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Nosso passado terá um futuro?

Reflexões sobre a arqueologia


Our past will have a future? Reflections on archeology
Nuestro pasado tendrá futuro? Reflexiones sobre la arqueología
Arno Alvarez Kern*

Em nossa sociedade ocidental, nem


Resumo todos valorizam os estudos sobre o passado
O homem é uma extraordinária singulari- da humanidade. Muitas pessoas afirmam,
dade no mundo dos seres vivos ao se per- sem dúvida com algum exagero, não terem
guntar sobre as suas origens, ao construir
nenhum interesse em saber se existiram ho-
discursos míticos ou históricos sobre seu
mens antes de nós e considerarem seu estu-
passado e ao escavar o solo e encontrar os
do sempre uma perda de tempo. Afirmações
arquivos, que contêm os vestígios de seus
antecessores. Somos responsáveis por es- categóricas deixam claro, como se fossem
ses milhares de vestígios da cultura ma- verdades indubitáveis, que o papel da ciên-
terial, que nos abrem novas perspectivas cia deveria se restringir à solução dos pro-
através de seu estudo, em busca das res- blemas mais imediatos da sociedade atual,
postas que cada geração formula sobre o como o saneamento, a pobreza e o combate
seu passado e o da humanidade. O artigo às doenças. Ainda segundo essa lógica, o
evoca reflexões sobre a epistemologia e a patrimônio do passado, tanto natural como
função social da arqueologia, destacando
a relevância do estudo, a compreensão e *
Doutor em Arqueologia pela Ecole des Hautes Etu-
a proteção dos testemunhos documen- des en Sciences Sociales, França. Pesquisador do
tais, para garantir, assim, a sobrevivência CNPq. Membro da Sociedade Brasileira de Arqueo-
logia. Professor Titular aposentado da Universida-
do futuro de nosso passado, enquanto de Federal do Rio Grande do Sul e da Pontifícia
humanidade. Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Bra-
sil. E-mail: aakern40@gmail.com

Palavras-chave: Arqueologia. Ciência.


Recebido em 30/07/2016 - Aprovado em 18/12/2016
Função Social. História.
http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.17n.1.7234

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cultural, poderia ser destruído sem maiores cas da nossa sociedade desde Heródoto, que
problemas, para ceder lugar aos avanços usou o conceito de história, e Tucídides, o de
inexoráveis do futuro, seja lá o que esta pala- arqueologia em seus livros, nas cidades da
vra realmente signifique. Grécia antiga.
Entretanto, a realidade do passado não Em nossa sociedade ocidental, não são
deixa de existir porque alguns ignoram a sua apenas especialistas, como os historiadores
existência. Reconstruir uma realidade passa- e os arqueólogos, que se voltam para o pas-
da a partir dos raros indícios remanescentes sado da humanidade. Desde a Idade Média,
não é apenas um problema acadêmico ou o teólogos e sacerdotes referem-se a uma his-
objetivo da arqueologia e da história, mas um tória do sagrado, na qual examinam as ações
problema tão antigo como a humanidade. de homens considerados santos e, acima
Basta imaginarmos as dificuldades do caça- de tudo, tentam compreender os desígnios
dor pré-histórico que, à noite, já no acampa- insondáveis da providência e suas interfe-
mento e à luz da fogueira, tenta descrever, em rências na vida dos homens, nos quadros de
detalhes, as aventuras da caçada de mamutes uma Teologia da História. Desde o século
ocorrida durante o dia. Podemos igualmente XVIII, intelectuais voltados para a Filosofia
imaginar Heródoto e Tucídides, os primeiros da História, como Voltaire, Hegel, Spengler
historiadores gregos, tentando descrever as e Toynbee, elaboraram detalhadas e comple-
façanhas épicas das guerras mundiais de sua xas interpretações que julgaram adequadas
época, envolvendo os helenos contra os per- para explicar o panorama global da história
sas ou os atenienses contra os espartanos. da humanidade.
Podemos nos dar conta igualmente das Diariamente, jornalistas escrevem na
dificuldades dos detetives de nossa época, mídia textos que se apresentam como uma
tentando desvendar um assassinato, tam- crônica da atualidade, fazendo referências
bém ocorrido no passado; como descobrir a à multiplicidade de acontecimentos da his-
identidade da vítima e imaginar o que real- tória do tempo presente, mas, só eventu-
mente aconteceu a partir dos raros indícios almente, fazendo referências também aos
encontrados na cena do crime; como desco- acontecimentos do tempo passado. Eles ten-
brir o criminoso a partir das impressões di- tam organizar esses fatos diversos em suas
gitais no cabo da faca abandonada no solo e páginas sobre política, economia, cultura,
de outras evidências encontradas: uma caixa esporte e crônica social e policial. Nem sem-
de fósforos, um tíquete de ônibus, algumas pre estão preocupados em explicar o pro-
pegadas no solo. cesso global da história da humanidade ou
O número de pessoas que se interessa em dar um sentido ao conjunto das informa-
pelo passado da humanidade é muito gran- ções. Mas, sem dúvida, estão entre aqueles
de em nossa sociedade ocidental, na Europa que reconhecem a importância da compre-
e na América. Ele é muito maior do que em ensão de nosso passado.
outras sociedades atuais. Afirma-se mesmo Paleontólogos, palinólogos e geomor-
que esse interesse seja uma das característi- fólogos escrevem também páginas sobre

