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CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, segunda-feira, 24 de junho de 2019 • Opinião • 11

A atenção primária Para que


serve a
e a mudança no filosofia?
ERICSON SAVIO FALABRETTI

modelo de saúde
Doutor em filosofia e decano da Escola de
Educação e Humanidades da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR)

N
ão podemos cravar nenhuma
resposta definitiva sobre essa
CELSO VISCONTI EVANGELISTA questão dirigida a todo filósofo,
geralmente por pessoas incré-
Formado em medicina pela Universidade de São Paulo (USP), com especialização em medicina preventiva.
Atualmente é superintendente-médico da Qualicorp e responsável técnico pelo QualiViva, programa de atenção à saúde
dulas. E o momento exige uma reflexão
sobre o lugar, o uso e o alcance da filoso-
fia e das Ciências Humanas na estrutura

M
uito se tem discutido a da nossa educação formal.
respeito das mudan- Primeiro, é preciso admitir, pelo me-
ças necessárias no nos no caso do Brasil, que a filosofia e
modelo da saúde su- as humanidades vivem em estado de
plementar. Um dos mais im- alerta, esperando para serem retiradas
portantes pilares desse debate dos currículos escolares e do sistema
é o resgate da imagem do médi- público de financiamento de ensino e
co de família, ou médico gene- pesquisa, ainda que o seu lugar seja
ralista, atuando como porta de sempre pequeno e seu custo para os
entrada para o sistema de saú- contribuintes praticamente desprezí-
de. No Brasil, o sistema foi or- vel. Todavia, por que as humanidades
ganizado com base em uma têm essa existência incerta, mínima e
cultura da liberdade do acesso pobre? Seria a filosofia estéril para o de-
às especialidades, em que o senvolvimento da leitura, da escrita e
usuário é atendido por um pro- do raciocínio matemático das nossas
fissional com qualificação res- crianças que, ano após ano, têm nos
trita à sua área de atuação. A “envergonhado”, conforme atestam os
questão é que, tradicionalmen- rankings internacionais como o Pisa?
te, o consumidor enxerga nisto Na última edição, realizada com esco-
um benefício. E agora se sugere las de 70 países, o Brasil foi o 59º colo-
indicar o médico generalista cado em Leitura e figurou entre os 10
como porta de entrada para o últimos nas categorias matemática e
sistema de atendimento. As- ciências. Seriam as humanidades e tu-
sim, não se pode descuidar da do o que as acompanha, parafraseando
valorização desse médico. A Chico Buarque, a Geni do nosso siste-
busca por profissionais expe- ma de Educação? Certamente, não.
rientes para a função será es- Segundo, é necessário ter claro que do
sencial. Mas, como se dá a aqui- ensino fundamental ao Superior, as dis-
sição da experiência clínica na ciplinas de filosofia e ciências sociais
atividade médica? ocupam um espaço praticamente inex-
A atuação médica é comple- pressivo quando consideramos os currí-
xa, e pauta-se em intervenções culos escolares. O ensino de filosofia, ex-
muito abrangentes. Desde as- cluindo algumas escolas particulares,
pectos educacionais, apoio emo- praticamente inexiste no ensino funda-
cional, cuidados pessoais, até as mental — o que é lamentável, pois se en-
ações mais invasivas, que se dão sinássemos lógica, conteúdo filosófico
por meio de medicamentos e de nascido do corpus aristotélico, nossas
procedimentos cirúrgicos. A de- crianças poderiam melhorar, e muito,
