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RESUMO
O texto aborda o início da Guerra Fria e suas conexões mais imediatas com a América
Latina a partir da Revolução Cubana, processo conhecido por latino-americanização da
Guerra Fria. Com destaque para o governo João Goulart, pretendemos centralizar a
análise no transcorrer da Crise dos Mísseis e em suas conseqüências na relação bilateral
Brasil–Estados Unidos, constituindo o ápice do desgaste entre os dois governos. A tal
ponto que não seria exagero perceber nesse momento a ruptura da dualidade existente
no governo estadunidense entre negociação/desestabilização e Aliança Para o
Progresso/Doutrina da Contrainsurgência, passando a ter largo predomínio na política
de Kennedy o segundo elemento em detrimento do primeiro, constituindo, assim, as
origens e os antecedentes do Golpe de 64.
2
BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos
Estados Unidos da América e ao México. Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p. 33.
3
Idem.
Portanto, temas que se mostravam importantes aos dois países estavam presentes
na declaração, como o respeito à democracia, a busca pelo desenvolvimento social e a
defesa da paz. Isso gerava uma ideia de aproximação, tanto entre os dois países quanto
entre seus dois presidentes. Além disso, também houve espaço na declaração para a
“democracia política, a independência e a autodeterminação nacional, a liberdade
individual”4 como princípios políticos que ambos os países comungariam. Dessa forma,
valores muito caros a ambos os governos estavam presentes. Sem mencionar Cuba ou a
VIII Reunião de Consulta, aparecia o princípio de autodeterminação, o que representava
que o governo brasileiro não recuara em sua Política Externa Independente. Ao mesmo
tempo, as noções de democracia política e liberdade individual, extremamente caras ao
governo dos EUA, também representavam que aquele país não retrocedera em relação
ao seu entendimento a respeito de Cuba.
O comunicado conjunto também mencionava a importância que Estados Unidos
e Brasil conferiam à Aliança para o Progresso, à ideia do desarmamento, e
à Carta da OEA. Também era mencionado, ainda que indiretamente, o problema das
encampações de empresas estadunidenses:
o Presidente do Brasil declarou que nos entendimentos com as companhias
para a transferência das empresas de utilidade pública para a propriedade do
Brasil será mantido o princípio de justa compensação com reinvestimento em
outros setores importantes, para o desenvolvimento econômico do Brasil. O
Presidente Kennedy manifestou grande interesse nessa orientação.5
4
Idem, ibidem.
5
BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos
Estados Unidos da América e ao México. Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p.35.
Já na Organização dos Estados Americanos, o presidente Goulart enfatizara o
princípio da PEI consoante à autodeterminação dos povos: o de não-intervenção. Se
tomara cuidado para não mencionar esse aspecto da Política Externa Independente no
comunicado conjunto com o presidente Kennedy, na OEA – mesmo que também sem
fazer referência direta ao problema cubano – Goulart assim se manifestava:
A força e o prestígio desta Organização repousam sobretudo em princípios
que constituem a razão mesma de sua existência e dos quais ela não poderá
jamais se afastar sem se trair. Só o respeito de todos à soberania de cada um
pode associar dignamente Estados livres e independentes. O princípio que
rege, acima de todos, a nossa convivência e que torna possível a nossa
unidade, é o princípio da não-intervenção. [...] A criação da Organização
dos Estados Americanos representa, portanto, o reconhecimento formal por
parte de todos os governos que a integram de que a cooperação entre Estados
soberanos, por mais íntima que seja, não dá o direito a nenhum deles, nem
mesmo à Organização que compõem, de atuar em terreno reservado
exclusivamente à soberania interna das nações. 6
6
BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos
Estados Unidos da América e ao México. Rio de Janeiro: Seção de Publicações do MRE, 1962, p. 11-
12. Grifos meus.
7
Idem, p. 179.
8
Idem, p. 63-193.
