Você está na página 1de 40

O QG feminista é uma revista digital gra-

tuita feita com trabalho voluntário de mulheres


que escrevem e traduzem textos sobre diversos te-
mas importantes sobre a opressão feminina.
Este zine tem o intuito de mostrar alguns
de nossos textos para que você venha conosco
para a luta! Vamos juntas!

Acesse todos os nossos textos em:


http://medium.com/qg-feminista

Número 1 - Junho de 2018


Créditos
Autoras desta edição: Tradutoras desta edição: Revisão, Diagramação e
Aline Rossi Mariana Amaral Projeto Gráfico:
Caitlin Roper Winnie Lo Melina Bassoli
Carol Correia
Cila Santos Ilustradoras desta edição: Revisão Final:
Raquel Rosario Sánchez Capa: Juliana Bravo Cila Santos
Sapataria Radical Págs. 4, 5 e 8: Isadora Reimão Mariana Amaral
Demais: Melina Bassoli
Índice

Feminismo
O que é o feminismo? Pergunta fácil,
resposta difícil
6

Gênero
Invisibilizar o sexo + universalizar o
gênero = destruir o feminismo
11

Raça
Racismo no feminismo e a necessidade
de se racializar o discurso e a prática
feminista
21

Lesbianidade
Heterossexualidade compulsória,
lesbofobia e resistência
26

Indústria do Sexo
Feminismo que não desafia a
supremacia masculina não é feminismo
30

Maternidade
O que sua mãe tem a ver com feminis-
mo?
33
O que é o feminismo?
PERGUNTA FÁCIL, RESPOSTA DIFÍCIL
Por: Cila Santos
Se você chegou até aqui, certamente já sentiu algum incômodo
por notar que homens e mulheres não estão em pé de igualdade em di-
reitos e privilégios na sociedade em que vivemos. Talvez não ache justo
saber que homens ganham mais do que mulheres, que são as mulheres
as que são cobradas para serem responsáveis pelo trabalho doméstico,
cuidado dos filhos, enquanto os homens apenas se beneficiam. Talvez se
incomode ao perceber que toda mulher tem uma história de horror pra
contar. Muito certamente envolvendo um homem. Uma história que fala
de violência, de assédio sexual, de estupro, de exploração. E por todo esse
seu incômodo, alguém chegou e te chamou de “feminista”.
E então você quis descobrir do que isso se trata, de fato. Feminis-
mo hoje é um termo que está praticamente na moda. Muito se fala dele,
principalmente entre mulheres, de todas as idades, que se intitulam, ou
repelem veementemente, a alcunha de “feminista”. Mas será que a gente
sabe mesmo do que está falando? Do que estamos tratando quando fala-
mos de feminismo?
Vejamos. Em resumo, desde sempre, mulheres ocupam um lugar
de subalternidade na sociedade. Não possuímos os mesmos direitos bási-
cos que os homens e somos tratadas com o mesmo peso de uma merca-
doria. Em muitos momentos da história, mulheres buscaram subterfúgios
para reverter ou ao menos abrandar essa situação de quase escravidão.
Na história recente, por inúmeros fatores conjunturais que permi-
tiram isso, vimos surgir movimentos organizados de mulheres em busca
de direitos, que inclusive conseguiram conquistas importantes. E a esse
movimento de organização de mulheres lutando por condições dignas de
existência passamos a chamar de feminismo.

6
Essa explicação parece Muitas pessoas, por exemplo,
básica, no entanto contém pres- têm perfeito entendimento dessa
supostos importantes: questão e não só não lutam con-
1. mulheres estão em situação tra como ainda tentam piorar a si-
desprivilegiada na sociedade: tuação. Então, ações tanto micro
este é o primeiro ponto, é o en- quanto macro, tanto no ambiente
tendimento básico para saber se público quanto no privado, tanto
existe uma sensibilidade ou não individuais quanto coletivas que,
à causa feminista: a compreen- no cômputo geral, contribuam
são de que a situação da mulher para a libertação das mulheres é
na sociedade não é nada boa, que que podem ser efetivamente cha-
não temos direitos, somos explo- madas de feministas. Dessa for-
radas e mercantilizadas. Se al- ma, não se pode considerar que
guém discorda desse pressuposto, o feminismo “surgiu” a partir das
se acha que a vida das mulheres é chamadas ondas feministas, por-
uma coisa ótima, e que feministas que mesmo antes tivemos mulhe-
“ficam de mimimi”, “reclamam res maravilhosas e revolucioná-
de barriga cheia”, ou estão vendo rias realizando ações que foram
problemas onde não tem, real- precursoras de muitas conquistas
mente não tem como essa pessoa que tivemos ao longo do tempo.
ser ou mesmo simpatizar com o Isso também significa que, tecni-
feminismo, uma vez que o movi- camente, nenhuma mulher ne-
mento luta justamente para com- cessariamente precisa pertencer a
bater uma situação de opressão. um movimento organizado para
Então, tecnicamente, o primeiro se dizer feminista. O importante
pré-requisito para ser feminista é que ela tenha consciência da sua
é reconhecer a precariedade da opressão e tome ações ali no seu
situação da mulher na sociedade. microcosmo para contribuir na
Mas não somente, já que: nossa jornada por libertação.

2. o feminismo é um movimento E que “ações” seriam essas?


político-social, então, para além
da compreensão da opressão que Pois é, em tese essas ações
a mulher vive na sociedade está seriam quaisquer que fossem no
a prática feminista no sentido sentido de contribuir para a causa
de transformar essa realidade. feminista (libertar as mulheres).

7
No entanto, existe mesmo uma a ser estudada. Mulheres durante
grande confusão sobre que práti- muito tempo estiveram excluídas
cas seriam essas, na verdade não dos bancos da universidade, na
existe nem um consenso sobre a verdade há relativamente pouco
ideia de “libertação” das mulhe- tempo que conseguiram conquis-
res. Em se tratando de feminis- tar o direito de alfabetizar-se e
mo, todo mundo concorda com o estudar. São homens que ocupam
problema e com o objetivo, mas as cadeiras de pesquisadores. E
a metodologia para resolver é que realmente eles não estão nem um
dá uma confusão danada. pouco interessados em estudar e
Em primeiro lugar, preci- registrar a história do massacre
samos entender um pouco que o que eles mesmos executam con-
fenômeno da exclusão das mulhe- tra a outra metade da população.
res é uma coisa muito antiga que Então somente agora que come-
há muito pouco tempo começou çamos a produzir e difundir as

8
teorias e as ideias sobre a nossa feminismo é que mulheres sejam
própria exploração. Só agora que iguais ao homens, ou que mulhe-
começamos a conseguir pensar res devem ter direito a “escolher”
nossa própria realidade e produ- fazer o que quiserem, seu pensa-
zir um conhecimento sistemati- mento está alinhado a ideias do
zado sobre isso. E aí, dentro desse feminismo liberal. Se você acre-
conjunto epistemológico, você dita que a questão é que mulhe-
encontra diversas ramificações e res se libertem da opressão mas-
teorias que buscam problemati- culina, e que na verdade não há
zar a origem da nossa opressão, muita escolha porque os homens
quais os mecanismos de manu- é que definem os pré-requisitos,
tenção e como lidar com isso. E seu pensamento está mais alinha-
é aí que você escuta falar em vá- do a correntes materialistas. E
rias “vertentes” feministas. Que por aí vai. Só esta primeira cisão
nada mais são que correntes de (sim, tem várias outras) que eu
pensamento teórico que buscam apresentei já causa uma tremenda
explicar a questão da mulher na diferença na maneira como você
sociedade. vai se posicionar politicamente e
E aí você pode se pergun- nas tuas ações dentro do feminis-
tar: mas eu preciso “seguir” uma mo (e é por isso que muita gente
vertente para ser feminista? E a fala em “feminismos”). E aí você
resposta é ótima, veja: sim e não. pode até pensar, “ah, mas não
Não, porque, em tese, realmente tem problema, todo mundo quer
você não precisa saber tudo o que o mesmo”. E seria lindo se assim
fala uma determinada vertente fosse, só que muitas das ideias so-
para prosseguir com a prática fe- bre a melhor maneira de buscar o
minista, e sim, porque inevitavel- bem-estar das mulheres não só se
mente dependendo do conjunto contrariam como mutuamente se
de coisas em que você acredita excluem ou se atrapalham.
sobre a questão da mulher, você Exemplo: se você segue
se encaixa mais em uma verten- (mesmo sem saber muito bem)
te do que em outra (mesmo sem a corrente liberal do feminismo,
saber), e suas práticas já estarão certamente vai achar que maquia-
consoantes ao que você acredita. gem, depilação etc. são coisas que
Quer um exemplo? Se podem ser empoderadoras. Que
você acredita que o objetivo do as mulheres têm que ter o direi-

