúvida sua
própria força, deixando transparecer insegurança.
Os ataques da imprensa “clerical” da União Popular continuam ferozes , e acirra-
se com a vinda do Tte. Cel. Coriolano ao Piauí, para assumir o Governo do Estado,
“pela força das armas”. E o órgão da situação, o jornal “O Piauhy” (nº 1.176) em sua
edição de 16 de junho chega a publicar a notícia como plausível: “Aí vem o Sr.
Coriolano e com ele a desgraça para a nossa terra e a vergonha para os nossos brios de
povo livre e independente”. O Governador Antonino Freire, recorre a medida de criar o
2º Batalhão de Polícia Estadual para fazer frente às ameaças de Coriolano. Chega-se a
noticiar em Teresina que Coriolano de Carvalho obtivera apoio material dos
salvacionistas cearenses em troca de terras Piauienses, acirrando a antiga e insolúvel
questão dos limites entre os dois Estados. Proclama-se até o apoio das mulheres
cearenses , solidárias às forças salvacionistas, que derrubaram a Accioly199.
Em verdade, Coriolano que se encontrava ainda em gozo, de licença para
candidatar-se ao governo do Piauí, perdendo as eleições chega a embarcar, vindo do
Ceará, no porto da Parnaíba, no vapor Teresinense, com destino à capital, “armado em
Guerra”200. A oposição, faz outra tentativa, procurando embargar as eleições para a
Assembléia Legislativa Estadual. Mas, ao mesmo tempo que o Supremo Tribunal
Federal concede “habeas-corpus” a todos os deputados estaduais do Partido
199
Notícias no “O Piauhy” em suas edições de nº 1.178 e 1.179 de 16 e 19 de maio de 1912.
159
Republicano Conservador, as medidas do Governo Central em favor da situação que
apelara ao Marechal Hermes, não se fazem demorar. No mesmo dia da vitória do PRC
na Assembléia Estadual chega a notícia de que a licença do Tte. Cel. Coriolano havia
sido cassada. A notícia o encontrou subindo o rio Parnaíba, já na União, de onde ele
desistiu do seu intento de marchar contra o governo em Teresina, e deu meia volta, em
direção ao Rio de Janeiro, seguindo as determinações que recebera do Exército201.
No último dia de maio chega a Teresina, o Batalhão Patriótico “Cel. Mundoco
Carvalho” do distante município de Jaicós. E este que, junto com aquele de Floriano
(Delenda Coriolano), vão aquartelar-se em Teresina, dando origem ao Segundo Corpo
de Polícia Dec. Nº 529 de 15 de maio de 1912). A 2 de junho realiza-se a eleição da
mesa da Assembléia Legislativa Estadual, ficando assim constituída: Presidente – Cel.
Jonas Correia; Vice – Thomas Rebelo; 1º Secretário – Raimundo Antonio de Farias. O
PRC domina completamente a situação. No dia seguinte a Assembléia reconhece a
eleição e proclama Governador do Estado do Piauí, o Dr. Miguel de Paiva Rosa e Vice-
Governador, o Cel. Raimundo Borges.
A oposição entra em pânico. Alguns chefes da coligação nomeada União
Popular, alegando falta de garantias de vida, fogem de Teresina. O governo, vitorioso e
agora despreocupado, nega tal pretensão e passa a preparar os festejos da posse de
Miguel Rosa, o que tem lugar no dia 1º de julho.
As festividades da posse foram preparadas com um requinte até então jamais
vistos na capital Piauiense. Foram mobilizadas todas as classes sociais: dos operários às
damas da sociedade. A classe operária foi mobilizada, organizando-se uma comissão
especial de “artistas”. Compareceram ao prédio em que funcionavam as escolas
reunidas na rua da Estrela de onde, as 11 da manhã, precedidos por uma banda de
música, partem em solene desfile, até o Palácio do Governo, onde foram recebidos pelo
Governador.
A tarde realizaram-se as cerimônias de posse e transmissão do poder. A noite o
povo assistiu a inauguração das obras finais de reconstrução dos jardins públicos da
antiga Praça Uruguaiana, inclusive o novo coreto. Os jardins foram iluminados em
longas fileiras de lanternas coloridas, para acolher um público maravilhado. O baile de
gala, no Palácio do Governo, foi o ápice da festa.
200
“O Piauhy”, nº 1.179, de 19 de maio de 1912.
160
A sociedade sofisticou-se em trajes de gala, com os homens em casaca e as
senhoras com os longos vestidos da “belle époque” que parecia ter chegado, afinal, à
cidade de Teresina. Um florista de nacionalidade espanhola, denominado Poly Vellez –
abrira uma requintada loja – Casa Poly – e recebeu o encargo da decoração dos Salões
do Palácio, ornamentado com deslumbrantes arranjos de flores naturais.
A quadrilha inicial que abriu solenemente o baile, reuniu o Dr. Miguel Rosa e D.
Adelaide aos mais ilustres casais da sociedade, numa composição que, num lance de
requinte, desobedecia a composição civil dos mesmos. Assim, o Vice-Governador –
Cel. Raimundo Borges teve como par a distinta e bela senhorita Yayá (Almerinda)
Pearce. A outra filha do armador inglês Thomas Pearce – Bite (Beatriz) fez par com o
Dr. Thersandro Paz, Intendente Municipal, seu primo. O Dr. Luiz Correia, ilustre
político da Parnaíba, teve como seu par a Senhora Inhá de Oliveira Carvalho, filha do
Cel. Satyro Pinto de Oliveira e esposa do Capitão Leopoldo de Carvalho, oficial da
Polícia, escolhido para Ajudante de Ordens do Governador. D. Reçú Carvalho, esposa
do Dr. Tote Carvalho, abrilhantou a festa, iniciando uma participação de liderança
destacada na sociedade teresinense.
Inútil procurar nesta brilhante relação de participantes a presença do Major
Gerson e sua esposa D. Júlia. O Major Fiscal do Corpo Militar de Polícia, na estreiteza
do seu soldo, não se podia permitir o luxo de um primeiro uniforme nem D. Júlia
possuía um vestido condizente à solenidade de gala. Depois das cerimônias oficiais da
tarde, o Major permaneceu em casa com a mulher e as quatro filhas pequenas.
201
Ambas as notícias se encontram publicadas no “O Piauhy”, nº 1.180, de 25 de maio de 1912.
161
A Prima Inhá
Inhá de Oliveira Carvalho, filha primogênita de Lydia Figueiredo e Satyro Pinto de Oliveira e esposa do
Capitão Leopoldo Carvalho. Foto oferecida a sua “afilhadinha Zeneide”, a terceira filha de Gerson e D. Júlia,
com data de 08 de julho de 1909. Deve ter sido logo após o batismo, pois Zeneide nasceu a 21.03.1908.
Zeneide
A terceira filha de Gerson Edison e Júlia
162
O Major Fiscal estava exausto. A missão ao sul do Estado, agravara o seu já
abalado estado de saúde. A vitória de Miguel Rosa, um irmão de maçonaria, e os
serviços que prestara ao governo findo eram – para o Major – uma esperança de que
fossem contados créditos em favor da corporação. E havia tantos problemas a resolver,
tanta carência, que seria necessário um plano bem elaborado de prioridades para que os
recursos a receber do Governo fossem capazes de realizar uma verdadeira reforma no
Corpo Policial do Estado. Seu papel no posto de Major Fiscal e o prestígio do
Comandante Costa Araújo, seriam decisivos para estes melhoramentos. Mas urgia
cuidar da saúde.
Gerson Edison definhava à olhos vistos. Suas enxaquecas o perseguiam
constantemente. O estômago via-se afetado. Os pulmões atacados dificultavam-lhe a
respiração e, sobretudo o sono.
D. Júlia, além das quatro filhas, tinha cuidados especiais com o marido.
Gemadas, leite fervido com mastruço202 eram providências constantes as quais o Major,
entre casa e caserna, nem sempre podia fruir regularmente. O humor era péssimo; era
uma quase neurastenia. Tal estado o levara a desaver-se com Madrinha Marocas, irmã e
madrinha de Júlia, que irritara Gerson com oferta de ajuda à irmã-afilhada. Chegou
Gerson a ser grosseiro com a cunhada que se afastou da casa da irmã por algum tempo.
A vida de D. Júlia não era fácil. Além das quatro filhas pequenas – Gracilde, a
maiorzinha, tinha sete anos neste agosto de 1912 – havia a sogra, alienada deste mundo,
dócil mas sobre a qual era necessária uma constante vigilância e cuidados especiais.
Havia a grande ajuda do cabo Luiz, ordenança do Major, e sua esposa Maria, casal sem
filhos que acabara por vir residir na casa da calçada alta do largo de São Benedito. As
crianças adoravam a ordenança a quem chamavam Tuti, alcunha nascida do modo como
a pequena Zeneide, com sua língua atrapalhada nos seus três anos, o designava. Luiz era
alvo de olhos claros, alto e bem apessoado. Maria era negra e por uma disfunção da
tireóide, tinha um pequeno bócio e os olhos arregalados.
Não conheci o cabo Luiz, que morreu ainda moço, mas lembro-me bem de
Comadre Maria, que era madrinha de apresentar de tia Gersila. Ao longo da vida,
sempre foi amiga de minha avó. Era pessoa de trato fino, tendo sido agregada à casa do
rico fazendeiro Dr. Pedro Teixeira, para o lado dos Altos.
202
O que no Sul se chama erva-de-Santa Maria.
163
Além do casal havia duas mucamas, ambas chamadas Maria. Para diferenciá-las
designavam-nas pelos atributos de idade e porte: Maria Grande e Maria Pequena. Eram
“crias de casa”. A primeira, não sei como chegou a agregar-se mas a segunda foi ali
colocada pelo pai, um soldado raso – muito safado e beberrão – chamado João Balaieiro
que, tendo muitos filhos, colocou aquela agregada à Casa do Major Gerson. As duas
ajudavam com as crianças e D. Militina, bem como nos serviços de casa, comandadas
por Maria.
Eram assim cinco adultos, duas adolescentes e quatro crianças, num total de 11
pessoas na casa da calçada alta. Não tenho idéia do soldo do Major Fiscal àquela época,
mas não devia ser fácil sustentar a crescente família e seus agregados. Pelas cartas
mostradas atrás, vimos que Gerson Edison era parcimonioso e econômico. E seria
preciso.
Além das atribulações da caserna e com o estado pessoal de saúde o Major
Gerson estava longe de haver-se recuperado do drama que para ele representara a morte
do único filho homem, o pequeno Gersinho. Embora evitasse falar para não angustiar a
esposa que esperava poder gerar um outro filho homem – era indisfarçável a sua
amargura.
Era sob tais condições de saúde, física e psicológica que o Major Gerson,
desempenhava-se na caserna, no policiamento da capital, nas reuniões políticas –
oficiais, do Governo, e da confraria maçônica. Foi grangeando, assim, pela capital, a
fama de um homem muito brabo e muito rigoroso. Sua atuação no policiamento da
cidade, sobretudo, era responsável por esta crescente reputação de brabeza. Guardou-se
em família uma anedota segundo a qual, algum membro afim, da família, ao socorrer
um pobre bêbado, desordeiro das ruas, este agradeceu-lhe dizendo “Deus te livre das
garras do Major Gerson”.
Tal fama pode ajudar a compreender a interpretação dada no caso do
espancamento dos rapazes oposicionistas no botequim da Travessa Álvaro Mendes,
naquela noite chuvosa de 5 de abril de 1912. Em comparação ao que fora, a situação
após a posse era de calmaria, com a turma da União Popular ou Coligação, receosa da
represália do governo. Mas, a pouco e pouco, a movimentação foi se produzindo e logo
passaram de reclamações a novos ataques.
164
Em agosto, o Padre Miguel Reis, denuncia perseguição a sua pessoa, promovida
pelo Cel. Constâncio de Carvalho, graças ao apoio que o sacerdote havia dado à
candidatura Coriolano203.
Em 11 de outubro realizaram-se em todo o Estado eleições para as Intendências
Municipais. Na Capital, é reeleito o Dr. Thersandro Paz, tendo como vice o Cel.
Juvêncio Carvalho. Para preenchimento de vagas na Assembléia Legislativa realizam-se
eleições complementares. Um dos eleitos é o Dr. Fernando Marques, farmacêutico,
fazendeiro em Floriano. Trata-se do irmão do Cap. Cesar Oliveira, um grande amigo e
colega de caserna de Gerson Edison. Estão sempre juntos. Como se viu nas cartas à
esposa (1911) foi questão que Cesar acompanhasse Gerson quando este fosse buscar D.
Júlia no Campo Maior.
Um dia de outubro Gerson, Cesar de Oliveira e Constantino Correia, seus
colegas de farda foram à Vila das Flores, do outro lado do Rio. Ali naquela vila
maranhense residia o Dr. Francisco Falcão. Foi o bastante para que se propalasse que o
Major, acompanhado de uma tropa de soldados, andava a espreita do moço bacharel. O
Padre Lopes no “O Apóstolo” continuava os ataques aos hereges inimigos da Igreja e
criticando o governo e seus adeptos.
O estado de saúde do Major se agravava. Parece que, nesta época, ele viu-se
atacado de febres e hemoptises. O amigo Cesar insistia para que ele tirasse uma licença
para recobrar as forças. Seria ideal afastar-se para um lugar menos quente, uma fazenda.
Ficou combinado que Gerson iria para uma fazenda do Dr. Fernando Marques, irmão de
Cesar, em Floriano. Mas havia muito serviço no quartel, muitas providências a tomar,
para receber a atenção com que o governo estava disposto a dispensar à Polícia. E o ano
já se aproximava do fim. Dia 12 de dezembro era aniversário da esposa. Aí estava a data
limite. Passado o aniversário de D. Júlia, Gerson embarcaria no primeiro vapor com
destino à Floriano. De lá, para a fazenda do amigo. O repouso, o leite mugido todas as
manhãs, os remédios, o recuperariam.
O Sr. José Pereira de Araújo, funcionário estadual, deporia mais tarde que, em
palestra com o Major, em fins de novembro, ao queixar-se de doença, Gerson replicara:
“Zezinho, a gente querendo viver, vive!” Tal era a força e a motivação que o impeliam.
Era preciso viver. Sobretudo agora que Júlia lhe anunciara outra gravidez. Quem sabe
203
“O Piauhy” – nº 1.189 – edição de 3 de agosto de 1912.
165
não seria outro menino, O substituto do seu primeiro Gersinho. Um filho homem para
continuar o seu nome.
De fato seria outro menino. Que recebeu o nome do pai. Seis meses após o seu
assassinato.
3. A Tragédia Consumada
Naquele 11 de dezembro de 1912, quando o Major Gerson ultimava as
providências no quartel, e já fazia algumas compras para a pretendida viagem de
repouso e a véspera do aniversário da esposa, a trama do destino estava armada para o
desfecho na rua Paissandu, na loja do sobrinho afim. A frente de uma criança de dois
anos e meio foi abatido pelo bacharel Francisco Falcão. Desde aquela noite de abril,
166
ruminando a derrota política e a humilhação do espancamento, ao longo de oito meses,
o criminoso preparara a sua vingança. Não teve coragem de dirigi-la para o ex ou o
atual governador, figuras poderosas. O mais fácil ser ia dirigi-la para o Major Fiscal do
Corpo de Polícia.
O assassinato204 teve a maior repercussão possível e foi descrito
minuciosamente, pelo jornal “O Piauhy” que, malgrado seu estado de deterioração,
ainda é possível de ser consultado na Casa de Anísio Brito. Era aquela pesada coleção
de jornais, durante muitos anos guardada na gaveta da cômoda de minha avó, mas que
não cheguei a ler. A Casa de Anísio Brito preservou-a. Não sei até quando, pois os
jornais, com quase oito décadas, já estão em fase terminal de consulta.
Para preservar a memória, passo a transcrever aqui, parte do abundante
noticiário da cobertura jornalística que foi dada ao caso, nas páginas do jornal “O
Piauhv”. O leitor fica advertido a dar o desconto de um relato que é feito pela voz
oficial do Governo que exagera as tintas contra os adversários e muitas vezes minimiza,
quando não “nega”, a ocorrência de fatos realmente produzidos por ele. Gostaria muito
de poder apresentar as duas versões mas, como foi dito, não há memória guardada dos
órgãos “O Apóstolo” e “A Cidade de Theresina”, a voz da chamada União Popular.
Entre os trechos selecionados – dentre um espectro muito grande – me permitirei
alinhavá-los com comentários dirigindo a atenção para os pontos em que o discurso
oficial exagere ou mutile os fatos, segundo minha interpretação . Um primeiro momento
é preciso retratar os acontecimentos que se seguiram imediatamente à consumação do
crime. A reação do Corpo Militar de Polícia e as providências repressivas e de
represália tomadas pelo Governo, embora nem todas hajam sido assumidas pelo mesmo.
Quando o corpo do Major Fiscal tombou por trás da vitrina e ante os gritos da
criança, o proprietário da loja, José Francisco do Santos e Silva, saiu pela rua Paissandu,
aos gritos de “pega o assassino”, formou-se um clamor. A principiar pela fuga do
assassino, relatada pelo “O Piauhy”, nº 1.208, Ano XXII – edição de 15 de dezembro de
1912.
Nesta época a edição do “O Piauhy” era semanal, saindo aos domingos. A
edição desse dia 15 teve maior número de páginas e foi quase completamente absorvida
204
Registrado na abertura do presente volume.
167
pelo noticiário do assassinato. Assim também aquelas edições de 22 e 29 e pelo início
de 1913.
Por uma irônica coincidência este domingo, em que a edição foi coberta com as
sombras da morte, era o dia do 36º aniversário de nascimento do Governador Miguel
Rosa.
Antecedido pelos cabeçalhos: O Assassino Francisco Falcão foi covarde e
perverso – Antecedentes do bárbaro crime – O dia do sacrifício da vítima. O Major
Gerson andava doente – O bárbaro Assassinato, segue-se:
“A FUGA
Perpetrado o covarde e bárbaro crime o assassino FF, com a arma fumegante
ainda em punho, disparou em vertiginosa carreira, descendo a rua Paissandu.
Ao passar pela Farmácia dos Pobres o Dr. B. Sá que assomára à porta,
atraído pelos tires, viu o assassino de revolver em punho correndo, dobrar a
esquina e subir a travessa Ruy Barbosa. Outras pessoas já seguiam no seu
encalço, mas a sua carreira era vertiginosa de forma que ao dobrar a rua S.
José os perseguidores não viram mais o assassino. Todos porém
compreenderam que o assassino se refugiara em casa de seu amigo político
Adhemar Rabello.
NO QUARTEL
O Sr. João Antonio de Vasconcellos, oficial de Polícia, reformado, ia
chegando ao local do crime quando caia fulminado o M.G. Foi testemunha
de vista do bárbaro crime e enquanto populares perseguiam o assassino, ele
correu ao quartel para anunciar a triste nova. Lá estavam o comandante e
diversos oficiais. Imediatamente uma força municiada descia correndo a rua
Paissandu, indo cercar o quarteirão onde se sabia que se acoitava o
assassino. As cornetas davam estridentes sinais de alarme tocando reunir
....... e novos contingentes desciam aquela rua para apertar o cerco do
quarteirão, enquanto outros corriam para o posto da passagem pública, a
margem direita do rio Parnaíba, afim de barrar a fuga do criminoso para o
estado vizinho,
Impossível é descrever o horror que causou no quartel a triste nova. O m.
G.E. era idolatrado pelos soldados do batalhão. Ele tinha para os seus
subordinados um carinho que cativava. O quartel, para ele, era uma
continuação do seu lar outrora tão feliz e hoje imerso em lágrimas de dor.
Para os seus soldados, para o seu quartel, ele era um advogado solícito e por
tudo que se relacionasse com o bem das praças, e com melhoramento no
quartel, ele se empunhava perante o comandante e perante o Exmo. Sr. Dr.
Governador do Estado com uma solicitude admirável. Ultimamente
exercitava pacientemente, as manhãs, as praças no tiro ao alvo com o novo
armamento Mauser. Se não fosse a disciplina do soldado Piauiense, tantas
vezes posta em prova, se não fosse a força moral que tem perante as praças o
Tenente-Coronel COSTA ARAÚJO talvez fosse impossível sufocar o grito
de dor que repercutiu entre as praças na trágica manhã de 11 de dezembro e
cenas bem dolorosas seriam presenciadas, por que não há forças que
168
contenham os frêmitos de um batalhão revoltado e ferido assim no seu amor
próprio.
O CADÁVER
Ao cair com o coração varado pela bala do assassino FF. o inditoso Major
Gerson não pronunciou mais nenhuma palavra. Solícita correu para ampará-
lo Madame João Chaves ajudada pelo negociante Francisco dos Santos e
Silva.
Seus lábios trêmulos, seu olhar quase apagado, sua palidez cadavérica, não
deixaram dúvidas sobre o desfecho fatal. Caridosamente aquela virtuosa
senhora meteu uma vela na mão do infeliz militar e como um sopro que se
esvai, como uma chama que se apaga, exalou o último e débil suspiro aquele
que na vida fora um forte, fora um bravo, fora um amigo leal e dedicado.
Instantes depois passava asselerado na rua, o primeiro contingente que ia em
busca do assassino e os soldados, lançando um olhar compungido para
aquela casa onde findara-se seu superior e seu amigo, faziam a continência
militar levando a mão à pala do quepi e partiam, loucos de dor, atrás do
perverso assassino. Do quartel descem logo uma padiola para transportar o
corpo do pranteado oficial. Carregada pelos praças, escoltada por uma
guarda de honra, foi a padiola arriada no salão do estado-Maior. Um novo
companheiro tomou-lhe o pulso; estava parado, mas o seu corpo ainda
quente bem demonstrava que aquela vida findara-se há pouco. Trajava o
Major Gerson na ocasião do crime, calça e túnica quaqui, tendo nos bolsos
apenas um molho de chaves presas a uma argola e algum dinheiro em papel.
Nem uma arma nos seus bolsos. A sua blusa do lado esquerdo, na altura do
coração, estava tinta de sangue, sua cabeça inanimada pendia para o lado
direito.”
169
Vários membros da União Popular foram detidos para investigações.
Notadamente efetivou-se a prisão do Padre Lopes vara prestar depoimento, de vez que
foi tido como autor intelectual ou insuflador do crime. A oposição não ficou inerte. O
correspondente do Correio da Manhã – que era o Dr. Lucrécio Avelino, filho do Juiz
Federal, Dr. Demósthenes Avelino, um dos grandes adversários de Antonino Freire e
Miguel Rosa – prontamente telegrafou àquele jornal na capital federal anunciando o
assassinato do Padre Lopes e o empastelamento dos jornais “O Apóstolo” e “A Cidade
de Theresina”. A primeira foi uma mentira que teve grande repercussão no Rio de
Janeiro, como se verá adiante. Os jornais foram de fato empastelados e incendiados a
seguir. O “O Apostolo” ficou “chamuscado” após o empastelamento mas “A Cidade de
Theresina”, ardeu completamente. O Governo sempre negará a autoria ou a condição de
mandante, incriminando as destruições como uma “farsa” reveladora do desespero de
causa da oposição. Será preciso ser ingênuo para acreditar-se na isenção do governo.
Ele soube aproveitar o clamor público para anular os veículos de expressão dos
opositores.
Mais grave ainda foi o cerco e “bombardeio” do Paço Episcopal, também
noticiado na capital federal. Não houve o bombardeio, mas ninguém poderá negar que o
Paço foi cercado pela tropa policial, tendo inclusive sido apreendido um desesperado
mensageiro que, ao tentar evadir-se dali, foi aprisionado. O bilhete de um dos padres era
dirigido a um dos chefes da oposição e estava vazado nos seguintes termos:
“Dr. Elias
Não posso fazer a viagem para o Engenho d’Água porque a cidade está em
pé de guerra. Consta que mataram o Gerson em Flores. A polícia já cercou o
seminário, bombardeou-o, penetrando alguns soldados que postaram nas
esquinas vizinhas. Estamos sendo procurados em nossas casas como bestas-
feras. Se não nos virmos mais até o dia do juízo.
Th. 11.12.1912
Padre Cicero.”
170
você alegre e eu na maior tristeza por ter que lhe dizer o que corre pelas ruas: o Dr.
Chico Falcão baleou o Major na loja do Seu Santinho, agora a pouco”. Depois desse
primeiro choque é que entra o cunhado Cel. Abílio Veras, conforme retrata o jornal:
“A FAMÍLIA DO MORTO
Despreocupada tratava a virtuosa esposa do m. G., D. Júlia Figueiredo, dos
arranjos do seu lar quando entra-lhe pela porta a dentro pálido e espavorido o
Coronel Abílio Veras. Vinha dar-lhe a triste notícia que seu marido havia
sido ferido por um tiro. A dolorosa verdade, porém, foi advinhada pela
desditosa senhora. Impossível é descrever a cena pungente que se desenrolou
naquele lar, de um momento para outro ferido assim dolorosamente.
A inconsolável viúva, quatro mimosas crianças já então órfãs dos carinhos
de um pai extremoso, outras pessoas da família ali presentes, não puderam
conter a dor que a primeira nova, embora velando a verdade, vinha provocar
e é impossível descrever o desespero daquela família pranteando o ente mais
caro do seu lar. Quando o cadáver saiu do quartel, voltou o Coronel Abílio
para então dizer toda a triste verdade sobre o caso. Passemos por alto o
desespero desta infeliz família,
Note-se que o texto soube explorar o patético que estava contido no apelo do
Capitão Ludgero, então com 79 anos de idade. Era uma bela figura de velho felizmente
captada por fotografias no álbum de família.
171
A narrativa – tantas vezes repetida – de minha avó era altamente dramática. Para
o menino assustado que era o seu neto, desenrolavam-se, como no cinema, cenas de
uma dramaticidade grega ou siciliana - “Sob o clamor do sol do meio dia suas tias
puseram as mantilhas na cabeça e correram para a nossa casa de São Benedicto: Irmã de
minha alma, que desgraça! Cada uma que chegava dizia e nos abraçávamos juntando os
nossos prantos. As crianças, assustadas, eram entretidas por Comadre Maria, enquanto a
casa se enchia cada vez mais de gente amiga e os curiosos se aglomeravam as calçadas”.
Celé foi a última a chegar pois estava na Iracema – uma propriedade de Abílio Veras e
Santinho, do outro lado do rio. Como o porto estava sob escolta policial ela teve que
procurar os oficiais superiores para identificar-se.
“A PRISÃO DO ASSASSINO
Perseguido pelo clamor público o perverso assassino F.F. refugiara-se em
casa do Sr. Adhemar Rabello. Os populares estacionavam em frente ao couto
do bandido. Cinco minutos depois estendiam-se as primeiras sentinelas em
torno do quarteirão suspeito. Instantes depois novos reforços chegavam e o
cerco era cada vez mais apertado.
Lavrado o mandado de busca todas as famílias do quarteirão abriram as suas
portas às autoridades policiais, O Secretário de Polícia Dr. Fenelon Castelo
Branco, acompanhado pelo escrivão da polícia, pelo Tte. Cel. Costa Araújo,
comandante do Batalhão Policial de José Euclides, delegado geral coronel
Laurindo Campello, delegado de polícia, oficiais e outros subdelegados
deram início a busca. Na primeira casa corrida, aquela por onde entrara o
assassino foi encontrado o seu chapéu junto ao muro que separa esta casa da
do Sr. Tote. Em casa do Dr. Victalino Freire de Andrade, dono de uma
padaria, davam busca, entre outras pessoas o Alferes Samuel Oliveira,
sobrinho do assassinado e o Sargento Jayme Marreiros. Um cabide cheio de
roupas, que ficava por cima de um baú chamou a atenção do Alferes Samuel.
Cauteloso ele aproximou-se e bateu de leve com o rifle de que estava
armado, nas roupas que encimavam o baú. Alguma coisa mexeu-se ali e
lesto o Alferes Samuel, recuando engatilhou o rifle e perguntou: ‘quem está
aí?’ Neste momento sai de dentro as roupas o próprio assassino F.F. e
prostrando-se de joelhos, com as mãos para o céu, pediu ao brioso oficial
que não o matasse “pelo amor de Deus”. A nobreza de caráter, a disciplina
militar, falaram então mais alto no coração daquele brioso militar do que a
dor que ele sentia pela morte de seu tio, seu amigo, e seu companheiro
d’armas. Aos seus pés estava o perverso assassino daquele que três
poderosos laços o ligavam a seu coração: laços de sangue, de amizade, de
solidariedade. Um movimento apenas de seu dedo no gatilho da arma, faria
rolar por terra aquela fera humana e depois era fácil provar que na luta o
preso sucumbira. Mas, nobre, como os mais nobres, altivo e sereno, o
Alferes Samuel limitou-se apenas a dar-lhe voz de prisão, segurando-o pelo
pulso. Junto a si já estava o sargento Jayme que teve os mesmos sentimentos
altruísticos do seu superior hierárquico. Seguro pelo outro pulso o assassino
foi entregue ao Sr. Dr. Secretário de Polícia, que chegava.”
172
A conduta do Alferes Samuel, tão louvada por muitos, não foi compreendida
pela viúva do Major Gerson. Ela já não havia perdoado a Samuel o fato de ter vindo
buscar o tio naquela fatídica noite da Sexta-feira Santa para enredá-lo nas malhas desta
trama política. Ao deixar escapar a oportunidade de “justiçar” o criminoso, com suas
próprias mãos – direito que ele certamente não tinha – minha avó baniu, pelo resto da
vida, aquele “sobrinho” da sua relação e de seus filhos. Movida por sua dor e forte
paixão ela não pode ver naquele ato louvável, outra coisa que não fosse covardia e
desrespeito à memória do tio. Samuel morreria ainda moço e deixou família que residia
na rua Paissandu. Lembro-me que havia umas moças bem bonitinhas – uma delas
parecida com a minha tia Zeneide – que me causava estranheza, numa família onde as
relações eram muito fortes, constatar que havia aquela discriminação. Só bem mais
tarde vim saber da causa.
O relato continua:
“NA RUA
Vimos o assassino quando saia da casa do Sr. Victalino Andrade. Estava
com os pés descalços e nú da cintura para cima. Disfarçava-se, portanto, para
fugir. Quando o perverso assassino assomou a porta a ira popular parecia que
não podia ser contida. Gestos de mata, mata!, ouvia-se por todas as partes.
Era o povo que queria linchar o assassino F.F.. Cercado imediatamente pelo
Sr. Secretário da Polícia, delegado geral, comandante do batalhão policial e
pelos oficiais que de espada desembainhada defendiam o preso, já então
entregue à polícia civil, foi dado ao assassino uma camisa e um par de
chinelos com que lhe compusesse. Dada a notícia por telefone a S. Excia. o
Sr. Dr. Governador do Estado que já estava em palácio, o Ex. Sr. Dr. Miguel
Rosa mandou que levassem o preso para a chefatura de polícia, garantindo a
sua vida contra a forja popular que era intensa. Com muito custo poz-se o
cortejo em movimento. Célere a notícia da prisão correu por toda a parte e
de todos os becos saiam populares gritando ‘lyncha o perverso’. Entre duas
filas de soldados, de baionetas caladas, seguia o grupo de civis e oficiais, no
meio do qual ia o preso F.F.. Na frente e por trás seguia compacta multidão,
calculada em mais de duas mil pessoas, vociferando contra o covarde
assassino. Ao chegar ao cruzamento da rua Bella, com a travessa Ruy
Barbosa uma onda popular envolveu o grupo que cercava o assassino.
Pareceu a muitos, chegado o seu último momento. O tumulto foi
indescritível. Apesar de todos os meios de defesa um popular ainda pegou o
preso pela garganta, querendo esganá-lo. Oficiais então sacaram dos
revolveres e o Comandante da polícia, empunhando a sua arma, gritava que
faria saltar os miolos de quem tocasse no preso. ‘O senhor está garantido,
caminhe!’ diziam as autoridades ao assassino ao que este respondeu: eu
estou mas é morto’, Isolado o preso continuou lentamente o cortejo a se
dirigir para a polícia no meio de uma multidão que pedia eu altas vozes a
justiça sumária para o perverso assassino. Ao aproximar-se a multidão da
chefatura de polícia a casa foi isolada pela força de armas embaladas. Duas
173
filas de soldados, de cada lado da rua, impediam a passagem da onda
popular. Na chefatura entraram apenas o preso e as autoridades civis e
militares. Ao preso foi administrada, por mão caridosa, uma poção calmante
de bromurêto de potássio. Do lugar de pressão à chefatura de polícia, o
cortejo gastou cerca de quarenta minutos.