cisão quanto a que tipo de ação suas habilidades de leitura e cálculo.
deve ser adotada se orienta na O estudo da lógica — enquanto estru-
formulação de diagnósticos e no tura normativa do pensamento e da lin-
perfil do próprio paciente. Ou guagem — é fundamental para desen-
seja, é na boa caracterização da volvermos a habilidade de estabelecer
tríade: prescrição, diagnóstico e nexos racionais tanto a respeito de pro-
paciente, que depende a qualidade do resultado o médico moderno é bombardeado por inova- onde se preserva um ambiente propício à aqui- posições linguísticas como de sentenças
da atenção à saúde. Aí está o porquê da impor- ções, congressos, simpósios, publicações cientí- sição desta experiência no sentido mais amplia- matemáticas. Não faz mais de 10 anos
tância da experiência do médico. ficas etc. Sob pressões para manter-se atualiza- do é exatamente a atenção primária. Por essa que as disciplinas de filosofia e sociolo-
São dezenas de dias de treinos necessários do, não há interesse comercial para se investir razão, não haverá dificuldade em engajar o gia foram, timidamente e em pequena
para adquirir habilidade para realizar uma in- na aquisição da sabedoria da arte médica. Uma cliente, nem se evidenciar o ganho de qualidade escala, reintroduzidas aos currículos do
tervenção. Centenas de dias para assimilar o en- armadilha que favorece a ausculta da narrativa com a implantação de um modelo assim orga- ensino médio. É interessante notar que,
tendimento quanto à situação em que tal inter- da doença e negligencia o diálogo com o doen- nizado, desde que estruturado com médicos ex- além dos ganhos no âmbito do desen-
venção deva ser executada. Entretanto, milha- te. Surge, então, a oportunidade para a invasão perientes e de alto nível e, consequentemente, volvimento de competências lógico-ra-
res de dias passarão até que se tenha a sabedo- da inteligência artificial na área da saúde. Médi- valorizados de forma correta. cionais, o ensino de humanidades res-
ria para perceber quando a intervenção, ainda cos bem treinados ameaçados por máquinas E há algo mais, de grande relevância, a se ponde aos novos dilemas existenciais,
que formalmente indicada, não deva ser feita. cognitivas bem programadas. Todavia, interpre- acrescentar: haverá um notório ganho de efeti- sociais, epistemológicos e éticos do nos-
São três fases na evolução da experiência médi- tar a linguagem de um doente é algo refinado, vidade no trabalho do médico especialista, ten- so tempo, que devemos enfrentar em to-
ca. O tempo servindo para ampliar o conheci- requer a perspicácia e a ousadia que só o mais do em vista que o seu acionamento se dará de dos os níveis de ensino.
mento, aprimorar e refinar o saber, além de pos- alto nível de experiência pode propiciar, algo forma mais adequada. É fundamental a integra- Além do mais, em um mundo cada
sibilitar a qualidade da experiência. que está além do alcance dos robôs. ção entre o médico generalista e o médico espe- vez mais desigual, no qual a luta de clas-
Protocolos, algoritmos, exames, tecnologias; No mundo médico pós-moderno, a instância cialista para este modelo ser bem-sucedido. ses não parece mais explicar as comple-
xas tensões sociais, é preciso escutar os
sociólogos e apreender, por exemplo,
que as crenças, as ideias e os valores são
os principais agentes das mudanças so-
ciais, ainda mais quando consideramos