9
to de mostrar o corpo onde qui- pois somos vistas como objeto e
serem, e do jeito que quiserem, e ninguém leva a sério nossas rei-
que a Marcha das Vadias é uma vindicações. Vai acreditar que a
coisa bem legal. Que mulheres prostituição é o maior dos crimes
têm o direito de se prostituir se as- contra a mulher, porque não po-
sim escolherem. Se você acredita demos aceitar que o corpo femi-
numa visão mais materialista, vai nino seja tratado como mercado-
entender que tudo o que remete ria e porque consentimento não
à feminilidade serve pra manter se compra. São maneiras comple-
a mulher num estado de submis- tamente diferentes de lidar com a
são e objetificação e que mostrar mesma questão e maneiras que se
o corpo, hoje, numa Marcha das autoexcluem. Um método de ação
Vadias da vida, ainda não é uma atrapalha o outro. E é por isso que
opção realmente revolucionária, as vertentes feministas “brigam”.
“O entendimento da nossa condição real
é muito dolorido, mas é a única opção
possível para tentarmos fazer frente ao
patriarcado e buscar construir um mundo
melhor para as meninas que virão.”
E como saber qual corren- e pode acabar mesmo com nossa
te que você julga mais coerente? saúde mental. É uma porta que
Lendo, estudando, se informando, uma vez aberta, não fecha. Mas
observando, conversando com ao mesmo tempo, abrir essa caixa
outras feministas. E estudando de Pandora é a única opção pos-
muito mesmo, dentro do possível. sível para tentarmos fazer frente
O entendimento da nossa e buscar construir um mundo
condição real é uma coisa muito melhor para as meninas que vi-
dura. Muito dolorida mesmo. É rão. Temos muitos obstáculos e o
também um caminho sem volta. principal deles é a nossa própria
Perceber o que a sociedade faz socialização, que nos condiciona
com as mulheres, entender o que a nos manter submissas, a dispu-
é o patriarcado, se dar conta do tar umas com as outras. São mui-
que representamos nesta estrutu- tos fronts de batalha. E feminismo
ra, é profundamente desalentador é luta.
10
invisibilizar o sexo +
universalizar o gênero =
destruir o feminismo
A LINGUAGEM DO GÊNERO É UMA MANEIRA
DESPOLITIZADA DE FALAR SOBRE FEMINISMO.
DIZEMOS “PERSPECTIVA DE GÊNERO” QUANDO
NA REALIDADE O QUE QUEREMOS DIZER É
PERSPECTIVA FEMINISTA
Por: Raquel Rosario Sánchez (para o Tribuna Feminista)
Tradução: Winnie Lo

Camaradas, eis aqui uma opinião controversa: eu não aguento


a palavra gênero. Chegou a um ponto em que até me incomoda foneti-
camente essa palavrinha… A ironia da situação é intensa já que durante
a minha graduação fiz uma disciplina em Gênero, tenho uma pós-gra-
duação em Gênero e acabo de começar um doutorado em Gênero… As
pessoas sempre vão dizer que sou “uma especialista em gênero”, ainda que
me cause um eterno incômodo interno. Esse esclarecimento é importante
para mostrar que o problema não é a falta de conhecimento: é que quanto
mais aprendo sobre gênero, mais me perturba a sua universalização.
Ora, a linguagem do gênero é uma maneira despolitizada de falar
sobre o feminismo. Dizemos “perspectiva de gênero” quando na realida-
de o que queremos dizer é perspectiva feminista. Falamos muito sobre
“violência de gênero” quando na realidade o que queremos é dizer aos
homens, como classe social, que parem imediatamente de violentar e as-
sassinar mulheres e meninas. Na academia, os Estudos da Mulher tiveram
espaço aproximadamente durante três minutos e meio antes que o status
quo tivesse uma taquicardia coletiva e transformasse tudo em “Estudos
de Gênero”. Estudar as mulheres, através da história, como entes indepen-
dentes e por direito próprio, saiu de moda.
11
A desculpa é que também nessas comunidades de internet
é preciso trabalhar as masculini- de que os jovens gostam muito.
dades e as diversidades sexuais. Como éramos um departamento
Como sempre, as mulheres te- bastante hippie e tudo resolvía-
mos que carregar a responsabi- mos sob uma visão de liderança
lidade histórica de desconstruir horizontal (ou tentávamos), o
a nós mesmas e ainda por cima professorado convocou uma reu-
fazer o trabalho de desconstruir nião dentro da universidade, no
os outros também. Isso de es- Centro da Mulher, para que ti-
tudar masculinidades e diver- rássemos a conversa da internet
sidades sexuais está tudo bem e dialogássemos frente a frente
e apoio 100%, mas por que não com franqueza e honestidade.
abrir departamentos que tenham Esse Centro da Mulher é
foco específico nesses interesses histórico; tem décadas e faz um
e visões, assim como fizeram as trabalho enorme para visibilizar
mulheres ao fundar os Estudos as mulheres; sejam estudantes,
da Mulher para se concentrar nos funcionárias, professoras ou pes-
seus? Mas não. As mulheres que quisadoras. Bem, quase todo o
cedam o minúsculo espaço que departamento participou da reu-
cavaram para se concentrar em si nião, inclusive aquele grupinho
mesmas e que abram caminho a de estudantes (eram uns cinco)
todo mundo, que não se pode ser que se identificava muito com a
egoísta. Isso é inclusão… ou será teoria queer, que sustentavam que
que no afã de ser inclusivas aos o simples fato de que o Centro se
demais estamos nos excluindo a chamasse Centro da Mulher era
nós mesmas? “violentamente excludente” para
Recordo algo que me outras pessoas. Descrito dessa
marcou profundamente. Quan- maneira, alguém podia imaginar
do eu estava fazendo o mestrado que no Centro se cometiam ge-
em Estudos da Mulher, Gênero e nocídios todas as terças e quintas-
Sexualidade, como departamen- -feiras, das 9h às 14h. Aproveito
to tivemos um incidente muito a ocasião para deixar por escrito
feio. Um grupinho de estudan- que isso de rotular as ideias com
tes começou a difamar professo- as quais se discorda como “vio-
ras (em particular as que tinham lência” trivializa um tema bastan-
uma ideologia feminista radical) te sério e me incomoda.

12
Pois sim, não foi só o graduação, para ser em seguida
Centro. Fizeram o mesmo com o uma graduação por si só, pas-
programa; a queixa nesse senti- sando posteriormente a ser um
do vinha porque no nosso nome mestrado e recentemente um
colocávamos “Mulher” na frente doutorado. No trajeto, o progra-
(uma decisão deliberada por par- ma se ampliou para que incluísse
te do professorado). Isso também Gênero e Sexualidade como parte
atentava contra a diversidade e a do currículo de base e se trabalha
inclusão. o enfoque transnacional, os es-
A diretora do programa tudos étnicos e a teoria queer de
foi vilipendiada. Isso me doeu maneira transversal em todas e
na alma e não só porque ela era cada uma das aulas. Mas isso não
minha orientadora. Mas porque era suficiente; segundo aqueles
estamos falando de uma mulher estudantes que reclamavam no
que lutou mais de 30 anos dentro Centro, ainda estava se centrando
da academia, para expandir os demais na mulher.
Estudos da Mulher, desde uma Entre as suas difamações,
disciplina que podia ser feita por acusaram a diretora do progra-
estudantes dentro dos cursos de ma, uma mulher que se criou nas

“Gênero é o mecanismo através do qual


se legitima a subordinação das mulheres”
décadas de 1960 e 70 no sudeste sagradável, mas a algumas de nós
evangélico ultraconservador dos chamou muito a atenção que es-
Estados Unidos como uma lés- ses estudantes nunca tivessem se
bica abertamente super butch e apresentado aos departamentos
além disso pobre, de ser A Gran- de Física ou Direito ou Aeronáu-
de Opressora Patriarcal porque, tica para fazer essa birra. Óbvio
segundo esses estudantes, apesar que não, esses departamentos es-
de ser marginalizada em todos tão cheios de homens! É melhor
esses sentidos, a senhora é bran- acusar as mulheres de opressoras
ca: um indicador de que lhe falta- e difamar como “excludente, não
vam alguns atributos para ganhar inclusivo nem diverso” o único
a olimpíada das opressões. espaço no campus universitário
O incidente foi muito de- onde se priorizam as mulheres…

13
ao contrário de todos os demais cido tanto nem por que um deba-
departamentos na universidade, te (tecnicamente sobre diferenças
onde a supremacia dos homens é ideológicas) simples tinha que ser
isso: suprema. tão, mas tão ácido. Todos os ra-
Também assistiram à reu- mos do saber debatem, e muitas
nião no Centro da Mulher o pro- vezes com dureza. Além disso,
fessorado de outras áreas colegas se algo caracteriza o feminismo,
como Estudos Étnicos, Sociolo- como explica Jessica Filliol, “é o
gia, Literatura e Justiça Social, debate interno, o questionar tudo
para ver se podiam mediar o as- o que aprendemos, o assumir que
sunto. Mas não entendiam nem não temos pilares irremovíveis
por que as tensões haviam aque- mas sim princípios inegociáveis”.

