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A CITAÇÃO E A AURA LITERÁRIA: EXEMPLIFICAÇÃO DE UMA

PROBLEMÁTICA PÓS-MODERNA.

CARLOS MACHADO
UNIVERSIDADE DO MINHO

1. As novas funções da intertextualidade.


Como se sabe, “a intertextualidade desempenha uma função complexa e
contraditória nos processos de homeostase e de mudança do sistema semiótico literário.
Por um lado, a intertextualidade representa a força, a autoridade e o prestígio da
memória do sistema, da tradição literária: imita-se o texto modelar, cita-se o texto
canónico, reitera-se o permanente, cultua-se, em suma, a beleza e a sabedoria sub specie
aeternitatis ou, pelo menos, sub specie continuitatis. Por outro lado, porém, a
intertextualidade pode funcionar como um meio de desqualificar, de contestar e destruir
a tradição literária, o código literário vigente: a citação pode ser pejorativa e ter
propósitos caricaturais; sob o signo da ironia e do burlesco, a paródia contradita, muitas
vezes desprestigia e lacera, tanto formal como semanticamente, um texto relevante
numa comunidade literária, procurando por conseguinte corroer ou ridicularizar o
código literário subjacente a esse texto, bem como os códigos culturais correlatos, e
intentando assim modificar o alfabeto, o código e a dinâmica do sistema literário”
(Aguiar e Silva, 19846: 632).
O que pretendemos demonstrar é que se assiste, de forma recorrente, na
literatura contemporânea portuguesa – e muito especialmente na poesia –, à exploração
das potencialidades da primeira função referida da intertextualidadei. Com efeito, a
salvaguarda da aura do objecto artístico é intentada pela intertextualidade com as obras
de figuras ilustres da “literatura mundial”, entendendo-se esta como “o grande tesouro
dos clássicos, tais como Homero, Dante, Cervantes, Shakespeare e Goethe, cuja fama se
espraiou por todo o mundo e tem durado um tempo considerável” (Wellek e Warren,
19763: 57; sublinhados nossos). Wellek e Warren fundam implicitamente o prestígio das
obras clássicas na sua aura, na acepção benjaminina do termo, pois “«a manifestação
única de uma lonjura, por mais próxima que esteja» mais não representa do que a
formulação do valor de culto da obra de arte, em categorias da percepção espacial e

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temporal. Lonjura é o oposto de proximidade. A lonjura essencial é a inacessível. De
facto, a inacessibilidade é uma qualidade primordial da imagem de culto. Pela sua
própria natureza, mantém-se «longe, por mais próxima que esteja». A proximidade
propiciada pela sua matéria não afecta a lonjura que mantém depois da sua
manifestação” (Benjamin, s/d: 82; itálicos nossos).
Concebida nesta era alegadamente pós-histórica (cf. Danto, 1995), a literatura
contemporânea ressente-se das consequências das vanguardas históricas para o pós-
modernismo: assiste-se nela à “universalização do princípio da montagem, onde se
afirma a contemporaneidade de todos os elementos da tradição inteiramente
disponibilizados” (Diogo, 1993: 52). Veja-se, a esse título, a enorme importância
concedida, quer nos textos literários, quer nos paratextos consubstanciados
especialmente nas entrevistas concedidas pelos nossos escritores de maior sucesso, às
obras e autores estrangeiros, facto que comprova a “evidente falsidade da ideia de uma
literatura nacional contida em si própria” (Wellek e Warren, 19763: 58). Este
fechamento das literaturas nacionais é impossível na nossa aldeia global, à escala
planetária, sobretudo nesta era de massificação da cultura. Não se pode apregoar a
existência de um “campo literário planetário unificado” (Santerres-Sarkany, 1990: 69-
72), dadas as diferenças culturais entre os vários povos que ainda se fazem sentir nestas
eras de globalização, mas as condições de implementação deste processo estão
constituídas, tornando-se “extensivo a todo o planeta, onde a multiplicação das trocas
multilaterais e a rapidez das comunicações tendem a inverter as relações culturais” (id.,
op. cit.: 70).
Uma parte substancial dos nossos poetas actuais procura assegurar à sua obra um
lugar na galeria dos clássicos, isto é, tenta continuar uma tradição que lhe é anterior e
que lamenta ver-se perdida. Esta atitude pós-moderna decorre do facto de “que los
productores culturales no tengan ya otro lugar al que volverse que no sea el pasado: la
imitación de estilos caducos, el discurso de todas las máscaras y voces almacenadas en
el museo imaginario de una cultura hoy global” (Jameson, 1984: 44). A
intertextualidade assume uma importância primordial já que “constituye un rasgo
deliberado y programado del efecto estético, y que opera una nueva connotación de
«antigüedad» y de profundidad pseudohistórica en la cual la historia de los estilos
estéticos se sitúa en el lugar que corresponde a la historia «real». (id., op. cit.: 50).