EUA, que naquele momento ainda contava com grande admiração tanto em seu país
quanto no Brasil.9
Assim, a visita do presidente dos Estados Unidos era esperada para breve, já no
mês de julho, mesma época em que o secretário-geral da ONU, U-Thant, estivera no
país e fora recepcionado com as devidas honrarias pelo presidente Goulart. O primeiro-
ministro era Brochado da Rocha e o governo Goulart começava a se preparar paras as
eleições de outubro e acreditava que a presença do presidente dos EUA seria importante
para obter bons resultados naquele pleito – pois a campanha de desestabilização política
do governo já vinha em grande desenvolvimento, principalmente através do IPES e do
IBAD. O que o governo Goulart não sabia, entretanto, era que muito do financiamento
desses órgãos provinha de dinheiro do governo dos EUA!(MONIZ BANDEIRA, 2001,
p. 83; FICO, 2014, p. 77). Carlos Fico traz a dimensão dessa campanha de
desestabilização:
Além de tudo isso, nunca houve na história brasileira um presidente da
República que tenha enfrentado uma campanha externa de desestabilização
tão grande como Goulart: “a campanha de Kennedy contra [Fidel], [João]
Goulart e [o premiê da Guiana Inglesa, Cheddi] Jagan não teve precedente na
história das relações interamericanas.[...] Ou seja, podemos comprovar
amplamente que uma enorme campanha de desestabilização foi patrocinada,
desde, pelo menos, 1962, por organizações brasileiras e norte-americanas
(sobretudo o USIS, o serviço de informações, mas outras agências Estados
Unidos também atuaram) (FICO, 2014, p. 75-76).
9
Até então, a única ação que desabonava a imagem de Kennedy era sua participação nos episódios da
Baia dos Porcos. Ele era tido como um jovem, idealista e competente líder político de ideias progressistas
– tais quais a Aliança para o Progresso e sua política para os direitos civis em seu país. Sua verdadeira
política para Cuba; a máfia orbitando seu governo; as denúncias a respeito de sua eleição; sua
participação na política para o Vietnã seria de conhecimento público apenas na década seguinte ao seu
assassinato, em especial a partir de 1975, quando foi instaurada a Comissão Church (seu presidente era o
senador Frank Church)no Senado dos EUA para investigar ações da CIA (HERSH; 1998, p. 194-210).
10
Discurso do Presidente João Goulart durante comemorações do Dia do Trabalho em 1º de maio de 1962
apud FICO, 2014: 243.
afiançamento do governo Goulart com setores mais vinculados ao governo dos Estados
Unidos. Mas o governo Kennedy entendia isso muito bem. E não estava disposto a
colaborar com o sucesso de Goulart:
Foi no contexto da campanha para as eleições parlamentares de 1962 que a
intervenção norte-americana no processo político brasileiro intensificou-se,
ultrapassando, em muito, os níveis “normais” de propaganda ideológica
que os Estados Unidos habitualmente faziam em qualquer país,
enaltecendo os costumes norte-americanos e defendendo o capitalismo
contra o comunismo. O próprio embaixador Lincoln Gordon confessou que
foram gastos, pelo menos, US$ 5 milhões de dólares para financiar a
campanha eleitoral dos candidatos favoráveis à política norte-americana e
opositores de Goulart. Naturalmente, a autorização para tal intervenção foi
dada pelo presidente Kennedy. (FICO, 2014, p. 77 – Grifos meus).
Além desse apoio ilegal aos candidatos de oposição ao governo Goulart e sua
Política Externa Independente, o presidente John Kennedy resolvera adiar sua vinda ao
Brasil para depois das eleições – com isso, impedindo que Goulart obtivesse ganhos
eleitorais com sua presença, estando de acordo com a “preocupação de Gordon de que a
vinda de Kennedy, tão popular entre os brasileiros, mesmo favorecendo a imagem dos
EUA, pudesse beneficiar Goulart, que insistia para que ela se realizasse” (AZEVEDO,
2007, p. 161).
As vésperas da eleição de 7 de outubro, a visita do presidente dos Estados
Unidos voltava a ser notícia no país. Porém, dessa vez, se estabelecia uma associação
entre Kennedy e o governador da Guanabara, Carlos Lacerda – o principal opositor do
presidente João Goulart – enfatizando que o presidente dos EUA gostaria de ter um
novo encontro com o governador da Guanabara, dado que já haviam conversado na
Casa Branca em 1961.
Recorda-se que o presidente Kennedy, na ocasião, quebrou o protocolo da
Casa Branca, ultrapassando em mais de 50 minutos a palestra que manteve
com o governador da Guanabara, na presença de seus principais assessores e
do embaixador Roberto Campos.11
11
O Estado de São Paulo, 04 de outubro de 1962, p. 3. BSF. Brasília/DF.
dos recursos da Aliança para o Progresso, dentro da estratégia para desestabilizar o
governo de Goulart que criava as “ilhas de sanidade administrativa”.