“Gênero é um conjunto de esteriótipos


que servem para perpetuar padrões de
opressão e dominação”
Mas não. A demanda é clara: in- Eu aprendi muito com
visibilizar as mulheres, apresen- esse momento. E também apren-
tando-as simplesmente como di muito com a resposta do nosso
opressoras e universalizar o gêne- departamento: acomodar aque-
ro, a qualquer custo. les cinco estudantes, em vez de
O mais provável é que, se ficar de pé e rebater claramente
as mulheres não se derem conta todos os argumentos com deter-
do que está acontecendo e reagi- minação e contundência. Mas é
rem, com o tempo o Centro deixe que isso é impossível, porque nós
de ser um Centro da Mulher. Por fomos socializadas como mulhe-
certo colocarão algum nome es- res. E a nossa socialização indica
quisitíssimo como “Terceiro Es- que devemos abrir mão de todos
paço”, como aconteceu com aque- os argumentos, inclusive os mais
le Centro da Mulher no Canadá, lógicos, para acomodar os ou-
supostamente “para torná-lo tros, por mais ilógicas que sejam
mais inclusivo”. E pouco a pouco, as suas abordagens. Além do que,
o programa estará descentrali- expressar abertamente que nós
zando e apagando mulheres. Essa queremos, ou pior ainda, que o
é a história e sempre foi assim. O movimento feminista exige, por
que dói é vê-la em tempo real. definição, focar na humanidade e
14
nas experiências das mulheres, re- ótipos que servem para perpetuar
presentaria um ato bastante egoís- padrões de opressão e domina-
ta… e antes mortas que egoístas! ção. Por que a classe dominante
Como diz a companhei- iria querer ser igual à classe sub-
ra Magdalena Proust: “Cada vez jugada e por que a classe subordi-
que uma mulher mostra firmeza nada iria querer fazer o papel da
em seus argumentos e segurança classe opressora? Por que eu iria
em si mesma, é acusada de exces- querer atribuir a uma menina os
siva veemência, de arrogância e estereótipos que o gênero impõe
de atacar os demais. Nós sempre aos meninos e a um menino os
temos que debater fragilmente, constrangimentos que o gênero
sem perturbar”. É exatamente o coloca para as meninas? Eu de-
mesmo com o movimento. Sim, fenderia a abolição do gênero da
somos um movimento que busca cabeça aos pés.
libertar as mulheres da subordi- Como explica a escritora
nação patriarcal, mas como va- Victoria Smith, o gênero é a ide-
mos caminhar na rua dizendo ologia que promove a conformi-
isso abertamente? Assustaríamos dade. O gênero é o que dita que
a nós mesmas! É melhor sorrir as mulheres, por serem mulheres,
muito e falar daquela onipresente devem ser submissas, ternas, frá-
“igualdade de gênero”… um con- geis e ruins de matemática. O gê-
ceito que é melhor ser pronuncia- nero é o que dita que os homens
do rápido e sem pensar, porque devem ser agressivos, bruscos,
se analisarmos muito nos daría- autoritários e que nunca, mas
mos conta de que, na realidade, nunca, podem chorar. Dizer que a
a igualdade de gênero é mais ou estratégia do feminismo é promo-
menos uma abominação, porque ver a igualdade de gênero é dizer
o gênero é um conjunto de estere- que queremos que os estereótipos

“Explicar à mulher que se encontra de có-


coras numa cabana, dividindo-se em duas
para parir, que esta experiência é simples-
mente uma construção não só te faz soar
imprudente, mas também cruel”
15
que o gênero atribui aos homens tudo na vida é “uma construção
sejam impostos às mulheres e vi- social”? Aqui você tem que respi-
ce-versa. Tenho a certeza de que, rar fundo, se encher de paciência
como movimento, podemos aspi- e não se deixar exasperar pelos
rar a muito mais que isso. argumentos tão casualmente in-
Para algumas compa- clementes desse niilismo tão chic,
nheiras, universalizar o gênero é o pós-modernismo.
uma estratégia que busca apelar Não vamos combater
a pessoas que ainda pensam que o pós-modernismo jogando o
falar abertamente sobre femi- computador pela janela nem
nismo, como movimento polí- queimando os livros cheios dessa
tico, é… estridente demais. Essa prosa tão desconexa e relativista
gente que pensa que mencionar de Butler e Foucault, não. Vamos
a palavra misoginia ou sexismo combatê-lo com raciocínio lógi-
vai fazer cair um testículo e, pior co e argumentos ponderados: os
ainda, que se mencionar ambas alérgenos de todo obscurantismo.
no mesmo artigo ou frase, cairão Vamos ver… Argumen-
os dois. Essas pessoas são os ho- tar que o sexo biológico é “uma
mens e às vezes somos nós mu- construção social” não só signi-
lheres que ajustamos tudo para, fica desconhecer como funciona
consciente ou subconsciente- toda a engrenagem patriarcal,
mente, seguir agradando nossos mas também representa um tre-
amigos homens. Meu respeito às mendo tapa na cara das mulheres
companheiras que entendem essa e meninas que morrem todos os
estratégia como necessária, mas dias por causa de opressões base-
não compartilho a sua posição. E adas no sexo. Como explica a sin-
creio que essa posição causa um dicalista Natasha Vargas-Cooper:
dano terrível ao movimento. “Explicar à mulher que se en-
Nesses momentos é ex- contra de cócoras numa cabana,
tremamente difícil formular esse dividindo-se em duas para parir,
tipo de análise porque muita gen- uma função das fêmeas e peri-
te botou na cabeça (ou botaram gosamente das fêmeas, que esta
na cabeça delas?) que sexo e gê- experiência é simplesmente uma
nero são literalmente o mesmo e construção não só te faz soar im-
que inclusive se fossem diferen- prudente, mas também cruel”.
tes, de que importa, se no final Algumas mulheres são

16
suficientemente sortudas para le- ria, que não lhe neguem trabalho
var vidas em que ser mulher não pelo simples fato de que o poten-
trouxe aborrecimento, que bom. cial empregador acredita que no
Parabéns para vocês. Mas que futuro você poderia engravidar
você nunca se veja na necessidade e decida “de maneira preventiva”
de ter um aborto clandestino para não a contratar para não ter que
salvar sua vida, que nunca tenha pagar licença maternidade, que
uma gravidez forçada, que nunca nunca a tenham obrigado a dor-
uma histerectomia desnecessá- mir numa cabana, congelando e
17
exposta a todo tipo de animais, seu ultrassom revelou que seriam
porque seu útero está menstru- meninas. Toda a engrenagem de
ando… tudo isso é um tremen- gênero que diz que uma mulher
do privilégio e feminismo que representa um peso para sua fa-
defende exclusivamente as pri- mília, que não será tão “produti-
vilegiadas não é feminismo. Há va” para o capitalismo que um ho-
ainda mais postulados, porque as mem… tudo isso se impõe a um
maneiras pelas quais o sexo bio- feto (uma feto?) com base numa
lógico é utilizado como fator de imagem minúscula, um ultras-
opressão num sistema patriarcal som que talvez caiba na palma da
são infinitas e, como feministas, mão, na qual se pode distinguir
é nossa responsabilidade… não, um fator crucial: que possui vulva
perdão, é nossa obrigação inadi- e não pênis.
ável sempre lembrar disso. Mas o sexo biológico é
Isso significa que como muito mais que isso. A medicina
feministas só podemos apoiar as foi concebida, desde a sua inser-
mulheres e meninas que se veem ção no sistema capitalista, para
oprimidas com base nas suas fun- tratar a mulher como um deriva-
ções reprodutivas? Não, porque o do do homem. Os medicamen-
sexo biológico é mais do que re- tos são, em sua grande maioria,
produção. testados nos corpos dos homens.
O sexo biológico deter- Portanto, a ciência ainda supõe
mina quem pertence à classe que os sintomas do homem são
dominante ou subordinada in- universais. Todas e cada uma das
dependentemente de a pessoa se mulheres que morreu por causa
reproduzir ou não. De fato, em de doenças que não puderam ser
muitos países e contextos, a pes- identificadas a tempo, porque não
soa sequer precisa nascer para apresentavam os sintomas obser-
que isso se determine. Pense nos vados no corpo dos homens, fo-
feticídios: no mundo atualmente ram executadas com base no seu
são abortados milhões de fetos sexo biológico. E sim, a palavra
simplesmente pelo fato de que que quero utilizar como escritora
“Um movimento emancipatório não pode
ser sustentável se não entendemos por
que lutamos nem contra o que lutamos.”
18
é executadas. importantes que as das mulheres”.
Inclusive depois de mor- Ou seja, os resultados
tas, o sexo da mulher cobra a sua dessa pesquisa argumentam que
fatura. Alguns estudos demons- se um homem e uma mulher
traram que, na hora de investigar morrem por causas suspeitas ou
as mortes por causas não natu- acidentais (não naturais), é mais
rais, os cadáveres dos homens provável que se abra uma inves-
recebem mais importância do tigação para determinar a morte
que os das mulheres. Dizem por do homem do que da mulher. O
aí que a morte é “o grande equa- problema não é apenas que me-
lizador” dos seres humanos, mas nos pessoas decidem abrir uma
acontece que não. Até na morte, o investigação quando sua parente
sexo discrimina. mulher morre por causas não na-
Explica o pesquisador turais. É que até quando as e os
Maxwell McLean, que analisou parentes têm dúvidas e querem
os processos de investigação das abrir uma investigação sobre a
causas de mortes não naturais re- causa da morte da mulher, a pa-
latadas na Inglaterra durante um tologia (profissão dominada por
período de dez anos, “as mortes homens durante os 800 anos da
dos homens e das mulheres re- sua existência) demonstra uma
cebem um tratamento diferen- tendência a declarar a morte
ciado durante o processo de in- como “morte natural” se o cadá-
vestigação em patologia forense. ver é de uma mulher.
Menos mulheres atravessam o Vamos parar para pensar,
limiar de ser encaminhadas para que aqui o assunto é esclarecido.
a patologia, de que se abra uma Um cadáver não pode desempe-
investigação ou que se confirme nhar nenhum papel nem estereó-
uma morte não natural. Quando tipo de feminilidade ou masculi-
conseguem atravessar o limiar nidade. Ou seja, um cadáver não
dos casos investigados, a lista de tem gênero. É apenas um corpo
vereditos existentes também é sexuado morto, e esse corpo se-
injusta com as mulheres. Até o xuado está aberto a ser discrimi-
momento, o pessoal que trabalha nado por causa do que apresenta
na patologia forense é vulnerável como corpo, não por causa do
à acusação de que as mortes dos que as ideias de gênero pudessem
homens são consideradas mais representar quando tinha vida.

