Você está na página 1de 6
Capitulo 6 Controle dos atos administrativos ‘Sumério: 6.1 A cscrcionariedade administrative ~ 6.2 Fungio dos érgéos de controle = Sintese 6.1 A discricionariedade administrativa E conhecida e freqiientemente repetida a frase lapidar “O problema do poder discri- Gionério é problema de interpretacao” (1940, p. 31). A norma legal é uma “moldura”, dentro da qual ca- bem, em regra, duas ou mais soluc6es de aplicacao possiveis. Sao varios os autores consagrados que fazem essa afirma- ao, se bem que a imagem de “moldura” é empregada por Kelsen. Mas a lei somente comporta uma tinica solugao de aplicagio. O agente administrativo nao pode escolher, diante de um caso concreto, duas ou mais solucées, sob a ale- gacdo de que todas se contém na moldura legal. Ele tem a liberdade de escolher a solugio que Ihe parece ser “a mais adequada”, ou “a mais razoavel”. Nisso reside a discri riedade administrativa. JA ao juiz cabe decidir se a solugo escolhida é “razoavel” ou “desarrazoada”, nesta tltima hip6tese ful Nao cabe ao juiz decidir que a solugio escolhida pelo agente administrativo é “menos razoavel” que outra. Por sua vez, a decisio judicial pode ser revista pelos tribunais, caso estes decidam considerar como “razoavel” 0 ato administrativo inando o ato administrativo por ilegalidade. 108 sre ccs cc Aus, impugnado. Nao cabe aos tribunais julgar a “razoabilidade” da decisio do juiz. Nas instdncias superiores, o que continua a ser apreciado é a “razoabilidade” do ato administrativo. © doutrinador nao se limita a descrever as varias solugées de aplicagao contidas na norma objeto de seu conhecimento (como quer Kelsen), mas aponta a sohucio cando 0 porgué da escolha. Se o raciocinio jurdico-cientifico tivesse por objetivo apenas descrever as varias solugdes de aplicacao contidas na norma constitucional ou legal, nio haveria, na pratica, ciéncia juridica. O que se pode aprender com Kelsen € que 0 conhecimento cientifico do Direito deve basear-se em uma perspectiva relativista. Vale dizer: é falso que exista uma tinica soluyéo de aplicagdo, qual seja, a solwedo “correta", “verdadeira” ou “justa”. Embora, € claro, apenas uma das solugdes possa ser objeto do ato de aplicagao e criagao do Direito. O agente administrativo néo pode escolher duas ou mais solugdes de aplicacio contidas na “moldura” legal. Escolhe “a mais adequada”, “a mais razoavel”, em sua opiniéo. Como diz Kelsen (1984, p. 467) Sendo assim, a interpretagio de uma lei nao deve necessaria- ‘mente conduzir a uma tinica solugio como sendo a tinica correta, ‘mas possivelmente a varias solugdes que — na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar — tém igual valor, se bem 4que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do érgéo aplicador do Direito, No mesmo sentido, escreve Manuel A. Domingues de Andrade (1987, p. 9) Mas importa frisa, desde ja, que a lei no tem necessariamente um sentido apenas: muitas vezes, se no mesmo em regra, ela assume varios sentidos, conforme 0 ponto de vista donde a ‘encaramos; e entio ser4 preciso escolher um deles, pois s6 com um deles pode a lei ser aplicada. E nessa liberdade de escolha entre mais de uma solu- icagdo possivel da norma legal que reside, a meu ver, a discricionariedade administrativa. Paginas ¢ paginas podem ser escritas sobre 0 assunto, mas dificilmente se precisaria dizer mais do que isso. Se 0 agente administrativo escolhe uma solugio que nao esteja contida na “moldura” legal, oato por ele pratica- do pode — ou melhor, deve — ser anulado. Ou seja: pode ou deve ter sua validade desconstitufda por via judicial. ‘Transitada em julgado, a decisao judicial passa a ser para o caso concreto. A questao de saber se, nesse caso, o juiz, ou o tribunal, ultrapassou a “moldura” legal juridicamente irrelevante. “Toda decisio judicial transitada em julgado é legal”. Nesse sentido é que se pode falar em “interpretagdo auténtica”, do juiz, tal como faz Kelsen. Nao como a tinica, mas como aquela que termina por prevalecer sobre as demais. Em sua Légica juridica, publicada originalmente em Paris, em 1979, Perelman relata um debate entre Hart € Fuller (2004, p. 72-73): Na controvérsia relativa aos problemas levantados pela interpre- taco da lei, que pés em confronto, em 1957, 0 professor Hart de Oxford e professor Fuller de Harvard, o professor Hart deu ‘como exemplo um regulamento proibindo a entrada de vefeulos ‘em um parque pGblico. Ele indicava que em certos