O INQUÉRITO
Feito um pequeno descanço foi o assassino F.F. interrogado pelo Secretário
de Polícia. Confessou o bárbaro e covarde crime que acabara de praticar e
como um criminoso nato que se revelou acrescentou “que não estava
arrependido do que fizera pois tomara uma vingança, lamentando apenas que
sua mãe e seus irmãos se sentissem constrangidos por ver um assassino na
família’. Não se comenta semelhante cinismo. Nem ante o cadáver de um pai
de família, nem ante a multidão que queria lynchar aquele infame. O
assassino F.F. teve remorsos da hediondez do seu crime. Covarde quando
atirou pelas costas, perverso quando alvejou um corpo prostrado no chão,
golfamde de sangue do peito, pusilânime quando caiu de joelhos aos pés do
Alferes Samuel e por fim de contas cínico na polícia, foi tudo isso o
assassino F.F. dentro de duas horas talvez. Terminado o interrogatório foi o
preso transportado para a cadeia pública acompanhado por civis e militares,
empenhados em garantir-lhe a vida, esta vida que ele não soube respeitar em
quem dela mais precisava.
OS BOLETINS
As 2 horas da tarde daquele fatal diz 11 foram distribuídos dois boletins. Um
oficial, do nosso colega “Diário do Povo” anunciando a morte do inditoso
Major Gerson e convidando em nome do Governo e forças armadas do
Estado e da União, os funcionários federais, estaduais e municipais, os
amigos do morto e da situação dominante, para comparecerem ao enterro
que se efetuaria no dia seguinte as 7,1/2 horas da manhã. Por nossa vez
distribuímos outro boletim stigmatizando o bárbaro e covarde assassinato,
vingança selvagem da mais torpe, da mais covarde das oposições.
Apontamos também o responsável intelectual do crime. E o atual ‘Tribunal
de Justiça’, avocando-se prerrogativas policiais, permitindo o uso de armas
proibidas contra disposição expressa da lei, evitando, deste modo, medidas
preventivas contra violências e assassinatos solidamente premeditados como
o do nosso inditoso amigo.”
Antes de chegar ao noticiário das exéquias do Major vale encaixar aqui, algumas
das notas que, inseridas em outras páginas da edição, refletem as acusações feitas pelo
Governo à oposição, notadamente ao Padre Lopes.
A notícia da detenção do Padre Lopes é precedida de outra nota na qual se
formaliza as responsabilidades do religioso no caso:
“A PRIMEIRA VICTINA
O padre topes deve estar satisfeito: uma das vítimas que designou para ser
imolada nos altares dos seus ódios sangrentos acaba de cair fulminada pela
bala assassina de um dos seus asseclas.
174
O valente e saudoso Major Gerson de Figueiredo, desde muito, estava na
lista dos que deviam ser assassinados pela gente do padre Lopes. Este
perverso e feroz sacerdote, pelas colunas do APOSTOLO e do púlpito, não
cessa de aconselhar seus devotos e as seus amigos que nos matem,
afirmando-lhes que matarmos é um ato de benemerência religiosa, de virtude
cristã.
A religião que o padre topes prega e O Apostolo representa na imprensa é
esta: matar, insultar, caluniar. Depois das grosseiras injúrias arremessadas
sobre nós e nossas famílias, não respeita ................... lar querido, o padre
Lopes, que vive cercado de capangas, manda matar-nos insinuando
(insuflando?) contra nós estúpidos odiou religiosos e políticos. Para
conservar a seu serviço as mulheres, que lhe dão dinheiro, inventa contra
elas infames injúrias e, depois, afirma que fomos nós, que lh’as atiramos. Foi
o padre Lopes quem inventou a troça-“cadellas de coleiras” – referindo-se às
zeladoras.
Outras vezes, não podendo furtar-se a responsabilidade da frase, desculpa-se
dizendo que usou-a no serviço da religião. E assim que O Apostolo, não há
muito, justificou o seu torpe procedimento chamado eguas as ilustres
senhoras protestantes do Corrente.
Sinistro arauto do mal, pomo de discórdia da família Piauiense, promotor de
tantos crimes, o padre Lopes vai pondo calmamente em prática seus planos
sanguinários.
Não há de ter sido esquecido pelos nossos amigos, uma lista publicada em
julho deste ano, em que o padre Lopes, pelas colunas de lama e sangue do
APOSTOLO, indigitou aqueles dentre nós que deviam ser assassinados.
Nesta lista estava o nome do inesquecível e querido Major Gerson
Figueiredo, assassinado pelo irmão do Dr. ODYLIO COSTA, o intitulado
chefe da coligação.
Os fatos não podem ter maior evidência. O padre Lopes do púlpito de São
Benedito, com a maior ostentação e das colunas do Apostolo, sem o menor
rebuço, prega, aconselha, insinua seus capangas para o assassinato. Manda-
os provocar lutas com a polícia e, depois, incita-os à vingança. Seu famoso
sacristão José de Moura, não faz reservas em afirmar que já tem uma vítima
designada para o seu punhal, e, certamente, essa vítima será uma dos
inimigos do padre Lopes, porque José de Moura é seu capanga e será o bravo
executador dessas ordens.
Não há ilusão possível diante desta crise que o padre Lopes criou durante a
campanha eleitoral e procura manter a todo transe agora.
Pelo interior do Estado os crimes se multiplicam. Cangaceiros em grande
número enfrentam diversas comarcas.
Aqui na capital, gente da oposição armada, anda todas as noites a disparar
tiros pelas ruas. A polícia, solicita pelo bem público, e realizando o plano de
administração larga e de paz do ilustre Dr. Miguel Rosa, Governador do
Estado; determinou que fossem aprendidas as armas em poder dos
conhecidos arruaceiros. O Tribunal de Justiça, pela sua maioria, determinou
que as armas não podem ser apreendidas e todos podem andar armados à
vontade.
175
Esta extravagante e imoral divisão vai se prender ao plano de anarquia
combinados nos conceliabulos de TABAJARA205 porque há entre os
desembargadores juízes fanáticos no seu partidarismo e ouvidor em toso os
conselhos onde trama a oposição a nossa morte.
Estamos, pois, na terrível iminência de um abismo: vivemos cercados de
terríveis ameaças, vendo-as já postas em execução do modo mais baixo,
cobarde e premeditado.
O Dr. Francisco de Moura Falcão, irmão do Dr. Odylo Costa, foi um dos
instrumentos manejados pelo padre Lopes.
Nosso sangue já começou a correr. As ameaças contra nós proferidas pelo
padre Lopes pelas colunas do seu jornal O Apostolo, já começaram a ser
postas em execução.
A política que medra entre nós à sombra do catolicismo, é uma política de
homicídio, de lama, de sangue.
Veremos qual será a segunda vitima.”
205
“Tabajara” é um exemplo de conservação do hábito nascido com o traçado da cidade (1852) em
designar as grandes quadras por nomes como Oeiras, Laranjeiras, Tabajara, etc., etc.
176
Quanto a suas relações com o ass. F.F. disse o satânico padre que as tem pela
freqüência que tem em casa de seu irmão Odylo Costa e que com o Major
Gerson, a vítima, teve boas relações até há três anos atrás sendo as relações
particulares, porque as políticas nunca as teve; que não sabe que Francisco
Falcão recebera instruções de alguém para praticar o crime e que é a
primeira vez naquele dia que ouve dizer que ele é cúmplice no assassinato do
Major Gerson.
Terminou o malvado padre dizendo que se não fosse obrigado não assinaria
as suas declarações porque considerava-se coagido, mas o que disse era a
verdade, que sustentaria em qualquer parte. Como testemunha, então,
assinaram treze pessoas presentes.
Algumas declarações do padre ficaram em segredo da justiça.
Com o seu ato o padre Lopes desmentiu as suas próprias palavras porque se
assinasse poderia dizer mais tarde que fora coagido, ao passo que não o
fazendo, como não o fez, provou que tinha plena liberdade de agir como
muito bem lhe aprouvesse. Não quis o padre Lopes assumir a
responsabilidade de direção do partido criminoso e ao coronel Leocadio deu
como chefe do assassino provavelmente para desviar de si as vistas da
polícia ............................”
OUTRA VICTIMA
“Caiu fulminado por um ataque cardíaco o escrivão federal Malaquias
Antonio das Chagas. O fato deu-se no dia 11 poucas horas depois de cair
morto o Major Gerson Edison Figueiredo. Há muito tempo vivia apavorado
o escrivão federal do cangaceiro do Alto da Moderação, Demonsthenes
Avelino. Debalde ele pediu por diversas vezes a sua demissão porque temia
servir junto a aquele monstro. O juiz federal, portanto, perverso como
poucos, conservava-o junto a si, gozando talvez a agonia daquele infeliz
empregado”.
177
A oposição propala aos quatro ventos, inclusive para a capital federal, que o
homem fora baleado pela polícia. Aqui é preciso dar crédito ao atestado de óbito
firmado pelos conceituados médicos Dr. Antonio Luiz de Arêa Leão e Dr. Bonifácio de
Carvalho, que constataram a síncope.
A nota continua:
“O cinismo porém do Sr. Odylo Costa não tem limites. Para o Rio telegrafou
dizendo que a polícia daqui invadiu a vila de Flores, no Maranhão, e matou a
tiros o escrivão Malaquias.”
......................................................
......................................................
“Julgavamos o Sr. Odylo estivesse abatido vendo seu irmão preso como um
assassino covarde e perverso. Ele porem, que insuflou seu parente à prática
de um crime hediondo, mente agora, cinicamente, explorando o cadáver de
um pai de família, para cuja morte seu irmão concorreu também.
Ah! O Sr. Odylo Costa é muito mais infame do que nós julgávamos”.
O ENTERRO DA VICTINA
Às 7,1/2 horas da manhã, compacta multidão entacionava na frente à casa do
Major Gerson Figueiredo, Sua Excia. o Sr. Dr. Miguel Rosa, Governador do
Estado, chegou em carro de estado às 7 hs. da manhã acompanhado pelo
Secretário do Governo, Dr. Luiz Correia. A hora exata marcada para o
saimento fúnebre principiou a formar-se o préstito. Na frente ia em funeral o
estandarte da loja Caridade II ladeado pelos Ilmos. Srs. Joviniano Quintino
de Brito, Eugenio Costa, porta estandarte e Simplicio de Arêa Leão; mais
atraz inferiores da Polícia levavam as coroas oferecidas ao morto.
Logo em seguida vinha o rico caixão mortuário envolto com a bandeira
nacional e descansando em um palanquim coberto de veludo, com crepes de
seda e franjas de ouro e prata. Carregavam-no ao hombro oficiais da polícia,
Nas bordas do caixão seguravam S. Excia. o Sr. Dr. Miguel Rosa,
governador do Estado, capitão Gentil Mendes Tavares, comandante da lª
Companhia de Caçadores, Dr. Antonino Freire da Silva, chefe do P.R.C.
Piauiense, Tte. Cel. Costa Araújo, comandante do Batalhão Policial. Atras
do caixão vinha a banda de música tocando sentidas marchas fúnebres, em
seguida uma multidão de amigos e admiradores do morto trajando rigoroso
luto. Descendo a Avenida Antonino Freire o cortejo fúnebre entrou na praça
Aquidabam, desceu pela travessa 13 de Maio, passou pela rua Grande,
178
desceu pela travessa Barroso até a praça 15 de Novembro de onde galgou a
rua Ruy Barbosa até a necrópole santa. Todas as janelas, todas as portas,
todos os becos estavam ocupados pelo povo que descobre-se a passagem do
préstito fúnebre. Ao passar em frente a cadeia a guarda formou com as armas
em funeral e entre os soldados que compunham notamos um visivelmente
comovido que deixava cair das pálpebras sentidas lágrimas de saudade do
seu superior e amigo. Tomamos nota das seguintes pessoas que
acompanharam o enterro206:
179
Cel. Justino Barbosa, chefe da Seção da Secr. do Governo
Cel. Antonio Campos, Juiz do Trib. de Contas
Cel. Fontenelle Burlamaqui
Cap. Joaquim Castelo Branco, Secr. do Cons. Mun.
Al. Thomaz de Aquino Junior, da Secr. da Fazenda
Cel. Benjamim do Rêgo, procurador da Intendencia
Cel. Benjamim do Rêgo Filho, coletor federal
Zito Baptista, escript da Imprensa Oficial
Modestino Soares
Pedro Cunha, empregado postal
José Leitão
Joaquim Camara da Cunha, da Imprensa Oficial
Celso Pinheiro, do DIARIO DO PIAUHY
Major Arlindo Correia Lima
Cel. Sinval de Castro
Virgilio Soares
Dr. Anísio Britto, lente da Escola Normal
Dr. Banido Freira, delegado fiscal
Cap. José Peneira de Araújo
Paulino Gomes de Souza
Cel. Abilio Veras
Joaquim Guedes
Major Satyro Pinto
José Saraiva de Siqueira
Jonathas Baptista, func.-públ. do Estado
Antonio Chaves, da Secret. da Fazenda
Antonio Lopes
Francisco Castelo Branco Munes, contador da delegacia fiscal
Manuel Leão, escrivão da Coletoria Federal
Augusto Modestino
Raimundo Bolha
Manuel João
Angelo Pacheco
Cap. José Leonilio Guedes
Dr. Raimundo Guedes
Diogenes Filho
Cel. Leurindo Campelo, adm. da Mesa de Rendas
Cap. Vicente Salles
Augusto de Souza Martins, Secretário da Intendência.
José João de Carvalho
José Olympio, func.-públ, municipal
J.J. Carreira
Raimundo Pereira Filho
João Braz da Costa
Dr. Antonio Monteiro
Manuel Monteiro da Cunha
Dr. Benedito Sá
Victalino Andrade
Luiz Leitão
Manuel Noronha
Cap. Alfredo Machado
Joviniano Britto
Cap. Claro Holanda
180
João Rego
Antonio Debonis
Arthur Candido de Sousa Rêgo
Nicolau Tajra
Pedro de Moura Santos
Cap. Apolinánio Monteiro
Mario Couto
Eugenio Costa
José Gabriel da Costa
Jesuino Ribeiro
José Manuel Fernandes
Adhemar Carvalho
Henrique Vilhena
Gentil Freira
José Affonso Pimentel
Cel. Enéas Carvalho, deputado estadual
Pedro de Alcântara Filho
Cap. Raimundo Elias
Raimundo Bona
Raimundo Paulo de Carvalho
Isaias Almeida
Antonio Almeida
Ponciano Campos
João Teixeira
Cap. José Rasando de Souza
Gervásio Britto
Alarico Castro
João Aurélio de Lavor
João Pedreira
Honorato João de Souza
Eneas Millo
Deodecio Britto
Aristides Alves
Joaquim Nascimento Filho
José Luiz da Silva
Horacio Giardini
José Belfort da Carvalho
Gregário Rosa
Belisário Bona
Luiz Dantas
Arthur Freira
Renato Oliveira
Manuel Tavernard
Lauro da Moraes Mello
Luiz Jorge
Olivio Gronga
Antonio J. do Amaral Sobreira
Felipe Vieira
João Marchão
Cel. Edmundo Oliveira
Prof. Nereu Bittencourt
Lauro Castelo Branco
Pedro Victoriano
181
Juvenal Siqueira
Antonio Baptista Freira
Simplicio de Arêa Leão
Antonio Bastos
Justiniano Guedes
Josino Velloso
Clodoveu de M. Santos
Fileno Tavares da Silva
José Leal
Omar Campello
Cariolano Lima, Contador da Fazenda
Raimundo O. Branco, empregado postal
Amancio Martins
Thomé Barbosa
Luiz Dantas
José Coelho de Britto
Belino Dantas
Major Gonçalo Souza
Prof. Francisco Marques
Cap. Francisco dos Santos a Silva
João Joaquim Gomas
José Teixeira Filho
Francisco José da Silva
João Avelino Pereira
José Rodrigues da Costa
Antonio da Silva Monteiro
José Lopes de Caldas
Ignácio Coelho de Rezende
Roberto Celestino de Barros
Diogo Oliveira
Pedro Rodrigues da Cunha
Coriolano Burlamaqui
José Antonio da Paz
Raimundo Xavier Coutinho
Antonio Souza
E. Freitas
Herbert Parentes Fortes
Luiz da Lobão Cantanhede
Honorato José Altino
Raimundo Leal
Jonas Teixeira
Flavio Moura
Antonio Martins do Rêgo
Antonio Arêa
Ulysses Pereira
Othilio Rezende
Lindolpho Rêgo
Benedito Vieira
Antonio Rodrigues da Cunha
Mardocheu Marques
Antonio de Oliveira Filho
Major Leopoldino Antonio do Rêgo
Arthur Gonçalves Dias
182
José Gonçalves Machado Netto
Enéas Mello
Raimundo Baptista
&
AS CONTINÊNCIAS MILITARES
Em frente ao cemitério estacionava uma companhia de guerra do Batalhão
Policial. Ao aproximar-se o cortejo fúnebre foram postas as armas em
funeral. Fazendo alta à direita da força o caixão mortuário foi pelo
Comandante da Companhia, Capitão Cesar Oliveira, mandado dar a primeira
descarga da ordenança. Em seguida a música executou um sentido trecho
fúnebre. Acabado este a companhia deu a segunda descarga, logo seguida
pela marcha fúnebre; ao terminar a música a companhia deu a terceira e
última descarga, honra a que o morto tinha direito pelo seu posto elevado na
polícia estadual. Novamente postos em marcha, o corpo do desolado Major
Gerson Figueiredo penetrou no Cemitério.
NA NECROPOLE SANTA
Colocado o caixão mortuário à borda do túmulo, orou em primeiro lugar S.
Excia. o Sr. Dr. Miguel Rosa. Suas palavras, repassadas de mais profunda
mágoa, expressavam naquele momento um adeus de despedida ao seu antigo
amigo. S. Excia. demorou-se em avaliar as qualidades do pranteado morto,
destacando entre todas sua lealdada nunca desmentida “Adeus Gerson”,
foram as últimas palavras com que S.E. O Governador Miguel Rosa fechou
sua bela e sentida oração fúnebre. Oficialmente em nome do Governo do
Estado, falou o Dr. Luiz Correia, secretário do governo, produzindo um
belíssimo discurso. Em nome da Loja ∴, Cap. Caridade II produziu uma
emocionante peça de arquitetura o Sr. Dr. Simplicio Mendes. Em nome do
P.R.C. Piauiense orou o Dr. José Pires de Lima Rebello que não cansou de
enaltecer os brios do soldado Piauiense posto, na véspera, na mais dura das
provas. O poeta Antonio Chaves em seu nome e no dos seus colegas Celso
Pinheiro, Zito Baptista e Jonathas Baptista leu uma sentida oração cheia de
encantos e de poesia alusiva ao morto.
Terminados os sentidos discursos baixou o corpo a sepultura, sendo coberto
o caixão de flores naturais enquanto a música tocava a última parte fúnebre
de tristíssima marcha.
A COMPANHIA DE CAÇADORES207
Corretos como sempre os militares da primeira companhia de caçadores
acantonada nesta capital, compartilharam da dor que compungia o coração
dos seus colegas da polícia estadual. Ao enterro do Major Gerson
compareceram daquela Companhia o Capitão Gentil Mendes Tavares, o 1º
Tenente Emitio Mariot de Andrade, 2º Tenente Benedito Passos de Carvalho
e Estevam Chaves, e muitos oficiais inferiores.
207
Em 1912 a presença do Exército Nacional na capital do Piauí limitava-se ainda a uma Companhia. Só
na década seguinte à que se instalará o 25º Batalhão de Caçadores.
183
LIGEIRAS NOTAS BIOGRÁFICAS
O Major Gerson Edison de Figueiredo nasceu a 21 de março de 1880 na
cidade da União, neste Estado. Casou-se com a Exma. Sra. Júlia de
Figueiredo tendo do seu feliz consórcio quatro filhinhos.
Sentara praça no Corpo Militar de Polícia do Estado a 19 de junho de 1896,
sendo promovido a cabo de esquadra a 23 de mesmo mês; a segundo
sargento a 6 de março de 1899 e a sargento secretário ainda em 28 de abril
do mesmo ano. Foi graduado no posto de Alferes em 6 de fevereiro de 1903,
tendo sido promovido a este posto a 2 de janeiro de 1907. Recebeu a
promoção de primeiro tenente a l0 de janeiro de 1908, a de capitão ajudante
a 20 de abril de 1910 e finalmente a Major Fiscal a 15 de julho de1911.
Como oficial brioso que era desempenhou diversas comissões do governo do
Estado em Parnaíba, Picos e outras localidades e agora S. Excia. o Sr. Dr.
Governador do Estado esperava o seu restabelecimento para mandá-lo em
Comissão ao Sul do Estado. Era jornalista e, como tal, colaborou na ‘Patria’
e no ‘Monitor’ e no ‘Piauhy’ onde ficam traços de sua inteligência. Era um
apaixonado pela arte militar, O quartel era sua preocupação e nele dispendia
todas as suas energias. Como soldado era de uma lealdade sem limites e
calmo, sereno e corajoso cumpria as ordens das autoridades com todo o
corretismo e imparcialidade.
NOTAS DIVERSAS
– Em frente a dentro do cemitério estacionava compacta multidão,
sobretudo de senhoras e homens do povo.
– Calcula-se que mil pessoas acompanharam o enterro do pranteado morto.
– O rico caixão mortuário em que enterrou-se o Major Gerson Figueiredo
era de primeira classe.
– O enterro foi todo feito por conta do governo208.
– Nos varais do palanquim que suportava o caixão pegaram oficiais
superiores e inferiores da Polícia e do Exército
– O caixão foi até ao cemitério carregado pelos seus companheiros de
arma.
– Todas as repartições públicas hastearam a meia verga o pavilhão
nacional, durante três dias, encerrando por este tempo o expediente.
– O cadáver do Major Gerson Figueiredo foi enterrado vestindo o segundo
uniforme.
– Sua Excia. o Sr. Governador do Estado velou o cadáver até as 9 horas da
noite.
– Durante o dia e a noite a casa do morto conservou-se repleta de senhoras
e cavalheiros.
– Todo o Batalhão continua de luto e as sentinelas de armas em funeral.”
Na tarde daquele triste dia a corporação a que pertencera o Major Fiscal por
dezesseis anos, reunia-se para a leitura da Ordem do Dia do Comandante, dando baixa
do nome de Gerson Edison de Figueiredo.
208
O jazigo, no cemitério de São José, segundo consta nos registros daquela necrópole, foi comprado por
Francisco José dos Santos e Silva, o Santinho, marido de Celsa, filha de Celé e Abílio Veras, em cuja
loja foi assassinado Gerson.
184
COMANDO DO CORPO MILITAR DE POLÍCIA – QUARTEL EM
TERESINA, 12 DE DEZEMBRO DE 1912.
Ordem do Dia nº 211
LUTO
185
Como uma prova de profundo pesar, pelo desaparecimento do bravo major
Gerson, o Exmo. Sr. Dr. Governador mandou que se conservassem por três
dias as bandeiras a meio pau e as guardas em funeral e que o corpo usasse
luto por oito dias.
LIBERDADE
Em atenção à memória do pranteado major Gerson, dispenso do resto dos
castigos todas as praças presas à minha ordem.
Assinado.
ANTONIO DA COSTA ARAUJO FILHO
Tenente Coronel
OS PATRIOTAS (Íntegra)
“As duas horas da tarde do dia 11 deste soube-se em Floriano da morte do
malogrado amigo nosso Major Gerson Figueiredo fulminado pelo perverso e
covarde assassino Francisco Falcão. A primeira impressão lá foi que alguma
revolução havia estalado aqui em Teresina. Imediatamente o Major
CARLINDO NUNES deu o brado de alarma e em torno de sua pessoa
sessenta e muitos Patriotas juntaram de armas na não, prontos para embarcar
para o teatro do conflito. As 6 da tarde daquele dia largava do porto de
Floriano o rebocador ‘América’ trazendo um batalhão com os Patriotas. No
dia 13, às 3 horas da tarde, fundeava em nosso porto aquele vapor. Só então
souberam os Patriotas de toda a triste verdade. A banda de cometas e
tambores da Polícia levou-os para o quartel do Batalhão Policial, Oficiais da
Polícia, amigos da situação, grande quantidade de populares, acompanharam
os Patriotas. Uma tristeza porém, passava sobre a força. Faltava ali o seu
amigo de outrora, o superior carinhoso que ensinava pacientemente os
segredos da vida militar aos denodados Patriotas, faltava o pranteado Major
Gerson Figueiredo, morto pelo assassino Francisco Falcão que foi o braço
armado pela oposição de bandidos que já tivemos a vergonha de enfrentar e
derrotar muitas vezes. É preciso que os Patriotas que vêm de longe
compartilhar a nossa dor, saibam que o covarde assassino Francisco Falcão,
irmão do cínico e mentiroso Odylo Costa, foi simplesmente o instrumento
com que a Oposição chefiada por este bandido que se chama Padre Lopes,
procurou ferir a nós na pessoa de um dos nossos mais queridos amigos.
Saudamos aos Patriotas que não medem sacrifícios quando sua pátria parece
perigar”.
186
líder oposicionista e advogado defensor do irmão criminoso, abasteciam aquele órgão
da imprensa carioca, o qual, sob a égide de Edmundo Bittencourt nada deixava escapar
em sua cerrada campanha contra o governo do Marechal Hermes. A virulência de ações
do governo Miguel Rosa, empastelando e incendiando jornais, cercando o “Seminário”,
dispensaria o recurso à mentira. Mas também essa foi mobilizada, sendo a mais infeliz
aquela do “assassinato” do Padre Lopes. Se o Governo tivera o seu “mártir” a oposição
precisava de um. Assim urdiu-se a farsa do assassinato do clérico, que repercutiu forte
na capital federal.
O Rio de Janeiro naquele início de dezembro de 1912 havia sido abalado com a
tragédia que representou o incêndio do Cinema Brasileiro, ocorrido, dias atrás, na Rua
Larga de São Joaquim. Os cabeçalhos exibiam notícias sobre a próxima libertação do
marinheiro João Cândido, da Revolta da Chibata, fortemente apoiada também pelo
Correio de Edmundo Bittencourt. A cidade está excitada ante a possibilidade de assistir,
nos próximos dias – graças ao milagre do cinematógrafo – o célebre ator italiano
Ermetto Zacconi na película “Amor de Pai”.
O Correio da Manhã, que àquela época tinha sua redação à Rua do Ouvidor, nº
162, estampa, na sua edição de sexta-feira, 13 de dezembro de 1912 à sua primeira
página o seguinte editorial; ao qual se faz necessário acrescentar notas de
esclarecimento:
209
Alusão ao Piauiense Dr. Félix Pacheco, futuro deputado que a essa época era Secretário do prestigioso
Jornal do Comércio, pessoa da mais alta confiança do seu proprietário, Jornalista Dr. José Carlos
Rodrigues.
187
do Sr. Pires Ferreira210, em ter influenciado junto aos seus fiéis no sentido de
fazer com que elles não votassem no Sr, Marechal Hermes para presidente
da República.
Quando a sua oratória capciosa levava à hilariedade ao Senado, em ataques
escabrosos ao malogrado monsenhor o Sr. Pires Ferreira, bem a
circunstancia da oposição por ele feita à candidatura marechalicia.
Conprehende-se de uma só feita, o marechal pelo Piauí conseguia defender
os negócios do seu corrilho e demonstrar ao Sr. Presidente da República que
aquele padre não merecia a mais leve sombra de consideração, tornando-se
por isso mesmo, indigno da segurança que as leis brasileiras facultam a todos
os filhos do paiz e até aos estrangeiros aqui domiciliados. Apertou-se o
círculo de compressão em torno do chefe oposicionista, e o resultado não se
fez esperar. Já no Senado da República o Sr. Pires havia dito que o governo
do Estado não se responsabilizava pelo que acontecesse aos oposicionistas.
Mas que fazia esta gente para que o Sr. Miguel Rosa a deixasse a mercê da
polícia, armada de rifles e a praticar disturbidos nas ruas de Therezina? Esta
coisa simples e inoqua na sua significância: fazia oposição e esta refletia nas
colunas do ‘Apostolo’, dirigido até ontem pelo infeliz sacerdote. No Piauhy
não é permitido outro regime político que não o das grandes unanimidades.
Fora disso, só há desordem e desrespeito ao prestígio da autoridade
constituída.
Tellegrama daquele Estado diz-nos ainda hontem que a força estadual está
atacando a vila de Caxias211, onde foi assassinado por esta mesma força o
escrivão do juiz federal212. Também já foram presos na vila atacada dois
cidadãos que possuem a criminosa qualidade de serem irmãos do Sr. Odylo
Costa, adversário da situação213. E os atentados à Vila e à propriedade dos
oposicionistas marcham vertiginosamente. Sabe-se por que? – Quando se
tratam de sucessão governamental de alguns Estados do norte, as oposições
do Piauhy, a exemplo das de Alagoas, Pernambuco e Ceará também se
acharam com o direito de respirar. Para isto as duas facções políticas de há
muito submetidas aos governos ali estabelecidas, uniram-se para dar
combate ao candidato oficial. Movimento genuinamente popular, apoiado de
todos os pontos do Estado, tudo indicava que o candidato das oposições
Piauienses, obteria um triunpho certo nas urnas eleitorais. Tal não sucedeu,
entretanto, e por uma circunstância muito simples: porque o Senhor
Marechal Hermes, depois de ter consentido que o Si. Coronel Coriolano de
Carvalho se apresentasse candidato; depois de permitir sua ida ao Estado,
afim de tratar de seus interesses políticos licenciando-o do serviço do
Exército, mandou caçar-lhe a licença, e fazel-o voltar a esta capital,
interrompendo uma viagem que se fazia entre Festas das populações,
manifestações do povo oprimido, na iminência da liberdade, foram
210
Trata-se aqui do Marechal Pires Ferreira, Senador pelo Estado do Piauí. Não confundir com o seu
sobrinho Joaquim, deputado e Senador, mais tarde.
211
Erro Grosseiro. Confunde-se aqui a vila das Flores, fronteiriça à cidade de Teresina, no outro lado
(maranhense) do rio Parnaíba com a cidade de Caxias, a principal do Maranhão, a uma centena de
quilômetros da capital Piauiense.
212
Adulteração de fato já apontado. Os médicos não encontraram qualquer sinal de tiro no cadáver do
escrivão dado como tendo tido um colapso cardíaco.
213
Irmãos do Sr. Odylo Costa, certamente, mas também irmãos do assassino Francisco Falcão.
188
interrompidas porque o Centro interveio214. De então por diante estavam
naturalmente vencidas as oposições do Piauhy, já nas vésperas do pleito e
por isso nas condições de não poderem escolher de prompto um outro
candidato. Acrescente-se a esses acontecimentos o desânimo que para logo
delas se apoderou, por comprehenderem que o governo federal pretenda
amparar o político indicado pelo PRC – o actual governador Miguel Rosa –
e, facilmente, se chegará a conclusão de que os descontentamento haviam de
explodir com uma precisão matemática,
Mesmo antes da eleição, já o Em. Presidente da República fez seguir força-
federal para todo o Estado; os soldados da União sob o comando do general
Torres Homem215 iam garantir as urnas do Piauhy, como uma parcialidade
de causar assombro, contra a oposição indefeza e desamparada. Não é
preciso repetir agora a maneira altamente forte porque o general
desempenhou a incumbência. Em poucos dias o Piauhy estava para todos os
effeitos entregue ao representante da política do PRC, O Sr. Miguel Rosa
subia a escadaria do palácio governamental apoiado nas baionetas federais e
ao invez de proceder como o Sr. Castro Pinto, cujos actos convergem todos
para apagar no espírito do povo parahybano a penosa defecção da
candidatura Rego Barros, nada fez para modificar a situação de verdadeiro
desapontamento em que se encontravam os piauhyenses216. Com toda a força
que lhe deu a intervenção federal, que o Sr. Pires Ferreira angariou no
Senado e que os bastidores do PRC aceitaram e acoroçoaram; o Sr. Rosa
apenas aggravou o precário estado de paz dominante na sua terra. Dahi as
ocorrências que todos lamentamos, não havia muito a esperar. Ninguém
pode prever com segurança si mais sangue deixará de correr depois do
assassinato de monsenhor Lopes. Como quem que seja a responsabilidade
dos sucessos cabe inteira ao presidente da República e ao Partido
Republicano Conservador. Foram eles que impuzeram ao Piauhy, um
governo odiado pelo povo. Hoje o sangue corre.
