Você está na página 1de 212

formação, ação, reflexão

trajetórias do pnaic-to

kd f
c
jpe i tw3p vw trj
a
h c b

g
o
m ai s
e m u p
ar g bti ej
ns q6 a
g
b f z

e pg
c
l cm
y b
f
e
ã
x
a
d
Dados para catalogação:
[organizadoras Daniela Silva Costa Campos;
Janete Aparecida Klein; Marilia Fatima de Oliveira.]
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO.
– 1. ed. – São Paulo, SP : Livrei Editora, 2016.

ISBN: 978-85-69007-01-2
Produção editorial, capa e projeto gráfico: Livrei Editora
Impresso no Brasil.
formação, ação, reflexão
trajetórias do pnaic-to

d
h ck a b
ó
c za fi
j+e i ctwbp vw
x o
t
r
ab y p p
j ai
e
7
o
u

r k
m
p 7 a

r ga b i 3 se
ef o p
p

l
ç
m ue

ar g bti ej d
ns q
u
p
r a
gr
b p 6 d
f
y
z +
w m

e pg
c fu
u
ow
d l c
b s
9 j k h
u
2
3 e
p
b b 50
r i
ç

m
y
f o
z f dt
e
ã y
b
f o
x iz

h ak
Organizadoras Comitê Gestor
Daniela Silva Costa Campos Daniela Silva Costa Campos
Janete Aparecida Klein Janete Aparecida Klein
Marilia Fatima de Oliveira Marilia Fatima de Oliveira
Cristiane Ribeiro de Lima
Ruhena Kelber Abrão Ferreira
Semone Vieira Garcia

Conselho Editorial Pareceristas


Daniela Silva Costa Campos Daniela Silva Costa Campos
Janete Aparecida Klein Janete Aparecida Klein
Marilia Fatima de Oliveira Marilia Fatima de Oliveira
Cristiane Ribeiro de Lima Cristiane Ribeiro de Lima
Ruhena Kelber Abrão Ferreira Ruhena Kelber Abrão Ferreira
Semone Vieira Garcia Semone Vieira Garcia
Elaine Aires Nunes Cardoso
Elba Aparecida Antunes
Ribeiro
Denise de Amorim Ramos
Idemar Vizolli
Mirella de Oliveira Freitas
Noeci Carvalho Messias
Rita de Cassia Carvalho do
Amaral
Seila Alves Pugas
Colaboradores

Ana Leide Rodrigues de Sena Góis


Orientadora educacional e coordenadora do PNAIC da Rede
Municipal de Colinas do Tocantins. Graduada em Pedagogia pela
Fundação Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).Espe-
cialista em gestão escolar pela Universidade Federal do Tocantins
(UFT), em psicopedagogia educacional pelo Instituto da Ordem
Nazareno (ESEA), em metodologia do ensino fundamental e
médio pela UVA, em língua portuguesa pela Universidade Sal-
gado de Oliveira (Universo). Mestranda em ciências da educação
pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de
Lisboa – Portugal.

Daniela Silva Costa Campos


Professora Assistente da Universidade Federal do Tocantins
(UFT). Mestre em educação brasileira pela Universidade Federal
de Goiás (UFG). Especialista em metodologia do ensino funda-
mental e médio pelo Centro de Estudos e Pesquisas Educacio-
nais de Minas Gerais (CEPEMG). Graduada em psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Possui
experiência em psicologia clínica com crianças (psicodiagnóstico
e psicoterapia) e experiência em supervisão e orientação escolar.
Interesse nas áreas de inclusão escolar e estratégias metacogniti-
vas. Coordenadora Geral do PNAIC – Tocantins – UFT/2014.

Glorinha Pereira da Silva


Orientadora de estudo do PNAIC. Professora da Rede Municipal
de Colinas do Tocantins. Graduada em pedagogia pelo Centro de
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Ensino Superior do Brasil (CESB) e em direito pela Faculdade


Integrada de Ensino Superior de Colinas do Tocantins (Fiesc).
Especialista em gestão escolar pela Universidade Federal do To-
cantins (UFT).

Idemar Vizolli
Professor do curso de matemática e dos programas de mestra-
do em educação e mestrado profissionalizante em matemática.
Diretor da Universidade Federal do Tocantins (UFT), campus de
Arraias. Doutor em educação pela UPA. Atuou na coordenação
e na elaboração de material didático para educação de jovens e
adultos (EJA). Participou da Comissão de Elaboração de Material
para Disciplinas de Cursos Superiores na modalidade de educa-
ção a distância. Atualmente, desenvolve e orienta pesquisas em
EJA, educação matemática e educação do campo. Formador de
Matemática do PNAIC – Tocantins – UFT/2014.

Joana D’arc Vaz da Silva Viana


Professora da Rede Municipal de Colinas do Tocantins e orienta-
dora de estudo do PNAIC. Graduada em Normal Superior pela
Faculdade Integrada de Ensino Superior de Colinas do Tocantins
(Fiesc) e em pedagogia pelo Instituto Nacional de pós-graduação
de Ensino Superior (INAPS). Especialista em gestão escolar pela
Universidade Federal do Tocantins (UFT) e em orientação e su-
pervisão escolar pelo INAPS.

Maria do Socorro Soares Bezerra


Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Formadora de Língua Portuguesa do PNAIC. Coorde-
nadora Pedagógica do Colégio Estadual “José Carneiro de Brito”
de Tocantinópolis, no Estado do Tocantins.

VIII
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Marilia Fatima de Oliveira


Doutora em língua e literaturas de língua inglesa pela Universidade
de São Paulo (USP). Mestre em língua e literaturas de língua ingle-
sa pela USP. Licenciada em português e inglês pela USP. Graduada
em dupla habilitação (português e inglês) pela USP. Professora
Adjunta DE da Universidade Federal do Tocantins (UFT), onde
leciona disciplinas ligadas às literaturas de língua inglesa. Coor-
denadora Adjunta para língua portuguesa do PNAIC – Tocan-
tins – UFT/2014 e 2015. Docente do curso de mestrado da UFT.
Orienta pesquisa em literaturas africanas de línguas inglesa e por-
tuguesa. Orienta pesquisa em literaturas das minorias, da diáspora,
de gênero. Atualmente pesquisando vozes femininas africanas.

Maristela Moura
Especialista em psicologia da educação. Supervisora do PNAIC.
Coordenadora Pedagógica do Colégio Estadual “José Carneiro
de Brito” de Tocantinópolis, no Estado do Tocantins.

Mirella de Oliveira Freitas


Professora da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Mestre
em Linguística pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Licenciada em letras pela UFU. Especialista em psicopedagogia
em contextos educacionais pela Faculdade Católica de Uberlân-
dia. Possui experiência na docência do ensino médio. Nos últi-
mos 10 anos, tem se dedicado ao ensino superior. Interesse nas
áreas de metodologia científica, práticas de ensino, produção de
textos, gêneros discursivos, coerência e técnicas argumentativas.
Formadora de Linguagem do PNAIC – Tocantins – UFT/2014.

Nara Takaki
Bacharel em Inglês e Português pela Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

IX
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Licenciada em Inglês e Português pela Faculdade de Educação da


USP (FE-USP). Mestre, Doutora e Pós-Doutora em letras moder-
nas (Português e Inglês) pelo Programa de Estudos Linguísticos e
Literários da USP. Professora Adjunta III da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS). Leciona no curso de letras e no
mestrado do programa de pós-graduação em estudos de lingua-
gens da UFMS. Tem experiência nas áreas de letras, linguística apli-
cada com ênfase em linguagem, interpretação e sociedade, incluin-
do os seguintes temas: construção de sentido, ensino de línguas,
novos letramentos, multiletramentos, letramentos críticos, novas
tecnologias, coleção didática e estudos pós-coloniais. Autora dos
livros Leitura na formação de professores de inglês da rede pública: a questão
da reprodução de leitura no ensino de inglês e Letramentos na sociedade digital:
navegar é e não é preciso. Co-autora de Letramentos em terra, de Paulo
Freire.

Rita de Cassia Carvalho do Amaral


Licenciada em matemática. Especialista em matemática e gestão
escolar. Possui experiência na docência do ensino fundamental
e do ensino médio. Tem experiência na formação de professo-
res e gestores da Rede Municipal de Educação de Araguaína, no
Estado do Tocantins. Participou como formadora do Programa
Gestar – Matemática nas séries finais do ensino fundamental de
Araguaína. Vinculada à Secretaria Municipal de Educação de
Araguaína. Professora Efetiva e Coordenadora Geral do Pró-Jo-
vem Urbano. Formadora de Matemática do PNAIC – Tocan-
tins – UFT/2014.

Seila Alves Pugas


Graduada em pedagogia. Especialista em gestão educacional.
Professora da educação básica na rede pública do Estado do To-
cantins. Técnica em gestão escolar. Formadora na área de lingua-

X
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

gem do PNAIC – Tocantins – UFT. Tutora no Profuncionário.


Multiplicadora do Progestão na Secretaria da Educação do Esta-
do do Tocantins (Seduc/TO).

Zenóbia Silva Pereira Paiva


Orientadora de estudo da Rede Municipal de Itacaja, no Estado
do Tocantins.Graduada em pedagogia, normal superior e letras.
Pós-graduada em psicopedagogia.

XI
Sumário

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XIII

De alfabetizadores para alfabetizadores: um diálogo


sobre a avaliação no ciclo de alfabetização . . . . . 1
Ana Leide Rodrigues de Sena Góis, Glorinha Pereira da Silva,
Joana D’arc Vaz da Silva Viana

O enfoque das competências e habilidades na


metodologia do Pacto Nacional pela Alfabetização
na Idade Certa (PNAIC) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Daniela Silva Costa Campos

A oralidade alçada a seu devido lugar: fala e escuta na


perspectiva do letramento proposta pelo Pacto Nacional
pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) . . . . . 37
Daniela Silva Costa Campos, Marilia Fatima de Oliveira

Reminiscências matemáticas: o caso de Rudi . . . 49


Idemar Vizolli

A formação continuada do professor do ciclo de


alfabetização: perspectivas e desafios . . . . . . . . . 81
Maria do Socorro Soares Bezerra, Maristela Moura
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Orientadores de estudo do Pacto Nacional pela


Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) no
Tocantins: extratos identitários de profissionais
em formação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Mirella de Oliveira Freitas, Rita de Cassia Carvalho do Amaral

Ideias para letramentos críticos nas aulas de inglês


dos anos iniciais: complementando Cervetti, Pardales e
Damico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Nara Takaki

Atribuições dos orientadores de estudo do Pacto


Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC):
teoria e prática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
Seila Alves Pugas

A matemática também se faz presente em saberes e


fazeres na cultura indígena Krahô . . . . . . . . . . . . 181
Zenóbia Silva Pereira Paiva

XIV
Prefácio

Vivenciar o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade


Certa (PNAIC) no Estado do Tocantins tem sido uma ex-
periência gratificante, recheada de momentos inesquecíveis
e eventos marcantes, muitos dos quais nos renderam boas
reflexões e renovaram nosso pensar e o nosso fazer em sala
de aula e na educação dos pequenos.
Com o intuito de difundir entre os colegas orientadores
de estudo e professores alfabetizadores essas experiências e
reflexões, decidimos publicar este livro. A intenção é criar
um espaço no qual aqueles que nos acompanharam nesses
últimos 2 anos de jornada possam repartir o seu pensar com
os colegas.
A qualidade e o impacto promovido pelo PNAIC de-
vem-se à somatória de diversos aspectos destacados pelos
próprios atores que dele fazem parte: a parceria efetiva en-
tre o Ministério da Educação, intituições de ensino superior
(IES), secretarias de educação e Undime; o aspecto reflexivo
e, ao mesmo tempo, ilustrativo dos cadernos de formação;
os encontros predominantemente presenciais; e o incentivo
de bolsas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Edu-
cação (FNDE).
A parceria com as IES tem sido decisiva para o incentivo
à pesquisa por parte de professores alfabetizadores, orienta-
dores de estudo e coordenadores. Além de se empenharem
em realizar registros escritos, muitos relatam o desejo de in-
crementar suas formações acadêmicas em níveis lato sensu ou
stricto sensu.
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Os autores dos artigos que compõem este livro são


atores ativos e dedicados do “fazer acontecer”, todos pro-
fessores experientes, engajados neste grandioso projeto que
tem revolucionado o formato da formação de professores
no Brasil.
Com exceção da professora Nara Takaki, convidada
para fazer parte desta obra, todos os demais participaram
do PNAIC no Tocantins, conhecem a realidade do Estado e
possuem larga vivência com ensino – e com o pensar sobre
o ensino.
Esperamos, com este trabalho, inspirar em outros atores
do PNAIC o desejo de tornarem-se autores, registrando suas
experiências e práticas de ensino. Igualmente, desejamos in-
centivá-los a perseverar em sua formação continuada. Estar
em constante aprimoramento é primordial para a melhoria
do ensino em todas as suas esferas.
Assim, é com orgulho que apresentamos a vocês mais
esta publicação, esperando contribuir para a melhoria do en-
sino e da alfabetização no nosso Estado.

Daniela Silva Costa Campos


Janete Aparecida Klein
Marilia Fatima de Oliveira

XVI
De alfabetizadores para alfabetizadores: 
um diálogo sobre a avaliação no ciclo
de alfabetização

Ana Leide Rodrigues de Sena Góis, Glorinha Pereira da


Silva, Joana D’arc Vaz da Silva Viana

INICIANDO A CONVERSA...

Ao entrar em uma sala de aula, o professor se depara


com diversos saberes, dúvidas, vivências, conhecimentos di-
ferentes e complementares. A criança, ao ingressar no ciclo
de alfabetização, traz conhecimentos de toda ordem, porém
a legitimidade desses saberes muitas vezes é desconsiderada
pelo professor, que espera com sua ação inaugurar ou mes-
mo autorizar a criança a aprender.
Se a prática pedagógica disseminada e arraigada nas es-
colas de todo o país não responde mais às demandas atuais,
vez que estas requerem um novo profissional, com um novo
olhar formador – dinâmico, reflexivo, construtor de sua prá-
tica, que pensa e age de forma diferente, planejada, e ainda

1
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

preocupado com uma formação continuada e permanente


– tampouco o modelo avaliativo tradicionalmente utiliza-
do tem contribuído para auxiliar a repensar a ação docente
e guiar o aluno rumo ao monitoramento de suas próprias
aprendizagens. Nesse sentido, propôs-se, em âmbito na-
cional, um diálogo com os professores alfabetizadores, por
meio do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
(PNAIC), que preceitua alfabetizar todas as crianças até o
final do 3o ano do ensino fundamental. Esta meta requer dos
entes federativos ações articuladas e esforços colaborativos
e, do professor, um novo fazer pedagógico.
O PNAIC foi instituído pela Portaria no 867, de 4 de
julho de 2012, do Ministério da Educação. As ações (for-
mação, avaliação, distribuição de materiais e gestão, controle
social e mobilização) acontecem em parceria com as insti-
tuições de ensino superior (IES), com os sistemas públicos
de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos municí-
pios. Entre essas ações, está a formação continuada em redes
implementadas em nosso Estado, realizada atualmente pela
Universidade Federal do Tocantins (UFT) e multiplicada
junto aos professores alfabetizadores pelos orientadores de
estudos (professor com experiência em alfabetização e em
formação de professores) nas redes de ensino municipal e
estadual. Essa iniciativa proporcionou aos professores alfa-
betizadores reflexão sobre teorias e práticas.
As ações formativas do PNAIC foram planejadas ini-
cialmente pelo Governo Federal com duração de 2 anos,
sendo que em 2013 (primeiro ano do Pacto) o foco foi em
alfabetização e letramento e em 2014 essa temática foi am-
pliada para a alfabetização matemática. Atualmente, estuda-
-se a prorrogação para mais 1 ano de formação.

2
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

No decorrer dos estudos, os professores foram provo-


cados a desconstruir e construir novos saberes baseados na
concepção de alfabetização na perspectiva do letramento e
em metodologias sociointeracionistas. Assim, as reflexões
partilhadas nas formações continuadas do PNAIC acerca
dos processos que envolvem a aprendizagem ampliaram o
olhar dos alfabetizadores para o currículo e consequente-
mente para a avaliação. Este último item é o tema da discus-
são que apresentamos aqui.
A primeira questão a se abordar é sobre qual a proposta
de avaliação apresentada pelo PNAIC. Trata-se de uma pro-
posta pautada pela Resolução no 7 do Conselho Nacional de
Educação:

Art. 32: A avaliação dos alunos, a ser realizada pelos pro-


fessores e pela escola como parte integrante da proposta
curricular e da implementação do currículo, é redimensio-
nadora da ação pedagógica e deve:
I – assumir um caráter processual, formativo e participa-
tivo, ser contínua, cumulativa e diagnóstica, com vistas a:
a) identificar potencialidades e dificuldades de aprendiza-
gem e detectar problemas de ensino;
b) subsidiar decisões sobre a utilização de estratégias e
abordagens de acordo com as necessidades dos alunos,
criar condições de intervir de modo imediato e a mais lon-
go prazo para sanar dificuldades e redirecionar o trabalho
docente;
c) manter a família informada sobre o desempenho dos
alunos;
d) reconhecer o direito do aluno e da família de discutir os
resultados de avaliação, inclusive em instâncias superiores
à escola, revendo procedimentos sempre que as reivindica-
ções forem procedentes.

3
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

II – utilizar vários instrumentos e procedimentos, tais


como a observação, o registro descritivo e reflexivo, os
trabalhos individuais e coletivos, os portfólios, exercícios,
provas, questionários, dentre outros, tendo em conta a sua
adequação à faixa etária e às características de desenvolvi-
mento do educando;
III – fazer prevalecer os aspectos qualitativos da aprendi-
zagem do aluno sobre os quantitativos, bem como os re-
sultados ao longo do período sobre os de eventuais provas
finais, tal como determina a alínea “a” do inciso V do art.
24 da Lei no 9.394/1996;
[...] (BRASIL, 2010, p. 34).

Analisando o artigo 32 da referida resolução, observa-se


que o inciso I e suas alíneas apresentam a função da avalia-
ção – redimensionar a ação pedagógica. Em seguida, o texto
pontua o caráter que a avaliação deve assumir, ou seja, ser
realizada de forma processual, formativa, participativa, con-
tínua, cumulativa e diagnóstica.
Atendendo aos preceitos destacados nesta resolução, no
que tange aos aspectos da avaliação, a proposta de organizar
portfólios de aprendizagem surgiu como procedimento ava-
liativo que permite abarcar ao mesmo tempo todas as citadas
dimensões da avaliação, ou seja, identificar potencialidades
e dificuldades de aprendizagem, possibilitando ao professor
a tomada de decisões sobre a utilização de estratégias, criar
condições de intervir e redirecionar o seu trabalho e envol-
ver as crianças nesse processo mantendo a família informada
sobre seu desempenho.
Durante a formação do PNAIC, a discussão sobre o tema
aconteceu de forma mais efetiva durante os estudos da Unida-
de 1, ano 1 – “Currículo na alfabetização: concepções e princí-
pios” e da Unidade 8, ano 3 – “Progressão escolar e avaliação:

4
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

o registro e a garantia de continuidade de aprendizagem no


ciclo de alfabetização”, quando foram analisadas as experiên-
cias avaliativas de professores alfabetizadores alinhadas com os
direitos de aprendizagem (recorte curricular do programa) e
as práticas pedagógicas pautadas na perspectiva de alfabetizar
letrando. A análise abarcou desde documentos sugeridos pelo
programa, como pareceres e perfis de entrada e saída, ficha
de acompanhamento da aprendizagem individual e da turma,
até avaliações diagnósticas baseadas no teste da psicogênese da
língua escrita (FERREIRO & TEBEROSKY, 1986).
Na implantação do Pacto, existia muita insatisfação por
parte dos professores e coordenadores pedagógicos com a
constatação de que “não serviam mais as avaliações pontuais,
nas quais eram comunicados aos pais o período de realização
e os conteúdos que seriam cobrados”. Dúvidas surgiram por
não sabermos o que fazer, sem a possibilidade de atribuir no-
tas. Assim, surgiu na Secretaria Municipal de Educação um
forte desejo de adotar procedimentos mais claros e passíveis
de serem compreendidos por pais, crianças e profissionais da
educação, intensificando-se os estudos para implantação do
portfólio como procedimento avaliativo.

APROFUNDANDO O TEMA...

A primeira dimensão da avaliação que foi objeto de estudo


no grupo de formação do PNAIC foi a diagnóstica, que obje-
tiva conhecer melhor a criança individualmente, seus conheci-
mentos prévios, para a partir deles acompanhar mais de perto
o seu desenvolvimento, aprendendo e ensinando simultanea-
mente, ambos como parceiros e corresponsáveis do conhe-
cimento. Como o foco da formação era língua portuguesa, e
mais precisamente alfabetização e letramento, nos debruçamos

5
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

sobre a investigação de maneiras de avaliar a produção escrita


da criança. Para tanto, refletimos sobre o teste da psicogênese
formulado por Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1986).
Nos estudos e adaptações desse teste, foi possível com-
preender como as crianças comprovam suas hipóteses e re-
criam nesse processo o desenvolvimento construído pela
humanidade na organização do conhecimento que se inicia
no pictórico (expressão por meio de gestos e desenhos) che-
gando ao simbólico (domínio de combinação arbitrária de
sinais e significados).
Durante esse processo, a criança constrói as noções de
quantidade (palavras têm muitas letras), de qualidade (pala-
vras apresentam letras diferentes) e de direção (a leitura é
feita de cima para baixo e da esquerda para a direita) que são
necessárias para a compreensão do ato de ler e escrever. Ou-
tro aspecto importante na construção da leitura e da escrita é
a compreensão de que há relação entre o som (fala) e o sinal
gráfico (escrita).
Uma mudança significativa proporcionada nos estu-
dos do aspecto diagnóstico da avaliação foi perceber que o
“erro” da criança é fonte de virtude que viabiliza a reorien-
tação da ação interventiva. Quando o aluno consegue fazer
essa descoberta no processo de escrita, ele é capaz de enxer-
gar-se nessa construção, não prevalecendo o sentimento de
frustração, mas, sim, o de coautoria de sua aprendizagem.
Como assinala Cagliari (1991, p. 209), “o erro é mais re-
velador que o acerto. O acerto pode ser fruto do acaso, mas
o erro é sempre fruto de uma reflexão, de um uso indevido
de algum conhecimento”.
Do ponto de vista linguístico, há diferentes tipos de er-
ros ortográficos presentes nos textos produzidos por alu-
nos nos anos e ciclos iniciais que são efetivamente erros

6
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

constitutivos, pois configuram um momento reflexivo que


precisa ser revelado também na avaliação. O que era antes
considerado “erro” na escrita da criança, hoje, por meio dos
estudos realizados acerca da avaliação diagnóstica e de como
acontece o processo cognitivo da aquisição da escrita, é com-
preendido como tentativa de acerto. Conscientes, os profes-
sores alfabetizadores passaram a valorizar os conhecimentos
prévios das crianças, deixando de considerar que elas não sa-
biam nada por ainda não dominar o código escrito, e isso ge-
rou mudanças no olhar do professor sobre a aprendizagem
e, consequentemente, em sua forma de avaliá-la. Para tanto,
alguns procedimentos são mais adequados que outros, sendo
que pode-se citar o portfólio como um desses procedimen-
tos que são reveladores dos percursos de aprendizagem.
Esse portfólio, de acordo com Shores e Grace (2001, p.
43), é “uma coleção de itens que revela, conforme o tempo
passa, os diferentes aspectos do crescimento e do desenvol-
vimento de cada criança”.
Conforme Villas-Boas:

[...] portfólio é mais do que uma coleção de trabalho do


aluno. Não é uma pasta onde se arquivam textos. A seleção
dos trabalhos a serem incluídos é feita por meio de autoa-
valiação crítica e cuidadosa, que envolve o julgamento da
qualidade da produção e das estratégias de aprendizagem
utilizadas (2012, p. 39).

Adotar o portfólio, no entanto, não significa compreen-


der e conferir a ele status de procedimento avaliativo. Essa
visão requer do professor fundamentação e dedicação para
o levantamento de informações, esforços para conduzir jun-
to às crianças e as famílias as reflexões sobre os processos

7
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

percorridos, não com o foco no que falta aprender apenas,


mas principalmente no que já foi desenvolvido, para que este
processo torne-se um motivador da aprendizagem.
É importante que o portfólio não seja o único procedi-
mento avaliativo. Como preceitua a resolução do Conselho
Nacional de Educação no inciso II, o professor deve

utilizar vários instrumentos e procedimentos, tais como a


observação, o registro descritivo e reflexivo, os trabalhos
individuais e coletivos, os portfólios, exercícios, provas,
questionários, dentre outros (BRASIL, 2010).

No mesmo sentido aponta Villas-Boas:

[...] o professor tem a oportunidade de acompanhar e co-


nhecer o que o aluno já aprendeu e o que ele ainda não
aprendeu. Quando circula pela sala de aula observando os
alunos trabalharem, o professor também está analisando,
isto é, avaliando o trabalho de cada um. São momentos
valiosos para a avaliação (2012, p. 23).

Vale ressaltar que a qualidade das atividades é tão impor-


tante quanto a observação e a problematização do professor
no momento de realização e coleta das mesmas, pois propor
boas situações que possibilitem desestabilizar as hipóteses
das crianças as motiva a reelaborar seus conhecimentos fa-
vorecendo a continuidade da aprendizagem.

PERCURSO DE IMPLANTAÇÃO DO PORTFÓLIO:


PASSO A PASSO

Com a finalidade de implantar o portfólio como pro-


cedimento avaliativo e aprofundar os estudos realizados no

8
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

primeiro ano de formação do PNAIC, foi realizada uma dis-


cussão de formação com duração de 8 horas com os profes-
sores do ciclo de alfabetização e os coordenadores pedagó-
gicos. Durante este encontro, foi apresentada uma estrutura
sugestiva contendo modelos de itens que poderiam compor
o documento, e na oportunidade foram feitas algumas orien-
tações, a saber:

•  Capa – foi ressaltada a importância de ser elaborada


pela ou com a criança;
•  Identificação (onde são contemplados dados da
criança, suas preferências, sua família, onde mora etc.)
– foi assinalado que essas informações permitem aos
professores formular tabelas e gráficos com dados le-
vantados sobre a própria criança, bem como escolher
uma metodologia. Por exemplo, sabendo que a maioria
das crianças gosta de brincadeira com bola, podem ser
preparadas aulas de leitura e rodas de conversa usando a
bola como recurso; outro exemplo é saber as preferên-
cias de leitura e considerá-las nos momentos de leitura
em voz alta feita pelo professor.
•  Minha turma – trata-se do espaço reservado para
as crianças conhecerem um pouco mais seus colegas,
elaborar um nome para a turma, com escolha de masco-
te, fazer um “carômetro” (página contendo as fotos 3 x
4 ou autorretratos das crianças que compõem a turma),
citar a lista dos nomes com as datas de aniversários das
crianças, as expectativas de aprendizagem, as responsa-
bilidades com os estudos (regras/combinados) e a roti-
na da sala de aula. Nessa seção, há itens opcionais.
•  Instrumentos avaliativos – compostos pelos diag-
nósticos de leitura, escrita e das demais disciplinas fei-

9
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

tos pelo professor, são itens acrescentados no portfólio


sem precisar passar pela escolha da criança. Eles devem
ser corrigidos, ou seja, devem apresentar a forma corre-
ta de responder sem necessidade de atribuir uma nota.
Por exemplo, no caso de uma lista do campo semântico
de material escolar, se a criança escreve “kdenu” para
“caderno”, o professor pode, ao lado, escrever a pala-
vra corretamente para demonstrar à própria criança e
aos pais o quanto ela está próxima da escrita formal.
Ao observador distante da sala (outro professor, coor-
denador pedagógico, entre outros), será possibilitada a
compreensão do nível de escrita desta criança – segundo
os estudos de Ferrero (1986), é o nível intermediário,
chamado “silábico-alfabético”.
•  Amostras de atividades – as atividades são esco-
lhidas e anexadas pelas próprias crianças com a ajuda
do professor em contexto de aula; portanto, não serão
todas as atividades propostas pelo professor que farão
parte do portfólio. Dois aspectos devem ser observados
nessa seleção: a escolha deve ser uma prerrogativa da
criança, por isso deve ser feita no contexto de aula e
jamais à revelia e a distância, em salas de professores, no
momento do planejamento; mas ela não deve ser aleató-
ria e deve ser planejada pelo professor e possuir critérios
de forma a possibilitar a criança comparar suas ativida-
des, ver o que ela produziu, o que poderia fazer melhor,
sua aprendizagem e sobre o que ainda precisa aprender.
Só assim o instrumento adquire potencial avaliativo, por
isso esse trabalho não deve ser realizado durante o pla-
nejamento do professor, longe das crianças.
No que diz respeito à definição de critérios para esco-
lha das produções da criança, a turma pode chegar ao

10
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

consenso de que irão escolher atividades que envolvam


produção de textos, por exemplo. Não há problema se
a criança está escolhendo uma atividade que não repre-
senta sua melhor produção, pois é necessário ter amos-
tras que demonstrem o percurso de crescimento e não
apenas o conhecimento já desenvolvido.
Outra situação discutida durante as horas de formação
com os professores relaciona-se à importância de as ati-
vidades terem propósito didático, já que uma vez que
determinada atividade é proposta as crianças dedicam-
-se à sua realização depois querem acrescentá-las ao seu
portfólio. Cabe aos professores analisar o objetivo das
atividades antes de propô-las. Em vez de propor dese-
nhos prontos para colorir, por exemplo, é mais interes-
sante que se tente desenvolver a produção pictórica da
criança partindo de músicas que foram apreciadas, ex-
ploradas antes, propiciando a expressão de sentimentos
que teve ao ouvi-la, e depois pedir que os expresse por
meio de outra linguagem.
Discutiu-se, ainda, a importância da ficha de autoava-
liação, na qual a criança é convidada a refletir sobre suas
aprendizagens e condutas que favorecem ou prejudicam
a convivência em sala de aula. Para tanto, optou-se por
um modelo em que a criança tenha como parâmetro
uma legenda que associa a opção de resposta (“sim”,
“às vezes”, “não”) com as “carinhas” (feliz, sério, tris-
te). Esse instrumento deve ser preenchido ao final do
bimestre antes da reunião de pais. No bimestre seguinte,
antes do preenchimento da nova autoavaliação, é im-
portante retomar a ficha anterior, pedindo às crianças
que observem os “não” e que tentem melhorar o que
for possível. Levando em consideração o período de de-

11
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

senvolvimento cognitivo e afetivo das crianças no ciclo


de alfabetização, é necessário conversar sobre a impor-
tância de serem honestas em suas respostas, para que
os professores possam realmente ajudá-las. Vale res-
saltar, ainda, que a autoavaliação não acontece apenas
no preenchimento da ficha supracitada – ela deve ser
incentivada, mesmo na oralidade, após o término das
diferentes atividades propostas em sala de aula.
•  Impressões da família sobre o desenvolvimento
da criança – o professor deve proporcionar um mo-
mento após o final de cada bimestre para que os respon-
sáveis analisem o portfólio e possam deixar seu parecer
por escrito acerca das aprendizagens observadas.
•  Pastas catálogo – foram sugeridas opções adapta-
das e baratas que podem ser organizadas pela própria
escola. Não há problema se houver tipos diferentes de
portador de portfólios em uma mesma turma. Vale lem-
brar, ainda, que não é necessário um cuidado excessi-
vo com a estética, pois o conteúdo é o que importa. O
portfólio deve revelar as habilidades da criança e não as
do professor; é um produto de um sujeito em desen-
volvimento e sua beleza está no acesso às produções,
hipóteses e criatividade deste ser – a criança.

BALANÇO DO PRIMEIRO ANO DE IMPLEMENTAÇÃO


DO PORTFÓLIO COMO PROCEDIMENTO AVALIATIVO

Visando adequar a proposta avaliativa às necessidades


dos professores, foi realizada, no final de outubro de 2014,
uma pesquisa de opinião com 43 professores alfabetizadores
da Rede Municipal de Educação de Colinas do Tocantins,
tendo como norte os seguintes questionamentos:

12
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

1.  Qual a quantidade de professores que usaram o


portfólio como instrumento avaliativo em 2014?
37

Sim Não
Demonstrativo do número de professores que usaram o portfólio
como instrumento avaliativo. (Fonte: Semec/Colinas do Tocantins,
2014)

Analisando este primeiro questionamento, observou-se


que entre os professores que afirmaram usar o portfólio
como procedimento avaliativo seis o adotaram apenas
como arquivo, segundo seus comentários.

2.  Os portfólios foram apresentados aos pais e familia-


res durante o ano? Em caso afirmativo, explique em que
momento e como foi feita essa apresentação aos pais?
Todos os professores responderam que apresentaram o
portfólio aos familiares dos alunos em reunião própria.
Como exemplo, seguem algumas respostas por escola:

Escola A – Sim, nas reuniões no início do ano letivo e


bimestrais, mostrando a sua importância, onde os pais
veem o trabalho desenvolvido pelo professor e também o
crescimento do(a) filho(a). Também foi enviado para casa
pelas crianças.

13
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Escola B – Sim, foi realizada uma reunião com os pais para


mostrar a importância do portfólio na aprendizagem da
criança, pois com ele o pai verifica o percurso do conhe-
cimento adquirido por meio das atividades nele anexadas.

A exemplo dessas unidades, as escolas C, D, E, F, G e H


responderam de forma afirmativa, porém não fica claro
nas falas como a apresentação do instrumento às famí-
lias possibilitou a visualização do percurso de aprendiza-
gem mediante a observação das atividades selecionadas.

3.  Os portfólios foram organizados com ajuda das


crianças, em contexto de aula?

Sim – 84%

Não – 12%

Parcialmente – 2%

Não responderam – 2%

Demonstrativo do percentual de professores que organizaram o


portfólio junto com as crianças. (Fonte: Semec/Colinas do Tocantins,
2014)

A maioria dos professores afirmou ter envolvido as


crianças na seleção das atividades que compõem o port-
fólio, mas, acompanhando e ouvindo os professores,
foi possível perceber que este resultado não evidencia a
compreensão de como deve ser feita a problematização
para uma escolha com critério, questão citada como mais
difícil de ser implementada junto às crianças, uma vez
que os critérios devem ser elaboradas com a ajuda delas.

14
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

4.  Com o uso do portfólio, ficou evidente o percurso


de aprendizagem da criança?

Sim – 66%

Não – 25%

Parcialmente – 4%

Não responderam – 5%

Demonstrativo do percentual de professores que organizaram o


portfólio junto com as crianças. (Fonte: Semec/Colinas do Tocantins,
2014)

A partir dessa questão, percebe-se que um percentual


significativo de professores afirmaram que o portfólio
demonstra o percurso de aprendizagem da criança, mas
dentro do grupo muitos não chegaram a esta conclusão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessário investigar se há uma falta de compreen-


são de que o portfólio constitui um procedimento autêntico
que desperta a autoconfiança do aluno no desempenho de
sua aprendizagem, o que torna este instrumento um espe-
lho para professores constatarem os avanços da criança, ou,
ainda, se este “descrédito” é gerado por medo, por requerer
uma consciência de que este processo acontece no dia a dia,
testando, arriscando-se e sobretudo buscando alimentação
teórica para embasar a prática.
A maioria dos depoimentos demonstraram que as con-
cepções em relação à avaliação ainda estão arraigadas no

15
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

modelo tradicional, pois algumas dificuldades e limitações


apontadas no processo avaliativo por meio do portfólio es-
tão baseadas não na consistência dos resultados, mas por en-
tender que se trata de mais um serviço burocrático. Mesmo
com as dificuldades diagnosticadas, acredita-se que a conver-
sa sobre esse procedimento pode e deve ser retomada.
O caminho percorrido, enfim, não foi em vão, afinal
toda proposta que de alguma forma rompe com práticas
historicamente realizadas gera resistências. Era natural, por-
tanto, que houvesse críticas e algum percentual de rejeição à
proposta, porém os professores estão hoje alguns passos à
frente em suas concepções, mesmo sabendo que falta mui-
to a caminhar. Nesse contexto, de forma imperativa surge a
necessidade de proporcionar aos alfabetizadores um diálogo
mais consistente com as teorias, com os saberes docentes e
as experiências de pares, para que na coletividade seja pos-
sível reavaliar e apontar estratégias para continuar o percur-
so formativo acerca da avaliação. Assim, o envolvimento, o
sentimento de pertencimento e de identidade são cruciais no
trabalho com o portfólio como procedimento avaliativo, e
só são atingidos depois de muita reflexão e experimentação.
Permanece a seguinte indagação: se em um universo tão
pequeno (rede municipal de Colinas) este tema gerou e ainda
gera muitos equívocos na prática dos professores, terá sido
suficiente o diálogo iniciado pelo PNAIC, mais precisamen-
te na Unidade 8 discutida no ano de 2013, ou neste tema
ainda estamos iniciando a conversa?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 867, de 4 de julho de


2012. Institui o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Cer-

16
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

ta e as ações do Pacto e define suas diretrizes gerais. Diário Ofi-


cial, Brasília. 5 de julho de 2012a. Seção 1.
. Ministério da Educação. Resolução nº 7 do Conse-
lho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica, de 15
de dezembro de 2010. Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais
para o ensino fundamental de 9 (nove) anos. Diário Oficial,
Brasília, 15 de dezembro de 2010. Seção 1.
. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Bási-
ca. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto Nacional
pela Alfabetização na Idade Certa: currículo na alfabetização:
concepções e princípios: ano 1: unidade 1. Brasília: MEC/SEB,
2012b.
. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Cer-
ta: progressão escolar e avaliação – o registro e a garantia de
continuidade das aprendizagens no ciclo de alfabetização – ano
3, unidade 8. Brasília: MEC/SEB, 2012.
CAGLIARI, L.C. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione,
1991.
FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
SHORES, E.; GRACE, C. Manual de portfólio: um guia passo a
passo para o professor. Porto Alegre: Artmed, 2001.
VILLAS-BOAS, B.M.F. Portfólio, avaliação e trabalho pedagógi-
co. 8ª edição. Campinas: Papirus, 2004.

