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Série Conflitos Internacionais

N. 01 - Abril de 2014

RÚSSIA E POLÍTICA DE INFLUÊNCIA

Marcelli Kulike1
Sérgio L. C. Aguilar2
Durante a Guerra Fria a União das cupou em manter ou estender sua por meio do desenvolvimento de
Repúblicas Socialistas Soviéticas área de influência geopolítica uma suas potencialidades militares,
(URSS) desenvolveu uma política vez que tinha o objetivo de apagar entendendo que “os EUA não de-
externa voltada a impedir a inter- por completo qualquer atitude que sejavam coexistir com o gigante
venção ocidental nas suas repúbli- relembrasse a URSS e desejava in- eurasiático russo e buscavam atrair
cas e nos países sob sua influência, serir a Rússia no mundo neoliberal as ex-repúblicas soviéticas para o
especialmente os que faziam parte capitalista. O governo acreditava seu lado”.4
da chamada “Cortina de Ferro”. que somente a cooperação com a
Essa política se alterou com o fim comunidade internacional garanti- Os realistas mostravam que com-
da URSS. No entanto, muito das ria a segurança e a prosperidade do preendiam melhor a conjuntura
práticas utilizadas naquele perío- país. Nesse período de readaptação geopolítica da Rússia após a Guer-
do voltaram com força na Rússia de sua economia para a economia ra Fria e acreditavam que uma
atual. de mercado, a Rússia vivenciou aliança com China, Irã e Índia5 se-
diversas dificuldades como de- ria uma “geoestratégia à domina-
O colapso da URSS em 1991 re- sajustes econômicos, corrupção, ção ocidental na Eurásia”.6
sultou em 15 Estados independen- desmonte dos parques industriais
tes que, por meio da abertura eco- estatais e sucateamento das forças Os chamados Expansionistas Re-
nômica ao capitalismo e política armadas.3 volucionários, escola que analisa
à democracia, passaram a se ligar pensamentos geopolíticos russos,
cada vez mais com o Ocidente. Em Para os internacionalistas-idealis- utilizavam as teorias clássicas de
conseqüência, a Rússia perdeu po- tas, a Rússia não seria mais uma Mackinder, Haushofer e Mah-
der e influência sobre essa região e potência e o governo de Yeltsin an para afirmarem que o sistema
precisou se reposicionar no cená- estava determinado a implantar os mundial continuaria bipolar com
rio geopolítico.1 Enfraquecida pela valores ocidentais na sociedade. uma potência no Atlântico e outra
transição do socialismo para o ca- Para os realistas, essa postura era na Eurásia. Logo, assim como os
pitalismo, a Rússia só retornaria ao equivocada, assim como a inter- realistas, acreditavam que a expan-
cenário geopolítico internacional pretação da realidade do país. O são russa seria uma forma de ga-
com o governo de Vladmir Putin, governo era composto por antigos rantir a segurança do país.7
iniciado em 1999. Entre 1991 e membros do partido comunista e
1998, no governo de Yeltsin, hou- da burocracia soviética, que consi- Ao assumir a presidência em 1999,
ve o chamado “vácuo geopolítico”, deravam o poder como ferramenta Vladmir Putin iniciou o ressur-
pois o país não tinha uma orienta- de controle e equilíbrio. Logo, a gimento da geopolítica russa. A
ção ideológica e/ou geoestratégica Rússia tinha que crescer e igualar estratégia da “colaboração” deu
bem definida.2 Yeltsin não se preo- seu poder ao dos Estados Unidos lugar a um processo de recupe-