Nestas condições a nação precisa conhecer os causadores desses crimes
abomináveis que, com uma inesgotabilidade de estarrecer o observador mais
pessimista, ameaçam eternizar-se no norte do paiz. Elles ahi estão no morro
da Graça e no palácio do Catete. Quanto ao Sr. Miguel Rosa é lastimável o
papel de instrumento degradante dessa política selvagem”.
Embora ressabiado o Padre Lopes estava bem vivo. Depois de um tempo meio
escondido ele seguiria para o Rio de Janeiro, colocar-se, piedosamente, como vítima da
fé católica, sob a proteção do Cardeal Arcoverde. Viver ia ainda uns bons treze anos,
Lendo voltado ao Piauí, unido faleceu em 1925.
214
Adulteração de notória má fé. Como se demonstrou aqui a licença foi cassada quando, já realizada e
perdida a eleição, o Tte.Cel. Coriolano dirigia-se pelo rio Parnaíba a Teresina para tomar o governo
“pelas armas”. Foi sustado no porto da União em 25 de maio, quando a eleição já fora realizada no
domingo de páscoa, 7 de abril.
215
Em toda a minha pesquisa nos jornais, bem como nas consultas bibliográficas, jamais encontrei
referência a este fato.
216
O caso Piauiense, de Miguel Rosa, ao contrário dos exemplos dados, não constituiria uma “Salvação”
nacional, veiculada com ajuda do Exército.
189
No dia seguinte aquele do editorial transcrito o Correio da Manhã estampava
documento ainda mais interessante: o protesto, lançado do Senado da República, pelo
assassinato do Padre Lopes, pelo grande Ruy Barbosa. O emérito Senador Baiano
também “montou no porco” da falsa notícia.
Amargando a derrota nas eleições presidenciais o Senador Baiano era ferrenho
adversário do Marechal Hermes. O protesto por ele lançado do Senado foi feito num dos
seus memoráveis discursos, no preâmbulo de uma peça oratória onde o fio condutor e
centro de mesmo era explicar o seu afastamento de colaborar na preparação do Código
civil Diante da situação convulsionada, em que o país se encontrava (no Governo
Hermes da Fonseca) a codificação das leis civis, parecia ao ilustre jurista “um escárnio
atirado às faces do país”.
O discurso de Ruy Barbosa em questão foi reproduzido no “Correio da Manha”,
na sua edição de 14 de dezembro de 1912, principiando na página 1, no seu canto
direito.
Do referido discurso permito-me transcrever o início com alguns fragmentos
adicionais:
190
pacificadas, em uma epocha na qual a anarchia official está mergulhando,
cada vez mais, o paiz inteiro em sangue.
O Sr. Gonçalves Ferreira – Apoiado, muito bem!
....................................................................
....................................................................
....................................................................
“Contra o assassinio do padre Lopes, quero protestar desse logar com a
mesma indignação com que, da cadeira da presidência desta casa, rompendo
com as tradições de imparcialidade daquele cargo, eu clamei contra o
assassinio do padre Olympio de Campos. Faço-o agora com dobrada energia,
faço-o agora com uma vontade muito mais intensa de comunicar a minha
indignação profunda a todos os meus concidadãos quando, ao passo que
daquella vez se tratava de um caso esporádico, de um caso legado a
circunstâncias passageiras, agora, nos crimes do Piauhy, temos a expressão
natural, directa, fiel, inevitável, necessária de uma situação política, dos seus
princípios, das idéias que lhe estão na base, dos elementos com os quais elle
se formou, do que para qual ella tende – a anarchia cresce não lenta mas
rapida e, cathastróphicamente, de Estado a Estado; quase todo o norte já se
acha nella mergulhado – a Bahia, Pernambuco, Alagoas, Ceará, o Pará, o
Piauhy agora – todos esses Estados entregues a benemerência patriotica dos
“salvadores” republicanos; todas essas províncias do Brasil, barbarizadas,
envilecidas, ensanguentadas, sem mais resquicio nenhum de sua honra
passada, representando hoje outras tantas satrápias sobre as quais não resta
sinão a memória das considerações republicanas que neste paiz suponhamos
ter lançado as bases há 23 anos.
Não se trata de um facto isolado, trata-se de um systema, o systema da
irresponsabilidade, o systema da impunidade o systema da liberdade
absoluta para o poder, para os defensores da força, para os manobradores da
espada, para os senhores de todos os elementos com os quais se esmaga a
opinião do paiz.
....................................................................
....................................................................
....................................................................
“O honrado senador pelo Estado de São Paulo lançou hontem a
responsabilidades desses factos ao Partido Republicano Conservador.
Essa responsabilidade, numa grande parte é incontestável; mas o Partido
Republicano Conservador não vem a ser senão a Côrte do presidente.
Sobre este, como chefe da nação, em um paiz de regime presidencial, isto é,
num paiz, onde a cabeça do chefe do Estado, carrega a responsabilidade
inteira do governo, sobre este, é que pesa a carga dessas coisas que mais
cedo ou mais tarde hão de ser julgadas no tribunal da terra ou no tribunal do
ceo, pela ordem dos factos normaes ou pela acção desses grandes factos, dos
quaes, um bello dia, inesperadamente, a justiça divina acaba por se
pronunciar.
E é numa situação dessa ordem que nós, Sr. Senador, alinhavamos a
conclusão do Codigo Civil, com toda a seriedade magestosa dessas cadeiras
nas quais só se deve sentir a prudência e a reflexão; dessas cadeiras,
honradas com a presença de tantos patriotas respeitáveis, dessas cadeiras
191
onde devia presidir o bom conselho do patriotismo e a influência
moderadora das paixões, num paiz que restabelece a justiça, o direito e a
ordem.
Napoleão não se metteu a dotar a França de um Codigo Civil enquanto as
entranhas do paíz se abalavam, revoltas pelas conjuncções da luta que desde
tantos anus a agitava. Foi depois de ter restabelecido a ordem, foi depois de
ter firmado uma administração tranquila e moralisada, foi contando com a
pacificação geral do paiz que aquelle grande espírito se entregou a tarefa de
codificar as leis civis, as leis commerciais e as leis penais, compenetrado que
tais reformas, tais questões, melhoramentos dessa gravidade, não se
resolvem, não se podem organizam seriamente (...) debaixo de influência de
situações tranquilas, normais isentas de quaisquer cogitações.”
(O discurso continua, passando o Senador a dar as razões porque se abstem
de colaborar no projeto de Codigo Civil)
217
A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, possui coleção completa daquele periódico microfilmada.
192
Amarante; seriam os “patriotas” mobilizados para, de volta, rio acima, intervir no
Amarante? – Não encontrei referência a este fato, em minha pesquisa.
Por todo o resto de dezembro de 1912 e início de 1913 o assassinato falso do
Padre Lopes, rendeu proventos contrários ao Governo do Marechal no Rio de Janeiro.
Cumpria, portanto, que o assassinato (verdadeiro) do Major Fiscal, rendesse algum
proveito ao governo estadual de Miguel Rosa. Assim o primeiro mês do assassinato é
comemorado com redobrado entusiasmo.
A iniciativa é apontada como partida do Corpo de Polícia, certamente o local
onde a sinceridade era inconteste. Mas o Governo soube mobilizar habilmente a mágoa
– revolta da corporação aliando-a a manifestações de outras instituições – como a
Maçonaria e as associações operárias – num movimento “cívico” cujos proventos
revertiam para o próprio Governo.
A edição do jornal “O Piauhy”, nº 1.213 de 18 de janeiro de 1913 dá-nos conta
do cuidado e esmero com que foram programadas e executadas as comemorações de
primeiro mês do assassinato.
Em grande destaque, a primeira página chama a atenção com o seguintes
cabeçalhos.
O CONVITE DO BATALHÃO
Teresina, 9 de janeiro de 1913.
A Oficialidade do Corpo Militar de Polícia do Estado, representada pelo
abaixo assinado, tem a honra de convidar-vos para tomar parte na grande
romaria que os mesmos pretendem fazer no dia 11 deste, pelas 8 horas da
manhã ao túmulo do seu malogrado amigo e colega Major Gerson Edison de
Figueiredo, barbaramente assassinado a 11 do mês passado.
A romaria partirá do Quartel do Batalhão Policial.
193
Contando com a gentilleza do vosso comparecimento subscrevo-me como
vosso amigo attzº
Antonio da Costa Araújo Filho
Tenente Coronel Comandante
BOLETIM DO “PIAUHY”
Teresina, 10 de janeiro de l~l3.
Passa amanhã o primeiro mês que o pranteado Major Gerson Edison de
Figueiredo caiu fulminado, com o coração varado pela bala do perverso e
cobarde assassino Francisco Falcão. A sociedade precisa desagravar-se do
monstro que perturbou o socego público, lançou o luto e a dor num lar
outrora feliz e aviltou os brios do valoroso batalhão policial do Estado e
assim aguarda o veredictum do juri que há de julgar aquela fera humana.
Antes disso, porem, precisa lavrar o seu protesto público e eloquente indo
incorporada espargir flores no túmulo daquele pranteado oficial.
Compreendendo o sentir e o querer da sociedade, a oficialidade do batalhão
policial promoveu uma tocante romaria que irá amanhã à Necrópole Santa
render um preito de homenagem junto a tumba que encerra os restos mortais
do saudoso Major Gerson Edison de Figueiredo. A Câmara dos Deputados, o
Conselho Municipal de Teresina já lavraram unânimes o seu protesto contra
o bárbaro assassinato e agora o Batalhão Policial unido ao Governo, a
Maçonaria, a sociedade e ao povo em geral, vão amanhã, acompanhados
pelos representantes de quase todos os municípios do Estado em piedosa
romaria, render homenagem aos restos mortais do querido e saudoso Major
Gerson. A imprensa, o PRC piauiense aderiram também a generosa
lembrança e assim convidamos a todos os nossos amigos e o povo em geral
para acompanhar a grande romaria que amanhã partirá do batalhão policial
as 8 horas da manhã em direção ao cemitério, onde falarão diversos
oradores.
A memória do Major Gerson precisa ser desagravada dos insultos que lhe
tem atirado a família do perverso assassino.
Não há toilette de rigor
Todos à grande romaria
218
Considerando a tiragem uma vez por semana do jornal, os boletins eram avulsos soltos como volantes
pela cidade, anunciando um evento importante. Ao murmúrio de “Saiu um Boletim” a cidade se
alvoroçava.
194
Ao volante do jornal da situação saíram outros, como os da Maçonaria (a seguir)
bem como do Centro Proletário e da “Liga Protetora Operária”.
CONVITE DA MAÇONARIA
Tinha o malogrado Major Gerson um alto grau na maçonaria e, assim, esta
sociedade não podia deixar de tomar parte na romaria ao túmulo do seu
saudoso irmão. O secretário da Loj∴ Cap∴“Caridade II”, capitão Arthur
Freire, fez inserir o seguinte convite no “Diário do Piauhy”
“De ordem do Resp∴ Ir∴ Vem∴ desta Aug∴ e Res∴ Loj∴ Cap∴
“Caridade II’, convido a todos os Ir∴ do (∴) para acompanhar a romaria
promovida pela oficialidade do Batalhão Policial ao túmulo do Major
Gerson Edison de Figueiredo, pelas 8 horas da manhã do dia 11 deste para
tomar parte na sessão fúnebre desta Aug∴Loj∴que se realizará as 8 horas
da noite daquele dia, no edifício do Templo da mesma Loj∴ e em
homenagem também a memória daquele nosso inditoso Ir∴ barbaramente
assassinado a 11 do passado.”
195
O início das manifestações programadas para o decorrer do dia 11 de janeiro,
como estava previsto, deu-se no Quartel do Batalhão Policial. Assim é relatado:
NO QUARTEL DE POLÍCIA
...............................................................
...............................................................
As 8 hs chegava em carro do estado S. Excia. o Sr. Dr. Miguel Rosa,
Governador do Estado, acompanhado pelo seu ajudante de ordens, 1º
Tenente Leopoldo Carvalho recebendo, no Quartel, as honras a que tem
direito pelo seu alto posto.
O PRÉSTITO
Abriu a romaria o estandarte da Aug ∴ e Res ∴ Lei ∴ “Caridade II”,
carregado em funeral pelos irmãos Arthur Freire, Claro Hollanda e João do
Rêgo Monteiro Sobrinho ladeados pelos maçons Dr. Thersandro Paz e
Horacio Giardini. Em seguida, inferiores do corpo carregavam as coroas
mortuárias oferecidas ao assassinado219. Dentre estas sobressaia-se uma linda
coroa de um metro e meio de altura, forma oval, toda tecida de alvos lírios,
dálias roxas e saudades, tendo pendente de uma das extremidades uma longa
fita roxa com a seguinte inscrição em letras douradas “SAUDADES DO
GERSON. A FAMÍLIA MIGUEL ROSA”. O serviço desta rica coroa, toda
feita de flores naturais, foi da Casa Poly. Logo após aos inferiores marchava
a banda de música do batalhão policial. Mas atrás vinha S. Excia. o Sr. Dr.
Miguel Rosa, Governador do Estado, acompanhado pelo Tte. Cel.
Comandante do Corpo, todos os secretários de Estado e oficiais da
Companhia de Caçadores. Em seguida vinham os oficiais do batalhão
policial, representantes dos municípios, altas patentes da Guarda Nacional,
comerciantes, funcionários públicos, representantes do “Centro Proletário”,
da Liga Operária de “Associação Comercial”, de Lojas Maçônicas, oficiais
inferiores e praças da Companhia de Caçadores e grande quantidade de
homens do povo. Finalmente fechava o grande préstito o batalhão policial,
formado a dois de fundo, empunhando soldados, oficiais e muitos amigos,
lindos bouquets de flores naturais.
O ITINERÁRIO PERCORRIDO
Saindo da Praça Aquidaban a grande romaria galgou a rua Bella até a
esquina do edifício do Correio. Ali entrou na travessa Ruy Barbosa por onde
seguiu até o Cemitério Público, atravessando, no seu longo percurso, as ruas
Grande, Coelho Rodrigues, Praça Marechal Deodoro, ruas Eliseu Martins,
Ariolino de Abreu, Gloria, Estrela, Benjamim Constant, Nova, Palmeirinha e
Campo de Marte.
219
Já presentes ao enterro voltam aqui na “romaria” as cinco coroas – aquelas que alimentaram minha
visão artística da morte, penduradas no muro do quintal da casa de minha avó – oferecidas pelo:
196
espanhol Poly Vellez) a mesma que cuidou da decoração do palácio no baile de posse
do Governador Miguel Rosa.
NO CEMITÉRIO PÚBLICO
Por sobre o túmulo que encerra os restos mortais do pranteado Major Gerson
Figueiredo a Empresa Funerária da Santa Casa de Misericórdia, sob a
direção do Sr. Anísio Veras, ergueu uma rica e artistica eça. Sobre um alto
pedestal coberto de veludo negro, erguia-se uma coluna, enfeitada com
palmas e franjas de ouro, encimada por uma cruz. Nos ângulos do corpo
principal, colunas cobertas de veludo negro e roxo, sustentavam artísticos
castiçais abertos em flor, donde emergiam cirios acesos. Das colunas
pendiam ricas coroas de biscuit. E, em torno de tudo, velas ardiam em
profusão, dando ao túmulo do malogrado oficial, um tom de tristeza e
saudade. A linda coroa de flores naturais oferecida por S. Excia. o Sr. Dr.
Governador do Estado foi depositada junto ao corpo principal da eça.
Era grande também no cemitério o número de famílias, desde a da mais alta
sociedade, até senhoras do povo que acompanhavam silenciosas todas as
homenagens prestadas ao saudoso morto.
AS HOMENAGENS FÚNEBRES
Cercado o túmulo do Major Gerson pelos seus amigos e admiradores, o
estandarte da Maçonaria ergueu-se desfraldado, enquanto a banda de música
executava uma linda e sentida marcha fúnebre. Não eram poucas as pessoas
que tinham os olhos marejados de lágrimas. Toda a cena passada um mês
antes vinha à imaginação e a vida exemplar do morto na sociedade, no lar e
no quartel, sua conduta exemplar, seus serviços prestados à causa pública,
seu fim prematuro e trágico, tudo passava na lembrança de todos aqueles
que, contritos, cercavam o túmulo do nosso malogrado amigo que tão cedo
se finou.
Terminada a marcha fúnebre falou em primeiro lugar o Dr. Fenelon Castelo
Branco, que representava o Estado do Piauí e assim, resumidamente,
expressou-se S. Excia.
.........................................................
.........................................................
Governador Miguel Rosa, Dr. Antonino Freire, Loja Maçônica “Caridade II” de Teresina, PRC da
Parnaíba e Cap. Francisco José (Santinho) dos Santos e Silva e família.
197
Freire, pelo que ele contem de explicação do papel político do assassinato e da presente
solenidade.
198
celestes são uma realidade, vai ferido de mágoa idêntica ao incrédulo,
quando a Parca, cruel e impassível lhe toca de perto. Nós mesmos, os
soldados, marchamos para a morte sempre que o dever nos manda e calmos
na luta em pares com a consciência, satisfeitos por termos feito a nossa
obrigação até o fim. Entretanto, o espetáculo tantas vezes repetido do
desaparecimento material dos que amamos dificilmente encontra resignação
em nossas almas, onde medra, sempre viva, a afetividade.
E toda essa dor, e toda essa mágoa de que vos falo, provem do fato comum,
– esperado e certo da Morte natural, a que ninguem pode escapar. Parece que
neste caso a resignação, vem da certeza de que se não pode fugir à lei fatal e
mais do que cada indivíduo, criado para uma missão desaparece quando esta
está cumprida e finda.
Desgraçadamente, nem este consolo nos resta, camaradas! O amigo, o
superior que nós choramos há trinta dias, não se separou de nós,
naturalmente. Caiu varado por balas assassinas e covardes quando tudo
deviam esperar – a Pátria e o Corpo Militar de Polícia, de seus verdes 32
anos. Roubaram-no a nossa estima justamente quando mais ele poderia ser
útil a nós todos, em uma situação normal e em um governo em que a palavra
do Major Gerson Figueiredo seria sempre ouvida e raramente desentendida,
E foi neste instante de esperança para nós, que a política armou o braço de
um bandido togado para com um só tiro varar o generoso coração do nosso
grande amigo, ferindo ao mesmo tempo todos os nossos corações. Nós o
sabíamos ameaçado. Dedicado a situação como poucos. Expondo a vida
infinitas vezes no seu interesse, intransigentemente no cumprimento dos seus
deveres, fazendo da sua lealdade um ponto de fé, – ele era o alvo constante
dos politiqueiros trêfegos que pensam em substituir o número, valor,
prestígio, pelo punhal e pela mentira. No caso do saudoso superior,
entretanto, a leviandade da oposição clerical foi mais longe, porque os seus
jornais o escalaram para a morte juntamente com outros patriotas Piauienses.
Mas o Major Gerson, incapaz de um ato menos leal, também julgara que os
seus inimigos, como toda a gente, aninhassem no coração os mesmos nobres
sentimentos. Foi vítima da mais covarde das traições quando, em um nobre
gesto, deu costas ao inimigo e, inerme, afetivo, como sempre, acarinhava
uma criança, talvez pensando no próprio filho morto!
Camaradas! Só nós mesmos podemos compreender a perda sensível que nos
foi a morte do Major Gerson! Oficial inteligente e honesto, disciplinado e
disciplinador, calmo e enérgico, possuindo uma dose pouco comum de fundo
de justiça, – eu não conheço em todo o Corpo uma só praça que se houvesse
queixado de perseguição sua. Apontam-se os casos de punições frequentes,
porém ele castigava para não haver reincidência no erro e, do delinquente,
não guardava mágoas. Os benefícios, sim, ele os distribuía prodigamente.
Em geral sua preocupação era a máxima grandeza sempre crescente do
Corpo, que ele queria respeitado pelo seu valor moral mais do que pelo seu
valor armado. Em particular ele não esquecia os menores interesses dos
soldados e não se contentava em ir à caserna, afetuoso e dedicado, vigiá-los
de perto e conhecer as suas necessidades. Chegava a não esquecê-los mesmo
depois da morte e eu testemunhei a dedicação com que, poucos dias antes do
seu assassinato, reuma documentos e provas para que merecessem a proteção
legal as viúvas de dois camaradas nossos, como ele, traiçoeiramente mortos
em Amarração e Pimenteiras.
199
Senhores! A nossa missão não é simplesmente a de chorar e lamentar o
assassinato do Major Gerson de Figueiredo! O Estado todo viu-o morrer
inocente e injustamente. A vingança de honra como o assassino tentou
justificar o seu nefando crime não o atenua sequer. O público deve ter lido o
depoimento presencial dos que assistiram ao incidente de 5 de abril e sabe
que não houve ao menos imprudência da forca.
Era um período agitado, partiram tiros de um botequim.
Uma autoridade policial ali comparece e proíbe, em nome de terminantes
ordens superiores, que tais tiros continuem. Pergunta quem atirou e quem
estava armado. Um homem imprudente levanta-se, confessa possuir um
revólver e provoca-o a desarmá-lo. Esta autoridade assim desacatada, era ao
mesmo tempo, uma alta patente do Batalhão Policial e seguida de seus
subordinados. Nesse duplo caráter julgou não poder ficar desmoralizado
deixando a arma com o seu provocador, – quando contra ela investe o atual
assassino, homem de passado criminoso, turbulento, sempre impune. Só
então o Major Gerson faz valer o seu prestígio e contendo os soldados já
exaltados evita um conflito em que a força pública seria fatalmente vitoriosa.
O que fez ele para ser morto? Um semelhante fato, senhores, não autorizaria
a morte de um cão e muito menos a de um militar brioso.
Depois, a atitude posterior do assassino não denuncia esse tão alto grau de
dignidade que ele se quer atribuir. Quem mata por motivo de honra não foge
à ação da justiça. Corre, sim, à primeira autoridade, e, em frente ao local do
assassinato residia o Delegado Geral de Polícia, por cuja porta o criminoso
passou – fugindo. Quem mata por motivo de honra não se oculta, não se
disfarça, para evadir-se como e assassino do Major Gerson fez. Quem mata
por motivos de honra não atraiçoa porque a honra é incompatível com a
traição. Quem nata por motivo de honra não procura evitar o julgamento do
seu ato e o assassino mal chegava à Secretaria de Polícia protestava contra a
sua prisão em flagrante alegando não ter sido perseguido pelo clamor
público, nem detido no próprio momento do crime.
Não, meus senhores. Nós os soldados sabemos, compreendemos que a farça
que se prepara não tem e não pode vingar. E, assim, esperamos pela justiça
severa para o assassino. A polícia é a guarda da sociedade.
Em nós reside a segurança individual da propriedade, enfim, a garantia de
todos os direitos e prerrogativos. Nós temos honestamente correspondido à
confiança da sociedade. Ao próprio assassino do nosso extraordinário amigo
cercamos de garantias.
Mas também chegou o momento de sabermos se a sociedade corresponde ao
nosso sacrifício. Dentro em breve vai ser julgado o assassino do Major
Gerson, e os julgadores sairão do seio do povo. A nós só é lícito aguardar a
sua justiça, da mesma sorte que temos sido a sentinela dos seus direitos.
Não pode haver lenimentos para um crime tão monstruoso e o seu
julgamento interessará a tudo o corpo como esta morte a todo ele afetou,
Camaradas! Este túmulo deve ser para nós um altar cívico. Ele encerra o
corpo inanimado do nosso melhor amigo e sobre ele devemos vir,
frequentemente, revigorar a nossa fé no futuro, como hoje devemos jurar a
nossa solidariedade na desgraça que, há um mês, feriu o nosso Fiscal. Aqui
restará esta sepultura como testemunha do nosso imperecível empenho pela
vingança legal do assassinato premeditado de um homem digno. É este o
200
primeiro oficial do Corpo de Polícia assassinado. Zelemos, pois, o seu
túmulo e orvalhemos com as nossas lágrimas, o atapetemos com as flores
mais odoríferas, porém também saibamos honrar a nossa classe e tenhamos
todos, voltado o nosso pensamento para a punição do monstro que ainda
manda, em boletins, insultar a memória do Major Gerson.
Camaradas! Sejamos calmos e enérgicos em nossa exigência.
Tenho dito.
220
Paulo Gutemberg de Carvalho: “A luta político religiosa entre Igreja e Maçonaria no Piauí: 1902-
1914”. CARTA CEPRO. Vol. 11 nº 1, Teresina, julho/dezembro de 1986 – p. 110.
201
Ao cabo de um mês D. Júlia, além da sua dor e do futuro sombrio a enfrentar,
via-se ante a carga pesada dessas homenagens solenes, cheias de discursos de exaltação
a um marido sacrificado, por obra da política, aos 32 anos de idade.
A cabo daquele mês as providências policiais passavam a dar lugar ao campo
jurídico com as medidas de formação de culpa do Dr. Francisco Falcão. Seu irmão Dr.
Odylo Costa, instituía-se seu advogado de defesa, secundado pelo seu colega Dr.
Carvalho Neto. A família da vítima constituía para complementar o ministério público
na acusação do réu os advogados Dr. Clodoaldo Freitas e Dr. Hygino Cunha.
Em um trecho do seu discurso nessa comemoração do primeiro mês do
assassinato do Major, o Dr. Antonino Freire declarara que o Partido Republicano
Conservador Piauiense, tinha naquele momento um duplo dever:
Aqui se constata que, naquela época, aquele ilustre Piauiense ainda era bem mais
o técnico, o engenheiro, o administrador e pouco político.
Em pouquíssimo tempo novos ventos soprarão na política local. Irmãos e aliados
de então tornam-se adversários e inimigos. Os trâmites da “justiça” (Sic) refletem os
novos sopros. Antes de terminar o mandado de Miguel Rosa o assassino seria absolvido.
Ao findar, D. Júlia e seus filhos estariam ao desamparo do Estado.
Isso demonstra bem que o viés político é dentre as diferentes dimensões do
humano aquele mais privilegiado para exibir o seu conteúdo de sordidez. Mas,
deixemos estes fatos para mais adiante.
Detenhamo-nos agora na cena do encontro entre D. Júlia e seu pai o octogenário
Capitão Ludgero Gonçalves Dias, na casa da calçada alta do largo de São Benedito. Ao
cabo daquele mês atroz, após aquelas infindáveis cerimônias de primeiro mês de morte,
o Capitão Ludgero vai buscar a filha viúva, de volta para a velha casa de palha da Rua
da Glória.
D. Júlia – coberta de um luto que a acompanharia para o resto da vida – olha o
pai serenamente e responde: “Não posso, Senhor meu Pai. Ao sair de sua casa para
casar-me com o Gerson saiu uma boca que o senhor alimentava. Agora somos cinco,
202
véspera de seis. Deus há de me dar forças para enfrentar a minha desgraça e sustentar-
me a mim, a meus filhos e aqueles que rios estão agregados”.
Começava ali uma nova vida para aquela corajosa mulher de vinte e sete anos.
Um desafio que ela, com muita luta e decisão, venceria.
A Fiação
A beira do Rio Parnaíba, no princípio da Rua da Estrela a fábrica de têxteis, com seu apito, regulava a
vida da cidade até os anos quarenta. Hoje é ocupada pelos Armazéns Paraíba.
203
A Cidade e as Máquinas
204
Todo o material necessário à implantação da ferrovia veio diretamente da
Inglaterra para o porto de Tutóia, a partir de onde, embarcado em alvarengas, subiria o
rio Parnaíba até o Porto das Cajazeiras.
Esta ligação férrea, com trens de carga – uma viagem semanal de Caxias e a
respectiva volta de Cajazeiras – mas também com composições especiais que faziam
delas “trens-de-recreio” nos intervalos, ligou muito as duas cidades: a boca de sertão,
maranhense e a capital do Piauí, dominando o Médio Parnaíba. Isto estreitaria muito as
relações comerciais e sociais das duas cidades. Bem mais próxima que São Luis – numa
época em que as ligações rodoviárias eram precaríssimas com o Ceará e sua capital,
Caxias representou para Teresina um papel de “porta aberta para o mundo” que, pela
rapidez do trem, desempenharia um papel até então desempenhado pela cidade da
Parnaíba.
A família Cruz, não chegou a cogitar de uma ponte para atravessar o Parnaíba,
pois seu objetivo básico era promover a ligação entre os vales do Itapicuru e Parnaíba.
Este empreendimento, do final do século, seria uma daquelas com que aquele grupo
caxiense projetaria seus interesses comerciais para o Piauí, mais diretamente para a sua
capital. Os outros dois setores de maior vulto foram a participação do Grupo Cruz na
Companhia de Navegação a Vapor no Rio Parnaíba e na Fiação e Tecidos Piauienses,
construindo a grande fábrica em Teresina (1891). Nesta, o grupo Cruz aliou-se a
comerciantes locais, especialmente o português José Lobão Portellada e João José dos
Santos, conhecido mais pela alcunha de Cel. Zés, aquele que aderira ao
empreendimento da Cia. das Águas.
Um irmão do Dr. Christino, Dr. Joaquim Antonio Cruz, médico, passaria a
residir em Teresina. Ainda no Império acabou entrando na política (Partido Liberal),
chegando até a posição de Deputado Federal pelo Piauí. Já na República, ligado ao
Partido Republicano Conservador, nas lutas políticas entre este partido e a União
Popular ou Coligação da transição dos governos Antonino Freire para Miguel Rosa, os
Cruz estiveram no segundo grupo o que explica os muitos ataques do jornal oficial da
situação ao Grupo e às suas companhias. As razões não transparecem com facilidade,
sendo necessário um mergulho mais profundo na trama política para apurá-las. Ao final,
talvez tudo se venha ligar a questões pessoais, como sempre.
205
Tudo parece indicar que o apogeu do Grupo Cruz no Piauí deu-se na virada do
século. A venda da Estrada de Ferro Cajazeiras ao Governo já parece ser sintomática.
Embora fazendo-se necessário dar o desconto pelo antagonismo político, durante o
Governo Miguel Rosa são freqüentes no jornal “O Piauhy”, as notícias e análises
apontando a decadência nos empreendimentos da família Cruz. E nesta época, falecem o
Dr. Joaquim (outubro de 1912) e Dr. Christino (maio de 1914).
A partir de 1908 quando se constituiu a EFSLT foi construído o trecho entre
Caxias e São Luís. Iniciou-se, na construção desta linha férrea, um festival de erros
técnicos221. Ao invés da ferrovia seguir pelo espigão divisor entre o Itapicuru e o
Mearim, o traçado foi estabelecido ao longo do primeiro rio, o que contribuiu para o
fracasso da navegação fluvial naquela artéria, bem antes do colapso daquela do rio
Parnaíba. A ferrovia marginal esteve a mercê das enchentes, sofrendo vários danos nas
grandes cheias de 1924 e 1926. Embora a construção de uma ponte metálica sobre o
Parnaíba houvesse sido projetada desde 1908 somente trinta anos após (1938) ela viria a
ser inaugurada.