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a história natural, ou seja, sobre o passado A arqueologia tem atualmente um pú-
da natureza em nosso planeta. Descrevem, blico cada vez mais interessado. Ele pode
em seus textos, as transformações por que ser visto tanto nas exposições arqueológicas
passaram a fauna, a flora e o relevo. Dessa de museus, como diante das grandes telas
história emergem mundos inesperados: pai- do cinema, para acompanhar novos filmes
sagens exóticas e seres estranhos, muito di- de Indiana Jones ou Lara Croft, ou frente
ferentes dos que podemos observar hoje em às pequenas telas da televisão, para seguir
dia. Apresentam aos nossos olhares, admi- atentamente as séries nas quais pretensos
rados, relevos, floras e faunas, que parecem arqueólogos de chapéu de couro descobrem
saídas de obras de ficção científica. Essas a “verdade”, desvendam os “mistérios” e
diversas visões do passado da natureza, in- apresentam-nos as “relíquias” escondidas do
cluindo aquele da humanidade fóssil (homo passado. O motivo que atrai esse público é a
habilis, homo erectus, homo de neanderthal, súbita exposição de um passado oculto e, até
etc.), não são as mesmas dos historiadores e então, ignorado, que se desvela subitamente
dos arqueólogos. no presente, aparentemente tangível e com-
preensível, diante de seus olhos curiosos.
Juntamente com o historiador, o arqueó-
Ciências de qual tempo?
logo se situa na vanguarda dos que produzem
Já se afirmou algumas vezes que a ar- conhecimento científico sobre o nosso passa-
queologia e a história são ciências do pas- do, ou seja, sobre aquele vivido pelos homens
sado, o que não é verdade, por diversas ao longo do tempo. Ambos buscam interpre-
razões. Em primeiro lugar, não o é por ser tar os vestígios deixados pelas sociedades do
uma afirmação ampla em demasia. Essas ci- passado, identificando os traços da passagem
ências não trabalham visando o passado do dos homens que nos precederam. Procuram
universo, nem o das espécies animais nem entender as suas ações e reações face ao meio
o de nosso planeta. O seu interesse somente ambiente, as relações que os diversos grupos
desperta quando começa a surgir a espécie humanos tiveram uns com os outros as suas
humana, organizada em sociedade e pro- heranças culturais e as transformações por
duzindo cultura. Não vemos arqueólogos e que passaram ao longo do tempo.
historiadores fazerem referências à história Estas duas ciências divergem, entretan-
do sistema solar, ao Big bang e à expansão to, pelas abordagens desses vestígios, adap-
do universo, muito menos à era dos dinos- tada cada uma delas às características essen-
sauros ou aos fenômenos relacionados a ciais de cada tipo de fonte. Quase sempre,
um provável aquecimento global. Para um os arqueólogos estão às voltas com a cultura
arqueólogo, as atividades vulcânicas em material, enquanto os documentos escritos
Santorini ou do Vesúvio só passam a ter in- atraem os historiadores. Para o arqueólogo,
teresse se relacionadas à morte dos morado- o passado é, antes de tudo, matéria: obje-
res dos sítios arqueológicos de Akrotiri, de to, monumento, templo, túmulo, esqueleto
Herculano e de Pompéia. humano, mas também fossa culinária, pe-

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gada, pólen. Para o historiador, o passado Trata-se, portanto, de buscar, de com-
é, inicialmente, uma informação verbal de preender e de proteger os testemunhos do-
um testemunho oral que ele pode escutar e cumentais que sobreviveram e, assim, de
compreender. É também uma inscrição em garantir a sobrevivência do futuro de nosso
pedra, um manuscrito ou um impresso em passado enquanto humanidade.
uma língua cujo código lhe é compreensível. As duas disciplinas se constituíram
Ou seja, no conjunto de suas atividades de com empréstimos recíprocos desde Tucídi-
investigação, ambos estão interessados em des, que afirmou ser a arqueologia o conhe-
todo e qualquer traço ou evidência do ser cimento do passado arcaico de uma socie-
humano que possa identificar e ajudar a re- dade, enquanto a história, o conhecimento
constituir um passado. Criaram-se, assim, as dos eventos mais recentes, uma história do
ciências humanas voltadas para os homens tempo presente.
organizados em sociedades ao longo do tem- Quem de nós já não imaginou ser ar-
po, visando preservar esse patrimônio cultu- queólogo ao acompanhar as aventuras,
ral passado, compreendê-lo e explicá-lo. quase sempre inverossímeis, de alguns he-
Para interpretar corretamente as so- róis de filmes recentes, como, por exemplo,
ciedades dotadas de escrita, as ciências da as ações dinâmicas de Indiana Jones ou de
arqueologia e da história convergem, cons- Lara Croft? Considerado, pelo público, o ar-
tantemente, em relações multidisciplina- queólogo ideal, Indiana Jones é um sedutor,
res. Elas divergem, entretanto, quando os com uma loira ou uma morena na garupa
testemunhos escritos são raros ou pouco de seu cavalo, e um cavaleiro do bem. Antes
confiáveis, como na proto-história. Elas se de tudo, prefere improvisar, e não o vemos
separam quase integralmente nos estudos seguir métodos arqueológicos tradicionais.
da pré-história, quando a arqueologia se en- Nunca recusa uma boa briga com seu chico-
contra sozinha, por serem ágrafos os grupos te de couro trançado, mas, ao mesmo tempo,
humanos desse período. é um intelectual culto, capaz de fazer cita-
Sem a arqueologia, seria impossível a ções de obras raras. Veste uma velha jaqueta
reconstrução intelectual das sociedades da de couro e usa sempre um chapéu de feltro,
pré-história. Seria impossível igualmente ter ambos cor de terra, para disfarçar a poeira.
acesso às informações daquelas sociedades Raramente tem tempo de tomar banho, de
cujos documentos escritos não conseguimos fazer a barba e de trocar de roupa entre uma
ainda decifrar, como a escrita hieroglífica, aventura e outra. Raramente dá as aulas,
denominada de Linear A, da civilização cre- pelas quais é pago pela universidade. Seus
tense. Seria praticamente impossível tam- alunos correm atrás dele em busca das notas
bém conhecer muito sobre sociedades cujos do curso, obrigando-o a fugir pela janela de
documentos escritos são raros e com poucas seu gabinete de trabalho e a imediatamente
informações úteis, tais como os documentos envolver-se em uma nova aventura. Nunca
micênicos em grego arcaico (Linear B). o vemos produzindo um artigo ou um livro
para publicar, nem mesmo analisando seus