17
O enfoque das competências e habilidades
na metodologia do Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa

Daniela Silva Costa Campos

INTRODUÇÃO

O trabalho pedagógico com foco na construção de


competências e habilidades encontra-se no bojo das modifi-
cações propostas por organismos nacionais e internacionais
desde a década de 1990 para fazerem frente às demandas
da chamada “era da informação”. Segundo esse novo para-
digma, “aprender a aprender” se transformará na habilidade
número 1 do século XXI (MOLINA, ONTORIA & GO-
MES, 2004).
A ênfase no “aprender a aprender” significa valorizar
o como aprender (modo e contexto) tanto quanto o que
aprender (conteúdo). Na medida em que o acesso ao co-
nhecimento torna-se cada vez mais facilitado, a demanda da

19
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

escola se modifica: trata-se de auxiliar crianças e jovens a da-


rem significado e fazerem conexões entre quantidades cada
vez maiores de informação.
Além disso, as demandas dessa “era da informação” cla-
mam por uma potencialização da autonomia e da responsa-
bilidade diante de um momento de velozes mudanças tecno-
lógicas, sociais e culturais. Portanto, é preciso ensinar o aluno
não somente a saber lidar com uma diversidade de opções
em relação à informação, mas também a escolher as melho-
res estratégias cognitivas diante de pensamentos divergentes.
Nessa perspectiva, desde a elaboração dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997), os docu-
mentos oficiais sobre educação no Brasil enfatizam a neces-
sidade de superar um modelo de ensino focado na memori-
zação de fatos, substituindo-o por um modelo que privilegie
o desenvolvimento de competências e habilidades no qual
os conteúdos escolares estejam articulados à esfera procedi-
mental e atitudinal.
Ao trabalhar com a formação de professores nas licen-
ciaturas, no entanto, e, na atualidade, como coordenadora
geral do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
(PNAIC), verifico que apesar de esse discurso já ser farta-
mente veiculado há anos, ser propagado pelas políticas pú-
blicas de educação e fazer parte da fala dos profissionais da
educação, ainda não se verifica uma compreensão clara, por
parte tanto de educadores quanto de alunos, do contexto
teórico no qual foi produzido e das suas consequentes im-
plicações práticas.
Este texto visa elucidar algumas concepções teóricas
que subsidiam o processo de ensino-aprendizagem focado
na construção de competências e habilidades, verificando
como estão articuladas à proposta pedagógica do PNAIC.

20
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Além disso, apresenta o trabalho com competências e habi-


lidades cognitivas como transdisciplinar, ou seja, como mais
uma possibilidade de superar a fragmentação do conheci-
mento e, portanto, torná-lo mais significativo.

O QUE SÃO COMPETÊNCIAS E HABILIDADES


COGNITIVAS

Valente (2013), em sua revisão bibliográfica sobre os


conceitos de competências e habilidades, afirma que não
há um consenso entre as concepções teóricas pesquisadas.
Aqui, entretanto, será adotada a definição apresentada pelo
Ministério da Educação na fundamentação teórica do Sis-
tema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e do Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem). Valente (2013), por sua
vez, adverte que essa definição se restringe à dimensão cog-
nitiva e que, no cotidiano escolar, as dimensões afetiva e mo-
tora devem merecer o mesmo destaque.
Fini (In PESTANA, 1999), consultora do Ministério da
Educação, assim define competências e habilidades cogniti-
vas:

Entende-se por competências cognitivas as modalidades


estruturais da inteligência, ações e operações que o sujeito
utiliza para estabelecer relações com e entre os objetos,
situações, fenômenos e pessoas que deseja conhecer. As
habilidades instrumentais referem-se, especificamente, ao
plano do “saber fazer” e decorrem, diretamente, do nível
estrutural das competências adquiridas e que se transfor-
mam em habilidades (p. 9).

Apesar dos PCN indicarem a necessidade de que os


currículos escolares passem a organizar-se em termos de

21
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

competências e habilidades, o citado texto não define esses


termos com clareza. É na elaboração das matrizes curricula-
res de referência do Saeb e do Enem que a conceituação se
objetiva: o foco da avaliação passa a ser a capacidade de mo-
bilizar operações cognitivas com o intuito de relacionar os
conteúdos a determinados contextos. Por exemplo, se antes
um “tópico” avaliativo de matemática era “escrita decimal”,
na matriz do Saeb (para o quinto ano) verifica-se o descritor
“resolver problemas (operação cognitiva) utilizando a escrita
decimal (conteúdo específico de matemática) de cédulas e
moedas do sistema monetário brasileiro (contexto)”.
Nesse sentido, as matrizes curriculares de referência do
Saeb (com os respectivos descritores para o final de cada
ciclo de escolarização) e do Enem (articuladas por compe-
tências e habilidades em áreas do conhecimento) passaram a
ser balizadoras da elaboração de planejamentos nas escolas.
O que se verifica, no entanto, até então, é que a modificação
tem ocorrido no aspecto avaliativo e nos planejamentos sem,
contudo, alterar significativamente o cotidiano escolar.
Na prática, verifica-se que os objetivos de aprendizagem
presentes nos planejamentos não estão mais focados somen-
te nos conteúdos, expressando a necessidade de construção
de habilidades de “pensamento” por parte dos alunos. Os
próprios professores afirmam que é preciso levar o aluno
a refletir, mas muitas vezes não se dedicam a auxiliá-lo na
construção dessas habilidades.

Teorias psicológicas que subsidiam o


enfoque em competências e habilidades

Valente (2013) ressalta que não se deve supor que a ên-


fase em competências que pressupõem “aprender a apren-

22
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

der” e “saber fazer” constitui uma visão original do proces-


so de ensino e aprendizagem. Destaca, ainda, que as raízes
dessa abordagem podem ser encontradas no construtivismo
piagetiano.
A pesquisa de Jean Piaget (1976) foi precursora ao des-
crever o desenvolvimento das operações lógicas que acom-
panham e/ou subsidiam o processo de aquisição de co-
nhecimentos específicos. O autor descreve que a partir da
interação entre indivíduo e ambiente o pensamento humano
constrói operações mentais cada vez mais “complexas”. Se-
gundo Coutinho & Moreira (2000), o auge das operações
cognitivas diz respeito à conquista das habilidades de ana-
lisar, sintetizar e avaliar, operações próprias do pensamento
formal e que não são verificadas antes dos 11-12 anos de
idade em toda sua complexidade.
Para Piaget (1976), a conquista de cada nova aprendiza-
gem depende de estruturas mentais previamente construí-
das. Esta construção, por sua vez, depende da qualidade das
interações que o indivíduo estabelece com o meio. Destaca-
-se, todavia, que com seu método clínico Piaget objetivou a
descrição da evolução do pensamento sem investigar meto-
dologias específicas capazes de promovê-la. Suas prescrições
são genéricas em termos de incentivar uma postura ativa e
investigativa por parte dos alunos.
Outra influência que pode ser percebida na abordagem
por competências é a da “taxonomia dos objetivos educa-
cionais” de Benjamim Bloom (1973). Em seu aspecto fun-
damental, essa taxonomia se assemelha aos pressupostos
piagetianos anteriormente descritos: as operações cognitivas
se estruturam segundo níveis ascendentes de complexidade.
As competências cognitivas descritas por Bloom vão desde o
conhecimento (obtenção de informações) e a compreensão

23
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

(translação, interpretação e extrapolação) à aplicação (análi-


se, síntese e avaliação).
Segundo Luckesi,

As taxonomias de objetivos educacionais oferecem um


guia metodológico para estabelecer, de forma clara e pre-
cisa, condutas aprendidas pelos seres humanos, o que, por
sua vez, possibilita configurar o que se deseja atingir pela
ação pedagógica, que, consequentemente, também subsi-
dia as práticas avaliativas (2011, p. 41).

A teoria da taxonomia foi amplamente criticada por


sua rigidez na hieraquização da aquisição das competências
cognitivas, desconsiderando as múltiplas relações sociais e
os processos de subjetivação que podem interferir nos pro-
cessos de aprendizagem. É criticada ainda por estar atrelada
à psicologia comportamental, teoria que acaba por conferir
maior destaque ao papel do professor do que ao papel do
aluno no processo de ensino-aprendizagem.
Todavia, mesmo que as taxonomias tenham sido cons-
truídas tendo como eixo teórico a psicologia comportamen-
tal, é válido utilizar a estrutura básica dos objetivos presentes
nas taxonomias sem que nos sirvamos dessa escola. Assim
como os processos subjetivos de aprendizagem precisam
ser considerados, é válido considerar pesquisas, como a de
Bloom, que apontam as “regularidades” presentes no pro-
cesso de conhecer.
Ou seja, o citado autor apresenta subsídios para a estru-
turação de currículos a partir da premissa de que há habili-
dades mais adequadas a serem exploradas e priorizadas em
cada etapa do desenvolvimento. Considerar tal premissa não
significa anular o que há de subjetivo na aprendizagem.

24
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

O ensino do pensamento

Na atualidade, o “ensino do pensamento” é o nome da


corrente de psicologia cognitiva que vem realizando pesquisas
focadas em um ensino capaz de provocar e alterar as habilida-
des do pensamento com vistas a uma aprendizagem profunda
(GARDNER, KORNHABER & WAKE, 1998). A proposta
pode ser assim resumida: ensinar a pensar com o conteúdo e
fazer do conteúdo uma ótima oportunidade para o desenvol-
vimento das estruturas intelectuais dos seres humanos.
Em sua pesquisa, Gomes (2007) classifica as habilidades
de pensamento em: habilidades gerais, habilidades especia-
lizadas modulares e habilidades especializadas ontológicas,
conforme segue:

•  As habilidades gerais podem ser ativadas por qual-


quer conteúdo ou domínio cognitivo e fornecem capacidade
de automapeamento (capacidade de perceber quando um
novo problema possui relação com alguns dos conhecimen-
tos internos), de planejamento e de monitoramento da pró-
pria mente. São também denominadas habilidades metacog-
nitivas.
•  As habilidades especializadas modulares fazem par-
te de um sistema que organiza as relações, a dinâmica e a
interação entre os estímulos provenientes do mundo – por
exemplo, classificar, deduzir, comparar, inferir, dentre outras.
•  As habilidades especializadas ontológicas são produ-
to da relação entre as habilidades do pensamento (gerais ou
especializadas modulares) e a aquisição de conhecimento em
um campo especializado. Assim, explica-se que processos de
interpretação em matemática passam a ser distintos de pro-

25
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

cessos de interpretação em língua portuguesa, uma vez que


requerem habilidades e processos cognitivos diferenciados.
Como se vê, a abordagem do ensino do pensamento
não enfatiza uma organização hierárquica (das mais simples
às mais complexas) das habilidades cognitivas, conforme a
taxonomia de Bloom, mas uma organização que as diferen-
cia qualitativamente. No caso das habilidades metacognitivas,
Portilho (2009) afirma que, em sua plenitude, estas somente
podem ser verificadas a partir da adolescência, o que não sig-
nifica que não se deve realizar atividades/intervenções com
vistas ao desenvolvimento pleno em idades anteriores. Em
geral, pesquisas têm verificado que o trabalho intencional
com foco em habilidades cognitivas e metacognitivas na fase
em que ainda estão se desenvolvendo facilita e amplia esses
processos (DIAS & SEABRA, 2013; ROSÁRIO, NÚÑEZ
& GONZÁLEZ-PIENDA, 2007).
Na prática, trabalhar com foco no desenvolvimento de
competências e habilidades significa valorizar o modo e o
contexto da aprendizagem tanto quanto o conteúdo. Ao ela-
borar o seu planejamento, o professor deve ter consciência
de que é mediador não somente da aprendizagem de conteú-
dos por parte dos alunos, mas também do desenvolvimento
de operações mentais que auxiliem a vinculação dos conteú-
dos a contextos específicos. Por exemplo, ao solicitar que os
alunos “comparem os nomes dos alunos da sala quanto ao
número de sílabas”, o professor deve ter consciência de que,
além de auxiliar o exercício de separar sílabas, está solicitan-
do a habilidade de “comparar”, ou seja, algum aluno pode
conseguir somente separar as sílabas e ter dificuldade (ou
não ter aprendido) o processo de comparação.
Muitas vezes, o professor não se atém a essa questão
por estar focado somente no conteúdo específico a ser ensi-

26
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

nado/aprendido. Após a realização de uma atividade como


a descrita, mesmo que o aluno a tenha realizado a contento,
é comum que este aluno não saiba responder à pergunta “o
que é comparar?”. Portanto, uma estratégia importante é ex-
plicitar tanto conhecimentos relativos às especificidades das
disciplinas quanto relativos às operações mentais, tornando
o aluno consciente não só do que aprende, mas de como
aprende.
Em outra situação, as dificuldades dos alunos podem
estar relacionadas ao (re)conhecimento do contexto envolvi-
do na atividade. Retornando ao exemplo “resolver problema
(operação cognitiva) utilizando a escrita decimal (conteúdo
específico em matemática) de cédulas e moedas do sistema
monetário brasileiro (contexto)”, o aluno pode conseguir
realizar a escrita decimal, mas não conseguir fazê-lo no con-
texto específico solicitado. É neste sentido que o enfoque
em competências e habilidades pressupõe o conhecimento
da realidade/cultura na qual os alunos estão inseridos, para
que os conteúdos estejam articulados a contextos que te-
nham significado (cognitivo e afetivo) para eles.
Se, por um lado, no entanto, é essencial a valorização da
realidade e /ou cultura dos alunos, o enfoque na construção
de competências e habilidades também visa à exploração de
culturas e contextos diversificados, com o intuito de ampliar
o conhecimento de mundo, a quantidade e a qualidade de
operações mentais envolvidas.

ENFOQUE NAS COMPETÊNCIAS COGNITIVAS


NA METODOLOGIA DO PNAIC

O PNAIC se configura como uma política pública de


formação de professores do ciclo de alfabetização a partir

27
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

de estudos teóricos e metodológicos, com vistas a alfabetizar


todas as crianças brasileiras até os 8 anos de idade. Concomi-
tantemente ao PNAIC, foi criada uma modalidade de avalia-
ção sistêmica – Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA)
– para os alunos ao final do 3o ano do ensino fundamental,
com foco na verificação das aprendizagens de leitura, escrita
e matemática. Na realidade, tanto os cadernos de formação
quanto os pressupostos pedagógicos da ANA consideram
a alfabetização na perspectiva do letramento – ou seja, para
além da aprendizagem dos códigos linguísticos e matemáti-
cos isolados, o foco é a inserção das práticas de leitura e a
produção de textos escritos nas diferentes situações cotidia-
nas, formais e informais, conforme explica Soares (2004):

O conceito de letramento envolve um conjunto de fatores


que variam de habilidades e conhecimentos individuais a
práticas sociais e competências funcionais e, ainda, a valo-
res ideológicos e metas políticas (p. 80-81)

Nos cadernos pedagógicos do PNAIC, estão indicados


os “direitos de aprendizagem” de cada área do conhecimen-
to, cujos conteúdos devem compor o currículo do ciclo de
alfabetização. A proposta deixa claro que o foco do trabalho
pedagógico deve ser a garantia desses direitos, apresentados
como competências mais abrangentes, alcançadas por meio
do desenvolvimento de habilidades específicas organizadas
em eixos. No que tange às habilidades cognitivas presentes
na proposta do PNAIC, estas são condizentes com as des-
critas por Bloom (1973) como habilidades “de base”: iden-
tificar, associar, comparar, contar, reconhecer, descrever, or-
denar, classificar. É coerente, portanto, que não se verifique
a presença de habilidades como analisar, sintetizar, avaliar,

28
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

extrapolar, uma vez que estas se alicerçam nas habilidades


de base, que devem ser prioridade nos primeiros anos de es-
colarização básica. Portanto, é preciso que o professor esteja
cada vez mais atento às habilidades cognitivas demandadas
pelo currículo, pesquisando não somente sobre os conteú-
dos articulados, mas também sobre as qualidade das estrutu-
ras cognitivas e metacognitivas envolvidas.
O estudo da taxonomia de Bloom (1956) e dos está-
gios cognitivos de Jean Piaget (1976) é de suma importância
para balizar o foco do planejamento e da sistematização das
atividades em cada etapa da escolaridade, pois ambos pro-
põem habilidades condizentes com cada etapa do desenvol-
vimento. Já os estudos de psicologia cognitiva demonstram
que algumas habilidades consideradas típicas do pensamento
adolescente somente serão plenamente desenvolvidas nesta
fase se já forem sendo trabalhadas, de maneira incipiente, em
estágios anteriores do desenvolvimento.
Um bom exemplo disso é o desenvolvimento da habili-
dade de sintetizar. Conforme Piaget (1976), esta é uma habi-
lidade típica do pensamento formal (consolidado a partir dos
11 anos de idade, aproximadamente), no entanto, já pode ser
trabalhada junto aos alunos do ciclo de alfabetização, con-
siderando-se os limites típicos de algo em construção. Uma
forma de desenvolver tal habilidade no ciclo de alfabetiza-
ção é solicitar que os alunos deem “títulos” a cada parágrafo
de uma história (ou seja, a textos pequenos), afinal, é fácil
verificar que apresentam inabilidade (ou mesmo impossibi-
lidade) de dar um título adequado a um texto com muitos
parágrafos (normalmente, quando esta tarefa é solicitada, as
crianças tendem a dar títulos que sintetizam fragmentos da
história). Neste caso, título “adequado” significa aquele que
sintetiza bem o texto como um todo, portanto, não é interes-

29
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

sante que seja solicitada a tarefa de síntese de um texto longo


partindo-se do pressuposto de que “qualquer título” estaria
adequado por tratar-se de crianças pequenas. Portanto, me-
diar a construção de habilidades cognitivas significa auxiliar
a exploração e a construção sistemáticas delas a partir do
conhecimento dos pressupostos teóricos sobre o tema.
No processo de construção do aprender a aprender, as
crianças vão surpreendendo-nos com novos avanços e hipó-
teses; no entanto, é necessário cuidado para não se exigir dos
alunos do primeiro ciclo da educação básica habilidades cog-
nitivas muito “sofisticadas”, pois o professor poderia acabar
por desestimular os alunos.

INTERDISCIPLINARIDADE NA PROPOSTA DO PNAIC

Na proposta do PNAIC, por mais que as habilidades


a serem trabalhadas no ciclo de alfabetização estejam orga-
nizadas por área do conhecimento, há indicações de que o
planejamento deve ser realizado de forma a integrá-las, con-
forme pode ser verificado na citação a seguir:

A articulação entre as diferentes áreas do conhecimento


pode ser feita por meio de sequências didáticas e projetos
didáticos. Nessas sequências ou projetos, recursos didáti-
cos diversos podem ser usados, como os computadores, a
televisão, os jornais, as revistas, os livros. Dentre os ma-
teriais distribuídos pelo Ministério da Educação, pode-se
destacar o conjunto de livros que compõem os acervos das
obras complementares. Segundo o documento que acom-
panha os acervos de livros, “a articulação dos conteúdos
das diferentes áreas pode ser realizada por meio da utiliza-
ção de uma mesma obra com diferentes finalidades. Por
exemplo, um livro inscrito na área de Ciências Humanas

30
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

ou de Ciências da Natureza pode ser utilizado nas ativi-


dades destinadas ao desenvolvimento de habilidades im-
portantes na área de alfabetização (BRASIL, 2009, p. 55).

Nessa perspectiva, esses livros distribuídos pelo Ministério


da Educação (acervos das obras complementares) possibi-
litam que os estudantes tenham acesso a diferentes conhe-
cimentos em uma mesma obra (BRASIL, 2012b).

Nos cadernos do PNAIC, a importância da interdiscipli-


naridade é amplamente discutida como forma de superação
da fragmentação do conhecimento e na perspectiva de tornar
o conhecimento cada vez mais significativo para o aluno. Os
exemplos sugeridos nos cadernos do PNAIC deixam claro
que no planejamento com enfoque interdisciplinar o principal
“mote” é iniciar sequências e projetos didáticos a partir da uti-
lização de uma mesma obra (ou texto, ou tema) que possibilite
diferentes abordagens, nas quais diversas habilidades possam
ser trabalhadas. Na execução do projeto, as habilidades do
pensamento podem ser transferidas para contextos diferen-
ciados, numa perspectiva na qual o trabalho em uma deter-
minada disciplina contribui para o desempenho nas demais.
Entretanto, o trabalho com foco na elaboração de pro-
jetos dá margem tanto para a consolidação de determinadas
habilidades específicas, a partir de uma temática geradora,
quanto para a consolidação de habilidades gerais, metacog-
nitivas. Diante desta última perspectiva, os autores passam a
falar da perspectiva transdisciplinar na construção de com-
petências e habilidades.
É importante ressaltar que esses podem ser aspectos
complementares em um mesmo projeto, da mesma forma
que é possível elaborar um projeto somente com um enfo-
que metodológico.

31
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

COMPETÊNCIAS E HABILIDADES:
TRANSDISCIPLINARIDADE NO CURRÍCULO

Se, por um lado, no enfoque interdisciplinar o objeti-


vo final é a consolidação de determinadas habilidades es-
pecíficas (relacionados a diversas disciplinas curriculares) a
partir de uma temática geradora, no enfoque transdisciplinar
o foco principal é a consolidação de uma mesma temática
ou habilidade a partir da sua conexão com diversas áreas do
conhecimento.
Especialmente no que tange à construção de habilida-
des metacognitivas, os autores falam em abordagem trans-
disciplinar (ou transversal ao currículo). Rosário, Núñez &
González-Pienda (2007) elaboraram um projeto cujo foco
é a construção das citadas habilidades, disponível para ser
trabalhado com crianças do ciclo de alfabetização. Trata-se
do Projeto Sarrilhos do Amarelo:

O Projeto apresenta um formato de infusão curricular.


Não pretende ser mais uma atividade ou um conjunto de
tarefas a desenvolver à margem das orientações curricula-
res, mas sim uma proposta que pretende trabalhar proces-
sos transversais do aprender: planejar tarefas, estabelecer
objetivo, organizar recursos, monitorar as tarefas, comba-
ter os distratores e avaliar os produtos a partir de uma es-
tória que funciona apenas como ponto de partida (p. 54).

Ao propor a adoção deste projeto no ciclo de alfabe-


tização, os autores visam à construção de estratégias meta-
cognitivas que podem auxiliar todos os demais processos
cognitivos e afetivos. Os autores resumem as habilidades
metacognitivas como planejar, monitorar e autoavaliar as
próprias aprendizagens.

32
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Nos cadernos do PNAIC a perspectiva metacognitiva


também se encontra articulada à discussão sobre projetos e
sequências didáticas como metodologias adequadas ao de-
senvolvimento de competências e habilidades a serem de-
senvolvidas no ciclo de alfabetização, independentemente
do conteúdo específico trabalhado, ou seja, como transdisci-
plinares ao trabalho com os conteúdos diversificados.
Tal perspectiva pode ser verificada na descrição apre-
sentada por Nery sobre o “projeto didático” como metodo-
logia a ser adotada.

Essa modalidade de organização do trabalho pedagógico


prevê um produto final, com objetivos claros, dimensiona-
mento no tempo, divisão de tarefas e, por fim, a avaliação
final em função do que se pretendia. Tudo isso feito de
forma compartilhada e com cada estudante tendo autono-
mia pessoal e responsabilidade coletiva para o desenvolvi-
mento do projeto (NERY in BRASIL, 2012a, p. 15).

Sobre a elaboração de “sequências didáticas”, autores


dos cadernos do PNAIC (BRASIL, 2012a, 2012b) consi-
deram que elas favorecem a metacognição, uma vez que
incentivam a argumentação verbal por parte dos alunos.
Doltz, Noverraz & Schneuwly afirmam sobre a sequência
didática:

Esse tipo de proposta busca que os alunos possuam uma


regulação maior sobre a própria aprendizagem. Desse
modo, os alunos se tornam mais responsáveis pelas ativi-
dades escolares. Essa regulação vinculada principalmente
nos momentos de avaliação torna-se rica, pois haverá um
maior envolvimento nas atividades de reflexão sobre os
modos de participação (DOLTZ, NOVERRAZ & SCH-
NEUWLY in BRASIL, 2012b, p. 27).

33
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Portanto, na elaboração de projetos, os professores de-


vem explicitar a construção de habilidades metacognitivas
como objetivos a serem alcançados, tendo a clareza de que
o trabalho com foco na metacognição incide diretamente no
desenvolvimento da autonomia por parte dos estudantes,
abarcando as esferas procedimentais, atitudinais e políticas
relativas às competências e habilidades urgentes à formação
dos cidadãos deste século.

CONCLUSÃO

Não há dúvida de que o discurso sobre competências e


habilidades invadiu não somente o espaço educacional, mas
os espaços empresariais e acadêmicos. Nesse sentido, verifi-
camos a importância de que os professores se apropriem de
tal terminologia e de seus desdobramentos na prática para
que possam, efetivamente, participar das transformações ne-
cessárias a uma escolarização cada vez mais significativa.
Como professora de didática para licenciaturas, para
além das dificuldades específicas na disciplina, que podem
ser verificadas em maior ou menor medida, observo que as
maiores dificuldades dos alunos relacionam-se às habilida-
des de sintetizar textos (retirar dos mesmos os aspectos mais
relevantes), interpretar questões avaliativas (o professor so-
licita uma explicação e o aluno se limita a uma citação, por
exemplo), avaliar a própria aprendizagem (não estabelecem
critérios para balizar as avaliações), além da dificuldade de
relacionar os conteúdos a contextos diversificados.
Os teóricos da psicologia cognitiva têm auxiliado a refle-
xão de que, desde os anos iniciais da escolarização básica, é
essencial que a prática pedagógica esteja alicerçada no desen-
volvimento de habilidades cognitivas com o intuito de auxi-

34
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

liar a conquista de autonomia no processo de aprendizagem


e de subsidiar a articulação entre conteúdo e realidade.
Portanto, é essencial que os professores do ciclo de
alfabetização saibam explorar com profundidade o mate-
rial elaborado pelo Ministério da Educação para o PNAIC,
uma vez que o mesmo está alicerçado sobre a perspectiva da
construção de competências e habilidades essenciais à for-
mação do cidadão do século XXI.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Funda-


mental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos
parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.
. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Bá-
sica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto nacional
pela alfabetização na idade certa: planejando a alfabetização;
integrando diferentes áreas do conhecimento: projetos didáticos
e sequências didáticas: ano 1, unidade 6. Brasília: MEC/SEB/
Dage, 2012a.
. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Bá-
sica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto nacional
pela alfabetização na idade certa: planejando a alfabetização
e dialogando com diferentes áreas do conhecimento: ano 2, uni-
dade 6. Brasília: MEC/SEB/Dage, 2012b.
BLOOM, B. Taxonomia de objetivos educacionais: domínio cog-
nitivo. Rio de Janeiro: Globo, 1973.
COUTINHO, M.T.C.; MOREIRA, M. Psicologia da educação: um
estudo dos processos psicológicos de desenvolvimento e apren-
dizagem humanos, voltados para a educação. Belo Horizonte:
Lê, 2000.

35
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

DIAS, N.M.; SEABRA, A.G. Programa de intervenção em autor-


regulação e funções executivas: PIAFEX. São Paulo: Mem-
non, 2013.
GOMES, C.M.A. Apostando no desenvolvimento da inteligência:
em busca de um novo currículo educacional para o desenvol-
vimento do pensamento humano. Rio de Janeiro: Lamparina,
2007.
LAFOTUNE, L.; SAINT-PIERRE, L. A afectividade e a metacog-
nição na sala de aula. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
LIBÂNEO, J.C. Didática: velhos e novos temas. Edição do autor,
2002.
MOLINA, A.; ONTORIA, A.; GOMES, J.P. Potencializar a capa-
cidade de aprender e pensar: o que mudar para aprender e
como aprender para mudar. São Paulo: Madras, 2004.
VALENTE, S.M.P. Competências e habilidades: pilares do para-
digma avaliativo emergente. Disponível em: <http://www.tra-
balhosfeitos.com/ensaios/Compet%C3%AAncias-e-Habilida-
des/573632.html>. Acesso em 30 de janeiro de 2013.
PIAGET, J. Da lógica da criança à lógica do adolescente. São
Paulo: Pioneira, 1976.
PORTILHO, E. Como se aprende? Estratégias, estilos e metacogni-
ção. Rio de Janeiro: Wak, 2009.
ROSÁRIO, P.; NÚÑEZ, J.C.; GONZÁLEZ-PIENDA, J. Auto-re-
gulação em crianças sub-10: Projecto Sarrilhos do Amarelo.
Porto: Porto, 2007.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizon-
te: Autêntica, 2004.

36
A oralidade alçada a seu devido lugar:  fala
e escuta na perspectiva do letramento proposta
pelo Pacto Nacional pela Alfabetização na
Idade Certa
Daniela Silva Costa Campos, Marilia Fatima de Oliveira

Ao contrário da crença de alguns educadores, as crian-


ças não chegam ao ambiente escolar com as habilidades re-
lacionadas à fala e à escuta desenvolvidas em todas as suas
possibilidades. Por isso mesmo, o aprimoramento e o desen-
volvimento das situações orais comunicativas deve ser visto
como um eixo tão importante quanto os demais no processo
de alfabetização. Ao incentivar a produção dos mais variados
textos oralmente – incluindo a produção e a escuta da norma
culta e outros textos não presentes em seu dia a dia –, estare-
mos ampliando as possibilidades de compreensão e expres-
são linguísticas, inclusive na modalidade escrita.
Marchusci (2008) afirma que é dever da escola propor-
cionar ao aluno a oportunidade de usar e aprender formas
orais não usadas no seu cotidiano e que pressupõem o do-

37
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

mínio de uma linguagem mais formal e institucional. Essas


habilidades, ainda segundo Marcuschi, devem ser desenvol-
vidas já nos anos iniciais, recebendo dos professores o mes-
mo cuidado destinado ao ensino da escrita, da leitura e da
análise crítica textual.
Na perspectiva do letramento, esse desenvolvimento
pressupõe ensino sistemático e intencional, visando ampliar
o vocabulário das crianças, estimulando-as a argumentar e a
usar formas diferentes de dizer o mesmo, além de serem cla-
ras sobre aquilo que desejam expressar. Nem sempre, porém,
a importância da oralidade nessa fase foi reconhecida pelos
educadores, especialmente porque considerar a alfabetização
na perspectiva do letramento supõe uma revisão em todos
os eixos nos quais historicamente vêm sendo organizados os
conhecimentos linguísticos para esta etapa da escolarização.
Desde a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais do ensino fundamental, em 1997, a oralidade passa a ser
citada como habilidade a ser incluída intencionalmente no
processo de alfabetização, mas foi somente na proposta do
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC)
que ela foi alçada ao mesmo patamar de importância dos
eixos anteriormente organizados – a saber, a leitura, a produ-
ção escrita e a reflexão linguística (metacognição), parte dos
direitos de aprendizagem da criança.
A concepção de língua presente no PNAIC é a de um
sistema de signos históricos e sociais, um meio de expressão
da cultura de uma comunidade. A língua é tratada como um
objeto concreto, mutável e variável que possibilita a intera-
ção entre sujeitos históricos e sociais, estimulando os alunos
a adquirirem competência linguística, sentindo-se seguros
para trazer para a sala de aula sua herança social por meio
da fala.

38
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Na perspectiva de letramento proposta pelo PNAIC,


considera-se a linguagem oral como a modalidade de língua
que os indivíduos aprendem naturalmente desde a infância,
assim, o ensino deve incluir a valorização da língua falada,
criando oportunidades para que o aluno transite naturalmen-
te da língua falada em casa para a formal e auxiliando ainda
as habilidades relativas à escrita.
Portanto, insistir na concepção anterior da língua, como
um sistema fechado baseado em elementos puramente for-
mais, pode resultar em uma aversão ao estudo da língua por
parte dos alunos logo nos primeiros anos escolares, algo a
ser evitado a todo custo.
As especificidades da língua falada precisam ser traba-
lhadas – tanto quanto as da escrita –, pois muitas vezes a
dificuldade na escrita advém de os alunos escreverem como
falam em situações cotidianas. O PNAIC propõe que antes
de se tratar da relação entre fonema e signo corresponden-
te haja um reconhecimento explícito das unidades abstratas
que compõem as palavras faladas, abarcando rimas, fonemas,
as partes maiores e as menores das palavras, construindo a
consciência fonológica como complementar para a aquisição
das habilidades de escrita e da leitura. Cabe à escola e ao
professor oferecer situações lúdicas que propiciem ao aluno
uma reflexão sobre os segmentos sonoros e, posteriormente,
suas relações com a forma escrita.
A oralidade na perspectiva do letramento não se restrin-
ge ao falar, mas também ao saber ouvir e compreender o que
se está ouvindo. Assim, o professor deverá criar oportunida-
des para escuta orientada de textos variados, de gêneros di-
versos, produzidos em circunstâncias diferentes, com objeti-
vos igualmente diversos. Isso contribuirá para que, ao longo
dos anos e respeitando seu amadurecimento, o aluno se tor-

39
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

ne um ouvinte crítico e capacitado. Várias são as atividades


eficientes na formação de um ouvinte crítico. Dentre elas,
podem ser elencados narrativas de contos, lendas, poemas, e
outro gêneros (tanto ouvir quanto reproduzir ou recontar);
narrativas de causos e histórias pessoais (alternando o pa-
pel de narrador e de ouvinte), transmissão oral de recados,
avisos etc. (só ouvidos, sem apoio de texto); e outras ativi-
dades que propiciem o desenvolvimento da fala e da escuta.
Conforme o aluno adquire maiores domínio e vocabulário,
pode-se passar para o uso progressivo da língua padrão, com
a qual o aluno poderá expor suas ideias e vivências de forma
coerente e lógica.
Dramatizações e recitação, jogos de mímica e repro-
dução de notícias ouvidas na TV, por exemplo, são outras
formas de se incentivar o aluno a falar e ouvir, ampliando a
formação de um vocabulário e dando ao aluno a segurança
necessária para tornar-se um sujeito atuante no mundo. No
caderno pedagógico do Tocantins, publicado em 2015, há
vários relatos de experiências com sugestões de como se tra-
balhar a oralidade e a escuta em sala de aula, partindo sempre
da perspectiva do letramento. Devemos, portanto, ficar aten-
tos para poder proporcionar aos nossos alunos motivação e
situações para o desenvolvimento da escuta e da fala.
Isso não significa, no entanto, propor um “treinamen-
to” das unidades da linguagem oral como pré-requisito para
aquisição da leitura e da escrita. Esse alerta é importante no
sentido de que, desde a década de 1970, têm sido muito di-
fundidas no Brasil pesquisas sobre “consciência fonológica”,
i.e., as habilidades metalinguísticas de tomada de consciên-
cia das características formais da linguagem. Essa habilidade
compreende dois níveis:

40
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

1.  A consciência de que a língua falada pode ser seg-


mentada em unidades distintas, ou seja, a frase pode ser
segmentada em palavras; as palavras, em sílabas; e as síla-
bas, em fonemas.
2.  A consciência de que essas mesmas unidades se repe-
tem em diferentes palavras faladas (Byrne e Fielding-Bar-
nsley, 1989).

Durante os anos de 1970, insistiu-se em que justamente a


segmentação explícita de palavra, ‘a possibilidade de rom-
per as cadeias da fala’ numa sequência de elementos distin-
tivos, seria útil para aprender a ler [...]. Do mesmo modo,
outros trabalhos demonstraram que, quando um grupo de
crianças pré-escolar for treinado para segmentar explicita-
mente em segmentos subsilábicos, essas crianças têm me-
lhor desempenho na alfabetização fônica – consequente-
mente, aprendem melhor a ler. Essa linha de pesquisa que
se denomina habitualmente “consciência fonológica” se
desenvolveu inicialmente no ensino da língua inglesa, mas
alguns resultados foram contestados [...] (TOLCHINSKY,
1996, p. 40).

As pesquisas que contestaram esse trabalho de trei-


namento fonológico como pré-requisito para aquisição da
leitura e da escrita revelaram que a consciência fonológica,
mais do que um pré-requisito para a aprendizagem da lei-
tura e da escrita, é consequência desta última e requer um
trabalho bem estruturado e orientado para a fala e a escu-
ta. Ou seja, as quatro habilidades apresentadas como eixos
específicos (oralidade, leitura, escrita e reflexão linguística)
devem ser compreendidas como um continuum, no qual o tra-
balho realizado com cada habilidade interfere diretamente na
aprendizagem das demais.

41
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

A pesquisadora Ângela Helena Bona Josefi (2004) acres-


centa que é possível realizar um trabalho de consciência fo-
nológica que não seja focado no treinamento de segmentos
fônicos simplesmente. Esta autora indica que é possível rea-
lizar um trabalho lúdico com as crianças do ciclo de alfabe-
tização que tenha como um dos objetivos auxiliar a diferen-
ciação de fonemas em situações de uso da língua oral e que
essas diferenciações certamente repercutirão positivamente
nas habilidades de leitura e escrita.

É preciso aproveitar a habilidade que as crianças pos-


suem de refletir sobre a própria fala para, explorando a
linguagem oral, fazer com que as análises feitas por elas
se tornem conhecimentos estabelecidos [...] é através da
comparação e do relacionamento entre palavras da língua,
observando semelhanças e diferenças, que se pode analisar
elementos da escrita, relacioná-los com elementos da fala
para, com base nesta, entender o funcionamento daquela
modalidade (JOSEFI, 2004).

Trabalhar a oralidade requer, portanto, sistematização e


intenção. Uma ordem sugerida seria:
1.  Rimas e aliterações.
2.  Partes das palavras.
3.  Posição dos sons.
4.  Segmentação fonética.
5.  Manipulação fonética.

Essa ordem, no entanto, pode ser mesclada para obter-


-se o uso mais natural da língua.
Com as rimas e aliterações, os alunos tornam-se sensí-
veis às palavras semelhantes, aprendendo a discriminar os
sons. Elas também auxiliam na formação de padrões de lin-

42
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

guagem, facilitando o reconhecimento dos diferentes sons.


Na sequência, as palavras começam a ser trabalhadas em
suas partes – sempre oralmente. As crianças começam a per-
ceber que as palavras podem ser divididas por sons e podem
já comutar sílabas oralmente. Neste estágio, a criança já per-
cebe e aprende a posição dos sons, fase crucial para que ela
desenvolva as duas outras partes a contento. O aluno deve
ser capaz de reconhecer os fonemas apenas praticando a fala
e a escuta. Trata-se, talvez, do maior desafio, pois dele segui-
rá a capacidade de manipular os fonemas da língua.
Ao chegar nessa fase, o aluno já deverá ter desenvolvido
percepção e discriminação fonéticas, sendo capaz de dividir
a palavras em sílabas, identificando-as e diferenciando-as,
além de perceber palavras semelhantes.
Em todas as fases, a bagagem cultural e social do aluno
pode e deve ser aproveitada, respeitando-se inclusive regio-
nalismos na fala. É imprescindível trazer para o cotidiano
escolar os textos orais da cultura popular trazidos pelos alu-
nos, pois isso auxilia, inclusive, na integração da escola no
cotidiano dos alunos e suas famílias (LIMA, 2000, p. 87).
Durante os anos de 2014 e 2015, em que estivemos à
frente do PNAIC no Estado do Tocantins, houve vários re-
latos de professores cujas atividades os levaram a perceber o
quanto a inserção do universo cultural do aluno contribuiu
para o desenvolvimento de suas habilidades linguísticas e,
posteriormente, auxiliou ao aluno relacionar suas habilidades
orais com o sistema alfabético. Dessa maneira, percebeu-se
a importância das interações orais em sala de aula – tanto de
fala quanto de escuta – no desenvolvimento e no letramento
dos alunos.
Nas práticas sugeridas nas formações e nesses relatos
de professores do PNAIC (alguns dos quais publicados em

43
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

nosso caderno pedagógico), os alunos foram estimulados a


produzir textos orais de diferentes gêneros com diferentes
propósitos, como debates, entrevistas, notícias, exposições e
outros – logicamente, adaptados para as devidas faixas etárias
e fases de desenvolvimento –, visando não só a desenvolver
a capacidade de se expressar como também a capacidade de
ouvir com compreensão. Durante essas atividades, foi possí-
vel trabalhar ética com essas crianças, pois eles aprenderam a
exigir respeito por sua fala, bem como a reconhecer e respei-
tar as variedades linguísticas e/ou regionalismos presentes
na fala dos colegas.
Diferentes formas linguísticas a que qualquer criança é
exposta dentro de uma cultura vão ampliando sua consciên-
cia fonológica, entre elas as músicas, cantigas de roda, poe-
sias, parlendas e jogos orais, permeando a construção das
demais habilidades que compõem os eixos de língua portu-
guesa. Essas atividades já eram trabalhadas em propostas an-
teriores, mas, em geral, como pré-requisitos para a aquisição
da leitura e da escrita ou como brincar livre. A grande dife-
rença proposta pelo PNAIC é a sistematização e a intencio-
nalização da fala e da escuta, tratando-as como habilidades a
serem trabalhadas em todas as etapas que compõem o ciclo
de alfabetização.
Uma vez operando racionalmente fala e escuta, obtendo
domínio fonológico, tornou-se possível trabalhar a relação
entre fala e escrita – fonema e grafema –, ressaltando as se-
melhanças e diferenças.