Houvesse sido mais eficiente a ligação São Luis – Teresina poderia ter resultado
numa efetiva captação ou drenagem, da economia do vale do Parnaíba em proveito do
Maranhão. Mas a ferrovia foi sempre um grande problema e o Maranhão não vivia um
bom momento econômico.
Mais sério perigo representou a tentativa de captação em proveito do Ceará. O
Dr. Francisco Sá, quando Ministro de Viação, conseguiu incluir no plano de
desenvolvimento da rede ferroviária nacional, o prolongamento da Estrada de Ferro
Camocim – Ipu, até Teresina. Este prolongamento entregava o Piauí ao Ceará, pois que
seria um golpe decisivo na navegação do rio Parnaíba, anulando nossa pretensão ao
porto de mar, promovendo a decadência da Parnaíba, drenando comércio e fluxo de
importação e exportação para o porto cearense de Camocim.
A disputa entre os portos complementares do Piauí (Amarração – Luiz Correa) e
Ceará (Camocim) era uma questão regional muito séria. O Governador Antonino Freire
valeu-se do deputado Félix Pacheco que, se entendendo com J.J. Seabra – que
substituíra o Dr. Francisco Sá no Ministério de Viação – conseguiu desmanchar aquele
projeto, obtendo, em troca, aquele do ramal piauiense de Campo Maior à Amarração.
221
Ao Engenheiro Palhano de Jesus, deve-se uma fundamentada crítica: Os Erros Técnicos na EFSLT.
206
Mas aqui já estamos no terreno das enormes dificuldades que o Piauí enfrentará
no seu sistema de transportes – ferrovias, porto marítimo, rodovias, navegação fluvial,
nos anos subseqüentes.
Para o interesse imediato dessa crônica de família cumpre retratar esses
empreendimentos pelo que a presença das máquinas, sua manutenção e consertos,
representariam para a atividade de mecânico profissional do Major Santídio Monteiro.
Daí a preocupação em retratar o estado da ferrovia, da navegação fluvial e da própria
fábrica de Fiação e Tecidos.
Depois de meio século de implantação a navegação a vapor no rio Parnaíba –
cujas condições fluviais já não eram muito fáceis – já apresentava sérios problemas que
o ataque sistemático e progressivo à cobertura vegetal, sobretudo as matas marginais,
vinha causando. Ao entrar o novo século, é muito freqüente encontrar-se notícias nos
jornais, chamando a atenção para o problema grave do desmatamento. Idéias que
parecem próprias deste agora do final do século, sufocado pela questão ambiental, já
aparecem ali em termos surpreendentes. Embora em jornais de saída restrita – uma vez
por semana – e com uma massa de leitores bem reduzida – imprensa já alertava para o
problema, com uma certa ênfase.
Rastreando pelos jornais da capital Piauiense do início deste século encontramos
exemplos expressivos. O “O Estado”, nas páginas 2 e 3 de seu nº 12, editado a 29 de
novembro de 1902 apresenta um alentado artigo sob o cabeçalho de “A Conservação
das Árvores” solicitando que fosse lido o código penal, pois que o abate de árvores às
margens do Parnaíba vinha sendo feito em moldes criminosos. O jornal “A Pátria” – um
esforço de tiragem matutina diária – no seu nº 207 de 10 de novembro de 1905, sob o
rótulo “As Queimas”, alerta aos Conselhos Municipais para que se movimentem para
restringir aquela prática abusiva. Novamente “A Pátria” transcreve, de uma revista
francesa “Lectures pour Tous”, a tradução de um longo artigo – apresentado em uma
série, abrangendo desde o nº 213 até o nº 221 (21 a 29/11/1905) a matéria “A Vingança
das Árvores” que se inicia com o seguinte alerta:
“Daqui a cem anos, se o homem continuar a devastar a terra como o faz hoje,
esta se tornará inabitável... O célebre geólogo inglês Marsh, quando assim se
exprimia, pensava sobretudo na destruição das matas.
A devastação sistemática das árvores foi útil, indispensável, na época em que
o homem tinha que conquistar jardins, pomares ou campos à grande floresta
207
virgem; ainda o é hoje nas regiões em que se torna preciso o
desaparecimento dos pântanos...”
208
esse nome (pode ter sido reformado e rebatizado) mas do Manoe1 Thomaz eu me
lembro muito bem. Tínhamos em casa (nos anos quarenta) uma velha empregada, Sia
Benedita, que tinha um filho mestre de barcas e que conhecia o apito de todos os
vapores do rio Parnaíba. Com ela aprendi a reconhecer os apitos do “Piauí”, do
“Parnaíba” e do “Manoel Thomaz”, os que sobraram...
Havia animação naquele rio na segunda década deste século. Pode-se tomar, ao
acaso, num dia qualquer, o movimento do porto, como este exemplo:
MOVIMENTO DO PORTO
Vapores Saldos: – Manoel Thomaz
a 19 para Parnaíba e escalas
– Igarassá
a 20 para Parnaíba e escalas
– João de Castro
a 22 para Floriano e escalas
Vapores Chegados: – Paranaguá
a 23, de Parnaíba
– 15 de novembro a 23, de Parnaíba
– Barão de Urussuhi a 19, de Parnaíba
Vapores Esperados: – América
de Floriano e escalas
– Brazil
de Parnaíba e escalas
(“O Piauhy” – nº 1251 – 25 de outubro de 1113)
“CONPANHIA DE VAPORES
Reuniu-se a 9 deste a diretoria da ‘Companhia de Navegação a Vapor no Rio
Fornaíba composta dos Sr. José Portellada, Gil Martins, José João dos
Santos, Joaquim Noronha e Dr. Elias Martins. Por proposta do Primeiro
209
diretor foi lançada na ata um voto de pesar pelo falecimento do saudoso
comandante João Climaco. A directoria resolveu preencher a vaga aberta
com a morte daquele comandante transferindo o Sr. João Cunha do
‘Marquês de Paranaguá’ para o ‘Barão de Urussuhy’ e nomeando
comandante do primeiro vapor o Sr. Leonidas Caldas competente imediato
que foi do último vapor. A favor da última nomeação votaram os diretores
coronéis – José Portellada, Gil Martins e Dr. Elias Martins.
Felicitamos aos recem nomeados pela merecida distinção que acabaram de
receber.”
210
A Agência de Parnaíba não é paga. Diz o Sr. Manuel topes que não tem
numerário.
....................................................................
....................................................................
“A firma do Coronel João de Castro é a eterna fornecedora de tudo à Cia. e,
assim, uma peça de cabo que, importada, chega aqui por 300:000 é
comprada àquela casa por 800:000.
....................................................................
....................................................................
E os fretes? Baixam dia a dia. O fiado paraliza por muito tempo.
....................................................................
....................................................................
Talvez o Sr. Coronel Leocadio Santos tenha compreendido e, por isso,
preferisse abandonar o lugar ao genro a quebrar aquela linha de orgulho que
o caracteriza.
....................................................................
....................................................................
A Companhia, em crise, está prestes a se esfacelar...”
(“O Piauhy” – nº 1.272 - edição de 20 de março de 1914)
211
Como se viu atraz, o pai de Santídio – o velho José Toma-Chegada, já havia
falecido. Era ele o elo principal com a navegação já que ele próprio vivera como
embarcadiço, provável mestre de alvarengas ou lanchas. O irmão caçula de Santídio –
Benjamim Monteiro, por esta época com 22 anos (1890-1912) se preparava a capacitar-
se comandante de vapores submetendo-se a exames na Parnaíba.
Nhá Vicência, a matriarca, mudar-se-ia para viver na vila das Flores do lado do
Maranhão, para ficar mais próxima à filha Lydia que vivia não distante dali, num sítio.
Isto aumentava a presença do rio Parnaíba na vida da família do Major Santídio. Mas
seus serviços de mecânico tinham outro setor de aplicação que era a Fiação, ou seja, a
indústria têxtil implantada pela família Cruz.
Hoje, a distância do tempo, permite refletir-se que a introdução da indústria no
Brasil, a partir daquele ramo têxtil, repercutirá ao final do século, por quase todo o vasto
arquipélago econômico que eram as capitais das antigas províncias passando a Estados,
com a República. O esquema da aplicação de capitais adquiridos na lavoura pode passar
em fácil sintonia dos Penteado de São Paulo222 aos Cruz de Caxias, implantando
fábricas de fiação e tecidos naquela cidade e na capital do vizinho estado. do Piauí. Ali
com o dinheiro acumulado com o café; aqui com o dinheiro acumulado com o algodão,
com a cana e o açúcar do Engenho d’Água.
O florescimento progressivo daquelas do Sudeste e a decadência daquelas do
Nordeste, será obra dos especiais mecanismos econômicos da terceira dualidade
brasileira, a ser focalizada no volume seguinte. Por enquanto vale ressaltar as afinidades
iniciais do processo nas diferentes regiões brasileiras. Quem vê, ainda hoje a imponência
do prédio da velha fiação – ocupada hoje pelos “Armazéns Paraíba” – e assim, felizmente
preservado como precioso testemunho daquela fase econômica da virada do século – não
pode abster-se de cogitar sobre os complexos mecanismos que implicaram nas grandes
diferenças regionais que se produziram no Brasil a partir dos anos vinte.
O “O Piauhy” de nº 1.271, editado em 17 de março de 1914 publica uma matéria
de crítica sobre a situação daquela indústria, veiculando uma série de desacertos,
assinados por “um acionista da Fábrica de Fiação” da qual se pode extrair alguma
informação. Reclama-se que a fábrica não está dando dividendos e põe-se a culpa no
gerente que raramente aparece. A propósito da demissão do Sr. Joaquim Guedes – o
222
A famosa fábrica “Aurora”.
212
mestre da Secção de fiação e sua substituição por um certo Sr. Santiago, contratado no
Rio pelo Dr. Christino Cruz, afirma-se que houve uma baixa da produção diária que era
de 40 m de tecido por tear para 29, perdendo-se pois 11 metros.
223
Não confundir a designação desta essência do cerrado (Manihot glaziouii, M. Arg.) com um prato
típico do Norte, especialmente no Pará, preparado a base de folhas de mandioca mansa, misturada a
carnes e outros ingredientes. A maniçoba em questão, a exemplo de outras árvores ou arbustos do
cerrado, incluindo a “mangaba” (Hancornia speciosa, Gomez), produz um látex cujo aproveitamento
foi muito cogitado na época.
213
ESTADO DO PIAUÍ
Borracha de Maniçoba (1900 – 1915)
Valor da Produção Anual Exportada
(Valor Comercial)
224
“O Piauhy” nº 1.239 de 26 de julho de 1913.
214
primeiros resultados, bastante auspiciosos, de uma plantação de 180 ha feita por um
proprietário – o Sr. Joaquim Coelho da Luz – agricultor no município sulino de
Simplício Mendes225.
Já em novembro daquele mesmo ano de 1913 fala-se da “crise avassaladora” que
afetava a borracha.
Veja-se esta importante notícia:
225
“O Piauhy” nº 1.245 de 13 de setembro de 1913.
226
“O Piauhy” nº 1.253 de 08 de novembro de 1913.
215
Os correspondentes aludidos acima são os Dr. Lucrécio Avelino e Odylo Costa,
em permanente e ferrenha oposição à Miguel Rosa. Antes que se alimentasse maiores
esperanças a experiência foi cancelada:
“NOTAS LOCAIS
Para o Rio de Janeiro embarcaram os competentes engenheiros Francisco
Iglesias e Armando Negraes, que aqui estiveram trabalhando na Secção de
Zoologia e Botânica do extinto Campo Experimental de Borracha’ (O
Piauhy – nº 1.265 de 31 de janeiro de 1914).
216
Uma notícia publicada no “O Piauhy”, nº 1.1251 de 25 de outubro de 1913, dá
uma série de informações sobre a usina Elevatória das Águas, mencionando suas
origens (1904), inauguração (1906) e apresentando as características reais daquele
momento. A notícia é acompanhada de um clichê. No jornal envelhecido pelo tempo
não é muito nítida a foto havendo a figura de um homem que lembra o Major Santídio.
Menciona-se ali que o serviço de águas já conta com cinco tanques de 500 mil litros
cada, sendo dois destinados a decantação, dois para a filtração e um para depósito da
água já filtrada. Lembramo-nos de que esta capacidade do tanque equivale aquela da
caixa d’água de São João. Informa-se também que a rede de canalização, excluída as
tomadas d’água para as casas, é da ordem de 16 Km.
O preço da água naquela época era de 7$000 para as meia moradas e 12$000
para as moradas inteiras. Não havendo hidrômetros a água é gasta à descrição do
consumidor. Havia, na periferia urbana, um certo número de chafarizes públicos onde a
água era vendida a 100 réis o barril de 125 litros e 20 réis por uma lata (de querozene).
E esta mesma notícia já anuncia que a força “a vapor” até então utilizada no
elevatório das águas está sendo substituída pela energia elétrica, já se iniciando a
montagem de duas bombas de 150 m³ por hora sendo duas rotativas e quatro motores de
20 e 35 cavalos de força.
Tratava-se de uma visita de avaliação pois que, desde o início das obras o
projeto foi encaminhado à assistência técnica daquela já famosa firma alemã. Um
rastreamento cuidadoso nos jornais, com vistas a implantação da usina elétrica de
Teresina, chega à seguinte cronologia:
217
PLACA Comemorativa da inauguração da Usina Elétrica em Teresina
1912 1914
Iniciada no Governo do Exmo. Dr. Antonio Freire
Concluída no Governo do Exmo Dr. Miguel Rosa
Projeto, Plantas, Construção, Administração:
Engenheiro Dr. Rudolph Becker, Hannover
Máquinas: Montador Chefe Michael Zach
Montagem Electrica
EXTERNA INTERNA
Victor Roland – José Cunha – Santídio Monteiro
218
águas agora se entrosava naquele da luz, nas obras de edificação da Usina, sob a
orientação do Dr. Becker e com a ajuda imediata do Pombo.
Quando Dr. Becker chegou, o prédio da Usina já estava levantado. Tornou-se
preciso escavar o piso a uma profundidade de quatro metros para que se pudesse
assentar as máquinas. A previsão era para um total de 500 hp, sendo montada num
sistema de três fases (70, 50 e 30 kw) em paralelo com transformadores.
Santídio se entusiasmava e apaixonava cada vez mais pelo serviço, passando a
maior parte do tempo na Usina, tocando as obras, aprendendo os segredos das máquinas
e a geração de eletricidade, tão necessária e que, nela mesma, já era o melhor sinal de
um progresso que ele tanto admirava e valorizava.
A prefeitura principia a retirada dos antigos postes de iluminação a lampiões de
querozene dos quais os oito mais antigos eram uns belos postes de ferro “bordados a
alto relevo” (Sic)227.
Assim como no serviço de águas o trabalho do Major Santídio na usina elétrica
foi feito com a colaboração do inseparável auxiliar, o Pombo (José Belisário da Cunha).
E este trabalho ficou registrado para, a posteridade na placa de mármore, apensa à
parede frontal do mais antigo dos prédios da usina elétrica de Teresina (veja-se figura
anexa).
Próxima à Veneza, a primeira artéria a ser iluminada seria a Estrada Nova que
partia do largo das Dores e depois de atravessar o grotão, subia a ladeira e prosseguia
em direção à Vermelha, um pequeno aglomerado periférico à cidade. Fincavam-se os
postes pelas ruas do centro a uma distância de 40 m uns dos outros com lâmpadas
incandescentes de 100 velas; colocavam-se transformadores, de quando em quando,
como no Campo de Marte. O fornecimento de fios e material elétrico fazia-se através da
firma Oliveira, Pearce & Companhia. Além do material alemão da Siemens o comércio
anunciava também material americano:
227
Segundo uma nota publicada no “O Piauhy” nº 1.286, de 04 de julho de 1914.
219
Embora já existissem automóveis a capital do Piauí só irá conhecê-los nos anos
vinte, com os modelo Ford (de bigode). Por enquanto se estava nos carros do século
passado:
“Já não precisamos censurar este ato, reprovado por todo o mundo; basta que
registremos o nome de quem o praticou”.
Outro incidente seguir-se-ia a este e foi mais grave. O Dr. Becker declara a
jornalistas que o serviço estava atrasado em seu arremate por falta ou atraso no
228
Informe publicado no “0 Piauhy” – nº 1.187 de 11 de julho de 1914.
220
pagamento. Ante a indignação do Governador Miguel Rosa, o engenheiro passou pelo
dissabor de retratar-se e dizer que havia sido um mal entendido ...229
O que é certo é que a cabeça do engenheiro rolaria. Na edição do nº 1.290 do “O
Piauhy”, de 03 de agosto de 1914, encontrava-se a seguinte nota:
“LUZ ELECTRICA
Foi dispensado o Dr. Rudolph Becker do lugar de engenheiro encarregado da
usina eléctrica e nomeado o nosso amigo Sr. Santídio Monteiro.
Ontem foram entregues as máquinas eléctricas ao Estado perante a SS.
Excias. o Dr. Miguel Rosa e Cel. Raimundo Borges da Silva, Governador e
Vice-Governador do Estado, em Exercício, representantes da imprensa e
diversas pessoas gradas.
A luz ficará acesa até as 2 hs. da madrugada nas quintas, sábados e domingo;
nos demais dias até as 12 horas enquanto se regulariza o embarque de óleo
para cá.
Nesta semana haverá um dia em que não teremos água, devido a ligação das
usinas de água e luz. De véspera o povo será previnido.
“LUZ ELECTRICA
Como medida de economia de óleo mineral o serviço de luz passou a ser
feito até as 12 da noite, todos os dias. Há temor de que, devido a guerra
européia, escasseie o óleo em Teresina.”
229
Sob o título “Mentiroso Reincidente” o jornal “O Piauhy’ nº 1.219 de 02 de março de 1913, comenta o
caso.
230
O Piauhy – nº 1.291, de 18 de agosto de 1914.
221
embora não fosse desinteressado posto que, mais tarde se tornaria telegrafista, não era
muito aplicado. Bem dotado e muito interessado era o Mundico (11 anos) que,
desinteressado de ler e estudar, adorava a maquinaria. E isto contribuía ainda mais para
que viesse a reforçar sua condição de filho favorito do Major, que logo começou a
projetar no garoto a realização dos sonhos que não pudera, ele próprio, realizar. Com os
dotes do mesmo e os cabedais de D. Sérgia ele o haveria de enviar à Alemanha – aquele
país notável – para tornar-se um engenheiro, formado e com diploma.
Assim o garoto peralta encontrava nas máquinas além de especial satisfação, um
bom motivo para o afastar do estudo enfadonho de matérias aborrecidas que se via
obrigado a prestar, naquele sistema então vigente de “preparatórios”.
Deve ser dessa época uma foto231 muito reveladora. Trata-se de um grupo de
pessoas em visita a estação experimental Agrícola do Pirajá, do Ministério da
Agricultura. Ali estão dois agrônomos da estação com o visitante, meu avô Santídio,
com um copo numa das mãos. Pelos baldes de ágata e máquina de moer carne percebe-
se que os visitantes estavam sendo brindados com um suco de cajus. O meu avô
Santídio (a extrema direita), em roupa de excursão, com um bornal a tiracolo, está a
frente de um grupo de garotos: os seus três e mais o filho de um amigo, o Cel. Josino
Ferreira , o Pedro, de apelido Pepê , mais ou menos de idade de João Paulo. No segundo
plano estão alinhados, muito comportadamente, bem vestidos e portando seus chapéus:
João Paulo, Pepê e Zeca (9 anos). No primeiro plano, sem chapéu, cabelo despenteado,
meio recostado com as mãos pousadas nas pernas, bicos dos sapatos roídos de dar
chutes em paus e pedras, olhar provocante, está o Mundico. O engenheiro agrônomo a
esquerda e meu avô a direita, enquadram o grupo de garotos. Mundico, “estava na sua”.
E assim seria, pela vida afora. Sempre fora dos padrões estabelecidos.
231
Esta foto foi um precioso presente dado por nossa prima Laura de Oliveira Miranda, uma das filhas
dos tios Lydia e Satyro, cujo marido era um engenheiro agrônomo, possível autor da foto. Ela deu a
foto quando minha tia Dulce Figueiredo, sua prima, a visitou no Rio de Janeiro, no início dos anos
sessenta.
222
em casa, alongava-se em explicações desnecessárias ela cortava rispidamente: “Está
bom. Já basta”, frase que ficou definitivamente incorporada ao folclore da família.
Quando, em menino, em casa de minha outra avó, eu era acometido de acessos
de reclamação e resmungos, logo alguém me dizia “D. Sérgia, já começou!” E talvez
essa tenha sido uma herança atávica que me tem acompanhado pela vida afora.
O Major Santídio – segundo depoimentos quase consensuais – demonstrava a
maior paciência com a mulher. O tratamento dispensado a ela sempre foi o mais
atencioso e indulgente. O que parece que a exasperava, ainda mais.
Agora em 1914 o Major estava com 37 anos, enquanto D. Sérgia já chegava aos
49. A diferença começava a tornar-se mais visível. O Major, que sempre tivera sucesso
com as mulheres, continuava a merecer a atenção delas. E certamente não desperdiçava
esse prestígio, retribuindo de modo bem variado e também discretamente. Murmurava-
se, comentava-se, apontavam-se casos avulsos mas tudo era visto como parte do
sacrossanto direito do macho, do penhor da casa.
A medida que se empenhava no trabalho da usina o Major relegava ao segundo
plano as fazendas de D. Sérgia que, agora, se afligia por não poder ir às suas terras com
a freqüência que era necessária. Sobretudo sentia falta do Sítio de Santo Antonio, onde
estava indo cada vez menos. Mas pelo menos na época da moagem da cana ela gostava
de estar presente, levar os garotos para fartar-se de mel e rapadura, tomar banho na bela
lagoa e juntar-se aos primos, filhos de Cincinato e Justina que também vinham juntar-se
aos dela, para os estudos, em Teresina. O Major Santídio era, sobretudo um ser urbano e
envolvido com máquinas. Enquanto a fazenda necessitava de sua presença para resolver
problemas com os engenhos, melhorar a casa de farinha, tudo bem. Mas lidar com gado
e lavoura não era o seu forte.
A medida que os filhos foram crescendo e ele se entusiasmando com o progresso
ele se atiraria ao conforto moderno e o que ele pudesse proporcionar de bem estar e
prazer. Não lhe interessava nada a vida social sofisticada. Gostava do conforto da casa,
a mesa farta. E as máquinas e aparelhos que o progresso tornava disponível. Começou
com os velocípedes, bicicletas e passaria às motocicletas e aos automóveis. Montaria
um estúdio fotográfico em casa, ao lado da oficina. Mais tarde teria até um projetor de
filmes e passaria a adquirir películas cinematográficas. Vitrolas de todos os tipos, dos
gramofones de corneta às miniaturas de alumínio, do tamanho de uma lata de goiabada.
223
Mas isto iria acontecendo progressiva e crescentemente, sobretudo pelo final dos anos
dez início dos vinte. E não seria com o seu trabalho – quase um “hobby” de consertar
máquinas ou com seu ordenado de diretor da usina. Assim, a pouco e pouco, foram
minguando as posses de terras, o gado, os cabedais de D. Sérgia.
Mas a ida para a usina ensejaria um acontecimento importante na vida do Major
Santídio. Seria o seu envolvimento com uma mulher que seria definitivo e produtor do
maior impacto na vida da família.
Seja pelos contactos com o trato das máquinas ou o fornecimento de material
elétrico pela firma Oliveira, Pearce & Co. o Major Santídio manteve contato e relações
com Mr. Thomaz Pearce, o mecânico inglês, especialista em vapores. O inglês, chegado
para prestar serviços à navegação a vapor no rio Parnaíba, acabara por se entrosar em
Teresina, ou melhor na vida Piauiense, porque, no seu trabalho percorria o rio de Uruçuí
à Parnaíba, onde a colônia inglesa era pequena mas importante e destacada. Mr. Pearce
acabou atraído por uma bela moça morena, de olhos grandes e sedutores. Era D. Alvina
Alves Veras, irmã do tio Abílio Veras, marido de tia Celé.
224
Única mulher no meio de vários irmãos D. Alvina – por apelido Inhá – casou-se
com Mr. Pearce e nasceram-lhe duas filhas: Almerinda (Yayá) e Beatriz (Bite). A
primeira saíra a mãe e era uma bela morena, a segunda saíra toda ao pai e era
tipicamente inglesa, loura arruivada, muito clara, de olhos azuis.
Vimos atrás que no baile de gala da posse do Governador Miguel Rosa, as duas
estavam entre aquelas que abrilhantaram a quadrilha de abertura. Eram moças realmente
distintas e ambas estavam comprometidas para casar. Yayá estava noiva do acadêmico
Pedro Borges, filho do Vice-Governador e Bite com o seu primo Dr. Daniel Paz. Eram
gente da melhor sociedade, inclusive primas do prefeito da Capital o Dr. Thersandro
Paz. Yayá não chegaria a casar-se, pois foi vitimada pelo tifo, quando, em 1916, fez
uma das visitas à cidade de Caxias – de onde provinham os Pedreira e os Veras. Sua
morte causou profundo pesar em Teresina. Basta dizer que, em sua homenagem, na
edição do “O Piauhy” do domingo, 15 de março de 1916, publicando a notícia de sua
morte, encontram-se cinco sonetos a ela dedicados pelo poeta Celso Pinheiro. O
primeiro deles principiava com o verso: “Ela morreu na terra das Palmeiras”.
Bite desposaria o primo e foram um casal muito feliz. Não tendo filhos adotaram
uma menina afilhada – a quem Bite deu o nome da irmã falecida. A menina –
Almerinda Drummond, era de uma família amiga, da cidade de Floriano. Eu a conheci
quando adolescente, no final dos anos trinta quando Bite, que enviuvara, viera morar
junto à mãe, numa casa que esta destacara da sua grande casa. Almerinda, viria depois
para o Rio de Janeiro, onde passou a viver. Era uma menina gorduchinha, extremamente
simpática, de quem guardei uma boa lembrança.
Malgrado a posição privilegiada das famílias a beleza de Inhá e a indiferença,
frieza ou temperamento britânico do marido entrariam se não em conflito mas em algo
mais sério para a época. D. Inhá, ciente de seus atributos e vendo-os desperdiçados
resolveu conceder graças à alguns eleitos dentre a massa de pretendentes, que não eram
poucos. Foi uma precursora, pioneira emérita da liberação feminina. Aliás, ajudada por
um certo consenso, reinante no Norte, Nordeste onde a macheza dos nativos põe em
cheque a frieza dos europeus, que acabam se vendo coroados com belos pares de
chifres. M. Thomaz Pearce não será o único exemplo na vida de Teresina. Haverá, mais
tarde, um francês cuja bela mulher – nativa – foi famosa na cidade.
225
D. Inhá teve seus casos. Um deles com um famoso rapaz da Parnaíba, de origem
inglesa, chamado Arthur Sother, um terrível D. Juan cuja crônica galante daria uma
ótima novela de balanço na fidelidade conjugal vigente no Piauí no início deste século.
Mas os cornos acabam por incomodar mesmo a um fleugmático súdito de Sua
Majestade Britânica, sob o sol do Equador. Assim, um belo dia Mr. Pearce passou a
mão numa das mocinhas, cria de casa, de D. Inhá e foi viver com ela. Tiveram dois
filhos homens – Thomaz Jr. e Ricardo e uma menina chamada Constância. Mas tudo
sem conflito, muito civilizadamente, sem brigas. Pelo contrário, D. Inhá cuidaria, depois
que Mr. Pearce mudou-se para Uruçuí, na expansão da navegação no Alto Parnaíba, da
menina Constância.
No ano de instalação da usina, é certo que D. Inhá vivia na Estrada Nova, em
uma casa ao nível da rua tendo atrás um grande terreno, cheio de árvores frutíferas o
que fazia dela mais uma aprazível quinta. E esta se encontrava bem na esquina na qual
se dobrava, para ir à Veneza, ou seja, à usina. Ficava, assim, bem na passagem do Major
em suas idas e vindas da sua casa na rua de Santo Antonio, início do Barrocão, para a
usina. Pelo menos umas quatro vezes por dia passava o Major à janela de D. Inhá, ali
postada para apreciar o movimento da estrada da Vermelha, uma das vias de acesso e
saída da cidade. Um “bom dia”, “boa tarde”, uma consulta sobre a instalação elétrica,
um cafezinho, e pouco a pouco os olhares trocados vão cedendo a encontros mais
promissores. A princípio escondidos, acobertado pelas sombras da noite.
E o Major Santídio deu pra fazer vistorias noturnas na Usina, sempre com
problemas, necessitando mais do que a presença do Pombo, sempre fiel ajudante, mas a
sua própria. Até que um dia deu-se um episódio que ficou na memória da Estrada Nova
por muito tempo. Por ali morava um preto, antigo foguista das caldeiras da Fiação, que
se chamava Marciano, que era alcoviteiro, facilitador de adultérios, aliciador de meninas
para homens casados e delator dos mesmos quando pago pelas esposas traídas. Um
agente duplo, um perigoso novidadeiro. Andava ele desconfiado das muitas passagens
do Major Santídio pela porta da quinta de D. Inhá. Já se murmurava até que ele já
transpunha os umbrais da quinta e ele, um especialista, por fora do caso, um caso tão
importante do qual poderia tirar algum proveito. Decidiu certificar-se.
Pela Estrada Nova passavam muitas tropas de burros e jumentos, com suas
cargas, com destino ao mercado. As vezes caiam jacás velhos ou côfos de palha, nas
226
viagens de volta, quando já vazios. Resolveu o Marciano fazer um estratagema. Quando
caiu a noite e as famílias se recolheram das calçadas para o interior e cerraram as portas
das casas, ele, com muito cuidado, colocou um côfo emborcado, bem em frente a porta
de entrada de D. Inhá e meteu-se dentro. Até que não estava mau ali dentro, agachado
naquela incômoda posição pois que o côfo velho, tinha as falhas do trançado já
espaçados facilitando a ventilação. Era só esperar. Ao sopro do vento parnaibano, pelas
9 da noite, ouviu passos subindo a rua e logo depois o vulto do Major aproximando-se e
tomando o lado da direita, para a calçada, justamente para o lado esperado.
O Major, que era muito esperto e prevenido, percebeu o côfo e notou que sua
colocação era algo de suspeito. Assim sendo, sem se perturbar ou mudar a marcha,
continuou a passos firmes, ultrapassou a entrada da casa e dobrou a esquina, para a
direita, em direção à usina. – “Ora diabos! pensou o Marciano. Mas não desistiria. Se
não foi agora seria na volta da usina, em mais propícia hora, já mais tarde, quando todos
já deviam dormir profundamente”.
Não demorou muito e ouviu barulho, dos lados de quem vem vindo da Usina.
Não era o Major, mas quatro cabras, cada um com um porrete na mão. Seria possível?
Mas não havia mais o que fazer senão imobilizar-se o mais possível embaixo do côfo.
Um dos cabras falou: “Olha um côfo velho!” E um outro dá um tremendo chute no
artefato de palha de onde rola, em posição fetal, o Marciano. Alto lá! O que é isso? Um
sujeito debaixo? Fazendo o que? A estas horas? e baixaram os cacetes no lombo do
pobre Marciano, que quase foi espaldeirado de tanta bordoada. Algumas janelas se
abriram... No dia seguinte toda a Estrada Nova soube e espalhou pela cidade a estória da
pancadaria sobre o Marciano. E com isso a causa de sua espionagem também tornou-se
conhecida.
Meu primo Orgmar232, conta uma outra versão dessa estória, transferindo-a do
tio para um dos funcionários da Fiação. Não quis ele praticar com o tio a inconfidência
que o neto está fazendo aqui nesta crônica. Mas além de pitoresca esta estória é bem
esclarecedora.
A partir do incidente do Marciano não havia mais por que negar e esconder o
caso. E o Major passou a entrar em casa de D. Inhá Veras a qualquer hora e cada vez
mais. A união adúltera tornou-se um fato consumado e aceito.
232
Teresina Descalça – 3º Volume – Cap. 9 – O Alcoviteiro – O Sherlock – O Flagrante. pp. 273-277.