Mesmo tendo obtido bons resultados na eleição, o governo brasileiro sentia a
forte campanha de desestabilização a que vinha senso submetido nos últimos meses.
Goulart acreditava que a presença de Kennedy no Brasil lhe conferiria maior
tranquilidade política. E também entendia que um novo adiamento da visita
representaria um desgaste a mais para seu governo. Na tentativa de evitar isso, ofereceu
o que podia: a reafirmação do compromisso do Brasil com a democracia – o que seria
uma forma de amenizar a questão de Cuba – e a solução de vários problemas pendentes
entre os dois países – que passava, inequivocamente, pela questão das encampações de
empresas de capital estadunidense no país.
A programação do presidente Kennedy no Brasil foi tornada pública já em 19 de
outubro, data na qual o estadunidense já tomara conhecimento da existência dos mísseis
em Cuba. Entretanto, bem poucos eram os seus assessores que sabiam dessa realidade.
Sua recepção seria realizada dia 12 de novembro em Brasília, onde teria o primeiro
encontro com o presidente Goulart e discursaria no Congresso Nacional, ficando
hospedado no Palácio do Alvorada. No dia seguinte, John Kennedy passaria por São
Paulo e pela Guanabara para encontros com os governadores daqueles estados. No dia
14 iria para Natal, onde “Kennedy deverá firmar acordo com o governador Aluísio
Alves, pelo qual o Rio Grande do Norte receberá 3.600.000 dólares da ‘Aliança para o
Progresso” e depois retornar para seu país.12
Na noite de segunda-feira, 22 de outubro, o presidente dos EUA realizara um
pronunciamento na televisão anunciado que a URSS estava instalando armamentos
nucleares em Cuba e que o seu país reagiria a essas ações. Enquanto isso, no dia 23 de
outubro, o secretário de Imprensa dos EUA, Salinger, em resposta aos questionamentos
sobre a crise com Cuba e seus desdobramentos, afirmava “que não foram alterados os
planos para a visita do presidente Kennedy ao Brasil de 12 a 14 de novembro”. 13 No
mesmo dia, o primeiro-ministro Hermes Lima recebendo o mesmo questionamento
12
O Estado de São Paulo, 19 de outubro de 1962, contracapa.BSF. Brasília/DF.
13
O Estado de São Paulo, 24 de outubro de 1962, contracapa. BSF. Brasília/DF.
afirmara “que, até ontem, o Governo não recebera informe algum de Washington sobre
um possível adiamento ou suspensão da viagem do presidente norte-americano”.14
No dia 25 de outubro, a Casa Branca informava que “devido à tensão
internacional, foi anulada a visita oficial do presidente Kennedy ao Brasil”.15Também
era mencionado que o embaixador Lincoln Gordon “entregou hoje ao sr. João Goulart
carta do presidente dos Estados Unidos , informado-o de que precisou adiar a vistita que
faria ao Brasil em 12 de novembro deste ano, prometendo marcar nova data em janeiro
de 1963”.16
No mesmo dia, o presidente brasileiro respondia à carta do presidente dos
Estados Unidos. Aludindo às causas apresentadas pelo presidente Kennedy, o presidente
Goulart assim respondera:
Reconhecendo que a gravidade da conjuntura não lhe permite outra
alternativa, só me cabe dizer-lhe que minha esposa e eu fazemos sinceros
votos para que, o mais depressa possível, cessem os motivos que estão
determinando o adiamento da visita de v. exa.e da sra. Kennedy ao nosso
país.17
Além de demonstrar a boa relação entre os dois presidentes – algo muito caro ao
presidente Goulart – essa troca de correspondência também era bastante útil no sentido
de justificar o adiamento da presença do presidente Kennedy ao Brasil, o segundo em
poucos meses.
Contudo, se investigarmos mais à fundo, podemos nos aproximar de uma outra
situação, que acreditamos estar mais de acordo com o que de fato se passara. O
presidente John Kennedy, com certeza, já sabia da existência do armamento nuclear
soviético em Cuba desde a manhã do dia 16 de outubro. No dia 22 anunciara ao seu país
e ao mundo o que estava acontecendo na ilha caribenha. Até então, manteve todos os
procedimentos para sua viagem ao Brasil. A decisão de desmarcar a visita oficial foi
tomada, possivelmente, no dia 24 de outubro, dado que sua correspondência ao
presidente Goulart fora enviada no dia 25. Entre o dia 23 e 24, houve dois
acontecimentos que certamente não contribuíram para que o presidente dos EUA
considerasse Goulart como um aliado privilegiado: a posição do Brasil na votação da
OEA (dia 23) e a carta enviada pelo brasileiro a Kennedy (dia 24). Em ambas situações
14
Idem.