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achados no laboratório de arqueologia. Ele é de homens quase sempre malfeitores, ela
um aventureiro, um explorador e um arque- guarda uma distância fria e firme dos que
ólogo de campo. De maneira muito pragmá- são representantes do mal e não evita se
tica, para ele, a arqueologia é apenas uma aliar aos que estão do lado do bem.
vez referida em todos os filmes. Ela é assim Essas representações nos lembram de
definida na aula que dá na universidade: “A que cinema é divertimento. Os seus produ-
arqueologia é a busca de fatos e não da ver- tores consagram essa impressão, quando o
dade” (INDIANA JONES, 1989), apontando velho Sr. Jones se volta para seu filho India-
que as descobertas arqueológicas restam na e diz, categoricamente: “Isto não é arque-
para sempre, mesmo que as interpretações ologia, é uma luta contra o mal” (INDIANA
sobre elas possam variar. JONES, 1989).
A maioria dos arqueólogos, entretan- Empolga-nos, nesses filmes, a fascina-
to, reluta em se deixar reconhecer por essa ção da descoberta e o prazer de colecionar
representação de Indiana Jones. Poderíamos o objeto raro e único, aquele que ninguém
perguntar se as arqueólogas se reconhecem pode possuir. Indiana Jones busca a Arca da
na belíssima e aristocrática representação de Aliança e Lara Croft, a Caixa de Pandora,
Lara Croft. Ela se caracteriza por seu cabelo transformando os estudos da cultura mate-
sempre e impecavelmente penteado, mesmo rial da arqueologia na busca de objetos ricos
quando em luta contra malévolos bandidos. em significado simbólico, mas com poucas
Suas roupas sob medida, coladas ao corpo, possibilidades de serem encontrados na
evidenciam o corte e o estilo de um grande vida real. Sabemos, há muito, que o estudo
costureiro. Sua aparência é sempre a melhor do passado não se resume à caça de tesouros
possível, sem indicar, na sua pele, as mordi- excepcionais. Duvidamos também que a ar-
das de mosquitos ou as queimaduras do sol, queologia seja apenas uma contínua guerra
provocadas pela vida ao ar livre. Seu prepa- contra quadrilhas de malfeitores ou contra
ro físico invejável é o de um atleta olímpico. soldados inimigos. Nessas aventuras, entre-
Nem bússola, nem pá, nem espátulas, nem tanto, nunca existe um tempo para a aplica-
sacos ou etiquetas: suas moderníssimas e in- ção dos métodos da ciência nem se podem
separáveis pistolas na cintura parecem ser o ver referências às reflexões teóricas em bus-
único equipamento necessário para as suas ca de um sentido, na reconstituição do nos-
aventuras arqueológicas. Em seu castelo, so passado. A aventura arqueológica não é
na Inglaterra, a sua equipe de arqueologia uma última cruzada contra o mal. Entretan-
se resume a um mordomo e a um técnico to, a realidade é que muitos estudantes se
em informática, ambos muito competentes. voltaram para a arqueologia devido a esses
Nunca a vemos solicitar verbas para a ati- filmes, os preferidos também entre muitos
vidade de campo nem produzindo um rela- arqueólogos. Somos obrigados a reconhecer
tório de suas pesquisas. Ela é também uma que esses filmes fizeram muito pela difusão
aventureira e uma arqueóloga de campo. De e pela valorização da arqueologia.
maneira muito pragmática, em um mundo

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Sem dúvida, a exploração do passado quando utiliza os dados da geologia e da
parece ser muito apaixonante para algumas paleontologia, para as reconstituições das
pessoas. A arqueologia dá asas à imagina- paleopaisagens, ou os métodos de datação
ção ao se referir a cidades perdidas, tesouros da física, para organizar as suas cronologias,
descobertos, escavações em lugares exóticos. baseadas no Carbono 14.
Nem todas as pessoas interessadas termi- O homem é uma extraordinária sin-
nam por se transformar em arqueólogos ou gularidade no mundo dos seres vivos ao se
em historiadores, mas muitos irão aumen- perguntar sobre as suas origens, ao cons-
tar o número dos participantes do turismo truir discursos míticos ou históricos sobre
arqueológico mundial e visitarão os sítios seu passado e ao escavar o solo e encontrar
arqueológicos mais célebres, de Pompéia a os arquivos, que contêm os vestígios de seus
Machu Picchu, de Cnossos a Stonehenge. antecessores. Somos responsáveis por esses
Sabemos atualmente muito bem que milhares de vestígios da cultura material,
buscar tesouros fantásticos em oásis perdi- que nos abrem novas perspectivas através
dos no deserto, fugir de múmias alucinadas de seu estudo, em busca das respostas que
e assassinas, procurar extraterrestres ultra cada geração formula sobre o seu passado e
desenvolvidos tecnologicamente ou reunir o da humanidade.
coleções de objetos raríssimos e extravagan- Como nós a concebemos hoje, a arque-
tes (como crâneos de cristal translúcido, por ologia tem uma função social extremamente
exemplo) não resume o que é a arqueologia. importante. Todas as sociedades se interro-
Essas visões, muito simplificadoras e um pou- gam sobre as suas origens e buscam respos-
co preguiçosas do cinema e da televisão sobre tas. Na ausência de evidências científicas,
a arqueologia, tantas vezes apresentadas e re- elas criam mitos de origem e lendas sobre
apresentadas pela mídia, iludem-nos e levam- heróis e heroínas que explicam o passado
-nos à redução de uma ciência à sua caricatura. longínquo. Muitas dessas sociedades termi-
nam por encontrar os vestígios materiais,
produzidos por gerações já desaparecidas,
O que tem no passado?
e reconhecem, nestes vestígios materiais, as
Por que nos preocuparmos com o pas- evidências do passado que procuravam.
sado da humanidade, se ele está fora de Nós conhecemos a arqueologia essen-
nosso alcance e nada poderemos fazer para cialmente através de alguns dos seus con-
modificá-lo? Não se trata de uma perda de ceitos básicos, desconhecidos do homem
tempo, uma vez que as pessoas a que diz comum: estruturas de combustão, tecnoti-
respeito estão mortas? pologia, decapagens em grandes superfícies,
Longe de ser uma aventura ou um arqueometria, quadrículas, cadeias operató-
divertimento de final de semana, a arqueo- rias, etc. São palavras de um tipo muito es-
logia se situa entre as ciências humanas, ao pecial, utilizadas para descrever e explicar
lado da história e da antropologia. Ela tam- o que fazemos nos sítios arqueológicos. São
bém se aproxima das ciências da natureza, conceitos fundamentais para relatar os pro-