227
Como não poderia deixar de ser esta união iria abalar a vida na casa de D.
Sérgia. Além do ciúme e da humilhação ela deve ter sido atacada por inevitáveis
remorsos ao relembrar a que ponto a sua teimosia e seu capricho a tinham conduzido.
Após tudo o que fizera em nome de um amor, inclusive a separação das próprias filhas,
agora recebera o castigo. Abalada pela cegueira que progredia, pelos ciúmes e
humilhação com a união pública do marido à outra mulher, uma leviana que abandonara
o marido e envergonhara as filhas e a família. D. Sérgia tornava-se mais taciturna,
fechada e amarga.
E o pior é que o safado do marido, a cada dia se mostrava mais atencioso e
respeitoso para com ela. Era certamente piedade, e nada pior do que a piedade, nessa
hora. Chegava a ser insuportavelmente humilhante. Mas agora, privada da visão, estava
impossibilitada de retornar ao Sítio ou às fazendas, retomar aquela liberdade que durara
tão pouco tempo e que fora perdida, insensatamente, por ela própria, vítima daquela
funesta paixão.
Na sua altivez, no seu orgulho, D. Sérgia passou a agir com a infidelidade
declarada do marido como ela agira com a própria cegueira. Passou a viver a negação de
ambas. Jamais admitiu estar cega. Queixava-se sempre de “vista turva”, de uma doença
passageira pela cura da qua1 nutria as maiores esperanças. Foi em peregrinação ao Olho
d’Água dos Milagres, um desses lugares miraculosos que pululam pelo Nordeste e Meio
Norte. Tia Edith depois me contaria os lances dessa viagem difícil, a cavalo, em busca
de cura para a mãe. Não obteve o esperado milagre. Privilegiou o lugar de Santa Luzia –
protetora dos olhos – na corte dos Santos do seu oratório cheio de belas imagens.
Os meninos cresciam. Mariquinha se empenhava em controlar a organização da
casa e educação dos irmãos, o que não era fácil. Major Santídio – por um mecanismo de
compreensão – fazia as vontades e satisfazia os caprichos dos filhos homens. A menina
Edith, como mulher, não merecia cuidados especiais além do carinho da mãe e da ajuda
de Mariquinha.
Os rapazes crescem de rédeas soltas. Dão-se bem e juntam-se cada vez mais aos
primos, filhos do tio Cincinato e, nas férias, ganhavam as fazendas destes a medida que
escasseava a presença dos pais às suas próprias fazendas e ao Sítio de Santo Antonio.
Crescem da rua de Santo Antonio para a sociedade teresinense, e do Piauí, os
pequenos Leões.
228
D. Júlia e sua Missão
233
Não pude apurar quanto era o soldo do Major Fiscal. O Governador do Estado do Piauí, recebia
24:000$000 (24 contos) abaixo daqueles do Pará (72 contos), Amazonas (60 contos) e acima daqueles
de Sergipe (18 contos) e Goiás (18 contos). O soldo do Major Fiscal, pelo menos em princípio, seria
equivalente aquele de um Major do Exército Nacional.
229
Note-se que a partir do sacrifício cio Major Gerson, o Corpo de Polícia Militar,
como se verá, mereceu do Governo Miguel Rosa uma série de medidas de
reorganização e valorização daquela força pública estadual. De certo modo e como
esperava ardentemente o Major Gerson, a corporação obteve uma grande recompensa.
Não teria sido nada difícil para o governo cio Partido Republicano Conservador,
que tinha ampla maioria na Assembléia Estadual, ter passado uma lei de aposentadoria e
pensões aos militares e assistência às viúvas e órfãos dos oficiais. Mas nada disso foi
pensado pois a fachada da caridade pessoal supera de muito o direito coletivo, em nossa
vida pública.
D. Júlia deixa a casa da calçada alta do Largo de São Benedito, cuja memória
ficaria associada a seu drama pessoal, e instala-se na casa da rua da Glória, àquela que
ainda hoje – muito deformada por sucessivas reformas posteriores - é aquela sob o
número 1385. Acompanharam-na, a ela e as crianças, o fiel cabo Tuti e sua mulher,
Comadre Maria e as duas outras Marias – Grande e Pequena. Após oito anos de vida
comum ela se separaria da sogra, D. Militina (Dadá) cuja alienação requeria cuidados
especiais. Aliás era mais natural que após a morte do filho, com quem vivera até então a
sogra de D. Júlia fosse acolhida pela sua própria filha Lydia. É possível que, por essa
época, o Cap. Satyro já houvesse construído a casa da Rua Grande, no outro lado do
grande terreno que vinha desde a Praça Aquidabam (Pedro II). Com o tempo e ante a
animação da casa de Satyro, sempre cheia de amigos dos muitos filhos e a alienação de
Dadá, construiu-se no quintal, uma edícula especialmente destinada a ela. E ali ela se
entregou, cada vez mais, a seu isolamento.
D. Júlia prossegue em sua gravidez e nos seus afazeres, rodeada pelo carinho da
família. O Capitão Ludgero, aos 80 anos é um velho forte e sadio, malgrado seu porte
magro e seus cabelos e barbas brancas. Sinhá Moça cuida da casa, Mundica cuida das
plantas e animais de criação; Arthur, após sua visita ao Pará, onde estivera com o irmão
José tornara-se funcionário público e ainda permanecia em companhia do pai e das
irmãs. Marocas viúva, lutava para criar os três filhos. Abílio e Celé continuavam o
ponto central da família. Os negócios de Abílio prosperavam e se diversificavam. O
filho mais velho, o Zuca fora mandado a Inglaterra, cursar a Universidade em
Liverpool, o grande entreposto com o qual, desde o auge do comércio do algodão, era a
principal ligação com o comércio do vale do rio Parnaíba.
230
Há uma nota no “O Piauhy” de nº 1.195 de 14 de setembro de 1912, em que se lê:
“JOSÉ VERAS
Pelo vapor de 12 deste partiu o nosso patrício que estuda mecânica na
Inglaterra, filho do Coronel Abílio Veras”.
A redação leva a crer que se tratava da volta do estudante em férias. Ido em 1910
esta visita à família marca a metade do seu período europeu, pois que voltará tangido pela
guerra de 1914. Nascido em 1892 Zuca está nos seus 20 anos. Os estudos que o pai
pretendera fossem de mecânica, foram mudados. O moço revelava mais pendores para as
letras e é o que acabará fazendo: estudo de humanidades e línguas. Lá ele passará quatro
anos, entre Inglaterra e França, estudando aquelas línguas das quais será professor.
Zuca era um dos sobrinhos favoritos de D. Júlia. Com 7 anos de diferença
apenas, o rapaz era muito amigo da tia. Sua partida, ocorrida antes da tragédia,
entristeceu muito a tia Júlia pela falta que sentia do sobrinho amigo. O fato de Gerson
haver encontrado a morte na loja do Santinho, marido de Celsa, a outra filha de Celé e
Abílio, estreitava ainda mais os vínculos entre a tia e aqueles sobrinhos. Santinho foi da
maior solidariedade na tragédia que feriu D. Júlia.
O Cel. Abílio aumentava suas frentes de trabalho. Continuava vinculado à
Companhia de Navegação, da qual era fiscal. Estas notícias dão-nos conta, nesta época,
de um dos seus campos de atividade.
Mais adiante, já no fim do ano, esta outra notícia nos dá ciência da atividade do
“fiscal” do Governo Federal junto à Companhia de Navegação.
231
for dada pelo Ministro da Viação, mediante as obrigações assumidas em
requerimento dirigido ao respectivo Ministro e constante do capítulo
respectivo do citado Regulamento.
Bem assim, tendo em vista o mesmo citado artigo 144, os Inspetores de
Alfandega e Capitães dos Portos só poderão permitir o gozo efetivo dessas
regalias aos navios, que as usuofruirem legalmente.
Outrossim ficou marcado o prazo de 3 meses, a contar da promulgação do
citado regulamento, para que os armadores e proprietários de vapores, até 8
milhas de velocidade, se possam habituar ao gozo da atendida concessão,
quer esses vapores tinham ou não quaisquer regalias atualmente.
Agradecendo-vos sou com estima vosso
Amigo e Admirador
Abílio Pedreira Veras
(Fiscal)
No início de 1913, Abílio teve a idéia de lançar uma espécie de consórcio para a
edificação de casas residenciais, na qual os interessados pagavam uma mensalidade e a
cada mês fazia-se um sorteio que contemplava um dos consorciados com uma soma de
dinheiro e assim podia iniciar a construção desejada. Isso chamou-se a “Sociedade de
Prédios Urbanos”. A lista dos associados, cujas novas adesões eram, regularmente,
publicados nos jornais de capital, foi crescendo. En1 pouco tempo ao lado de membros
da família – inclusive a,s filhas menores de Abílio, as cunhadas Francisca Dias da Silva
(Sinhá Moça), Raimunda Gonçalves Dias e Júlia Dias de Figueiredo – encontrava-se até
o nome do Dr. Miguel Rosa. A sociedade constituiu-se dentro dos preceitos legais,
tendo diretoria constituída por eleição e como procurador o Dr. Valdivino Tito de
Oliveira. No primeiro sorteio, anunciado pela imprensa, foi contemplado o Cel. Basílio
Alves de Carvalho, portador do nº 137 que estava presente e recebeu imediatamente o
valor de 512$000234.
Por uma notícia publicada no “O Piauhy” nº 1.238 de 19 de julho de 1913, fica-
se sabendo que o Cel. Abílio Veras teve também ligação com a fábrica da Fiação e
Tecidos Piauienses. Naquela nota, sob o título “CASAS BARATAS” dá-se conta da
aprovação do regulamento da Companhia de Prédios Urbanos, que é arrematada com o
seguinte:
234
“O Piauhy” – nº 1.269 de 20 de dezembro de 1913.
232
Mas Abílio não parava por aí. Além de proprietário de várias casas, postas a
aluguel pela cidade, possuía também uma olaria – que, agora, com a Sociedade de
Prédios Urbanos, via-se com sua produção aumentada.
No número do jornal “O Piauhy” de 13.07.1913, há esta outra nota:
“OLARIA
Precisa-se de homens, mulheres e crianças para serviço de olaria a vapor. A
falar com Abílio Veras rua da Glória, que paga bem.
ABÍLIO PEDREIRA VERAS, havendo montado uma empresa para
transporte de lixo das casas particulares, de acordo com a lei nº 51 de 25 de
março do corrente ano, e, já tendo dado começo ao serviço citado, vem, por
meio da presente, pedir às pessoas que queiram se utilizar da citada empresa
a fineza de o procurarem em casa de sua residência à rua Cel. Lisandro
nogueira nº 81235. Outrossim previne igualmente que encarrega-se de todo e
qualquer serviço de transportes em carroças, prometendo pontualidade e
modicidade nos preços”.
235
Estranho o endereço dado na rua da Glória, porquanto ele sempre morou – com a família legítima, de
tia Celé – no Largo do Poço esquina da Rua de Estrela. Talvez fosse uma das casas de sua propriedade,
estabelecida como escritório. Santinho e Celsa, depois da rua Paissandu residiram na Rua da Glória,
talvez nessa casa que pela numeração, deveria ser fronteira à casa do Dr. Clodoaldo Freitas.
236
Veja-se “O Piauhy” – nº 1.273 de 28 de março de 1914.
233
“Patriotas” e “Americanos”. Em 1914, depois de desfeita a sociedade, produzirá, “em
elegantes carteiras” os cigarros “Valete de Paus”, fabricados “com todo o capricho”.
Naquela época, na própria Teresina, ainda se assistia à chegada de grupos de
índios, em geral vindos do Maranhão, que “incomodavam” a cidade.
“ÍNDIOS
Na presente semana aqui chegaram 29 índios sendo 19 da tribo canela e 10
da dos Craús e que vieram pedir ao Governo de Estado, como é de costume,
objetos necessários para uso doméstico. (“O Piauhy” – nº 1.215, de 1º de
fevereiro de 1913).”
Aliás o tabagismo era hábito bem difundido na população, mesmo entre famílias
de classe média e alta. Os homens eram, muito comumente, dados a prática do rapé. E,
entre as mulheres o hábito era variado e surpreendentemente elevado. As mulheres mais
idosas pitavam geralmente em cachimbos de imburana ou de barro, bem mais próximos
daqueles dos índios do que daqueles ditos “de loja”, importados da Europa, sobretudo
cachimbos ingleses, privilégio de alguns senhores mais abastados. Algumas senhoras,
mascavam fumo, um feio hábito que as levava a cuspir constantemente o que se refletia
no uso de escarradeiras espalhadas pelas casas.
Não ficou memória se D. Sérgia “gastava fumo” mas lembro-me bem que tia
Mariquinha o fazia. Discretamente, volta e meia me chamava a atenção – quando, já
idosa, na casa da Estrada Nova – percebia que a tia estava mascando. Dentre as
mulheres da família Gonçalves Dias o hábito de “arear os dentes” era quase
generalizado. Dinda pitava sempre seus cachimbos e quando já velhinha, tinha um deles
em casa de cada irmã, para evitar que andasse carregando os “pitos”. As outras,
inclusive D. Júlia, “areavam” os dentes. Era uma prática um tanto trabalhosa, que
acabava por se transformar em um ritual, que se repetia várias vezes ao dia. Consistia
em que se pegasse uma “pele” de fumo de rolo umedecida na saliva e junta à cinza de
fogão ou borralho, esfregando-se aos dentes com a ponta dos dedos. Depois de alguns
minutos, com vigorosos bochechos d’água, lavava-se a boca. Era um hábito
exclusivamente feminino e parece que se tornava um vício.
Quando menino, divertia-me ver o grupo de irmãs – Júlia, Mundica e Marocas –
acocoradas no quintal, conversando e ariando os dentes. Havia, pelo peitoril da cozinha
– que era de fogão e forno de lenha – as latinhas vazias de manteiga, com fumo cortado
234
e com cinza peneirada, prontas para o ritual. Minha avó era acometida de dores de
cabeça se não pudesse “arear os dentes”, sobretudo depois da sesta do meio dia.
Mas retornemos à D. Júlia, em sua nova vida de viúva, cuidando dos filhos e
cercada pelo carinho da família. As meninas eram ainda pequenas, mas principiam, as
maiores, a ir a escola. Gracildes com 8 e Dulce com 7 anos.
Impressionou-me sempre o fato de que minha mãe, a mais velha, que já estava
com sete anos de idade, quando da morte do pai, quase não houvesse guardado memória
da figura e dos acontecimentos, sobretudo porque, no meu caso, guardo uma memória
fotográfica dessa idade, quando estava na União e ingressei na escola. Talvez o próprio
trauma da perda do pai tenha se refletido nas filhas maiores numa espécie de bloqueio.
Na mente da pequena Graci – como era chamada em casa – ficou uma cena,
muito fluída e quase apagada, dela e da irmã menor Dulce, ambas ao lado do pai que
estava a dobrar uma folha de papel até transformar-se em uma ventarola. Ambas as
garotas quiseram aquele objeto mágico, saído das mãos daquele homem, que, lhes
afagando as cabecinhas deu o brinde a Graci o que deixou Dulce em pranto. Esta por
sua vez, não guardou sequer uma cena avulsa para relembrar o pai. As primeiras
lembranças delas surgem mais tarde, de casa, com as Marias Grande e Pequena, as
primeiras brincadeiras, a disciplina a que lhes impunha a mãe, colocando-as muito cedo
para bordar e fazer renda de bilro. E da escola, cuja primeira, foi a Escola Modelo.
Graci lembra que o prédio da Escola. Normal ainda não estava construído e tanto este
quanto a escola Modelo estavam funcionando em casas alugadas. A Modelo funcionava
numa casa ampla na Rua Grande onde mais tarde seria um hotel. Sua primeira
professora foi D. Firmina Sobreira. Recorda que o seu primeiro dia de aula foi difícil e
que ela debruçou-se na carteira e chorou muito. Era a primeira vez que se via longe da
casa, em outro ambiente, desacompanhada de mãe e das irmãs. Lembra também que um
dia uma das normalistas fazendo tirocínio, afagou-lhe o queijo e perguntou-lhe o nome.
Quando ela disse Gracilde Figueiredo, a moça perguntou-lhe: Você é filha da Júlia?
Então você é minha prima. Abraçou-lhe e disse que se chamava Haydée do Rêgo
Monteiro.
Ao final do curso primário, com vistas à entrada na Escola Normal, D. Júlia
transferiu as filhas para a escola particular de D. Carlota Miranda. Ficava mais perto, e
apesar de ser paga, falava-se muito na eficiência daquela mestra na preparação das
235
candidatas à escola normal. D. Carlota e sua irmã, D. Adelina, solteiras, eram as mestras
e sua residência-escola ficava na Rua Grande no quarteirão em frente à casa do Cel.
Satyro Pinto e tia Lydia e ao lado da casa do Dr. Manoel Sotero.
Graci lembra, com clareza, das visitas que fazia à casa da tia Lydia, não muito a
miúde, mas espaçadas, sobretudo para visitar a avó e madrinha, a Dadá. Lembra ela da
figura da avó, que após abraçá-la e beijá-la, permanecia um tempão acariciando a
cabeça e alisando os cabelos da neta, muito calada, quase sem dizer nada. Depois de
decorrido algum tempo naquela quietude, alguém vinha retirar a neta dos braços da avó,
que permanecia na solidão da casinha do quintal onde morava.
Todo aquele ano de 1913 que sucedeu ao assassinato de seu marido foi
terrivelmente penoso pata D. Júlia. Sua dor era permanentemente avivada pelo
noticiário da imprensa que, ao longo do ano, passaria a remexer o caso, sobretudo
acompanhando o processo de formação de culpa, os depoimentos, inquéritos, as
armadilhas dos advogados, enfim toda a complicada trama policial e judiciária do
processo.
Da lista tríplice de inimigos jurados de morte pelo bacharel Francisco Falcão ele
escolhera o mais fraco. Mas esta fraqueza fora mal calculada, quando se pensa no
“espírito de corpo” da corporação à qual pertencia o Major. Já nos discursos se percebia
os propósitos de vingança que o Corpo de Polícia alimentava contra o “malvado
assassino”. E com o apoio, ou, pelo menos as vistas largas do governador iam-se
cometendo abusos.
Já no mês de fevereiro ocorreu uma dessas evidências quando após a concessão
de um “habeas corpus” concedido ao criminoso pelo Tribunal de Justiça do Estado237 a
Polícia invadiu o tribunal e recambiou o réu para a cadeia pública”. E, o que era pior,
acusava-se a polícia de estar submetendo o réu a torturas. O irmão, Odylo, advogado
defensor, protestava e remetia notícias para o Rio de Janeiro. O Marechal Pires Ferreira,
tentava defender o Governo no Senado Federal, sem conseguir ressonância pois a
oposição ao Governo de Hermes era cerrada. E o “falecido” Padre Lopes, ressuscitado,
sob as asas do Cardeal Arcoverde fazia acusações a Miguel Rosa na capital federal.
Fervia ainda o caso do Amarante, onde o Governador anulara as eleições ali realizadas
motivando recursos da oposição.
237
No início de abril, do mesmo ano, o Supremo Tribunal, negou o “habeas corpus” a Francisco Falcão.
236
O caso repercutia pelo país inteiro. De Sobral, no Ceará, um certo Sr. João
Santos, no jornal “O Rebate” fazia “os mais grosseiros ataques ao Major Gerson”. Isso é
o que se lia na nota “Depois de Morto” publicada no “O Piauhy” – nº 1.215 de 1º de
fevereiro de 1913. Enquanto a imprensa do Rio de Janeiro, malhava o Governador
Miguel Rosa, em alguns estados do Nordeste ele era defendido e elogiado. Era o caso da
“Revista Comercial” das Alagoas, publicado em Maceió em sua edição de 15 de janeiro
de 1913. Fortemente anticlerical, a matéria ali inserida sobre o governador do Piauí,
desculpa as acusações de violência de Miguel Rosa pois que “há fatos inevitáveis”.
Após elogiar os esforços “para acalmar os ânimos e restabelecer a ordem no seu Estado,
cuja felicidade é o seu único ideal”, arremata com as seguintes palavras:
237
Urussuhy. Restabelecido da saúde o Dr. Antonino chega com “um torcido no pé”. A
noite do mesmo dia há um jantar oferecido pelo Governador, ao qual tomam parte; o
Barão de Castello Branco, Cel. José Augusto Rosa, Cel. Manoel da Paz, Drs. Júlio
Rosa, Thersandro Paz, Abdias Neves, Comandante Costa Araújo Filho, Cel. Antonio
Augusto de Castro Veloso (nº 1.255 de 22.11.1913).
Naquele final de ano, o encerramento das aulas na Escola Modelo, anexa à
Escola Normal – uma das grandes obras do Dr. Antonino Freire – foi especialmente
brilhante. Organizada pelas normalistas Lélia Avelino e De Lourdes Abreu e presidida
pelo Dr. Daniel Paz, diretor da Escola Normal, o festival foi enriquecido com a
participação do pequeno Godofredo, aluno do 1º ano, filho do Dr. Antonino que,
exibindo sua máquina de cinema, projetou alguns filmes para a assistência. A notícia238
acrescenta ainda que, “no entreato, tomaram parte as crianças: Olga Dantas, Divina
Britto e Elisa Gonçalves, do 3º ano; Augusto Paulo e Zirza (Boavista) da Cunha, do 2º
ano; Dagmar Rosa (filha do Dr. Miguel) do 1º ano. Todos saíram-se muito bem”.
O primeiro ano de governo para o Dr. Miguel Rosa, malgrado a oposição ainda
rebelde, obrigando-o a usar de medidas drásticas e por vezes violentas, não chegou a
empanar o brilho da vitória. A partir das festas da posse, o jovem governador consegue
imprimir um sopro novo na vida da capital que se “civilizava”. Havia a introdução de
um que de europeu. Ao espanhol da casa Poly, haviam-se instalado alguns franceses,
dentre os quais o casal M. e Mme. Charles Jourdain, ele estabelecendo-se, como
delegado da Alliance Française, em seu escritório ou em sua residência a rua Bela onde
oferecia os seus serviços no ensino da sua língua.
As comemorações do lº aniversário do Governo, a lº de julho foram brilhantes.
Houve um banquete no Palácio do Governo, cujo menu – em francês – foi divulgado
para deleite da sociedade local, deslumbrada239. O Dr. Rudolph Becker, engenheiro da
Siemens encarregado da instalação da Usina elétrica, associando-se às homenagens,
organizou com os operários – cerca de 500 – uma “marche au flambeau” desde a Usina
em Veneza até a Praça fronteira ao Palácio. Ao banquete, sucedeu-se um baile de gala.
O palácio foi iluminado segundo um plano do Engenheiro Becker e do Sr. Victor
Roland.
238
“O Piauhy” – nº 1.267 de 6 de dezembro de 1913.
239
“O Piauhy” – nº 1.237 de 13 de julho de 1913.
238
Na data de 14 de julho naquele ano, graças a presença de franceses e com o
apoio do Governo, foi realizada uma grande festa artístico cultural celebrada em honra à
queda da bastilha, no Teatro 4 de setembro, na qual Mr. e Mme. Jourdain cantaram em
dueto uma barcarola e a Valsa dos Beijos da opereta “O Conde de Luxemburgo”. Um
outro francês, Mr. Victor Roland, ao que parece, comprometido no trabalho da
iluminação elétrica, também participou, cantando canções francesas240. Este espetáculo
foi realizado em benefício da Santa Casa de Misericórdia, tendo rendido um líquido de
231$000.
Mas nem tudo foram festas. Houve também as represálias e vinganças pessoais
aos adversários. E o próprio porta voz do governo na imprensa, não sentiu acanhamento
em relacionar estas medidas nada abonadoras. Veja-se a propósito as matérias
publicadas sob os rótulos: “Tempo ao Tempo” do “O Piauhy”, de 8 de fevereiro de
1913, “O Prêmio da Traição” no “O Piauhy” – nº 1.217 de 15 de fevereiro de 1913.
Neste último são arrolados vários casos de perda de emprego, mencionando-se
personagens, cargos a que estavam vinculados, valor dos ordenados, os proventos
perdidos, etc. E como arremate:
240
Este festival está bem noticiado no número 1.238 do “O Piauhy”, editado a 19 de julho de 1913.
239
Major do Corpo Militar de Polícia baixara a sepultura aos 32 anos de idade, deixando a
família privada de sua presença e traumatizada com o seu assassinato.
É de imaginar-se o quanto este ano de 1913 deve ter sido difícil para D. Júlia.
Não sei por que razão diz-se que a véspera de São Pedro é o “dia das viúvas”. Para D.
Júlia, foi o fim da penosa gravidez com a qual atravessara toda a tragédia, posto que
estava com três meses apenas quando o marido foi morto. Passou a noite das viúvas em
trabalho de parto e no dia do Santo construtor da Igreja, o chaveiro do céu, deu a luz a
um filho homem. Como era de esperar recebeu o nome integral do pai já desaparecido.
Era um menino pequeno e franzino cuja fortaleza da mãe conseguira suportar toda a
rudeza dos golpes que sobre ela se abateram e dar-lhe vida. Uma vida para continuar o
nome e a esperança do pai que tanto sofrera a morte do primeiro Gersinho. Seria frágil e
sensível, reproduzindo no físico a imagem do pai morto.
D. Júlia deu o seu filho a batismo tendo a apadrinhá-lo o Dr. Miguel Rosa e D.
Adelaide, sua esposa. O padrinho de crisma seria o Major Cesar de Oliveira, o grande
amigo de Gerson pai. O nascimento do menino ao mesmo tempo que trouxe alegria à
família pelo fato de haver sido um menino, para receber o nome do pai, reforçou-lhe a
tristeza pelo que representava de acréscimo ao já pesado fardo de responsabilidade
sobre os ombros de Júlia.
Fora da família Júlia contava como amigos de extraordinário valor, como sua
amiga de infância Zuzu agora casada com o Sr. Arthur Freire, primo do Dr. Antonino.
Este casal foi sempre um grande apoio a D. Júlia que, em suas aflições maiores, quando
não queria envolver ou abusar dos membros da família, recorria a eles, no que era
sempre atendida. Uma sincera e fiel amizade.
Mas a vida continuava e as coisas retomavam o seu curso no seio da família
“SOIRÉE
Esteve magnífica a realizada a 19 deste, em casa de nosso amigo Capitão
Francisco dos Santos e Silva, em regozijo ao aniversário do travesso e
interessante Zuquinha. A família da criança aniversariada obsequiou
fidalgamente aos seus convidados. (“O Piauhy” – nº 1.239 de 26 de julho de
1913).”
240
Do outro lado da família, o último mês do ano de 1913 iria trazer mais um
motivo de regozijo:
Mesmo na memória fraca de minha mãe para aquele período de sua infância,
ficaram ecos da lembrança das festas havida em casa de tia Lydia, por ocasião da
chegada daquele filho médico. Heitor, mais tarde iria radicar-se em São Luís, onde
casaria com a moça Antonieta, da família Mota Silveira, do Sudoeste do Maranhão
(Grajaú). Muitos e muitos anos após (anos setenta) eu iria conhecê-la, já viúva. Idosa
mas ainda muito bonita e elegante, encontrei-a em São Paulo, na casa de sua prima
Wanda Silveira Navarra, uma colega da Universidade de São Paulo, amiga muito
querida, nascida de pais maranhenses, no porto castanheiro do Tocantins – Marabá – e
depois transferindo-se para Belém.
“HOMENAGENS FÚNEBRES
O batalhão policial foi, incorporado, na tarde de 11 deste, prestar
homenagem ao túmulo que encerra os restos mortais do Major Gerson
Figueiredo assassinado pelo perverso e covarde bandido Chico Falcão. Na
borda do túmulo do Cap. Cesar Oliveira leu a ordem do dia nº 151 relativa
ao triste acontecimento. Oficiais superiores, inferiores e praças cobriram o
túmulo de flores. A banda de música policial tocou a belíssima Marcha
Fúnebre de Choppin. Sua Excia. o Sr. Dr. Governador do Estado se fez
representar pelo seu Secretário, interino, de Estado, da Polícia Dr. B.
Nogueira Tapety. No cemitério estavam muitos familiares e amigos do
241
saudoso Major Gerson. (“O Piauhy’ – nº 1.268 de 13 de dezembro de
1913).”
242
gramofone, revistas, jogos permitidos, além de uma lostibia para venda de
quinquilharias as praças, o que além de servir a economizar o dinheiro dos soldados
servia também para “afastá-los dos meios suspeitos”. O governo estudava também a
possibilidade – precisava-se de uma lei especial – de instituir uma Caixa Beneficente, a
ser instalada o mais breve possível. A lei 750 criava também um “serviço especial de
incêndio” para o qual se providenciava a aquisição de material próprio. A nova
organização aproveitara ao máximo o existente no Exército Nacional naquilo que fosse
adaptável ao Corpo de Polícia. O comandante seria obrigatoriamente um oficial superior
do Exército Nacional (Tte.-Cel.) que junto ao Major Fiscal e Comandante-ajudante
seriam pessoas da confiança pessoal do Governador do Estado. A nomeação e
promoção dos oficiais era atribuição interna do Quartel passando ao Comando e saindo
da esfera do Governo.
Com efeito, no dia 1º de agosto inaugurava-se a Escola Policial, em solenidade
iniciada as 10 horas da manhã com a chegada do Governador do Estado recebido pelo
Major Raimundo Burlamaqui e uma guarda de honra sob o comando do Tte. Fábio da
Costa Araújo. O governador percorreu todas as dependências do Quartel, ainda em
instalações precárias e improvisadas. Seguiu-se um “lunch” oferecido às autoridades e
convidados no gabinete do Comandante. Na escola já estavam matriculados 38 alunos,
sendo 8 sargentos e 30 outros dentre cabos, anspeçadas e praças. Esperava-se que a
duplicação desse número de alunos ocorresse em breve. A imprensa se fez presente à
solenidade que, além do “O Piauhy”, contou com a presença do Dr. Anísio Britto, pelo
“Diário do Piauhy’’ e Edison Cunha, pelo “Correio de Theresina”.
Um grande sonho do Major Gerson realizava-se finalmente, embora sem sua
presença.
Após o aniversário de morte do Major e antes que o ano de 1913 findasse a
política do PRC e o Governo Miguel Rosa alcançaria mais uma vitória sobre os seus
adversários opositores. Malgrado a forte campanha contrária, a situação no Estado
estava completamente sob controle. Como se mencionou atrás, falecera no Rio de
Janeiro o deputado federal do partido da situação o Dr. João Henrique de Sousa Gayoso
e Almendra na manhã de 18 de setembro. De tradicional família do Livramento o Dr.
João Gayoso era figura da mais alta projeção no Estado e na alta sociedade da capital.
Sua perda foi muito sentida e os jornais de Teresina tributaram-lhe grandes
243
homenagens241. O final de 1913 seria marcado em Teresina por esta morte, desde
setembro até o enterro, transladado que foi o corpo do Rio de Janeiro.
O PRC apresentou o nome do Dr. Antonino Freire, quando este ainda se
encontrava em viagem pela Europa. Mais uma vez a oposição apresenta o nome do Dr.
Odylo Costa, jornalista, produtor de cerrado ataque ao governo além de advogado
empenhado na defesa do irmão, assassino do Major Gerson. O resultado da eleição para
o preenchimento da vaga de deputado federal, realizada a 20 de dezembro, foi de 12.832
votos para Antonino Freire e 836 para Odylo Costa. Os Drs. Abdias Neves e José Luis
Batista tiveram poucos (39 e 41) votos.
O ano de 1913 seria marcado ainda pelas segundas núpcias do Marechal
Presidente, que era viúvo, com a D. Nair de Teffé, filha do Barão de Teffé, Senador
pelo Amazonas. A oposição teria aqui mais um motivo para acentuar as torpes chacotas
ao Marechal Hermes. Quando D. Nair fez tocar em palácio o “Corta-jaca” – um grande
sucesso popular – fez-se disso um enorme escândalo. No final de sua vida, viúva pobre,
residindo modestamente em Niterói passou a merecer a atenção da imprensa que,
passado mais de meio século, pôde apreciar a medida exata do papel de uma das mais
ilustres primeiras damas. Culta e sensível, educada na Europa, no auge de sua mocidade
e beleza, D. Nair queria apenas demonstrar aos tupiniquins obcecados com o que era
vindo do exterior, que cumpria mais realçar e dar o devido valor ao que era nosso,
expressão legítima do nosso modo de ser, da nossa cultura.