19
Se nossos argumentos são vidas e interesses, estamos sendo
tão contundentes, por que será egoístas, estridentes e antipáticas,
que suas antíteses estão calando o patriarcado aproveita essas in-
tanto? Eu não vou responder. Vo- seguranças para nos despejar do
cês que se perguntem quem ou nosso próprio movimento.
o que se beneficia de misturar e O fato de que o gênero,
confundir todo esse assunto. o mecanismo através do qual se
Já encontrou a resposta? legitima a subordinação das mu-
Um movimento emanci- lheres e crianças, seja reinterpre-
patório não pode ser sustentável tado no melhor dos casos como
se não entendemos por que luta- neutro, e no pior como algo liber-
mos nem contra o que lutamos. tador, representa um retumbante
Não desmantelaremos o patriar- sucesso patriarcal e um indicador
cado se não entendemos como da gravidade do problema no
surge, com que propósito e como qual as feministas interessadas na
se perpetua, e o cerne da questão emancipação coletiva de mulhe-
atual é, precisamente, essa distin- res e meninas nos encontramos.
ção entre sexo e gênero. Vai levar muito tempo
Invisibilizar o sexo e uni- para que mais e mais gente com-
versalizar o gênero pode parecer preenda essas dinâmicas, já que a
questão meramente semântica, engrenagem é profunda, multifa-
mas é instrumental para manter cetada e deliberada. Mas que leve
o feminismo andando em círcu- muito tempo não quer dizer que
los e para que as mulheres e me- haja tempo para perder. Desven-
ninas nunca alcancemos a nossa dar esse enredo é o trabalho de
libertação. Esse é um pronuncia- todas, ninguém se salva. Compa-
mento bastante contundente, en- nheira, se você se preocupa com
tão me deixem repetir: este ema- esse movimento, o momento de
ranhamento que confunde sexo reflexões intensas dentro da sua
com gênero não é coincidência. É cabeça acabou. Reflita, sim. Mas
uma confusão fomentada inten- comece hoje a ponderar com ou-
cionalmente para que mulheres tras companheiras e com os alia-
e meninas não alcancem a liber- dos também, garanto que elas e
tação do jugo patriarcal jamais. eles também têm refletido.
Enquanto nos preocupamos que, É hora de formular todas
ao tomar como centro as nossas as perguntas difíceis em voz alta.

20
racismo no feminismo
e a necessidade de se
racializar o discurso
e a prática feminista
Por: Carol Correia
Introdução

O primeiro passo para combater o racismo é reconhecer que ele


existe; nomeando-o em todos os espaços. O segundo é procurar formas
para enfrentar cada aspecto do racismo que molda nossa sociedade e nos-
sa existência. E o terceiro é pôr essas formas em prática a fim de vencê-lo.
Tal questão é necessária de ser abordada a fim de cumprir ver-
dadeiramente o objetivo do feminismo. Afinal, se o feminismo visa a li-
bertação de todas as mulheres, então precisa discutir as outras opressões
que moldam nossa existência. Feminismo que só discute gênero e ignora
ou minimiza questões como raça, classe, sexualidade, entre outras, foca
no grupo privilegiado das mulheres: brancas e endinheiradas (de clas-
se social média ou alta). Feminismo que apenas discute gênero centra a
discussão da mulheridade na mulher branca e, consequentemente, exclui
categoricamente as questões que atingem mulheres indígenas, negras e
asiáticas; excluindo todas as mulheres racializadas e empobrecidas.
Surge dessa marginalização no próprio movimento das mulheres
a necessidade de racializar todo o feminismo. Sem “recorte” racial, mas
integrando raça nas análises feministas. Afinal, as pessoas não são apenas
mulheres, homens, brancas, negras, indígenas, asiáticas — somos várias
coisas ao mesmo tempo e isso influi na forma que o resto do mundo nos
percebe e nos trata, assim como a forma que você se percebe.
O presente texto tem por objetivo nomear o racismo dentro do
feminismo, observando tanto o discurso teórico quanto as práticas femi-
nistas e de indivíduos feministas.
21
Nomeando o problema: áticas, como as trata e como elas
racismo no feminismo mesmas se percebem e se tratam.
A teoria feminista não
O primeiro passo para o foi criada em um vácuo descon-
combate ao racismo é reconhecer textualizado, ela foi resultado de
que ele existe — afinal, não é pos- seu meio — um espaço em que as
sível lutar contra algo que você divisões entre as mulheres já es-
não sabe o que é. E esse reconhe- tavam estabelecidas socialmente,
cimento do racismo nos discur- de forma que havia mulheres que
sos e práticas feministas é feito detinham um status de opressora
através da nomeação, isto é, do sob outras mulheres.
apontamento de comportamen- A omissão de boa parte
tos e lógicas racistas. da literatura feminista de incluir
É perceptível que há duas raça em sua análise implica que
formas do racismo florescer: atra- mulheres brancas se vejam como
vés de ações e de omissões. pertencentes a uma raça neutra e,
Vejamos. ao não discutir raça como fator
de ampliação da violência contra
1. Através das omissões: ou seja, mulheres, incluam-se mulheres
ao não discutir raça, o racismo racializadas em dados e campa-
floresce. nhas para a conscientização sobre
misoginia, mas as ignora na con-
A omissão é perceptível dução de políticas públicas.
na maior parte da teoria feminis- A dificuldade do feminis-
ta quando apresenta a mulherida- mo em falar na conjunção raça e
de branca como uma experiência sexo implica na dificuldade em
universal; olvidando-se que mu- pautar questões específicas a mu-
lheres não são um grupo homo- lheres negras, indígenas e asiáti-
gêneo e que raça é um grande cas. Marginaliza-as. E nessa mar-
fator para a construção da identi- ginalização molda a seletividade
dade das mulheres. de quem é ouvido e de quem é ig-
Assim como é um grande norado dentro do movimento —
fator para como mulheres racia- que denúncias são importantes e
lizadas experienciam o mundo, quais não são; que pautas devem
isto é, como a sociedade percebe ser priorizadas e quais não de-
mulheres negras, indígenas e asi- vem.