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Aparentemente, vivemos já, do ponto de vista artístico, numa era que é o somatório de
todos os tempos e de todos os lugares.

2. O intertexto e a pós-modernidade.
A dinâmica da modernidade artística e das vanguardas, rumo à exaustão de
temas e formas, pela sua busca incessante de novidade, dissolveu paradoxalmente o
próprio conceito de novo. O seu esgotamento é hoje manifesto e verifica-se no uso
contraditório do prefixo “neo-” em termos como “neomaneirismo”, “neoformalismo”,
“neovanguardismo”, etc…ii O que se apresenta como novo pelo uso do prefixo mais não
é do que a repetição actual de tendências do passado. Este factor é indissociável da
consciência historicista contemporânea, que acarreta o desvanecimento da noção de
originalidade. Os escritores, actualmente, “can only repeat, copy and/or plagiarize what
has already been written in the previous centuries” (Sartiliot, s/d: 13). O conceito de
criação literária, que presume um trabalho realizado por um génio individual ex nihilo, é
substituído pelo de produção e/ou re-criação. “Toute l’écriture est collage et glose,
citation et commentaire” pois “écrire, car ce n’est que récrire, ne diffère pas de citer”
(Compagnon, 1979: 32 e 34)iii. A iterabilidade de temas, formas e estilos equipara-se à
dos signos linguísticos (Derrida,1972b): a sua repetição é sempre différante (Derrida,
1972a)iv.
A atitude tomada face a esta repetição pode ser muito diversa. O autor citante
pode, por um lado, omitir conscientemente a referência ao texto e/ou autor citado (o que
o faria incorrer no crime de plágio, punível pelo regime jurídico que superintende à
definição dos direitos de autor), ou declarar inequivocamente a fonte do texto. Neste
caso, tanto se pode afirmar o respeito pela obra/autor citados, como, pelo contrário,
proceder à sua paródia, com propósitos burlescos ou satíricosv.
A complexidade e diversidade das posturas adoptadas face à prática da citação
não é passível de uma sintetização total pelo recurso único aos termos maniqueístas
anteriormente expostos. O autor não se encontra entre Cila e Caríbdis e os rumos a
seguir são múltiplos. O meio termo relativamente às duas atitudes anteriormente
descritas poderá ser aquele que será traduzido não pelo termo de citação, mas sim pelo
de referência. Esta atitude não é, contudo, a mais frequente pois parece não se confiar
muito na formação cultural do público leitor, nesta era de massicultura televisiva,

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denunciando explicitamente as relações textuais estabelecidas, que se tornam declaradas
e óbvias, mesmo para o leitor mais desatentovi. Este, desde o início do processo de
leitura, é confrontado com uma opção incontornável: ou ler os textos enquanto mónadas
invioláveis (se existirem e forem passíveis de ser conhecidas), enquanto totalidade
fechada (na medida do possível) e autónoma; ou lê-los na sua qualidade de obras
abertas, ao proceder a inferências textuais (Eco, 1979: 126-130) possibilitadas desde
logo pela denúncia das relações intertextuais voluntariamente estabelecidas, através da
prática da citação. A função desta, pelo seu valor e importância, merece um tratamento
diferenciado.