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ração do poder do Estado russo e são dos programas nucleares nor- Dmitri Medvedev assumiu a presi-
sua consolidação como potência.8 te-coreanos e iranianos e colabo- dência da Rússia em 2008 e seguiu
Houve a presença expressiva do rou com a construção de oleoduto a política de Putin. Ambos repre-
país em processos eleitorais nas para exportação de petróleo para sentam a ascensão da política de
antigas repúblicas soviéticas “com os EUA. Com os atentados de 11 poder em prol dos interesses do
a presença do próprio presidente de setembro de 2001, o governo Estado, concentrando esforços na
e vários ministros em comícios e russo se aproveitou da política de reconquista do domínio geopolíti-
outros eventos pré-eleições, como “tolerância zero” ao terrorismo dos co sobre a área da antiga URSS e
tentativa de eleger políticos liga- norte-americanos, para aumentar o firmando parcerias estratégicas.
dos à Rússia e não ao Ocidente”.9 rigor frente a grupos separatistas,
Dois exemplos importantes foram classificando alguns deles como Medvedev iniciou um esforço de
as eleições presidenciais da Ucrâ- terroristas, bem como apoiar ações reformar a estrutura militar e o sis-
nia, em 2004, quando a Rússia foi das ex-repúblicas soviéticas na re- tema de armas, e desenvolver a in-
acusada de ter participado de frau- pressão a movimentos separatistas dústria militar, uma vez que entre
des eleitorais, e em 2005, quando internos.12 Com a China, estabele- 1993 e 2007 os militares não tive-
o serviço secreto russo esteve sob ceu parceria estratégica, por meio ram seus armamentos renovados.
suspeição de ter causado o assas- da Organização da Cooperação de O programa de armamento, plane-
sinato do Primeiro Ministro da Xangai (Shanghai Cooperation Or- jado para ser implementado em 10
Geórgia.10 ganization – SCO) que tem o ob- anos, foi estimado em 650 bilhões
jetivo de estabelecer alianças mi- de dólares com prioridade para
A política externa da Rússia nes- litares e de combate ao terrorismo, reequipar as forças estratégicas de
se período caracterizou “um mo- fundamentalismo religioso e sepa- foguetes e as tropas de pronto-em-
vimento gradual do país em bus- ratismo na região da Ásia.13 prego e preparar as unidades con-
ca do poder e da influência” que tra-guerrilha e contra-terrorismo.15
possuía na Guerra Fria, processo Neste século XXI, o pensamento
que tenderia a “se tornar cada vez geopolítico russo tem duas esco- Na área marítima, a Rússia enviou
mais nítido e delimitado no cená- las como base. A Escola Ociden- uma petição à Comissão da ONU
rio internacional”.11 É interessante tal, que tem como destaque Dmitri sobre a Delimitação da Plataforma
ressaltar que, no entanto, a Rússia Trenin, afirma que a Rússia perdeu Continental, pedindo o reconheci-
não conseguiu impedir que antigos seu papel histórico na Eurásia e mento de sua plataforma em dire-
Estados sob sua influência como a defende um país com valores pu- ção ao Pólo Norte.16 A Política Ma-
Estônia, Letônia, Lituânia, Polô- ramente europeus onde os países rítima Nacional, na parte que trata
nia, República Tcheca, Eslováquia, islâmicos da Ásia Central, prin- do Ártico, apresentou a necessida-
Hungria, Romênia e Bulgária, fos- cipalmente o Afeganistão, seriam de de defender as zonas marinhas e
sem incorporados pela União Eu- ameaças à segurança russa. A Es- oceânicas e a importância da Rota
ropéia e a OTAN. cola Eurasiana, que tem com prin- do Mar do Norte para o desenvol-
cipal ideólogo Aleksandr Dugin, vimento do país; garantir a prote-
As relações com os Estados Unidos parte do princípio da Teoria Terres- ção da soberania russa; restringir
(EUA) se tornaram, nesse período, tre de Mackinder para afirmar que atividades navais estrangeiras em
um misto de tensões e entendimen- a Rússia tem que ser o centro da áreas restritas acordadas bilateral-
tos. Putin atacou a política norte-a- Eurásia e assim, por conta da sua mente ou multilateralmente; as-
mericana para o Oriente Médio, a posição geográfica e seus recursos segurar os interesses nacionais na
invasão do Iraque e a intenção de naturais, conseguiria restabelecer Rota do Mar do Norte; atualizar e
instalar um escudo antimíssil na seu poder e segurança, tornando-se operar de forma segura a frota de
Europa. Mas, apoiou iniciativas novamente uma potência global.14 quebra-gelos nuclear; e consolidar
de países ocidentais para a suspen- os esforços e os recursos para o