22
2. Através das ações (e distor- as mulheres já estavam divididas
ções): ou seja, através de com- socialmente.
portamentos racistas que são A dificuldade de pautar
tolerados e, muitas vezes, difun- racismo é que falar sobre raça
didos. não beneficia o grupo mais privi-
legiado das mulheres (mulheres
Feministas são (ou deve- brancas); logo não é uma pauta
riam ser) mulheres minimamen- que elas desejam adotar.
te politizadas, mas quando o as- A dificuldade de pautar
sunto é raça e racismo  algumas racismo no feminismo está no
mulheres brancas se recusam a fato de que algumas mulheres
aceitar que detém privilégios e brancas desejam estar em par de
são opressoras. igualdade com homens brancos
E como feministas são e não focadas na libertação com-
minimamente politizadas, signi- pleta de todas as mulheres.
fica que elas não serão racistas de Em Feminismo é para
forma tão explícita como chamar todos, bell hooks fala que “todas
alguma negra de macaca ou man- as mulheres brancas nesta nação
dá-la voltar para a África; signifi- sabem que a branquitude é uma
ca que o comportamento racista categoria privilegiada. O fato de
terá um discurso que aparenta ser as mulheres brancas escolherem
progressista. reprimir ou negar esse conheci-
E é dessa forma que mui- mento não significa que elas são
tas feministas brancas perpetuam ignorantes; significa que estão em
o racismo, porque elas sabem que negação”.
o racismo as beneficia de diversos Outro comportamento
modos. racista por parte de algumas fe-
Analisemos. ministas brancas está nas duas
Qual é a desculpa para medidas e dois pesos em relação
que não se debata racismo dentro à tolerância zero à misoginia e a
de espaços feministas? “Falar so- alta tolerância ao racismo.
bre raça divide o movimento”. Observem que qualquer
O que, todos sabemos, é caso de misoginia de um homem
uma mentira. As diferenças en- é levado a sério, especialmente
tre mulheres já existiam antes do quando é cometico contra uma
feminismo ser pensado. Ou seja, mulher branca. Mas casos de

23
racismo de uma mulher bran- isso” é compreensível para você?
ca cometido contra uma mulher A cumplicidade de femi-
racializada são diminuídos como nistas brancas perante mulheres
“apenas raça”, “estamos todos racistas é, infelizmente, gigantes-
aprendendo a desconstruir racis- ca. E o que se tornou bastante co-
mo”, “ela foi socializada para pen- mum é a desvirtuação de termos
sar e fazer isso”. para blindar o comportamento
O mais interessante é que racista delas, enquanto vistas
tais justificativas (se é que justi- como pobres vítimas.
ficam alguma coisa) não seriam O termo interseccionali-
aceitáveis se fossem perante si- dade, que implica em uma análi-
tuações de misoginia vinda de se em que duas ou mais opressões
homens. Ou “é apenas gênero”, são analisadas juntas, se tornou
“estamos todos aprendendo a uma forma de feministas brancas
desconstruir misoginia”, “ele foi se apresentarem como “boazi-
socializado para pensar e fazer nhas”.

“Racializar o feminismo é fundamental


para que a libertação de todas as
mulheres seja algo atingível.”
O termo rivalidade femi- mulheres são empurradas para
nina, que explica a desunião femi- um ideal de beleza quase impos-
nina e a contínua competitivida- sível de magreza e branquitude,
de entre mulheres, acaba sendo a que leva várias mulheres a terem
razão para que feministas racistas problemas de autoimagem, auto-
sejam blindadas de denúncias de estima, transtornos alimentares,
racismo de mulheres negras, in- além da gordofobia, é muitas ve-
dígenas, asiáticas e algumas bran- zes reduzido a banalidades como
cas. Isto é, não estão reclamando “sou bonita ou sou apenas bran-
sobre um comportamento racista ca?”, desvirtuando o tema por
seu; é tudo recalque — resultado completo ao egocentrismo de al-
da rivalidade feminina a qual to- gumas feministas brancas.
das nós estamos submetidas. E talvez o único momen-
Um tema como padrão to em que haja interesse real em
de beleza, que fala sobre como pautar racismo seja: na tentativa
24
de defender sua vertente feminis- O que significa racializar
ta ou sua militância de ser racista. o feminismo? Pôr raça na análi-
se em mesmo nível de importân-
A necessidade de racializar o cia que sexo; não como “recorte”,
discurso e a prática feminista mas junto de.
A ideia de “recorte” racial
Fica evidente que o femi- coloca raça como questão secun-
nismo tem uma história inegável dária a sexo. E é um problema.
de comportamentos e teorias ra- Raça tem tanta ou talvez até mais
cistas sendo perpetuadas e valida- influência na forma como nossa
das. É inegável que a construção sociedade é hierarquizada que
da teoria e da prática feminista sexo. E é urgente reconhecer isso.
foi influenciada pelo racismo que Logo, racializar o femi-
algumas feministas brancas co- nismo é fundamental para que a
metiam. De modo que as mulhe- libertação de todas as mulheres
res negras, indígenas e asiáticas seja algo atingível.
ou não são mencionadas em ne- E como disse Claire do
nhum momento ou, se o são, são Sister Outrider: “É tempo de apo-
reduzidas a estereótipos racistas. sentar a ideia de que mulheres
A fim de que seja comba- brancas não podem ser cúmplices
tido o racismo dentro do feminis- ou se beneficiar de racismo pela
mo é necessário racializar o dis- razão de que elas experimentam
curso e a prática feminista. misoginia.”
25
heterossexualidade
compulsória, lesbofobia
e resistência
Por: Sapataria Radical

É importante que o movimento feminista não reduza o conceito
de heterossexualidade compulsória enquanto igualmente nociva a todas
as pessoas. Quando falamos de heterossexualidade compulsória, não es-
tamos falando de uma suposta opressão genérica que visaria forçar todas
as pessoas à heterossexualidade por um motivo moral. A heterossexua-
lidade compulsória é um regime político que visa manter o acesso de
homens aos corpos e capacidades laborais e reprodutivas de mulheres,
através do conceito ferrenho de núcleo familiar, da monogamia, da di-
cotomia entre espaços públicos e privados, e de uma naturalização da
mulher enquanto categoria reprodutiva resumida à sua especificidade
biológica e portanto inferior, complementar, existente apenas em opo-
sição ao masculino, saída da costela.
Enquanto homens são educados para a dominação, para a prima-
zia no núcleo familiar patriarcal, a mulher é forçada à submissão, tanto
fisicamente (ainda existem países em que o casamento é estipulado pelos
pais da mulher, ela é transferida enquanto propriedade do pai ao marido e
nunca será entendida enquanto ser possuidor de autonomia) quanto cul-
turalmente  —  em uma série de políticas familiares e educativas que incu-
tem à mente das mulheres que sua existência é definida pela atratividade
que exerce aos homens e só será completada quando ela for devidamente
penetrada e engravidada por um (o que só é possível mediante um su-
posto merecimento). A penetração também é compulsória: é dada como
única forma de sexo, heterossexual ou não, e colocada como prazerosa
quando, na verdade, é perigosa e dolorosa para a maioria das mulheres.

26
Aos homens gays foi ensi- e qualquer manifestação de au-
nada a virilidade e a dominação e tonomia é reprimida (estudo,
eles a exercem, mesmo rejeitando trabalho, escolha quanto à ma-
o papel de patriarca  —  eles ex- ternidade, etc). A heterossexua-
ploram empregadas domésticas e lidade compulsória não oprime
suas mães, avós e tias, e não dei- homens e mulheres. Às mulhe-
xam de levantar a voz para uma res lésbicas é relegada, então, a
mulher quando confrontados, sub-existência, o limbo dos des-
não deixam de ser possuidores de possuídos e despossuidores, na
salários maiores, poder aquisitivo margem da sociedade. A falta
e político maiores. Às mulheres de direitos básicos nos relega a
é forçado um entendimento da subempregos e nos coloca em
própria existência regado a sub- condições ainda maiores de ex-
missão e insegurança desde os ploração. A nós resta a histeria, a
primórdios, o primeiro sapatinho loucura, a invisibilidade. O único
rosa colado à barriga da mãe  — modo de nos afirmarmos é en-

“É desonesto, reducionista e politica-


mente interessante tentar nos encaixar
no conceito de diversidade”
quanto outsiders, é afirmarmos assemelhe mulheres lésbicas a
nossa existência fora da norma e homens gays, eles não compõem
nossa consequente resistência. uma categoria pois não existem
O movimento LGBT as- da mesma forma, não são opri-
similou essas duas vivências e midos da mesma forma e não
cooptou mulheres lésbicas sob o têm o mesmo papel na socieda-
argumento de que sofreríamos de  —  e mulheres lésbicas são um
igualmente as consequências do reduto de resistência. A sexuali-
que chamaram heteronormativi- dade lésbica é o que há de mais
dade; ignorando qualquer recor- subversivo  —  e, portanto, asque-
te de sexo e estruturas de poder, roso  —  dentro de uma sociedade
opressão, exploração e interesse patriarcal, e é desonesto, reducio-
que mantêm o sistema. É papel do nista e politicamente interessante
movimento feminista fazer a dife- quando tentam nos encaixar no
renciação, pois não há nada que conceito de diversidade.
27
Assim, em vez de se pre- locar nossa sexualidade em ques-
ocupar com mulheres lésbicas tionamento, e tentar ao máximo
que seguem enxergando a he- nos livrar da ideia de que é absur-
terossexualidade como única do ou anormal viver sem homens 
saída, que estão presas ao regi- —  porque só entendendo nos-
me compulsório no qual foram sos corpos enquanto autônomos
criadas, o movimento feminista poderemos estender esse racio-
se deixa cooptar e
passa a gritar por
uma liberdade
sexual que de li-
vre não tem nada,
num discurso
raso que não
abrange nem um
décimo do que é
a vivência lésbica
e a importância
em negar nossos
corpos ao acesso
masculino. O fe-
minismo precisa
ser lesbocentrado
porque a revolu-
ção será lesbocen-
trada ou não será.
Isso não quer dizer
que toda mulher é
ou será lésbica ou
que as pautas de
mulheres heteros-
sexuais e bisse-
xuais são menos
importantes, mas
sim que devemos
nos reavaliar, co-