3. A citação literária e a sua função.


A citação funciona como um operador fundamental da intertextualidade que, ao
fazer apelo à competência de leitura e à enciclopédia do leitor, vai provar que “what is
reproduced trought repetition can never be identical to itself” (Sartiliot, s/d: 30). Isto
sucede, segundo Claudette Sartiliot, porque a citação se rege pelo mesmo princípio dos
signos linguísticos: a sua iterabilidade faz que “any mark can be taken out of its context,
where it starts other chains of signification” (Sartiliot, s/d: 30). “Le sens d’une citation
est infini” (Compagnon, 1979: 61) já que esta “is part of the cycle of eternal return,
eternal recycling of the old to create the new” (Sartiliot, s/d: 28). O texto deixa de ser
concebido como fechado, autónomo, pois “o pós-modernista está convencido de […]
que cada novo texto é escrito sobre um texto anterior” (Fokkema, 1983: 71). Todo o
texto se afirma como palimpsesto, com as consequências díspares que isso acarretavii.
O recurso à citação, “qui a la fonction d’un principe de régulation de l’écriture”
(Compagnon, 1979: 370), é uma forma de apropriação do discurso do outro, com o qual
passa a haver identificação. Esta identificação, pelo facto de se citar obra alheia e de se
torná-la différante (Derrida, 1972a), vem pôr em causa a noção de autoria textual pelo
aniquilar do acto inaugural de escrita, isto é, do derridiano événement (Derrida, 1972b),
que faz de qualquer discurso a propriedade de uma Limited Inc., isto é, em termos
jurídicos, de uma Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada (Cf. Derrida,
1990)viii.
A citação de textos (con)sagrados torna-se um meio de auto(con)sagração, pois
“la citation est en quelque sorte une survivance, ou une sécularisation du mythos dans le
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logos - de la pensée mythique dans la pensée rationnelle” (Compagnon, 1979: 133). O
texto sobrevaloriza-se pela criação de uma origem mítica, que funciona como garantia
de qualidade literária, e opera-se um processo de “canonização metonímica” (id., op.
cit.: 29-31), cuja raiz radica no simulacro de uma origem aurática. O valor de culto do
texto citante adquire-se pela sua concordância com a noção benjaminiana de aura: o que
está perto - a obra recente, isto é, o texto citante - torna-se a manifestação de uma
lonjura, pois está imbuída do espírito das obras canonizadas e sagradas, distantes no
espaço e no tempo.

4. Da pertinência de uma aura literária.


Cabe aqui fazer um reparo relativamente à existência de uma aura literária.
Américo Diogo afirma que “recuperar a aura parece ser, para a literatura, recuperar o
que nela não é verdadeiramente característico do seu material” (Diogo, 1993: 60).
Quando Walter Benjamin concebeu a sua tese, não pensava em termos de literatura, mas
sim em termos de artes que, pela possibilidade da sua reprodução mecânica, na primeira
metade deste século, iriam sofrer grandes transformações. O caso da arte literária seria
completamente distinto, já que nele a reprodução mecânica é condição de existência.
Não é por acaso que o objecto conhecido como literatura só se concebeu após o
alargamento do público leitor possibilitado pela invenção da imprensa. Américo Diogo,
reflectindo neste problema, aplica a distinção goodmaniana entre artes autográficas e
artes alográficas e considera só nas primeiras ser legítimo falar de aura, propriamente
dita (Diogo, 1993: 60). As artes autográficas, assinadas, pelo seu carácter único,
singular e original, assegurariam a sua aura e tornar-se-iam objecto de culto. Esta noção
de aura advém, como se sabe, da combinação pouco ortodoxa de uma visão materialista
dialéctica da existência com as premissas metafísicas de uma vivência judaica muito sui
generis de Benjaminix. A obra aurática, definindo-se pelo seu valor de culto, e não de
exposição, não excluiria, contudo, toda a obra literária, pois, como o afirma Walter
Benjamin, a propósito da poesia de Baudelaire, «mesmo as palavras podem ter a sua
aura» (1955: 76), a dificuldade reside na criação desta experiência de índole visionária e
metafísica (id., ibid.)x.
Américo Diogo, na obra citada anteriormente, não põe de parte a hipótese de se
recuperar a aura em literatura, afirmando, contudo, que esta tentativa, dadas as