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cedimentos adotados no tratamento dos ves- Isso ocorreu exatamente no mesmo
tígios encontrados. Não são, pois, verdadei- contexto histórico em que Heródoto e Tu-
ramente os fenômenos que se produziram cídides ofereceram a Clio uma situação de
no passado. Essas palavras são organizadas destaque invulgar. Devido à qualidade de
em textos que tentam, com maior ou menor seus trabalhos, conferem à Clio uma posi-
sucesso, ser uma representação discursiva ção de pioneira, uma data de nascimento na
do passado. Além disso, elas são muitas ve- polis grega e um lugar de supremacia entre
zes polissêmicas e podem significar coisas as demais ciências humanas, que começarão
diferentes para cada um de nós. a surgir somente mais tarde. Eles lançaram
É o caso da própria palavra arqueologia as bases de uma nova metodologia e de uma
que se refere tanto a realidades das socieda- abordagem original do passado. Para Heró-
des do passado, como ao conhecimento que doto, na ausência de arquivos documentais,
tentamos produzir hoje sobre esse passado. É valia a primazia do testemunho pessoal: o
formada por dois vocábulos gregos: archaios ver e o ouvir dizer. Não apenas o testemu-
(antigo, relacionado às origens) e logos (dis- nho oral de um informante, mas também o
curso). Na Grécia, a arqueologia foi, antes de testemunho (histor) do próprio historiador,
tudo, um discurso sobre as origens de uma como participante engajado, eram legítimos.
sociedade, uma história da antiguidade. Ela Tucídides reproduz essa metodologia de
nasceu entre os gregos, mais explicitamente maneira mais objetiva ainda, fazendo os mi-
na obra de Tucídides, na qual a Arqueolo- tos desaparecerem na sua história da Guerra
gia é uma introdução histórica à Guerra do do Peloponeso, ao descrever a Grécia como
Peloponeso, entre Atenas e Esparta. Nessa uma terra deserta de deuses, habitada por
introdução, explicam-se as origens das po- homens. Estes são apresentados como os
pulações envolvidas e as razões históricas do únicos responsáveis pelos fatos descritos. Na
conflito. Ignorado pelos romanos e esquecido ausência de arquivos documentais escritos
na Idade Média, o termo se difundiu entre as sobre o passado remoto, Tucídides se refere
línguas europeias apenas no Renascimento. à arqueologia quando escreve sobre as ori-
Para muitos gregos, os mitos eram as gens da sociedade grega, mostrando como é
suas verdades, enquanto, para outros, as possível produzir informações sobre a histó-
verdades eram as da sua história. Quando o ria do passado com a análise dos elementos
homem se transformou em medida de todas materiais da cultura. Ele é o pioneiro nesse
as coisas, os mitos perderam seu lugar para tipo de abordagem e, graças a ele, Clio é a
a história. Na sociedade grega, entretanto, musa da história e também da arqueologia.
essa transformação foi lenta e progressiva: o
mito e a musa Clio coexistiram à produção
Ciência da arqueologia
do conhecimento da história e da arqueolo-
gia. A própria crença na musa Clio parece Ao estudarmos as práticas e as refle-
evidenciar essa pluralidade de verdades ou xões que deram vida e coerência à pesquisa
de crenças. sobre o passado humano, nós nos voltamos

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também para o estudo epistemológico da ci- cas diferentes. Mas todos deverão ter um
ência arqueológica. Em primeiro lugar, pre- objetivo em comum: fazer a melhor arque-
cisamos saber como ela chegou a ser o que ologia possível.
é atualmente. Em segundo lugar, devemos Os estudantes em processo de forma-
compreender o que a arqueologia é nos dias ção universitária apresentam muitas dificul-
de hoje. dades em se localizar nos embates travados
A produção do conhecimento sobre o pelos arqueólogos, seus futuros pares, ao
passado não é uma atividade natural, mas longo do processo de construção da disci-
uma prática social apreendida em uma for- plina. Evitam, muitas vezes, tomar posição
mação profissional específica, situada em face aos debates epistemológicos, surgidos
um contexto histórico, transformando-se ao em cada uma das mudanças de orientação.
longo do tempo. Neste início de século XXI, Nem sempre se sentem capazes de uma pos-
a arqueologia pode se vangloriar de ter ad- tura mais reflexiva sem assumir posiciona-
quirido certa autonomia universitária. Os mentos ideológicos simplistas. Muitas vezes
arqueólogos que se voltam para a pesquisa têm uma tendência a cair na total incompre-
acadêmica organizaram a sua formação pro- ensão, fugindo da leitura dos textos teóricos
fissional nos bacharelados, nos mestrados e e abandonando-se aos dados empíricos das
nos doutorados. Realizam inúmeras reuni- práticas, obtidos em campo ou nos arquivos
ões científicas, sobretudo congressos inter- documentais, sua única certeza.
nacionais e nacionais, bem como seminários Deveríamos ser sempre capazes de ver,
temáticos. Elaboraram os seus manuais téc- na produção sobre o passado e na atividade
nicos e divulgam a sua produção intelectual dos arqueólogos, o resultado de uma ativi-
em numerosas publicações: revistas e livros dade profissional incessante. O seu mérito
científicos. A comunidade dos arqueólogos não é apenas conhecer e reconstituir o pas-
conseguiu também o seu lugar entre as de- sado de sua própria ciência, mas também a
mais ciências humanas e naturais nas agên- produção intelectual do melhor conhecimen-
cias de fomento à pesquisa, como os conse- to possível sobre as sociedades humanas de
lhos nacionais e as fundações estaduais. todos os tempos e de todos os lugares.
Sabemos que se posicionar criticamen- Muitas são as questões epistemológi-
te sobre as práticas e as reflexões dos arque- cas fundamentais que surgem ao longo de
ólogos, dos historiadores e dos antropólogos um estudo que se propõe a refletir sobre o
não é atividade natural, mas aprendida em nosso passado e sobre aqueles que o prati-
uma formação profissional, quase sempre cam, os arqueólogos. Ao contrário de muitas
em instituições superiores de ensino. Um outras sociedades, a nossa apela para Clio,
arqueólogo formado na Europa (Alemanha, ou seja, para os arqueólogos e os historia-
França ou Inglaterra) não terá necessaria- dores, em busca de explicações sobre o pro-
mente a mesma formação que outro forma- cesso histórico. Serão construções mentais
do na América (Estados Unidos ou Brasil), de nossa sociedade ocidental, já que grande
por serem contextos e, provavelmente, épo- parte das sociedades conhecidas se contenta