No âmbito regional, 1913 foi também marcado pela repercussão e conseqüências
salvacionistas produzidas no Estado do Ceará, onde a queda da oligarquia Accyoli e a
presença de Franco Rabello, ensejaram o levante no Cariri, projetando nacionalmente a
figura do Padre Cícero Romão Batista. A imprensa de Teresina ocupou-se muito do
caso242.
Talvez numa combinação dos efeitos de crise econômica da borracha, afetando o
Norte do país e como um prenúncio da grande seca que se desencadeará no ano
seguinte, lá precedida por maus “invernos”, o interior do Piauí vê-se a mercê de uma
241
O Dr. João Gayoso (1865-1913) era um homem vigoroso que já no seu segundo matrimônio, deixou
uma filha (Srta. Calu) do primeiro matrimônio com D. Carolina Pires Ferreira (filha de Clemente Pires
Ferreira) e viúva D. Josephina Pires de Castro e quatro filhos: a normalista Lina (futura esposa do Dr.
Manuel Castello Branco); e os meninos Jacob Manuel, Francisco (Gayosinho) e João Henrique.
242
Veja-se, por exemplo, o “O Piauhy” – nº 1.268, edição de 13 de dezembro de 1913 e nº 1.269, de 20 de
dezembro de 1913.
244
onda de “banditismo”. Já em agosto de 1913 o Tte. Antonio Mello, do Batalhão Policial
(tu Estado, em diligência pelos municípios de São João do Piauí, São Raimundo
Nonato, Caracol e Bom Jesus do Gurgueia apreendera um total de 174 armas de fogo e
105 punhais. O Tte. Plácido Monteiro, pelos municípios de Picos, Valença, Jaicós,
Patrocínio e Regeneração apreendeu, por sua vez, 180 armas de fogo e 95 punhais243.
Não devemos nos esquecer que estes movimentos são os primeiros sintomas de
um problema social do Sertão Nordestino que, multiplicando-se e crescendo, daí por
diante foi culminar no “cangaço” que terá o seu auge entre 1919 e 1927.
Ao final do ano de 1913, a partir de outubro e culminando em novembro e
dezembro, desencadeou-se no Piauí o rumoroso caso dos “ciganos”. Várias notícias
vindas do norte do Estado para a capital reclamavam que aquela parte do território
estava sendo crescente e assustadoramente atravessada por vários bandos de ciganos
que se foram aglomerando em torno da região de Barras do Marataoan. O Governo
resolveu enviar um contingente do Batalhão Policial sob o comando do 2º Tenente
Manuel da Cruz Oliveira em perseguição aos bandos de ciganos acusados de
depredações.
Durante um certo tempo chegavam notícias animadoras segundo as quais o
bravo Tenente vinha realizando, com sucesso, uma eficiente operação de desarmamento
e expulsão dos ciganos da fronteira Piauiense. Alguns “bandidos” opunham resistência,
ferindo alguns soldados do contingente policial. O Tenente Comandante da diligência
chega a retornar a Teresina coberto de uma aura de herói. Pouco depois veio a
descobrir-se que a operação contra os ciganos havia sido de uma violência atroz,
praticando saque e extorsões contra os ciganos chegando até ao requinte de praticar, em
alguns pontos, verdadeiros massacres àquelas populações nômades em trânsito pelo
norte do Piauí. O “herói” acabou sendo destituído da corporação e demitido “a bem do
serviço público”.
O caso dos ciganos foi larga e longamente comentado, juntando-se as “manchas”
do governo Miguel Rosa. E o pior foi a repercussão negativa que recaiu sobre o Corpo
de Polícia, justo quando ela estava sendo alvo das atenções do governo para sua
reforma, melhoria e aperfeiçoamento. A figura do Major Gerson foi relembrada com
243
Sob o titulo “Repressão ao Banditismo” – Nota publicada no nº 1.249 do “O Piauhy”, de 30 de agosto
de 1913.
245
saudade e enaltecida a sua atuação eficaz mas sem ultrapassar os limites da decência. E,
assim, a cotação da Polícia Militar caiu pontos no conceito da sociedade local.
O ano de 1914 inicia-se sob a animação de nova campanha presidencial. A
política do PRC no Piauí, muito ligada a Pinheiro Machado, que recebe elogios pela
imprensa situacionista, acaba apoiando e elegendo também no Estado, ao Dr.
Wenceslau Brás aplicando mais uma derrota ao grande Ruy Barbosa244.
Enquanto isto o vizinho estado do Ceará estava em grande efervescência.
Paradoxalmente a intervenção salvacionista de Hermes substituindo o oligarca Accyoli
pelo militar Franco Rabelo tinha o oligarca sob a proteção da eminência parda da
República que era Pinheiro Machado. E além disso a aliança do Padre Cícero,
manipulado politicamente pelo Dr. Floro Bartolomeu. Em março de 1914 dá-se a queda
de Fortaleza face aos sertanejos do Padre Cícero, com a reposição no poder do patriarca
Antonio Pinto Nogueira Accyoli.
Aquele ano que será marcado no plano internacional como o início da primeira
“Grande Guerra” repercutirá no Piauí em grandes problemas para o Governo Miguel
Rosa. Sobretudo o agravamento da crise econômica, já esboçada com a queda da
borracha repercutindo na economia regional. Agora as agitações nordestinas agravavam
internamente o que acontecia no exterior em conseqüência do conflito mundial.
244
A eleição, realizada a 1º de março de 1914, teve o seguinte resultado no Piauí: Dr. Wenceslau Brás –
Presidente – 9.912 votos; Dr. Urbano Santos – Vice – 9.919 votos; Dr. Ruy Barbosa – Presidente – 515
votos; Dr. Alfredo Ellis – Vice – 509 votos.
246
chamavam para os almoços dos domingos dos quais ela pretendia escapar mas era
cercada pela insistência da irmã e do cunhado. Celsa e Santinho eram muito atenciosos
e solidários. Nesta época filha (Celsa) e mãe (Celé) continuavam em plena fecundidade,
a primeira ascendendo para os seus quatorze e a segunda declinando para encerrar a sua
série de dez. O Capitão Ludgero, continuava sua vida calma de octogenário lúcido,
sentando-se à calçada nos fins de tarde, jogando gamão ou conversando com seus
amigos fiéis – Clodoaldo e Moura.
O processo de julgamento do assassino do Major Gerson vinha se desenrolando
nos complicados e tortuosos corredores da justiça. Chega-se ao tribunal do júri e ao
resultado do julgamento. Este:
“O GRANDE ESCANDALO
– Matar não é crime.
O tribunal do juri deu ontem a nota escandalosa do dia e quiçá dos últimos
tempos absolvendo o perverso e covarde assassino Francisco Falcão. Pode-
se dizer que Teresina nunca assistiu a maior falta de critério de uma
corporação.
Não há quem ainda não se recorda da morte do inditoso Major Gerson
Edison de Figueiredo, ocorrida a 11 de dezembro de 1912, morte revestida
de premeditação de oito meses, executada traiçoeiramente quando aquele
oficial, completamente desarmado e sem ordenancia, fazia compras em uma
casa comercial. O perverso assassino Francisco Falcão, preso em flagrante,
confessou o crime na polícia, no sumário de culpa e perante o tribunal de
justiça, blasonando mesmo a sua perversidade.
O juri ontem o julgando, esperava o povo, que ao menos o míniomo de pena
lhe fosse imposta e, no entanto, os sete protetores do assassino decidiram, na
sua alta ignorância, que o reu quando matou estava doido e sua vítima tinha
superioridade em armas!
Doido, ele o assassino que esperou meia hora, quase, por fora do balcão, até
o momento em que pudesse atirar pelas costas de sua vítima! Doido, o
bandido que após o crime correu em busca de um esconderijo, saltando
muros e se ocultando! Doido, quem de joelhos, quando preso, pediu ao
oficial que não o matasse! Doido, quem na polícia disse não estar
arrependido do que fazia e só lastimava é que em sua família tivesse um
assassino.
E, quanto a superioridade de armas nenhum daqueles sete julgadores de
ontem serão capazes de afirmar isso em consciência, se é que ainda não a
venderam ao próprio assassino. As testemunhas de vista, o exame
cadavérico, tudo provou que a vítima estava completamente desarmada!
O que ontem se assistiu foi o encitamento ao crime, foi o prêmio de quem
mata por perversidade, mas o sangue da vítima clamará sempre justiça e
quando a sorte adversa, algum dia, dirigir uma bala também para um
247
daqueles jurados, sua família não se lembrará mais que o assassino podia
estar doido e era inferior em armas e quererá justiça que, ontem, negou.
O tribunal de justiça porém, ainda vai se pronunciar e, em nome do povo, em
nome da sociedade ofendida, pedimos novo julgamento para o terrível
bandido, o assassino Chico Falcão.
O batalhão policial de onde saiu a vítima, cumpriu o seu dever entregando o
criminoso à polícia e, calmo e sereno, espera que a justiça cumpra também
com o seu dever. Não se brinca com os sentimentos nobres de toda uma
corporação militar.
Isto é humano, isto é justo, isso tem se visto por toda a parte. A justiça não
deve ficar entregue a inconsciência de uns, ao favor partidário de outros.
Justiça, para o assassino do Major Gerson Edison de Figueiredo, venha ela
de onde vier de que lado for. Justiça!
(“O Piauhy’ – Ano XXIV, nº 1.292 de 15 de agosto de 1913)”
248
em foco, atrevo-me a apontar alguns vetores que talvez possam explicar o que
aconteceu para um tal resultado.
a) a violência da repressão imediata de um lado e sobretudo a exaltação teatral
conferida aos funerais do Major, se, de um lado renderam bons dividendos políticos à
situação, por outro lado serviram a realçar o caráter político do desempenho da vítima,
reforçando a ira dos adversários (uma minoria) mas impressionando vivamente a
população;
b) a medida que o tempo foi passando o governo, por variados motivos, foi
descendo em popularidade;
e) a conjunção de forças políticas por ocasião do julgamento já se encontrava
sensivelmente alterada em relação ao que era na transmissão do poder de Antonino
Freire para Miguel Rosa. Em breve, após o julgamento, antigas alianças vão se
transformar em graves antagonismos;
d) enquanto aumentava o ardor da defesa do réu, conduzida astuciosamente
pelos laços da fraternidade, o mesmo não acontecia no campo da acusação. É
provável245 que o Dr. Hygino Cunha, apesar de sua posição de membro da maçonaria –
colega da vítima e dos governadores em causa – se tenha desligado do caso ou
desinteressado dele o que se coaduna com o seu papel posterior de analista “neutro” na
questão entre Maçonaria e clero, chegando até mesmo a uma imagem piedosa do Padre
Lopes a quem passou a considerar um “bode expiatório”246.
e) de dezembro de 1912 a agosto de 1914 já haviam decorrido 21 meses ou
quase dois anos, tempo para acostumar-se com a morte da vítima e passar a nutrir
alguma piedade pelo réu, o que é uma tendência bem peculiar à visão sentimental do
brasileiro;
f) e finalmente o que, em decorrência do item anterior, talvez seja o mais
ponderável, senão decisivo, desses fatores todos: o fato de que o réu, ao longo desse
tempo de prisão na cadeia pública, fracassadas as tentativas de “habeas corpus”, vinha
sendo submetido a um processo de tortura pelo Corpo de Polícia. Embora
sistematicamente negado pela imprensa governamental comentava-se “a boca pequena”,
dentre outras coisas que, às horas das refeições do réu era postado um soldado fazendo –
245
Evito qualquer afirmação categórica porquanto a minha pesquisa limitou-se ao que aqui foi exibido
nesta crônica. Evitei penetrar na consulta da documentação judiciária, ou seja, aos seus autos.
246
Veja-se o estudo já citado de Paulo Gutemberg de Carvalho.
249
como as leituras sacras no refeitório dos mosteiros – leitura do noticiário do crime
ressaltando o fato da situação da família da vítima, ou seja, viúva grávida e com quatro
pequenas órfãs.
A tortura moral é, muitas vezes, mais dolorosa do que a tortura física. Dizia-se
que, com a permanente leitura, o réu recusava-se a comer, o que o foi tornando, além de
debilitado – agravando a sua provável tuberculose – sensivelmente abalado dos nervos.
E aqui deve estar o apoio fundamental da tese de insanidade mental que a defesa teve a
habilidade de transferir a causa para o “bárbaro espancamento” de que fora vítima o
assassino naquela fatídica sexta-feira santa das eleições.
Se esta interpretação – a despeito de exatidão ou não – pode ser feita por um
neto do Major Gerson após oitenta anos, certamente não poderia ser admitida naquele
momento pela viúva. Com este resultado ela reforçaria a sua idéia apaixonada de que
ante a precariedade da justiça emanada das leis e suas interpretações mais valia a
aplicação da pena de talião. E daí ela não perdoar a Samuel – o alferes sobrinho do
morto – haver perdido a oportunidade de “justiçar” o criminoso no momento de sua
prisão.
D. Júlia poria em completo descrédito a justiça emanada das leis dos homens.
Ela já se afastara da Igreja. O desempenho do Padre Lopes e a ação maligna que lhe era
imputada como insuflador de ódios e corresponsável pela tarefa, aguçou um
anticlericalismo que já houvera sido estimulado pelo marido vitimado pela própria luta
aberta entre Maçonaria e um certo clero. Embora soubesse que não eram todos os
padres e que a Igreja Católica não podia ser responsabilizada, era-lhe difícil racionalizar
e avaliar, isenta de paixão.
Ao tempo em que se afastava da Igreja e, sobretudo pela presença dos padres na
política, D. Júlia continuava suas preces em casa, no seu oratório. A saudade do marido
predispunha-a a aproximar-se do espiritismo e para isso contou com a colaboração de D.
Firmina Sobreira, uma velha amiga, e do Sr. Francisco de Paula Serra e Silva,
kardecistas esclarecidos. Passou a interessar-se pelas mensagens dos “irmãos” e o
espírito de caridade da militância espírita. Mas tinha pouco tempo para freqüentar as
sessões, em geral realizadas à noite, quando se sentia cansada e tinha que fazer dormir
as crianças.
250
Mas é difícil romper um vínculo religioso de gerações, marcado por
“sacramentos”. Havia dúvidas e hesitações. O processo era lento e cauteloso. As
meninas na escola, chegavam a idade de fazer a primeira comunhão. Todas as crianças o
faziam. Entra em cena a figura de um padre – um sacerdote digno, longe da trama
política, entregue a humildade do seu sacerdócio. Um certo Padre Menezes, da Igreja do
Amparo – reaberta após três anos inteiros a que ficara relegada aos morcegos por obra
do “maligno” – convidava as crianças batizadas e crismadas, a comparecer a mesa da
comunhão. D. Júlia hesitava. Que pensaria o Gerson se vivo fosse? E, sobretudo agora,
depois de morto, por mão assassina? Os amigos espíritas não são radicais, nada têm
contra a formação religiosa, pois que a doutrina espírita aconselha e admite a escolha, a
opção voluntária. O padre prepara as meninas. No dia da primeira comunhão das filhas
maiores cai um temporal daqueles dignos da Chapada do Corisco. D. Júlia treme. Seria
um aviso de Gerson? Um descontentamento? Reprovação de seu ato? – O bom
sacerdote ria e acalmava. – “Que pode, minha boa D. Júlia, um pobre ser mortal, em
face de uma tempestade? Veja nisso antes uma manifestação de agrado do bom Deus.
As crianças, assustadas, ouviam aquele estranho diálogo sem saber bem o que queria
dizer tudo aquilo. O catecismo – decorado antes que assimilado – lhes acenava uma
ligação com Nosso Senhor. A menina Graci guardou na memória este dia de tempestade
da primeira comunhão. E sobretudo o chocolate com bolinhos fritos que a mãe preparou
para as comungantes.
Os dias passam e advêm os tempos terríveis do Quinze e sua seca. A cidade de
Teresina viu-se invadida pelas hordas de retirantes que, em maioria provenientes do
Ceará, percorriam as ruas, como fantasmas, esmolando. D. Júlia, embora na sua
pobreza, como foi um impulso geral, separava panos e roupas velhas para socorrer
aqueles mais necessitados que ela. Mãos cheias de farinha, punhados de sal, pedaços de
toucinho eram estendidas para propiciar algum caldo. As hordas aumentavam. Havia
cenas de cortar o coração. Mães retirantes que davam os próprios filhos para livrá-los de
morrer de fome. Apontavam-se casos, de famílias que socorriam os flagelados e
recolhiam crianças às portas da morte, para cuidar.
E quanta criança bonita não havia no meio daqueles cearenses em retirada do
sertão assolado pela terrível seca! As filhas do Capitão Claro Holanda, na Estrada Nova,
haviam recolhido uma menina linda, loirinha, parecendo uma princesinha. Ficaram
251
penalizadas ao vê-la tão linda, suja e faminta dentro de um jacá, sobre um jegue. A mãe,
com outros filhos, deu a menina que passou a ser um mimo para as bondosas moças.
Havia casos e casos iguais a esses.
O prefeito Thersandro Paz viu-se atônito com as hordas de retirantes que, em
pouco, causavam a falta de gêneros na capital. A prefeitura, para combater a
especulação e sonegação, passou a assumir o controle da venda de farinha, feijão,
milho, arroz e tapioca.
A seca foi uma calamidade no Nordeste e o Piauí, mais uma vez seria um
hospedeiro da seca. Mas talvez tenha sido o marco divisório que viria separar essa
condição pretérita para a de participante em sintonia de passividade. A cobertura vegetal
vinha sendo mais e mais atacada a ponto de já se fazer seus efeitos refletidos no regime
do rio Parnaíba, dificultando, cada vez mais, a navegação.
Em meio à seca a composição dos quadros políticos no Estado, sobretudo graças
às discordâncias com o Dr. Miguel Rosa, vai se modificando.
Aliás, no período de 12 de junho de 1914 a 8 de fevereiro de 1915 Miguel Rosa
esteve afastado do Governo, entregue ao Vice-Governador, ausentando-se primeiro para
Floriano depois para o Rio de Janeiro, em tratamento de saúde. A oposição glosava a
“doença” do Governador de 39 anos, como pretexto para escapar dos muitos problemas
difíceis de solucionar.
Na eleição para o Congresso Nacional realizada a 30 de janeiro ocorrem
algumas dissidências no PRC se bem que esse ainda levou a melhor nos resultados,
elegendo para Senador o Dr. Abdias Neves, que derrotou o dissidente Armando
Burlamaqui. Para a Câmara dos Deputados elegem-se: Antonino Freire, que já ali estava
completando o período do Dr. João Gayoso, Félix Pacheco, Joaquim Pires (dissidente
do PRC) completando o quadro o Dr. Elias Martins, o único sucesso nas sucessivas
derrotas da União Popular.
1916, o último ano de governo para Miguel Rosa, é especialmente conturbado.
Ao findar-se o ano anterior o Governador demonstrara sua vontade de escolher o Dr.
Antonio Costa para seu sucessor. Já em janeiro o jornal “Correio de Teresina” notícia
que o deputado Félix Pacheco, em carta ao Marechal Pires Ferreira, sugeria a
candidatura do Dr. Eurípedes Clementino de Aguiar para suceder Miguel Rosa. O
Senador Abdias Neves declara-se neutro ante o problema sucessório.
252
O Dr. Eurípedes era um médico de prestigio na capital que, na Assembléia
Estadual, onde entrara para substituir o Dr. Enéas da Rocha Carvalho, vinha se
destacando pela sua firmeza de posições e capacidade de liderança. O apoio declarado
ou velada simpatia por este novo elemento era uma demonstração de desacordo para
com o Dr. Rosa que, com apoio de parte dos correligionários, confirma a candidatura
Antonio Costa acompanhado do Capitão de Fragata Gervásio Pires de Sampaio para
Vice-Governador.
Ainda em janeiro torna-se público o corte de relações entre o Deputado Félix
Pacheco e o Governador Miguel Rosa. Este, em fevereiro, nega-se a receber em Palácio
o seu até então grande aliado: o Dr. Antonino Freire que, em entrevista à imprensa da
capital, abre declarada oposição ao parente governador.
O jornal “O Piauhy”, porta voz da situação, que até então exaltava o Dr.
Antonino passa a destratá-lo, como se vê em seu nº 1.430 de 6 de abril de 1916:
253
O novo órgão era um poderoso reforço à corrente oposicionista, já volumosa,
sendo na realidade uma espécie de desdobramento do “O Correio de Theresina” ou um
substituto do “O Apóstolo”.
Contrastando com a pompa das solenidades da posse o final do governo Miguel
Rosa foi muito melancólico. As eleições realizadas a 7 de abril de 1916 foram
extremamente tumultuadas, confusas e seus resultados contestados, com ambos os
candidatos considerando-se vitoriosos. A Assembléia Legislativa Estadual, em junho,
divide-se no momento oficial do reconhecimento dos resultados da eleição. Treze
deputados estaduais, compondo uma pequena maioria, declararam-se favoráveis ao
reconhecimento do Dr. Eurípedes Aguiar. O governador Miguel Rosa reage e organiza
outra Câmara com os 11 deputados favoráveis ao advogado Antonio Costa. A 24 de
julho, eclode a notícia de que o Supremo Tribunal Federal decidira-se em favor do
candidato da oposição. Assim são proclamados governador Dr. Eurípedes de Aguiar e
Vice-Governador o Capitão de Fragata Gervásio Pires de Sampaio.
A 26 de junho o Dr. Miguel Rosa entrega o poder na Polícia Militar do Estado,
pedindo garantia de vida à corporação. Finda-se, assim, o agitado e famoso período
roseano no Estado do Piauí.
No início de julho foi enviado a D. Júlia a importância que, desde a morte do
marido, vinha recebendo diretamente do Palácio do Governo. Com ele vinha um polido
aviso de que seria o último pois que se tratava de uma medida sem qualquer fundamento
legal. O que era certo e verdadeiro. Após três anos e meio da perda do marido iniciava-
se a fase mais crucial e decisiva da vida de D. Júlia Dias de Figueiredo.
Mas para aquela mulher firme e altiva, coberta de luto aos vinte e sete anos
aquele não fora um choque significativo comparados àqueles da perda do marido e da
absolvição do criminoso. Era de esperar-se que aquilo que lhe vinha sendo concedido
como uma caridade palaciana se encerraria mais cedo ou mais tarde. Restava a casa, o
teto para abrigar-se com os órfãos. Coragem para enfrentar a vida não lhe faltaria.
Tem o apoio da família. Mas não quer constituir-se em peso obrigatório para
ninguém. Precisa de ajuda mas presta serviços. Recebe pagamento em vez de esmolas.
Uma grande ajuda vem da sobrinha Celsa. Com uma casa grande, movimentada, e já
com os cinco primeiros da fileira de quatorze filhos concede a tia Júlia a lavagem e
passagem de roupa da casa. Júlia, com ajuda das mucamas - as duas Marias e
254
eventualmente comadre Maria que ajudava mais com os pequenos Gersila e Gerson –
enfrentava o tanque de manhã. A noite passava a ferro. A tarde enquanto a roupa
quarava ou secava ao sol forte, punha-se a trabalhar com as filhas maiores em rendas e
bordados.
Na sala da frente, melhor iluminada e favorecida por estar “do lado da sombra”
D. Júlia ficava à janela com a almofada de bilros e punha as três meninas maiores –
Graci, Dulce e Zeneide – uma em cada um dos outros três cantos da sala, com suas
respectivas almofadas a fazer rendas, bicos, entremeios. Outras vezes a almofada era
substituída pelo bastidor de bordar, mas havia sempre o trabalho que se intercalava com
a ida a escola de manhã e o preparo das lições à boca da noite.
Esta disciplina já vinha sendo observada desde a morte do Major Gerson. Graci
lembra-se de que, aos sete anos de idade, fizera, com ajuda de D. Bilu Chaves, uma
pequena toalha (ou pano, como se diz, para as menores peças) de crochê que agradou
muito à prima Celsa, que tendo dado 2$000 pelo trabalho, proporcionou a D. Júlia o
ensejo de comprar uma peça de chita e desmanchá-la em vestidinhos para todas as
crianças, que ficavam, assim “uniformizadas”.
A saída de Miguel Rosa seria acompanhada também pelo término do mandato
do Dr. Thersandro Paz que se iniciara em 1913. Para sucedê-lo foi eleito o Major
Antonio da Costa Araújo, aquele oficial do Exército, Engenheiro Militar, que estivera
até a pouco tempo no comando do Corpo de Polícia.
Talvez pelo seu prestígio ou interferência é que D. Júlia, a viúva do seu colega,
tenha recebido uma ajuda. Este fato é um tanto obscuro mas lembro bem que minha avó
falava dele. Graci, minha mãe, sem saber localizá-lo no tempo, também se lembra.
Numa época em que as escolas públicas estavam se criando e não havia prédios
especiais eles principiavam instalados em casas alugadas. Criara-se o Grupo Escolar
Theodoro Pacheco, que se instalaria na rua da Glória, no mesmo quarteirão em que
morava Dona Júlia. O grupo localizou-se na esquina acima, em prédio pertencente ao
Cel. Abílio Veras. D. Júlia foi nomeada “zeladora” do Grupo Escolar. Alugou a sua casa
e passou a residir no próprio prédio do grupo escolar, cuja diretora era D. Linoca
Gayoso, mocinha ainda, antes de casar-se com o Dr. Manoel Castello Branco. Graci,
que teria os seus doze anos recorda que uma mulher chamada Maria Pereira, que
ajudava D. Júlia nos trabalhos de casa, passou a fazer a limpeza do prédio enquanto D.
255
Júlia atendia às professoras. Esse episódio durou pouco porquanto o grupo foi
transferido para outro local em prédio que não tinha acomodações para a família da
zeladora. Desse episódio minha avó guardaria uma boa lembrança e amizade da moça
distinta e amável que era D. Linoca.
D. Júlia trazia as filhas sob disciplina rígida. Sobrava pouco tempo para
brincadeiras. Nas horas de trabalho as três meninas rendeiras-bordadeiras, se
entreolhavam, e as vezes eram acometidas de acessos de riso o que exasperava a mãe: –
“Muito riso é sinal de pouco sizo!” repreendia ela. O cerimonial de tratamento com a
mãe e parentes, sobretudo aos mais velhos era rigoroso. A qualquer chamado, não era
admitido qualquer interrogativa (O que é? Que foi?) antes de apresentar o “Senhora?”.
O lazer era pouco e resumia-se praticamente aos domingos quando se podia
brincar mais despreocupadamente. As visitas aos parentes ou amigos, aos domingos em
geral, era feito em companhia da mãe. As vezes uma tia vinha buscar uma das meninas
ou o grupo para passar a tarde ou passar o dia.
A comida era racionada e pouco variada, na estreiteza de numerário que flutuava
mensalmente segundo o trabalho produzido. Graci lembra que, um dia ao voltar da casa
da tia Marocas Braga – ou melhor, da casa do seu genro Dr. Evandro Rocha – elogiou a
comida dizendo: “Em casa da tia Marocas come-se carne assada! É tão bom!” D. Júlia
logo explicou: – “Eu também gosto muito mas não posso me dar a esse luxo pois o
assado não rende. Para que a carne chegue para todos de casa tem que ser cortadinha
com verduras. E o cortadinho era tão freqüente que a menina Graci sonhava que se ela
tivesse, algum dia, uma casa não se haveria de comer o “cortadinho” ... Um homem
chamado Mundico Patrazana, matava porco em casa. As sobras de ponta de carnes,
couros, eram transformadas em torresmos. Muitas vezes D. Júlia ia comprar aquilo para
juntar a dieta da sua modesta mesa.
Não raro comia-se bacalhau, vendido em barricas, vindas do “reino” e naquela
época longe de ser comida de gente rica, estava mais para comida de pobre. Ensopava-
se, para render; em dias especiais fazia-se uma “frigideira”.
Galinhas no quintal, davam ovos e as plantas algumas frutas. Estas vinham mais
fartamente da casa do Capitão Ludgero, do pomar caprichosamente cuidado pela Yayá
(Mundica). Bananas, mamões, laranjas além de sapotis, abius, atas e outras mais.
256
Num dia especial, como algum aniversário – exceto o de D. Júlia – matava-se
uma galinha que se preparava ao molho pardo ou assada. Pela rua da Glória passavam
as tropas de jegues ou de burros levando o de venda ao mercado. Muitas vezes
comprava-se feijão verde, aos molhos e lenha para o fogão, à porta de casa.
Comia-se melhor e mais fartamente quando se ía à casa da Mãe Celé ou da
Celsa. Nelas havia muita fartura o ano todo. A casa do Capitão Ludgero já não era o que
fora e estava empobrecida.
As meninas cresciam com razoável saúde, salvo o pequeno Gersinho, magrinho
e franzino. A menina Gersila, ao contrário, era forte e rechonchuda. Os menores eram
mimados pelos maiores. Dulce era muito agarrada ao irmão. Graci e Dulce, eram muito
unidas embora fossem de temperamentos distintos. Graci era mais quieta enquanto
Dulce mais brincalhona, aprontando artes e travessuras e tinha foros de rebeldia em face
da mãe autoritária.
Como toda criança aprontavam das suas e D. Júlia quase nunca perdoava e a
palmatória entrava em ação. Santa Luzia do olho furado – como se dizia, por causa do
furo que exibia no centro para diminuir a resistência do ar, na hora dos “bolos”. Esta
palmatória – que eu próprio conheci e cheguei a experimentar – era uma peça inteiriça
de cedro, tendo um barbicacho de couro pelo qual se a colocava no caixilho de uma das
portas internas da casa, ficando ali pendurada esperando a hora de entrar em função.
Quando as três maiores faziam algum malfeito D. Júlia principiava por Graci
que, entregava as mãos em plena passividade. Segundo as irmãs, Graci apanhava bem
menos que elas, por ser a “favorita” da mãe. Esta a considerava a mais meiga e dócil.
Zeneide, a mais dengosa depois de receber os seus “bolos” chorava e ia dormir, por
longo tempo. A última da fila da palmatória era Dulce. Era rebelde e encapetada.
Fechava as mãos, recebia palmatoradas pelos dedos e pelas canelas. D. Júlia e ela
empenhavam-se num verdadeiro combate que se iniciava no interior da casa, percorria o
quintal, com a menina correndo e a mãe atrás. Após um bom tempo, D. Júlia cala para
um lado, com falta de ar, uma das Marias, correndo com um copo d’água com açúcar ou
chá de folha de laranja. E a pequena Dulce, mais penalizada que as outras, soluçava,
resmungava a ainda batia o pé (fora das vistas da mãe), com Graci ao lado, acalmando e
perguntando: “Você quer matar nossa mãe? Veja como ela está nervosa”.
257
O Governador Eurípedes Aguiar, em suas mensagens a Assembléia Legislativa
faz as maiores acusações ao governo anterior:
258
Um dia, as meninas acharam que o silêncio seria completo em casa se elas fossem
ao terreno da vizinha – D. Mariquinha Porto – então desocupado por uma demolição, para
reconstrução da casa. Naquele espaço ainda ladrilhado elas poderiam brincar a salvo. Logo
surgiu a idéia de “um baile”. As bonecas e comidinhas já estavam sendo postas de lado e as
meninas pensavam nos bailes e nos pares que poderiam ter. Assim elas apanharam, na velha
cerca calda, alguns talos de buritis e cada um deles representava um “rapaz”, para formar os
pares necessários às danças. E os rapazes seriam os jovens rapazolas conhecidos, ali da rua
da Glória – os mais a vista – e outros que elas já viam da escola para casa. Assim os buritis
assumiram simbolicamente as belas figuras de Henrique e André Monteiro, filhos do Major
Domingos Monteiro e D. Ada, moradores da rua da Glória, mais abaixo. Outros eram
Marcelino Freitas, filho do Dr. Clodoaldo e Almir Campello, cuja irmã era colega de escola
de Graci. Logo ocorreu a Dulce que para melhor dançar e maior elegância dos trajes que
elas improvisavam, com retalhos e roupas velhas, elas deveriam ter “saltos altos” como as
moças. E a própria Dulce liderava as estratégias de realizar as fantasias. Rodelas de talos de
buritis presas ao pé e entrelaçadas às pernas, com tiras de panos, seriam peças suficientes
para a elegância do andar e a majestade das damas. Enquanto as outras cortavam as rodelas
de buriti, Dulce foi providenciar, em casa, os panos para transformar em tiras. Logo voltou
com uns panos pretos que foram dilacerados em tiras. Formados os sapatos as “dançarinas”
começaram a exercitar-se, até poder dançar.