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características do material literário, “só pode ser, portanto, um processo inventivo, mais
ou menos conseguido, mais ou menos falho” (Diogo, 1993: 60). Os processos por si
analisados dizem respeito quer a uma presença aurática do escritor no mercadoxi, quer à
exploração poética de análogos cinemáticos. Ora, em nosso entender, o uso dado à
citação que nos propomos trabalhar respeita mais fidedignamente aquilo que de mais
aproveitável a tese de Benjamin temxii. Considerando a oposição goodmaniana (que
Benjamin não conheceu em sede teórica), a aura literária é conseguida através do
mesmo processo que define as artes autográficas: pela assinatura, garantia da origem, da
originalidade e do carácter singular da obra cultuada. O problema é que à assinatura não
pode corresponder, hoje, o valor de outrora. A sua desvalorização está directamente
associada ao trabalho desconstrucionista de Derrida (1972b). Este filósofo francês
explica bem como, por detrás de cada assinatura, se esconde essa vontade de poder de
raíz metafísica, simulada pelo carácter pseudo-inaugural do acontecimento. A tal ponto
que Derrida, num feito ironicamente heróico, com a dose de humor que se lhe conhece,
não escapa à tentação de falsificar, no final do ensaio, a sua própria assinatura. A
ligação que a assinatura estabeleceria com a fonte de enunciação não se produz, porque,
“pour que le rattachement à la source se produise, il faut donc que soit retenue la
singularité absolue d’un événement de signature et d’une forme de signature: la
reproductibilité pure d’un événement pur” (Derrida, 1990: 49). A rigorosa pureza deste
acontecimento é uma ilusão ao mesmo nível, provavelmente, da ilusão aurática, com
tudo o que implica de velado, obscuro, puro e desconhecido, isto é, de metafísico.
A importância de que se reveste a citação teria sido já percebida por Benjamin,
na leitura que dele faz Rainer Rochlitz. Como este último afirma, “devant
l’impossibilité d’atteindre la doctrine, la philosophie véritable, au sens où l’entend
Benjamin, est condamnée à s’exercer dans l’«essai ésotérique», «propédeutique qu’il est
permis de désigner par le terme scolastique de traité». Faute de detenir une vérité
doctrinale, son seul élément d’autorité est la citation, par laquelle l’auteur renvoie à une
parole dont le statut est plus définitif que la sienne” (Rochlitz, 1992: 48-49)xiii.
Através da citação, cada autor cria um texto à semelhança de um museu. Cada
peça é recontextualizada e posse momentânea de quem aí entrar. Coloca-se, é certo, a
questão do roubo e do desrespeito da autoria, não deixando, contudo, paradoxalmente,
os clássicos de ser respeitados e devotamente louvadosxiv. A situação é a mesma descrita

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no universo ficcional de Arsène Lupin em A Agulha Oca: as obras falsificadas tornam-
se objecto de culto e não se distinguem das originais a não ser por uma segunda
assinatura no verso, da autoria do gentleman cambrioleur que o autor citante se torna.
Nesta galeria dos clássicos cabe tudo: desde os mortos mais canonizados até ao próprio
texto citante, que, qual museu de arte contemporânea (Serralves, no Porto; Gugenheim
de Bilbao, ou outro, os exemplos abundam...), é uma obra de arte contendo outras. A
manifestação de uma lonjura, se bem que perto, faz-se em relação aos clássicos da
literatura, com os quais se forja a identificação. Para isso, muito contribui o (ab)uso da
citação.