Impactos da criminalização da homofobia que em nossos dias — nessa aldeia glo-


bal — comunicamos e trocamos ideias e
valores com a mesma velocidade que

e a responsabilidade das empresas respiramos. Não fosse isso, vivemos a era


da técnica, do avanço tecnocientífico
sem limites que parece indicar a obsoles-
cência das humanidades e, o que é mais
JÚLIA GRANADO grave, da própria razão humana.
Responsável pela área de penal empresarial de Franco Advogados De modo evidente, do ponto de vista
do trabalho, a Indústria 4.0 promete, de

E
uma vez por todas, reduzir drasticamen-
m 13 de junho deste ano, o Supremo Tribu- sendo, não há como criar uma política pública obrigadas a adotar práticas de combate à discri- te a importância humana no que diz res-
nal Federal votou, por maioria, pela crimi- eficiente para enfrentar esse preconceito sem que minação. Isso porque, o principal motivo para peito à produção de riqueza, à organiza-
nalização da homofobia (PL nº 672/2019), haja a quantificação da efetiva violência sofrida, que a denúncia não ocorresse até a decisão em te- ção social e política, à ordem da comuni-
que será incluída na Lei do Racismo (Lei nº sendo necessária resposta imediata para essa si- la seria a insegurança da vítima. cação e da memória. Locomover-se,
7716/1989). Ante a inércia e a omissão do Poder tuação de violência. O trabalhador, movido pelo medo, não de- pensar, calcular, memorizar, escolher e
Legislativo em criar políticas públicas para prote- Com a aprovação do projeto de lei, está proibi- nuncia o autor da discriminação, contudo, ao analisar — atividades propriamente hu-
ger a comunidade LGBT, conforme bem preconi- da a proliferação do discurso de ódio e considera- se comprovar que o empregado realmente so- manas — estão migrando rapidamente
zou o ministro Celso de Mello em seu voto o Po- se, a partir da sua vigência, que constranger uma freu violência, seja verbal, seja física, em suas para as máquinas, de forma que já não
der Judiciário exerceu função atípica com a finali- pessoa por sua identidade de gênero e, ainda pior, liberdades constitucionais, a empresa será res- caracterizam atividades tipicamente ou
dade de legislar. Assim sendo, o projeto de lei de violentá-la por sua orientação sexual, tornou-se ponsabilizada na Justiça do Trabalho para repa- exclusivamente humanas. Como res-
autoria do senador Weverton (PDT/MA) modifi- crime, com pena de reclusão de dois a cinco anos. rar os prejuízos sofridos, bem como o respon- ponder a isso? Como educar nossos jo-
cou o texto do art. 1º da supracitada lei, passando Na prática, com a decisão do Supremo Tribu- sável ou responsáveis serão processados e jul- vens diante desse mundo de possibilida-
a vigorar da seguinte forma: “Define os crimes re- nal Federal, todos os crimes considerados co- gados também na Justiça Criminal. des impensadas? Como as humanidades
sultantes de discriminação ou preconceito de ra- muns, tais como, homicídio, crimes contra a hon- Assim, ainda que isso esteja sendo trabalhado podem enfrentar um mundo no qual a
ça, cor, etnia, religião, procedência nacional, ra (calúnia e difamação) e lesão corporal leve e em grandes corporações, todas elas agora deve- própria humanidade está sendo, de cer-
identidade de gênero e/ou orientação sexual”. grave, quando cometidos fundamentados na rão incluir em seus programas de Compliance to modo, tutelada pelas “coisas”?
A legislação penal não deve ser solução para orientação sexual e na identidade de gênero da formas de compreender e avaliar de forma con- Integradas ao nosso sistema formal
todas as questões sociais. O direito penal deve vítima, será aplicada uma legislação específica. tínua as condutas praticadas pelos seus colabo- de ensino, o eixo de humanidades nos
ser utilizado apenas em “ultima ratio”, uma vez Há que se alertar, em razão disso, que o am- radores no sentido de evitar violações a direitos prepara para o desenvolvimento da
que há medidas mais efetivas para combater o biente corporativo deve ser impactado direta- relativos à identidade de gênero e orientação se- competência mais humana entre to-
preconceito e a estigmatização. Entretanto, ape- mente pela aprovação da criminalização, levando xual, agora definidos como crimes. das, aquela que a inteligência artificial
sar de necessário trabalhar essas questões no em conta os atos de discriminação e a violência A implementação de um sistema de con- dificilmente atingirá: o pensamento
campo da educação, estimulando consciência e verbal, pois, segundo estatísticas da ONG britâni- trole interno acaba por prevenir danos à ima- crítico que, além de nos ensinar a ler,
respeito, o Brasil falha gravemente quanto à im- ca Stonewall, 19% de trabalhadores lésbicas, gays gem das empresas causados por atos impru- calcular e escrever, diferentemente das
plementação de políticas públicas. e bissexuais sofreram agressões verbais de seus dentes ou dolosos, por meio de mecanismos máquinas, nos previne do obscurantis-
Não há sequer dados oficiais sobre crimes de colegas ou clientes devido à sua orientação sexual. de apuração e sanção disciplinar, bem como mo, da intolerância e da tecnofilia pura,
origem homofóbica e isso é um problema, por- Qual a responsabilidade da empresa quanto a auxiliar para que não se incorra em condutas pois como escreveu Voltaire: “A supers-
que quando um LGBT chega à delegacia, sua de- isso? A postura nas empresas deve mudar, pas- lesivas ou criminosas, ainda que por impru- tição põe o mundo todo em chamas, a
núncia é enquadrada como crime comum. Assim sando ao estado de alerta, uma vez que serão dência (crimes culposos). filosofia as apaga”.

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