casos-limite, bebé ou uma patinete, por exemplo, deveriam ser qualificados de vesculos, no sentido do regulamento. A isso 0 professor Fuller replica que, se uma associacio de antigos combatentes tivesse desejado erigir um monumento, em lembranca da Gltima guerra, colocando no centro do gramado principal um tanque de guerra 109 110 santo eos ee aaa arrebatado ao inimigo, dever-se-ia proibir a introducio do tanque no parque a pretexto de que é um vesculo que o regulamento no pode deixar de se lhe aplicar? Podemos fornecer exemplos menos excepcionais para ilustrar a concepgio funcional da interpretacio juridica. Suponhamos que ‘um agente de policia esteja postado a entrada do parque para fazer que se observe o regulamento municipal. Deveria impedir a entrada de uma ambulincia que veio buscar a vitima de um acidente cardi- aco, ou mesmo a de um taxi chamado para levar ao hospital uma rianga que houvesse quebrado a perna numa queda desastrada? Deveré impedir a entrada de um carro de servico encarregado de recolher as folhas € os galhos quebrados pelo vento? Oregulamento, tal como é formulado, nao prevé nenbuma exce- ‘Glo, Mas néo se pode excluir a possibilidad maior, de situacoes especiais em que se ad ativermos, nao a letra do regulamento, mas a seu espirito, 4 intengio que presidiu sua adocio, o desejo de salvaguardar a trangtilidade ¢ a seguranca em um lugar onde as crianas ¢ 08 passeantes nao sejam incomodados ou ameacados por vefculos, concebe-se que, quando esti em jogo um valor mais importante, ‘quando se trata de salvar uma vida, de tratar de um acidentado, de permitir que o servico de limpeza cumpra sua funcio, considere-se © admita-se facilmente uma excecio a letra do regulamento. ‘O exemplo ¢ retomado por Perelman em varios escritos. Escreve ele em um de seus ensaios (1996, p. 623): Suponhamos que um regulamento municipal proba a vefculos num parque pablico. Essa regra iré forcar 0 guarda a impedir a entrada de uma ambul uum passeante vitima de um enfarto? Se Fegra que nao contém, em seu enunciado, restri¢ao, subentende uma cléusula limitativa, tal como “salvo circuns- tancias graves ou excepcionais, salvo caso de forga maior”, cujo alcance compete, cada vez, ao intérprete precisar. Daf resulta que um texto é claro enquanto todas as interpreta- oes razodveis que dele se poderiam tirar conduzem & mesma solugio. Mas vé-se, de imediato, que um texto claro em grande niimero de situages pode deixar de sé-lo em circunstancias que saem do coum. Interpretada literalmente a regra municipal, o policial de guarda deveria impedir a entrada da ambulncia no par- que, porque ambulancia é Mas isso seria razodvel? Perelman ndo afirma, mas insinua que o policial permitiu © ingresso da ambulancia. Se assim agiu, ele se afastou da letra do texto regulamentar, mas nao se pode dizer que tenha violado a norma. Pelo cont tivesse seguido a regra em sua estrita literalidade, af sim, ele teria descumprido a norma regulamentar na sua “finalidade”, que era impedir que os freqiientadores tivessem seu sossego perturbado pelo transito de vefculos no parque Continuemos desenvolvendo o raciocinio a partir do exemplo dado por Perelman. Suponhamos que no final do turno de trabalho 0 policial tenha elaborado o relat6rio diério de atividades, em que mencionou o fato ocorrido € expés 0 porqué da deciséo de permitir o ingresso da am- bulancia. E de presumir-se que ele argumentou que, se sua decisao tivesse sido outra, teria posto em perigo a vida do enfartado. Essa argumentacao constituiu a “motivagao” do ato que praticou.*® Continuemos a supor. motivados 0s ats admiistratives. am 12 O relatério foi submetido ao Gonselho de Adminis- tragéo do parque. Um dos integrantes desse Conselho questionou a argumentacio do policial, alegando que mais razodvel teria sido permitir o transporte do enfartado na ‘maca, levando-o até a ambulancia, mantida fora do parque em estrita obediéncia 4 regra regulamentar. J o segundo integrante ponderou que essa solucao importaria em maior risco para o doente, pelo que entendia que mais razodvel foi a decisao adotada. O presidente, por sua vez, argumentou, acertadamente, que nao cabia ao Conselho, na qualidade de érgao de controle, dizer se a decisao do policial foi ou nao a mais razodvel, ¢ sim julgé-la razodvel ou desarrazoada. Este exercicio de imaginacio serve para mostrar que havia, no caso, pelo menos duas solucées possiveis de in- terpretacao e aplicacio da norma: permitir o ingresso da