5. Do fim infinito da literatura.


A citação, que obriga ao conhecimento da memória do sistema literário, isto é, ao
entendimento das suas transformações diacrónicas e diatópicas, é a pedra basilar de uma
lógica de consagração assente numa consciência historicista, que restitui à problemática
esfera artística contemporânea a sua perdida margem de autonomia. Daí a importância
fundamental de que se reveste hoje. “La citation devient une nouvelle forme
d’affirmation artistique […] Notre culture toute entière a adopté la stratégie
d’affirmation par citation. Le style choisi, comme le masque d’un acteur, dissimule
celui qui parle et rappelle quelqu’un qui a parlé avec plus d’autorité et une plus grande
maîtrise du langage. […] La création originale a été remplacée par l’imitation et la
multiplication, non seulement dans les arts visuels mais partout où la beauté et la
signification sont encore en jeu. […] Assez bizarrement, c’est précisément
l’anachronisme de la poésie et des Beaux-Arts qui leur donne aujourd’hui leur fonction
la plus importante. L’historicisme de l’art contemporain n’est pas un simple accident; il
s’inscrit dans une structure générale de comportement culturel” (Belting, 1983: 68-69).
A restauração da margem de autonomia estética perdida é obtida pela exploração dos
anacronismos através das citações, processo que releva de uma lógica historicista de
busca das raízes. Ao se optar por autores e obras inseridas incontestavelmente numa
tradição artística, pretende-se restituir essa mesma tradição e, simultaneamente, forjar
um lugar nelaxv. Em termos artísticos, isto traduz a atitude conservadora de não querer
ver o fim da história da arte, caindo-se, por vezes, no mais profundo paradoxo pós-

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modernista: o recuperar de uma tradição no modernismo e, especialmente, nas
vanguardas. Com efeito, “la búsqueda de la tradición, combinada con un intento de
recuperación, parece más importante para el postmodernismo que la innovación y la
ruptura” (Huyssen, 1981: 152). O equívoco reside no facto de se procurar o regresso a
um modernismo “que fundamentalmente y por principio despreciaba y negaba todas las
tradiciones” (id., ibid.). Este equívoco pode ser consciente ou inconsciente, dada a
multiplicidade de posições assumidas perante o exercício da citação.
Perante tão variados caminhos que se oferecem contemporaneamente à arte e à
literatura, não querendo postular apocalipticamente que, hoje, «anything goes», nem por
outro lado, defender que ainda há lugar para um «pós-modernismo de resistência» (cf.
Huyssen: 1986), pensamos, apesar de tudo, que a literatura pode ser uma Fénix
eternamente renascida e, do brilho do seu passado, poderá surgir uma renovação do seu
futuro. As estratégias da intertextualidade poderão ser as asas para esse novo voo,
embora angustiadas, porque carregadas com a influência de todo o passado. A aura que
as envolve não será, contudo, a de um querubim ingénuo, mas sim a do anjo da História
de Klee, arrastado de costas para o futuro, apreciando os destroços do passado.