28
cínio para nossa existência e por ca seria conservador, e na miso-
consequência nossas atividades, ginia clara que é a abominação
nossa força de trabalho, nossa de mulheres que restringem sua
inteligência e capacidade. Isso atividade sexual a pessoas com
não quer dizer, também, que não vaginas, tachadas de transfóbicas.
exista heterossexualidade como Enquanto o movimento femi-
sexualidade, apesar de também a nista reproduzir esses conceitos
sexualidade ser socialmente cons- falhos, ele não será acolhedor a
truída  —  quer dizer que a exis- lésbicas e suas especificidades;
tência da heterossexualidade não enquanto não pautar a expe-
anula o caráter político que ela riência heterossexual de uma
tem e o que ela representa em via lésbica (antes ou depois de se as-
de regra. E, por último, isso não sumir lésbica) como estupro, e
é sobre endeusar mulheres lésbi- culpabilizá-la ou duvidar de sua
cas ou romantizar lesbianidade. lesbianidade (inclusive invisibi-
É sobre entender a importância lizando a existência de lésbicas
de mulheres amarem e prioriza- mães), enquanto não entender
rem apenas mulheres dentro de a violência que a presença de
uma sociedade patriarcal. homens pode ser para nós, en-
É de suma importância, quanto não pautar estupro cor-
então, que o movimento femi- retivo, ele estará invisibilizando
nista fale de lesbofobia, e não de as fanchas, estará sendo lesbo-
homofobia, e que entenda suas fóbico e reproduzindo mais do
diferenças; que dê importância mesmo travestido de discurso
à produção política lesbiana. É revolucionário. O feminismo
importante que o feminismo não precisa exaltar, respeitar e hon-
caia nas relativizações e distor- rar a lesbianidade.
ções típicas do movimento LGBT, Digo isso como apelo.
no conceito de monossexualidade Pois enquanto o feminismo for
enquanto grupo e como poten- heterocentrado e se juntar ao coro
cializadora de poder, privilégio e daqueles que gritam, aos quatro
opressão, na crença de que lesbia- ventos, que lésbicas não existem,
nidade é um rótulo a ser abolido ele não será para mim, nem para
como todos os outros, na crítica nenhuma de nós. E sem sapatão
pós-moderna à saída do armário não há revolução. Continuare-
lésbica porque se assumir lésbi- mos nas garras do patriarcado.

29
feminismo que não desafia
a supremacia masculina
não é feminismo
Por: Caitlin Roper (para o Huffington Post UK)
Tradução: Mariana Amaral

Era uma vez um movimento social chamado feminismo. Era um


movimento criado por e para as mulheres. Esse movimento tinha objeti-
vos claros — como libertar as mulheres da opressão masculina. Ele signi-
ficava algo.
Hoje em dia, com a popularidade da terceira onda do feminismo
liberal, “feminismo” pode significar o que você quiser. Qualquer um pode
ser feminista, inclusive homens, e qualquer ato pode ser um “ato feminis-
ta” — mesmo aqueles que mantêm instituições e estruturas que oprimem
e massacram mulheres como um todo — contanto que você “escolha”,
está tudo bem.
Enquanto feministas nas décadas anteriores lutaram contra a ob-
jetificação dos corpos femininos, acreditando que essas práticas contribu-
íam para nosso status de segunda classe, esse mesmo tratamento sexuali-
zante foi repaginado como empoderamento feminino ou como liberdade
sexual das mulheres (o que é bem difícil de distinguir das fantasias se-
xuais influenciadas pelo pornô de homens heterossexuais… vá saber o
porquê…). Empoderamento, ao que parece, significa mulheres sendo re-
duzidas a status de objeto, mas agora em seus próprios termos.
Mulheres são igualmente encorajadas a “libertarem seus mami-
los” em nome de um feminismo pró-sexo, porque mostrar os peitos para
os garotos é percebido como um ato revolucionário que subverte o status
quo, quando, na verdade, mantém a atenção em nossos corpos e em sua
aparência em vez de naquilo que temos a dizer — e os homens se im-
portam mesmo com os motivos de nós tirarmos as nossas blusas ou eles
querem apenas que tiremos de qualquer jeito?
30
Enquanto muitas femi- de escolha e da autonomia das
nistas liberais reconhecem que a mulheres, apesar de as vítimas
pornografia mainstream é irreal contarem uma história diferente.
e falha em representar uma se- Muitas entram no negócio ainda
xualidade saudável ou o prazer crianças, vulneráveis e sem ou-
feminino, elas argumentam que tras alternativas de sobrevivência
a resposta a esse problema é um e passam a viver uma rotina de
pornô de melhor qualidade — o violência que provoca, de acordo
assim chamado “pornô femi- com pesquisas, níveis de trauma
nista”. No entanto, o padrão que comparáveis a de veteranos de
define um “pornô feminista” é guerra.
baixo, com o conteúdo frequen- Como as criadoras de um
temente refletindo a mesma di- movimento que pretende acabar
nâmica de poder sexista e às ve- com a opressão vivenciada por
zes até a mesma violência contra mulheres podem apoiar uma in-
mulheres. Conteúdos pornográ- dústria que exige que mulheres
ficos que apresentam mulheres pobres e sem recursos, incluindo
sendo subjugadas a atos sexuais indígenas, negras, estejam dispo-
degradantes, como por exemplo níveis sexualmente para homens?
o enforcamento, podem ser cate- No feminismo atual, “estupro
gorizados como feministas caso pago”, como as sobreviventes cha-
sejam produzidos por mulheres mam, passou a se chamar “pro-
ou incluam tipos de corpos di- fissional do sexo”, e esperam que
versos. Boa forma de se destruir mulheres abracem sua própria
o patriarcado… objetificação, encontrem empo-
Até a mercantilização de deramento em serem mercantili-
mulheres e garotas na indústria zadas e se submetam alegremente
mundial do sexo pode ser con- à sua própria subordinação. Per-
siderada feminista hoje em dia. gunte a si mesma, quem se bene-
Os que lucram com o mercado ficia dessa situação?
do sexo e os lobistas fazem um Em vez de questionar o
grande esforço para ressignificar direito concedido aos homens
a compra de corpos femininos de acessar livremente os corpos
por homens não como uma ati- femininos, encorajá-los a consi-
tude de exploração e abuso, mas derar sua participação no siste-
como um exercício da liberdade ma patriarcal ou apenas refletir

31
sobre os privilégios e benefícios Está na hora de virarmos
que eles aproveitam enquanto radicais. Está na hora de olharmos
homens no topo da hierarquia de a obra de Catherine MacKinnon e
gênero, essa versão açucarada de seu conceito de “feminismo não-
feminismo não desafia nada. Ela -modificado”. O movimento de
não exige nada dos homens. Na libertação das mulheres é o úni-
verdade, ela deixou os homens co lugar que é nosso, o lugar em
tão confortáveis que alguns se que podemos centrar os interes-
sentem no direito de ensinar mu- ses das mulheres, e devemos ser
lheres sobre feminismo quando corajosas e não nos deixar aba-
elas não concordam com uma lar quando desafiamos o direito
forma de feminismo* que privile- masculino de acesso aos corpos
gia o orgasmo masculino sobre os femininos. Se os homens estão
direitos básicos das mulheres. gostando do nosso feminismo, e
Mulheres que falam sobre se ele está causando ereções por
a natureza exploratória da indús- aí, então tem algo errado. Como
tria do sexo encontram frequen- disse Andrea Dworkin, “Eu sou
temente oposição dos homens, uma feminista radical. Não do
particularmente daqueles que tipo legal”.
consomem sexo e têm um vasto * Não é feminismo.
interesse em manter mulheres e
garotas disponíveis sexualmente.
Esses homens ficam subitamente
tão preocupados com o feminis-
mo, preocupados em defender os
direitos das mulheres de escolher
a prostituição (são tão heroicos).
Como nós ousamos tentar tirar o
direito de “escolha” das mulheres
de servi-los sexualmente? Se você
não consegue ver o absurdo da
situação, imagine a mesma dis-
cussão sendo feita sobre um dono
de escravos lutando pelo direito
de seus escravos escolherem pela
escravidão.