Nos exercícios de análise das semelhanças e diferenças ou


de comutação entre palavras no plano da forma e na veri-
ficação dos efeitos dessa comutação no plano do conteúdo
(significado), o aluno trabalha com o conhecimento intui-

44
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

tivo que tem sobre a língua, conscientiza-se das regras já


internalizadas para usá-las em outros contextos, registran-
do o que vai descobrindo e, portanto, apropriando-se da
palavra escrita [...] (JOSEFI, 2002, p. 34-35).

São apresentados a seguir exemplos de como é possí-


vel criar consciência fonológica ao trabalhar com jogos de
comutação de sons e de letras, nos quais o professor pode
chamar a atenção para diferenças na forma das palavras, que
produzem diferentes significados:

1. Trabalhando a diferença na forma das palavras:


boneco
boneca

2. Verificando os efeitos dessa diferença no plano dos


significados, a criança descobre que a substituição de um
“o” por um “a” pode estar associada a uma diferença de
gênero.

3. Transferindo essas diferenças para outros vocábulos, ao


lado de outras consoantes, descobre outros significados:
bobo neto
boba neta

4. Jogando com essas mesmas diferenças, percebe que elas


podem distinguir significados completamente diferentes
entre as palavras formadas:
coco
coca
(VILAS-BOAS, 1994, p. 91).

Neste último exemplo, ocorre abertura da primeira vo-


gal ao ser trocada a última letra da palavra, o que é importan-

45
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

te, também, que se leve em conta ao fazer a análise com as


crianças. Vários outros exemplos podem ser encontrados na
publicação citada de Vilas-Boas.
No exercício descrito, simples de ser realizado e bastan-
te efetivo em seus resultados, os alunos podem depreender
os fonemas e perceber as mudanças semânticas e sonoras,
apreendendo a importância de cada fonema.
Esse é um exemplo bastante simples de como uma ati-
vidade efetiva pode ser sistematizada e planejada visando a
desenvolver e ampliar a consciência fonológica de crianças
no ciclo de alfabetização.
Alçar a oralidade a um eixo específico do currículo ins-
titui o compromisso da constante sistematização das ativida-
des, ou seja, atividades planejadas, que merecem o registro do
desempenho de cada criança, individualmente, em sua reali-
zação, assim como sua inclusão no processo de avaliação e in-
tervenção. Torna-se ainda mais importante, portanto, planejar
e pensar reflexivamente sobre o que fazer, como fazer e como
avaliar o desenvolvimento do aluno. Outro instrumento in-
centivado pelo PNAIC foi a criação dos cantinhos de leitura
em cada sala de aula das primeiras séries. O “cantinho de lei-
tura” é outro instrumento de primordial importância no de-
senvolvimento da consciência fonológica da criança. Após a
leitura deleite, o professor pode estimular seus alunos a recon-
tarem a história, representá-la dramaticamente, fazer pergun-
tas norteadoras para aferir a compreensão do texto ouvido
etc. Dessa forma, trabalhará as habilidades do eixo da oralida-
de de forma lúdica e agradável, enquanto o aluno aprende a se
expressar e a ouvir sequências lógicas e coerentes.
Para os alunos em fase pré-silábica ou silábica, a histó-
ria pode dar espaço a brincadeiras com jogos de palavras,

46
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

comutação de letras – como mostrado anteriormente – e


várias outras atividades, muitas delas disponíveis no site do
PNAIC do Ministério da Educação, em nosso blogue do
PNAIC-Tocantins, em nosso caderno pedagógico publica-
do em 2015 ou, ainda, nas muitas publicações especializadas
disponíveis para consulta e pesquisa.
Nesta breve reflexão sobre as habilidades de fala e escu-
ta a serem trabalhadas em sala de aula, espera-se ter demons-
trado a importância de falar e ouvir no aprimoramento das
crianças enquanto seres sociais e autônomos. Os professores
do ciclo de alfabetização do Estado do Tocantins deverão
estar atentos às suas práticas em sala de aula, certificando-se
de que os itens listados a seguir sejam efetivamente parte do
planejamento de suas aulas:

•  Diagnosticar, intervir e propor atividades para o de-


senvolvimento da competência linguística, apontando as di-
ferenças entre fala coloquial e fala formal.
•  Ter consciência de que fala e escrita são processos
interdependentes.
•  Respeitar e tomar como referência o contexto fami-
liar e social do aluno.
•  Fazer a criança se sentir respeitada, segura e confian-
te para falar e ouvir.
•  Criar atividades, interações e turnos de fala que in-
centivam os alunos a respeitarem a diversidade linguística na
sala de aula e fora dela.

Uma vez consciente da importância da oralidade na vida


e no desenvolvimento do aluno, o professor poderá, de fato,
colocar em prática as orientações do PNAIC, tornando-se

47
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

um agente consciente e atuante de mudanças e da valoriza-


ção da oralidade na alfabetização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacio-


nais para o ensino fundamental. Brasília: MEC, 1997.
BYRNE, B.; FIELDING-BARNSLEY, R. Phonemic awareness and
letter knowledge in child’s acquisition of the alphabetic princi-
ple. Journal of Educational Psychology, n. 81, ano 3, p. 313-
321, 1989.
VILAS-BOAS, H. Alfabetização: outras questões, outras histórias.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
JOSEFI, A. A lingüística e a aquisição da escrita. Analecta Guara-
puava, Paraná, v. 3, n. 1, p. 29-40, 2002.
TOLCHINSKY, L. Aprender sons ou escrever palavras? In: TEBE-
ROSKY, A.; TOLCHINSKY, L. (Orgs.). Além da alfabetiza-
ção: aprendizagem fonológica, ortográfica, textual e matemáti-
ca. São Paulo: Ática, 1996.

48
Reminiscências matemáticas:  o caso de Rudi

Idemar Vizolli

ALGUMAS PALAVRAS INICIAIS

Recorremos à história de vida para compreender melhor


o processo pelo qual as pessoas superam situações que as
colocaram em evidência, seja em posição de destaque ou de
invisibilidade. Muitas vezes, a posição de destaque altera o es-
tado emocional, elevando ou baixando a autoestima, a depen-
der da situação. De todo o modo, rememoram-se aspectos
de vivências e experiências significativas e singulares de Rudi.
Na história de vida das pessoas, encontram-se elemen-
tos que as instigam/intrigam e/ou que despertam desejos
ou frustrações, quer seja pela superação de dificuldades, ou
por problemas para os quais não se tem solução e que talvez
nem se chegue a ter. De todo modo, os seres humanos têm

49
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

perguntas cujas respostas ainda não foram encontradas ou


mesmo curiosidades ainda não satisfeitas (VIZOLLI, 2006).
As vivências e experiências de Rudi bem exemplificam o
processo de resiliência, termo inicialmente utilizado na física
para tratar da tensão e da compressão de barras de metal. No
caso da compressão, uma barra metálica sofre uma deforma-
ção, mas possui a capacidade de retornar a seu estado inicial
(YUNES & SZYMANSKI, 2001). Para Antunes,

Resiliência é uma abordagem teórica de um conceito extraí-


do da física e muito usado pela engenharia e que representa
a capacidade de um sistema de superar o distúrbio imposto
por um fenômeno externo e inalterado (2003, p. 13).

Sob a perspectiva da física, pode-se dizer que, após pas-


sar por um processo de compressão, distensão ou tensão, um
corpo sofre alterações sem necessariamente perder a capaci-
dade de novamente ser distendido, comprimido ou tensiona-
do e retornar ao estado inicial.
Ao se tratar dos seres humanos, entende-se que a resi-
liência

[...] representa a capacidade de resistência a condições du-


ríssimas e persistentes e, dessa forma, diz respeito à capaci-
dade de pessoas, grupos ou comunidades não só de resistir,
mas de utilizá-las em seus processo de desenvolvimento
pessoal e crescimento social (ANTUNES, 2003, p. 13).

Ao conhecer aspectos de experiências e vivências de


Rudi, o leitor poderá identificar uma série de elementos que
se traduzem em resiliência. As reminiscências de Rudi apre-
sentam episódios que abordam aspectos de sua vida pessoal/

50
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

social, bem como da vida estudantil e profissional. Assim, é


possível entender a resiliência como um conjunto de situações
ou fenômenos interconectados entre si e que, ao se desen-
rolarem na vida cotidiana, em contextos socioculturais e/ou
afetivos, provocam tensões que, ao serem assimiladas e poten-
cializadas, habilitam as pessoas a viverem melhor. De acordo
com Antunes, a resiliência ainda

[...] representa a capacidade de resistência a condições du-


ríssimas e persistentes e, dessa forma, diz respeito à ca-
pacidade de pessoas, grupos ou comunidades não só de
resistir, mas de utilizá-las em seus processo de desenvolvi-
mento pessoal e crescimento social (2003, p. 13).

Ao circunscrever-se em processos sociais mais amplos


em que se considera o contexto específico, a história de cada
sujeito social se constrói e reconstrói coletivamente todos os
dias, de modo que, ao longo do tempo e influenciada pelas
condições do ambiente e tudo o que nele existe, constitui uma
realidade heterogênea, cujos componentes permitem que
cada um (re)elabore de maneira singular as aprendizagens.
Desse modo, os episódios da história de vida de Rudi
foram/são influenciados pelos sujeitos que partilham(ram)
das vivências e pelas condições ambientais do contexto em
que as situações ou fenômenos ocorrem(ram).
A realização do presente registro neste momento histó-
rico foi influenciada por sua experiência como professor for-
mador do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
no Estado do Tocantins, mais especificamente por uma ati-
vidade proposta.
Cabe ainda informar ao leitor que o texto não tem como
foco os aspectos epistemológicos da resiliência, mas, sim, re-

51
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

memorar situações-limite que levam(ram) Rudi a refletir so-


bre suas vivências e experiências, tomar decisões e dar conti-
nuidade à sua história de vida.

REMINISCÊNCIAS

Numa noite de inverno do ano de 1961, nasceu o pri-


meiro filho de um casal de agricultores oriundos do interior
do Estado do Rio Grande do Sul, cuja mãe frequentou a
escola por um período de 3 anos. Embora o pai não tivesse
sido alfabetizado, aprendeu a escrever seu nome e desenvol-
veu habilidades para o cálculo mental, o que lhe possibilitava
solucionar uma série de problemas em que se faz uso de
conceitos matemáticos, principalmente das operações fun-
damentais; com medidas de comprimento, superfície, massa,
capacidade e volume; de fração e porcentagem. Assim como
em tantas outras famílias, inclusive nos dias atuais, cabia ao
homem, dentre outras, as tarefas relativas ao mundo dos ne-
gócios – provavelmente uma das razões pelas quais o pai de
Rudi se sentiu na obrigação de desenvolver habilidades para
o cálculo mental.
A mãe se alfabetizou e por isso cabia a ela as tarefas com
os cuidados da casa, dos filhos e da comunicação escrita.
Sempre zelosa, acompanhava a vida escolar dos filhos, prin-
cipalmente em relação às tarefas de casa.
A história da vida de Rudi tem início no interior do en-
tão município de Ipuaçú, localizado na parte oeste do Es-
tado de Santa Catarina, local onde nasceu. O primogênito
dessa família, assim como seus três irmãos, frequentou parte
dos anos iniciais do ensino fundamental em uma escola mul-
tisseriada localizada na comunidade onde nasceu.

52
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Entre as professoras da escola, havia uma das tias de


Rudi, que o amamentou quando criança. Quando frequen-
tava a segunda série (hoje, o terceiro ano) do ensino funda-
mental, teve que faltar alguns dias de aula para auxiliar os
pais na colheita de produtos agrícolas. Ao retomar as aulas,
ficou sabendo que uma das tarefas seria “decorar a tabuada
do 6” (fatores básicos), mas Rudi havia decorado a tabuada
apenas até o 5. Enquanto a professora passava de classe em
classe tomando a tabuada, Rudi estudava para que não fosse
colocado de castigo de joelhos em grãos de milho. Já com as
pernas trêmulas, ao chegar sua vez, passou a recitar: 6 3 1,
6; 6 3 2, 12; e assim sucessivamente. Ao chegar em 6 3 6,
passou a gaguejar. O resultado dessa história já se sabe: foi
para o castigo, juntamente com colegas que também não ha-
viam decorado a tabuada. Para sair do castigo, era necessário
recitar a tabuada de 6 até 10.
Ajoelhados sobre os grãos de milho, Rudi e seus cole-
gas estudavam. Mesmo diante de reclamações e protestos, os
alunos se viam obrigados a decorar a tabuada para recitá-la
sem gaguejar. Alguns alunos passavam muito tempo sobre
os grãos de milho, outros, no entanto, conseguiam decorá-la
com algumas leituras. Quando a professora havia tomado a
tabuada de todos os alunos, voltava a tomá-la daqueles que
na primeira vez não souberam recitá-la.
Em outro episódio de sua segunda série, aprendeu a
escrever números até 100 e como tarefa de casa deveria es-
crever os números até 500. Ao chegar em casa, falou para
sua mãe qual era a tarefa. Empolgado por ter aprendido a
escrever “números grandes”, após o almoço e enquanto sua
mãe, grávida, fazia a cesta, passou a fazer a tarefa. Sabia que
para escrever o número “cem” os algarismos usados são 1-0- 0
(100); e sabia também que “cento e um” significa 100 com 1,

53
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

então passou a escrever os números da seguinte maneira:


1001, 1002, 1003, [...] 10011, 10012, [...] 10099, 2000, 20001,
[...] 200010, 200011, [...] 30000, 300001, [...] 3000011, e assim
sucessivamente.
Ao acordar, a mãe atenta observou o que o filho estava
escrevendo e, com o olhar de pesar, falou: “Não é desse jeito
que se escreve! Está tudo errado!”.
Rudi argumentava que “‘cem’ se escreve com dois 0
(100) e ‘cento e um’ significa 100 mais 1, então se escreve
100 e 1 (1001); ‘cento e dois’, 100 e 2 (1002); e assim por
diante. Se ‘cem’ se escreve com dois 0, então ‘duzentos’ se
escreve com três 0; ‘trezentos’, com quatro 0; e assim suces-
sivamente”.
A lógica estabelecida por Rudi apresenta íntima relação
com o modo como se pronuncia os números (“cento e um”
= 1001) aliado à quantidade de 0, ou seja, se “cem” se es-
creve com dois 0 (100), então “duzentos” tem de ser escrito
com três 0 (2000); “trezentos”, com quatro 0 (30000); e as-
sim sucessivamente.
Não convencida, a mãe, sabiamente, retoma os argu-
mentos do filho e fala: “Tá certo que cento e um é cem mais
um, mas não é desse jeito que se escreve”.
Rudi, inconformado, pergunta: “Então, como se escre-
ve?”.
A mãe responde: “Você sabe fazer contas. Então faça a
conta”.
Rudi passou a “armar a conta na vertical”, assim:

100
+1
101

54
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Com isso, Rudi percebeu que “cento e um” se escreve


101, e não 1001.
Diante disso, apagou todos os números que já havia es-
crito e passou a escrevê-los seguindo as orientações de sua
mãe. Ao escrever o número 199, Rudi deparou-se novamen-
te com um obstáculo: como escrever o número “duzentos”?
Retomou a ideia de somar 1 ao antecessor, assim, “armando
a conta” – 199 + 1 –, percebeu que “duzentos” também se
escreve com dois 0 (200) e assim Rudi fez a tarefa de casa.
No dia seguinte, ainda inconformado com o trabalho
em vão, a caminho da escola pensava consigo mesmo: “Será
que a professora ia perceber que eu havia errado a escrita dos
números? Se ela não percebesse, eu não teria tido o trabalho
de escrever tudo novamente”.
Esse episódio desencadeou, do ponto de vista das
aprendizagens, dois aspectos interessantes: a lógica estabele-
cida por Rudi para registrar os números; e a orientação dada
por sua mãe somada à reflexão feita pelo filho, que permiti-
ram a escrita correta dos números.
Para que os filhos mais velhos auxiliassem nas tarefas
da família, principalmente no trato com os animais e no
cuidado com os irmãos mais novos, após ter frequentado
por 2 anos a terceira série (hoje, o quarto ano) do ensino
fundamental, Rudi foi transferido para uma escola localizada
na comunidade próxima, enquanto seu irmão, em período
contrário, continuava estudando na escola da comunidade
onde nascera.
Com a transferência, Rudi teve outras surpresas... O
professor solicitou que todos os alunos levassem à escola a
certidão de nascimento. Ao retornar da escola, Rudi pediu à
sua mãe o documento. Ela prontamente abriu uma caixa que

55
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

ficava sobre o guarda-roupas, tirou de lá o papel e passou às


mãos de Rudi.
Ao ler os dados e informações que constam de sua cer-
tidão de nascimento, Rudi teve duas surpresas que marcaram
sua vida para sempre: primeiro, seu nome não era Rudi; e,
além disso, a data de nascimento que constava na certidão
não era a mesma em que se comemorava seu aniversário.
Mesmo que sua mãe tenha lhe falado que foi um dos
tios quem foi ao cartório para registrá-lo e que certamente
foi o escrivão que tinha errado o registro, Rudi não aceita-
va. Passou a exigir explicações sobre o porquê de seus pais
não terem ido fazer o registro e sobre a não retificação do
mesmo.
Sensibilizada com os protestos de Rudi, sua mãe tentava
acalmá-lo e acalentá-lo, o que de nada adiantava. Rudi conti-
nuava a protestar, o que também de nada adiantou. Mesmo
sabendo que seu nome oficial não era aquele pelo qual lhe
chamavam e que sua data de nascimento mudara, continuou
sendo chamado de Rudi e a comemorar aniversário de acor-
do com o dia em que nascera.
Na escola, o professor se referia a Rudi pelo nome que
consta da certidão. Ele não respondia porque tal nome não
lhe dizia nada – isto é, faltava-lhe identificação. Ao registrar
a presença às aulas, eram os colegas quem avisavam Rudi que
o professor pronunciava seu nome.
Ainda que essa situação não lhe agradasse em nada, com
o passar do tempo Rudi foi aprendendo a conviver e assimi-
lar o nome da certidão, o que levou muitos anos. Quando do
ingresso na universidade, viu-se distante dos familiares e, em
meio a pessoas com as quais jamais convivera, apresentava-
-se pelo nome da certidão. Com isso, viu-se diante do desafio
de assumir a identidade de seu nome. No início, foi preciso

56
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

fazer um grande esforço para conviver com essa realidade.


O tempo e a maturidade foram seus melhores aliados nessa
empreitada.
Hoje, Rudi convive de modo sereno com seus dois no-
mes: seus familiares continuam a lhe chamar pelo nome de
Rudi e quando não o fazem, lhe soa estranho, assim como
lhe soa estranho quando seus amigos o chamam por esse
nome. É como se tivesse um nome para os familiares e um
nome social.
Você deve estar se perguntando: qual é o nome de Rudi?
O fato de não ter revelado seu “nome social” não é um indí-
cio da falta de identificação? Até pode ser. De todo o modo,
no decorrer do texto o nome oficial de Rudi será revelado.
Após ter frequentado a quarta série (hoje, o quinto ano)
do ensino fundamental por 2 anos consecutivos, Rudi viu
a possibilidade de realizar um de seus sonhos: continuar a
estudar. Tal possibilidade lhe parecia real porque no distri-
to próximo à comunidade onde morava foi implantada uma
escola de educação básica que atendia alunos do segundo
segmento do ensino fundamental (hoje, do sexto ao nono
anos). Depois de tanto insistir, seu pai concordou em ma-
triculá-lo.
A felicidade de Rudi acabou já no início das aulas: seu
pai não permitiu que ele frequentasse a escola. O impedi-
mento se justificava porque Rudi já contava 14 anos, idade
que lhe permitia assumir de forma mais intensa o trabalho
na lavoura. No bojo da justificativa do pai, estava posto que,
para trabalhar na lavoura, não há necessidade de estudo –
realidade ainda vivida por muitas pessoas que residem no
meio rural.
Ao auxiliar seu pai nas atividades do cultivo e cuidados
com as lavouras, Rudi participou de situações em que se fez

57
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

necessário efetuar cálculos de área. Entre suas experiências,


destaca-se a “cubagem de terra”, como fala seu pai, termo
também utilizado por Knijnik (1996).
Para efetuar o cálculo da área de um terreno não quadra-
do ou não quadrilátero, o pai de Rudi soma as medidas das
laterais do terreno e divide por quatro, obtendo assim a me-
dida do lado de um quadrado e em seguida multiplica o valor
dessa medida por ela mesma, obtendo a medida da área do
terreno. Ao se tratar de um espaço triangular, por exemplo, o
pai de Rudi soma as medidas dos três lados e divide por qua-
tro, transformando, desse modo, em um quadrado. Trata-se
de “quadratar”, procedimento também utilizado quando se
trata de um terrendo de forma pentagonal.
A ideia de quadratar também consta dos estudos de
Knijnik (1996), mas, ao se tratar de um terreno na forma
triangular, há diferença no modo de operar os dados e in-
formações. Nesse caso, os sujeitos pesquisados pela autora
efetuam as medidas das dimensões do triângulo e adicionam
o 0, referindo-se a um dos ângulos. Após somá-las, dividem
por quatro e posteriormente efetuam o cálculo da área.
Embora esse modo de efetuar o cálculo da área de um
terreno com tais características não seja reconhecido cientifi-
camente, ele é bastante característico, típico e usual no meio
rural, além de ser funcional da ótica dos agricultores. No
meio rural, o rigor e a exatidão nas divisas dos terrenos não
tem o mesmo significado que no meio urbano, por exemplo.
Isso se deve principalmente a dois fatores não desconexos:
um relacionado às dimensões dos terrenos e o outro, ao re-
levo.
Uma vez que os terrenos no meio rural são utilizados
para o cultivo de produtos agrícolas ou ainda para a criação
de animais, normalmente possuem extensão maior. Além

58
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

disso, as divisas muitas vezes obedecem à conformação do


relevo do terreno (nascentes de água, córregos, rios, estra-
das, morros, entre outros). Assim, o que se observa são as
facilidades de manuseio do solo mais do que as divisas. Em
outros termos, pode-se dizer que se alguém perde espaço em
um determinado lugar, ele pode ser compensado em outro.
Outro aspecto que merece ser destacado quando se trata
da “cubagem de terra” diz respeito ao modo como são aferi-
das as medidas das dimensões de um terreno. Para aferi-las,
o pai de Rudi percorria o perímetro distendendo uma corda.
Desse modo, a ponta de uma corda com um dado compri-
mento é presa em um determinado local e, ao percorrer as
margens do terreno distendendo-a, obtém-se as medidas das
dimensões do terreno. Muitas vezes, Rudi auxiliou seu pai
nessa tarefa. Cabia a ele prender a ponta da corda num de-
terminado ponto enquanto seu pai a distendia.
Na tentativa de continuar estudando, Rudi passou a fre-
quentar o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral),
o qual acontecia na escola que havia frequentado até a tercei-
ra série (hoje, o quarto ano). Nesse curso, Rudi viveu novas
experiências.
No Mobral, muitos dos problemas de matemática pro-
postos em sala de aula referiam-se a questões do contexto
imediato, como a compra e a venda de produtos agrícolas,
assunto familiar às pessoas adultas da região oeste do Estado
de Santa Catarina, bem como de várias outras regiões do país
e do mundo. Esse aspecto se deve à relação utilitária da ma-
temática, traço muito próprio do aprendiz adulto, conforme
menciona Fonseca (2002).
Muitos dos colegas adultos sabiam resolver “de cabeça”
os problemas que eram propostos, mesmo que não tivessem
um amplo domínio conceitual das ideias e relações matemá-

59
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

ticas envolvidas no problema. De alguma forma, eles articu-


lavam os conhecimentos matemáticos com outros saberes
que lhes permitissem realizar seu trabalho. De acordo com
Giardinetto (1999), ao inserir-se numa realidade, o homem
cria e produz meios para garantir suas necessidades.
Para Franco (2000), ao lidar com o que precisam, os su-
jeitos podem desenvolver um pensamento operatório formal
sem necessariamente depender de uma vivência escolar. Ao
se deparar com um problema prático ou simbólico, o sujeito
busca uma forma de poder lidar operatoriamente com ele
e o resultado dessa operação se transforma novamente em
conteúdo para ser expresso como solução do problema. A
realidade imediata exigia que se efetuasse operações mate-
máticas que permitissem calcular as despesas, os lucros ou
os prejuízos quando da comercialização de produtos. Para
isso, inventavam-se estratégias para encontrar a resposta de
um dado problema.
Essas estratégias são concebidas como um conjunto de
procedimentos que possibilitam atingir um determinado ob-
jetivo – neste caso, solucionar os problemas de matemática
que eram propostos em sala de aula. De acordo com Polya
(1995), trata-se de elaborar e executar um plano de ações
flexíveis que permitem encontrar elementos que possibili-
tam responder ao que é perguntado no enunciado do pro-
blema. Para Spinillo (1995), as estratégias refletem o modo
de pensar e as relações que o sujeito estabelece acerca dos
dados contidos em um problema. Analisar as estratégias é
algo complexo, mas auxilia a compreender as noções que as
pessoas apresentam e as dificuldades que experimentam na
aquisição de conceitos matemáticos.
Com o passar do tempo e a partir dos diálogos com
os colegas (trocando experiências e compartilhando estra-

60
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

tégias), Rudi foi aprendendo como proceder para organizar


as informações e articular os dados contidos no problema
afim de operar matematicamente. Já as pessoas que não
dominavam o código da escrita matemática demonstravam
interesse em conhecer a forma canônica de resolução, isto
é, solucionar os problemas por meio da utilização de al-
goritmos. Mas não é só isso. Ao frequentarem a escola, as
pessoas adultas objetivam conhecer a matemática que é en-
sinada na escola, compreender os conceitos matemáticos.
De acordo com Piconez (2002), há expectativa e esforço
dos alunos para aceder ao conhecimento formal, ideia que
também é compartilhada por Carvalho (1995) e Fonseca
(2001; 2002).
Pensando na situação, hoje, parece que Rudi e seus cole-
gas haviam tomado consciência de que o cálculo mental lhes
era útil, mas não o suficiente para suprir as demandas criadas
pelo contexto social. Ele acreditava que o cálculo mental era
mais simples e menos trabalhoso. Ocorriam concomitante-
mente, então, duas realidades distintas, mas não desconexas:
Rudi queria ressignificar o que fazia e também solucionar
os problemas que lhe eram propostos. Ressignificar o que
faziam significava, para seus colegas, atribuir um status aos
cálculos, de forma que pudessem operar matematicamente
utilizando algoritmos convencionais, enquanto ele queria
compreender como operar com os dados e as informações
disponibilizados nos enunciados dos problemas. Cada um,
a seu modo, objetivava compreender os conceitos matemá-
ticos envolvidos no processo de solução dos problemas es-
colares que lhes eram propostos, criando, procurando meios
e “inventando” estratégias para enfrentar a realidade; ou,
conforme aponta Silva (2002), desenvolvendo a capacidade
operativa com a matemática, como consequência da com-

61
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

preensão das estruturas e ideias matemáticas e não da sim-


ples aplicação de algoritmos ou fórmulas.
Ao mesmo tempo em que Rudi e seus colegas apresen-
tavam diferenças em relação à forma de solucionar os pro-
blemas de matemática que lhes eram propostos em sala de
aula, entre eles havia colaboração e respeito em relação aos
saberes de que cada um dispunha. Queriam acessar o conhe-
cimento reconhecido pela sociedade.
Enquanto Rudi frequentava o Mobral, sua mãe o auxi-
liava no desenvolvimento das atividades, inclusive quando se
tratava de cálculos sobre porcentagem. Nesse sentido, ele foi
orientado pela mãe a multiplicar o valor (quantidade inicial)
pela taxa e dividir por 100 e, ao se tratar de aumento, deve-
ria adicionar o quociente à quantidade inicial, enquanto no
caso de desconto deveria subtrair o quociente da quantidade
inicial.
Os problemas tratavam de situações cotidianas, como o
exemplo apresentado a seguir: o preço de venda de um saco
de 40 kg de ração concentrada para galinhas é R$65,00. Com
pagamento à vista, o comerciante dá um desconto de 5%.
Qual o valor a ser pago pelo saco de ração?
Seguindo as orientações da mãe de Rudi, temos:

65
38
520

520 4 100 = 5,20

65,00 – 5,20 = 59,80

62
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Esse raciocínio pode ser expresso da seguinte maneira:


[(65 4 8) 4 100] = [520 4 100] = 5,20. Então, 65 – 5,20 =
59,80. De outro modo, pode ser representado assim: 65 –
[(65 3 8) 4 100] = 65 – [520 4 100] = 65 – 5,20 = 59,80.
Essas são algumas das maneiras de registrar os cálculos
tomando-se como referência o raciocínio indicado pela mãe
de Rudi. Novamente, temos um modo funcional para solu-
cionar problemas com que as pessoas se deparam em seu
dia a dia.
Incentivado pela mãe, Rudi insistia em prosseguir os es-
tudos. Depois de tanta insistência, seu pai aceitou conversar
com os avós maternos de Rudi para que este passasse a mo-
rar com eles afim de estudar. Assim, no mês de junho, Rudi
passou a residir com os avós em Trindade do Sul (também no
Estado do Rio Grande do Sul) e passou a frequentar a quinta
série (hoje, o sexto ano). Dado que não contava com 75% de
frequência, ao concluir o ano letivo teve que fazer as provas
finais (exame), mas obteve aprovação.
Na continuidade do seu processo de escolarização, Rudi
foi descobrindo formas para utilizar algoritmos, regras, ma-
cetes e fórmulas, embora não compreendesse o sentido da-
quilo que estava fazendo. Rudi não teve dificuldades para
solucionar os problemas de matemática que eram propostos
em sala de aula; em outras palavras, o exercício do cálculo
mental e a utilização de registros canônicos foram funda-
mentais para ingressar no mundo da matemática formal, em-
bora o significado do trabalho que desenvolvia na escola só
fizesse sentido para aquele tipo de exercício de matemática.
Ao concluir o ensino fundamental, o irmão e uma das
irmãs de Rudi também moravam com os avós para que pu-
dessem estudar. Rudi então manifestou aos pais o desejo de
continuar os estudos, o que implicava sair da casa dos avós

63
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

e residir num local onde as escolas oferecessem o ensino


médio. Com a indiferença do pai, Rudi falou à mãe que faria
inscrição para concorrer a uma vaga numa escola pública em
Passo Fundo (no Estado do Rio Grade do Sul). Como das
outras vezes, sua mãe, embora preocupada e insegura, incen-
tivou o filho a continuar estudando.
Rudi juntou o pouco dinheiro da poupança que fizera
quando trabalhava com sua tia, como agente de rodoviária,
e foi à luta. Conseguiu a vaga na escola pública e passou a
residir numa cidade que nem seus pais conheciam. Ainda no
primeiro mês, conseguiu emprego numa lanchonete. Desse
modo, trabalhava durante o dia e estudava à noite. Assim,
cursou o primeiro do ensino médio.
Como já estava com 18 anos de idade e se via contra-
riado com o modo de agir do patrão, Rudi decidiu mudar de
cidade e procurar uma escola que oferecesse o curso de edu-
cação de jovens e adultos (EJA). Conversou com uma prima
de segundo grau que trabalhava em Pato Branco (no Estado
do Paraná), juntou suas roupas, o pouco dinheiro e os livros
de que dispunha e passou a morar com ela, dividindo as des-
pesas de aluguel e alimentação.
Como já era de costume, passou a procurar emprego, o
que foi difícil. Para sobreviver, Rudi passou a prestar servi-
ços de jardineiro e posteriormente trabalhou na construção
civil. No segundo semestre daquele ano, conseguiu um em-
prego numa lanchonete.
Na época em que Rudi ingressou no ensino médio, a
escola em que ele estudou na quarta série (comunidade pró-
xima onde seus pais residiam) passou a oferecer o segundo
segmento do ensino fundamental (quinta à oitava séries), as-
sim seu irmão e sua irmã voltaram a morar com os pais.

64
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Antes mesmo de concluir o ensino médio, Rudi viu seus


pais iludidos pela rentabilidade da caderneta de poupança:
seus pais venderam a terra onde moravam e passaram a re-
sidir em Sapucaia do Sul, cidade da grande Porto Alegre, no
Estado do Rio Grande do Sul. Rudi não concordava com a
venda das terras, mas nada podia fazer. Contrariado, conti-
nuou a cursar a EJA e só voltou a residir com os pais após
concluir o ensino médio.
Ele acreditava que a realidade era outra: ele e seus ir-
mãos poderiam estudar. Ledo engano! A inflação corroía,
a cada dia, o dinheiro obtido com a venda das terras. Ainda
inconformado com os negócios de seus pais, com a falta de
um sentimento de pertencimento em relação à nova casa e
com a falta de identidade com o local onde seus familiares
residiam, Rudi tomou a decisão de voltar à terra natal.
Mais um recomeço – agora, no meio de seus amigos e
parentes. Como já havia concluído o ensino médio e com a
falta de professores para lecionar na escola onde seu pai o
matriculou e não deixou frequentar, Rudi passou a ministrar
aulas de geografia. Assim, iniciou sua carreira docente e deu
continuidade aos estudos superiores.
No ano seguinte, Rudi iniciou, em regime de férias, o
curso de ciências físicas, biológicas e matemática (licenciatu-
ra de curta duração) na Universidade do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul, hoje Unijuí. Distante de casa, dos
familiares e dos amigos, Rudi estabeleceu laços de amizade
com pessoas que nem sequer sabiam antes de sua existência
e esta foi a oportunidade que teve para assumir sua identida-
de com o nome da certidão de nascimento, Idemar Vizolli
(autor deste relato).
Onze anos depois de concluir o curso de licenciatura
de curta duração, também em regime especial (aos finais de

65
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

semana e no período de férias), deu continuidade a seu curso


de graduação – licenciatura plena em matemática, na Uni-
versidade do Contestado (UnC), em Caçador, no Estado de
Santa Catarina.
Entre os cursos de licenciatura de curta duração e a ple-
na, frequentou uma especialização no ensino de ciências de
quinta a oitava séries, na Fundação Universidade Regional
de Blumenau (Furb), em Blumenau, também no Estado de
Santa Catarina.
Por ocasião da realização do estágio supervisionado,
teve os primeiros contatos com o modo como os pescadores
do litoral catarinense efetuam a partilha do valor monetário
do pescado e iniciou seus estudos com vistas ao curso de
mestrado em educação.
Neste curso, realizado na Universidade Federal de San-
ta Catarina (UFSC), entrou em contato com uma série de
teorias e metodologias de pesquisa, optando por desenvol-
ver um estudo sobre os registros de representação semiótica
necessários à compreensão de porcentagem, entendendo-a
como proporção, o qual resultou em sua dissertação1.
A escolha dessa temática não foi ao acaso. Idemar queria
entender melhor o que se passara quando de seus estudos no
Mobral e na educação básica, aliando tudo isso ao proces-
so de ensino e aprendizagem de matemática. Ao rememo-
rar aspectos de suas vivências e experiências, por exemplo,
o modo como sua mãe lhe ensinou a efetuar cálculos sobre
porcentagem, buscava alternativas para responder às per-
guntas que o instigam(ram) e/ou o intrigam(aram), ou seja,
buscava respostas às perguntas e/ou curiosidades ainda não

 Maiores informações sobre esse estudo podem ser encontradas em


1

VIZOLLI (2001).

66
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

satisfeitas, agora como professor e iniciando uma nova etapa


em sua carreira profissional, como pesquisador.
Antes mesmo de concluir o curso do mestrado, passou
a lecionar fundamentos e metodologia do ensino de matemá-
tica no curso de Pedagogia na Universidade do Vale do Itajaí
(Univali), em Itajaí, no Estado de Santa Catarina. Ainda nessa
universidade, passou a integrar a equipe de professores e coor-
denação pedagógica do Programa para educação de jovens e
adultos, quando colaborou com a elaboração da proposta pe-
dagógica “Expressar aprendendo” e os cadernos pedagógicos
para o curso. Este curso foi organizado em ciclos de aprendi-
zagem, assim o primeiro e o segundo ciclos correspondem ao
período de alfabetização (anos inicias do ensino fundamental);
o terceiro e o quarto ciclos correspondem ao segundo segmen-
to do ensino fundamental (quinta a oitava séries, ou sexto ao
nono ano); e o quinto ciclo corresponde ao ensino médio. As-
sim, Idemar iniciou uma nova etapa em sua carreira profissio-
nal para a qual retomou aspectos de suas vivências e experiên-
cias, sobretudo na EJA, agora como professor e pesquisador.
Ao trabalhar na universidade, Idemar percebeu que os
conhecimentos de que dispunha eram insuficientes para re-
fletir de forma mais aprofundada sobre a problemática em
que se insere o processo de ensino e aprendizagem de ma-
temática, sobretudo na EJA. Na tentativa de aprimorar seus
estudos, sentiu a necessidade de cursar o doutorado.
No doutorado cursado na Universidade Federal do Pa-
raná (UFPR), desenvolveu um estudo sobre os registros de
representação semiótica de alunos e professores de EJA ao
solucionarem problemas de proporção/porcentagem. A es-
colha do tema contempla três aspectos das vivências e expe-
riências: porcentagem, processo de ensino e aprendizagem
de matemática e proporção/porcentagem.