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i
Para o efeito, socorrer-nos-emos dos exemplos poéticos que entendemos mais adequados para a
explicação da problemática por nós colocada. O corpus textual sobre o qual incidiremos não pretende,
contudo, formar um grupo coeso, orgânico, obedecendo à mesma matriz estética, que permitisse, a partir
do mesmo, definir as orientações gerais de uma nova corrente literária (nem que seja a corrente de todas
as correntes, o pós-modernismo), mas sim – e unicamente – ilustrar com exemplos práticos aquilo que
será exposto do ponto de vista teórico: algumas das novas funções da intertextualidade e, muito
concretamente, da citação, na literatura contemporânea.
ii
Veja-se o caso emblemático da poesia de Graça Moura, classificada como neo-maneirista por Fernando
Pinto do Amaral (in Moura, 1996: 7-11) e herdeira, na visão de Cândido Martins, de toda uma tradição
anterior que, no entanto, não impede a sua singularidade, pois é paradoxalmente «singularizada por
alguns cativantes traços temático-compositivos: dotada de uma expressão irreverentemente irónica e
parodística; indissociável de um inteligente e cativante jogo intertextual, de herança barroca, neoclássica
(Tolentino, por ex.) ou contemporânea (O’Neill); estruturada por um cativante sentido de proporção e de
medida, de matriz clássica; desencadeadora da divertida surpresa pela recriação de uma tópica
classicizante; perpassada por uma contida melancolia neo-maneirista; seduzida reiteradamente pelo
diálogo inter-artístico com a pintura, a música ou a fotografia; dominada pela omnipresença tutelar do
estro de Camões» (Martins, s/d).
iii
Este sentimento revela-se angustiante, por exemplo, em Manuel António Pina, levando-o a escrever:
«Já não é possível dizer mais nada
mas também não é possível ficar calado.
Eis o verdadeiro rosto do poema.
Assim seja feito: a mais e a menos» (Pina, 1992: 18).
iv
Esta différance pode, contudo, ser mínima e traduzir-se numa simples mudança de registo, que não
deixa de retirar valor à tradição, tal como se pode depreender da poesia de Vasco Graça Moura, intitulada
«Píramo e tisbe», que funciona, no seu conjunto, como uma arte poética. Limitemo-nos, no entanto, a
citar o execrto em que o sujeito poético reflecte sobre a tarefa citacional e a procura de estabelecimento
de laços intertextuais:
«houve, noutros, amor mais hesitante

e eu fiz do caso apenas ironia


para falar de píramo e de tisbe
noutro registo, tal como faria

outro qualquer que sofonisbe


tratando a violência da paixão
que se ia resolvendo por um triz, be-

bido nos textos clássicos.» (2000: 44)


v
Os exemplos da variablidade destas atitudes são inúmeros. Convém, portanto, sistematizá-los. Quanto à
confissão ou não da influência exercida sobre um texto e/ou autor anterior sobre um poeta, daremos o
exemplo de Gastão Cruz. Com efeito, este poeta tanto opta por uma como pela outra das atitudes
referidas, nomeadamente quanto à influência e ao fascínio exercidos pela poesia de Camilo Pessanha. No
caso do texto «À entrada» (1999: 322), a referência à fonte é explicitada e as citações são assinaladas pelo
uso de aspas e itálicos. Já no poema «Vagas» (1999: 213), os dois versos iniciais são expropriados pelo
poeta, constituindo o primeiro verso um caso típico de usurpação (que um leitor informado facilmente
descobrirá, pela canonização inequívoca do soneto «Imagens que passais pela retina». Saliente-se,
contudo, que o poeta, no diz respeito ao segundo, procede à deturpação da fonte, pela transformação da
frase em afirmativa. Esta deformação desrespeitosa “explica-se pela preocupação de escapar a um
procedimento puramente tautológico, durante o qual, ainda por cima, o texto pressuposto ameaçaria
ganhar corpo, fechar-se e suplantar, pela sua presença, o próprio contexto” (Jenny, 1979: 44). O “ novo
contexto procura, em geral, uma apropriação triunfante do texto pressuposto” (Jenny, 1979: 43). O triunfo
de um texto sobre o outro é dado pela sua novidade, o seu carácter original e único. “O olhar intertextual
é então um lugar crítico: é isso que o define” (Jenny, 1979: 10). Esta estratégia não é, portanto, inócua
(apesar de não ser também forçosamente desrespeitosa e desvalorizadora do peso da tradição) e surge