ambulancia ou autorizar a remocdo do enfartado na maca. Ambas eram razodveis. Cabia ao policial escolher, dentre elas, a que lhe parecia mais razodvel. Essa possibilidade de escolha estava contida na margem de discricionariedade a ele atribuida pelo regulamento municipal. O Conselho somente poderia sancionar o agente ptiblico se considerasse sua decisio desar- razoada. E. nesse caso deveria motivar 0 ato de controle, que, por sua vez, poderia ser revisto em uma instancia superior. Essa instancia superior — por exemplo, o Prefeito — poderia: (a) confirmar a decisio do Conselho, por en- tender que a solucao adotada pelo policial tinha sido real- mente desarrazoada; ou (b) anulé-la, caso entendesse que a solugio adotada pelo policial havia sido razodvel. Note-se que se 0 Prefeito anulasse a decisio do Conselho nao seria sob o argumento de que esta teria sido desarrazoada, ¢ sim de que 0 Conselho teria extrapolado o limite da competéncia a ele atribuida como érgdo de controle. romonoaawenne | 113 Chaim Perelman, em outros ensaios inclufdos em seu Etica e direito, volta ao exemplo do guarda no parque. Veja- mos © que diz em outra passagem (1996, p. 419): (© guarda, incumbido de zelar pela aplicagio do regul referente A circulacao de veiculos dentro do parque, ira p entrada de uma ambulancia chamada para uma crianca ferida ou para um velho, vitima de uma crise cardiaca? E se se tratar, no de uma ambulancia, mas de um taxi? Se se tratar de transpor- tar alguém que torceu 0 pé? Ou de um convalescente que anda com dificuldade? Vé-se de imediato que nao se pode tratar de explicitar os termos do regulamento. Cumpre compreender a finalidade deles e admitir a existéncia de excecées quando esta em jogo um valor mais importante. Uma interpretacio da lei, uma dogmatica juridica nao pode fazer abstracio da rato legis € deve recorrer aos jufzos de valor que a aplicacao da lei necessita. ;parecem inevitaveis as controvérsias quanto splicaco da lei, € porque elas fazem parte da propria vida do direito. & por causa desse fato que, contrariamente ao que sucede ‘ca, por exemplo, em que podem ser encontradas iformes, € indispensavel, em direito, recorrer a juizes para por fim aos contflios. £ uma ilusao crer que o legislador pode prever todos os casos. Queiré escreveu (1940, p. 21): Por sua vez, a norma € obra de um legislador, e seria insensato negar que a este legislador ¢ impossivel, material elogicamente impossivel, para muitissimas hipsteses, transmitir ao agente mais do que ordens e enunciar os fatos com conceitos de cardter em certa medida vago € incerto, de tal maneira que 0 agente a0 executar essas ordens e interpretar esses conceitos deve fixar- se, devendo agir, em uma dente iris interpretagies posstuisdestes ‘dtimos. (grifei a parte final) E exatamente af que reside 0 conceito da discriciona- riedade administrativa. Repito, com Queiré: “O problema do poder discriciondrio ¢ problema de interpretagao 4 seta conc cmc at Em nossa atividade de operadores do Direito, defron- tamo-nos constantemente com a ilusdo de que a lei é sempre clara, o que confunde é a interpretacao. E comum ouvirmos duas afirmagées, ditas em regra por pessoas sem formacao juridica (mas nao exclusivamente). Uma é a de que lei boa € aquela que nao comporta interpretacdes. Outra é a de que advogado 86 serve para confundir. Thomas More, em sua Utopia, dizia que os utopianos “recusam radicalmente a intervencdo dos advogados, que expdem as causas com demasiado refinamento e interpre- tam as leis com demasiada astticia” (1997, p. 128). Por sua vez, Eméric Crucé, em Le Nouveau Cynée, citado por Perel- man, diz que (1996, p. 373): © texto das leis € claro e inteligivel. Se ha alguma falha, que os juizes a supram com sua sabedoria e eqiiidade, sem recorrer a milhares e milhares de intérpretes que nao coincidem mais entre si que os rel6gios e causam escripulos e distragbes de espirito pela diversidade de suas opiniées. Isso gera e alimenta os processos, € 08 faz durar tanto tempo que nao se Ihes pode ver o fim. E por isso que os povoados de espanhis nas {ndias tinham razo de rogar ao seu Rei que nao Ihes enviasse nenhum advogado. Pois 0s povos grosseiros que vivem de modo natural estio mais 4 vontade do que os que empregam sua sutileza em embustes, As leis no costumam ser claras. £ falso 0 brocardo, que aprendemos nos bancos de faculdade, de que “In claris, non fit interpretatio”, ou seja, diante da clareza da lei nao cabe interpretagao. A clareza resulta da interpretagdo. Por isso € que muitos juristas chegam a sustentar a opiniao (com a qual ndo concordo) de que é a interpretacio — e nao a norma — que produz o Direito.