15
O Estado de São Paulo, 26 de outubro de 1962, contracapa BSF. Brasília/DF.
16
O Estado de São Paulo, 26 de outubro de 1962, contracapa BSF. Brasília/DF
17
Idem.
o Brasil expressava suas reservas – para dizer o mínimo – em relação as posições do
presidente estadunidense a respeito do governo cubano. Esse descontentamento de
Kennedy também aparece em documentação da época, em telegrama enviado pelo
embaixador Roberto Campos ao Itamaraty:
Fonte da Casa Branca, que ainda não consegui identificar, teria expressado
suspicácia em relação à missão do General Albino Silva, que interpreta como
destinada a facilitar a sobrevivência de Castro, acrescentando ainda que o
Brasil e a Itália teriam sido no mundo ocidental os países menos
cooperativos na crise presente.18
O embaixador, por sua vez, disse que nem com o sr. Goulart nem com o
primeiro-ministro debateu aspectos da visita do presidente Kennedy ao
18
Telegrama da Embaixada em Washington. Num. 815. SECRETO. URGENTE. Assunto: Questão de
Cuba. Data: 01de novembro de 1962. AHMRE, Palácio do Itamaraty. Brasília/DF. Grifos nossos.
19
“A posição brasileira na crise dos mísseis cubanos foi intolerável para Kennedy” (FERREIRA, 2011,
p. 320).
20
“Se o presidente norte-americano assassinado em Dallas, desde a crise dos mísseis cubanos, afastara-se
de João Goulart, por considerá-lo um perigo á segurança nacional dos Estados Unidos, seu sucessor,
Lyndon Johnson, manteve idêntica avaliação. Para eles, a recusa de Goulart em apoiar a intervenção
militar em Cuba, bem como romper relações diplomáticas e comerciais com a ilha, foi imperdoável”
(FERREIRA, 2011, p. 400).
Brasil. As conversas a esse respeito, acrescentou, só serão iniciadas em
janeiro, isto é, depois do plebiscito “quando o regime estiver consolidado”. 21
21
O Estado de São Paulo, 17 de novembro de 1962, contracapa. BSF. Brasília/DF.
22
O Estado de São Paulo, 30 de novembro de 1962, p. 3. BSF. Brasília/DF.
23
Nessa reunião, além do presidente dos EUA, participaram o vice-presidente Lyndon Johnson, o
secretário de Defesa Robert McNamara, o secretário de Estado Dean Rusk, o secretário do Tesouro
Douglas Dillon, o procurador-geral Robert Kennedy, o diretor da CIA John McCone, o chefe da Junta
Militar Maxwell Taylor, o conselheiro especial de Segurança Nacional McGeorgeBundy, o secretário
assistente de Assuntos Interamericanos Edwin Martin, os conselheiros especiais Ralph Dungan e Arthur
Schlesinger Jr e o embaixador no Brasil Lincoln Gordon (SILVA, 2008, p. 197).
Dentro das próximas duas semanas, antes do natal de 1962, haverá uma
discussão com o presidente Goulart em termos gerais, que refletirá os pontos
de vista do presidente Kennedy e que enfatizará (a) as preocupações dos
Estados Unidos com os desenvolvimentos políticos e econômicos do Brasil;
(b) o desejo de colaboração dos Estados Unidos com o Brasil nas áreas
econômica e política; e (c) a convicção dos Estados Unidos de que tal
colaboração será prejudicada enquanto persistirem certas dificuldades.24
Desse modo, o governo de Kennedy queria deixar claro para o governo Goulart
que mesmo que esse mantivesse sua Política Externa Independente os Estados Unidos
não deixariam de manter sua política externa para Cuba. Não deixava de ser uma
ameaça ao governo brasileiro, procurando enfraquecer sua posição em relação a questão
de Cuba, pois Kennedy fazia questão de ressaltar que os EUA não recuariam no assunto.
Nem em Cuba, nem em qualquer outro país que ousasse desafiar, mesmo que
minimamente, sua hegemonia nos quadros da Guerra Fria.
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24
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25
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