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também noutros poetas, nomeadamente em Graça Moura, quando fala, em «Píramo e tisbe», dos «erros
seus, má fortuna e amor ardente» (2000: 42; itálicos nossos). O caso mais original e inventivo que
encontramos de citação textual com função satírica e burlesca é, no entanto de Alexandre O’Neill, que
consegue criar um patchwork textual inusitado, com a sobreposição de dois fragmentos textuais de
autores diferentes: Sá de Miranda e Mário de Sá Carneiro (O’Neill, 2000: 351).
vi
Esta referência às fontes pode, no entanto, ser concretizada de várias formas diferentes. A mais comum
é a confissão, em notas introdutórias ou em textos posfaciais, por parte dos autores empíricos, dos textos e
autores a que recorreram (a título de exemplo, cf. Amaral, 2000: 19 e seg.s; Moura, 1996: 77-78; 91;
Moura, 2000: 181-185; 317;...), o que exige, na exegese textual, por parte do leitor, o apelo à sua
enciclopédia de forma a conseguir identificar em cada texto concreto a presença destas mesmas fontes.
Nalguns casos, esta estratégia é coadjuvada pela referência explícita em cada um dos poemas da
influência exercida (a título de exemplo, cf. Cruz, 1999: 219; 275;...).
vii
Para quem conceber a literatura como instituição, poder-se-á dizer que a angústia da influência (Bloom,
1973) se torna desta forma notória e dramática. Aos que abordam o fenómeno literário numa perspectiva
sistémica, diríamos que a noção de literatura enquanto sistema se reforça pelo apelo à sua memória. Para
todos aqueles que definem a inexistência de objecto literário qua literário, considerar-se-ia que se
procede, desta forma, à síntese aporética de uma pluralidade diversa e contraditória.
viii
Manuel António Pina tem plena consciência deste facto quando redige a irónica nota final da sua
primeira obra de poesia, que passamos a citar, pela sua importância:
«Os autores, que recorreram frequentemente à duvidosa técnica do collage,
assinalam a colaboração (citada e não citada) de Lewis Carroll, G. Appollinaire, Mallarmé, F.
Pessoa, M. Cesariny, Raul de Carvalho, Thomas Stearns Eliot, M. M. de Andrade, Alexandre
O’Neill, F. Lemos, E. Pound, The Beatles, A. de Quental, R. Rosselini, G. Vico, etc.» (Pina,
1992: 59)
A desierarquização dos objectos artísticos está aqui bem evidente, quando se põe ao mesmo nível
a colaboração de Antero de Quental, dos The Beatles e de G. Vico. Isto resulta da criação de um museu
literário imaginário que, no entender de André Malraux, “est une interrogation” (1965: 176) na medida
em que este “n’est pas un héritage de ferveurs disparues, c’est une assemblée d’oeuvres d’art - mais
comment ne voir dans ces oeuvres, que l’expression de la volonté d’art?” (id., ibid.: 260). A inteira
disponibilidade da tradição, compendiada num museu imaginário, levanta a questão do wesen da arte,
pela radical diversidade dos seus elementos integrantes. Manuel António Pina responde a esta questão de
uma forma significativa: a literatura seria o inominável, o indefinível, aquilo que, na sua poesia, é referido
de forma autoreflexiva como o «isto» ou o «isso» que ele próprio produz. A questão mais pungente que se
lhe coloca não será, afinal, a da identidade (ou falta dela) da literatura (e da arte), mas sim a da sua
própria identidade, diluída num universo textofânico onde os sujeitos se perdem, porque nem sequer
detentores do seu próprio discurso:
«Literatura que faço, me fazes.
(Ó palavras!) Mas eu onde estou ou quem?» (Pina, 1992: 29).
A despersonalização é evidente quando os discursos são, também eles, de todos e, afinal, de ninguém.
ix
Estes elementos aparentemente antagónicos são conciliados por este filósofo alemão de forma diferente
ao longo da sua obra, que conheceria três fases distintas (Cf. Rochlitz, 1992).
x
A abordagem da questão da existência de uma aura literária não pode omitir a influência ainda hoje
exercida pela utopia finissecular da criação de uma arte a funcionar em regime autotélico,
consubstanciada na defesa dos princípios da arte pela arte. Este esteticismo finissecular (Silvestre, 1991)
é a expressão de uma religião da arte que, ao criar a figura do poeta maldito, retoma o topos de origem
judaico-cristã da perseguição do profeta-vidente, que se distingue da massa convulsa pelo seu espírito
interior, tornando-se a figura aureolada, que deve ser cultuada. Este espírito interior é revelado numa
linguagem cifrada, que só um público restrito consegue entender, por remeter para visões do universo
reservadas a alguns eleitos. Não é de estranhar, por isso, que Walter Benjamin se refira a uma aura verbal
quando analisa os textos do precursor do simbolismo, Charles Baudelaire. O hermetismo do código criado
por este poeta, intraduzível em linguagem vulgar, é a fonte de uma aura que Vasco Graça Moura restaura
num seu poema, intitulado «Espaço interior», de que só citaremos a parte que nos interessa:
«quando
o poema as [coisas quotidianas] envolve
numa aura verbal
e se incorpora nelas,