®* (1993, . 83-84) cits Tarlo, para quem a notmajudica nso 0 pressupes- indicar cas coisas distntas. A primeira, que a norma no adquie verdadeira exists ‘A norma néo deriva ou resulta da interpretacao. A norma é uma abstragio e pré-existe a interpretagio. O racio- cinio juridico desdobra-se, a meu ver, em quatro momentos logicos distintos. H4 a compreensio do texto normativo, quando se apreende seu significado lingiifstico. A partir dessa compreensio, interpreta-se a norma, constitucional ou legal, utilizando-se as técnicas jurfdicas adequadas, ou, em outras palavras, conjugando-se os métodos filolégico, logico, teleolégico e sistematico. Interpretada a norma, 0 intérprete descreve-a, mediante a formulagao de uma pro- posicdo em que se contém as varias solucdes de aplicacio possiveis, Por tiltimo, sustenta-se, mediante argumentacio, a solucdo que parece ser a mais razodvel. Esses quatro momentos légicos nem sempre obedecem a uma ordem cronolégica. Com freqiiéncia, um jurista experiente che- ga, no campo de sua especialidade, a argumentagio antes de ter, pelo menos conscientemente, percorrido as etapas anteriores. Assim como nao ha leis claras, nao hé interpretacdio ver- dadeira. Ao interpretar textos legais, deles se extrai o sentido que, ao intérprete, parece ser o mais razodvel. Ao escrever um texto doutrindrio, elaborar uma peticao ou um arra- zoado juridico, produzir um ato administrativo ou, ainda, proferir uma decisio judicial, o operador do Direito (advo- gado, parecerista, membro do Ministério Pabl administrativo ou magistrado) argumenta em favor de sua interpretacdo. E nisso que reside basicamente a “légica do ‘até que se complete ainterpretacSo. A segunda, quea norma “consttuy un presupvesto més dela tarea de comprensibn, come puede seri [a tradcion o la cultura jurdica en [a que opera al intrprete. Acrescenta ele: “Ambas poscones resulta de dif deensa ‘ara quienes opinan que el sistema normativo presenta una realidad propia dstnta de lo que conetituye el proceso de interpretacn y apliacén 15 116 sorta cats OWA 0 aA razodvel”, contraposta a légica formal e dedutiva. “Logica do razoavel” da qual sao expoentes méximos o belga Chaim Perelman e o mexicano Luis Recaséns-Siches.* 6.2 Fungo dos érgaos de controle Ao Grgio de controle, compete verificar se, no caso concreto, a solugio de aplicacao escolhida pelo agente administrativo foi razoavel ou desarrazoada. Se razodvel, © ato praticado foi legal. Se desarrazoada, o ato foi ilegal, devendo ser sancionado com a anulacio. Nao lhe compete emitir juizo sobre a solugio que lhe areca ser “a mais razoavel” Se o fizer, estard extrapolando 05 limites da fungao que Ihe é atribuida pelo ordenamento juridico. Nao lhe cabe administrar, e sim julgar. No momento em que ultrapassa esse controle gera inseguranca juridica. O administrador deixa de buscar, dentro da legalidade, a solugao de aplicagio que melhor atenda aos interesses ptiblicos sob sua guarda. Porque néio sabe 0 que o 6rgdo de controle faria em seu lugar! E incompativel com o regime democritico a existéncia de uma Administragéo Pablica cujos atos nao sejam passiveis de controle. Mas igualmente nao pode existir uma Admi- nistracdo Publica séria, competente e responsdvel sem que haja uma delimitacao clara entre as func6es de administrar € de julgar. % A rlatvdade da interpretago 6 admitida, ato Gnico, Xl, do art. 2°, 20 i a forma que melhor to do pubiico a que se crige,vedada apicaczoretroatva de nova ‘eus). Admite ali, portanto, que uma norma legal pode ter ierpretacéo, resultante de um novo entendimento sobre as solugées posses be aplcacs. Sintese 1“O problema do poder discriciondrio é problema de interpretacao”, diz Afonso Rodrigues Queiré. 2 O agente administrativo, diante de mais de uma solucdo possivel de aplicacdo da norma legal, pode escolher aquela que lhe pareca ser “a mais razoavel”. Para identifi- car as solugdes possiveis, deve interpretar a norma legal, utilizando-se dos métodos filolégico, légico, sistematico e teleolégico. 3 Ao 6rgao de controle cabe julgar se a solugao esco- ida pelo agente administrativo foi ou nao razodvel. Ele jo tem competéncia para decidir qual deveria ser a solu- do “mais razoavel”. Vale dizer: nao lhe cabe administrar, sim julgar. "7

Você também pode gostar