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com as explicações míticas e lendárias? A ar- como consequência, plural. Como temos
queologia apenas escava sítios e estuda, em sempre que nos referir à pluralidade das
laboratório, as coleções de cultura material ciências (exatas, da terra, biológicas, huma-
obtidas? Ou também se preocupa com os as- nas, etc.), trata-se de estudar, em cada caso,
pectos simbólicos da cultura? Os arqueólo- uma ciência em particular. Devemos saber
gos elaboram teorias de curto, de médio ou compreender a história de cada uma delas,
de longo alcance? Será a arqueologia a pro- seus princípios fundamentais, seus territó-
dução de uma descrição (sem muitas expli- rios específicos, seus objetivos, suas escolas,
cações), como os relatórios que a maioria das seus paradigmas, seus fundamentos lógicos,
pesquisas atuais de arqueologia de contrato seus debates internos, suas mudanças de
propõe? Quem é o arqueólogo ideal: Lara rumo e o perfil dos seus especialistas. Trata-
Croft ou Indiana Jones? Quantas arqueolo- -se de compreender cada uma das ciências
gias existem? A arqueologia seria a soma em cada época de sua constituição, pois to-
de todas as arqueologias possíveis? Teriam das as ciências se encontram em construção,
essas perguntas múltiplas respostas? Existe algumas delas, desde suas origens no mun-
ainda outra pergunta, de maior importância do antigo, outras, desde os séculos XIX e XX.
e anterior as já referidas: o que pretendemos A epistemologia das ciências é um es-
ao estudar as práticas e as reflexões da ar- tudo recente. Atualmente todas as ciências
queologia? são estudadas do ponto de vista epistemo-
lógico: a física, a química, a matemática, a
biologia, a economia, a sociologia, a história,
Epistemologia
a antropologia, etc. Estuda-se, sobretudo,
Ao buscarmos respostas a essas e a a construção histórica de cada uma das ci-
outras possíveis questões, visamos uma dis- ências sob uma dupla perspectiva: por um
cussão sobre o que se convencionou deno- lado, as representações mentais e as ideias
minar de epistemologia da ciência. O termo dos cientistas nas suas tentativas de explicar
epistemologia tem sua origem do grego: o planeta, a natureza e as sociedades huma-
epistême (ciência, conhecimento) e logos (dis- nas; por outro lado, os contextos históricos
curso, estudo). Esse conceito é polissêmico, e as instituições sociais que possibilitaram a
ou seja, pode ter sentidos um pouco diferen- emergência das ciências desde as origens até
tes. Pode ser interpretado como teoria do co- nossos dias.
nhecimento de um modo geral, englobando O processo de estruturação e de deses-
o estudo de todos os modos de conhecimen- truturação das ciências, das suas crises e de
to. Outro sentido, mais restrito, refere-se à suas alterações de paradigmas, desenrola-se
filosofia das ciências. Trata-se do estudo de ao longo do tempo. Estudar cada uma das
um tipo específico de conhecimento, que ciências significa reviver a sua trajetória, os
é o científico. Esse conhecimento deve ser obstáculos e as rupturas que terminaram
estudado de maneira ampla, pois o conhe- por favorecer a emergência de novos para-
cimento científico é muito diversificado e, digmas e mudanças de rumo, o que alguns

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denominam de revolução científica. Neste pleno devir que podemos buscar os debates
longo e agitado processo, ocorre a articula- dos arqueólogos sobre as suas práticas e as
ção e a rearticulação dos conceitos chaves de suas reflexões teóricas, ou seja, reconstituir
maneira coerente. as certezas, as hesitações e as dúvidas dos
O especialista em epistemologia das arqueólogos ao longo do tempo. A longa
ciências Karl Popper tentou definir as condi- caminhada de uma ciência nos coloca face
ções de um procedimento científico rigoro- a face com os limites do seu inacabamento,
so. Para ele, é o critério de falseabilidade ou, enquanto simples crônica de realidades do
melhor, de refutabilidade que assegura à ci- passado e possibilidades de trajetória, até se
ência sua capacidade de submeter suas hipó- tornar, no mundo contemporâneo, uma das
teses à sua refutação. Popper é o responsável ciências, especificamente, uma das ciências
por desvelar outro aspecto das ciências: o de humanas ou sociais.
que as teorias científicas são sempre uma
teia de hipóteses mais ou menos válidas,
A autocrítica
mas sempre passíveis de serem refutadas.
Para ele, a ciência possui, no seu variado e Ao questionarmos a arqueologia que
complexo campo de atuação, verdades pro- se produz recentemente, não pretendemos
visórias e postulados nunca demonstráveis, defender um novo modelo que poderá subs-
como, por exemplo, a concepção do que tituir os anteriores. Trata-se de acompanhar
ocorre com duas paralelas no infinito, um criticamente os debates e os embates da dis-
fenômeno que ninguém jamais viu, em um cussão científica da construção da ciência ao
lugar no qual ninguém jamais esteve. Ou- longo de uma perspectiva histórica.
tro especialista em epistemologia é Thomas A epistemologia da arqueologia con-
S. Kuhn. Ele afirmou que, em cada época, a siste, portanto, em interrogá-la, a fim de
ciência se apoia em paradigmas (concepções propor novos dados, de aumentar sua ca-
dominantes) que são derrubados quando pacidade de explicitação e de sugestão. Por
ocorre uma mudança de gerações por revo- exemplo, um dos problemas epistemológi-
luções científicas. Para o autor, a ciência não cos da arqueologia coloca não só a questão
evolui de maneira contínua, mas aos saltos. da relação entre o arqueólogo e seu tema,
Em cada época, constata-se efetivamente a mas também da relação entre o arqueólogo e
existência de um modelo dominante ou de seu tempo. Qualquer resposta a essas ques-
um paradigma. tões seria incompleta sem levar em conta o
Ao estudarmos uma ciência, ao longo arqueólogo, a arqueologia e a sociedade.
do tempo, como a arqueologia, temos que Dois aspectos importantes devem ser
levar em conta que, desde as origens até a destacados, para que se possa compreender
atualidade, estamos diante de uma ciência esse tipo de discussão. Em primeiro lugar,
em construção. Ou seja, estamos tratando a análise dos caminhos seguidos por uma
de um objeto de estudo cujo inacabamento é ciência é tema comum na teoria do conhe-
essencial. É no seio de uma arqueologia em cimento. Se a teoria do conhecimento levou,