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desenvolvimento de navios, mari- de a Guerra Fria, época em que a acordo com a Rússia que reduzia
nha, estuários e portos fluviais no URSS instalou uma base de apoio as barreiras comerciais entre os
Ártico.17 Assim, a Rússia colocou e de manutenção naval na costa do dois países e beneficiava a Ucrânia
o Ártico como uma de suas prio- Mediterrâneo e perdoou uma dívi- com um investimento russo de 15
ridades, identificando-o como pro- da de 9,8 milhões de dólares aos bilhões de dólares.
penso a um conflito militar no fu- sírios. Um tratado de cooperação
turo, particularmente em razão da tornou a Síria um dos maiores im- No início de 2014, as negociações
exploração de seus recursos.18 portadores de armamento russo. entre o governo e a oposição, que
As amplas relações abrangem tam- representava os manifestantes,
Em agosto de 2008, após uma série bém as áreas agrícola, indústria de não se chegou a um acordo e vá-
de ações de separatistas da Ossétia aço e metal-mecânica, transporte rias instalações do governo foram
contra aldeias e cidades da Geór- aéreo e exploração e distribuição invadidas, especialmente na parte
gia, o governo nacional autorizou de gás e petróleo.21 oeste do país. Em meio a crise, o
a invasão da Ossétia do Sul na presidente foi afastado da presi-
tentativa de retomar o controle do Apesar da pressão internacio- dência, deixou o país e eleições
território o que provocou a invasão nal para retirar o presidente sírio foram convocadas para o mês de
militar russa.19 O conflito que se Bashar Al Assad do poder, a Rús- maio.
dava por escaramuças esporádicas sia manteve a política de assegurar
e guerras de pequena duração e in- as valiosas parcerias e explorações A Criméia, república ucraniana au-
tensidade, dessa vez mostrou, sob energéticas que tem na região. tônoma com maioria da população
a justificativa de proteger cidadãos Além disso, a perspectiva de uma russa, teve seu parlamento local to-
russos, a disposição russa de se en- intervenção seria desfavorável para mando por um comando pró-Rús-
volver na ex-república com maior negócios russos com a Síria. Após sia que nomeou um novo premiê. A
intensidade militar e a determina- o ataque com armas químicas nos Criméia é uma península que desde
ção de fazer valer seus interesses, arredores da capital Damasco, em o século XVIII foi parte da Rússia.
especialmente em regiões priori- agosto de 2013, o governo russo Em 1954, Nikita Kruschev transfe-
tárias como o Cáucaso. A Rússia foi fundamental em não permitir riu a Criméia para a Ucrânia como
aumentou a presença na Ossétia e uma resolução da ONU que permi- parte das definições das fronteiras
na Abikházia, províncias separatis- tisse uma intervenção na Síria. das repúblicas que atendiam exclu-
tas da Geórgia, além da Ossétia do sivamente aos interesses da União
Norte, Chechênia e Inguchênia, no No início de 2014 a opção eura- Soviética e do Partido Comunista.
seu próprio território. O acordo de siana da geopolítica russa nova- Com a independência ucraniana,
cessar fogo negociado pela Fran- mente prevaleceu. Em novembro ao final da Guerra Fria, a Criméia
ça em nome da União Européia, de 2013, o presidente ucraniano conseguiu uma autonomia dentro
assinado ainda em agosto daquele Viktor Yanukovych, anunciou que do novo Estado. Desde então, as
ano, permitiu a manutenção de tro- não assinaria um acordo de livre tensões separatistas foram atenua-
pas russas na Ossétia do Sul e na comércio com a União Europeia, das pela Ucrânia com a ajuda rus-
Abkhazia conformando uma zona pois preferia favorecer as rela- sa por meio de acordos. Além da
tampão com o restante da Geór- ções com a Rússia. O pronuncia- população majoritariamente russa,
gia.20 mento fez com que milhares de a Criméia é importante para a Rús-
ucranianos iniciassem uma onde sia por estar localizada às margens
No campo político, atualmente, de protestos, que provocou uma do Mar Negro, e ser um porto de
o principal papel desempenhado repressão violenta do aparato de águas quentes que pode ser utili-
pela Rússia tem se dado na guerra segurança do Estado com algumas zado durante todo o ano, diferen-
civil da Síria. As relações entre os mortes e centenas de feridos. Em te dos portos russos no Norte do
dois países são importantes des- seguida, Yanukovych assinou um país. Como parte dos acordos com

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a Ucrânia, a Rússia manteve uma as bases militares ucranianas na- e que, quando os acordos políti-
base marítima em Sebastopol. quele território. Apesar da reação cos não são suficientes, o uso do
dos países ocidentais liderados pe- poder torna-se a opção principal.
Em meio à crise entre a Ucrânia e los Estados Unidos e os membros Pode ser ainda cedo afirmar que a
a Rússia, o parlamento da Criméia europeus do G7, que implicou em Rússia voltará um dia a ter o mes-
declarou sue interesse em se tor- pacotes de ajuda financeira à Ucrâ- mo peso geopolítico que teve du-
nar parte da Rússia. Um referendo nia, sanções contra a Rússia, de- rante a Guerra Fria, no entanto, a
popular realizado em 16 de mar- clarações de não reconhecimento postura atual demonstra que o país
ço apontou que aproximadamente do referendo, o governo russo con- ainda exerce um papel importan-
95% da população desejava se tor- sumou a anexação da Criméia.22 te, especialmente nas questões da
nar parte do território russo. Após segurança internacional e que seu
rápido trâmite legislativo, em dois Os exemplos acima indicam que poder (militar, econômico, políti-
dias o presidente Putim assinou é clara a política russa de garantir co) é levado em consideração pe-
decreto incorporando o território e aumentar sua área de influência los demais atores do sistema inter-
e enviou tropas russas para ocupar na área da antiga União Soviética nacional.