67
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

A trajetória da carreira profissional possibilitou condi-


ções para que ele, ao mesmo tempo em que ampliasse e apro-
fundasse as reflexões, retomasse situações vivenciadas, tanto
como aluno, quanto como professor e, mais recentemente,
como pesquisador. Esse é um forte indício de que as pessoas
buscam, do modo que podem e/ou conseguem compreender
melhor, aspectos de vivências e experiências vividas em seus
contextos socioculturais, sejam elas pessoais ou profissionais.
De todo modo, são situações que necessitam de respostas, se
for possível obtê-las, mesmo que seja para o próprio sujeito.
Durante o curso para seu doutoramento, retomou a te-
mática sobre o modo como os pescadores efetuam a partilha
do pescado, agora orientando uma pesquisa que contou com
um bolsista de iniciação científica júnior pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de Santa Catarina (Fapesc).
Mais recentemente, passou a desenvolver pesquisas
junto de uma comunidade quliombola. Desta feita, procura
conhecer o modo como pessoas em seus contextos sociocul-
turais solucionam problemas que envolvem conceitos mate-
máticos. Assim, (re)vive situações de sua infância no meio
rural.
Em 1986, ingressou como professor efetivo em uma es-
cola da rede pública estadual de Santa Catarina, onde traba-
lhou por 27 anos. No ano 2000, passou a lecionar em cursos
de licenciatura; e em 2008 ingressou como professor de en-
sino superior na Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Os relatos mostram que as trajetórias (estudantil e pro-
fissional) ocorreram concomitantemente e do modo como
ele conseguia. Mesmo tendo frequentado, em dois momen-
tos distintos, cursos de EJA (Mobral e parte do ensino mé-
dio), conseguiu concluir o curso superior em regime especial
(férias e finais de semana) e cursar o doutorado.

68
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Nem o cálculo mental, nem a matemática que foi en-


sinada na escola foram suficientes para compreender e dar
significado aos conceitos matemáticos estudados. Foi pre-
ciso uma longa caminhada como professor e depois como
pesquisador para compreender alguns dos aspectos que hoje
julga importantes ao processo de ensino e aprendizagem da
matemática e poder significá-la para que os alunos passem a
compreender o conceito do que estão estudando e o façam
com sentido.
Hoje, compreende que as regras, macetes e fórmulas de-
correm de regularidades que são identificadas em situações
matemáticas que possibilitam generalizações e abstrações.
Estas conduzem ao resultado de uma operação matemática
mais rapidamente.
Muitas vezes, a maneira como as pessoas solucionam pro-
blemas de matemática propostos em sala de aula é desconheci-
da por muitos professores, inclusive para aqueles que lecionam
a disciplina. Apelamos aqui para a responsabilidade social da
escola, destacada por Silva (2002), principalmente no que con-
siste em habilitar os alunos para formular e resolver problemas
matemáticos do contexto em que a escola está inserida, pois
muitos de nós, professores, desconhecemos aspectos impor-
tantes da cultura que nos circunda (VIZOLLI, 2006).
Uma das razões que leva muitas pessoas adultas a retor-
narem ao processo de escolarização – se não a razão principal
– está relacionada às exigências do mercado de trabalho.

São, portanto, os próprios trabalhadores que, diante das


necessidades novas, passam a buscar a escolaridade como
possibilidade de acesso e permanência no emprego, ascen-
são profissional, melhoria de seus salários e condições de
vida, bem como outros interesses (SANTA CATARINA,
2005, p. 120).

69
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Carvalho (1995) destaca que pessoas com pouca escola-


rização que sabem solucionar alguns dos problemas de seu
contexto social imediato2 não veem relação do que fazem
com os conhecimentos matemáticos de que necessitam para
ter sucesso na escola. Isso nos permite dizer que pessoas
escolarizadas, inclusive os professores que ensinam mate-
mática, não conhecem, por exemplo, como os pescadores
efetuam o sistema de rateio do valor monetário do pescado,
como os agricultores efetuam a cubagem de terra ou ma-
deira etc. Mesmo quando conhecem, têm dificuldades para
identificar a relação entre os conhecimentos matemáticos
implicados na solução dos problemas e o saber escolar de
matemática. E ainda que consigam dificilmente reconhecem
a relevância de estabelecer essa relação para o aprendizado
da estratégia escolar e, mais ainda, para ampliá-la e aprimorá-
-la (em vez de apenas substituí-la).
Além de saber como as pessoas solucionam problemas
que envolvem conceitos matemáticos em seu contexto social
imediato, é importante que os professores identifiquem os
conhecimentos não escolares apresentados nessas soluções.
Idemar acredita que tanto a fala como o registro dos
cálculos podem fornecer elementos que permitam aos pro-
fessores saber como os alunos organizam e tratam as infor-
mações contidas no enunciado de um problema. Fonseca
refere-se à habilidade matemática, considerando-a como:

2 Utilizamos esta expressão para nos referir ao contexto em que as


pessoas vivem: a rua, o bairro, a cidade, o comércio, a profissão que
exercem, o trabalho que realizam, as atividades que desenvolvem em
seu dia a dia, sem perder de vista que este contexto sofre influências e
influencia as políticas do contexto social mais amplo.

70
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

[...] capacidade de mobilização de conhecimentos associa-


dos à quantificação, à ordenação, à orientação e às suas
relações, operações e representações, na realização de tare-
fas ou na resolução de situações-problema, tendo sempre
como referência tarefas e situações com as quais a maior
parte da população brasileira se depara cotidianamente
(2004, p. 13).

Para além da falas e dos registros, acredita também que,


se os professores identificarem os diferentes registros de re-
presentação semiótica (DUVAL, 1993) como ponto de par-
tida e de ancoragem para a proposição e o desenvolvimento
de atividades em sala de aula, poderão auxiliar os alunos a
ampliar os conhecimentos que já possuem, de modo a com-
preender os conceitos estudados.
O conhecimento sistematizado de que já dispunha alia-
do às experiências de 16 anos de magistério permitiram-lhe
dar os primeiros passos afim de (re)pensar sua relação com
a matemática, no papel de professor desta disciplina, como
um instrumento que pudesse contribuir e trazer aos alunos
perspectivas de melhorias nas condições de aprendizagem.
Mas aquilo do que dispunha era insuficiente para tanto. Para
Idemar, o problema não estava nos alunos, mas sim na for-
ma como a matemática lhes era(é) ensinada. Como afirma
Freire (1991, p. 58), não se começa a ser professor “numa
certa terça-feira às 4h00 da tarde”.
Na continuidade dos estudos, Idemar voltou seu olhar
para o ensino da matemática na EJA, mais especificamente
para saber como pessoas sem escolarização ou pouco esco-
larizadas solucionam problemas de matemática em seu con-
texto social imediato e entender as estratégias que utilizam
para solucionar os problemas que lhes são propostos.

71
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Ao atuar na formação continuada de professores do


curso de EJA que ensinam matemática, Idemar verificou
que dificilmente os professores conseguem perceber que
um dado conceito matemático interconecta-se a outro e que
existem diferentes sistemas de registros possíveis de serem
utilizados para representar um dado objeto matemático. Per-
cebeu, também, que os professores, assim como muitos dos
alunos, fazem uso de estratégias ou procedimentos usuais
no contexto social imediato para solucionar problemas de
matemática propostos em sala de aula.
Esse panorama indica que é preciso estudar com os
professores teorias e metodologias que fundamentem sua
ação, de forma a melhorar o processo de ensino e aprendi-
zagem da disciplina. Para tanto, o professor que atua na for-
mação de professores deve discutir com eles o conteúdo e
os objetivos a que se destina a formação continuada, porque,
ao contrário, teremos o que se pode chamar de “pacotes” de
cursos, que pouco têm contribuído para a melhoria da quali-
dade da ação docente em sala de aula.
Atualmente, Idemar focou seus estudos em conhecer o
modo como pessoas da comunidade quilombola Lagoa da
Pedra, em Arraias, no Estado do Tocantins, fazem uso de
ideias e conceitos de matemática em seus afazeres cotidianos.
A proposta curricular da EJA destaca que:

[...] a aquisição de novos conhecimentos deve considerar os


conhecimentos prévios dos alunos. [...] é primordial partir
dos conceitos decorrentes de suas vivências, suas interações
sociais e sua experiência pessoal (BRASIL, 2002, p. 15-17).

Esta proposta também chama a atenção para a neces-


sidade de um tratamento respeitoso com os conhecimen-

72
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

tos matemáticos que os alunos possuem, conforme destaca


Fonseca (2001; 2002).
Esse tratamento respeitoso ocorre quando o professor
consegue auscultar – nas falas e nos registros de representa-
ção por eles utilizados – as noções matemáticas que já pos-
suem, as reminiscências de que fala Fonseca (2001; 2002),
o tempo de aprendizagem dos alunos, a complexidade do
conceito em discussão, o modo de os alunos se relacionarem
com a matemática e as vivências e experiências que os alunos
possuem. O professor precisa, ainda, perceber as conexões
ou relações entre as noções matemáticas que os alunos usam
e conhecem fora da escola e os conceitos matemáticos es-
colares. Não basta o professor de matemática ser um bom
matemático, ele precisa, sim, deter profundos conhecimentos
matemáticos e ter sensibilidade e tato no trato com os alunos
e o ensino.
O espaço da formação de professores, inicial ou conti-
nuada, é um espaço fértil para se refletir sobre tais relações.
Isso exige dos formadores de professores uma tomada de
posição diante do processo de construção de conhecimentos
matemáticos por parte dos alunos e das implicações didáti-
cas dele decorrentes.
O cenário da formação de professores que ensinam ma-
temática, especialmente na EJA, aponta para a necessidade
de os professores (re)conhecerem os alunos como sujeitos
sociais. Isso corrobora o que já foi mencionado sobre a ne-
cessidade de os professores tomarem como ponto de partida
os conhecimentos que os alunos já possuem. Significa que,
além de não perder de vista os conceitos matemáticos, o pro-
fessor precisa, igualmente, dar atenção ao processo adotado
pelos alunos quando da solução dos problemas e na forma
como expressam suas soluções.

73
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Ao solucionarem problemas que envolvem conceitos


matemáticos, as pessoas estabelecem relações entre os dados
e as informações contidos nos enunciados dos problemas
com situações do contexto social, seja por meio do tema ou
assunto que o problema aborda (extra-matemática), seja por
meio de valores (matemática – quantidades ou taxas) que
lhes sejam mais acessíveis. Esses apoios têm conexão com
situações que não são de ordem estrita da matemática, como
o trabalho, o comércio, o salário, a família, a escola; e situa-
ções que dizem respeito ao conteúdo matemático envolvido
no problema, a exemplo, taxas percentuais múltiplas de 5%
ou 10%, metade, dobro, decomposição de quantidades, pro-
blemas resolvidos anteriormente, reminiscências escolares,
estimativa, cálculo mental, tentativa e erro.
De acordo com Acioly-Régnier (1997), pode-se dizer que
esses apoios são variáveis culturais que desempenham um pa-
pel importante no processo de conceitualização. As significa-
ções e justificativas mudam em função da representação que
o sujeito tem ou faz da situação. Fonseca (2001) afirma que
as demandas da vida social extraescolar, particularmente a da
vida profissional, constitui uma das condições que favorecem
a aprendizagem da matemática. Piconez (2002) acompanha
os autores que entendem que o ambiente social é determi-
nante nas construções cognitivas dos adultos.
Quando um aluno busca apoio em situações de seu con-
texto social mais imediato, o professor precisa saber consi-
derar as variáveis pertinentes ao conteúdo cognitivo e fazer
com que o aluno as perceba. Não se trata de negar ou ne-
gligenciar sua forma de fazer e de pensar; pelo contrário,
trata-se de estimulá-lo e instigá-lo para que perceba outras
possibilidades. Acreditamos que este deve ser o ponto de
partida no processo de ensino e aprendizagem.

74
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Pesquisadores de educação matemática na EJA como


Carvalho (1995), Franco (2000), Fonseca (2001; 2002) e Pico-
nez (2002), entre outros, concordam que os alunos possuem
conhecimentos matemáticos que foram adquiridos em seu
contexto social e que são mobilizados para solucionar pro-
blemas propostos em sala de aula. Eles destacam que esses
conhecimentos devem ser considerados pelos professores no
processo de ensino e aprendizagem. O que se observa, no en-
tanto, é que muitos dos professores que ensinam matemáti-
ca têm dificuldades para identificar os conhecimentos que os
alunos possuem e a forma como os utilizam para solucionar
problemas, assim como para aproveitar esses conhecimentos
para propor atividades de sala de aula. Embora essa trajetória
profissional não seja o melhor exemplo, ela é um forte indica-
tivo de que as reflexões sobre o próprio fazer pedagógico au-
xiliam sobremaneira a formação e a constituição do professor.
Na EJA, é bastante comum os alunos responderem
oralmente a uma série de problemas de matemática que são
apresentados em sala de aula, mas nem sempre registram
suas respostas obedecendo às regras de significado e funcio-
namento da linguagem matemática (DUVAL, 1993; 1995),
o que impele o professor a fazer uma ausculta nos registros
verbais orais e escritos feitos pelo aluno, na tentativa de ex-
plicitar as relações entre as diferentes formas de conheci-
mento do objeto em estudo, valorizando ou indicando novas
possibilidades de registro.
Algumas vezes, as pessoas estabelecem relação entre os
dados e as informações contidos no próprio enunciado do
problema, isto é, sem buscar apoio em tema/assunto fora
do problema. Independentemente disso, pode-se dizer que
as pessoas buscam apoio nos conhecimentos de que já dis-
põem, principalmente em conhecimentos matemáticos.

75
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

O exposto coaduna-se aos resultados de pesquisadores


como Acioly-Régnier (1997) e Piconez (2002), segundo os
quais as significações e justificativas mudam em função da
representação que o sujeito tem ou faz da situação. Tratam-
-se de variáveis culturais que desempenham um papel im-
portante no processo de conceitualização. De acordo com
Fonseca (2001), as demandas da vida social extraescolar,
particularmente a da vida profissional, constituem uma das
condições que favorece a aprendizagem da matemática. Po-
demos dizer, portanto, que o ambiente social é um compo-
nente determinante nas construções cognitivas dos adultos.
Sob o entendimento de que o trabalho de investigação
dos professores pode lhes auxiliar na elaboração e na propo-
sição de atividades que possibilitam aos alunos ampliar seus
conhecimentos de forma mais articulada, sugerimos enfa-
ticamente que o professor se torne um investigador de sua
própria prática pedagógica. Para além do conhecimento do
contexto cultural dos alunos, o professor precisa conhecer
com profundidade os conteúdos matemáticos e ter subsídios
teóricos e metodológicos que deem sustentação para seu fa-
zer em sala de aula.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACIOLY-RÉGNIER, N. A justa medida: Um estudo sobre as com-


petências matemática de trabalhadores da cana-de-açúcar no do-
mínio da medida. In: SCHLIEMANN, A.D. et al. Estudos em
psicologia da educação matemática. 2ª edição. Recife: UFPE,
1997. p. 108-137.
ALMOULOUD, S.A. Registros de representação semiótica e com-
preensão de conceitos geométricos. In: MACHADO, S.D.A.
(org.). Aprendizagem em matemática: registros de represen-

76
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

tação semiótica. Campinas: Papirus, 2003. p. 35-48. (Coleção Pa-


pirus Educação).
ANTUNES, C. Resiliência: a construção de uma nova pedagogia
para uma escola pública de qualidade, fascículo 13. Petrópolis:
Vozes, 2003.
BITTAR, M. O ensino de vetores e os registros de representação
semiótica In: MACHADO, S.D.A. (org.). Aprendizagem em
matemática: registros de representação semiótica. Campinas:
Papirus, 2003. p. 35-48. (Coleção Papirus Educação).
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacio-
nais para educação de jovens e adultos – EJA. São Paulo:
Ação Educativa, 2002. Disponível em: http://www.açaoeducati-
va.org.br/dowloads/parecerp.pdf. Acesso em 15 ago 2005.
. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Bási-
ca. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto Nacional
pela Alfabetização na Idade Certa: organização do trabalho
pedagógico, caderno 1. Brasília: MEC/SEB, 2014.
CARVALHO, D.L. A interação entre o conhecimento matemáti-
co da prática e o escolar. 1995. Tese (Doutorado). Unicamp,
Campinas.
DAMM, W.L. Les problemes de pourcentage: une application des
problèmes de conversion proportion-quantité. Annales de Di-
dactique et de Sciences Cognitives, Strasbourg, 6, 1998, p.
197-212.
DAMM, R.F. Apprentissage des prblèmes additifs et compréhe-
sion de texte. 1992. Tese (Doutorado). ULP, Strasbourg.
. Registros de representação. In: MACHADO, S.D.A.
(org.). Educação matemática: uma introdução. São Paulo:
EDUC, 1999. p. 135-154. (série Trilhas).
. Representação, compreensão e resolução de proble-
mas aditivos. In: MACHADO, S.D.A. (org.). Aprendizagem
em matemática: registros de representação semiótica. Campi-
nas: Papirus, 2003. p. 35-48. (coleção Papirus Educação).

77
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

DUVAL, R. Registres de représentation sémiotique et fonctionne-


ments cognitif de la pensée. Annales de Didactique et de
Sciences Cognitives, Strasbourg, 5, 1993. p. 37-65.
. Sémiosis et pensée humaine: registres sémiotiques
et apprentissages intellectuels. Paris: Peter Lang, 1995.
. Registros de representações semióticas e funciona-
mento cognitivo da compreensão em matemática. In: MACHA-
DO, S.D.A. (org.). Aprendizagem em matemática: registros
de representação semiótica. Campinas: Papirus, 2003. p. 11-34.
(coleção Papirus Educação).
FONSECA, M.C.F.R. Discurso, memória e inclusão: reminiscên-
cias da matemática escolar de alunos adultos do ensino funda-
mental. 2001. Tese (Doutorado). FE/Unicamp, Campinas.
. Educação matemática de jovens e adultos: espe-
cificidades, desafios e contribuições. Belo Horizonte: Autêntica,
2002. (série Tendências em educação matemática; 5).
. Lembranças da matemática escolar: a constituição
dos alunos da EJA como sujeitos da aprendizagem. Educação
e Pesquisa, São Paulo, 27, 2, 2001, p. 339-354.
. A educação matemática e a ampliação das demandas
de leitura e escrita da população brasileira. In: Fonseca, M.C.F.R.
(org). Letramento no Brasil: habilidades matemáticas: refle-
xões a partir do INAF 2002. São Paulo: Global/Ação Educativa
Assessoria/Pesquisa e Informação/Instituto Paulo Montenegro,
2004. p. 11-28.
FRANCO, S.R.K. As construções cognitivas do adulto e suas re-
percussões no processo educativo. 23ª ANPED. Caxambu,
23, 2000. Disponível em: <http://www.anped.org.br/23/tex-
tos/1810t.PDF>. Acesso em 5 set 2005.
FREIRE, P. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.
FREITAS, J.L.M. Registros de representação na produção de pro-
vas na passagem da aritmética para a álgebra. In: MACHADO,
S.D.A. (org.). Aprendizagem em matemática: registros de re-

78
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

presentação semiótica. Campinas: Papirus, 2003. p. 35-48. (cole-


ção Papirus Educação).
GIARDINETTO, J.R.B. Matemática escolar e matemática da
vida cotidiana. Campinas: Autores Associados, 1999. (coleção
Polêmicas do nosso tempo).
KNIJNIK, G. Exclusão e resistência: educação matemática e legiti-
midade cultural. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
MARANHÃO, M.C.A.; IGLIORI, S.B.C. Registros de representação
e números racionais. In: MACHADO, S.D.A. (org.). Aprendi-
zagem em matemática: registros de representação semiótica.
Campinas: Papirus, 2003. p. 35-48. (coleção Papirus Educação).
NEHRING, C.M. Compreensão de texto: enunciados de proble-
mas multiplicativos elementares de combinatória. 2001. Tese
(Doutorado). UFSC, Florianópolis.
PICONEZ, E.C.B. Educação escolar de jovens e adultos. Campi-
nas: Papirus, 2002. (coleção Papirus Educação).
POLYA, G. A arte de resolver problemas: um novo aspecto do
método matemático. Rio de Janeiro: Interciência, 1995.
SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação, Ciência e
Tecnologia. Proposta curricular de Santa Catarina: estudos
temáticos. Florianópolis: IOESC, 2005.
SILVA, J.A.M. Educação matemática & exclusão social: trata-
mento diferenciado para realidades desiguais. Brasília: Plano
Editora, 2002.
SPINILLO, A.G. Estratégias na resolução de tarefas de proporção
por crianças. In: Livro de resumos – Semana de Estudos em
Psicologia da Educação Matemática. Recife, 1995. p. 14-18.
VIZOLLI, I. Registro de representação semiótica no estudo de
porcentagem. 2001. Dissertação (Mestrado). UFSC, Florianó-
polis.
. Registros de alunos e professores de educação de jo-
vens e adultos na solução de problemas de proporção-porcenta-
gem. 2006. Tese (Doutorado). UPR, Curitiba.

79
A formação continuada do professor do ciclo
de alfabetização:  perspectivas e desafios

Maria do Socorro Soares Bezerra, Maristela Moura

BREVE RETROSPECTIVA SOBRE A FORMAÇÃO INICIAL


E CONTINUADA DOS PROFESSORES

A formação de professores no Brasil nos últimos anos


está centrada de forma mais intensa no âmbito das políticas
educacionais, principalmente para os profissionais da educa-
ção básica. É salutar pontuar a necessidade da luta de valo-
rização do profissional dessa área para que se possa garantir
ao futuro professor uma boa formação inicial e, posterior-
mente, a sua formação continuada visando fazer a diferença
na sua prática pedagógica no ambiente escolar, local onde
está inserido, e em particular na sala de aula. De acordo com
Imbernón,

81
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

A formação de professores é um tema relativamente re-


cente como objeto de estudo e pesquisa, e a situação atual
é semelhante à do início da década de 1970 em relação ao
ensino [...] durante os anos 1980 realizaram-se inúmeros
programas de formação de professores, cuja análise pode
motivar novas propostas e reflexões sobre o tema (2006,
p. 107).

É nesse sentido que se pode apontar que já há algum


tempo vem se fazendo uma discussão sobre a formação de
professores no Brasil. Conforme Seccon e Oliveira (1995, p.
14), é possível apontar que “os professores se sentem sobre-
carregados, as condições de trabalho são ruins, salas superlo-
tadas, falta de material didático, salários irrisórios e currículo
extenso e complicado”. Esses são problemas que os profes-
sores enfrentam cotidianamente e, de certa forma, sem ter
como resolver, porque essa resolução diz respeito ao sistema
educacional. O que o professor precisa buscar, ainda assim,
é sanar as lacunas que ficaram no processo de sua formação
inicial. A esse respeito, pesquisa feita por Brzezinski (1992),
correspondente ao período de 1980 a 1992, mostrou que a
formação nos cursos de licenciatura, particularmente no que
se refere à formação pedagógica e à formação específica, é
nitidamente fragmentada. Para a autora, a fragilidade dessa
formação constitui-se mais em deformação do que em for-
mação para a docência.
É nesse sentido que podemos refletir sobre alguns pro-
blemas no processo de ensino e de aprendizagem, principal-
mente com relação aos aspectos de leitura e escrita, uma vez
que a formação inicial não tem uma base sólida. Com relação
a este aspecto, Catani (1986) e os demais autores fazem uma
crítica severa ao descaso com que a universidade trata a for-
mação de professores, relegando-a a segundo plano. Ainda

82
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

reforçando essa afirmação, Lüdke (1994), a partir de uma


análise da situação dos cursos de licenciatura no Brasil, afir-
ma que, nas universidades brasileiras, a formação de profes-
sores ocupa lugar diminuto. Para a autora, as prioridades es-
tão centradas na pesquisa e na elaboração do conhecimento.
Por isso, é necessário ficar atentos a esses programas de
formação continuada que são propostos para o professor
de educação básica, pois às vezes a dificuldade enfrentada
pelo professor em sala de aula está na sua formação inicial, e
quando isso ocorre há reflexos tanto na sua prática em sala
como na sua formação continuada. De acordo com Perre-
noud,

A formação contínua dos professores assumiu as carac-


terísticas de um ensino quase interativo, o qual pretendia
transmitir novos saberes a professores que não o tinham
recebido no período de formação inicial (2002, p. 21).

Isso dificultou muito o processo, pois, segundo o autor,


durante anos essas formações continuadas desconsideraram
a prática dos professores em exercício e “[...] o formador
dizia-lhes o que era preciso fazer sem perguntar o que eles
faziam”. Sendo assim, é necessário realinhar alguns pontos
para que a formação continuada possa contribuir de forma
significativa com a prática em sala de aula. Nesse sentido,
concordamos com Pereira quando diz que esse modo de
pensar exige do professor, ainda durante a sua formação, a
compreensão

[...] do próprio processo de construção e produção do co-


nhecimento escolar, entender as diferenças e semelhanças

83
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

dos processos de produção do saber científico e do saber


escolar (2007, p. 47).

A efetivação dessas mudanças, no entanto, mostrou-se


um processo lento e seguirá caminhos complexos.
É importante ressaltar que alguns teóricos que pesqui-
sam a formação de professores têm buscado respostas para
a essas questões e, segundo Nóvoa,

Não se pode mais continuar a desprezar e minorar as ca-


pacidades dos educadores, pois grande parte do potencial
cultural (e mesmo técnico e científico) das sociedades con-
temporâneas está concentrado nas escolas, o lugar onde se
concentra o maior número de pessoal altamente qualifica-
do (1996, 38 apud Dias et al.).

Esta afirmação nos baliza a acreditar no potencial do


professor alfabetizador, que ainda pode fazer a diferença.
Sua desvalorização, no entanto, faz com que eles não se
sintam estimulados e não se envolvam em outras atividades
(pesquisa, por exemplo), apenas dedicando-se à docência e,
em consequência de lacunas na sua formação inicial, ain-
da não têm conseguido avançar no processo de ensino. De
acordo com Gatti,

O educador deve ter domínio de diversas áreas de saberes


para que possa desenvolver a capacidade de decodificar e
interpretar a informação e compreender as mudanças na
reorganização do trabalho e nas formas de convivência
social (1997 p. 86).

Para tanto, faz-se necessário ter uma boa formação ini-


cial e participar de uma formação continuada voltada para
essas diversas áreas do saber que a autora aponta. Acredita-

84
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

mos, ainda, que o professor deva se envolver com a pesquisa,


pois, conforme avanços apontados nos anos 2000, busca-se
atualmente o professor pesquisador reflexivo. Conforme
afirma Azevedo, nesse modo de conceber a formação, “o
professor, ao refletir sobre sua prática, converte-se em um
pesquisador que produz conhecimentos e colabora para que
outros conhecimentos sejam produzidos” (2008, p. 45).

AVANÇANDO NO CONTEXTO

Nos últimos 15 anos, o Brasil vem propondo políticas


educacionais diversificadas para melhorar a situação educa-
cional de modo geral e, de forma especial, no tocante aos
investimentos na educação básica. Este olhar diferenciado
visa melhorar os índices no cenário nacional e internacional
no quesito aprendizagem utilizando instrumentos de avalia-
ção como a provinha Brasil e mais recentemente a avaliação
nacional da alfabetização (ANA).
O foco principal destacado aqui, no entanto, será a for-
mação para atuar no ensino fundamental, especificamente
nos anos iniciais, pois entendemos que trata-se da base, o
ponto de sustentação para uma edificação consistente e se-
gura da aprendizagem visando a continuidade na qualidade
da formação do ser humano. Estamos na era do conheci-
mento, da informação e da tecnologia e, em meio a tantas
transformações em todas as áreas do conhecimento e muitos
investimentos para a educação básica feitos por meio dos
programas implementados pelo Governo Federal nas esco-
las, nosso enfoque será no Pacto Nacional pela Alfabetização
na Idade Certa (PNAIC), voltado para a formação continua-
da de professores dos anos iniciais do ensino fundamental,

85
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

que compreende o ciclo de alfabetização nos três primeiros


anos do ensino fundamental.

PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO


NA IDADE CERTA (PNAIC)

Criado em 2012, o PNAIC apresenta como principal


desafio alfabetizar plenamente toda criança brasileira até os
8 anos de idade.
Trata-se de uma política do Governo Federal brasileiro
voltada para a formação continuada dos educadores, baseada
em programas que vêm sendo pensados desde 2001 pelo
Ministério da Educação. Na época, a instituição orientava as
ações principalmente para a educação infantil, o ensino fun-
damental e a educação de jovens e adultos com o Programa
de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa). Em
2005, o Pró-Letramento iniciou uma mobilização pela qua-
lidade da educação. A iniciativa envolvia um orientador que
trabalhava com seus colegas e era feita por amostragem – ou
seja, não pretendia chegar a todas as salas de aula do Brasil
–, com o objetivo de fazer um diagnóstico da alfabetização
apontando quais conhecimentos e capacidades as crianças
deveriam desenvolver até o final do terceiro ano do ensino
fundamental. Diferentemente desse modelo, o PNAIC pre-
tende ir além, alcançando a maior parte dos professores alfa-
betizadores dos municípios que fizeram a adesão. O PNAIC
surgiu, portanto, como uma retomada do Pró-Letramento,
caracterizado em moldes diferentes e alcançando um núme-
ro maior de professores alfabetizadores.
Em 2012, o Estado do Ceará lançou o Programa de Al-
fabetização na Idade Certa (Paic) como algo universal, com
elementos importantes como disponibilidade de material,

86
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

uma nova forma de fazer a formação continuada – mais


dinâmica, incorporando elementos avaliados pelo Ministé-
rio da Educação como de suma importância. A partir do
conhecimento dessa experiência que estava se destacando
no Ceará, o projeto se tornou lei no fim de novembro do
mesmo ano. A intenção era de um projeto de ação coletiva
entre União, Estados e municípios. Neste momento, a ideia
era redirecionar a força social para uma causa educacional,
diferente do que vinha sendo anteriormente.
Objetivando uma estrutura de desenvolvimento de prá-
tica de formação continuada individual e em rede, a compo-
sição do PNAIC foi feita em quatro eixos de atuação, a sa-
ber, formação continuada; materiais didáticos e pedagógicos;
avaliação; e gestão, controle social e mobilização.
1.  Formação continuada: Governo Federal, secreta-
rias de educação e universidades atuam como financia-
dores, apoiadores e parceiros na elaboração e na exe-
cução das ações. Sua participação engloba a formação
continuada presencial dos professores alfabetizadores,
ou seja, dos professores que atuam no ciclo de alfabeti-
zação, compreendido do primeiro ao segundo anos do
ensino fundamental. As universidades públicas minis-
tram um curso específico aos orientadores de estudos,
com duração total de 200 horas por ano, e estes, por sua
vez, ministram o curso presencial para os professores
alfabetizadores por um período de 2 anos. De acordo
com o caderno de apresentação do PNAIC,

A formação continuada de professores alfabetizadores


prevista pelo Pacto se dá por meio de um curso, que apre-
senta uma estrutura de funcionamento na qual as universi-
dades, secretarias de educação e escolas devem se articular

87
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

para a realização do processo formativo dos professores


alfabetizadores atuantes nas escolas, nas salas de aula
(BRASIL, 2014a).

2.  Materiais didáticos e pedagógicos: livros, obras com-


plementares, dicionários, jogos de apoio à alfabetização,
entre outros, são disponibilizados para os professores e
alunos, pelo Ministério da Educação, digitalizados ou im-
pressos, visando dar apoio e subsídio à ação do formador,
do orientador de estudo e do professor alfabetizador.
3.  Avaliação: é a ação pela qual o poder público e os
professores acompanham a eficácia e os resultados do
Pacto nas escolas participantes – chamada de avaliação
nacional da alfabetização (ANA) –, não no sentido de
ranquiá-la, mas com a intenção de verificar a situação
em cada escola e município a fim de identificar e imple-
mentar ações assertivas para as deficiências didáticas de
cada localidade.
4.  Gestão, controle social e mobilização: há um siste-
ma de gestão e de monitoramento que objetiva assegurar
a implementação das etapas do Pacto e acompanhar as
ações desenvolvidas, tendo como principal foco a valo-
rização do professor. O monitoramento é realizado pelo
sistema SisPacto, disponibilizado no Sistema Integrado
de Monitoramento, Execução e Controle (Simec), o que
possibilita o acompanhamento constante pelos atores
que possuem esta responsabilidade no Pacto.

O PNAIC prima por quatro princípios básicos para o


desenvolvimento da criança e para o trabalho pedagógico
do professor alfabetizador. De acordo com o Ministério da
Educação (2013),

88
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

1. O sistema de escrita alfabética é complexo e exige um


ensino sistemático e problematizador;
2. O desenvolvimento das capacidades de leitura e de produ-
ção de textos ocorre durante todo o processo de escolariza-
ção, mas deve ser iniciado logo no início da educação básica,
garantindo acesso precoce a gêneros discursivos de circula-
ção social e a situações de interação em que as crianças se
reconheçam como protagonistas de suas próprias histórias;
3. Conhecimentos oriundos das diferentes áreas podem e
devem ser apropriados pelas crianças, de modo que elas
possam ouvir, falar, ler, escrever sobre temas diversos e
agir na sociedade;
4. A ludicidade e o cuidado com as crianças são condições
básicas nos processos de ensino e de aprendizagem.

Com base nesses princípios, afirmamos que, por ser


complexo, o sistema de escrita alfabética exige um ensino
sistemático e problematizador, o que traz à tona conheci-
mentos apreendidos e construídos desde a formação inicial,
relacionados ao processo de desenvolvimento e aprendiza-
gem da criança nesta fase. A alfabetização é um processo
permanente e contínuo, que não se acaba na aprendizagem
da leitura e da escrita. Este processo permeia e acontece no
decorrer da vida, pois no cotidiano já possuímos um contato
com o mundo escrito, com a leitura, elaborando assim hipó-
tese para compreender a escrita.

[...] a alfabetização não é um estado ao qual se chega, mas


um processo cujo inicio é, na maioria dos casos, anterior
à escola e que não termina ao finalizar a escola primária
(FERREIRO, 2011, p. 48).

Vivemos num país de muitos “brasis”; diversas culturas,


credos, climas. É preciso que a criança tenha conhecimento

89
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

dessa diversidade, que a construção de seu conhecimento


possa realmente proporcionar os atos de falar, ouvir, ler, es-
crever e agir em qualquer lugar ou condição em que ela esteja
inserida.
Ser criança combina com brincar, por isto a ludicidade e o
cuidado com as crianças são condições básicas nos processos
de ensino e de aprendizagem, aprimorando suas habilidades.

Conversa com outros campos do saber

No ciclo da alfabetização, todos os conhecimentos são


de relevância: no primeiro ano do PNAIC, o trabalho deu
ênfase à linguagem; no segundo ano, o enfoque foi na ma-
temática, dando continuidade ao trabalho iniciado no ano
anterior e aumentando a equipe de formadores, em virtude
da necessidade do especialista em matemática, mas perma-
necendo o diálogo entre as áreas, ou seja, somando, agindo
em conjunto.
A linguagem, como bem se sabe, é o cerne da comunica-
ção com outros saberes. Podemos nos remeter, por exemplo,
à história como guia da sequência didática. A concepção da
alfabetização matemática sob a perspectiva do letramento
estabelece uma conversação com outras áreas do conheci-
mento, outros saberes, pontos de vista diferenciados sob a
égide da grande diversidade que constitui o nosso país.

O desafio de ser professor alfabetizador

A pessoa alfabetizada é aquela que é capaz de ler e es-


crever em diferentes situações sociais, de tal forma que isso
lhe permita se inserir e participar ativamente de um mundo
letrado, enfrentando as demandas e os desafios sociais.

90
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

O PNAIC traz à tona, como de suma importância, a


prática docente do professor alfabetizador em sala de aula,
não reduzindo-o como alguém que reproduz conhecimentos
técnicos e metodológicos, mas enfatizando a formação con-
tinuada desse professor:

O professor alfabetizador deve ser tratado como um pro-


fissional em constante formação em todas as áreas que fa-
zem parte do ciclo de alfabetização (BRASIL, 2014a)

A formação continuada do PNAIC é pautada em alguns


princípios que orientam suas ações, a saber:

•  A prática da reflexividade, fundamentada no proces-


so de ação prática/teoria/prática, trazida da análise da sala
de aula repensada teoricamente e reelaborada;
•  A constituição da identidade profissional, sendo o
professor alfabetizador um sujeito em movimento e cons-
tante reflexão num processo bem mais amplo e contínuo da
sua formação.
•  A socialização ocorre quando de fato se vê o proces-
so acontecendo, fortalecendo os grupos de estudo com seus
pares, além do momento presencial envolvendo alunos, pais
e diretores saindo do isolamento.
•  O engajamento tem como foco o gosto do aprender,
sendo necessário em qualquer profissão o processo de con-
tinuar aprendendo
•  A colaboração que supera a socialização, pois prima
pela realização de uma rede objetivando um aprendizado co-
letivo, através do qual professores vivenciam a participação,
o respeito, a solidariedade, a apropriação e, acima de tudo, o
pertencimento, fazendo parte deste processo.

91
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Esse trabalho é positivo e importante para os professo-


res alfabetizadores, pois estão desenvolvendo um trabalho
que é acompanhado pela instituição formadora (no caso do
Estado do Tocantins, a Universidade Federal do Tocantins),
bem como pelas secretarias municipais e estaduais que estão
mais próximos das unidades escolares, dando todo supor-
te necessário para que se tenha sucesso nessa empreitada e
consiga expandir para as turmas dos quartos e quintos anos
do ensino fundamental.
A formação realizada por meio do PNAIC – em lingua-
gem no ano de 2013 e em educação matemática no decorrer
do ano de 2014 – contribuiu significativamente para a re-
flexão do fazer pedagógico dos professores alfabetizadores,
ajudou-os a entender e visualizar o processo de alfabetização
dos protagonistas – as crianças –, que não pode ser realiza-
do de qualquer maneira, mas precisa ser organizado de uma
forma metodologicamente planejada.

A sala de aula deve se constituir como um espaço no qual


as crianças ficarão imersas no processo de apropriação da
leitura e da escrita da língua materna, bem como da lin-
guagem matemática, com ampla exposição dos alunos aos
materiais impressos que nos envolvem cotidianamente e
possibilitem explicitar a função social da escrita (BRASIL,
2014b).

A formação continuada do professor não pode ser vista


como estanque, mas como algo contínuo e constante, care-
cendo repensar ações nas políticas públicas para a elabora-
ção de um projeto institucional que deve ser implementado
ao longo de toda a existência, atendendo às exigências a cada
novo desafio no processo educacional. O projeto de forma-
ção deve refletir as necessidades e expectativas dos profes-

92
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

sores e sugere-se que seja destacado na própria escola. A


função da formação continuada é contribuir para o desen-
volvimento profissional do professor já que entende-se que
essa formação é uma oportunidade e uma necessidade de
crescimento profissional e pessoal, principalmente no nosso
contexto histórico. Segundo Mercado e Kullok,

A escola hoje é concebida como local de aprendizagem


da profissão do professor, na medida em que possibilita
o desenvolvimento de saberes e competências do ensinar
mediante um processo individual e coletivo (2004, p. 89).