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durante muito tempo, os filósofos da ciên- mente confirmáveis, pois as populações do
cia a realizar análises sobre os métodos e os passado não podem mais ser estudadas di-
tipos organizacionais dos conhecimentos, retamente, devemos ter consciência de que o
atualmente, são os arqueólogos que reali- pessimismo pode ser superado. Poderemos
zam a crítica de sua própria investigação. sempre criticar racionalmente nossas teorias
Essa é uma forma salutar de autocrítica que e, continuamente, aprimorá-las, distinguin-
deve ser contínua e sistemática. Em segundo do-as de teorias piores.
lugar, há um reconhecimento, geralmente Para muitos arqueólogos, a sua ciência
aceito, da necessidade que temos de aprimo- continuará a se desenvolver no futuro, por-
rar os nossos instrumentos de pesquisa. Para que é a única disciplina capaz de estudar 99
a busca do conhecimento sobre o passado por cento de toda a história da humanidade.
das populações que compõem a humanida- Apenas a arqueologia pode nos informar so-
de ao longo deste imenso processo histórico bre o surgimento de conquistas culturais de
e nos múltiplos espaços e paleopaisagens grande importância para as origens e para
deste planeta, nós necessitamos de inúme- o desenvolvimento da humanidade: as ori-
ros e, muitas vezes, sofisticados instrumen- gens da agricultura e da arte, da tecnologia
tos (KERN, 1996, p. 7-22). e da urbanização, das sociedades complexas
O discurso científico de uma arqueolo- e da escrita: “Se nós quisermos saber para
gia teoricamente orientada não será jamais onde estamos indo, necessitamos reconsti-
a mesma linguagem dos homens do passa- tuir a nossa trajetória, para vermos de onde
do. Haverá uma substancial diferença entre viemos. Eis porque a arqueologia é tão im-
os sistemas de análise empregados hoje e os portante” (BAHN, 1996, p. 98).
sistemas de signos dos homens do passado. Um historiador inglês afirmou recente-
Assim, será impossível confundir a teoria mente que:
atual com a realidade do passado. Deve-
Muitos de nós consideram ser este o nosso
mos igualmente nos limitar a uma melhor trabalho, isto é, virar as costas para onde
explicitação das demonstrações e de nossas quer que estejamos indo e focalizar a nossa
interpretações, sem almejar a transformação atenção, de qualquer ponto vantajoso em
do nosso discurso teórico em uma formula- que nos acharmos, para onde estivemos.
Percebemos formas através da névoa e
ção matemática, como o de muitas ciências da bruma, podemos especular sobre seu
da natureza, pois perderíamos de vista esse significado e, algumas vezes, podemos
conjunto complexo e multiforme das socie- concordar sobre o que elas são (GADDIS,
dades humanas. 2003, p. 15-17).
Ao tomarmos conhecimento das nos-
As atuais gerações têm a responsabili-
sas limitações para a reconstituição do pas-
dade de evitar a destruição dos arquivos do
sado, devemos evitar cair no niilismo. Mes-
solo e a obrigação de estudar esses vestígios
mo partindo de uma concepção socrática, de
arqueológicos, garantindo, assim, o futuro
que sabemos muito bem que nada sabemos,
do nosso passado.
e de que nossas reflexões nunca serão direta-

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As ciências se definem pelas regras de características que delimitam os territórios
seus discursos específicos, como os especia- onde atuam os arqueólogos. Paul Courbin
listas em epistemologia sabem nitidamente. afirma que o problema não é apenas tentar
Elas não são estáticas e, muito menos, um definir a arqueologia pelo seu conteúdo,
conjunto de conhecimento fixo e imutável: mas também identificar aquilo que a distin-
gue das demais ciências naquilo que só os
Talvez nunca seja demasiado recordar que
– ao contrário das doutrinas – a ciência não arqueólogos são capazes de fazer (COUR-
é um corpo de conclusões fixas e indubitá- BIN, 1982).
veis, mas sim um somatório de resultados
não definitivos de um contínuo proces-
so de investigação, no qual está sempre A arqueologia
presente um método intelectual de crítica
(KERN, 1982, p. 65). Uma ciência se distingue das demais
pela maneira de visar seus objetos. Não se
As ciências são construídas, pouco a
trata de um método único, pois cada ciência
pouco, pelas diversas gerações de pesqui-
tem diversos métodos para atingir seus ob-
sadores. Por isso mesmo todas têm uma
jetivos. A arqueologia é uma comprovação
história, e cada mudança de sentido ou de
disso pela multiplicidade de métodos que
orientação está relacionada aos seus pró-
emprega. Existem diversos métodos cientí-
prios progressos metodológicos e à discus-
ficos criados e utilizados pelos arqueólogos.
são teórica entre seus pares, bem como aos
Outros são apropriados pelas relações inter-
contextos históricos de cada época: “Supor
disciplinares com as ciências da natureza e
e afirmar que há uma ‘verdade’ absoluta,
as ciências sociais. Entretanto, existe somente
intangível e eterna, não pertence à ordem
uma visão propriamente científica caracterís-
do discurso científico” (DEMOULE, 2005, p.
tica da arqueologia. Essa ciência nos apresen-
187). Ciência em construção e reconstrução
ta uma visão própria da realidade a partir de
constante, a arqueologia não foge a essa ten-
seu estudo do passado através da análise da
dência geral de todas as ciências.
cultura material (GRANGER, 1994, p. 45-48).
Mortimer Wheeler, um dos maiores ar-
A arqueologia não é um estudo dire-
queólogos ingleses de nossa época, lembrou,
to de uma sociedade no passado, como já
certa vez, que as definições não esclarecem
se afirmou, mas um estudo indireto sobre
necessariamente, mas que a investigação
os grupos humanos do passado a partir dos
científica se desenvolve em função da dú-
vestígios que sobreviveram ao tempo, estes
vida sistemática, pois apenas a ignorância
sim analisados diretamente. Ela busca des-
julga possuir todas as respostas1. Torna-se
crever e explicar as evidências materiais en-
necessário recordar que o pesquisador des-
contradas nos sítios arqueológicos, para po-
confia também de quem tem sempre as mes-
dermos compreender melhor nossas origens
mas respostas para todas as questões, inclu-
e nossa herança cultural. No caso dos sítios
sive para as que ainda nem foram pensadas.
pré-históricos, a inexistência de documentos
Entretanto, podemos refletir sobre algumas
escritos faz com que esse objetivo seja alcan-