14 SOUZA, 2012, op. cit.


Marcelli Kulike Discente do Curso de Relações Internacionais
e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Conflitos 15 Dmitry Gorenburg. Challenges Facing the Russian Defense Establishment. ISN, 22
Internacionais (GEPCI) e do Observatório de Conflitos
Dec. 2011. Disponível em http://www.isn.ethz.ch/isn/Digital-Library/Special-Feature/
Internacionais (OCI).
Detail?lng=en&id=156370& contextid774= 156370&contextid775=156366&tabid=1453434465.
Sérgio L. C. Aguilar Professor Assistente Doutor do Departamento
Acesso em 13 Dez. 2013.
de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da UNESP – Campus de Marília. Coordenador 16 STRUCK, Doug. Russia’s Deep-Sea Flah-Planting at North Pole Strikes a Chill in Canada.

do GEPCI e do OCI. Washington Post. 7 ago. 2007. Disponível em http://www.washingtonpost.com/wpdyn/content/

article/ 2007/08/06/AR2007080601369.html. Acesso em 18 jun. 2012.


1 VERXIEUX, Bernardo Hoffman. Rússia e a redefinição do Leste europeu. Belo Horizonte: PUC/
17 FEDERAÇÃO RUSSA. Pr – 1387. Maritime Doctrine of Russian Federation 2020. Moscou, 27
Minas, 2005. Disponível em http://pucminasconjuntura.wordpress.com. Acesso em 29 nov. 2013.
2 SOUZA, Danilo Rogerio. A Nova Geopolítica Russa e o Eurasianismo. Revista de Geopolítica
jul. 2001.
[on-line], v. 03, n. 2, Natal, jul/dez 2012. Disponível em: http://www.revistageopolitica.com.br/ ojs/
ojs2.2.3/index.php/rg/article/download/71/56. MAZAT, Numa. SERRANO, Franklin. A Geopolítica 18 KEFFERPUTZ, Roderick. BOCHKAREV Danila. Expanding the EU’s Institutional Capacities in the
das Relações entre a Federação Russa e os EUA: da “Cooperação” ao Conflito. Revista Oikos [on-
line], v. 11, n. 1, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em http://www.revistaoikos.org/seer/index.php / Arctic Region. Berlim: Heinrich Boell Foundation, 2008.
oikos/article / view/293. Acesso em 29 nov. 2013.
19 Rússia e Geórgia ‘estão em guerra’, diz Putin. Folha de São Paulo, 9 ago. 2008, p. A 10.
3 SOUZA, 2012, op. cit.

4 SOUZA, 2012, op. cit., p. 63. 20 Sob pressão, Geórgia assina cessar-fogo com a Rússia. Folha de São Paulo, 16 ago. 2008, p.

5 A Índia, além de ser a maior compradora de armamento russo, se firmou como importante A 14.
parceira comercial a partir de 2000. O intercâmbio comercial bilateral aumentou quase 500% e 21 TOMÁS, João Maria. A Rússia e a Síria. Dezembro, 2012. Disponível em http://www.dn.pt/
foram firmados acordos nos campos da energia nuclear, exploração de petróleo e gás sacalina,
metalurgia e cooperação técnico-militar.
inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2314701&seccao=Convidados&page=-1. Acesso em 29
6 SOUZA, 2012, op. cit., p. 63.

7 Ibid. nov. 2013.


22
8 MAZAT; SERRANO, 2012, op. cit. Disponível em http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/03/entenda-o-que-muda-na-

9 VERXIEUX, 2005, op. cit., p.1. crimeia-apos-referendo-aprovar-adesao-russia.html e http://operamundi.uol.com.br/conteudo/

10 Ibid. noticias/34477/ anexação+de+crimeia+a+russia+e+destaque+da+semana+em+opera+mundi.


11 VERXIEUX, 2005, op. cit., p.2.
shtml
12 VERXIEUX, 2005, op. cit.

13 MAZAT; SERRANO, 2012, op. cit.

Série Conflitos Internacionais é editado pelo Observa- Série Conflitos Internacionais mais recentes:
tório de Conflitos Internacionais da Faculdade de Filosofia
e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista Julio de
Mesquita Filho (UNESP) – Campus de Marília – SP
Editor: Prof. Dr. Sérgio L. C. Aguilar
Layout: Caio Gustavo Carrera Pereira e Frederico Lorca
ISSN:
Comentários para: oci@marilia.unesp.br
Disponível em: www.marilia.unesp.br/#oci

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