32
O que sua mãe tem a ver
com o feminismo?
SE A SUA LUTA NÃO AFETA A VIDA DELA, MELHOR
REPENSAR O QUE ESTÁ FAZENDO
Por: Aline Rossi (http://medium.com/feminismo-com-classe)
Pode ser que sua mãe seja bem religiosa, como a minha, reprodu-
zindo os piores jargões conservadores de pessoas que não pensariam duas
vezes antes de tirar todos os nossos direitos. Pode ser que sua mãe seja
uma mulher mais “moderna”: divorciada, microempreendedora e que
sustenta a casa sozinha. E ainda assim não fala um pio sobre feminismo.
Então, o que sua mãe tem a ver com o seu feminismo?
Há uns bons anos atrás, ainda em Cuiabá (MT), minha cidade
natal, eu me arrumava ansiosa para me juntar à Marcha das Vadias — a
única marcha “feminista” que acontecia naquela cidade. Minha mãe es-
tava em casa, como sempre, tratando do almoço e já se preparando para
lavar a louça, passando a vassoura, limpando as mãos no pano de prato
com versículo bíblico…
Minha mãe sabia que eu ia à Marcha das Vadias. E ela não se im-
portava nem um pouco. Eu ir pra rua dizer que sou vadia, como se fosse
um prêmio, fazia um total de zero diferença na vida dela. Imagina que
louco seria se minha mãe resolvesse virar para meu pai e dizer que ela sim
era “vadia”? Santa revolução, Batman!
Eu percebi que o feminismo das “vadias”, da “revolução sexual”,
do grito “se o corpo é da mulher, ela dá pra quem quiser” não era um
feminismo que libertava.
Esse era um feminismo que servia para jovens universitárias que-
rendo viver uma sexualidade menos reprimida, mas que não chegava a
qualquer mulher em situação vulnerável de pobreza ou às mães — nossas,
delas ou àquelas da mesma idade que tínhamos, que já eram mães e nem
sequer tinham conseguido chegar à faculdade por este motivo.
33
Enquanto na faculdade de” para minha mãe, nem para a
o feminismo discutia várias for- sua, nem para minha vizinha que
mas abstratas de construir ou parou de jogar bola com a gente e
desconstruir uma suposta iden- roubar manga na vizinhança para
tidade de gênero, com termos ficar presa à maternidade com-
complexos e parágrafos enormes pulsória e ao trabalho doméstico
de textos que nem eu entendia di- no auge da sua adolescência.
reito — que dirá minha mãe —, Imagina falar para minha
minha mãe estava em casa traba- mãe “dar para quem quiser” e “ser
lhando, cozinhando, limpando 24 vadia” quando nem ela, nos idos
horas por dia, sozinha. Limpando dos anos 70, nem minha vizinha,
a sujeira de todos. Pensando se ia em pleno 2010, tinham acesso
ter dinheiro para fazer a compra a controle reprodutivo, aborto,
do mês, já que não teria aposen- parto com respeito, creche públi-
tadoria, em como conseguiria ca… Piada!
pagar a luz. Pensando em como Eu percebi que “dar para
limpar o dia inteiro lhe causava quem quiser” era a revolução
varizes e dores nas pernas… Era sexual dos homens, que teriam
isso que preocupava minha mãe, acesso livre à sexualidade das
na época com 50 anos. Mas era mulheres. Afinal, sem controle
isso também que preocupava mi- reprodutivo e sem aborto, nós
nha vizinha da rua de baixo, que não controlamos realmente nos-
tinha apenas 16 anos, e já mãe de sos corpos e portanto não há ne-
3 filhos. nhuma “revolução sexual”. E sem
Por que elas se juntariam aborto e sem educação sexual, ser
a esse feminismo que não dialoga “vadia” só serve para consolidar
com suas vidas e nem faz senti- a imagem de mulher fomentada
do na sua rotina? Que não fala de pela indústria pornográfica —
suas questões e não resolve seus que, aliás, mata antes dos 40 anos
problemas? Elas não tinham tem- as mulheres que nela “trabalham”.
po para sentar na cadeira de uma Mulheres que são tachadas de
faculdade e pensar: “poxa, vou “vadia”, nada voluntariamente,
desconstruir minha identidade para o resto de suas vidas e além
de gênero”. de suas mortes.
Essa rotina opressiva nun- Por outro lado, não vou
ca foi uma questão de “identida- ser injusta com as mulheres que

34
estavam na Marcha: sei que abor- balhadores, nos desgastamos no
to também era uma pauta. O que trabalho diário, e nossa força de
a história do movimento feminis- trabalho só pode ser “renovada”
ta nos mostra, na verdade, é que ou “substituída” parindo-se outro
essas ideias de liberdade sexual ser humano. E quem é que tem
e aborto — sempre em conjunto capacidade para fazer isso? Meu
— sempre foram até bem aceitas, pai que não é.
mesmo entre homens. Porque Soa conspiracionista?
isso garante que homens tenham Pergunte às mulheres do movi-
acesso a nós sem ter de lidar com mento negro o que é a tão cele-
qualquer “problema” que o sexo brada miscigenação do Brasil,
heterossexual possa acarretar. esse povo “todo misturado”, se-
Aí pode ser que você me não o resultado do estupro siste-
pergunte: se é assim, por que ain- mático das mulheres negras pelos
da é proibido? Por que o aborto seus Senhores para aumentar seu
não é liberado irrestritamente? número de escravos. Mais força
Porque o aborto proibido de trabalho.
não é uma forma de controlar a Como dito acima, o abor-
sexualidade da mulher, mas sim to proibido não é um controle da
de regular a produção da força de sexualidade da mulher, mas sim é
trabalho. a regulação da produção de for-
É isso aí. Nós somos as ça de trabalho. Não fosse o caso,
parideiras da força de trabalho do o Estado não assumiria um papel
Capital. regulatório da natalidade quando
julgasse necessário. Não teríamos
Você diz vadia, assistido movimentos em diver-
eu digo trabalho reprodutivo sos países, como no Japão, EUA,
Peru, Índia, entre outros, de es-
Quando acontece um en- terilização forçada das mulheres.
velhecimento em larga escala da Não teríamos os países europeus
população e as mulheres param adotando fortes políticas de in-
de ter filhos, o Estado e o Capi- centivo ao aumento do número
tal se preocupam e começam suas de filhos por casal por conta dos
políticas de incentivo à imigra- baixos índices de natalidade. Não
ção, afinal… quem vai manter o teríamos, igualmente, propagan-
trabalho? Nós, humanos, os tra- das de incentivo à imigração em

35
países em crise de natalidade e ços públicos para lazer que sejam
envelhecimento alargado da po- apropriados para crianças e mães,
pulação, estimulando principal- o julgamento que as mães enfren-
mente a vinda de mão de obra tam nas ruas ao amamentar e a
qualificada. Por que eles se im- dificuldade de se locomover com
portariam em intervir? crianças no encalço), elas estão,
Se você é de esquerda ou basicamente, existindo como a
anda ao menos por círculos mar- linha de produção de força de
xistas, já terá ouvido como os trabalho para a sociedade e o
direitos das mulheres estiveram Capital.
mais avançados que nunca após
a Revolução Russa, que durou 6 E esse tal trabalho doméstico?
anos. Não tão curiosamente, tão
logo Stalin assumiu, revogou-se Eu entendo, para muita
o direito das mulheres ao abor- gente – principalmente quem é
to e dificultou-se grandemente o jovem e/ou não tem família sob
acesso ao divórcio. Um país que sua responsabilidade — pode
se reestruturava, após tantos anos parecer absurdo falar de “traba-
de guerra e fome, obviamente co- lho reprodutivo” e “trabalho
meçou a tomar as primeiras pro- doméstico não-remunerado”.
vidências ao perceber o déficit de Primeiro porque assumem pron-
mão de obra/força de trabalho. tamente que parir é algo perfeita-
Então, quando as nossas mente natural e não tem nada a
avós, a minha e a sua mãe, e ainda ver com economia ou política da
as mulheres da nossa geração que sociedade. Depois, porque acha-
estão presas no ciclo da pobreza, rão que as “obrigações de casa”,
parindo um filho após o outro, a.k.a. trabalho doméstico, são
são atadas ao trabalho domésti- responsabilidades de cada um e o
co em casa, lavando, passando e Estado ou o Capital não tem nada
cuidando de crianças, uma após a ver com isso. Certo?
a outra, tendo de abdicar da pró- Errou! Errou feio, errou
pria vida (porque se já é difícil rude!
ter vida social ativa com um fi- Em relação ao trabalho
lho, imagina com vários e inclua doméstico, para perceber porque
aqui a deficiência de vagas em isso é um caso tão sério para as
creches públicas, a falta de espa- mulheres — coisa que sua mãe