A partir dessa citação, podemos refletir acerca do local


de aprendizagem. Fica evidente, para nós, que é através da
sua prática que o professor aprende/ensina/aprende; por-
tanto, desenvolvendo seu papel social na escola. A sala de
aula é seu laboratório1 e, se ele souber explorá-la, é neste
cenário que continuamente se descobre, aprende e reflete a
prática, bem como renova as mais diversas formas da com-
preensão do processo de aprendizagem do aluno2.
O PNAIC tem proporcionado, além de um aprendiza-
do significativo, uma reflexão acerca da prática pedagógica
da alfabetização, levando os professores alfabetizadores a
visualizar, descobrir um jeito diferente de melhorar, inovar e
sistematizar o seu fazer pedagógico.
É de suma importância que se forme e se mantenha
uma rede permanente de reflexão após os cursos de forma-

  Laboratório é local de pesquisa, de descobertas, de resultados.


1

 De acordo com a teoria de Piaget quando demonstra o espiral do


2

desenvolvimento do ser humano no processo de assimilação e


acomodação.

93
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

ção, uma vez que após 2 anos do curso não se pode esperar
que tudo tenha se resolvido. Faz-se necessária uma conti-
nuidade tanto na formação quanto na avaliação, sem deixar
que esse processo caia no esquecimento, especialmente pelo
fato de, de acordo com depoimentos nos seminários locais,
a dinâmica do PNAIC estar sendo bem aceita e aprovada
pelos professores alfabetizadores comprometidos e atuantes.
Enfim, acreditamos que aqueles que estão participando do
Pacto poderão fazer a diferença na sala de aula.

REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS

AZEVEDO, R.O.M.; et al. Formação inicial de professores da edu-


cação básica no Brasil: trajetória e perspectivas. Rev. Diálogo
Educ., Curitiba, 12, 37, 2001, p. 997-1026.
BRASIL. Ministério da Educação. Pacto Nacional pela Alfabetização
na Idade Certa. Matemática. Caderno de apresentação. Brasília:
MEC, 2014a.
. Ministério da Educação. Pacto Nacional pela Alfabe-
tização na Idade Certa. Matemática. Caderno de organização do
trabalho pedagógico. Brasília: MEC, 2014b.
BRZEZINSKI, I. Trajetória do movimento para as reformulações
curriculares dos cursos de formação de profissionais da educa-
ção: do Comitê (1980) à ANFOPE (1992). Em Aberto, 54, 12,
1992, p. 75-86.
CATANI, D.B.; et al. (orgs.). Universidade, escola e formação de
professores. São Paulo: Brasiliense, 1986.
CECCON, C.; OLIVEIRA, M.D.; OLIVEIRA, R.D. A vida na esco-
la e a escola da vida. 30ª edição. Petrópolis: Vozes, 1995.
DIAS, L.P.; et al. A formação de professores no Brasil: problemas e
perspectivas. Educação & Sociedade, Campinas, 23, 80, 2002,
p. 136-167.

94
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

FREITAS, H.C.L. A reforma do ensino superior no campo da forma-


ção de profissionais da educação básica as políticas educacionais
e movimento dos educadores. Educação & Sociedade, Cam-
pinas, 68, 1999, p. 17-44.
GATTI, B. Formação de professores e carreira: problemas e mo-
vimentos de renovação. Campinas: Autores Associados, 1997.
LÜDKE, M. Avaliação institucional: formação de professores para
o ensino fundamental e médio (as licenciaturas). Cadernos
CRUB, 1, 4, 1994, p. 5-96.
MELLO, G.N. Formação inicial de professores para a educação bási-
ca: uma (re)visão radical. Documento principal (versão preli-
minar para discussão interna), 1999. 21p.
PEREIRA, J.E.D. Formação de professores: pesquisa, representa-
ção e poder. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício do professor: pro-
fissionalização e razão pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002.

95
Orientadores de estudo do Pacto Nacional
pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC)
no Tocantins:  extratos identitários de
profissionais em formação

Mirella de Oliveira Freitas, Rita de Cassia Carvalho


do Amaral

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, no Brasil, a área da educação bási-


ca tem recebido diversos investimentos e incentivos para
melhoria dos índices nacionais de qualidade do ensino nas
escolas públicas, medidos a partir do desempenho de estu-
dantes em avaliações sistêmicas. No contexto das políticas
públicas visando a esse fim, desponta um dos programas vi-
gentes hoje, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa (PNAIC), que, em 2015, esteve em seu terceiro ano
de vigência. Mais especificamente, esse programa surgiu no
contexto da Política nacional de formação de profissionais
do magistério da educação básica (BRASIL, 2009). A avalia-

97
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

ção é um dos eixos da formação, assim como a proposição


de um currículo e de metodologias sociointeracionistas.
Este Pacto compreende um compromisso firmado en-
tre as instâncias governamentais (em níveis municipal, es-
tadual e federal) com o propósito de garantir que todas as
crianças estejam alfabetizadas, em língua portuguesa e em
matemática, até os 8 anos de idade, ou seja, ao final do tercei-
ro ano do ensino fundamental (BRASIL, 2012). Para tanto,
as ações do PNAIC compreendem formações continuadas
presenciais para orientadores de estudo e professores alfa-
betizadores, englobando estudos e atividades práticas com a
perspectiva do letramento e primando pela interdisciplinari-
dade. O recurso lúdico é um dos princípios centrais a serem
considerados no processo, visando-se, efetivamente, agregar
ao cenário escolar os elementos que constituem a fase da
infância, ou seja, das crianças do ciclo de alfabetização.
No universo da formação, destacam-se os orientadores
de estudo. São profissionais vinculados diretamente às redes
de ensino e que realizam as atividades de formação com os
professores alfabetizadores no seu âmbito de atuação (em
nível municipal ou estadual). Passam por uma formação de
200 horas anuais, ministrada por universidades públicas vin-
culadas ao PNAIC. Concomitantemente, ministram cursos
de formação para os professores alfabetizadores, bem como
orientam e acompanham o trabalho desenvolvido e consoli-
dado por estes nas salas de aula das séries iniciais do ensino
fundamental.
Segundo o Ministério da Educação, são alguns dos re-
quisitos para ser orientador de estudo:

•  Ser professor efetivo da rede pública de ensino.


•  Ser formado em pedagogia ou ter licenciatura.

98
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

•  Ser professor ou coordenador do ciclo de alfabeti-


zação do ensino fundamental há, no mínimo, 3 anos ou ter
experiência comprovada na formação de professores alfabe-
tizadores.

Portanto, dado o perfil do orientador de estudo, partiu-


-se do pressuposto de que, sendo profissional da educação,
é impactado, de algum modo, pelo referido programa, bem
como por outros fatores que permeiam o universo escolar e
as instâncias da vida diária em sociedade. Ao longo desse pe-
ríodo de formação pelo PNAIC, são vivenciadas, comparti-
lhadas e discutidas experiências profissionais acerca do pro-
cesso de ensino e aprendizagem nas séries iniciais, momento
em que emergem diversas vozes que, processualmente, rede-
finem a identidade profissional dos sujeitos envolvidos.
Nessa esteira, este texto busca contribuir para a discus-
são do processo de formação identitária dos orientadores
de estudo do PNAIC no Estado do Tocantins. Considera-se
que estes se constituem, primeiramente, como professores,
por formação e atuação profissional, embora alguns estejam,
atual e momentaneamente, exercendo funções administrati-
vas na esfera da educação. Para tanto, propõe-se identificar
como o perfil identitário se constitui no imaginário desses
sujeitos, inseridos numa classe definida socialmente que tem
lutado contra um discurso negativo que lhes denigre a ima-
gem e o status.

IDENTIDADE PROFISSIONAL COMO UMA CATEGORIA


EM CONSTANTE (RE)CONSTRUÇÃO

A respeito de aspectos que caracterizam o professor, o


senso comum lhe atribui uma série de fatores que tendem a

99
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

depreciá-lo ou a reforçar-lhe a desvalorização social. Hoje, os


profissionais da educação são vistos como indivíduos desmo-
tivados, seja por questões salariais ou mesmo em virtude das
péssimas condições de trabalho a que alguns se submetem.
Além disso, o discurso geral apregoa que, no Brasil, o sujeito
se torna professor por falta de opção, já que não consegue in-
gressar em outros cursos superiores, por conta de uma varie-
dade de razões socioeconômicas. Portanto, a partir dessa vi-
são, seria um profissional marginalizado social e politicamente
e que só não desiste da profissão por não ter alternativas.
Assim, na esfera social, as formações continuadas se in-
serem em um contexto bastante conturbado e complexo. Os
debates sobre as necessidades de melhorias na educação fo-
cam a figura do professor como culpado pelo baixo desem-
penho dos alunos nos testes governamentais que medem a
qualidade da educação. Segundo Matencio,

[...] o que se tem, em síntese, é a crença nas dificuldades de


aprendizagem dos sujeitos ou no que seria a incompetência
das teorias – e, portanto, dos sujeitos que as produzem e/
ou as divulgam, os professores formadores. Noutros ter-
mos, as tentativas de compreender o fracasso de determina-
dos grupos de alunos e sua exclusão pela escola focalizam
ora os próprios alunos e sua “incapacidade” para aprender,
ora os professores – sejam eles de que nível forem – e sua
inabilidade para formar; há também, como se sabe, as ex-
plicações que apontam como causa a estrutura da educação
básica e do ensino superior e sua ineficiência (2009, p. 8).

Kleiman também afirma:

[...] nos últimos 30 anos, esse grupo tem ficado na mira da


mídia, do governo e da universidade, pois teria fracassado

100
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

na tarefa de democratizar a escola pública ensinando a ler e


escrever a todos os que aí chegam. Suas próprias capacida-
des de ler e escrever são questionadas, toda vez que o país
é confrontado com os insatisfatórios resultados dos alunos
da escola pública nos testes padronizados, nacionais e in-
ternacionais, de leitura. Na busca de figuras de exculpação,
os professores ocupam lugar central na complexa e elitista
rede de relações sociais brasileira (2006, p. 410).

Ademais, em afirmações do senso comum, nas mais di-


versas instâncias sociais, distinguem-se concepções de que o
professor não tem identidade, uma vez que não se trata de
uma classe profissional coerente em seus anseios e suas lu-
tas (TICKS, 2006). Contudo, todo e qualquer indivíduo pos-
sui uma identidade, construída desde a infância a partir das
relações sociais por ele estabelecidas. Ainda segundo Ticks
(2006), “identidades são construídas e constituídas sócio-
-historicamente e, portanto, apresentam o traço caracterís-
tico da heterogeneidade, da inconstância e da eterna recons-
trução”. O espaço social é, pois, elementar nesse processo.
O indivíduo exterioriza seu próprio ser nesse contexto e,
concomitantemente, interioriza elementos da realidade que
o circunda (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 173).
Nesse sentido, o presente estudo parte da concepção
de identidade como um contínuo processo de construção e
transformação. Logo, é dinâmica, jamais estável. O objeti-
vo aqui proposto não é, portanto, mostrar a identidade dos
orientadores de estudo do PNAIC no Estado do Tocantins;
o que se propõe é fazer um levantamento discursivo que
aponte para possíveis construções identitárias ainda (e sem-
pre) em fluxo desses sujeitos.
Segundo Hall (1998, p. 13), a identidade é “formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas

101
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

quais somos representados ou interpelados nos sistemas cul-


turais que nos rodeiam”. Ela é construída em relação ao outro,
tratando-se de uma categoria que ganha forma no cotidiano,
sendo transformada juntamente com as mudanças estruturais
da sociedade. Cuche (2002, p. 182) corrobora essa visão ao
afirmar que “a construção da identidade se faz no interior de
contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por
isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas”.
Segundo Matencio1, o sujeito é constituído de autono-
mia e, ao mesmo tempo, de sua dependência em relação ao
exterior. Assim, este é produtor e, simultaneamente, produto
das condições exteriores a ele. Então, falar em identidade im-
plica referência a si próprio, mas também ao mundo externo.
Esse é o contexto característico de um curso de formação
em que os professores se deparam com diferentes discursos
sobre o profissional e a prática pedagógica.
Especificamente no PNAIC, são compartilhadas expe-
riências já vividas, bem como são desenvolvidas atividades
práticas e dinâmicas que orientarão os sujeitos a um caminho
próprio, mas construído no contexto social em que figuram,
permeado de crenças e valores específicos de dado grupo
particular. Esse fato reforça a concepção de identidade como
sendo socialmente construída e dependente de um contexto
social, histórico e cultural.
Além disso, segundo Rajagopalan (1998 apud 2002,
p. 344), esse processo “se constrói na língua e através dela”.
Não se pode entender o indivíduo como portador de uma
identidade que se encontra fora da língua. Logo, para com-

 Palestra “Estratégias de textualização: posicionamentos do sujeito e


1

construção de sentidos”, apresentada na Unicamp em 2 de setembro


de 2004.

102
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

preender as diversas vozes que ressoam nos discursos dos


professores orientadores de estudo, parte-se do conceito
bakhtiniano da palavra como signo ideológico. E diz-se “vo-
zes” no sentido proposto por Vóvio (2007, p. 88): “esque-
mas que significam, simbolizam e constroem e reconstroem
a realidade, produzidos por sujeitos sociais, historicamente
situados”. Segundo Bakhtin,

[...] não são palavras o que pronunciamos ou escutamos,


mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importan-
tes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra
está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido
ideológico ou universal (1998, p. 95).

Portanto, reafirma-se que a identidade se constrói a par-


tir de vozes disponíveis num contexto social. Nessa pers-
pectiva, conforme aponta Freitas (2003, p. 134), Bakhtin
compreendia o homem como ser social, não biológico. A
enunciação, para ele, tem uma natureza social e deve ser en-
tendida sempre numa interação, visto que a linguagem está
enraizada na existência social e histórica humana.
Além disso, também para Bakhtin, a identidade se fun-
damenta na alteridade, uma vez que é no diálogo com o ou-
tro que ela vai sendo construída:

[...] o homem tem uma necessidade estética absoluta do


outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica,
que é o único capaz de criar para ele uma personalidade
externamente acabada; tal personalidade não existe se o
outro não a cria [...] (BAKHTIN, 2011, p. 33).

Essa perspectiva ajuda a compreender os enunciados


dos orientadores de estudo como entrecruzados por discur-
sos que circulam nos ambientes da formação e da prática pe-

103
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

dagógica-educacional. Numa autoavaliação ou considerando


a perspectiva do outro a seu respeito, quando os professo-
res utilizam a palavra para se definirem como profissionais,
é nela que se distinguirão as construções identitárias. Eles
se definirão em relação ao outro, em relação à coletividade,
conforme propõe Bakhtin (1988, p. 113): “A palavra é uma
espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se
apoia sobre mim numa extremidade, na outra, apoia-se sobre
meu interlocutor”.
Em consonância com a concepção de uma identidade
dinâmica e construída a partir das relações de poder e das
percepções dos participantes sociais, a formação inicial dos
professores nos cursos de graduação desponta como fator
relevante. Somam-se a ela diversas experiências vividas no
dia a dia da sala de aula, bem como as formações contínuas
pelas quais passam esses docentes. É nesse percurso que eles
consolidam suas perspectivas sobre a profissão e criam uma
imagem de si próprios.
Neste estudo, há de se considerar que se trata da forma-
ção de profissionais em serviço; ou seja, sujeitos com histó-
rias de formação e percursos escolares diversos, o que faz
com que se destaquem diferentes vozes na interação entre os
professores e orientadores de estudo. Além disso, segundo
Passeggi (2000), esse fato enfatiza duas questões interdepen-
dentes: a (re)conceitualização de práticas em uso e a possibi-
lidade de mudanças no processo identitário. Assim, parte-se
da premissa de que todos os sujeitos pesquisados têm forma-
ções que os autorizam a atuar como professores, ou seja, eles
têm uma identidade profissional reconhecida oficialmente.
Contudo, no exercício do trabalho a que os orientado-
res se dedicam, há outros enfrentamentos que implicam a
reconstrução da identidade. Por exemplo, o exercício da pro-

104
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

fissão esbarra na visão depreciativa de ser professor numa


sociedade que lhe atribui a responsabilidade pelos males da
educação. Esses, dentre outros fatos, juntamente com as dife-
rentes concepções teórico-práticas que emergem no contexto
de formação e a história profissional dos docentes, são de-
terminantes para a (re)construção identitária dos professores.
É o que corrobora Tardif (2002), quando diz que a
formação que os professores recebem a partir de conceitos
científicos é apenas uma parte de sua identidade profissional:

[...] o saber dos professores é o saber deles e está relaciona-


do com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiên-
cia de vida e com a sua história profissional, com as suas
relações com os alunos em sala de aula e com os outros
atores escolares na escola, etc. (TARDIF, 2002, p. 11).

Assim, a princípio, vê-se algo de estático na identidade


do professor no que se refere ao seu título profissional, à
legitimidade oficial que recebeu pela licenciatura. Contudo,
paralelamente, essa identidade constrói-se e transforma-se
nas relações sociais cotidianas, no seu universo de atuação.

SUJEITOS PESQUISADOS E A METODOLOGIA


DE PESQUISA

Os sujeitos participantes deste estudo são profissionais


licenciados em áreas da educação. Todos já tiveram conside-
rável experiência como alfabetizadores de crianças, embora
hoje alguns deles estejam fora da sala de aula. Contudo, mes-
mo aqueles que estão desenvolvendo funções administrati-
vas, estão vinculados à área educacional: são orientadores,
coordenadores ou supervisores pedagógicos. No PNAIC,

105
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

como já mencionado, atuam como orientadores de estudo.


A função deles é, fundamentalmente, formar os professores
alfabetizadores – aqueles que estão dentro das salas de aula,
alfabetizando os alunos do primeiro ao terceiro anos do en-
sino fundamental – de acordo com a metodologia proposta.
Para tanto, os orientadores passam por uma formação
de 200 horas, na qual se propõe:

•  Ampliação de estudos, especialmente sobre o currí-


culo para o ciclo de alfabetização (direitos de aprendizagem)
e sobre metodologias diversificadas.
•  Abordagem de especificidades do universo infantil.
•  Reflexões sobre a própria formação docente, sobre
o processo de alfabetização e situações imbricadas, como as
formas de apreensão por parte da criança.

A última etapa da formação conta com dois seminários:


um local, em nível municipal, e um final, para socialização
das experiências entre os participantes do estado.
Pelo método de amostragem, optou-se por pesquisar os
orientadores de estudo de uma das turmas de formação do
Tocantins (28 participantes). Como técnica de coleta de da-
dos, empregou-se o questionário autopreenchido. Essa fer-
ramenta, embora seja de grande importância nos contextos
de pesquisa social, apresenta algumas desvantagens, dentre
as quais se destaca, principalmente, o fato de que o respon-
dente precisa estar predisposto a responder às questões com
o esforço e o cuidado que essas requerem, independente-
mente de fatores que possam ser impeditivos, como tempo
e trabalho envolvidos na elaboração das respostas. Também
há de se considerar a habilidade de articular a resposta em
conformidade com a pergunta.

106
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Devido a esses elementos interferentes, foram devolvi-


dos apenas sete questionários respondidos. Entre as quinze
questões propostas, também sete são fundamentais a esta
pesquisa:

•  Por que você escolheu a profissão “professor alfa-


betizador”?
•  Gosta de estar em sala de aula, de ser “professor al-
fabetizador”? Por quê?
•  Como você avalia a qualidade de suas aulas?
•  Que imagem você faz de si mesmo(a) como profes-
sor(a)?
•  Que imagem o “outro” faz de você como profes-
sor(a)?
•  De quantas formações continuadas você já partici-
pou até hoje? Fale sobre sua motivação para participar delas,
bem como do modo como você as compreende, dentro de
suas expectativas e necessidades.
•  Como você vê o papel da teoria sobre a forma como
você ensina?

Ao apresentar a análise dos dados, os sujeitos pesquisa-


dos (professores por opção de carreira) serão identificados
alfanumericamente. A referência a eles será feita pela letra
P, de professor(a) e pelos números 1 a 7 – P1, P2, P3, P4,
P5, P6 e P7 –, sem que se faça diferenciação de gênero, no
intuito de preservar a identidade dos participantes, perten-
centes a um grupo específico e muito reduzido. Quando
necessário, será empregada a simbologia “@” nos substanti-
vos e adjetivos constantes nas transcrições de discursos dos
orientadores, como variante linguística de representação da
sexualidade.

107
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Como método de pesquisa, optou-se pelo paradigma


qualitativo-interpretativista. Buscou-se investigar o modo de
ser do indivíduo social, ou ainda, extratos de sua identidade
no aspecto discursivo da linguagem.

RECORTES IDENTITÁRIOS DOS PROFESSORES


ORIENTADORES DE ESTUDO

Escolha da profissão e identificação com ela

Quanto às razões que levaram os orientadores a esco-


lherem a educação como atividade profissional, especifica-
mente a área da alfabetização, a realidade descrita por seis
dos sete sujeitos foi marcada pelo atravessamento discursivo
do senso comum de que se trata de profissionais que opta-
ram pela área por “falta de opção”. Particularmente, em três
das falas se percebeu, com clareza, esse discurso comum, ao
anteciparem a opinião geral:

Excerto 1:
(P3): Sinceramente, escolhi minha profissão por falta
de opção mesmo. Mas, quando assumimos uma função
como a de professor, temos que abraçar a causa, mesmo
porque, do contrário, ficamos sempre à margem.

Excerto 2:
(P4): Na verdade, eu não escolhi como profissão “ser
professor”. A minha vontade era me formar em odonto-
logia. Era a profissão de meu pai. E eu o admirava muito.
Mas a minha condição financeira não dava para fazer o
curso que eu queria. [...] Aprendi a gostar e, quando vi,
transformei-me em alfabetizador@, e com muito orgulho!

108
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Excerto 3:
(P6): Para falar a verdade, eu queria ser veterinári@.
Mas, como na época a condição financeira não me per-
mitia fazer o curso, fiz o magistério e, logo em seguida,
a faculdade normal superior e o curso de pós-graduação
em educação infantil e séries iniciais. Agora não me vejo
fazendo outra coisa que não seja lutar pela alfabetização.

Como se evidencia nesses fragmentos, os sujeitos expli-


citaram a necessidade de se defenderem da opinião comum
de que estão na profissão por não terem alternativas; contu-
do, aceitam que ingressaram na área por falta de opção, mas
não concordam que tenham permanecido nela por esse mo-
tivo. Os marcadores discursivos destacam essa postura: nes-
ses fragmentos, “sinceramente”, “na verdade” e “para falar
a verdade” (advérbio, sintagma preposicional em função ad-
verbial e expressão atitudinal, respectivamente) são elemen-
tos que assumem a função de modalizadores (CASTILHO;
CASTILHO, 1992, p. 252-253). O primeiro, modalizador
afetivo; o segundo – sendo que o terceiro também desempe-
nha semelhante papel –, modalizador epistêmico asseverati-
vo. Esses elementos expressam os estados psicológicos dos
locutores diante do fato por eles conhecido e pressuposto, a
visão geral e depreciativa de que não escolheram a profissão
por aptidão ou gosto.
Além disso, estando as referidas construções topicaliza-
das, iniciando as sentenças, mostram que os sujeitos conside-
ram relevante essa visão comum e negativa acerca do profes-
sor. A partir dela é que se definem como profissionais da área
e que justificam ainda permanecerem como alfabetizadores.
No excerto 1, o emprego de “sinceramente” expressa
uma lamentação ao se concordar com a realidade pungente.

109
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Nos demais casos, a asseveração é reforçada pelas constru-


ções adverbiais, que tornam as sentenças mais enfáticas a
respeito da verdade do fato narrado. Além disso, em todas
essas situações, os sujeitos mostram que poderiam omitir
que conhecem a opinião geral e a resposta deles esperada;
mas expressam que optaram por usar de sinceridade para
com o interlocutor.
Ressalta-se também o advérbio “mesmo”, utilizado no
primeiro excerto (“[...] escolhi minha profissão por falta de
opção mesmo”). Ele é empregado em concordância com
um discurso que é trazido a essa fala do orientador, mas que
não é de sua autoria. Trata-se de um atravessamento discur-
sivo da opinião geral a respeito do tema em discussão. Além
disso, esse advérbio reforça a ideia de veracidade desse pare-
cer público, uma vez que também é um modalizador epistê-
mico asseverativo afirmativo.
Chama atenção especial, ainda, o emprego de “mas”,
também no excerto 1. Segundo Ducrot (1987), esse é um
operador por excelência que tem o propósito de introduzir
um argumento plausível a uma dada conclusão (P3 optou
pela profissão por um motivo não louvável; não é, pois, um
bom profissional), para, em seguida, colocar um argumen-
to definitivo para a conclusão contrária (P3 abraçou a causa
da educação; logo, é um profissional comprometido, que se
dedica a ela). Ou seja, o locutor redireciona sua exposição, a
fim de orientar o interlocutor a uma conclusão, e não a outra.
Desse modo, “mas” estabelece a ligação entre os dois seg-
mentos com distintos pontos de vista, o que acontece porque
diferentes vozes se fazem presentes e entram em embate.
Ainda nesse mesmo enunciado, ressalta-se a mudança
da primeira pessoa do singular (um marcador evidente de
subjetividade) para a primeira pessoa do plural. Essa ocor-

110
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

rência confere um caráter de parceria entre os interlocutores


(DUCROT, 1987), de modo que o discurso se expande para
além da pessoa restrita (BENVENISTE, 1988). Aquele que
fala e o leitor (já que se trata de um questionário autopreen-
chido) são inclusos num mesmo grupo que partilha uma opi-
nião. Ao chamar o outro para o seu discurso, o locutor leva-o
a aceitar seu ponto de vista, o que também confere maior
credibilidade ao que diz, visto que estaria em consonância
com a opinião do seu leitor.
A respeito da escolha da profissão, apenas um dos
orientadores apontou que a escolheu por admirar antigas
professoras. E usa o advérbio “sempre”, na indicação de alta
frequência, para reforçar o valor afetivo que tem para com
o ofício:

Excerto 4:
(P2): No que se refere à escolha da profissão, iniciou-se
porque, desde criança, sempre admirei as minhas pro-
fessoras.

A partir dessa fala, identificam-se razões intrínsecas para


a escolha da profissão. Uma vez que admirava as professoras,
@ orientador@ se despertou para as características próprias
dessa ocupação e requeridas do profissional, as quais pode-
riam ser, por exemplo, a atividade de ensino, o conhecimento
do conteúdo e a perícia em ministrá-lo.
Ainda, ao justificarem o porquê de hoje se identifica-
rem com a profissão, a maioria dos orientadores apontou
razões altruísticas. A partir dos fragmentos a seguir, nota-se
que os sujeitos visualizam o ensino como uma profissão so-
cialmente relevante, apesar de divergências a esse respeito;
no entanto, o desejo de ajudar os alunos a se desenvolverem

111
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

intelectualmente é maior que as dificuldades que poderiam


levar os docentes a desistirem da área, como mostram os
excertos 5, 6 e 7.

Excerto 5:
(P3): Sim, apesar da desvalorização do profissional,
somos agraciados com o conhecimento que passamos
para nossos educandos.

Excerto 6:
(P5): Identifico-me muito com a profissão de “profes-
sor alfabetizador”, pois o processo de acompanhar as
crianças em aprendizado é ótimo!

Excerto 7:
(P6): Sim, porque, na alfabetização, os resultados são
mais visíveis e acompanhar o desenvolvimento da crian-
ça nesse período é muito gratificante.

Um dos orientadores direcionou a sua aptidão e/ou pra-


zer de ensinar à sua formação inicial, pelo curso superior de
pedagogia. Relacionou a satisfação pessoal na profissão com
a identidade oficial concedida pelo curso de graduação.

Excerto 8:
(P2): Gosto, porque sou pedagog@ e admiro muito o
trabalho no ciclo de alfabetização e nas séries iniciais.

Ao se identificar como pedagog@, @ orientador@ mo-


biliza a categoria identitária relacionada à sua formação, o que
lhe conferiria uma maior aptidão para compreender as ativida-
des do universo da alfabetização. Ademais, vê como natural e

112
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

até necessário que tod@ pedagog@ goste do que faz. Houve,


portanto, uma inversão do que normalmente se espera: que a
pessoa se especialize em uma determinada área por gostar das
atividades relativas a ela, não o contrário. Considerando que P2
foi @ orientador@ que optou pela profissão por admirar as an-
tigas professoras ao longo de sua vida escolar, em sua constru-
ção identitária, ainda se evidenciam conflitos relativos à escolha
e à satisfação profissional.
No excerto 9, um@ d@s orientador@s também cons-
trói sua resposta demarcando-a com um recorte que aponta
fatores intrínsecos à profissão (a metodologia de ensino que
se aprende ao longo da experiência), mas, principalmente,
subordina o fato de gostar da profissão ao retorno do outro,
ainda que seja a avaliação de uma criança que o faça se reco-
nhecer como um bom professor.

Excerto 9:
(P4): [...] gratificante. Aprendi, na prática, muitas meto-
dologias e conquistei muitas crianças, que hoje já estão
crescidas, mas ainda se lembram de mim. Fico feliz por
isso.

Nesse fragmento, o uso do operador “mas” traz para o


discurso a premissa de que os jovens se esquecem de pro-
fessores que tiveram na infância. Isso aconteceria porque
aqueles não conquistam os alunos com as metodologias
que empregam; ou seja, o trabalho que desenvolvem não se
destacou, bem como não foram profissionais diferenciados.
Discursivamente, então, o orientador reforça que os profes-
sores não são satisfatoriamente formados para o exercício
da profissão. O marcador assinala que, caso o professor real-
mente seja bom e ministre boas aulas, será lembrado, fato

113
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

que se configura como suficiente para que o docente se rea-


lize como tal e ainda valida o esforço e a capacidade profis-
sional desse sujeito.

A “boa aula”: uma autoavaliação do desempenho d@


professor@ orientador@

Um dos questionamentos propostos aos orientadores


contemplava a avaliação desses sujeitos como profissionais,
no que diz respeito à qualidade de suas aulas, o que envolve
a habilidade do profissional em sala e os resultados alcança-
dos na tarefa de ensinar. Num primeiro momento, foi-lhes
pedido que fizessem uma autoavaliação segundo esses parâ-
metros.
As descrições que fizeram nessa autoavaliação desenha-
ram percepções de aulas, no mínimo, produtivas. A despeito
dos discursos depreciativos que circundam o universo do
professor socialmente, os sujeitos pesquisados se autovalo-
rizam, reconhecendo seus esforços para melhoria dos níveis
de aprendizagem. Essa avaliação positiva se pauta em mode-
los intuitivos do que seria o “bom professor” e a “boa aula”,
como se vê nos dizeres de P4 a seguir:

Excerto 10:
(P4): Sempre procurei ser dinâmic@; em meus planeja-
mentos, sempre gostei de inserir alguns momentos de
brincadeiras com as crianças. Eu lembro que até mesmo
projeto didático eu desenvolvia em minha sala de aula.
Durava 1 semana, mas eu nem sabia que era um projeto!
Hoje vejo que eu fazia coisas que deveriam realmente
ser feitas. Pelo menos, eu tentava.

114
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Nesse excerto, @ orientador@ indica que o dinamismo e


o envolvimento dos alunos com a aula é o parâmetro para se
definir o bom profissional. Destaca-se o emprego do advér-
bio “sempre”, imprimindo a constância do esforço, o que, no
imaginário dess@ professor@, compensa quaisquer insuces-
sos. Isso fica evidenciado também pelo uso de “pelo menos”,
na última sentença, indicando que há argumentos mais fortes
que poderiam ir de encontro à ideia inicial de que o esforço
seria suficiente ou, no mínimo, um comportamento diferen-
ciado a se considerar. O fato de @ orientador@ dizer que ten-
tava fazer o que deveria ser feito também é uma procura pela
legitimação de sua prática, o que lhe autoriza a estar na sala de
aula. Por fim, o uso do operador “até [mesmo]” aponta para
uma razão de sucesso das aulas: o método de ensino pautado
em projeto, demarcado como argumento mais forte.
Outr@ orientador@ que também avalia positivamente
suas aulas vê a necessidade de se resguardar de alguma crí-
tica, o que se repetiu nas falas de outros sujeitos. Utilizando
o operador “mas”, el@ afirma que, após as formações do
PNAIC, sente-se mais preparad@ quanto ao desenvolvi-
mento das aulas.

Excerto 11:
(P6): Minhas aulas sempre foram alegres e motivacio-
nais; quase sempre consegui atrair meus alunos para
a participação nas aulas. Mas, após as formações do
PNAIC, estou muito mais preparad@ para fazer isso e
com mais qualidade.

O fato de ess@ profissional ainda não se sentir segur@


nas práticas por el@ desenvolvidas, embora avalie que suas

115
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

aulas sempre tenham sido animadas, reforça que o ajuiza-


mento dos professores acerca do que seja a boa aula e o bom
profissional é pautado em elementos intuitivos. O sucesso de
uma aula é medido por meio do imediatismo do seu acon-
tecimento. Não há, portanto, diretrizes explícitas acerca do
que fazer.
Além disso, o excerto 11 reforça o que foi evidenciado
em outros discursos dos orientadores de estudo: no contex-
to de ensino e aprendizagem, os esforços empregados nem
sempre são suficientes para tornarem as aulas produtivas, de
boa qualidade. Essa percepção emerge no embate com a rea-
lidade que coloca o professor e seu trabalho em avaliação
constante. Assim, a concepção dessa classe é de que sempre
se espera mais do professor, embora ele se esforce, dedique
tempo e recursos à sua profissão.
Ainda nesse fragmento, P6 explicita que a formação
teórico-prática é definidora de sua habilidade profissional.
Ao destacar o PNAIC, evidencia que a formação inicial do
professor não é completa e nem suficiente para que as aulas
alcancem êxito.
Outr@ orientador@ também ressaltou o papel do
PNAIC na melhoria da qualidade de suas aulas, o que vê
como uma verdade incontestável (“com certeza”). De igual
modo, também ess@ docente usa como parâmetro o dina-
mismo das atividades propostas, a movimentação requerida
no desempenho das atividades por el@ propostas.

Excerto 12:
(P7): Minhas aulas não estavam sendo ministradas com
o dinamismo necessário, mas, depois de tantas experiên-
cias vivenciadas nas formações do PNAIC, elas foram

116
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

modificadas. Agora são mais atraentes e, com certeza,


ajudam na assimilação pelo aluno.

Logo, nos dizeres dos orientadores, a ideia de boa aula


está relacionada ao momento em que são desenvolvidas as
atividades. O nível de empatia e a diversão que o professor
proporciona aos alunos são os medidores do sucesso.
Além disso, os professores se veem como sujeitos con-
troladores do processo educacional na busca por resultados
satisfatórios. Observa-se que suas falas são construídas com
verbos no indicativo (uma realidade factual), empregados
na primeira pessoa do singular, ou seja, os orientadores se
colocam como, efetivamente, sujeitos do discurso e, assim,
revelam sua identidade ao se definirem como responsáveis
pela ação.
Contudo, esse processo de se verem como autores
da prática não se dá sem conflitos. Estes são trazidos às
falas dos professores como enfrentamentos do discurso
legitimado do profissional apático, inapto e mal formado.
Assim, esses sujeitos estão imprimindo resistência ao sen-
so comum e às concepções sociais que lhes desvalorizam
como profissionais, ao mesmo tempo em que reproduzem
essas visões.
Com semelhante postura de resistência à realidade, ao
se autoavaliarem, os orientadores construíram imagens de
si como professores leitores e pesquisadores, o que se su-
bentende a partir de algumas construções sintáticas, como
“sempre em busca de práticas”, e de adjetivações, como “de-
dicad@”, “criativ@”, “esforçad@”. Esse perfil os legitima
como profissionais da educação que fogem ao discurso so-
cial que tende a lhes depreciar.

117
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Excerto 13:
(P1): Sou um@ profissional muito dedicad@ e deter-
minad@ com tudo o que faço.

Excerto 14:
(P2): Avalio-me como um@ professor@ dinâmic@;
estou sempre em busca de práticas que favoreçam
o trabalho com os alunos com necessidades especiais.
Faço sempre uso de materiais concretos, jogos pedagó-
gicos nas atividades que desenvolvo [...].

Excerto 15:
(P4): É difícil falar de nós mesmos. Mas tenho certe-
za de que sou um@ professor@ esforçad@, criativ@,
dinâmic@ e amoros@ com meus alunos.

No excerto 13, @ orientador@ se caracteriza como sen-


do muito dedicad@ e determinad@. O advérbio de intensi-
dade que acompanha esses adjetivos (“muito”) coloca esse
profissional como estando acima da média, o que reforça o
rompimento com o estereótipo social negativo. No excerto
14, por sua vez, o “sempre” torna mais sólido o valor de
verdade da autoavaliação positiva que @ orientador@ faz (a
sua dedicação é uma constância), o que também acontece no
excerto seguinte, com o uso da expressão “tenho certeza”.
Por fim, no imaginário dos sujeitos pesquisados, o es-
forço e a dedicação que dispensam à atividade que desem-
penham seriam o crédito que pagariam por alguma falha no
processo de ensino e aprendizagem. Além disso, como re-
conhece Araújo (2006), constituem-se como uma busca por
legitimar a atuação e autorizar esses profissionais a se engen-
drarem no trabalho com as séries iniciais.

118
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

A avaliação do outro na construção da identidade dos


orientadores de estudo

Ao serem questionados quanto à imagem que o outro


faz deles como professores, a maioria dos orientadores fez
uso explícito do argumento de autoridade. Esse recurso dis-
pensa a demonstração da veracidade dos fatos, uma vez que
não é o próprio locutor que os enuncia. Ressalta-se que to-
dos aqueles que mostraram conhecer a opinião do outro a
seu respeito foram convictos na autoavaliação positiva quan-
to à sua capacidade profissional.

Excerto 16:
(P1): @s colegas de serviço falam que sou muito de-
terminad@ em tudo o que faço.

Excerto 17:
(P2): No que se refere à imagem que outros fazem de
mim, há profissionais que me avaliam como um@
ótim@ profissional. Porém, acredito que isso não é
o suficiente; preciso estar sempre em busca de novos
conhecimentos, ser pesquisador@ e inovar os procedi-
mentos adotados na prática [...]

Excerto 18:
(P6): Acho que seja uma boa imagem, porque sempre
recebi elogios dos pais pelo trabalho que realizo.

A partir da avaliação que o outro faz do profissional,


emergem visões de mundo, concepções da escola e dos pro-
fissionais acerca da aprendizagem e do ensino, bem como
se torna possível distinguir valores éticos e políticos imbri-

119
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

cados na prática social. Assim, a avaliação positiva do outro


tem implicações evidentes nas constituições identitárias dos
sujeitos, uma vez que, descobrindo as expectativas do outro
em relação a si, fazem uma autoavaliação crítica do próprio
desenvolvimento profissional, o que terá efeitos práticos.
Houve, contudo, três orientadores que revelaram des-
conhecer ao certo o que os outros pensam do seu trabalho:

Excerto 19:
(P3): Eu imagino que me acham um@ professor@
dign@ de algum crédito.