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çado tão somente pelos vestígios da cultura passível de uma discussão epistemológica
material. Quando se trata de sítios históri- entre os pesquisadores de seu campo do sa-
cos, entretanto, sempre que possível, o ar- ber. Como todas as ciências, continuamente
queólogo confronta as evidências da cultura em construção, nem sempre a arqueologia
material com as fontes primárias escritas. pode fazer afirmações taxativas e definitivas
A história e a arqueologia são, muitas como gostaríamos. Entretanto, suas afirma-
vezes, vistas de uma maneira muito român- ções e conclusões são sempre obtidas por
tica, como uma paixão pelo passado ou como um número muito grande de evidências,
uma viagem no tempo. Como toda a viagem que permite a validação de suas interpreta-
no tempo, essas duas ciências têm seus traje- ções. Por um lado, artefatos arqueológicos
tos, seus perigos, suas escalas e seus portos. paleolíticos podem nos evidenciar as origens
Entretanto, quanto mais essa paixão parecer remotas da humanidade ao serem datados
romântica, mais ela correrá o risco de perder com mais de dois milhões de anos de idade.
sua substância. Ao se voltar para si mesma, Artefatos similares podem nos provar o iní-
em um processo de dessecação, a ciência cio do povoamento das paisagens da Améri-
pode parecer, tão somente, um passatempo ca Meridional Platina, com datações de onze
fútil (SCHNAPP, 2005). Nós sabemos que as mil anos atrás, no final da última glaciação.
ciências têm uma função social importante. Por outro lado, arqueólogos podem estar es-
A arqueologia e a história somente serão re- cavando estabelecimentos industriais na In-
conhecidas socialmente se produzirem um glaterra do século XIX e os solos dos centros
conhecimento válido para a sociedade. históricos de nossas cidades, em pleno sécu-
As pesquisas arqueológicas sobre o nos- lo XXI. Esses extremos cronológicos podem
so passado não podem ser vistas de maneira nos fazer compreender melhor uma história
inconsequente ou como um conhecimento de longa duração que a arqueologia nos evi-
inútil. Os mitos de criação, elaborados cui- dencia a partir da cultura material.
dadosamente por quase todas as sociedades Trata-se de reconstituir, a partir dos es-
conhecidas, evidenciam-nos como a huma- tudos sobre a cultura material remanescente
nidade tem demonstrado uma necessidade do passado,
fundamental de se voltar para suas origens
[...] as venturas e as desventuras pelas
e de deixar explícita a sua identidade étnica, quais passou a espécie humana, as trans-
baseada em uma herança cultural específica. formações orgânicas evolutivas ocorridas,
O saber arqueológico, construído cien- os progressos técnico-econômicos desen-
tificamente, somente é válido se atender aos volvidos, as diversas formas de organiza-
ção sociopolíticas criadas, as manifestações
critérios de validação da ciência, que são: artísticas e religiosas imaginadas, e as lon-
tornar explícitos os caminhos pelos quais foi gas migrações realizadas cheias de riscos e
obtido e as condições nas quais pode ser re- aventuras (KERN, 1994, p. 7).
produzido. Esse conhecimento é necessaria-
Tempo curto ou tempo longo, olhar
mente público e produzido de maneira com-
vertical da diacronia ou olhar horizontal da
petente (GRANGER, 1994). Ele será sempre
sincronia, a arqueologia projeta múltiplas

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visões possíveis sobre o passado. Nas últi- nada recente a afirmação de Walter Taylor
mas décadas, a ampliação do debate sobre a de que “a Arqueologia não é nem História,
importância desse tipo de arqueologia e de nem Antropologia” (TAYLOR, 1948. p. 44).
suas importantes relações com a ciência his- Mas, por ser ainda em grande parte desco-
tórica foi claramente referido pelos historia- nhecida, a afirmação é desafiadora ao afir-
dores franceses (SCHNAPP, 1976, 1990; PE- mar que sem ser nem História, nem Antro-
SEZ, 1990). Trata-se de um reconhecimento pologia, a arqueologia seria mais uma das
não só da multiplicidade do olhar do arque- ciências humanas. Para alguns historiadores
ólogo sobre a complexidade da aventura e antropólogos, ela seria uma ciência auxi-
humana, como também da nova consciência liar, enquanto, para outros pesquisadores,
que temos da obrigação de seguir todas as entre eles os arqueólogos, ela seria uma ci-
pistas para a reconstituição do passado. ência autônoma. Talvez seja a diversidade
A arqueologia não é uma disciplina dos campos de pesquisa que termina por
nova, mas segue sempre em um desenvol- obscurecer a definição de arqueologia, pois
vimento constante, buscando suas marcas, os arqueólogos escavam desde cavernas
as fronteiras de seu território de pesquisa, pré-históricas e barcos naufragados a cen-
compreendendo ser necessário abrir seus tros históricos das cidades atuais. Para Jean-
horizontes, o mais possível. Uma das carac- -Marie Pesez, talvez se pudesse concordar
terísticas mais marcantes da atual pesquisa que a arqueologia tem como objetivo o co-
arqueológica é a ampliação de seus territó- nhecimento do passado dos homens a par-
rios, de seus campos de atuação. Esse fato tir dos vestígios materiais que produziram,
pode ser especialmente observado nos cam- consumiram e abandonaram.
pos da arqueologia realizados entre nós. Essa afirmação não explicaria, entre-
A arqueologia é, sem dúvida, uma ci- tanto, as relações com as outras ciências
ência que atualmente se encontra em plena que estudam o passado do homem nem a
construção, com as inevitáveis dificuldades situação de ciência independente. Segundo
de ordem teórica e metodológica das ciên- este arqueólogo, o conceito de arqueologia
cias sociais, em especial da antropologia implica a noção de ciência independente por
e da história. Paul Courbin nos recordou, ter seu domínio particular e seus métodos
certa vez, que: “os europeus se interessam próprios. É claro que nenhuma definição é
antes de tudo à História, e os americanos, plenamente satisfatória, pois precisa satis-
sobretudo, à Antropologia” (COURBIN, fazer tanto ao arqueólogo que encontra bi-
1982, p. 208). Historiadores e antropólogos bliotecas de tabuinhas cuneiformes nos tells
afirmaram, até os anos 1960, que a arqueo- do Oriente Próximo, como ao que recolhe
logia era uma mera técnica auxiliar de suas milhares de inscrições paleográficas em cas-
disciplinas. Entretanto, é exatamente a partir ca de árvores no sítio de Novgorod. A ar-
dessa década que ela, pouco a pouco, se de- queologia, para Pesez (1997), não se define
fine como uma ciência ainda nova e, portan- apenas pelos seus domínios, pelos seus cam-
to, em construção. Publicada em 1948, não é pos de atividades. Esses territórios, que os