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ou são elas a impor-lhe

a sua metafísica
e o espaço exterior
que povoam de
temporalidades eriçadas,
luzes cruas, sons ínfimos, poeiras» (Moura, 2000: 105).
xi
Estes podem hoje aproveitar, ao arrepio daquilo que Benjamin pensava, os meios de difusão
radiofónicos e televisivos disponíveis para a promoção da sua imagem.
xii
Não abordamos todos os polémicos aspectos políticos do ensaio de Benjamin, visto, por um lado, não
ser esse o nosso foco de atenção e, por outro, pela indubitável inadequação da lógica maniqueísta que
reduzia os elementos antinómicos a facções políticas contrárias. Quanto a nós, as preocupações histórico-
sociais coevas de Benjamin tornaram-se os aspectos mais datados e menos viáveis do seu ensaio.
xiii
Esta importância da citação tornar-se-ia mais visível nos estudos benjaminianos sobre Karl Kraus (Cf.
Rochlitz, 1992: 161-162).
xiv
Mais uma vez, é Manuel António Pina que realça esta faceta robin-hoodesca do escritor pós-moderno,
quando escreve:
“(Introduzir o caos na or-
dem poética dominante;)
A tomada do poder passa pelo roubo,
passa pela própria perdição e pela de tudo.” (1992: 69; itálicos nossos)
xv
Esta tentativa chega hoje a limites nunca antes imagináveis. Com efeito, esta procura de um estatuto de
igualdade constitui também um esforço no sentido da legitimação do capital cultural específico do sujeito
que pretende ser escritor, nesta era de alfabetização de massas, o que o obriga a demonstrar que domina
correctamente os instrumentos verbais da matéria poética. A glosa de poetas do passado assume-se,
portanto, como uma estratégia privilegiada. Em todo o caso, esta glosa é inusitada porque o culto da
tradição conduz à prática de simulacros da plena inserção nela, por exemplo, criando os poemas que
deveriam ter sido escritos (mas que o não chegaram a ser) pelas figuras cultuadas, que acabam, assim, por
ser substituídas pelo(s) autor(es) actual(is), que se coloca(m) ao seu nível. Assim, encontramos, entre
outros exemplos:
a) Carlos de Oliveira a recriar Camões (mais especificamente, o soneto «Que me quereis, perpétuas
saudades?»), tal como Aragon já o fizera, numa sequência de três poemas que coloca o poeta
mais recente ao mesmo nível dos seus predecessores (cf. Oliveira, 1992:145-147);
b) Fernando Pinto do Amaral a criar um «Apócrifo pessoano» (2000: 217);
c) Vasco Graça Moura a publicar um seu «Soneto de Dante Alighieri» (2000: 98) e de «Rilke: o
último poema» (2000: 146).

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