Excerto 20:
(P5): Não tenho certeza da imagem que fazem de
mim. É um fator que me preocupa bastante.

Excerto 21:
(P7): Penso que é uma boa imagem, pois, quando de-
senvolvemos um bom trabalho, todos têm uma imagem
positiva a nosso respeito.

Construções como “eu imagino que”, “não tenho certe-


za” e “penso que” imprimem incertezas ou probabilidades ao
discurso dos sujeitos, denotando que o conhecimento que de-
têm sobre a situação é insuficiente. Contudo, chama a atenção
o discurso de P7, quando ele emprega o operador de coorde-
nação “pois” para expor um índice de avaliação, chamando o
interlocutor à concordância “evidente” com sua tese de que
a boa imagem do profissional é diretamente relacionada ao
desenvolvimento de um bom trabalho por ele. Além disso,
fazendo-se o trabalho devido, a aprovação seria geral e in-

120
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

dubitável – o que é percebido no argumento de autoridade


empregado ao se fazer uso do pronome indefinido “todos”.
Fernandes (2008) acredita que a avaliação do trabalho do
professor é um recurso importante de regulação, de amadu-
recimento, de credibilidade e de reconhecimento dessa classe
profissional. Portanto, conhecer a avaliação que o parceiro
de trabalho faz é necessário e confere segurança ao profis-
sional quanto às ações que opta por colocar em prática em
suas aulas, constituindo elemento definidor e relevante no
processo de formação identitária do profissional educador.

FORMAÇÕES CONTINUADAS NO PROCESSO


DE (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

No que diz respeito às formações continuadas, o pa-


norama de hoje faz recair sobre o professor em serviço a
necessidade de estar sempre atualizado e bem informado,
principalmente em relação aos conhecimentos curriculares
e pedagógicos e às novas tendências educacionais, sempre
com vistas à melhoria da qualidade de ensino. Isso aconte-
ce também e principalmente porque o professor do ensino
básico tem sido visto como aquele que não produz conheci-
mento e até como alguém que é incapaz de fazê-lo. Segundo
Guedes Pinto (2002), a mídia e as universidades questionam
a capacidade de ler e escrever desse professor.
Nesse sentido, as formações continuadas, ao valoriza-
rem a investigação como estratégia de ensino de modo a pro-
moverem a reflexão crítica da prática em sala de aula, têm
como propósito realocar esse profissional como produtor e
controlador de saberes relacionados à sua prática, reposicio-
nando-o socialmente. Segundo Chimentão,

121
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

A nosso ver, a formação continuada passa a ser um dos


pré-requisitos básicos para a transformação do professor,
pois é através do estudo, da pesquisa, da reflexão, do cons-
tante contato com novas concepções, proporcionado pe-
los programas de formação continuada, que é possível a
mudança. Fica mais difícil de o professor mudar seu modo
de pensar o fazer pedagógico se ele não tiver a oportunida-
de de vivenciar novas experiências, novas pesquisas, novas
formas de ver e pensar a escola.
A formação continuada de professores tem sido entendida
como um processo permanente de aperfeiçoamento dos
saberes necessários à atividade profissional, realizado após
a formação inicial, com o objetivo de assegurar um ensino
de melhor qualidade aos educandos (2009, p. 3).

Essa visão está em consonância com os discursos go-


vernamentais que justificam a oferta das formações. E o que
se depreende deles é que as formações iniciais, a graduação,
são incompletas para o bom exercício da profissão. Claro
que, na perspectiva de uma identidade em fluxo contínuo,
essas formações também são insuficientes para a constitui-
ção identitária dos professores. Assim, de algum modo, as
formações continuadas perpassam pelo argumento do ca-
ráter compensatório (SOUZA, 2006). Isso significa dizer
que elas vêm a completar as carências visualizadas na prática
diária, as quais culminarão em incompetências da parte da-
quele que ensina, o que reforça a figura do professor como
causa da baixa qualidade do sistema educacional. Portanto,
no processo de constituição identitária, despontam as vozes
dos discursos governamentais, que apresentam cursos e ma-
teriais didáticos para formar profissionais atuantes que ainda
se encontram despreparados.
A maioria dos orientadores, ao abordar a forma como
compreendem as formações continuadas para sua capaci-

122
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

tação profissional, explicita um discurso em consonância


com essa concepção institucional do professor mal forma-
do. O excerto 22 (e, mais à frente, o 26) é uma exceção;
P1 deixa explícito que se vê como um bom profissional.
A partir desse posto, é possível elencar três pressupostos:
esse sujeito é um bom profissional; ele pretende se manter
como bom profissional; e as formações o atualizam em sua
área de atuação. Essa atualização não implica, ao que pa-
rece, uma incompletude propriamente em sua formação;
constitui a dinâmica do desenvolvimento sócio-histórico
do indivíduo.

Excerto 22:
(P1): Gosto muito de estar me especializando, pois um
bom profissional deve estar sempre atualizado.

Os demais orientadores, seguindo a concepção de que


as formações são ofertadas a sujeitos incompletos em ter-
mos de conhecimento e habilidades, mostraram valorizar
sobremaneira a quantidade de formações das quais partici-
param, considerando-as determinantes para a melhoria de
seu desempenho profissional.

Excerto 23:
(P2): Durante a minha atuação profissional, já tive opor-
tunidade de participar de várias formações continuadas.
Vale ressaltar os estudos dos parâmetros curriculares
nacionais. E avalio como de fundamental importância
para o professor participar de formações, pois estas fa-
vorecem todo o trabalho pedagógico que desenvolvo
junto aos alunos e demais pessoas que compõem a equi-
pe docente da unidade escolar.

123
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Excerto 24:
(P4): Já participei de muitas formações continuadas e,
aos poucos, fui percebendo o sentido das formações,
que era uma troca de experiências, em que um enriquece
o trabalho do outro. Sempre gostei de participar dos cur-
sos para melhorar minha prática. E, se antes eu gostava,
hoje as valorizo ainda mais, pois tenho certeza de que
são fonte de recarga para inovar a prática pedagógica.

Excerto 25:
(P7): Eu já participei de várias formações. O que sem-
pre me motiva é saber que ali vou estar aprendendo
mais para poder desenvolver um trabalho de qualidade.

Esses discursos mostram que as formações conferem


aos orientadores a posse de um conhecimento que também
lhes autoriza como docentes. Isso lhes dá segurança para se
autoavaliarem como competentes; é o que se evidencia quan-
do remetem a um contexto anterior e posterior às formações
– melhoria da prática. Paralelamente, conforme supracitado,
essa percepção ratifica o fato de as graduações não serem
suficientes para a formação do bom profissional.
Na fala de P7, ainda se destaca o uso do advérbio
“mais” acompanhando o verbo “aprender”. Nesse contexto,
ele confere valor de grandeza, isto é, a formação propor-
ciona aprendizado além daquele que o orientador já possui.
Essa construção denota que os orientadores não se veem
como destituídos de saberes. Tanto esse como outros orien-
tadores apontaram que têm conhecimento e experiência que
compartilham nos momentos de formação e que devem ser
valorizados, como também se vê no excerto seguinte.

124
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Excerto 26:
(P6): Participo das formações porque aprendo mais
para continuar desenvolvendo meu trabalho com qua-
lidade. Sempre as vejo como um novo ponto de partida
para o meu crescimento profissional e as recebo com
muito prazer.

Portanto, os orientadores participam das formações


para adquirirem novos conhecimentos, não desvalorizando
as habilidades já adquiridas no exercício da profissão. Ou
seja, há a troca, a valorização também do outro com vistas a
se tornarem bons profissionais, o que reforça o fato de que
as formações identitárias são constituídas também a partir
do outro, nas interações sociais.
No que diz respeito ao PNAIC, especificamente, várias
foram as referências a ele como um diferencial de formação,
por interferir diretamente na prática.

Excerto 27:
(P6): O PNAIC veio com um grande diferencial, por-
que tem me fornecido excelentes subsídios para a minha
prática.

Excerto 28:
(P7): São várias as formas como vejo e recebo as forma-
ções. Hoje, mais importante para mim são as formações
do PNAIC, que estão sendo o carro-chefe para minha
atuação em sala de aula. Elas trazem inovação, dinamis-
mo e me motivam.

Logo, a visão dos orientadores está em conformidade


com o discurso institucional que remete à incompletude do

125
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

profissional da educação. Por outro lado, o engajamento dos


orientadores com este Pacto desponta como ferramenta de
enfrentamento do contexto social que tende a depreciar a
imagem do professor.
Compreende-se a identificação dos professores orienta-
dores com a perspectiva do PNAIC a partir do anseio desses
profissionais pelo “como fazer”. Mesmo o respaldo teórico
que constitui a formação básica e continuada dos profissio-
nais insurge, em seus discursos, na perspectiva da utilidade;
ou seja, é algo que deve visar à prática.

Excerto 29:
(P1): Vejo a teoria como uma parte fundamental na
forma como dou aula, pois, para que a prática tenha
sucesso, você tem que ter embasamento em relação ao
conteúdo.

Excerto 30:
(P2): [...] acredito que a teoria e a prática precisam cami-
nhar juntas, pois, para desenvolvermos uma prática de
boa qualidade e com resultados satisfatórios, faz-se ne-
cessário ter embasamento teórico e conhecer conteúdos.

Excerto 31:
(P3): A teoria vem a nos nortear sempre, pois, se quere-
mos ser bons educadores, temos que ter o embasamen-
to teórico para que nossa prática, como educadores,
seja sempre melhorada.

Excerto 32:
(P4): Minha prática sempre esteve bem próxima do
que a teoria propõe.

126
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Nesse sentido, os cadernos do PNAIC apresentam um


grande número de atividades e relatos de experiências que
podem ser reproduzidos, segundo os estágios de desenvol-
vimento das crianças. Por isso, são materiais, em sua maior
parte, mais pedagógicos, não tão teóricos, indo ao encontro
dos anseios dos professores, que compreendem os conceitos
a partir de sua prática diária com o aluno.
Um dos orientadores (P6) deixou claro que, em algumas
situações, há um distanciamento entre teoria e prática. Re-
conhece-se que o imaginário desse orientador é atravessado
por um discurso que é fruto do senso comum e que é bastan-
te difundido no campo da educação: “na teoria, é uma coisa;
na prática, é outra”.

Excerto 33:
(P6): Às vezes, ouvindo ou lendo as teorias, achamos
que tudo é fácil. Mas, ao chegar à sala de aula, na hora
da prática, nem sempre é tão simples.

A esse respeito, Chimentão assevera:

Embora a formação continuada deva atender às neces-


sidades do professor no seu cotidiano, ela não pode ser
entendida como um receituário, ou seja, um conjunto de
modelos metodológicos e/ou lista de conteúdos que, se
seguidos, serão a solução para os problemas. Os proces-
sos de formação continuada podem ser valiosíssimos, se
conseguirem aproximar os pressupostos teóricos e a práti-
ca pedagógica. A formação continuada deve ser capaz de
conscientizar o professor de que teoria e prática são “dois
lados da mesma moeda”, que a teoria o ajuda a compreen-
der melhor a sua prática e a lhe dar sentido e, consequen-
temente, que a prática proporciona melhor entendimento

127
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

da teoria ou, ainda, revela a necessidade de nela fundamen-


tar-se (2009, p. 4).

Os dizeres dos professores reforçam a exigência de que


a graduação apresente a necessária articulação entre prática
e teoria, uma vez que destacam as formações continuadas
das quais participaram como sendo de relevância para a
prática em sala de aula. Essa necessidade se destaca tam-
bém quando apontam o PNAIC como um diferencial em
virtude das propostas didáticas apresentadas nos cadernos
pedagógicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Coracini e Bertoldo (2003, p. 13), o sujeito se


constitui na ilusão de ser a origem do seu dizer. Contudo,
este mesmo sujeito é flagrado constantemente por entre-
cruzamentos discursivos, pelo já dito, por um discurso que
o precede. Assim, o propósito deste trabalho foi identificar
um pouco o que está envolvido nos processos identitários
dos professores orientadores em formação pelo PNAIC.
Partiu-se do princípio de que, em todo processo de forma-
ção continuada, há reposicionamentos identitários e outros
elementos que podem revelar vozes que circulam na pró-
pria formação, bem como na prática do professor e que vão
constituir esses sujeitos identitariamente. A identidade foi,
então, compreendida como sendo constantemente (re)cons-
truída a partir das dinâmicas sócio-históricas.
Como foi explicitado ao longo do estudo, os orientado-
res não se definem em si mesmos, sozinhos. Seus discursos
são demarcados pela articulação entre o individual e o social.
A forma como se autoavaliaram, o modo como reconhecem

128
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

e recebem a avaliação dos pares e dos alunos contribui para


a (re)definição de suas identidades. A princípio, a formação
universitária é um processo formal identitário, que autoriza
o professor a estar em sala de aula; contudo, nos dizeres dos
profissionais, há um diálogo constante e conflituoso com
discursos depreciativos sobre a figura do professor. Nesse
embate, no entanto, os sujeitos despontam como mais forta-
lecidos, confiantes de seus potenciais e de suas vivências, as
quais se transformam em conhecimento.
As formações continuadas contribuem muito para esse
imaginário e conferem aos orientadores a segurança que têm
como bons profissionais. Desse modo, assumem a imagem
de professores leitores, bem formados e protagonistas que
estão no controle de sua história.
Portanto, as vozes trazidas pelos professores denotam
a construção de suas identidades em resposta e resistência a
um discurso negativo sobre suas figuras sociais. Conhecer-
-lhes é importante para que se pensem e considerem esses
sujeitos em seus ambientes de ação, segundo suas necessida-
des, suas convicções e experiências. Além disso, fomenta a
reflexão acerca da figura do professor como um sujeito que
age intencionalmente na prática social, que reflete sobre sua
atuação, mas que também se vê limitado por questões políti-
cas, sociais e culturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, N.M. A relação entre teoria e prática e a formação do


professor de língua estrangeira (inglês): processos identi-
tários. 2006. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia.

129
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6ª edição. São Paulo:


WMF Martins Fontes, 2011.
. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 1988.
BENVENISTE, É. Problemas de lingüística geral I. Campinas:
Pontes, 1988.
BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade.
Petrópolis: Vozes, 1985.
BRASIL. Decreto n. 6.755, de 5 de janeiro de 2009. Institui a Política
Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Edu-
cação Básica, disciplina a atuação da Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES no fomento a
programas de formação inicial e continuada, e dá outras provi-
dências. Diário Oficial, Brasília, 30 de janeiro de 2009.
. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio
à Gestão Educacional. Pacto Nacional pela Alfabetização na
Idade Certa: formação do professor alfabetizador: caderno de
apresentação. Brasília: MEC/SEB, 2012. 40 p.
. Ministério da Educação. Pacto Nacional pela Alfabe-
tização na Idade Certa. Documentos importantes. Orientador
de estudo. Brasília, [s.d.]. Disponível em: <http://pacto.mec.
gov.br/images/pdf/orientador_de_estudo.pdf>. Acesso em 04
abr. 2015.
CASTILHO, A.T.; CASTILHO, C.M.M. Advérbios modalizadores.
In: ILARI, R. (org.). Gramática do português falado. Campi-
nas: UNICAMP, 1992. p. 213-261.
CHIMENTÃO, L.K. O significado da formação continuada docente.
In: Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar, 4,
2009, Londrina. Anais do Congresso Norte Paranaense de
Educação Física Escolar. Londrina, 2009.
CORACINI, M.J.; BERTOLDO, E.S. (org.). O desejo da teoria e
a contingência da prática: discursos sobre a sala de aula (lín-

130
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

gua materna e língua estrangeira). Campinas: Mercado de Letras,


2003.
CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru:
Edusc, 1999.
DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
FERNANDES, D. Avaliação do desempenho docente: desafios,
problemas e oportunidades. Lisboa: Texto Editores, 2008.
FREITAS, M.T.A. Bakhtin e a linguagem. In: . Vygot-
sky e Bakhtin: psicologia e educação: um intertexto. 4ª edição.
São Paulo: Ática, 2003. p. 131-141.
GUEDES PINTO, A.L. Rememorando trajetórias da professora-al-
fabetizadora: a leitura como prática constitutiva de sua identidade
e formação profissionais. Campinas: Mercado de Letras, 2002.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 2ª edição.
Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
KLEIMAN, A.B. Professores e agentes de letramento: identidade e
posicionamento social. Filologia e Linguística Portuguesa, 8,
2006, p. 409-424.
MATENCIO, M.L.M. Estudos do letramento e formação de profes-
sores: retomadas, deslocamentos e impactos. Caleidoscópio, 7,
1, 2009, 5-10.
PASSEGGI, M.C. Memoriais de formação: processos de autoria e de
(re)construção identitária. In: CONFERÊNCIA DE PESQUI-
SA SÓCIO-CULTURAL, 3, 2000, Campinas. Anais da Confe-
rência de Pesquisa Sócio-Cultural. Campinas, 2000.
RAJAGOPALAN, K. A confecção do memorial como exercício de
reconstituição do self. In: MOITA LOPES, L.P.; BASTOS, L.C.
(org.). Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campi-
nas: Mercado de Letras, 2002. p. 339-349.
SOUZA, D.T.R. Formação continuada de professores e fracasso es-
colar: problematizando o argumento da incompetência. Educa-
ção e Pesquisa, São Paulo, 32, 3, 2006, p. 477-492.

131
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópo-


lis: Vozes, 2002.
TICKS, L.K. As facetas identitárias reveladas pela análise do discurso
de professores de inglês em formação inicial. In: ENCONTRO
DO CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL
(CELSUL), 7, 2006, Pelotas. Anais do Encontro do Círculo de
Estudos Linguísticos do Sul. Pelotas: UFPel, 2006. v. 1.
VÓVIO, C.L. Entre discursos: sentidos, práticas e identidades lei-
toras de alfabetizadores de jovens e adultos. Tese (Doutorado).
Campinas, Unicamp, 2007.

132
Ideias para letramentos críticos nas aulas
de inglês dos anos iniciais:  complementando
Cervetti, Pardales e Damico*

Nara Takaki

INTRODUÇÃO

Ao ler a matéria “Os professores universitários têm de


se levantar da cadeira e ajudar a formar docentes da rede
básica”, o leitor é levado a refletir sobre sua formação e sua
condição e as do outro, pensando se nessa afirmação há uni-
versalidades (todos os professores universitários estão/de-
veriam estar preparados e necessariamente sabem mais que

*
 Este trabalho é parte de pesquisa intitulada “Novos letramentos e
multiletramentos no ensino de línguas em letras: ressignificando em
tempos globais”, da mesma autora. Para outras informações sobre
o assunto e discussões mais detalhadas de termos e conceitos, ver
Takaki (2012a) e Takaki (2015).

133
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

os professores da rede básica) e garantias de sucesso. Fosse


essa uma questão de múltipla escolha envolvendo as opções
“sim”, “não”, “talvez”, optaríamos por “talvez” por conta
das incertezas e das contingências que acompanham as rela-
ções humanas e o fato de que o professor universitário não
é aquele que vai emancipar o professor do ensino básico.
Isso seria uma contradição. Na verdade, ambos precisam de
formação continuada e atualizada para o constante reinício
de trabalhos conjuntamente produzidos.
A questão central, então, é como essa formação conti-
nuada e atualizada pode ser mais atraente para os professo-
res da sociedade de hoje em suas condições locais-globais.
Se não há conciliação e suficiência de tempo para formador
e professor se reunirem e se engajarem em projetos dentro
da escola, a formação a distância pode ser uma alternativa.
Esse tipo de formação pressupõe que ambas as partes com-
partilhem um tempo previamente acordado para o encontro
e que estejam servidas no que se refere à habilidade digital
e à manutenção técnica dos computadores, seus programas,
ferramentas, aplicativos e outros recursos. Tanto presencial-
mente como a distância, a atualização teórico-prática é um
aspecto importante na formação continuada. Há, ainda, a
modalidade da autoformação, ou seja, estudar, aplicar algo
nas aulas, socializar as inovações em eventos locais com a
participação de alunos, pais e comunidades em geral e em
publicações da área.
O ponto crucial da situação atual é a educação de lín-
guas/linguagens voltada para a formação cidadã crítica, au-
tocrítica (TAKAKI, 2011), criativa, ética, e isso não necessa-
riamente pressupõe que o professor universitário tenha de se
levantar da cadeira. Aliás, levantando-se ou não da cadeira,
os conceitos de formação continuada e autoformação reque-

134
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

rem constantes reinvenções a partir do que cada um traz de


experiência vivida e conhecimentos mundanos do dia a dia e
do potencial de produzir sentidos sociossemióticos (KRESS,
2010) alternativos em confronto com as próprias epistemo-
logias-ontologias-metodologias e as dos outros numa dinâ-
mica invencível e complexa, por assim dizer, mas que pode
ampliar a nossa compreensão das diferenças e a convivência
com renegociações de poder – ou seja, existe vida criativa
para extrair possibilidades nas próprias complexidades a fa-
vor da reinvenção.
Este ponto está na linha de frente dos debates educacio-
nais e das políticas linguísticas. Quem embarcar nessa área
provavelmente estará repensando éticas de engajamento
com que os alunos possam articular seus discursos e posi-
cionamentos, interrogando, resistindo e transformando as
indexicalizações (BLOMMAERT, 2010) e representações
ideológicas e sociossemióticas impostas pela mídia e pela so-
ciedade ocidental a favor de suas comunidades locais-globais.
Dito isso, o objetivo deste texto é discorrer sobre exem-
plos de atividades para as salas de línguas dos anos iniciais
por meio de projetos. Por meio desses esquemas, apresen-
tarei os princípios de letramento crítico e o papel ocupado
pelas multimodalidades da perspectiva educacional para o
ensino de inglês nos anos iniciais e que podem contribuir
para o entendimento de concepções atuais de letramentos
pluralizados e situados.

Sobre letramentos críticos

Uma das questões mais importantes e que não pode fal-


tar nos estudos de letramentos críticos é o reconhecimento
de que as línguas/linguagens são produtos de tempos-es-

135
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

paços socialmente localizados. Nesses tempos-espaços, as


ações sociais acontecem e dão sentido ao contexto no qual a
língua/linguagem é usada (BAKHTIN, 1999). A sala de aula
vazia permanece em estado inerte. Ela passa a ser um lugar
político quando está ocupada por pessoas disponíveis para
os acontecimentos no devir graças ao trabalho das línguas/
linguagens (PENNYCOOK, 2010, p. 2) – esse conceito será
estendido para a sala de aula em geral.
Tal visão pressupõe que, nas interações emergentes, o
professor pode deter mais poder ou o aluno, ou o poder pode
se apresentar de forma mais equilibrada. Isso se deve ao fato
de que uma sala ocupada por pessoas é constituída por en-
contros e desencontros de diversas origens históricas abran-
gendo identidades, etnias, gêneros, classes sociais, posições
que ocupam na sociedade, experiências, interesses, habilida-
des, valores e vontades num fluxo contínuo, dinâmico e pluri-
versal. Nesse sentido, falar em classes homogêneas não mais
faz sentido porque os alunos, professores e autoridades insti-
tucionais são membros de contextos linguísticos, históricos,
sociais, econômicos, políticos, culturais, religiosos, sujeitos a
mudanças, bem diferenciados e muitas vezes incompatíveis.
A incompatibilidade não é apenas negativa, tampouco
improdutiva, porque ela não nega a natureza híbrida já na ori-
gem do trabalho complexo das línguas/linguagens. Este tra-
balho ainda é transpassado por relações desiguais de poder.
Por exemplo, entre duas pessoas completamente diferentes,
há aspectos híbridos/mestiços que possibilitam reconectivi-
dades entre elas, isto é, um lugar/momento comum em que o
discurso, a experiência, o interesse e a perspectiva futura delas
podem ser diferentes, mas semelhantes ou iguais, mas dife-
rentes, como prefere Pennycook (2010). Portanto, o conflito
de forças desiguais pode produzir discussões, acordos, proje-

136
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

tos e servir de mola propulsora para passos inovadores e ins-


piradores. Ao contrário da luta pelo entendimento, a inércia,
a omissão e o abandono dos conflitos podem estagnar fluxos
sociais, reproduzir as situações desiguais e adiar as resoluções
com participação mais democrática.
Assim, cada um entende o que é ensinar, aprender, rea-
lidade, conhecimento, cultura, poder, educação, criticidade,
criatividade, ética, dentre outros aspectos, de acordo com a
educação que funciona 24 horas por dia e que não é somen-
te a da escola. As práticas sociais diárias estão desafiando
as maneiras monoculturais/univocais com as quais alunos,
professores, autoridades, desenhistas de currículos leem o
mundo.
Uma vez introduzida a noção do porquê das salas de
aula serem heterogêneas em suas origens e, por isso mesmo,
têm capacidade para dinamizar as iniciativas de seus compo-
nentes, passarei a ilustrar uma atividade com duas direções
iguais até certo ponto da aula para depois tomar rumos di-
ferentes. Uma delas focaliza a leitura crítica que não tem al-
cance crítico socialmente engajado para promover possíveis
mudanças e outra prossegue elucidando propostas de letra-
mentos críticos para a formação de cidadania socialmente
engajada atendendo às demandas atuais da sociedade globa-
lizada e digital e outra no plural, na perspectiva de criticidade
elaborada por Cervetti, Pardales e Damico (2001). Depois,
apresentarei duas ilustrações de aulas com o uso de vídeos e
foco nos letramentos críticos, reforçando como essas esco-
lhas respondem pelo tipo de cidadão que objetivamos for-
mar para atender aos interesses (do ser e nem tanto de ter)
das crianças que sejam capazes de se distanciarem do senso
comum sobre tópicos propagados com conceitos fechados
pela mídia em geral (MORGAN & RAMANATHAN, 2015;

137
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

CHUN, 2015). Enfim, a ideia é que iniciativas relevantes nas


aulas possam fazer com que os alunos dos anos iniciais co-
mecem a lidar bem com diferenças sendo solidários, cola-
borativos e agentes de mudanças para boas convivências, e
não apenas aquelas centradas no materialismo e no consumo
impulsionados pela mídia.

MESMO ASSUNTO, DUAS DIREÇÕES: IMPLICAÇÕES


EPISTEMOLÓGICAS-ONTOLÓGICAS-METODOLÓGICAS
DIFERENTES

Nessa parte, situo uma tarefa no Projeto Ipê e no Pro-


jeto Bambu1 com aulas de língua inglesa para o terceiro e o
quarto anos iniciais de escola pública. O objetivo da tarefa
no Ipê é promover leitura crítica e no Bambu o projeto se
estende para o letramento crítico. Em ambos os casos, os
alunos são interessados e há uma mescla de espacialidades,
isto é, alguns estão inseridos em zonas urbanas e outros, nas
rurais. Nestas, a atividade que predomina entre os morado-
res é o agronegócio e o turismo por conta das riquezas natu-
rais da região pantaneira. A maioria tem acesso a internet de
banda larga nas residências, fazendo uso de telefonia móvel
dos pais. A pequena minoria que não tem esse tipo de aces-
so frequenta casas de parentes, amigos e colegas para jogar
videogames e acessar o Google.
A seguir, apresento o que há de comum nas propostas
de aula dos projetos Ipê e Bambu, para depois diferenciá-los.
A ideia é partir do conhecimento de mundo, das habilidades
e experiências dos alunos para construir o debate sobre o
tópico que emerge da própria instrução oral.

 Os nomes e os projetos são inventados.


1

138
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

PONTOS EM COMUM DOS PROJETOS IPÊ E BAMBU –


OBJETIVOS
Instruções do professor(a) Leitura crítica
O que está mais ligado a sua vida, seu Vincular a experiência
cachorro, gato, a televisão, a internet, vivida do aluno à aula;
família? Por que isso acontece? (Your ouvir suas narrativas. (My
family, dog, cat, internet, cell phone?) dog, TV, cell phone…)
Que programas de TV você assiste? Introduzir o tema (beleza)
(What TV programs do you usually ao aluno e ouvir suas
watch?) E os de beleza (beauty)? histórias de vida. (I watch
X, I like Y)
O que mais chama atenção neles? Recuperar a memória
(Beautiful girls, their hair/make-up/ multimodal: (hair, nails,
clothes/shoes, handsome boys?) clothes, shoes)
Há loiras (blonde) e morenas Buscar evidências e
(brunette) magras com salto alto, recursos multimodais
maquiagem, perfume, acessórios? Há dos produtores de tais
meninos brancos vestindo roupas e programas
calçados de marca? Com celulares de
última geração?
Essa ideia de beleza (em inglês, Aguçar a percepção crítica
beauty) deve ser perseguida em todos por meio de introdução
os cantos do mundo? Que outras de palavra-chave (beauty)
belezas são possíveis? Todas as loiras
pensam/são da mesma forma?
Para quem você acha que o programa Desenvolver percepção
foi criado? Por quê? Pense no cenário. de que há públicos sendo
endereçados
Está apelando para beleza, saúde, Buscar a intenção do
conforto? Por exemplo: vontade de autor, do produtor do
ser como a atriz/apresentadora (ator/ programa, sem dar
apresentador)? Ter o cabelo, a roupa espaço para a visão do
que ela/ele tem? aluno
Que palavras, frases, imagens, cores, Objetivo de validar/
sons e gestos são usados para chamar legitimar o que está
atenção? vendo como se fosse
história única

139
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

O Projeto Ipê encerra com a seguinte instrução: “Com-


pare as meninas do programa com as da sua escola/realida-
de”. O objetivo é fazer o aluno contrastar visões e experiên-
cias mostradas pela TV com o que acontece fora dela.
Até aqui, a aula fica restrita à leitura crítica (CERVETTI,
PARDALES & DAMICO, 2001). Muito embora haja opor-
tunidade para ampliação de discursos abrangendo noções de
multimodalidades ao relembrarem como as personagens são
fisicamente, como elas se apresentam, seus dizeres e perfor-
matividades (PENNYCOOK, 2015), incluindo dança, canto,
esporte, tipo de música, cenários e espaço para a percepção
de contextos e realidades diferentes, não há ainda um enga-
jamento mais profícuo que traga relações desiguais de poder.
Assim, os alunos correm o risco de reproduzirem críticas,
aceitando que o mundo da beleza do jeito que se apresenta
é sadio para todos(as) e que todos(as) devem aspirar a esse
modelo único difundido pelos referidos programas de TV.
Na perspectiva dos letramentos críticos, a inovação crí-
tica requer uma dinâmica de energias que pode modificar
a experiência dos alunos e dos professores no processo de
ensino-aprendizagem de línguas de forma a responder por
prioridades locais-globais que serão construídas a cada mo-
mento. Portanto, na nova ordem globalizada, a relação entre
palavra e mundo é crucial (FREIRE, 2005) e deveria estar
a serviço da educação. Por “palavra”, o referido autor quer
dizer imagem, texto, discurso, programa de TV, filme, vídeo,
jogo, aula, piada etc.
Uma estratégia que tem sido amplamente reconhecida é a
do questionamento que coloque os valores e as realidades dos
alunos localmente situadas em confronto com valores que
são bombardeados pela mídia geral, nesse caso o conceito de
beleza, assunto que passaremos a apresentar na sequência.

140
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

No Projeto Bambu, como um professor poderia, portan-


to, acionar essa estratégia do questionamento? Uma alternativa
possível seria elaborar perguntas e atividades diferenciadas e
que são pautadas em teorias que façam mérito à complexidade
de diferentes contextos e saberes revisando os loci que sofreram
e sofrem séculos de colonização/globalização2. À direita da ta-
bela a seguir estão as perguntas e, à esquerda, seus objetivos.

Projeto Bambu Objetivos


Como as(os) meninas(os) do programa Focar em desigualdades
são parecidas com as da(o) sua(eu) sociais: as mostradas
família/escola/comunidade/cidade/ pela TV e o que
sítio/realidade? Como são diferentes? acontece fora dela;
(Are they similar to the people in your conscientizar sobre
family?) As(Os) meninas(os) de sua as bases nas quais
realidade são inferiores? Quem paga consumismo e
pelos produtos e serviços de beleza materialismo constroem
para essas(es) meninas(os) da TV? o conceito fechado
E se for uma mulher esquimó, essa de beleza; fomentar a
beleza faz sentido? Quem decide o que produção de raciocínios
é beleza? O que acontece com a dona intersubjetivos
de casa(pai) com pouco dinheiro? Por promovendo alterações
que certas(os) mulheres(homens) têm no pensamento e
menos ou nenhum poder de compra no comportamento
que outras(os)? E se a moda for: bela de outrora, se for o
(beautiful)/belo (handsome) é quem caso; desconstruir
não usa maquiagem e cosméticos? Há estereótipos
produtos químicos em cosméticos que
fazem mal à pele?

 
2
Obviamente, para compreender letramentos críticos, a leitura e a
compreensão do texto de Cervetti, Parlades e Damico (2001) não basta.
É preciso recorrer às bibliografias dos textos e livros desses e de outros
como Derrida (1997), Vattimo (2004) etc. para se formular o próprio
conceito de letramentos críticos tendo em mente que tal conceito coexiste
transdisciplinarmente com outros e todos eles estão sujeitos às outras
ressignificações.

141
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Projeto Bambu Objetivos


Quem sai ganhando com esse tipo de Falar das consequências
ideia de beleza? Quem sai perdendo? na cidadania crítica;
Como podemos rejeitar essa beleza promover mobilidade
“única”? Se sua(seu) mãe(pai)/ de sentidos
irmã(ão)/amiga(o) trata você com com repertórios
amor, carinho, isso a(o) torna bela(o)? emergentes e papel
Como construímos/incluímos outras de protagonistas de
formas de beleza (por exemplo, beleza mudanças sociais
interior)?
Vocês perceberam que as(os) Propor um novo
mães(pais) de vocês não estão componente:
representadas(os) nesse programa ação social com
de TV, nem seus hábitos culturais, o envolvimento
costumes, comportamentos no dia a de familiares e
dia com seu poder de compra? Pois comunidades com
bem, que tal um projeto em que vocês vistas à participação
consultem/entrevistem suas(seus) e à transformação de
mães(pais), outras(os) mães(pais) do discursos e atitudes
seu prédio, bairro, da vizinhança no para convivência
sítio para saberem delas(es) o que é com as diferenças;
beleza. Será que as visões coincidirão criar espaço para
com a beleza que os programas de TV reflexividade; pluralizar
reforçam, com o que discutimos nesta os modos de acesso
aula? Ou: podemos discutir se sentem- aos textos; conscientizar
se “superiores/privilegiadas(os)” do que atitudes informadas
jeito que são? Vocês têm preconceito podem acelerar
sobre sua própria beleza e a do outro mudanças; intervir
após esta aula? Caso tenham, o que educacionalmente nas
pretendem fazer? Há mais pressão práticas sociais elitistas
social para mulheres?

142
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Projeto Bambu Objetivos


Your questions: Promover autoria dos
alunos e aprender com
eles; mobilizar recursos
e saberes dos alunos;
promover o status de
coautores das aulas
Let’s make a project: in groups of 3, Levar os alunos
draw 3 different kinds of blonde girls, à reflexividade
3 different dark boys and explain their (autocrítica) e a
positions and differences in terms of desconstruir noções
beauty. Podemos fazer um vídeo juntos essencialistas sobre
e apresentá-lo na mostra cultural da loiras(os), morenos(as).
escola? Ou: Let’s make a play. Produzir contranarrativas
ressemiotizadas e
multiletramentos no
meio digital

Embora haja espaço para o desenvolvimento de habili-


dades analíticas e avaliativas em ambas as direções, o Projeto
Ipê se difere do Projeto Bambu em pontos importantes. As
questões da leitura crítica na tabela anterior são mais genéri-
cas e não impulsionam tensões sobre a diferença, isto é, não
trazem à tona conflitos atrelados a raça, etnia, classe social
e política e não permitem a criação explícita de espaço para
discussões sobre diferença/diversidade/poder por meio da
beleza e suas implicações na formação de cidadania crítica
desde os anos iniciais.
Uma das implicações tem a ver com vínculos sociais e
culturais que movimentam processos inter-relacionados com
o outro e com o meio em que se vive. Por exemplo, qual é
a probabilidade de esses alunos viverem em condições mais
igualitárias futuramente? Para responder a essa pergunta, a

143
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

educação deveria assumir seu papel social (sem garantias de


resultados) oportunizando atividades para o entendimento
das diferenças e para renegociação de visões ideológicas/
políticas de mundo em meio às composições sociossemióti-
cas/multimodais (KRESS, 2010), isto é, textos que mesclam
imagens, sons, animações, gestos, espacialidades como num
vídeo, filme, vídeogame etc.
O professor é o mediador que promove para os alu-
nos oportunidades para que percebam como um dado texto,
imagem, propaganda, vídeo ou evento constrói realidades e
pressupostos que posicionam as pessoas em lugares mais ou
menos privilegiados socialmente. A coconstrução de conhe-
cimentos alternativos pode deslocar essa dicotomia rígida,
mudando o mundo que estamos tentando compreender. As-
sim, os que militam no âmbito educacional podem ajudar a
abrir as portas para que os alunos dos anos iniciais contestem
posições e representações dominantes presentes nos textos,
imagens, vídeos e vida que os silenciam e os afastam de par-
ticipações sociais importantes. Esse deveria ser o objetivo da
cidadania nos anos iniciais contando com a perspectiva dos
letramentos críticos.
O Projeto Bambu busca, portanto, impactar e romper
com zonas de conforto, o que prossegue com a próxima ati-
vidade, de leitura de imagem.

Ideias/insights: uso de imagem

A marca Dove veiculou um conjunto de propagandas


com o uso de imagens intitulada “campanha pela real beleza”.
Tratava-se de uma campanha anti-intuitiva que intentava pro-
mover multiculturalismos e identidades diversificadas como
uma estratégia para se aproximar das mulheres, por exemplo,

144
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

representantes de grupos minoritários, como a mulher negra


e a de cabelo encaracolado, já que a moda no Brasil é o cabelo
liso, colocado em posição de prestígio social, para seduzi-las
sob o signo da responsabilidade social, cujo lema é o de não
deixar ninguém de fora. Esta inclusão exclui outras, como as
portadoras de necessidades especiais, representantes de co-
munidades asiáticas, indígenas (considerando que muitas de-
las adotam hábitos ocidentais), por exemplo.
Nessa campanha publicitária, apesar da inclusão de mu-
lheres das minorias sociais, a questão que precisa ser enfati-
zada é que não se trata de um vale-tudo, já que nem toda e
qualquer mulher representativa de grupos minoritários seria
selecionada para essa propaganda, ou seja, há critérios que
implicam padrões de beleza, higiene, apresentação, comu-
nicação, atitude, relacionamento, como em qualquer outra
avaliação de candidatos para outras profissões.
O professor tanto pode iniciar a aula com uma dessas
imagens quanto com um dos vídeos que serão analisados
posteriormente. A escolha dependerá das condições e faci-
lidades para reservar laboratórios ou para equipar tecnolo-
gicamente a sala de aula. Para introduzir o tema da aula, é
desejável que a instrução seja objetiva, evitando, assim, que o
professor antecipe ideias que podem influenciar as respostas
dos alunos. Uma sugestão seria: “Olhem para essa imagem
(Look at this image). O que ela diz para vocês? (What does it tell
you?)”.
Sugere-se que o professor inicie um debate. Nesse mo-
mento, ou em outros, as seguintes possibilidades de uso de
língua podem ser úteis:

•  How do you say sabonete/batom/desodorante/gel


para cabelo/tatuagem/modelo/ator/princesa?