36
e a minha já sabem —, é preciso nível se estabelece a troca. E por
fazer uma comparação de como que eu estou falando disso?
a nossa economia opera hoje e Porque com a indus-
como era antes. Como girava trialização e o Capitalismo, esse
nossa economia e modo de pro- sistema muda. Nós paramos de
dução antes do Capitalismo e do produzir nossa mercadoria para
industrialismo? Vou tentar ser troca e passamos a vender nosso
bem sucinta, mas será teoria crua tempo e esforço (força de traba-
e dura, ok? lho) para o capitalista (o dono da
Antes, girávamos em tor- fábrica, por exemplo) para gerar
no do sistema de trocas de merca- mercadorias para ele. Ele nos
doria. Como era na base da troca, paga por um X tempo de traba-
só sabíamos quanto valia qual- lho, mas não participamos em
quer mercadoria em referência a nada do valor da mercadoria pro-
outra mercadoria pela qual seria duzida. Se você usa apenas 4h das
trocada (daí a ideia de valor, que é 8h de trabalho para produzir uma
valer). A mercadoria teria então o mercadoria, as outras 4h já são
valor de uso ou para que ela ser- horas a mais da qual o capitalista
ve (por exemplo, se a mercadoria se apropria do seu trabalho (exce-
fosse pão ou cereais, cujo valor de dente) e a mercadoria é o lucro do
uso é servir de alimento) e o va- seu trabalho que fica com ele, não
lor de troca, que não depende de contigo (mais-valia).
pra que serve, mas sim de quan- “O que o operário pro-
to vale em relação ao que se quer duz para si não é a seda que tece,
trocar (quantos pães valem um não é o ouro que extrai das mi-
saco de cereais?). E, nesse quesito, nas, não é o palácio que constrói.
as mercadorias só poderiam ser O que ele produz para si é o sa-
quantificadas por um critério que lário; e a seda, o ouro, o palácio,
tinham em comum: a quantidade reduzem-se para ele a uma certa
de tempo e esforço (trabalho hu- quantidade de meios de subsis-
mano/força de trabalho) investi- tência, talvez a uma camisola de
do na criação dessa mercadoria. algodão, a uns cobres, a um bar-
É, é uma coisa abstrata. raco na favela.” (MARX, Karl.
Mas a utilidade da mercadoria Trabalho assalariado e capital, 4.ª
que se pretende trocar/adquirir ed.. São Paulo: Global, 1987, p.
é algo bem concreto, então nesse 22)

37
Agora, vamos ligar isso ao posição, trabalhando de graça
trabalho doméstico pra amarrar a para manter a casa limpinha, as
questão. roupas do trabalhador lavadas, a
O problema aqui é que se comida feita e tomar os devidos
o capitalista paga a força de tra- cuidados, assegurando que ele
balho, colocando em preto no volte produtivo como se precisa
branco, paga para utilizar um ser no dia seguinte?
humano por X horas como quem Lembrem-se: as mulhe-
aluga um carro ou cavalo para res foram legalmente proibidas
utilizar um dia todo. Então ele de trabalhar de forma assalaria-
tem que garantir que essa força da por muito tempo. E isso não
de trabalho esteja apta a ser reuti- é o mesmo que dizer que nunca
lizada no dia seguinte. A explora- tenhamos trabalhado. Sempre
ção tem um limite claro: se a pes- trabalhamos: como escravas,
soa não está bem, não tem tempo como cuidadoras, como donas
de recobrar suas energias e des- de casa num serviço braçal to-
cansar, sua produção vai cair ab- talmente invisibilizado que,
surdamente e prejudicará o lucro. mesmo sem ser remunerado,
E, como falamos anteriormente, permitia gerar riqueza social.
essa força de trabalho não pode Permitia que o homem
ser substituída facilmente: ela só trabalhador, marido daquela mu-
pode ser renovada parindo-se lher que estava em casa limpando
outro ser humano (que precisa e assegurando o seu bem-estar
ser criado, precisa crescer e exige (coisa que devia ser responsabili-
cuidados até estar apto a produ- dade do Capitalista que contrata
zir). A linha de produção (alô, a força de trabalho), se manti-
mulheres!) de força de trabalho vesse produtivo e acumulasse di-
é geracional! nheiro em seu próprio nome — já
Mas é claro que o Capita- que mulheres até pouco tempo
lista não vai pagar massagem, ho- também não podiam receber he-
tel 5 estrelas e spa pro trabalhador rança, ter bens em seu nome ou
descansar e renovar suas forças. conta bancária.
Isso acabaria com o lucro da ex- Até hoje, o casamento
ploração. E para que ele se daria (apoiado na heterossexualidade
a esse trabalho se tem mulheres, compulsória) serve como insti-
metade da humanidade ali, à dis- tuição que assegura exatamente

38
isso: o trabalho doméstico não- tralmente, o feminismo não nas-
-remunerado das mulheres, a ce da teoria. A teoria feminista
produção de mais força de tra- nasce da prática. Muito antes de
balho e a acumulação de riqueza teorizarmos sobre nossas opres-
para os homens (afinal, proibidas sões — gênero, aborto, materni-
de tudo, você não vai ver muitas dade, estupro, escravatura —, nós
mulheres donas de meios de pro- já conhecíamos a opressão na re-
dução capitalistas, né, querida?). alidade, na materialidade, na nos-
Agora percebem a ques- sa vivência diária.
tão? Quando a mulher dá à luz, Minha mãe não conhece a
ela está gerando as novas forças de teoria, mas conhece muito bem a
trabalho do Capital. Quando ela realidade de estar presa à mater-
se desdobra no serviço doméstico nidade compulsória sem ter cre-
sozinha, acumulando hoje duplas che pública à disposição, sem ter
e triplas jornadas, ela está asse- licença maternidade, voltando ao
gurando o lucro do capitalista e trabalho um dia depois do parto,
o bem-estar do homem às suas fazer tripla jornada com os ser-
próprias custas, ao custo do seu viços domésticos, receber menos
próprio desgaste. Sem nenhuma por ser mulher e ter de amamen-
remuneração ou compensação. E tar quando podia. Ter de deixar
isto tem um nome: exploração. as filhas passando fome, apesar
de ter como alimentá-las, apesar
Então, o que fazer? de ela própria produzir o alimen-
to em seu corpo, porque tinha de
Se eu dissesse tudo isso fazer jornadas exaustivas como se
que escrevi acima para a mi- não tivesse filhos. Como se não
nha mãe (ou para a sua, talvez), houvesse diferenças entre ela e
ela provavelmente me mandaria um homem na hora de produzir,
“chupar prego”. Minha mãe não só na hora de receber o salário.
quer saber de teoria feminista, O direito à creche pública,
possivelmente nem a sua. Elas es- licença maternidade, intervalos
tão aterradas lidando com a pró- de amamentação, controle repro-
pria opressão diária no Patriarca- dutivo, jornada reduzida, salários
do e Capitalismo. iguais… tudo isso ela saberá te di-
Contudo, como a Cathe- zer como a sentença mais lógica.
rine McKinnon escreveu magis- Ela sabe que trabalho doméstico

39
é servidão. Como juntar 1+1. Só lheres” para serem subjugadas
não dirá isso com palavras acadê- — prostituição, trabalho domés-
micas e referências bibliográficas. tico não-remunerado, controle
Enquanto o feminismo da sobre os direitos reprodutivos
academia falar em “identidades (aborto, contraceptivos, plane-
de gênero”, “desconstruir gêne- jamento), direito à creche para
ros”, “espectro de gênero”, “traba- não estar presa à criação de filhos
lho sexual”, continuará sendo o sucessivos–, se o seu feminismo
feminismo da elite privilegiada. está aí dizendo pras mulheres
A elite que tem tempo de parar resolverem o problema assinan-
o que está fazendo na vida, sem do embaixo dos termos que o
pressa, para criar teorias abstra- Patriarcado concedeu para es-
tas sobre realidades violentas de tratificá-las, se o seu feminismo
quem não tem esse tempo so- está dizendo às mulheres que essa
brando para esperar o congresso realidade é uma identidade com
nacional de estudantes debater. a qual elas se conformam… está
Se o seu feminismo abs- na hora de voltar a aprender com
trai sobre as maiores violências a sua e a minha mãe, voltar às ra-
que as mulheres sofrem apenas ízes e abandonar o academicismo
por terem nascido com vagina liberal que te afasta da prática.
e capacidade reprodutiva e, por Seu feminismo não che-
isso mesmo, terem sido impositi- ga na sua mãe. Pense seriamente
vamente classificadas como “mu- nisso.

40
este zine é o resultado do
trabalho de várias mulheres.

Qualquer pessoa está


apta a vendê-lo para
custear sua produção.
este zine não possui fins comerciais.

Cada material presente neste zine


pertence à sua respectiva autora.

é proibido modificar este


material sem autorização prévia.
não retire os créditos.

é livre a redistriuição deste material.

2018 © Cachalote publicações

Você também pode gostar