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arqueólogos exploram, variam muito com o sível que ela tenha que levar em conta não
período do passado em estudo. Se nós nos só os documentos materiais, mas também o
referimos aos sítios da pré-história, a arque- auxílio inestimável da ciência histórica, que
ologia apenas tem como limites aqueles que se fundamenta, sobretudo, nos documentos
lhe impõe o tipo de documento, pois somen- escritos.
te resta do passado a cultura material. Mesmo que a arqueologia, como
Os arqueólogos raramente poderão se qualquer ciência, não possa sempre fazer
interessar pelos fatos de curta duração, qua- afirmações definitivas, somos obrigados a
se sempre pouco acessíveis. Eles deverão reconhecer que ela reúne um número im-
dirigir os seus olhares para os fatos de mé- pressionante de evidências. Esses conjuntos
dia e de longa duração, ou seja, para aqueles de dados nos permitem a elaboração de in-
relacionados ao desenvolvimento dos ho- terpretações perfeitamente aceitáveis sobre
mens desde a emergência da humanidade o nosso passado.
na pré-história até a existência das civiliza- Podemos afirmar que, como outras
ções. Na arqueologia pré-histórica, deverão ciências, a arqueologia tende a ser uma
se consagrar às origens dos primeiros seres ciência global no sentido das relações multi-
humanos (homo habilis, homo erectus, homo disciplinares que mantém tanto com as ciên-
sapiens de Neandertal, homo sapiens sapiens), cias humanas (antropologia, história), como
às atividades quotidianas de seu modo de com as ciências da natureza (física, biologia,
vida, aos contextos ambientais (glaciações geologia) e com a própria ciência exata da
e inter-glaciares, transgressões e regressões matemática, através da arqueometria. Isto
marinhas) aos quais se adaptam através da se deve ao fato de que ela se interessa por
cultura que produzem, às culturas definidas tudo que diz respeito ao ser humano e à vida
pela sua tecnologia, seus aspectos culturais das sociedades humanas, do passado mais
e artísticos. A arqueologia histórica, que antigo ao passado mais recente, em todas as
volta os seus interesses para os sítios das so- paisagens do planeta.
ciedades que conhecem a escrita, conheceu Trata-se de uma mera questão de defi-
também, inicialmente, limites muito estrei- nição? Pensamos ser muito mais do que isso.
tos. A arqueologia medieval, por exemplo, A arqueologia é atualmente conceituada de
dedicou-se durante muito tempo ao estudo maneira ampla, como sendo a produção do
arquitetural dos edifícios religiosos (igrejas conhecimento sobre o passado humano a
românicas e góticas) e dos castelos feudais. partir da pesquisa dos vestígios materiais da
Hoje isso não ocorre mais, pois a arqueolo- cultura de todas as sociedades e de todas as
gia histórica não se fecha a nenhuma direção épocas. E é ela que pode garantir um futu-
de pesquisa, estando voltada também para ro ao nosso passado, ou seja, à humanidade
as atividades do quotidiano de todos os dos homens no tempo.
componentes sociais da população estuda-
da, bem como para a organização das socie-
dades no tempo. É perfeitamente compreen-

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Abstract evoca reflexiones sobre la epistemolo-
gía y la función social de la arqueología,
Man is an extraordinary singularity in destacando la relevancia del estudio, la
the world of living beings when he asks comprensión y la protección de las prue-
about his origins, when constructing bas documentales, para asegurar así la
mythical or historical discourses about supervivencia del futuro de nuestro pa-
his past, when digging the files of the sado, mientras humanidad.
ground and finding the vestiges of his
predecessors. We are responsible for Palabras clave: Arqueología. Historia.
these thousands of vestiges of material Ciencia. Función Social.
culture, which open new perspectives
to us in the moment in which they are
studied, in search of the answers that
Nota
each generation formulates on its past 1
Wheeler foi um dos maiores arqueólogos ingle-
and the one of the humanity. The arti- ses de nossa época e um renomado especialista
no campo da Arqueologia Histórica romana, me-
cle evokes reflections on the epistemo- dieval e da Índia. Sua afirmação textual é: “No
logy and social function of archeology, matter that in a majority of instances we cannot
highlighting the relevance of the study, truly know: it is the privilege of the intelligent to
ask questions, and the claim of the unintelligent
comprehension and protection of docu-
to have all the answers. The state of philosofic
mentary testimonies, thus guaranteeing doubt is not the least enviable of humans condi-
the survival of the future of our past as tions. Definition does not necessary clarify” (DE-
humanity. MOULE, 2005, p. 229).

Keywords: Archeology. History. Science.


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História: Debates e Tendências – v. 17, n. 1, jan./jun. 2017, p. 23-39
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