145
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

•  How do you spell it?


•  What is “X”?
•  Do you wear make-up? (“Sometimes.”, “Yes, I love it.” ou
“No, I hate it.”)
•  What does your mom look like? (“She’s short and slim.”,
“She has short fair hair.”)
•  What does your dad look like? (“Tall and plump, with dark
hair and brown eyes.”)

Durante o debate com a sala toda ou em pequenos


grupos – para em seguida abrir espaço para uma plenária –,
algumas perguntas podem ser feitas com o objetivo de ex-
pandir a capacidade crítico-interpretativa dos participantes:
•  How are the women in the advert like real women? How are
they not?3 Como as mulheres da propaganda são como mu-
lheres reais? Como elas não são (como as mulheres reais)?
•  What women are not included in the advert? Que mulheres
não estão incluídas na propaganda?
•  Where do the top models get the money to buy the beauty
products? De onde as modelos conseguem dinheiro para com-
prar produtos de beleza?
•  Who produces these adverts? Quem produz essas pro-
pagandas?
•  Why do the advert producers go through all this trouble
to make sure you know what is available? Por que os produtores
de propaganda se dão ao trabalho para ter certeza de que
você saiba o que está disponível (no mercado)?
•  Quem lucra e a custa de quem?

 As perguntas em inglês foram levemente adaptadas do texto de Cervetti,


3

Pardales, Damico (2001, p. 8) e são passíveis de mudanças.

146
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Havendo necessidade, pode-se ainda retomar:


•  How do you say princesa/príncipe/atriz/ator/mode-
lo/autoestima?
•  Há uma divisão rígida entre a beleza das mulheres
do dia a dia e a beleza das princesas, atrizes e de top models?
Essa divisão é sadia? O que podemos fazer juntos para mu-
dar isso?

Se há algo de que o professor dos anos iniciais não pode


abrir mão é o exercício constante de questionamentos como
uma cultura de sala de aula para que os alunos estendam
esse hábito para além dos muros da escola, já que existem as
escolas da vida lá fora e que muitas vezes fazem um traba-
lho na contramão do trabalho do professor de letramentos
críticos, ou seja, reforçam valores de cima para baixo em de-
trimento de outros.
Por meio do enfoque de algumas das questões sugeri-
das, os alunos refletem sobre o que conta como beleza/real
beleza, para quem, onde, quando e que outras maneiras de se
praticar beleza há que não necessariamente tenha a ver com
beleza física artificialmente produzida pelas indústrias e suas
consequências na cidadania educacional.

Ilustrando com vídeo 1: Dove onslaught

Apostando que as mulheres passam mais tempo assis-


tindo televisão que lendo revistas, a Dove lançou também
um vídeo. Com a mesma linha de raciocínio de suas propa-
gandas veiculadas em meio impresso, esse vídeo apela para
a estratégia que em princípio tenta proteger meninas na pré-
-adolescência de uma sociedade orientada por um padrão de
beleza a qualquer custo. Uma menina de cerca de 10 anos

147
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

de cabelo avermelhado e olhos azuis sorri para a câmera.


Anúncios, comerciais, um vídeo exacerbando a beleza com
música, mostras rápidas com painéis de mulheres com bi-
quínis, capas de revistas de moda, vitrines com roupas para
magras, uma sequência de mulheres anunciando um tipo de
cosmético ou pílula da beleza, uma moça na balança com
efeitos especiais que aumentam e diminuem seu abdome,
uma pessoa correndo na esteira, comida light num prato são
todos mostrados em frações de segundos. O foco muda para
cirurgia plástica, implantes de silicone, recursos para preen-
chimento de lábios e botox. Tudo isso é mostrado num cli-
ma de alto astral que serve como propulsão à fantasia. No
final, um grupo de meninas pré-adolescentes e multiétnicas
andando pela faixa de pedestres dá o tom. Quem vem atrás
delas é a menina mostrada no início do vídeo. Sua imagem
segue apagando a legenda onde se lê: “Talk to your daughter
before the beauty industry does” (Converse com sua filha antes
que a indústria de beleza faça isso). No final: Download our sel-
f-esteem programs at campaignforrealbeauty.ca – The Dove self-esteem
fund” (Baixe nossos programas de autoestima em campanha-
pelarealbeleza.com.br – Fundo para a autoestima Dove).
A estratégia da marca é explorar os efeitos emocionais
em meninas/mulheres a ponto de elas se sentirem inseguras,
incertas e vulneráveis sobre questões de aparência atrelada à
autoestima (DYE, 2009). A venda da fantasia fica por conta
da tentativa de convencer e seduzir as clientes por meio da
premissa (equivocada) de que todas as meninas/mulheres do
mundo precisam melhorar a aparência física para elevar a au-
toestima, como se houvesse garantias de resultados pelo uso
dos produtos que vende. O problema gira em torno de um
único modelo/padrão de beleza que necessariamente seria al-
cançado pela adoção de atitude que se sujeita aos ditames do

148
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

lucro. Por exemplo, para assegurar lucros às indústrias num


mundo neoliberal e globalizante, venderão até inverdades, se
necessário for, como é o caso das propagandas da Dove.
A seguir, elenco uma série de perguntas para seleção do
professor(a) de acordo com os objetivos e tempo de uma deter-
minada aula/semana. Evidentemente, algumas requerem adap-
tações linguísticas e discursivas de acordo com o perfil da classe:

•  Por que a Dove escolheu esses efeitos especiais e


não outros? Como eles se associam com as legendas?
•  Pay attention to the girl. Describe her. (She has red hair and
blue eyes. She’s about 10.)
•  Já usou esse tipo de sabonete?
•  Por que o vídeo apresenta uma menina pré-adoles-
cente e não um menino? O sabonete Dove não é indicado
pra meninos também?
•  Vocês acham que há muita pressão da sociedade (da
sua parte) para ser menina(o) “bonita”(o)?
•  O vídeo provoca competição individual no sentido
de que uma menina quer ser mais bela que outra(as)?
•  O que você acha que a menina espera no início?
Qual é a decisão dela no final?
•  Os meninos não se sentem indiretamente pressiona-
dos? Por que isso ocorre?
•  Para a marca Dove, todos nós precisamos melhorar
nossas aparências? E se nós nos achamos bonitos do jeito
que somos? Quem decide isso e com que interesse?4

4 Cabe ao professor prover mais detalhes/esclarecimentos às perguntas,


se necessário for. Por exemplo: há interesses em ganhar mais dinheiro
vendendo mais sabonetes e por isso tentam convencer as mulheres de
que elas precisam melhorar a autoestima, como se o sabonete garantisse
esse resultado?

149
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

•  Em que culturas e modos de vida essa cobrança não


teria sentido? Por exemplo, a luta pela beleza faria sentido a
uma menina esquimó?
•  Fazer aplique no cabelo, usar produtos químicos
constantemente pode prejudicar a saúde?
•  O vídeo sugere que uma mulher com rosto e corpo
modificados por cirurgia plástica tem beleza/autoestima/sel-
f-esteem mais real que outra de beleza/autoestima/self-esteem
natural. Vocês concordam?
•  Parece que, no Brasil, as meninas/mulheres têm um
problema em comum: cabelo que não é liso. Todas têm a
mesma solução: chapinha. Ou todos os rapazes/homens
sentem que precisam ser “sarados”. O que acha disso?
•  Os animais usam cosméticos, mas não usam maquia-
gem. Por que o ser humano precisa de maquiagem?
•  Não há comprovação científica de que os produtos
retardam a velhice. Então, por que as pessoas compram e
usam cosméticos?
•  Quem lucra com a venda de sabonetes e cosméticos?
•  Quem sai perdendo com o tempo?
•  Vale a pena ser escravo(a) das propagandas de beleza
em troca de “autoestima”?
•  What are other possible forms of self-esteem? (Que outras
formas de autoestima são possíveis?) What is self-esteem for
you? Spending time with your family, smiling, cultivating loving-kind-
ness, friends, high marks, a beautiful day, a morning walk with your
dog, swimming, playing football etc.?

Para desenvolver outras habilidades multimodais e for-


mas de expressão, o professor pode sugerir aos alunos um
dos exercícios a seguir:

150
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

•  Traga uma fotografia de uma pessoa bela que você


conhece e que esteja sem maquiagem/cosméticos. Explique
por que ela é bela.
•  Use os recursos do computador para desenhar uma
pessoa bela que não esteja usando maquiagem/cosméticos.
Explique por que ela é bela.
•  Desenhe uma pessoa bela e que não esteja usando
maquiagem/cosméticos. Explique por que ela é bela.
•  Faça uma montagem com recortes de revistas e jor-
nais de uma pessoa bela que não esteja usando maquiagem/
cosméticos. Explique por que ela é bela.
•  Imite uma pessoa bela que conhece. Explique por
que ela é bela.
• Convide5 um(a) amigo(a) que usa língua de sinais à
aula para falar de uma pessoa que é bela e por que ela é bela.
•  Conte uma história breve sobre uma pessoa ou per-
sonagem que conhece e explique para a sala por que essa
pessoa é bela.
•  Pergunte se os alunos gostariam de apresentar esses
trabalhos para outra classe para que eles pudessem ver o que
estão aprendendo sobre o tema beauty. Pergunte também se
gostariam de ouvir deles o que pensam e comparar com o
que tinham pensado.

Outras temáticas que podem ser relevantes para discus-


são crítica incluiriam: educação com foco na sustentabilida-
de, hábitos estabelecidos de consumidores frente à decisão
de aquisição de produtos e serviços, exposição frequente de
estímulos a certos produtos, fantasias/sonhos, reputação e

5 Nesse caso, recomenda-se que haja alguém da sala que seja intérprete de
língua de sinais.

151
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

confiança conectados à fidelidade às marcas e grifes, uso de


multimodalidades e estratégias nas propagandas para levar
o consumidor a reter o produto e a marca em sua memória.

Ilustrando com vídeo 2: Dove onslautgh(er)6

Em resposta à campanha da Dove (Dove onslaught) já


aqui descrita, o Greenpeace lançou uma paródia do vídeo,
ou seja, um vídeo-campanha, criticando o fato de que a Uni-
lever compra óleo de palmeira para fabricar sabonetes Dove
de fornecedores que estão destruindo as florestas tropicais
na Indonésia, prejudicando animais e piorando as condições
climáticas do planeta.
O vídeo se inicia com uma menina de aproximadamente
10 anos com olhar preocupado e triste como que prenun-
ciando que algo errado está acontecendo em seu país, a Indo-
nésia. Em seguida, há trocas rápidas de imagens que trazem
elementos como globo, floresta, borboleta, pássaro, motos-
serra, homem serrando um tronco, macaco desolado, tronco
semicortado, tronco caindo, pessoa sentada no tronco caído,
vários troncos pequenos amontoados, montes de troncos
enumerados e etiquetados em frente a um depósito de madei-
ra, caixas de troncos no veículo para transporte, queimadas,
macaco triste amarrado olhando para um tronco caído, ma-
caco grande que morre por ser vítima do massacre/assalto,
área desmatada, plantação de palmeira, fruto da palmeira, fá-
brica do sabonete Dove, caixa do sabonete, sabonete líquido
e a imagem da menina triste novamente na floresta devastada
com a legenda: 98% of the Indonesia lowland forest will be gone by

6 
Onslaught significa massacre, ataque, assalto, destruição. Onslautghter é
usado no sentido de destruidor da paz.

152
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

the time Azizah is 25 (98% da floresta tropical da Indonésia


estarão destruídos quando Azizah tiver 25). A menina sai de
cena abrindo e cerrando os lábios como quem emite mágoa.
Outra mensagem aparece: Most is destroyed to make palm oil, whi-
ch is used in Dove products (A maioria é destruída para fabricar
óleo de palmeira, que é usado nos produtos Dove). Em tela
preta, o vídeo finaliza com: Talk to Dove before it’s too late (Con-
verse com Dove antes que seja tarde).
A natureza das perguntas a serem feitas é de suma im-
portância. Para otimizar o tempo das aulas, selecionar uma
ou duas questões voltadas para uma educação crítica, criativa
e ética (SANTOS, 2008; TAKAKI, 2012b, 2013, VATTIMO,
2004) pode ser um bom começo. O cultivo de tal prática,
com o tempo, não demandará muito preparo por parte do
professor.

Sugestões de perguntas-chave para o trabalho com o ví-


deo 2:
•  O consumo de cosméticos (femininos e masculinos)
gera mais lixo como as embalagens dos produtos? O que
acontece com a natureza e com o planeta quando há muito
lixo?
•  A indústria de cosméticos consome muita água e
energia elétrica?
•  Quais são as consequências da poluição gerada pelas
fábricas desses produtos?
•  Você sabia que as indústrias e laboratórios (de re-
médios) testam produtos em animais? Pois bem, é correto
sacrificar animais em prol da beleza e da saúde?
•  Coloque-se no lugar da menina do vídeo e das pes-
soas que dependem das florestas para sobreviverem (por
exemplo, os indígenas) e dos animais. O que você proporia a

153
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Dove? Em grupos, gostariam de produzir um vídeo Talk to


Dove before it’s too late?
•  Você continuaria usando um sabonete Dove depois
de ter assistido a esse vídeo?
•  É fácil mudar o comportamento? Por exemplo, é fá-
cil parar de pintar as unhas? É fácil deixar de usar perfumes?
•  Que destruições da natureza há no Brasil? O que
você diria, numa frase ou slogan, para uma autoridade política
sobre isso depois de ter assistido a esse vídeo? Quer escrever
essa frase/slogan em inglês, em grupo? O que acha da ideia
de enviar as frases/slogans para essa autoridade? Ou preferem
produzir um blogue, com imagens, vídeos, debates, danças,
músicas7 sobre esse assunto? Podemos levá-lo à sociedade
em algum evento da escola, convidando pais, membros da
comunidade local e autoridades?

Por meio de perguntas e atividades dessa natureza, há


oportunidades para que os alunos:

a.  Reconheçam a polarização rígida como construção


social e entendam que é possível desconstruí-la pela renego-
ciação de sentidos e agência.
b.  Compreendam que há outros conceitos de beleza
com outros valores e vozes.
c.  Usem conhecimento de mundo, habilidades e expe-
riências próprias por meio de multimodalidades.

7 A ludicidade é tão complexa como qualquer outro fenômeno e vai muito
além de simples recreação ou brincadeira (ANTUNES, 2001; DOHME,
2003; DORNELLES, 2012), pois ela prevê a aprendizagem como
processo complexo, dinâmico e socialmente concebido.

154
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

d.  Compartilhem tais multimodalidades de forma


criativa, crítica e ética.
e.  Ouçam outras perspectivas revisando as próprias e
promovam espaço para éticas de diferentes raciocínios críticos.
f.  Elaborem alternativas da perspectiva participativa e
inclusiva (alunos com dificuldades de aprendizagem, alunos
de educação especial, alunos usuários de língua de sinais),
além de outras possibilidades.

Os letramentos críticos criam espacialidades em que os


alunos respondem de forma ativa aos ditames dos textos e
discursos que lhes são apresentados, mas não se espera que
as respostas e atitudes sejam coincidentes com as do pro-
fessor. As mudanças epistemológicas-ontológicas-metodo-
lógicas dessas ilustrações de aulas conduzem o próprio pro-
fessor a interrogar seus próprios letramentos críticos, suas
teorias e suas práticas num fluxo que redistribui poder para
novas produções de conhecimentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o apogeu do neoliberalismo, nas décadas de


1950 e 1960, a leitura foi concebida como um processo de
pensar claramente, ou seja, buscava dentre seus objetivos:

a.  Avaliar argumentos.


b.  Fazer inferências.
c.  Usar vocabulário crítico.
d.  Oferecer reciprocidade por meio de relatos de po-
sicionamentos de si e dos pares.
e.  Fornecer evidências apenas no campo científico
para conclusões.

155
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

A implicação desse procedimento dividia as interpreta-


ções entre as certas e as erradas. Distinguia ficção de realida-
de/verdade e os textos representavam as ideias dos autores
(CERVETTI, PARDALES & DAMICO, 2001). Essa lógica
não faz mais sentido no mundo contemporâneo permeado
por intensos fluxos de ideias, informações e trazidos pelas
novas mídias e deslocamentos de pessoas, modificando tra-
dições de leituras.
O propósito educacional das atividades apresentadas e
discutidas aqui é o de conscientizar os alunos dos anos iniciais
nas aulas de inglês de que há sentidos em fluxo num dado tex-
to e, portanto, não estão restritos às intenções do autor. Além
disso, a estratégia do questionamento de visões hegemônicas
permite que os alunos compreendam que o contexto histó-
rico-social no qual estão imersos influencia suas formas de
reconceituar, por exemplo, questões como beleza.
Outro ponto que é salutar em trabalhos críticos é ativar o
papel de agentividade e da performatividade dos alunos para
produzir outras narrativas e projetos locais que fazem sentido
naquela localidade e no momento de interpretação, porém,
não necessariamente para sempre. Em outras palavras, fazer
com que alunos nos anos iniciais tenham percepção aguça-
da para questionar, resistir e transformar modelos únicos (de
beleza, por exemplo) que são impostos por estímulos cons-
tantes nos meios de comunicação de massa e por formas im-
perialistas da globalização tardia.
Ao produzirem performatividades com conceitos alterna-
tivos (de beleza), os alunos têm a oportunidade de reconstruir
suas identidades, culturas, valores, práticas sociais e passam a
reinventar a escola de forma colaborativa e ética. Para tanto,
é fundamental que a escola, a família e a comunidade estejam
engajadas em miniprojetos ou em aulas como as apresentadas.

156
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Possivelmente, rupturas no monopólio de epistemo-


logias-ontologias-metodologias essencialistas, inovações
relevantes ao contexto local-global e apoio externo serão
viabilizados, já que o conhecimento é baseado em regras dis-
cursivas das comunidades. Outro benefício será promover
o status de protagonistas aos membros familiares e outros
locais, ou seja, permitir que passem de meros colaboradores
a coautores de aulas, projetos, pesquisas, eventos, um dado
importante quando se pensa em aproximar escolas e socie-
dade dos tempos plurais e presentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, D.A. O direito da brincadeira à criança. São Paulo:


Summus, 2001.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia de linguagem. 7ª edição. São
Paulo: Hucitec, 1999.
BLOMMAERT, J. The sociolinguistics of globalization. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2010.
CERVETTI, G.; PARDALES, M.J.; DAMICO, J.S. A tale of diffe-
rences: comparing the traditions, perspectives, and educational
goals of critical reading and critical literacy. Reading Online,
4, 9, 2001. Disponível em: <http://www.readingonline.org/arti-
cles/cervetti>. Acesso em 13 mai 2014.
CHUN, C. W. Power and meaning manking in an EAP classroom.
Engaging with the everyday. Bristol/Buffalo/Toronto: Multilin-
gual Matters, 2015.
DERRIDA, J. Of grammatology. Baltimore: The John Hopkins
University Press, 1997.
DOHME, V. Atividades lúdicas na educação: o caminho de tijolos
amarelos do aprendizado. Petrópolis: Vozes, 2003.

157
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

DORNELLES, L. A importância do brincar na escola inclusiva


ou o lúdico e a cultura do pertencimento. Disponível em:
<www.professorlilo.com.br>. Acesso em 03 fev 2012.
DYE, L. Consuming constructions: a critique of Dove’s campaign for
real beauty. Canadian Journal of Media Studies, 5, 1, 2009,
p. 114-128.
FREIRE, P. Pedagogia da tolerância. São Paulo: Unesp, 2005.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
KALANTZIS, M.; COPE, B. Literacies. Cambridge: Cambridge
University Press, 2012.
KRESS, G. Multimodality. A social semiotic approach to contem-
porary communication. New York: Routledge, 2010.
MCLAUGHLIN, M.; DEVOODG, G. Critical literacy. Enhancing
student’ comprehension of text. New York: Scholastic Inc.,
2004.
MORGAN, B.; RAMANATHAN, V. Critical literacies in language
education: distancing ourselves from dominant texts and dis-
courses. In: ROCHA, C.H.; MACIEL, R.F. (orgs.) Língua es-
trangeira e formação cidadã: por entre discursos e práticas.
Campinas: Pontes Editores, 2015.
PENNYCOOK, A. Language as a local practice. London/New
York: Routledge, 2010.

SANTOS, M.S. Os professores universitários têm de se levantar


da cadeira e ajudar a formar docentes da rede básica. Época,
903, 2015, p. 80.
TAKAKI, N.H. Futebol, linguagens e sociedade. In: TAKAKI, N.H.;
MACIEL, R.F. (orgs.) Letramentos em terra de Paulo Freire.
2ª edição. Campinas: Pontes Editores, 2015. p. 25-42.
. Cosmopolitismo, processos tradutórios e ética do
Sul: particularidades em pesquisas de língua, cultura e sociedade.
Agália, 108, 2013a, p. 209-227.

158
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

. Ética pelo diálogo em meio aos letramentos: pers-


pectivas para pesquisas de formação de alunos e professores de
línguas. Calidoscópio, 1, 1, 2013b, p. 52-63.
. Letramentos na sociedade digital: navegar é e não
é preciso. Jundiaí: Paco Editorial, 2012a.
. Da metodologia de pesquisa em letramentos e socie-
dade para a ética: implicações na formação continuada da comu-
nidade científica. Polifonia, 19, 25, 2012b, p. 87-109.
_____________. Leitura na formação de professores de inglês
da rede pública: a questão da reprodução de leitura no ensino
de inglês. Jundiaí: Paco Editorial, 2011.
VATTIMO, G. Nihilism and emancipation: ethics, politics and the
law. New York: Columbia University Press, 2004.

159
Atribuições dos orientadores de estudo do
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa (PNAIC):  teoria e prática

Seila Alves Pugas

INTRODUÇÃO

O lançamento do Pacto Nacional pela Alfabetização na


Idade Certa (PNAIC), em 2013, pelo Ministério da Educa-
ção, como projeto de formação continuada de alfabetizado-
res em parceria com universidades federais destacou-se pela
magnitude, pela abrangência e pelo propósito do programa,
que é assegurar que ao final do terceiro ano as crianças este-
jam alfabetizadas. Esse Pacto consiste em um compromisso
assumido pelos governos Federal, estaduais e municipais.
Ao aderirem ao PNAIC, os agentes governamentais se
comprometeram a alfabetizar todas as crianças em língua
portuguesa e matemática na idade estipulada pelo progra-
ma, apoiar a efetivação do programa e realizar as avaliações

161
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

anuais aplicadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pes-


quisas Educacionais (Inep).
Para a efetivação do compromisso firmado, o Governo
Federal precisa dispor de condições físicas e materiais, para
além da formação continuada de professores das redes pú-
blicas, em turmas do ciclo de alfabetização. A efetivação das
formações dos alfabetizadores é realizada pelos orientadores
de estudos, que são professores da rede que fazem um curso
específico, ministrado pelas faculdades públicas, no qual se
contempla a formação nas áreas de linguagem e matemática
de modo interdisciplinar.
Faremos aqui uma investigação e uma análise das ques-
tões relativas às atribuições de trabalho no tocante ao que
está preconizado pelo Ministério da Educação e ao fazer
prático relacionado às mesmas. O objetivo geral é analisar e
discutir as concepções que os profissionais têm em relação
às suas atribuições nos campos conceitual e empírico.
Na tentativa de alcançar esse objetivo, o referido arti-
go optou pela pesquisa qualitativa defendida por Chizzoti
(2003, p. 2) como a que “recobre hoje um campo transdisci-
plinar envolvendo as ciências humanas e sociais, assumindo
tradições ou multiparadigmas de análise [...]”. Sabe-se, no
entanto, que as análises de pesquisa qualitativa diferem entre
si quanto a método, forma e objetivos. Conforme ressalta
Godoy (1995, p. 62), a diversidade existente entre trabalhos
qualitativo, enumerando um conjunto de características es-
senciais capazes de identificar uma pesquisa desse tipo.
Quanto à forma de pesquisa qualitativa, o trabalho opta
pelo estudo de caso ocorrido nos encontros presenciais da
Universidade Federal do Tocantins (UFT), no campus Por-
to Nacional, realizado no período de junho a novembro de
2014. Esta análise envolve fontes teóricas e entrevistas de

162
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

livre-narrativa com seis orientadores participantes dos en-


contros cuja escolha não se revelou tarefa fácil. A extensão
da rede e a diversidade de realidades educacionais abriram
leques de possibilidades. Foram aventadas duas alternativas
na tentativa de solucionar essa questão. Num primeiro mo-
mento, considerou-se envolver o profissional que realizou
a formação no ano de 2013, ao passo que, na segunda al-
ternativa, seriam considerados os relatos e socialização das
atividades desenvolvidas nas formações ocorridas em 2014.
A pergunta que reflete a problemática nesta pesquisa
é a seguinte: quais são os fatores que possibilitam ou não
a execução das atribuições dos orientadores de estudos do
PNAIC?
Acredita-se que essa investigação possa favorecer a re-
flexão sobre o impacto das formações de alfabetizadores, na
medida em que logrem revelar a forma como os orienta-
dores de estudos se apropriam das atribuições de trabalho
junto aos alfabetizadores e quais são os fatores facilitadores
ou dificultadores para a efetivação das formações. Tenciona-
mos ainda que essa abordagem é substancial uma vez que o
referido programa se encontra em fase embrionária, forne-
cendo dados para a avaliação e a implementação na área de
desempenho desses profissionais.

PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE


CERTA (PNAIC): EIXOS ESTRUTURANTES

Alguns dados têm mostrado resultados das deficiências


e problemas no processo de escolarização das crianças bra-
sileiras. O Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb)
evidencia que as dificuldades concentram-se no domínio dos
alunos quanto às capacidades básicas para a compreensão

163
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

do sistema de escrita, da leitura e das operações matemáticas


primordiais como somar, subtrair, multiplicar e dividir.
Um dos fatores que esses dados refletem é a formação de
professores, pois estes são agentes operacionais do ensino. Al-
gumas pesquisas mostram um descompasso entre formação
acadêmica e prática profissional. Segundo Monlevad (1996),
quaisquer que sejam as soluções dadas ao problema da for-
mação inicial, é consenso de todos que o mais importante é
viabilizar alternativas de formação continuada de qualidade.
Foi com esse entendimento que o Governo Federal instituiu
o PNAIC. De acordo com o Ministério da Educação, ao final
do ciclo de alfabetização, as crianças precisam ter a compreen-
são do funcionamento do sistema da escrita, o domínio das
correspondências grafofônicas – mesmo que dominem pou-
cas convenções regulares e irregulares –, a fluência da leitura
e o domínio de estratégia de compreensão e de produção de
textos escritos.
O PNAIC consiste em um compromisso assumido pe-
los governos Federal, estaduais e municipais em que se com-
prometeram a alfabetizar todas as crianças em língua por-
tuguesa e matemática até o final dos anos iniciais do ensino
fundamental. Para tanto, o Pacto está balizado em quatro
eixos estruturantes:

•  Formação continuada presencial para professores


alfabetizadores e seus orientadores de estudos: consiste em
um curso presencial de 2 anos para os professores alfabeti-
zadores, com carga horária de 120 horas por ano, baseado
no Programa Pró-Letramento, cuja metodologia propõe es-
tudos e atividades práticas. Os encontros com esses profis-
sionais são conduzidos por orientadores de estudo que são

164
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

docentes das redes públicas que farão um curso específico,


com 200 horas de duração por ano, ministrado por universi-
dades públicas.
• Materiais didáticos, obras literárias, obras de apoio pe-
dagógico, jogos e tecnologias educacionais: é um conjunto de
matérias específicas para alfabetização composto por livros
didáticos, obras pedagógicas complementares, dicionários,
jogos pedagógicos, jogos e softwares de apoio à alfabetização.
•  Avaliações sistemáticas: são avaliações processuais
debatidas durante o curso de formação que podem ser de-
senvolvidas e realizadas continuamente pelo professor junto
aos alunos. Os professores têm acesso a um sistema infor-
matizado onde deverão inserir os resultados da Provinha
Brasil de cada criança, no início e no final do segundo ano.
Por meio deste sistema, docentes e gestores poderão acom-
panhar o desenvolvimento da aprendizagem de cada aluno
de sua turma e fazer os ajustes necessários para garantir que
todos estejam alfabetizados no final do terceiro ano. Ao final
deste ciclo, todos os alunos farão uma avaliação coordenada
pelo Inep. O objetivo dessa avaliação universal é avaliar o
nível de alfabetização alcançado pelas crianças ao final do
ciclo. Trata-se de mais uma maneira de a rede analisar o de-
sempenho das turmas e adotar as medidas e políticas neces-
sárias para aperfeiçoar o que for necessário.
•  Comitê gestor nacional: engloba uma coordenação
institucional em cada Estado e no Distrito Federal, compos-
ta por diversas entidades, com atribuições estratégicas e de
mobilização em torno dos objetivos do Pacto. Esse Comitê é
responsável pela implementação e pelo monitoramento das
ações em sua rede e pelo apoio à implementação nos muni-
cípios.

165
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Considerando-se o enfoque desta pesquisa a discussão


se dará em torno do eixo de formação de professores.

FORMAÇÃO DE PROFESSORES: ORIENTAÇÕES

O PNAIC prevê, como uma de suas ações, a formação


dos professores alfabetizadores. Essa ação se dá por meio de
um curso cuja estrutura de funcionamento envolve as uni-
versidades, secretarias de educação e escolas. Essas entida-
des devem estar articuladas para a realização do processo
formativo dos professores atuantes no ciclo de alfabetização
(primeiro ao terceiro ano).
A estrutura de formação é composta por duas catego-
rias de profissionais que deverão estar sintonizadas com os
objetos de estudos e com a sala de aula. O primeiro é o for-
mador de estudos, vinculado às universidades públicas, que
é responsável pelas formações dos orientadores de estudo
(segundo profissional), que organizará a formação dos al-
fabetizadores lotados em turmas do ciclo de alfabetização.
Para tanto, o PNAIC propõe a realização de um traba-
lho coerente com a perspectiva de formação docente crí-
tica, reflexiva e problematizada. Tais princípios envolvem
um profundo respeito aos profissionais da educação e uma
busca incessante pelo saber que conduza a uma escola cada
vez mais inclusiva e articulada com a comunidade onde está
inserida.
A legalização do Pacto se deu pela Portaria nº 867, de
4 de julho de 2012, que instituiu o Pacto Nacional pela Al-
fabetização na Idade Certa e definiu suas diretrizes gerais.
O artigo 7º da referida portaria explana o eixo “formação
continuada de alfabetizadores”. Já o inciso II estabelece a
formação e a constituição de uma rede de professores orien-

166
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

tadores de estudos. Por sua vez, o documento de orientação


traz as especificidades quanto às atribuições dos orientado-
res de estudos. As principais são: participar dos encontros
presenciais junto às instituições de ensino superior (IES), al-
cançando no mínimo 75% de presença; assegurar que todos
os professores alfabetizadores sob sua responsabilidade assi-
nem o termo de compromisso do bolsista; ministrar forma-
ção aos professores alfabetizadores em seu município polo
de formação; planejar e avaliar os encontros de formação
junto aos professores alfabetizadores; acompanhar a prática
pedagógica dos professores alfabetizadores; avaliar profes-
sores alfabetizadores cursistas quanto a frequência, partici-
pação e acompanhamento dos estudantes, registrando as in-
formações no sistema Sispacto; efetuar e manter atualizados
os dados cadastrais dos professores alfabetizadores; analisar
os relatórios de professores alfabetizadores e orientar os en-
caminhamentos; manter registro de atividades dos professo-
res alfabetizadores em suas turmas de alfabetização; avaliar,
no Sispacto, a atuação dos formadores, dos coordenadores
das ações do Pacto no Distrito Federal, nos Estados e nos
municípios e o suporte dados pela IES; apresentar à IES for-
madora os relatórios pedagógicos e gerencial das atividades
referentes à formação dos professores alfabetizadores.

ATRIBUIÇÕES DOS ORIENTADORES DE ESTUDOS:


TEORIA X PRÁTICA

No tópico anterior, foram listados itens que compõem


as atribuições dos orientadores de estudos. Como citado na
introdução, o objetivo desta análise é de promover a discus-
são sobre a a articulação entre teoria e prática na formação e
na atuação desses profissionais. A discussão será feita levan-

167
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

do-se em consideração os principais pontos identificados na


entrevista de livre-narrativa, bem como nas observações que
foram obtidas nas formações presencias, ocorridas no ano
de 2014. Ressalta-se que a turma aferida na pesquisa é cons-
tituída de 28 profissionais, todos com formação em nível
superior nos cursos de letras, pedagogia e normal superior.
O recorte foi realizado com seis orientadores de estudos
respectivamente dos municípios de Novo Acordo, Palmas e
Paranã, no Estado do Tocantins.

Ministrar formação aos professores alfabetizadores


em seu município polo de formação e acompanhar a
prática pedagógica dos professores alfabetizadores

Em todo o Ocidente, de um modo geral, as últimas


décadas foram bastantes férteis em discussão sobre o tema
educação. De acordo com Gauthier (2006), as sociedades
vêm se transformando rapidamente, e a competição entre
os Estados está cada vez mais acirrada, sendo que a posse
do saber tornou-se um elemento de primeira importância.
A escola vem sendo interpelada com insistência e vigor, e
muitos acusam-na de não cumprir convenientemente o seu
papel. Numa outra vertente, uma crítica severa tem sido diri-
gida aos professores, mais especificamente, por serem eles os
principais mediadores entre a escola e os alunos. A crítica es-
tende-se ainda àqueles que formam, ou seja, as faculdades de
educação ou as instituições que exercem tarefas semelhantes.
Para remediar esse problema, o Governo Federal iniciou um
processo de revisão dos programas de formação de profes-
sores a fim de melhorar a qualidade da educação ministrada
em seu ambiente de ensino.

168
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Dentro dessa filosofia, um dos programas criados pelo


governo foi o PNAIC, que objetiva com sua estrutura asse-
gurar que ao final do terceiro ano as crianças estejam alfabe-
tizadas. Busca-se, para tal, contribuir para o aperfeiçoamento
da formação dos professores do ciclo (primeiro ao terceiro
ano).
A formação do professor alfabetizador deverá ser com-
preendida numa visão de responsabilidade social, ou seja,
tem a função de auxiliar na formação para o bom exercí-
cio da cidadania. Para exercer essa visão – compreensão e
responsabilidade –, é preciso ter clareza do que se ensina
e de como se ensina. Portanto, não basta que o professor
seja um reprodutor de métodos que permitem o domínio
de um código linguístico. É necessário perceber qual a con-
cepção de alfabetização que está subjacente à sua prática.
Isso se dá numa perspectiva interdisciplinar. Desse modo, é
possível estabelecer rotinas que contemplem diferentes tipos
de atividades e organização do tempo pedagógico. É funda-
mental também que os diferentes componentes curriculares
sejam contemplados na rotina escolar, de modo articulado,
atendendo a princípios didáticos gerais como escolha de te-
máticas relevantes para a vida das crianças, valorização dos
conhecimentos prévios dos alunos, estímulo à reflexão, pro-
moção de situações de interação propícias às aprendizagens,
favorecimento da sistematização dos conhecimentos e diver-
sificação de estratégias didáticas.
A formação no âmbito deste programa é focada na prá-
tica do professor, de modo que as singularidades do trabalho
pedagógico são objetos de reflexão. Essa reflexão é clarifi-
cada no caderno de formação de professores do PNAIC
(BRASIL, 2012). O referido compêndio traz seis princípios
gerais que devem nortear a formação continuada, a saber,

169
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

prática da reflexividade, mobilização dos saberes docentes,


constituição da identidade profissional, socialização, engaja-
mento e colaboração – aspectos que serão abordados nos
subtópicos descritos adiante.

Planejamento e uso do tempo


De acordo com Saviani (2000), o planejamento é um
instrumento de gestão que concede eficiência à ação huma-
na. Em outras palavras, deve ser utilizado para a organiza-
ção da tomada de decisão. Já Perrenoud (2002) elucida que
o planejamento viabiliza o ordenamento de ações de quem
propõe alcançar determinado objetivo.
Um ponto identificado na observação empírica foi em
relação ao uso do tempo e à elaboração do planejamento.
Os orientadores aferidos nesse estudo realizam o mesmo
plano dos encontros presenciais, mas os mecanismos para
a elaboração do planejamento são diversos. A orientadora
de Paranã, por exemplo, afirma que o mesmo é organiza-
do em parceria com profissionais da Secretaria Municipal
da Educação, de modo a permitir o vislumbre das distintas
realidades das escolas jurisdicionadas ao município. No que
concerne ao contexto de Palmas, as profissionais declara-
ram que as formações no município dão-se semanalmente e
por ano, ou seja, às segundas-feiras, primeiro ano; às terças-
-feiras, segundo ano; e às quartas-feiras, terceiro ano. Desse
modo, o planejamento é organizado mediante o grupo em
que o orientador atende, geralmente arranjado no período
noturno ou finais de semana. Já na cidade de Novo Acordo,
faz-se essa organização, na maioria dos casos, individual-
mente.
Um ponto verificado na pesquisa é que, mesmo elabo-
rando os planos de trabalho, o profissional não dispõe de

170
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

tempo suficiente para a realização de estudos complemen-


tares, quiçá aprofundamento dos cadernos de formações. A
assertiva é corroborada por Monlevad, que diz que

[...] o professor, não tendo mais tempo, não se sente mais


produtor do conhecimento, nem mesmo planejador de
uma metodologia de ensino aprendizagem. [...] Há ainda
o fato de 90% da mão de obra do magistério ser feminina
evocar a figura do trabalho doméstico (1996, p. 146).

Nas formações da UFT – campus Porto Nacional, cons-


tatou-se por meio de depoimentos e observações que parte
do grupo não realiza antecipadamente a leitura na íntegra dos
cadernos de formação. Isso se dá em virtude da grande de-
manda de atividades diárias. Essa situação compromete de
modo significativo a qualidade das reflexões durante as for-
mações presenciais, considerando que “[...] a reflexividade é
uma ferramenta que se fundamenta principalmente em uma
análise de situações didáticas, confrontadas com as teorias
construídas a partir dos estudos científicos” (TARDIF, 2005).
Ademais, a reflexividade é um ponto que deve estar pre-
sente nas formações, pois, segundo Tardif (2005), consiste
em analisar a prática de sala de aula em detrimento da teo-
ria. Tardif salienta que esse princípio é um bom dispositivo
para as análises contextualizadas e próximas do vivenciado
cotidianamente, permitindo ao alfabetizador deparar-se com
diferentes situações, conhecidas ou não, e colocá-las em xe-
que. Além dessas razões, alguns estudiosos – entre eles Per-
renoud e Monlevad – afirmam que as mesmas permitem a
análise dos gestos profissionais, podendo revelar e suscitar
elementos que levem os docentes a se verem em determina-
das situações, o que favorece o redirecionamento dos pró-
prios gestos em outras situações semelhantes.