Logo mais estavam elas abraçadas a seus talos de buritis, valsando ou dançando
as músicas em voga. Dançavam, namoravam os “rapazes” e nos intervalos dos números,
conversavam e riam. O silêncio na casa foi obedecido a rigor. Dona Júlia desperta, vai
“arear os dentes” e ouve a música do “baile” no quintal vizinho. Vem espiar e ao ver as
filhas naquela pândega, não pôde deixar de rir. Coitadinhas, já estavam pensando nos
rapazes e em ir aos bailes! Mas logo teve a atenção atraída pelas tiras pretas em torno
das pernas, segurando os saltos. Aproximou-se. As meninas pararam o baile,
constrangidas, olhando umas para as outras, pensando em receber alguma reprimenda.
A mãe, de bom humor caçoa. “O baile está animado? Quem são os “rapazes”?”
E elas fazem as apresentações. E logo vem a pergunta: E estas tiras de pano preto, onde
acharam? Dulce informa que foram de um pano velho que ela achara detrás de um baú.
D. Júlia pede-lhe para que mostre o pano velho. Dulce vai mostrar-lhe. E D. Júlia
descobre que o pano velho era a melhor saia de merinó preto que possuía...
259
É de imaginar-se que a palmatória entrou em ação. E a cada palmada, vinha o
complemento. Tome o seu Henrique! Tome o seu André! Tome o seu Almir! O seu
Marcelino... Como sempre, Dulce foi a última. E a luta de sempre foi menos violenta
pois sobre sua cabeça pairava a responsabilidade direta da destruição daquela peça
importante no guarda roupa da mãe pobre. E apesar disso – ou por causa – o seu
quinhão foi, igualmente, dobrado.
Esta estória foi das mais lembradas, comentadas e repetidas, representativa
daquela fase do despertar da puberdade das meninas de D. Júlia. E não deixa de ser
comovente, vê-las hoje, ultrapassados os oitenta anos, as remanescentes das filhas de D.
Júlia247 refletir sobre o rigor e o “carrancismo” da mãe. Comparada com a educação e os
modos de hoje a atitude da mãe parece mais exageradamente severa mesmo para os
padrões daquela época. Mas elas acabam sempre por absolver a mãe. “Coitada!
Também ela era só. Na falta do nosso pai ela tinha que ter energia dobrada, com receio
de fracassar na criação das filhas. E por isso exagerava”.
Na realidade as mulheres decididas podem encontrar forças para essa tarefa
heróica e múltipla que é prover o sustento, criar, dar carinho, mas também disciplinar os
filhos na ausência do pai. Coisa muito difícil, senão excepcional, para ser realizada
pelos homens.
O ano de 1919 registraria um marco importante na vida de IX Júlia. Sua filha
maior, a Graci deixava a Escola Modelo e ingressava na Escola Normal, como várias
outras mocinhas. Em quatro anos, se Deus quisesse, seria uma professora. Profissão
certa para uma moça de família pobre que, assim, poderia ter um emprego de professora
primária, com um ordenado mensal, para ajudar a mãe e as irmãs menores.
A gripe espanhola grassou pela cidade, poupando a casa de D. Júlia. Mas a
família foi atingida. Arthur Gonçalves Dias, o irmão de D. Júlia, que se casara com a
bela operária Lydia e já com dois meninos, foi vitimado pela terrível “influenza”. Mas o
Cap. Ludgero, o velho patriarca seria poupado. Sinhá Moça e Mundica recolhem os
sobrinhos à casa paterna, para cuidar deles.
247
Faltando Zeneide, falecida em 1979, remanescem Gracildes, Dulce e Gersila. Esta última era pequena
para participar do “baile”, mas com outras estórias para relembrar.
260
4. A Morte do Capitão Ludgero
O bom velhinho Ludgero não sobreviverá de muito a perda do filho, o único
homem que restara em sua companhia pois José, morava em Belém do Pará. Embora
nunca descuidasse de ajudar ao pai e às irmãs solteiras e viúvas, estava ausente e longe.
Graci, a primeira filha de Júlia, afilhada do Capitão, guardou bem a imagem dele
na memória. Conta-nos ela que seu avô e padrinho era um velhinho lindo, muito
“alvinho” e frágil, de cabelos e barbas brancas. Lembra que ele era sempre muito limpo
e bem cuidado. Recorda-se dele cortando retalhos lavados de roupas velhas em pedaços
pequenos. Perguntado para que era aquele trabalho o velhinho explicava que era para ir
à sentina pois o pano era bem mais macio – para um velho – que o papel...
Contudo nenhuma das netas remanescente248 recorda a data da morte do Capitão
Ludgero. Imagino que tenha ocorrido no final de 1919 ou início de 1920 quando ele
estava aos oitenta e seis ou oitenta e sete anos. Graci já deveria estar na Escola Normal.
Minha mãe sabe dizer que sua morte foi causada por uma infecção no aparelho urinário,
uma complicação na uretra. E os últimos momentos do velho capitão e seu enterro
ficariam marcados na lembrança da família.
Tio José Gonçalves Dias, em Belém do Pará, sem saber da doença do pai – que
não se pensava na família ser muito grave – necessitava fazer uma viagem a São Luis, a
serviço da alfândega e ao ir comprar a passagem pediu para Tutóia, sem bem dar-se
conta que o subconsciente o impelia, assim, para o rio Parnaíba e a terra natal.
Embarcou, para fazer uma surpresa à família. Mas, da Parnaíba, resolveu telegrafar ao
pai, que acabava de falecer. A família ficou sabendo de sua vinda e o vapor pelo qual
embarcara, rio acima.
Tomaram-se as precauções para manter o cadáver do velhinho em condições de
espera, que, em todo o caso, não poderia ser longa. O médico Dr. Sotero (Manoel
Sotero Vaz da Silveira) ministrou ao corpo algumas injeções de formol, enquanto a
família reunida enfrentou um velório – ou “sentinela” como se dizia no Piauí naqueles
tempos – tendo o cuidado de telegrafar ao irmão para o porto da União, escala
obrigatória do vapor. José foi avisado mas naquele tempo não havia estradas e o jeito
era continuar no vapor em sua penosa subida do rio, principalmente nas baixas águas.
248
E agora, em janeiro de 1992, remanescem de toda a terceira geração de Gonçalves Dias apenas as
filhas de D. Júlia, pois que todas as primas e primos das outras filhas de Ludgero já faleceram.
261
Minha tia Gersila naquela época uma garota próxima dos dez anos lembra do
velório pelo fato de que ela e as primas de idade próxima, em grupo, achavam-se
constrangidas por não estarem chorando naquela longa vigília e que, para ver se lhes
ocorriam lágrimas, beliscavam-se...
De praxe enterram-se os mortos no dia seguinte. Unia sentinela de três noites é
absolutamente inusitada. Tio Abílio Veras decidiu que na tarde do terceiro dia dar-se-ia
o enterro pois a família já estava exausta de tanta vigília.
Pouco antes das cinco da tarde o navio apitava no porto de Teresina,
possibilitando assim a José ver o corpo do pai. Após esta comovida cena o enterro deu-
se apressadamente e foi sepultado o patriarca Gonçalves Dias no cemitério de São José.
Por ocasião da morte do Cap. Ludgero a família foi agraciada com um significativo
tributo a amizade. O sensível poeta Lucídio Freitas, filho do Dr. Clodoaldo Freitas, grande
amigo do morto, dedicou-lhe uma bela composição. A cópia que possuo veio-me às mãos
graças a prima Maria do Carmo Veras Nunes – filha de Celé e Abílio Veras e mulher do
historiador Odilon Nunes – que, sabendo do meu interesse como guardião da memória da
família, cedeu uma cópia à minha mãe, para que eu a conservasse.
São estes os versos:
“Ludgero Gonçalves Dias
(Lucídio Freitas)
Que alma de santo, a deste velho
Lembrava uma figura do Evangelho
Foram de lutas todos os seus dias:
Oitenta anos de dores e agonias...
Mas, quanto mais a sorte
Lhe era adversa, mais ele, estoicamente,
Serenamente
Olhava a vida...
E assim, sereno e pobre,
Altivo e forte,
Como um justo, desceu aos mistérios da morte
Para deixar à vida
A pureza imortal do seu caráter nobre.
262
poesias, em 1921249, intitulado “Minha Terra”. Muito moço, com três filhos pequenos,
faleceu em Teresina em maio daquele mesmo ano com apenas 27 anos de idade. Um
golpe para Dr. Clodoaldo que já havia perdido outro filho, Alcides, médico, em 1913.
Os versos do jovem poeta selaram assim a longa vida do impetuoso jovem do
Campo Maior que acorreu à nascente capital do Piauí, formando sua numerosa família;
do “barbudo” alferes em missão no episódio dos Humildes. A casa de palha na rua da
Glória não teria mais a roda de amigos e as partidas de gamão na calçada.
Sinhá Moça, já sexagenária, assumiu a chefia da casa que d’ora em diante
passara a ser, para todas as novas gerações, a “Casa da Dinda”.
D. Júlia retorna à rotina de sua vida cuidando dos filhos. O pequeno Gerson já
estava com os seis anos e já se mostrava fascinado pela nova onda que era o jogo do
“foot-ball”, que fazia sua entrada na capital do Piauí nessa época. Ficou na lembrança
da família também a implicância que o velho Capitão demonstrara contra o esporte
britânico e censurava a filha Júlia por deixar o menino entreter-se tanto com uma bola.
Em breve o garoto estaria na escola.
As filhas já eram mocinhas e trabalhadeiras. Não podiam ficar trancadas em
casa. Teriam que ter contato com as moças e moços de sua idade. Crianças eram mais
fáceis de conduzir. Moças precisavam de apresentação, vestir-se condignamente. Como
poderiam ir às festas?
D. Júlia, que já estava vencendo a batalha de infância, haveria de vencer a etapa
da adolescência-mocidade das filhas. Com sua fibra, não esmorecia. Tinha consciência
do seu lugar na sociedade. Não era no topo da escala social mas certamente não era na
base.
As filhas não ficarão, presas em casa por serem pobres e sem pai. D. Júlia, como
se verá, levará as filhas aos bailes.
249
Como o poeta faleceu em 1921 a morte do Capitão Ludgero deve ter sido mesmo em 1920, ou final de
1919.
263
264
265
Os Jovens Leões
1. Atribulações de D. Serginha
Por mais escândalo que provocasse na cidade a ligação notória de Inhà Veras –
embora já separada de Thomaz Pearce – com o Major Santídio Monteiro, o impacto
maior foi, sem dúvida, aquele constrangimento a que se viram condenadas as duas filhas
de Mr. Pearce.
O falecimento de Yayá Pearce, em 1916, além de abalar a sociedade de Teresina
por ser ela muito estimada, deu margem aos maiores comentários. Dizia-se que, ante o
caso da mãe – a quem certamente, como filha, a situação se configurava mais como
mágoa do que como condenação – a moça confidenciara que, se para ela estivesse
destinada uma sorte semelhante a da mãe, ela preferia que Deus a chamasse antes de
casar-se. Como já foi dito ela era comprometida com o jovem Pedro Borges, filho do
Vice Governador e nutria as maiores esperanças de felicidade com o seu eleito. Indo à
cidade de Caxias, como de costume, visitar os parentes, pois tanto os Pedreira como os
Veras eram naturais daquela cidade maranhense, viu-se atacada pela febre tifóide que a
vitimou rapidamente.
Em Teresina foi aquela consternação geral. Não faltava quem lembrasse os votos
da moça, que assim passou a ser vista como protegida dos céus. Em contrapartida não
faltava também quem visse naquela morte prematura um castigo à leviandade da mãe.
Em Caxias a repercussão não foi menor e, em pouco tempo a estória da morte daquela
donzela pura, atraíra a atenção de um público sempre ávido de milagres ou de sinais
divinos. Não demorou muito para que se noticiasse e espalhasse que, do mármore do
sepulcro da moça, estava surgindo uma fonte. Repetia-se na boca do sertão maranhense
não uma crendice associada ao catolicismo ingênuo do interior do Brasil, mas antes uma
associação arquetípica de foro universal, do equador até o circulo ártico, como se
observa na Escandinávia com as lendas bárbaras sobre a “fonte da donzela”.250
Mas não seria necessário admitir no “sacrifício” dessa filha uma preservação da
virtude porquanto Bite, a outra filha, desposando o primo Dr. Daniel Paz, foi um
250
Fato que pode ser encontrado na filmografia do cineasta sueco Ingmar Bergman que tem um filme
sobre esta lenda.
266
exemplo de fidelidade, amor e dedicação ao marido. Sua viuvez produziu-lhe um tal
aniquilamento que a senhora viçosa e um tanto cheia de carnes transformar-se-ia numa
esquálida figura a quem o negro das vestes de luto realçava ainda mais seu tipo inglês e
seus olhos azuis. Eu, quando adolescente, a iria conhecer nessa fase e ficou-me uma
lembrança de grande bondade e suprema distinção, daquele estofo com que se fazem as
verdadeiras damas.
Na casa da rua de Santo Antonio, a partir de onde se bifurcava a rua do
Barrocão, D. Sérgia fechou-se na irrealidade para ignorar o ignorável. O glaucoma
praticamente a cegara, sem que ela o admitisse. Nos domínios de sua casa, onde tinha a
segurança da disposição dos móveis, onde tudo era colocado segundo sua vontade e
determinação, ela se movimentava em passos vagarosos como já era seu hábito. Além
disso não parou de executar tarefas que o tato propiciasse alguma possibilidade de
sucesso. Assim catava arroz, feijão e milho. Apesar do número elevado de negras de
confiança e mucamas não abria mão de conduzir a faina da cozinha, onde um olfato
acurado era seu aliado. Desde que uma mucama ou uma das filhas enfiasse a linha na
agulha era capaz de pregar botões e fazer algum caseado que antecipasse uma costura à
máquina. Aliás ainda hoje recordo a bela máquina Singer que havia na sua casa, daquele
tipo embutida numa capa de pau cetim e que ficava a um canto da varanda. Sendo a
maioria daquelas máquinas montada sobre um pó de ferro batido onde se estampava a
figura de uma rã, aquele exemplar aparecia a mim como coisa de gente mais rica.
Naquela máquina minha tia Edith aprendeu a costurar e a conservaria após o seu
casamento.
D. Sérgia jamais admitia estar completamente cega. Queixava-se de “vista
turva”, variável segundo os dias. Seu filho Mundico, volta e meia, mudava os móveis,
principalmente as cadeiras do lugar estabelecido para, espreitando a mãe, dar-se conta
que ela perdera a visão. Para alguns aquela ação seria evocada como um instinto de
maldade do rapaz. Mas, sem querer absolvê-lo, posso interpretar que ele assim
procedendo, queria chamar a mãe à realidade dos fatos e incitá-la a deixar a alienação
do faz de conta.
Por essa época D. Sérgia perderia o seu querido irmão Cincinato que morreu
moço, antes de completar cinqüenta anos. Embora não tenha conseguido apurar o ano
de sua morte ó certo que em 1916 ele já era dado como morto. Assim o registra a
267
relação de lançamento dos dízimos de terras, elaborado pela mesa de rendas do
município de Teresina, quando, na menção da fazenda Altamira registra “Cincinato de
Arêa Leão, seus herdeiros”.
Do mesmo modo que em relação à cegueira D. Sérgia fingia ignorar a mancebia
do marido. Parece que as duas desgraças se desencadearam ao mesmo tempo. Parece
certo que em 1917 ela já estava “com a vista turva”. A favor disso há o depoimento do
filho de Benjamim Monteiro o Orgmar que, nascido naquele ano, conta que estava
destinado a ter como padrinhos os tios Santídio e Sérgia. Esta, por vaidade e lutando
para admitir a cegueira, se recusava a sair de casa. Tendo adoecido e pregado um susto
na mãe, Sinhá – com o marido viajando pelo rio Parnaíba – apela para a casa do primo e
cunhado Santídio que também estava na Usina. Acode Mariquinha Rocha, filha do
primeiro casamento de D. Sérgia, que providencia o batizado “in-extremis” sendo ela a
madrinha e o irmão João Paulo, então com 17 anos, o padrinho e tendo como celebrante
o Pombo.
Aliás, neste caso o depoimento das pitorescas memórias de meu primo Orgmar,
conferem perfeitamente com o resultado das minhas investigações. No ano anterior,
1916 acontecera o noivado de Mariquinha, já nos seus 34 anos, com aquele fiel
companheiro de trabalho e protegido do Major Santídio, que o tratava como pertencente
à família.
A aproximação e namoro, inclusive o noivado dos dois teria lances de novela.
Primeiro porque naquela época uma moça a partir do 21 anos já era considerada
“solteirona”. Depois pela diferença de “nível social” ou qualquer coisa que se tome por
este arraigado preconceito. Até a amante do Major Santídio palpitava sobre o caso e
alertava para o “despropósito do casamento de uma moça fina, rica, fazendeira, com um
rapaz humilde, um peão de obras que principiara como ‘balizeiro’. Onde já se viu?”
No arquivo de tia Mariquinha, que me foi dado à consultar e organizar, encontra-
se o documento precioso e pitoresco que é a carta por meio da qual o pretendente dirigia
o seu pedido formal à mãe da moça.
268
Vosso Servo respeitador
José Belisário da Cunha
Theresina, 10 de fevereiro de 1916.”
D. Serginha – que, pelo seu porte miúdo era assim mais freqüentemente
designada – certamente apreciava o rapaz, de um inegável valor como pessoa
trabalhadeira, honesto e digno. Tinha, sem dúvida, muitos créditos que, ele,
humildemente, negava mas que o futuro havia de comprovar. Mas, talvez lembrando do
seu próprio caso – Mariquinha além de “fazendeira” era três anos mais velha que o
Pombo – deixou o pedido à decisão da moça, que o aceitou.
No ano seguinte, no episódio do improvisado batismo de Orgmar ela determinou
ao noivo tomar o papel de celebrante e indicou o irmão João Paulo para ser o padrinho,
porque havia uma superstição segundo o qual os noivos quando assumem o batismo de
uma criança, antes do casamento, equivaleria a desmanchá-lo.
Dois anos após o noivado de Mariquinha, aquele de 1918, foi um ano terrível
para a família. A terceira filha de D. Sérgia – Júlia Virgínia – passara por Teresina em
visita a mãe no intervalo de mudança do posto do marido, o Tenente Antonio Marques
da Rocha, de São Luis para Fortaleza. Não só pela mudança para a capital cearense mas
pelo fato de que sua segunda filha – a menina Myrtes – era afilhada de Mariquinha,
resolveu deixá-la a passar uma temporada em Teresina, junto à tia madrinha e à avó. A
menina estava com 11 anos e era muito desenvolvida, com um porte surpreendente para
idade. Por um golpe de infelicidade a garota adoeceu subitamente – provavelmente
atacada de meningite – e faleceu a 04 de julho de 1918.
Minha tia Dulce, irmã de minha mãe, lembra do fato pois a garota era sua colega
de classe na Escola Modelo, onde o caso causou consternação e suspensão das aulas no
dia do enterro. Tia Edith Monteiro conta que, pelo tamanho do caixão a vizinhança,
surpresa, achava que havia sido ela a morta. Não é difícil imaginar o transtorno que a
morte da neta acarretou para D. Sérgia e para a tia Mariquinha. Ambas ficaram em
desespero ante a comunicação a ser feita aos pais da garota em Fortaleza. Myrtes está
enterrada no cemitério de São José em Teresina, onde o seu túmulo se destaca pela
presença de um belo anjinho de mármore italiano, acima da lápide.
Talvez a morte da sobrinha tenha deixado Mariquinha bem perturbada a ponto
de romper o noivado com o Pombo e partir para o Rio de Janeiro em visita às irmãs e ao
269
tio. Nessa viagem ela seria acompanhada pelo irmão João Paulo, que deveria estudar na
capital federal. É certo que Edith a tenha acompanhado também, já que me recordo que
ela menciona suas visitas ao Rio, como tendo ocorrido em 1918, 1924 e 1929.
Pombo, desiludido, casou-se, mas sua mulher viria a falecer no primeiro parto.
João Paulo não se adaptou ao Rio e voltou para casa, em companhia de Edith.
Mariquinha permaneceria um pouco mais.
270
Também 1918 foi o ano em que o irmão Afro migrou para o Sul. Duas vezes
viúvo morava em Teresina. Após a morte do pai Afro tomara conta de sua herança em
terras e gados e passara a viver entre as fazendas e a capital. Casou-se pela primeira vez,
com uma moça de nome Serafina, talvez de Teresina. Escapou à memória a família a
que pertencia. Teve um filho a quem Afro colocou o nome do pai do Alferes João
Paulo, ou seja, Francisco de Arêa Leão. Parece que Afro casou-se primeiro que
Cincinato pois o Dida – nome pelo qual Francisco era conhecido – parecia ser mais
velho que Miguel, o primeiro filho varão de Cincinato, nascido em 1896.
Ao contrário dos primos, Dida era rapaz quieto, dedicado aos estudos e cedo o
pai o enviou à Bahia onde ele formou-se farmacêutico. Afro casar-se-ia novamente com
D. Etelvina Mendes, de quem, em 1912 nasceria o menino Nilo e depois a menina
Dulce. Afro, a pouco e pouco foi se transferindo para a cidade, onde de fazendeiro, foi
passando a marchante e a magarefe251. Na relação do imposto de indústria e profissão de
1916, organizado pela mesa de rendas do município de Teresina252 o nome de Afro de
Arêa Leão encontra-se ao lado de mais seis proprietários de “açougues”, dentre os quais
Francisco dos Santos e Silva (o Santinho), Aarão Parentes e Jeremias de Arêa Leão.
A seca de quinze repercutiria sobre os rebanhos nos anos imediatamente
subseqüentes, chegando a produzir uma alta do preço da carne, tendo o quilo atingido o
preço de 900 réis. É o pique de uma ascensão lenta a partir de 1905. Conforme o exibe o
gráfico da página seguinte foi uma alta considerável nos “bons tempos” que findam em
1922, a partir de quando estará em constante elevação. Talvez esta crise tenha influído
na decisão de Afro migrar para o Sul.
Em 1918, viúvo pela segunda vez, Afro foi juntar-se ao filho mais velho – que já
se formara em Medicina em Belo Horizonte e clinicava no interior de São Paulo –
levando os filhos pequenos do segundo matrimônio.
251
Fazendeiro e o dono da fazenda, criador, engordador de rebanhos; marchante é aquele que adquire as
boiadas de corte e as faz marchar para o abate no matadouro da cidade; magarefe é aquele que entrega o
abate no matadouro e distribui a carne verde aos açougues. O açougueiro seria o último personagem da
linha. Ao que parece naquela época, em Teresina, havia capitalistas que assumiam mais de um desses
“papéis”, mais provavelmente entre o abate (magarefe) e o açougue, possuindo um ou uma pequena
rede desses no mercado central e na suburbia.
252
Publicada no Jornal “O Piauhy” – nº 1.419 de 27 de fevereiro de 1916.
271
2. A Casa da Rua de Santo Antonio e a Vida da Cidade
A casa de Santo Antonio com o Barrocão era, como se percebe, muito animada
pois, de certo modo, era um meio termo entre casa de cidade e de fazenda. A medida
que escasseavam as idas do Major e D. Sérgia às fazendas, aumentava o fluxo inverso
dos vaqueiros que vinham prestar contas e receber instruções. Como mais tarde será a
casa de tia Mariquinha, a casa de O. Serginha tinha a mesa sempre posta. Ela cumpria o
horário rígido do almoço as 11 horas mas havia sempre gente chegando e saindo e
comendo a diferentes horas. O trânsito entre a sala de refeições e cozinha era sempre
movimentado.
Os três rapazinhos agora (1918) com 17, 15 e 13 anos, nem eram disciplinados
nem bons estudantes. Viviam livres e em dispersão, entre a mãe praticamente cega e o
pai um tanto ausente, na Usina e na casa da amante. Os rapazes tinham muitos colegas e
amigos, mas, sobretudo tinham os primos, filhos dos tios Cincinato e Justina. Passaram
juntos a infância e agora na adolescência estavam mais ligados ainda.
Assim, a casa de D. Sérgia reuma, nos períodos escolares, os sobrinhos aos
filhos, formando assim um ajuntamento de “Leões”: os Arêa Leão de Cincinato e os
Leão Monteiro, de Santídio. Justina, viúva de Cincinato tinha casas na capital e, em
vida do marido, passava suas temporadas. Agora com o marido morto e as questões com
o irmão José Liberato, via-se forçada a permanecer nas fazendas onde a Altamira era
praticamente o centro da vida familiar. Miguel chegara a ser enviado ao Rio de Janeiro
para um colégio interno, aos cuidados do tio Antonio Martins, mas a morte do pai o
forçaria a regressar para junto da mãe. Em 1918 estava com 22 anos e era o chefe de
família, o que o tornaria o mais responsável e empreendedor dos irmãos. Abaixo dele
Zezé, João e Julio dividiam-se entre a fazenda e a capital. Quando a mãe estava na
fazenda, nos períodos escolares, eles ficavam em casa dos tios Sérgia e Santídio. Zezé
emparelhava com João Paulo, João com Mundico e Julio com Zeca. Quando vinham as
férias, fazia-se o inverso, os Leão Monteiro acompanhavam os primos Arêa Leão às
fazendas deles para dar trabalho a tia Justina e apreensão ao sensato Miguel.
O Major Santídio gostava da casa cheia e tinha afeto pelos sobrinhos da mulher.
De todos se afeiçoara especialmente ao Júlio que seria, dentre eles todos, o mais
presente à casa da Rua de Santo Antonio. E não havia diferenças de tratamento tanto por
parte de Santídio, na cidade, quanto por parte de Justina, na Altamira. A união era
272
grande a ponto de alguns parentes, das gerações seguintes, pensarem que Justina e
Sérgia seriam irmãs. Eram cunhadas, as mães dos “Leões”.
As designações variavam em torno desse nome “mítico”. Aos poucos os filhos de
Cincinato foram sendo mais e mais designados pelo “Leão”. O caçula de D. Sérgia seria
sempre conhecido por Zé Leão – o que às vezes dava confusão com o primo Zezé Leão.
Mundico também, no início era Mundico Leão, mas como estava muito em companhia do
pai, na Usina, na oficina, nas máquinas e serviços mecânicos, em geral, foi passando a ser
designado como Mundico-do-Santídio. Mais tarde cortar-se-ia o “do” e ficaria Mundico
Santídio, não raro estropiado para Mundico Santídio. O que pouco se usava era o
Monteiro, embora todos os filhos de Sérgia e Santídio – Com exceção de Edith – se
assinassem Leão Monteiro, assim como os de Justina-Cincinato o faziam Arêa Leão.
Para quem estranha a designação “Mundico Santídio” é preciso lembrar o hábito
que não é regional, mas universal de usar o patronímico, ou seja, “derivado do nome do
pai”. Assim se irmanam no mesmo processo as designações ibéricas de Nunes, Peres,
Rodrigues como filho de Nuno, de Pero e de Rodrigo, com os eslavos de Sergueivitch,
Tsarovitch, como filho de Serguei ou do Tsar.
Assim, a casa da Santo Antonio com o início do Barrocão, via-se animada com a
presença dos Leões e dos amigos que eles reumam. Houvessem negras, mucamas,
criadas ou empregadas para cozinhar, lavar e passar roupas. O androceu superava –
socialmente falando – o gineceu, embora à Edith logo se juntaria, em caráter quase
definitivo, a prima Anisia recolhida pelo tio Santídio para escapar aos malhatos de uma
madrasta cruel. A moça passaria a dividir a sua vida entre as Flores, do outro lado do
rio, com Nhá Vicência, a avó, no período das férias, e com tia Sérgia naquele das aulas.
Além da Anisia, havia quase sempre algumas filhas de fazendeiros amigos do Major
Santídio que ele acolhia em sua casa para os estudos. Tal era o caso do seu amigo e
compadre Moraes, fazendeiro no Cantinho que possuía dois filhos homens, um que
ficaria conhecido como Moraezinho e outro que seria padre – Raimundo José. Uma das
filhas chamava-se Lídia e era afilhada do Major. Esta vinha para os estudos e ficava
com Edith e Anísia. O grupo de moças atraía outras amigas e a animação crescia.
Mundico divertia-se em assustar as moças. A pobre Lídia, que tinha medo de almas do
outro mundo, era a principal vítima e para atormentá-la ele preparava especiais
fantasmagorias.
273
O Major dormia todas as noites em casa, para manter as aparências . Entre a casa
e a Usina, havia tempo para D. Inhá com quem, cada vez mais, se enredava, passando
ao sustento e manutenção de outra casa. Por um mecanismo de compensação cumulava
os filhos de um supérfluo que crescia cada vez mais. Santídio não se interessava por
política nem por uma vida social mais refinada. Amava o conforto e a fartura na casa,
agora duas. Para os rapazes comprava o que aparecia. Assim na casa havia, vitrolas,
discos, tirava-se fotografias – e os filhos aprendiam a fotografar e revelar. Com isso as
despesas aumentavam mais e mais, de vez em quando ele convencia D. Sérgia a
desfazer-se de algumas posses de terra, algum gado. Ele comprazia-se em viver o seu
romance e ter as mãos metidas na graxa, cuidando dos motores, nos seus concertos.
Quanto ao comportamento dos rapazes não tinha – dada a situação de adúltero assumido
– força moral para discipliná-los , muito menos ainda em relação ao comportamento
sexual. Os rapazes aproveitavam-se da situação e tiravam partido dela.
Espalhavam-se pelas fazendas e pela cidade. Mas como andava a capital do
Piauí por esta segunda metade da primeira década do século? Já sexagenária ela havia
crescido, andava por volta dos 50 mi1 habitantes e seu comércio florescia. Mas, como
em todo o Piauí, a vida rural não era menos importante.
Do quadro a seguir, extraído de relação completa publicado no jornal “O
Piauhy”, nº 1.419, de 27 de fevereiro de 1916, pode-se extrair alguns fatos importantes.
O primeiro fato a chamar a atenção é a presença do grupo pernambucano –
Arthur Lundgren – na principal loja da cidade que era a Casa Paulista, que mais tarde se
transformaria nas tradicionais Lojas Pernambucanas. Como é sabido o primitivo nome
liga-se à cidade pernambucana de Paulista e não com o Estado de São Paulo. Isto
refletia a grande expansão da indústria têxtil de Pernambuco para o Meio Norte, criando
a maior loja de tecidos da cidade. Não é de admirar que a fábrica de Fiação e Tecidos
Piauiense, andasse mal, fabricando tecidos muito rudimentares que não poderiam
competir com aquela produção pernambucana e, em breve, de São Paulo.