171
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

Discutir esse aspecto é crucial, pois nos encontros pre-


senciais na IES a situação é precária. Percebeu-se a impa-
ciência da escuta de alguns orientadores em relação a assun-
tos que não consideram tão relevantes à sua prática, como
educação do campo. Percebeu-se, ainda, certas ansiedade e
preocupação quanto à assimilação de conteúdos que não fo-
ram explorados em suas formações acadêmicas. Contudo, a
maioria da turma avaliou como positiva a reflexão coletiva.
O caderno de formação esclarece que o exercício da re-
flexão comungado à mobilização dos saberes pode contri-
buir tanto para o desenvolvimento tanto profissional quanto
pessoal, pois os profissionais que estão participando das for-
mações continuadas possuem um saber sobre a docência e,
nos processos formativos, eles precisam compreender que o
que eles já sabem pode ser modificado, melhorado, trocado,
ampliado, refeito, abandonado. Charlot (2005) ressalta que
é preciso dar voz ao professor, pois há diferentes saberes
que integram o fazer do professor e o seu lugar de valor no
mundo.

Monitoramento do trabalho dos professores alfabetizadores


Quanto ao monitoramento do trabalho dos professo-
res alfabetizadores, constatou-se que um dos entraves é a
sobrecarga de atividades executadas por eles. O grupo foi
unânime ao afirmar que é preciso melhorar, sobremaneira, o
monitoramento in loco. Todas as orientadoras de Palmas as-
seguraram não realizá-lo. Os orientadores foram enfáticos ao
dizer que o monitoramento se dá exclusivamente durante as
formações presenciais, por meio de exposição oral e sociali-
zação de atividades dos alfabetizadores. Quanto a essa reali-
dade, explicam que não dispõem de tempo, como mostra o
depoimento de uma professora orientadora: “Estou lotada

172
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

40 horas em sala de aula. Preciso realizar estudos à noite,


finais de semana e feriados. No ano passado quase não dor-
mia, pois essa é a minha primeira experiência em formação.
Não consigo fazer o monitoramento in loco devido à grande
demanda de trabalho. O acompanhamento da prática é feito
nas formações. É claro que não conseguimos visualizar de
modo fidedigno a prática dos alfabetizadores.
Já uma orientadora de estudos de Paranã confidenciou
que faz o monitoramento apenas nas unidades de ensino da
cidade, pois a maioria das escolas encontra-se geografica-
mente isolada – no meio rural –, o que inviabiliza o trabalho,
tendo em vista que a Secretaria Municipal de Educação não
dispõe de transporte para conduzir a servidora. Em Novo
Acordo, é possível realizar o monitoramento com os alfabe-
tizadores de uma escola pois a orientadora é lotada na referi-
da instituição. O monitoramento acontece durante a jornada
de trabalho e nos planejamentos coletivos que são prepara-
dos todas as segundas-feiras com a equipe diretiva e profes-
sores. No entanto, a orientadora afirma não ser possível a
extensão do atendimento nas escolas do campo. De acordo
com a entrevistada, as unidades são de difíceis acessos e a
prefeitura não possui automóvel.
Quanto aos depoimentos, é importante notar que a
atuação profissional na educação coloca a necessidade de
conhecer os mais variados elementos que envolvem a prática
educativa. Novoa (2012, p. 2) assume a premissa de que o
que se faz e como se faz no ensino têm uma relevância maior
do que aquilo que se diz. O recorte nos leva a questionar a
necessidade de avaliar os pontos que poderão interferir na
não realização do monitoramento.
Considerando-se que cada região e cada município
adaptam as diretrizes do PNAIC de acordo com seu contex-

173
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

to, é importante que as secretarias municipais de educação


revejam as possibilidades de sanar ou amenizar essas difi-
culdades. Sabe-se que nenhum processo de mudança é ime-
diato; no entanto, há de se pensar em estratégias ou políticas
públicas que viabilizem a operacionalização das atribuições.
Sobre as alternativas para solucionar a questão, é con-
senso no grupo que seja disponibilizada uma carga horária
para o atendimento ao PNAIC, o que acarretaria ônus adi-
cionais à folha de pagamento e exigiria um reordenamento
nas respectivas instituições.
No tocante à situação constatada, visualiza-se que não
é só no Estado do Tocantins, mas, sim, uma realidade de di-
versas regiões do Brasil, conforme apontado no jornal Letra
A37 – Especial PNAIC:

Há também o desejo de que o MEC tenha uma partici-


pação mais efetiva no programa. Espero que o Ministério
da Educação ande próximo às prefeituras, no sentido de
acompanhar e cobrar dos prefeitos a parte que compete.

Participação nos encontros presencias das


instituições de ensino superior
A formação dos orientadores de estudos é um espaço
assegurado para discussões introduzidas no Programa Pró-
-Letramento, como concepções de alfabetização, currículo
nos anos iniciais do ensino fundamental, direitos de apren-
dizagem, avaliação na alfabetização, interdisciplinaridade,
aprendizagens matemáticas no ciclo de alfabetização, jogos
matemáticos, formação de leitores e outros. As discussões
são realizadas com base nos conhecimentos prévios do gru-
po de professores participantes. Aprofundamentos em re-
lação aos temas são garantidos nessa formação. Para tanto,

174
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

foram organizados quatro encontros de formação, cada um


com 24 horas de duração, e um seminário final para a socia-
lização das experiências entre os participantes.
Além da carga horária presencial, os orientadores devem
se dedicar à atividades de planejamento, estudos e realização
de tarefas propostas, para as quais são computadas 40 horas.
Segundos os mesmos, a participação nas formações presen-
cias é o que permitirá a compreensão e/ou a ampliação dos
conteúdos que serão trabalhados posteriormente junto aos
professores alfabetizadores.
Os profissionais ressaltaram também a riqueza trazida
pela partilha de experiências com colegas e com os forma-
dores da universidade. Foram unânimes ao afirmar que as
formações, respectivamente, dos anos de 2013 e 2014, am-
pliaram o conhecimento no que diz respeito ao entendimen-
to da alfabetização na perspectiva do letramento. Conforme
elucidou uma orientadora, “a participação na formação é
importante porque nos possibilita a reflexão sobre conheci-
mentos do nosso sistema de escrita, estratégias de leitura e
produção de textos, bem como da etnomatemática. Conside-
ro positiva a presença de um formador da área da linguagem
e outro da matemática, pois os mesmos têm conhecimentos
que dialogam e se complementam”.
A afirmação vem reiterar a reflexão presente no caderno
de apresentação, “Formação do professor alfabetizador”:

[...] os orientadores de estudos passarão por uma forma-


ção, na qual será discutida a necessidade de desenvolver
uma cultura de formação continuada, buscando a proposi-
ção de situações que incentivem a reflexão e a construção
de conhecimento como processo contínuo de formação
docente (BRASIL, 2012, p. 29).

175
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

No que tange à participação dos orientadores de estudo,


um aspecto a ser pensado diz respeito à liberação daqueles lo-
tados em sala de aula. De acordo com os mesmos, os diretores
das instituições de ensino mostram preocupação na liberação,
tendo em vista que nas escolas não há a figura do professor
substituto. A solução dessa questão, segundo o grupo, seria a
disponibilização de 20 horas semanais para o trabalho com o
Pacto. Outra sugestão seria a lotação em outro setor da escola
e/ou Secretaria Municipal de Educação.
Considerando as especificidades de cada município e a
complexidade das atribuições propostas pelo Pacto, acredita-
-se que as equipes ligadas à gestão municipal deverão refle-
tir e conduzir ações visando a resolução dessa problemática.
É salutar focar-se no cerne do programa, que é voltado para
garantir a alfabetização das crianças. Portanto, é prioritária a
participação dos profissionais na formação e a permanência
das crianças nas respectivas salas de aula, conforme rege a
legislação.

Avaliação dos encontros de formação junto aos


professores alfabetizadores
No que tange à avaliação no Sispacto, averiguou-se que
as dificuldades são decorrentes da apropriação e do conhe-
cimento do ambiente virtual, bem como de conhecimentos
de informática. Nessa amostra, verificou-se que uma orien-
tadora recorre ao apoio dos colegas no uso da ferramenta.
Outro aspecto diz respeito à falta de acesso à internet para
os alfabetizadores, tendo em vista que há escolas localizadas
no campo. A estratégia encontrada para dirimir a situação é a
organização de uma agenda de atendimento no período das
formações presenciais. Em relação à análise e à orientação
dos relatórios dos professores alfabetizadores, os mesmos

176
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

acontecem com o uso de portfólios e exposição nos encon-


tros presenciais. É perceptível o desejo de aprimorar os me-
canismos de encaminhamentos quanto às devolutivas. Uma
forma viável seria o monitoramento in loco.
Em relação aos monitoramentos dos alfabetizadores
pelos orientadores de estudo, não há no grupo pesquisado
instrumento que seja aplicado no curso; no entanto, o grupo
diz que faz avaliação oral.
O processo de avaliação é um momento de formação e
de indicação de problemas, uma vez que a partir da verifica-
ção dos dados coletados é possível a revisão de procedimen-
tos e estratégias. Ademais, é o sinalizador que nos permite
o redirecionamento das políticas públicas. Conforme esse
entendimento, o processo de avaliação deve ser compreendi-
do como instrumento para registro das reflexões e da com-
preensão das vivências dos professores alfabetizadores, bem
como dúvidas, observações e experimentações realizadas
com saberes e problemas colocados nas distintas realidades
escolares.
No grupo pesquisado, percebe-se grandes preocupação,
ansiedade e responsabilidade dos orientadores de estudo
quanto a sua atuação junto ao PNAIC. Essa preocupação
talvez esteja diretamente relacionada aos mecanismos de im-
plantação do programa por parte do Governo Federal e à
compreensão que esses profissionais tinham de sua atuação
junto ao programa.
Em depoimento, uma das orientadoras aferidas na pes-
quisa citou: “[...] Quando assumi a orientação de estudos,
pensei que as formações aconteceriam no horário noturno
e aos finais de semana. Não sabia que eu deveria monitorar
o trabalho nas escolas. Verifiquei que o trabalho é bem mais
complexo e requer muito de mim. No início das formações

177
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

perdia o sono, fiquei estressada, sobrecarregada. [...] hoje es-


tou mais tranquila, mas vejo que preciso ter mais conheci-
mentos quanto a minha atuação.
O depoimento mostra o quanto são necessários o co-
nhecimento e a leitura por parte da equipe dos manuais e das
demais matérias disponibilizadas pelo Ministério da Educa-
ção – também porque esse material é o que respaldará sua
atuação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo da pesquisa foi identificar as atribuições dos


orientadores de estudos e analisar a sua efetivação concreta.
O estudo permitiu verificar que os profissionais da amostra
reconhecem a importância das atribuições para o exercício
nas formações dos professores alfabetizadores, contudo não
conseguem a efetivação desses. Esse dado é recorrente nos
diversos sistemas de formação docentes, sejam eles de países
mais avançados ou não. Saviani (2000) cita que o lugar da re-
lação entre teoria e prática nas formações para docente é um
dos pontos a serem revistos. Para remediar esse problema,
vários Estados já iniciaram um processo de revisão de seus
programas de formação de professores a fim de melhorar a
qualidade da educação ministrada em suas escolas.
Considerando-se a magnitude do PNAIC e todo o in-
vestimento realizado com sua implantação, acredita-se que
os governos Federal, estaduais e municipais precisam rever
aspectos que são essenciais para a efetivação de um progra-
ma tão significativo e abrangente.
Conclui-se que ainda constitui um grande desafio em
todo o processo de alfabetização os aspectos que dizem res-
peito ao processo de planejamento para as formações dos

178
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

professores alfabetizadores e ao monitoramento in loco. Há


que se considerar essas questões, uma vez que as mesmas
possibilitam a efetivação ou não das atribuições prescritas
pelo Ministério da Educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Di-


retoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa: formação de professores no
pacto nacional pela alfabetização na idade certa. Brasília: MEC/
SEB, 2012.
BRASIL. Rede Nacional de Formação Continuada de Professo-
res de Educação Básica de Educação Básica. Orientações
gerais. Brasília: MEC/SEB, 2005.
CHARLOT, B. Relação com o saber, formação de professores e
globalização: questões sobre educação hoje. Porto Alegre: Art-
med, 2005.
GAUTHIER, C. Por uma teoria da pedagogia: pesquisa contem-
porânea sobre o saber docente. Ijui: Unijui, 2006.
GANDIN, D. O planejamento como ferramenta de transforma-
ção da prática educativa. Disponível em: <http://www.ma-
xima.art.br/arq_palestras/planejamento_ferramenta>. Acesso
em 19 nov 2014.
IMBERNÒN, F. Formação continuada de professores. Porto Ale-
gre: Artmed, 2010.
NOVOA, A. (org.) Vida de professores. Porto: Porto Editora, 1995.
PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício de professor: pro-
fissionalização e razão pedagógica. Saberes docentes e formação
profissional. Porto Alegre: Artmed, 2002.

179
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

SAVIANI, Dermeval. Formação de professores: a experiência in-


ternacional sobre o olhar brasileiro. Campinas: Autores Associa-
dos/Nupes, 2010.
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópo-
lis: Vozes, 2002.

180
A matemática também se faz presente em
saberes e fazeres na cultura indígena Krahô

Zenóbia Silva Pereira Paiva

INTRODUÇÂO

O objetivo deste trabalho é mostrar as principais ideias


e descobertas sobre o uso da matemática no dia a dia dos
alunos e sua influência na cultura indígena Krahô, já que é
uma cultura tão presente na vida local (e dos alunos) e, às
vezes, é pouco valorizada. Entendendo a necessidade de se
pesquisar e integrar aos conteúdos curriculares do ciclo da
alfabetização a cultura indínega Krahô, os professores Eid
Alves Pereira e Márcia Coutinho, sob a orientação de Zenó-
bia Silva Pereira Paiva, realizaram o projeto Interculturalis-
mo: integração e valorização da cultura indígena Krahô com
os alunos de uma turma de segundo ano e uma de terceiro
ano da Escola Municipal “Tancredo Neves”. É importante

181
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

destacar a riqueza de conteúdos a serem explorados dentro


deste contexto, pois se verifica que a matemática se faz pre-
sente no saber e no fazer matemático das atividades realiza-
das no dia a dia da vida desses indígenas. O presente trabalho
apresenta reflexões sobre a importância das formações do
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC),
pois por meio delas abriu-se um leque para novos caminhos
e descobertas voltados para a prática do professor que até
então se limitava à sala de aula.
O professor alfabetizador, ao ensinar matemática, ex-
plorava simplesmente o contexto escolar – em geral, a ma-
temática era apresentada de uma única maneira e costuma-
va seguir um modelo curricular linear, na maioria das vezes
orientado, exclusivamente, pelos livros e materiais didáticos.
Alterar a ordem dos conteúdos e aplicar aos alunos era uma
atitude praticamente inexistente na ação do professor ao pla-
nejar o ensino. Houve, portanto, mudanças de postura na
prática pedagógica por meio das formações do PNAIC.
Já no primeiro encontro com o estudo do caderno
do campo que abordava a etnomatemática foi apontada a
aprendizagem da matemática produzida pelos mais diferen-
tes grupos sociais e, assim, despertou-se nos docentes uma
visão mais ampla de ensinar e surgiu a busca por conhecer
a matemática contextualizada à linguagem do meio cultural
indígena Krahô. Ao comparar-se a postura dos professores
antes e depois das formações, observa-se que antes eles viam
a construção dos conhecimentos matemáticos como se tives-
sem obedecido a uma ordem linearmente disposta e como se
os processos de resolução de problemas fossem únicos; e de-
pois, em cada formação, foi apresentado um olhar diferencia-
do para a prática pedagógica do professor alfabetizador. Des-
taca-se, nisso, a riqueza gerada ao se observar os professores

182
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

alfabetizadores se autoavaliarem e perceberem que existem


outras formas de ensinar a matemática. Houve um entendi-
mento de que a escola que realmente almeja a completa alfa-
betização matemática dos alunos precisa se preocupar com o
currículo – o que ensinar, como ensinar e para que ensinar.
Tal como concebido no material estudado durante o curso, a
escola deve ser repensada como um ambiente de aprendiza-
gem pautado no diálogo, nas interações, na comunicação de
ideias, na mediação do professor e, principalmente, na inten-
cionalidade pedagógica para se ensinar de forma a ampliar as
possibilidades das aprendizagens discentes e docentes. Essa
intencionalidade requer um planejamento consistente do
professor, uma sala de aula concebida como uma comunida-
de de aprendizagem e uma avaliação processual e contínua do
progresso dos alunos, bem como dos vários fatores interve-
nientes no processo, como a prática do professor, o material
e a metodologia utilizados, dentre outros.
Essa visão abriu novos horizontes para os professores
planejarem e executarem melhores aulas, e as mudanças fo-
ram significativas na metodologia dos professores. Eles pas-
saram a planejar sequências didáticas e projetos didáticos
com temas e literatura voltados realmente para o interesse
dos alunos. Assim, passaram a valorizar as atividades viven-
ciadas pelas crianças em seu dia a dia que contribuíram para a
construção dos esquemas que favorecem a compreensão das
operações básicas: adição, subtração, multiplicação e divisão,
além de fazer uma conexão da geometria com a arte indí-
gena. Foi a partir daí que surgiu a ideia de desenvolver um
projeto envolvendo os alunos indígenas da aldeia “Manoel
Alves Pequeno” para explorar as atividades culturais, inte-
grar, valorizar e despertar o respeito às diferentes culturas,
em particular a cultura indígena Krahô, que se faz presente

183
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

nos costumes, alimentos e vivências dos alunos queestudam


junto com os indígenas na escola dos cupên (não índios) e
convivem com os mesmos na cidade, nas lojas e nas praças.
A cultura está presente até mesmo no nome da cidade, que
é indígena.
Para maiores informações sobre o fazer matemático
na cultura indígena Krahô, pesquisou-se pessoas da comu-
nidade indígena com os professores indígenas do ciclo da
alfabetização, Tais Põcuhtõ Krahô; André Côhtát Krahô; e
Leonardo Tupen Krahô; além de Secundo Tôhtat Krahô,
conselheiro; do secretário da escola, Roberto Caxêt Krahô;
e o diretor da Escola 19 de Abril, Renato Yahe Krahô. Além
dos depoimentos dessas pessoas, foi essencial buscar subsí-
dios em pesquisas bibliográficas em obras e no referencial
curricular nacional para as escolas indígenas.

A MATEMÁTICA TAMBÉM SE FAZ PRESENTE NOS


SABERES E FAZERES DA CULTURA INDÍGENA KRAHÔ

A aldeia “Manoel Alves Pequeno” está situada há 12 km


da cidade, com 306 índios residindo lá. A partir dos estudos
sobre saberes e fazeres matemáticos indígenas, descobriu-se
que, além da etnia Krahô desenvolver a sua arte própria e seu
próprio conhecimento linguístico, com a língua do tronco
Macro-jê, tem também seus conhecimentos próprios, como
um jeito específico de trabalhar a matemática; uma maneira
peculiar de representar seus saberes culturais por meio de
pintura e artesanato; maneiras de fazer as plantações de se-
mentes, a divisão de alimentos, a separação de partidos na
aldeia, como o verão e o inverno; e até mesmo a organização
das casas da aldeia, em formato circular. Em todas as suas
atividades, essa cultura apresenta o saber matemático acu-

184
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

mulado durante anos, mas que às vezes nem se percebe que


estão usando a matemática. Esse conhecimento adquirido
pelos antepassados e vivenciado pelas crianças e adultos não
pode ser ignorado no ambiente escolar. Sua apresentação
está relacionada ao tipo de apropriação que essa etnia faz
desse conhecimento: a depender da atividade que vai se de-
senvolver, lá está a matemática, como ao preparar o moquém
para assar o paparuto. O conhecimento matemático gerado
nessa cultura se manifesta por meio de atividades realizadas
diariamente na aldeia, como na tomada de decisões, na reso-
lução de problemas e nas festividades, tudo com uma relação
intrínseca ao social e cultural.
Diante do exposto, nota-se a riqueza de conhecimentos
que passam despercebidos aos conteúdos do currículo esco-
lar. Nesse sentido, D’Ambrosio afirma que

[...] o ensino de matemática não pode ser hermético nem


elitista. Deve levar em consideração a realidade sociocultu-
ral do aluno, o ambiente em que ele vive e o conhecimento
que ele traz de casa (2002).

Para que isso aconteça, é necessário que a escola mude o


seu modo de ver a matemática ou, ainda, é necessário que a
mesma amplie o seu modo de ver a matemática, que perceba
e entenda o aspecto cultural dessa ciência. Nessa perspectiva,
reflete-se sobre a relevância dos saberes matemáticos cons-
truídos na prática do cotidiano indígena Krahô, comumente
chamado de conhecimento informal ou cultural. Nessa pers-
pectiva, questiona-se:

A matemática escolar como o único tipo de matemática


possível, o que coloca sob suspeita a universalidade da

185
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

matemática tal como é ensinada na escola. [...] Institui-se


a matemática dos diferentes povos e etnias. Emerge do
discurso da etnomatemática a ideia de diferentes matemá-
ticas, todas de igual valor (LARA, 2001, p. 49).

A partir dessas constatações, ao repensar o ensino da


matemática, é importante refletir sobre uma visão utilitária
dos conceitos matemáticos a serem abordados com os alu-
nos, objetivando aprendizagens mais significativas nas quais
consigam se valer dos saberes adquiridos no dia a dia. O co-
nhecimento matemático adquirido no meio cultural de cada
um deveria servir de ponte facilitadora para a introdução do
conhecimento acadêmico, porém, em virtude da supervalo-
rização atribuída ao pensamento formal pelo atual sistema
de ensino, esse conhecimento acaba por não ser trabalhado
em sala de aula, amputando, dessa forma, os valores socio-
culturais do aluno, criando uma relação de desconforto com
a matemática. D’Ambrosio acrescenta:

As aulas de matemática devem ter por base os conheci-


mentos matemáticos transportados de fora para dentro da
escola. Este conhecimento deve ser desenvolvido a partir
da própria experiência de vida do aluno. Os professores
precisam respeitar, entender e aceitar a cultura dos alunos,
interpretar as realidades externas em termos matemáticos
para associá-las a experiências curriculares (2002).

Ressalta-se a temática abordada numa perspectiva


D‘Ambrosiana, dando importância a um enfoque etnoma-
temático capaz de trazer à tona uma matemática articulada a
formas culturais distintas de matematizar, associada ao con-
texto cultural do aluno, valorizando e utilizando seu conhe-
cimento matemático adquirido pelas crianças e objetivando
uma aprendizagem mais significativa na escola formal. Por

186
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

meio da pesquisa, pode-se notar que os conhecimentos que


as crianças apresentam decorrem de uma prática social, ad-
vêm de suas relações socioculturais que, se valorizados, po-
dem enriquecer o currículo escolar do ciclo da alfabetização.

USO DA GEOMETRIA NAS PINTURAS CORPORAIS:


CONEXÃO COM A ARTE E A MATEMÁTICA DO DIA A DIA

A geometria se faz presente nas práticas sociais dos


indígenas Krahô, como a pintura corporal e os desenhos
geométricos. A pintura é dividida em dois partidos: verão
(wacmejê), com a geometria na posição vertical, e inverno
(catàmjê), na posição horizontal. Somente as mulheres pin-
tam os demais.
O caderno 5 do PNAIC tem como objetivo auxiliar o
trabalho com o desenvolvimento do pensamento geométri-
co da criança, constituído por um conjunto de componen-
tes que envolvem processos cognitivos como a percepção, a
capacidade para trabalhar com imagens mentais, abstrações,
generalizações, discriminações e classificações de figuras
geométricas. Essa linha de pensamento valida o estudo da
geometria indígena Krahô, pois esta está presente nas diver-
sas formas geométricas vivenciadas pelas crianças do ciclo
da alfabetização nas aulas de matemática, como polígonos,
simetria, curvas, retas, retas paralelas e perpendiculares, en-
tre outros. De acordo com o referencial curricular nacional
(BRASIL, 1988, p. 287)

Nas sociedades indígenas, a arte está presente nas diferen-


tes esferas da vida: nos rituais, na produção de alimentos,
nos locais de moradia, nas práticas guerreiras, além de ex-
pressar aspectos da própria organização social.

187
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

A MATEMÁTICA NUMA PERSPECTIVA


ETNOMATEMÁTICA: CONSTRUÇÃO DE
ARTESANATOS E OBJETOS INDÍGENAS

Na construção de objetos e artesanatos indígenas, po-


de-se notar o uso da matemática, da arte e da organização
indígena Krahô. A divisão de tarefas para construção das ati-
vidades é realizada pelo sexo: os meninos fazem os chapéus
de palha usados nas festas e nas caçadas e a trança para colo-
car nos mocós e cofos, flecha, arco feito de palha de buriti e
esteiras, tapiti e vassoura; e as meninas confeccionam colares
e pulseiras de miçangas e “tiririca” (fruta nativa da região), ob-
jetos de enfeite de palhas, cofrinhos, brincos e mocós, além de
fazer os cortes de cabelos. Compreende-se que, por exemplo,
os índios usam a matemática para contar quantas miçangas
vão compor a pulseira, de acordo com a espessura do braço,
e que usam medidas não padronizadas para medir a cabeça
com a palha e fazer o chapéu. Os objeto de artesanato, depois
de prontos, são usados em festas e, na maioria das vezes, leva-
dos para a cidade e vendidos para os cupên ou trocados por
mercadorias ou roupa. Nesse momento, entram em contato
os conhecimentos matemáticos das duas culturas. Segundo
Almeida,

Etnomatemática é o reconhecimento de que há muitas


maneiras de ser matemático, entendendo ser matemático
como um indivíduo que tem seus modos e maneiras pes-
soais de comparar, classificar, quantificar, medir, organizar,
inferir e de concluir (2008).

Sobre o estudo da etnomatemática no caderno do campo


do PNAIC, Knijnik esclarece:

188
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

Quando argumento pela importância que se dê visibilida-


de, no currículo escolar, a estes saberes usualmente silen-
ciados – o que tenho chamado de matemática popular –,
colocando-os em interlocução com os saberes legitimados
em nossa sociedade como os saberes científicos, isto é, o
que comumente chamamos de matemática, saliento que é
preciso estar bastante atentos para não glorificar nem os
saberes populares, tampouco os acadêmicos, o que implica
problematizá-los, analisando as relações de poder envolvi-
das no uso destes diferentes saberes (2001, p. 26).

Encanta, na cultura dos Krahô, por exemplo, a forma de


construção de material, na qual uma séries de fatores inter-
vém: desde os mais pragmáticos, como os recursos naturais
disponíveis para utilização como matéria-prima, até o desen-
volvimento de técnicas adequadas. As atividades envolvidas
na exploração da natureza e da ecologia se misturam com os
saberes identificados na fabricação de objetos, ferramentas
e ornamentos, articulam-se em torno de um conhecimento
muito precioso, fazendo, assim, conexão entre arte, ciência,
linguagem e o conhecimento matemático que ao longo de
muitas gerações foi passado, como a contagem dos números
com base linguística que se mesclam entre si, a linguagem
materna com base três, a linguagem portuguesa e a lingua-
gem matemática. Numa conversa via Facebook com o dire-
tor da escola Renato Yahe Krahô, investigou-se como surgiu
essa contagem tão restrita, com base três, e ele respondeu:
“É interessante. Eu estudei um pouco sobre a história da
matemática. É parecida com a história do surgimento das
primeiras contagens. A matemática dos Krahô como contam
os mais velhos surgiu com as primeiras marcas nas pedras,
pedaços de madeira etc. Era assim que eram feitas as con-
tagens de números, a comunidade registrava as atividades

189
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

realizadas na natureza e sempre até três”. Ainda com muita


curiosidade, procurou-se um dos índios mais velhos da al-
deia, Secundo Tôhtat Krahô, e ele afirmou que esses aspec-
tos vêm de muito tempo atrás. Ele disse: “Conta a lenda que
surgiu da espécie do milho, na descoberta dos três tipos de
milho – o milho mole (poohymoy), o milho rajado (põõhyhti
krorti) e o milho graúdo (põõhyhti)”.

A educação matemática propõe mudanças não apenas aos


conteúdos matemáticos, mas, principalmente, aos méto-
dos utilizados no processo ensino-aprendizagem de ma-
temática. Considera importantes os modos pelos quais a
pessoa pensa matematicamente (ainda que ela não tenha se
deparado com a matemática cientificamente estruturada)
e os atos mentais do sentir, intuir, imaginar, refletir, falar,
simbolizar, generalizar, raciocinar, contar, medir e relacio-
nar, todos presentes na atividade cognitiva que gera o co-
nhecimento matemático (BICUDO, 2005).

Nessa perspectiva, verifica-se que o homem sempre


usou a matemática para dar significado ao mundo e expres-
sar o modo de entender a vida e suas concepções quanto à
maneira como ela deva ser vivida. Percebe-se que a cultura
matemática dos índios Krahô compõe-se de ideia, signifi-
cados e concepções que se expressam concretamente, seja
por meio das práticas sociais, das músicas, das manifestações
artísticas, das falas, ou da criação de objetos incorporados à
sua vivência. Vê-se que a escola está inserida nesse contexto
matemático da cultura indígena Krahô, pois há alunos indí-
genas que estudam na escola dos cupên, índios que são visi-
tados em suas aldeias, índios que compram nos comércios da
cidade, cupên que casam com os índios e um índio que faz
parte da Câmara Municipal dos Vereadores. Sendo assim, as

190
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

culturas se misturam constantemente e na escola não devem


ser ignoradas, mas sim valorizadas, pois as crianças têm mui-
to interesse nas descobertas tanto da língua como do uso da
matemática dessa etnia. Como explica D’Ambrosio sobre a
consideração dos fatos e conhecimentos que fazem parte do
ambiente cultural no qual a criança vive,

Quando o aluno chega à escola ele traz experiências de


casa, traz o conhecimento de jogos, de brincadeiras, pois
já viveu 7 anos produtivos e criativos. Aprendeu a falar, an-
dar, brincar. Isso não é aproveitado pelo sistema escolar. O
professor parece que pede: “esqueça tudo que você fez e
aprenda números e coisas mais intelectualizadas” (D’AM-
BROSIO, 2014).

Os números são muitos usados no dia a dia dos ín-


dios Krahô em geral. A necessidade do uso da matemática
é uma prática constante, como afirma o professor Roberto
Caxêt Krahô: “Nós trabalhamos com a matemática todo dia,
na cultura, na realização das atividades quando as famílias
levam as carnes para as mulheres fazerem o paparuto, na
corrida, nas brincadeiras, na contagem das fases da lua de 7
em 7 dias para plantar as roças, na divisão dos alimentos por
números de famílias, na divisão dos partidos usando o nome
das pessoas, até mesmo para derrubar uma árvore usamos
a matemática, precisamos saber quantos anos tem a árvore,
pois se não tiver 10 anos não podemos derrubar. A geração
não percebe que a gente usa as quatro operações em tudo
que fazemos na aldeia.

Portanto, entende-se que os assuntos estudados nos ca-


dernos do PNAIC – quantificação, registros e agrupamen-
tos, operações na resolução de problemas, grandezas e me-

191
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

didas, construção do sistema decimal, geometria e estatística


– estão presentes no cotidiano dos alunos e deve-se fazer
uma conexão entre esses conteúdos e os saberes culturais
das crianças. Portanto, contraditoriamente, parece que os
Krahô não se dão conta da riqueza de saberes matemáticos
que possuem, mas os mais velhos notam que a matemática
esteve presente na cultura deles desde muito tempo atrás.
Conta o índio conselheiro Secundo Tôhtat Krahô que sua
contagem, que é 1 (pyxit), 2 (ipijakrut e 3 (iucrê), permanece
até hoje. Verifica que, para quantificar mais de três, eles já
usam os números em língua portuguesa ou até mesmo mis-
turam as línguas. Para entender, por exemplo, o numeral 13,
eles falam “dez” e na língua indígena falam iucrê (3). Assim,
os meh˜i (índios) desde cedo já usam as duas línguas, mas
do primeiro ao quinto ano estudam apenas a língua materna
com professores indígenas para não perder sua cultura. As
crianças, portanto, ainda não dominam a língua portuguesa
nessa fase escolar.
Nota-se que a escola está inserida nesse contexto social
indígena Krahô, mas nem sempre faz parte do mesmo. É
muito mais fácil para a escola ignorar uma cultura tão viva e
concreta na vida das crianças. Reflete-se, aqui, sobre o con-
teúdo do caderno do campo (2014, p. 21) que destaca a etno-
matemática ao sinalizar a importância de incorporar a cultura
dos alunos e suas vivências em nossas práticas pedagógicas e
aponta para a construção de um currículo que busque a in-
clusão de saberes não hegemônicos. Por meio dessas ideias,
pode-se notar que para que isso aconteça é necessário que o
professor saia das quatro paredes da sala de aula e olhe para
fora. Essa atitude requer planejamento, pesquisa, motivação
e apoio de toda equipe escolar, pois sozinho o professor não
consegue. Com base nessas reflexões, entende-se que o ensino

192
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

etnomatemático passa de geração a geração e não consta no


currículo escolar dos não índios. Almeida refere-se à matemá-
tica como uma cultura viva e ativa, sendo assim mostra que:

A proposta da etnomatemática não é trocar a matemática


que aprendemos na escola, mas sim acrescentar algo novo,
que possa diversificar as aulas de matemática, tornando a
aula atrativa, cheia de novidades onde o aluno fique entu-
siasmado com o conteúdo (ALMEIDA, 2008).

Levar em consideração a realidade e a vivência dos


alunos é muito mais significativo para a aprendizagem das
crianças, principalmente quando se trata do ensino da ma-
temática, pois este ensino tem sido um dos pontos críticos
no processo da aprendizagem dos alunos. Na dimensão edu-
cacional, os professores alfabetizadores têm em suas mãos
uma missão muito importante de alfabetizar e letrar, além de
alfabetizar “matematizando”, o que requer um ensino mais
significativo e atraente, e isso só é possível com mudanças
de concepção sobre a matemática. É preciso reconhecer que
nenhuma sala é homogênea, então existem diferentes cul-
turas que devem ser respeitadas e certamente a matemática
é concebida de acordo com cada cultura. D’Ambrósio ex-
pressa também esse pensamento: “Não reconhecer que um
menino índio tem outra maneira de explicar, outra maneira
de ordenar suas percepções, é negar a riqueza da espécie hu-
mana” (2005, p. 38).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho abordou ideias de uma pesquisa de campo


realizada com os alunos indígenas Krahô do primeiro ao

193
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

terceiro ano da Aldeia “Manoel Alves Pequeno”, na qual


realizou-se um projeto sobre interculturalismo com o ob-
jetivo de trazer as crianças para uma reflexão a respeito da
importância de conhecer para, assim, valorizar a cultura
indígena e perceber a sua importância para o nosso meio
social, principalmente no que se trata do uso da matemáti-
ca nos saberes e fazeres das atividades cotidianas.
O trabalho também direcionou a importância das for-
mações do PNAIC para a melhoria educacional da rede
municipal. Foram abordados os estudos dos cadernos que
trouxeram reflexões importantes para o ensino da mate-
mática no ciclo da alfabetização. Destaca-se, entre eles, o
caderno do campo cujo estudo conduziu a construção e
apresentou possibilidades para uma interação entre a etno-
matemática e a escola, e assim permitiu o vislumbre de que
os princípios da etnomatemática cheguem efetivamente na
sala de aula.
Neste trabalho, o estudo foi direcionado para a educa-
ção indígena Krahô, que foi o campo de estudo e vivên-
cias sociais. A etnomatemática procura mostrar a possibi-
lidade de valorizar o conhecimento do aluno, sua cultura,
para construir uma matemática significativa e crítica. Propõe
uma pedagogia viva, dinâmica, de fazer o novo em resposta
a necessidades ambientais, sociais e culturais, dando espaço
assim para a imaginação e para a criatividade.
Conclui-se que a cultura indígena Krahô está presen-
te no dia a dia do povo itacajaense, como na fala, na ali-
mentação, na geometria da construção de objetos e artes, na
ciência, na história, na geografia e até mesmo na linguagem.
Observa-se que, por sua vez, o índio está inserido na cultura
urbana de forma direta e indireta. É importante que os
alunos compreendam o seu modo de viver, as tradições,

194
Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO  

os hábitos e as crenças. Entende-se que o povo itacajaense


tem muito contato com os índios, mas a sociedade Krahô é
pouco valorizada e muitas vezes é desprezada pela sociedade
urbana devido ao excessivo uso de álcool de alguns índios
Krahô na cidade.
Faz-se necessária a compreensão de que os índios
abrangem populações muito diferentes entre si, que não se
definem por oposição aos brancos ou como um grupo ho-
mogêneo. É necessário conhecer costumes, organização so-
cial e cultural, estruturas habitacionais, línguas, porte físicos
e vários outros aspectos para melhor respeitá-los. Enfim, é
necessário compreender essas diferenças e vivenciar junto
com eles sua cultura – arte, linguagem, dança, música, brin-
cadeiras e comidas típicas – e seus saberes matemáticos, e
assim, garantir sua valorização cultural e social.
Aqui fica a reflexão dessa pesquisa sobre a educação in-
dígena Krahô sabendo-se que ainda há muito que pesquisar,
pois a área indígena Krahô se mostra como um campo aberto
para muitos estudos que possam contribuir para a melhoria
dos processos educativos indígenas e cupên, especialmente
em relação aos conhecimentos linguístico e matemático.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, M.N. Vivências matemáticas: a construção de conhe-


cimentos no cotidiano de um pedreiro. 2008. Dissertação (Mes-
trado). Juiz de Fora, UFJF, 2008.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Edu-
cação. Referencial Curricular Nacional para as escolas indí-
genas. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BICUDO, M.A.V. (org.). Educação matemática. 2ª edição. São Pau-
lo: Centauro, 2005.

195
  Formação, ação, reflexão: trajetórias do PNAIC-TO

D’AMBROSIO, U. Etnomatemática: um programa. Educação Ma-


temática em Revista, 1, 1993, 5.
. Sociedade, cultura, matemática e seu ensino. Revista
Educação e Pesquisa, São Paulo, 31, 99-12
. Educação matemática: da teoria à prática. São Pau-
lo. Campinas: Papirus, 1996.
. Educação matemática. 11ª edição. Campinas: São
Paulo: Papirus, 2004.
KNIJNIK, G. Exclusão e resistência: educação matemática e legiti-
midade cultural. Porto Alegre: Artmed, 1996.
LARA, I.C.M. Histórias de um lobo mau: a matemática no vesti-
bular da UFRGS. 2001. Dissertação (Mestrado). Porto Alegre,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2001.

196

Você também pode gostar