274
João Barguil ......................................................... 400$00
Leocadio Santos & Cia ......................................... 400$00
Antonio Jorge e Barguil & Cia ............................. 300$000
Aphrodisio Thomaz de Oliveira ........................... 300$000
Domingos J. dos Santos ....................................... 300$000
Elias João Tajra & Cia ......................................... 300$000
Gabriel Said & Filhos ........................................... 300$000
José de Lobão Portellada ...................................... 300$000
Abib Salin Tajra & Cia ......................................... 300$000
Agostinho da Cunha Machado ............................. 200$000
Chatak & Cia ........................................................ 200$000
Edmundo Genuino de Oliveira ............................. 200$000
Gabriel Adali Hilali .............................................. 200$000
Jorge Abdala Cury ................................................ 200$000
Moisés Hilali ........................................................ 200$000
Moisés Elias ......................................................... 200$000
Nicolau Moisés Tajra ........................................... 200$000
Oliveira & Ferraz ................................................. 200$000
Alia F. Laloub ...................................................... 150$000
Castro Silva & Cia ................................................ 150$000
Elias Moisés Tajra ................................................ 150$000
Francisco de Sousa Coimbra ................................ 150$000
José Adata ............................................................ 150$000
Jorge Calume ........................................................ 150$000
J.A. Chatak & Cia ................................................ 150$000
José Miguel Adata ................................................ 150$000
Miguel Cadade & Irmão ....................................... 150$000
253
Veja-se a propósito o artigo “A imigração dos Tajras para o Piauí”, de Marta Teresa Tajra, publicada
na revista Carta SEPRO, vol. 11, nº 1, pp. 5 a 25.
275
Ao contrário do que aconteceu na Parnaíba onde os imigrantes sírios fizeram
face a sérios problemas254 em Teresina sua acolhida foi bem mais aberta. Em pouco
tempo florescia e a cabo de dez anos já se fundava a Sociedade Jovem Sina (1916). Esta
sociedade já reflete em si, a discriminação inicial de recolhimento voluntário dos sírios.
Observe-se, por exemplo, esta interessante notícia:
“FESTA
O Sr. Nicolau Tajra festejou brilhantemente a chegada de sua filha recem-
casada, Srta. Nagib Tajra com o seu primo Abib Salim Tajra, todos eles
sírios, Ornamentou caprichosamente a sua casa onde montou um dinamo,
especialmente para o serviço de luz elétrica que esteve magnífico. Recebido
o casal festivamente no porto, foi ao meio dia oferecido um opíparo
banquete e à noite uma esplendida “soireé” dançante muito concorrida.
A família Tajra obsequiou gentilmente aos convidados de sua elegante festa.
(O Piauhy nº 1.239 – de 26 de julho de 1913).”
Percebe-se pelo realce “todos eles sírios” um certo sabor de “exotismo” de que a
notícia é impregnada. Mas já não se trata de uma tão fechada colônia sob o preconceito
antialienígena. Os imigrantes já abrem suas portas à sociedade local. Um quarto de
século após – nos meus tempos de adolescente no Liceu – já principiavam os namoros e
alguns poucos casamentos mistos. Embora enfrentando reações, os cruzamentos já
ocorriam. Uma lenta evolução até os tempos de hoje onde já se constata uma integração
real. A escola facilitou muito os contatos. No ginásio tive muitos amigos de origem sina
e por eles nutri grande afeição. Meu pai tinha muitos amigos e relações na colônia e era
um grande apreciador da cozinha árabe.
Retornando às lojas de 1916, percebe-se ainda a permanência de algumas
tradicionais como aquelas: Arnaud, Portellada, Leocadio Santos, etc.255. Pena que a
relação não esclareça a tipologia das lojas. De Aphrodisio Thomaz de Oliveira, um filho
de Manoel Thomaz de Oliveira – da navegação a vapor – era a maior loja de ferragens
da cidade, ainda hoje existente, no mesmo local. Entre as primcipais percebe-se o lugar
destacado de Jeremias de Arêa Leão, aquele dos Humildes, genro do Cel. Manoel
Cai’doso. Jeremias radicàra-se em Teresina onde abriu uma loja de produtos variados e
254
Veja notícia sobre perseguição ao Sírio Simão Ferreira (alguns sírios adotaram sobrenomes brasileiros)
na “Cronologia do Piauí Republicano – 1889/1930” – Teresina, Fundação CEPRO, 1988 – p. 57.
255
É de estranhar-se, a falta, nesta relação, de algumas firmas de lojas que já existiam e continuariam
pelos anos afora como o “Centro Elegante” que de João Feitosa passou a João de Castro Lima.
276
de qualidade, chamada “A Longarense”, que ficava (salvo engano) na praça das Dores
(Saraiva).
Além da já tradicional Botica do Povo (1886) de José Pereira Lopes, da
Farmácia Collect, havia novas com a do Dr. Ney Ferraz que oferecia ao público os
remédios: Syphilol (o melhor de todos os depurativos do sangue); Água Inglesa
(Garrafa a 4$000); Xarope de Mussambê e Mutamba (Vidro a 3$000).
Aos médicos existentes juntavam-se alguns novos como os Dr. Leônidas de
Castro Mello, das Barras, filho de um novo chefe político local Cel. Regino Mello e o
Dr. Affonso Ferreira, que se transferindo para Campinas, no Estado de São Paulo seria
famoso oftalmologista. Casado com D. Anita Burlamaqui, de tradicional família do
Piauí, fundaria uma família numerosa ainda hoje do maior destaque na sociedade
campineira.
O panorama escolar ainda era restrito mesmo para os limites da região e da
época. Em torno do antigo Liceu Piauiense e da nova Escola Normal, ambos ainda em
prédios improvisados aguardando instalações próprias, apareciam alguns colégios
particulares que, em geral, duravam um certo tempo e desapareciam.
O Secretário da Educação, em 1919, no Governo Eurípedes Aguiar, era o Dr.
Raimundo Antonio da Paz. O Liceu Piauiense tinha 106 alunos e a Escola Normal 65
alunas.
Em 1919 aparecem dois novos. É inaugurado – com curso primário e secundário
– dirigido pelo Dr. Wladimir do Rêgo Abreu, tendo o nome do pai deste “Areolino de
Abreu”. Compunham o seu corpo docente os Drs. Ney Ferraz, Hygino Cunha, Celestino
Silva, Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves, Edison Cunha e o Sr. Júlio Fontenelle. Na
vigência de um sistema de preparatórios, com exames por matéria, cobrava-se 8$ por
matéria e o internato cobrava 75$000, além da parte escolar. Reabria-se um outro
colégio particular o “Bento XV” tendo José Auto de Abreu (filho do Dr. Anísio de
Abreu, falecido governador), então um jovem desportista, como encarregado do curso
primário. No secundário o corpo docente era constituído pelos Drs. Francisco Pires de
Castro, Ernesto Baptista, Sotero Vaz da Silveira, Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves,
Anísio Brito e o Sr. José Amável.
A imprensa da capital além do tradicional órgão do governo, “O Piauhy”,
apresentava aqueles outros, em geral efêmeros, que se fazem de porta voz de uma
277
oposição que, como órgãos informativos, restringem-se a períodos quase coincidentes
com os quadriênios governamentais. Assim, divergiam do “O Piauhy” em 1916 o
“Correio de Theresina”, obtendo destaque o “Jornal de Noticias”, de oposição a
Eurípedes Aguiar, entre 1916 a 1919. Mas o papel informativo sobre o país e o mundo
era surpreendentemente razoável, sobretudo para uma época conduzida apenas pelo
telégrafo.
É interessante notar-se uma certa preocupação didática em explicar termos
novos que os eventos políticos mundiais vão pondo em evidência. Assim como, por
exemplo, explicar o que é o “sufragismo”, a pretensão ao voto reivindicado pelas
mulheres na Inglaterra e América do Norte (1913) e o “maximalismo”, ou seja, o
bolchevismo, onde o “máximo” liga-se ao termo “bolshoi” – grande – em russo (1919).
A vida cultural da cidade era acanhada. Fora as eventuais conferências do Dr.
Hygino Cunha, as quais poucos eram os que entendiam o “filósofo”, raras eram as
novidades de fora. Os teresinenses deviam invejar os recifenses quando os jornais locais
noticiavam que a grande Itá1ia Fausta estava lotando o teatro no Recife com a peça “A
Ré Misteriosa”256. Aos sertões do rio Parnaíba as companhias do Rio de Janeiro não se
aventuravam a penetrar. Os teresinenses tinham que contentar-se com alguns
desgarrados circos, saltimbancos e pequenas “troupes” de variedades ou um certo
“vaudeville” pobre e decadente. Mas a população, contudo, devia amar o teatro e os
espetáculos a julgar pelos grupos e sociedades de teatro amador que existiram sempre,
com maior ou menor destaques, segundo a época257.
Nessa primeira década do século e continuando pela segunda, nota-se uma
valorização das manifestações teatrais, sobretudo graças a presença de um cidadão
notável – o Sr. Jonathas Baptista. De uma família tradicional, que conta entre os
ancestrais com David Moreira Caldas, desempenhava funções públicas – escrivão,
dentre outras – era o que se poderia rotular hoje como um “agitador cultural”. Além da
produção e autoria de espetáculos cênicos, organizava alguns deles beneficentes, para o
natal dos pobres. Era casado com uma filha do Dr. Hygino Cunha – D. Durcila – que
era pianista e compositora inspirada, sendo sua parceira em muitas criações.
Alguns flagrantes podem ser pinçados.
256
“O Piauhy” – nº 296 – Edição de 10 de julho de 1919.
257
Aliás, seria uma notável pesquisa a realizar, aquela que nos desse conta da evolução das manifestações
teatrais em Teresina. A pesquisa nos jornais é uma fonte, precisa.
278
Em abril de 1914, Jonathas produziu uma peça, e dirigiu sua montagem, sobre
Jovita uma heroína Piauiense da Guerra do Paraguai. As mulheres guerreiras são um
tema universal e de todos os tempos – desde Clorinda (e Tancredo), ao Diadorim, de
Guimarães Rosa. A gente fica curioso em resgatar estas produções pois que em três atos
ele acompanha a sertaneja desde o seu habitat em Jaicós, passando por Teresina, quando
do seu ajustamento como voluntária, até o Rio de Janeiro, com o seu suicídio. Mas a
veia criadora de Jonathas não se ligava apenas ao dramático; outras vezes ele produzia
comédias, como aquela “Astúcias de Mulher”, representada num certo Teatro
Variedades – “uma nova casa de espetáculos, na Praça Rio Branco, onde fez sua estréia
o “O Pintassilgo”258. A atuação de Jonathas Baptista em Teresina decorreria pelos
governos de Miguel Rosa, Eurípedes de Aguiar e João Luis Ferreira. Mais adiante ele
migraria para São Paulo. Era irmão de Zito Baptista, outro Piauiense, erudito musical,
que se transferiria para o Sul.
O cinema principiava a despertar interesse, embora perdesse para o teatro. A
exibição revelava na época uma abertura de mercado, podendo-se ver produções de
várias procedências européias (mais freqüentes) e americanas (principiando). Em
setembro de 1919 o Palace Teatro exibia a “película” “A Esfinge”, da fábrica
dinamarquesa Nordisk, com 1.600m, cujo papel principal foi confiado “ao inesquecível
Waldemar Psylander”. Mas, algumas vezes era necessário estimular a afluência ao
cinema. O Sr. Leopoldo Carvalho (ex-ajudante de ordens do Governador Miguel Rosa)
no seu Cine Americano, fazia sorteio do número dos bilhetes, distribuindo brindes aos
freqüentadores.
O futebol fazia sua entrada e a juventude principiava a interessar-se por ele. Na
falta de espaço apropriado, improvisava-se campo de jogo na praça das Dores. No dia
11 de maio de 1919 (“O Piauhy” nº 281), anunciava-se um animado torneio entre os
times do Teresinense, do Artístico e do Militar, com banda de música, para animar.
258
Outro tema fascinante à pesquisa seria o resgate-recuperação da obra teatral (e musical) de Jonathas
Baptista. A nova casa de espetáculo de que fala o “0 Piauhy” de 04 de julho de 1914, devia ser alguma
improvisação em prédio comercial ou residencial à praça Rio Branco. Após a morte do Grande
Chanceler a 10 de fevereiro de 1912, pelo Brasil todo, vários logradouros foram batizados com o seu
nome. O “Pintassilgo’’ era um personagem interessantíssimo que cheguei a conhecer. Era carteiro,
gordo, andava de bicicleta distribuindo a correspondência e sempre foi um apaixonado pelo teatro
amador. Era o grande auxiliar de qualquer companhia teatral que chegasse à Teresina. Foi representante
local da SBAT.
279
Com tanta freqüência jogou-se ali que a prefeitura viu-se levada a proibir as
competições naquele logradouro.
Um concurso, organizado na cidade de Teresina para a escolha do principal
futebolista local teve como vencedor José Auto de Abreu, um atleta de belo porte. O
resultado do pleito foi o seguinte:
Outros menos votados, mas que vale registrar aqui como testemunho da
sociedade da época, foram: Lourival Martins, Gustavo Bastos, Sargento Nonato,
Antonio Noronha, Joaquim Santos, Henrique Monteiro, João H. Vianna, Ângelo
Martins, Homero Rios de Moura, Luiz Bastos, Gerson Miranda, Cabo Dorival,
Pompílio Almeida, Antonio Almeida, Sinval Filho e João Belleza.
Mas a vida rural, mesmo do município da capital era importante naquele Piauí
pastoril, ensaiando uma agricultura comercial em meio ao caráter geral de subsistência.
E em torno da capital parece que era essa a tendência. Muitos cidadãos da capital, fosse
das funções públicas, comércio, ou os poucos industriais, possuíam, pelo município e
arredores – incluindo o lado fronteiro do Maranhão – propriedades rurais
complementares à vida citadina. Ficavam nas mãos de administradores e parceiros (em
geral no sistema meação) onde se cultivavam produtos de subsistência e se mantinha
algumas cabeças de vacas leiteiras. Deste gado, parte era trazida para a periferia da
capital, concentrados nas chamadas “vacarias” para o abastecimento da cidade.
Apenas a titulo de amostra, e para auxiliar o retrato da sociedade da época,
extraio uma relação das principais propriedades do município de Teresina, segundo a
listagem para o lançamento do imposto de dízimos, organizado pela mesa de rendas do
município, para o ano de 1916, publicada no “O Piauhy”, Ano XXVI, nº 1.410 de 27 de
janeiro de 1916. A seleção exposta a seguir foi colocada em ordem decrescente do valor
dos “dízimos”.
Além destes 38 estabelecimentos agrícolas há, no lançamento, mais 52 com
lançamentos inferiores a 50$000, o que revela um total de 190 estabelecimentos.
280
Propriedades Proprietário Lançamento
Riacho dos Cavalos Lisa Leonor de Almendra Freitas 130$000
Junco José Castello Branco da Cruz (seus herdeiros) 120$000
Flores Joaquim Antonio dos Santos (seus herdeiros) 98$000
Ihú Agapito José de Morais (seus herdeiros) 92$000
Santa Barbara Marcos Alves de Araújo 83$000
Brejo Augusto Cesar dos Santos 80$000
Remanso Antonia J. do Lobão Portellada 80$000
Sangrador Gil Martins Gomes Ferreira 80$000
Estrela José João dos Santos 80$000
Monte Alegre João da Silva Brito (seus herdeiros) 80$000
Contendas Marcos Pereira de Araújo 72$000
São Sebastião Antonio Alves da Costa 72$000
Olhos d’Água Adão de Medeiros Soares 70$000
Sobradinho Honorato Santos (seus herdeiros) 69$000
Barrinha Helvidio Clementino de Aguiar 65$000
Belo Monte Augusto Cesar dos Santos (seus herdeiros) 65$000
Taboquinha Antonia J. de lobão Portellada 60$000
São João Augusto Cesar dos Santos 60$000
São Pedro Augusto Cesar dos Santos 60$000
Espirito Santo Augusto Cesar dos Santos 60$000
Sobradinho Augusto Cesar dos Santos 60$000
Buriti Grande Eulina de Lobão Nogueira 60$000
Bacori M. José dos Santos Brito 60$000
Paraiso Raul Alves de Lobão Veras 60$000
Malhado Joana Pereira do Espirito Santos (seus herdeiros) 60$000
Peripery Joaquim Antonio dos Santos (seus herdeiros) 60$000
Riacho da Cerca Manuel Alves da Costa 56$000
São Raimundo R. Antonio de Farias 54$000
Patos Augusto dos Santos Britto 54$000
Santa Izabel José de Lobão Portellada 54$000
Chapadinha Mariano Gil Castello Branco 54$000
Victoria Constancia Dolores dos Santos Britto 52$000
Alegre Agapyto José de Moraes (seus herdeiros) 50$000
Bom Lugar Cesar dos Santos Britto 50$000
Lagoa Francisco das Chagas Baptista 50$000
São Matheus Francisco das Chagas Baptista 50$000
Angelim Helvidio Clementino de Aguiar 50$000
Codós José Raimundo de S. Britto 50$000
Olho d’Água José Raimundo de S. Britto 50$000
281
3. O Major na Usina e a Política no Estado
O Major Santídio, à frente da Usina passava a dedicar-lhe a maior parte do seu
tempo. Na iluminação pública introduziu a medida de suspender aquela das ruas nas
noites de lua cheia, uma medida bem recebida pela população que, assim, podia apreciar
o luar, o que incentivava o costume das “serenatas”259. Mas outras medidas mais
drásticas se fizeram necessárias para fazer frente às dificuldades impostas pela primeira
guerra mundial.
Uma grande nota publicada no “O Piauhy”, Ano XXX, nº 286 de 02 de junho de
1919 dá-nos conta de alguns daqueles problemas bem como notícias gerais sobre o
andamento da Usina.
“USINA ELETRICA
Em maio do ano passado por motivo da falta de querozone e oleo
lubrificante foi modificado o horário de iluminação nesta capital que passou
a ser feita até as 22 hs.
Agravando-se a crise de combustível foi à iluminação pública suspensa nos
meses de junho, julho e agosto e a particular pelo espaço de 25 dias. Mais
prolongada teria sido a suspensão dos funcionários da Usina Elétrica se o Dr.
Diretor das Obras Públicas não tivesse, depois de experiencias cautelosas e
bem sucedidas, conseguido substituir com excelente resultado o querozene
que se empregava para por em marcha os motores Diesel, pelo oleo vegetal
de babassú.
Outro problema, pendente de solução naquele tempo, era o da lubrificação
dos motores. O oleo mineral lubrificante, que antes da entrada dos Estados
Unidos na Guerra era comprado a pouco mais de 100$000 o barril passou a
custar 1:000$000!
Essa questão foi resolvida com a aplicação do oleo de mamona misturado
com oleo de côco babassú e certa porcentagem de óleo mineral.
Assim, conseguiu-se que, a partir de 25 de agosto voltasse a ser feita a
iluminação da cidade.
Durante o ano passado foram feitas 58 instalações domiciliares, sondo 25
com material do Estado e 23 com material do concessionário.
Lembra o Dr. Diretor das Obras Públicas a conveniência do prolongamento
da rede de iluminação elétrica à parte norte da cidade, de sorte a beneficiar
além de várias ruas, diversos edifícios públicos, federais, estaduais, como o
Quartel do Exército a Santa Casa, o Asilo e a Cadeia.
Para a realização deste serviço e a aquisição de materiais destinados à
instalações domiciliares, peço-vos que consigneis uma verba de 20:000$000
no orçamento de despeza da Usina Elétrica.
259
No Rio de Janeiro do tempo dos Vice-Reis também não se acendiam os lampiões das ruas em noites de
lua cheia.
282
A receita desta usina, no ano passado, foi de 57:000$000, elevando-se a
despesa a 53:452$836.”
Observa-se que esta nota é, antes, uma entrevista elaborada ou fornecida pelo
Secretário das Obras Públicas que, no caso era o Eng. Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves
– o Dr. Lulu Ribeiro, como era mais conhecido. Nota-se que ele se refere a uma
situação passada, ocorrida no ano anterior. Observa-se que não há menção ao nome do
diretor técnico da Usina Elétrica, que era o Major Santídio.
A esta leitura há uma outra, que ficou na memória da família, que foi exatamente
uma discordância entre o diretor técnico – contrário à utilização de nossos óleos
vegetais (mamona e babaçú) na maquinaria. A insistência de Dr. Lulu, um engenheiro
civil, após relutância de Santídio e a obediência, ú que teriam sido os verdadeiros
motivos da paralisação do sistema e não uma medida emergencial de economia. Deste
episódio ficou a marca de um ressentimento do Major Santídio para coro o Secretário,
cuja entrevista ou explicação apresentada, tem os cuidados de uma justificação, ante os
comentários que, certamente, circularam pela cidade.
A navegação no Parnaíba, atravessaria sérios problemas em 1918. O “Jornal de
Notícias” de 5 de setembro, sob o titulo “Perseguição” publicava uma nota contendo,
entre outros o seguinte comentário:
283
Aguiar, desposava a Srta. Gracy Lopes, filha do falecido farmacêutico José Pereira
Lopes e sua viúva O. Lydia Falcão Lopes. O casamento realizou-se na residência da
mãe da noiva, ao lado da Botica do Povo, na Praça Rio Branco. Na cerimônia religiosa
foram padrinhos da noiva o Dr. Antonino Freire, representado pelo Dr. Júlio Falcão
Lopes e D. Maria Margarida Pinto Lopes, esposa deste. Pelo noivo o Dr. Antonio
Ribeiro Gonçalves, representado pelo Dr. Luis Mendes Ribeiro Gonçalves e D. Maria
Amélia Coelho Marques, esposa do Dr. Fernando Marques, representada pela Srta.
Alice Ribeiro.
A cerimônia civil teve como testemunhas, pela noiva o Dr. Pedro Falcão Lopes e
a Srta. Sinhazinha Aguiar. Pelo noivo o Dr. João Luis Ferreira, representado pelo Dr.
Pedro Borges e a Sra. Maria Augusta Ferraz, esposa do Dr. Ney Ferraz. O casamento foi
celebrado pelo terceiro Bispo do Piauí, D. Octaviano Pereira de Albuquerque.
Já no último ano do seu governo, o Dr. Eurípides, com o apoio da nova facção
do Partido Republicano Piauiense – que arregimentara tanto a antiga União Popular
como os últimos ex-correligionários e desafetos de Miguel Rosa – superara as
dificuldades financeiras iniciais e conseguiu ser um bom governo, tanto quanto isso
fosse possível. O jornal “O Piauhy”, já no seu 30º ano de existência como órgão oficial
da situação, porta voz do Partido Republicano Piauiense, liderou o apoio ao governo
Eurípedes Aguiar.
A antiga situação, agora oponente, entrincheirada no “Jornal de Notícias” não
poupou artilharia verbal contra Eurípedes, a quem os adjetivos endereçados iam de
“patife” a “canalha” (14.03.1919) e o seu governo sintetizado como sendo “inimigo da
Magistratura e um Governo de Sangue”.
Internamente, houve, no seu governo, uma série de lutas políticas entre pequenas
oligarquias locais no interior como, por exemplo: o caso do Peixe, povoado do
município das Barras, onde brigavam o Cel. Fernando Carvalho e o Cap. Francisco
Castello Branco (janeiro de 1919); em Buriti dos Lopes, governo contra os irmãos
Romão (abril de 1919); na Parnaíba entre Nestor Veras e Lívio Castelo Branco. Houve
também a ruptura formal de relações com o clã dos Pires Ferreira, liderados pelo
Marechal. Dissidindo do PRC do Piauí e formando um grupo chamado Bloco
Republicano do Piauí, aquela poderosa oligarquia, a principio entendeu-se com
Eurípedes, passando a romper com ele em março de 1918.
284
Da antiga União Popular, dentre os grandes inimigos de Miguel Rosa, o Dr.
Lucrécio Avelino, foi grande e privilegiado colaborador de Eurípedes. De Secretário de
Estado, no mio, passou a desembargador, uma recompensa bem mais duradoura
(setembro de 1919). Dos colaboradores que depois se tornaram inimigos de Miguel
Rosa, o Dr. Antonino Freire de Deputado Federa1 passou a Senador, ocupando, por
eleição a vaga aberta pelo Dr. Joaquim Ribeiro Gonçalves (janeiro de 1920). Outro que
ascenderia de deputado a Senador seria Félix Pacheco (outubro de 1920).
Mas deve ser creditado ao Governo Eurípedes de Aguiar o saneamento das
finanças do Estado do Piauí, e na capital, a conclusão do palácio em que se instalou a
Escola Normal e seus anexos, como a Escola Modelo. Durante o seu governo, e com o
seu apoio, o Piauí endossou a escolha nacional de Epitácio Pessoa derrotando Ruy
Barbosa para a Presidência da República260 em maio de 1919. Também conseguiu ele
eleger o seu sucessor, se bem que em torno do nome do Dr. João Luiz Ferreira261
aliaram-se forças federais de prestígio como o seu irmão Félix Pacheco. O Vice-
Governador continuou o mesmo Dr. Raimundo Borges.
Mas, desde o assassinato do Senador Pinheiro Machado (1915) procederam-se
vários arranjos e composições novas na vida republicana nacional. Com sua morte
exauriu-se a força do Partido Republicano Conservador. A morte súbita do Dr.
Rodrigues Alves, eleito pela segunda vez à Presidência da República (01.03.1919)
ensejara um fato inédito: a indicação de um político de um estado pequeno à suprema
magistratura da República. A recusa obstinada do Rio Grande do Sul em aceitar
qualquer candidato paulista ou mineiro, e, talvez, o fato de destaque para Epitácio
Pessoa, chefiando a delegação brasileira à Conferencia de Paz em Paris, acrescido do
receio da aglutinação das políticas dominantes nos estados em torno do nome do Dr.
Ruy Barbosa, ensejaram que o político paraibano – mesmo ausente, na Europa – viesse
a ser eleito para o novo quadriênio.
Quando da proposição da candidatura do Dr. João Luiz Ferreira ao Governo do
Estado lançaram-se grandes e solenes manifestos de apoio ao engenheiro. Um desses,
260
O resultado da eleição, segundo a proclamação publicada no Diário do Congresso Nacional, para o
Estado do Piauí foi de 2.369 votos para Epitácio Pessoa e 1.546 votos para Ruy Barbosa.
261
Filho da terra, o Dr. João Luiz Ferreira, engenheiro civil estava exercendo o cargo federal de diretor
das obras de construção da rodovia Teresina-Floriano, do qual teve que se afastar como candidato ao
governo. Este é um momento chave na política de transportes do Piauí quando se principia a atacar as
rodovias, ante a já flagrante decadência da navegação do Parnaíba.
285
assinado a 18 de junho de 1919 e publicado no “O Piauhy” nº 292 de 22 de junho
daquele ano, reúne cem nomes de cidadãos de Teresina. Estas listagens são muito
interessantes para confrontar as viravoltas políticas. Nesta relação de apoio encontra-se
– no que interessa a família – os nomes de Satyro Jose Pinto de Oliveira e, pela primeira
vez, o nome de Santídio Monteiro. Em números subseqüentes, surgem várias outras
adesões esparsas, dentre elas a do Cel. Abílio Pedreira Veras.
Quanto ao Major Santídio Monteiro, saindo de seu habitual isolamento das
coisas da política, será uma ironia do destino pois o futuro reservará uma luta a ser
travada com o governador em pauta, que irá implicar em sua saída da Usina Elétrica
(1923).
Eurípedes Aguiar, teve a satisfação em transmitir o poder a seu candidato Dr.
João Luiz Ferreira, a 1º de julho de 1920. Enquanto este inicia um governo que ficaria
marcado por grandes realizações, o ex-governador, logo mais, é eleito deputado federal.
“VIAJANTES
Viajou para a cidade de Floriano o nosso ilustre amigo Santídio Monteiro
que ali demorar-se-á poucos dias.
(O Piauhy - Ano XXXII, nº 486, de 26 de junho de 1921).”
A consulta foi feita mas o médico em nada pode ajudar D. Sérgia com sua “vista
turva”. A partir dessa experiência malograda ela passaria a nutrir a esperança de que o
286
famoso Dr. Moura Brasil, do Rio de Janeiro, pudesse resolver o seu problema. O major
prometia levá-la ao Rio de Janeiro, tão logo pudesse. Por esse tempo ele já havia
decidido enviar o Mundico à Alemanha. Depois da recusa de João Paulo em permanecer
no Rio para estudar restava-lhe a grande esperança de fazer do seu segundo filho um
engenheiro mecânico. O rapaz demonstrava, cada vez mais, inclinação e aptidão.
Embora houvesse sido até agora, um refinado malandro para os estudos o pai achava
que, longe de casa, na Alemanha, ele seria disciplinado. Começaria pela escola de
mecânica da Siemens em Hamburgo.
Mundico jamais fora um estudante sério. Era muito inteligente mas
absolutamente indisciplinado. Fora o trabalho nas máquinas com o pai, sobretudo
adaptando, criando novas estratégias e meios – no que era muito inventivo – não se
debruçava sobre os livros como era preciso.
Muitos anos depois, minha tia Mariquinha Rocha, ao saber que seu irmão
Mundico era muito rigoroso e vigilante nos estudos do filho que era eu, dizia-lhe
inflamada: – “O menino não dá trabalho e gosta de estudar! Por que te preocupas tanto?
Talvez apenas para aperrear o garoto! Logo tu, que foste sempre um refinado malandro,
um péssimo estudante que só conseguiu concluir os preparatórios por que foi salvo pelo
“decreto”, baixado pelo governo, por causa da gripe espanhola!”
Nascido em 1903, por ocasião da epidemia em Teresina (1919) ele estava com
16 anos e minha tia, certamente, tinha razão. Naquela época o Liceu ainda tinha a
grande maioria dos seus alunos fazendo o curso médio ou secundário, mediante o
sistema de matérias isoladas, chamado “preparatórios”. Para 106 neste sistema (1919)
apenas 10 estavam cursando o sistema “seriado”262. E é bem verdade que a epidemia da
gripe espanhola levou àquelas medidas de emergência pelo governo. Assim é que o
jornal “O Piauhy” em seu número 249 de 16 de janeiro daquele ano de 1919, ao lado da
notícia das mortes do presidente Rodrigues Alves, recém eleito, e do ex-Presidente dos
Estados Unidos – Theodore Roosevelt, que inclusive estivera em viagem pelo interior
do Brasil, onde em Mato Grosso batizou-se um rio com o seu nome, insere a seguinte
informação:
262
Viria mais tarde a reforma Francisco Campos, seguida pela Capanema, cuja transição deu-se no meu
tempo.
287
“Rio, 13 – O Colégio D. Pedro II despachou cerca de trinta mi1
requerimentos de exames por decreto, rendendo perto de novecentos
contos.”
263
Priquito, corruptela de periquito, era um dos muitos nomes usados, no Piauí, para designar a genitália
feminina.
288
Os Leões estavam crescidos. Eram jovens, despreocupados e belos. Corriam
lisonjeiros murmúrios sobre os seus dotes sexuais. Os Leões eram, de modo geral, bem
dotados, especialmente o Júlio, o campeão absoluto. Ficou famosa na família, a seguinte
anedota.
Um dia, o grupo dos jovens Leões estava cavalgando em grande animação pelos
campos. Cansados, pararam para dar de beber aos cavalos e tomar banho. Num belo
local, perto de uma cachoeira, com pedras e um belo “poço” de banho eles se divertiam.
Júlio sobe à pedra para secar-se ao sol. Ao cabo de algum tempo, vem ter ao riacho ou
rio – quem sabe o Berlengas? – um caboclo, dar de beber a seu cavalo. Pára e enquanto
o cavalo bebe, ele observa a brincadeira dos rapazes, saltando da pedra no rio,
espanando água, se divertindo. Nesse ínterim o Júlio levanta-se sobre a pedra e,
espreguiçando-se, deixa, despudoradamente, exibir uma gloriosa ereção. O caboclo vê,
alarmado, a cena. Não se contém e exclama: “Vôte, desalmado! Com uma estrovenga
dessas tu matas as filhas alheias!” – A estas palavras foi uma gargalhada só do bando de
rapazes. Riam a bom rir enquanto o caboclo montava em seu cavalo e saia balançando a
cabeça.
Os pequenos leões haviam crescido. Tornavam-se adultos. Eram jovens, fortes e
belos. Continuavam a fama do vigor do Alferes João Paulo, do Capitão Cincinato e de
Afro. Jovens, belos e despreocupados os pequenos leões de ontem haviam crescido. E
afiavam as suas potentes garras.
289
Estreitando os Laços
290