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João Carlos Salles

CIÊNCIA E RELIGIÃO

DOSSIÊ
INTRODUÇÃO

João Carlos Salles*

Ciência e religião parecem termos opostos e resses da comunidade, pois firmados antes com o
inconciliáveis. Não por acaso, procurando muitas sagrado ou o divino.
vezes anular-se reciprocamente, os termos se con- Também, conservadas suas dimensões, não
servam, em muitos sentidos, como complementa- deixa de ser de interesse científico o conjunto de
res. Assim, suas dimensões se atraem e se repe- manifestações religiosas, passíveis de análise exte-
lem mutuamente, talvez por sua natureza, em am- rior, nem deixa de ter interesse religioso a eventu-
bos os casos, visar à universalidade, cobrando al conversão íntima de acadêmicos, que não pare-
ambas dos praticantes uma adesão íntima. Em cem encontrar, na profissão de sua fé, um obstá-

CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 69, p. 429-431, Set./Dez. 2013


muitos momentos, parecem constituir visões de culo a suas pesquisas. De modo mais radical, a
mundo incomensuráveis, cujos interesses e pro- tensão entre ciência e religião talvez dê testemu-
cedimentos levariam a respostas e problemas nho do impasse outrora descrito por Wittgenstein,
imiscíveis. Por vezes, porém, parecem conviver e, quando afirmou tanto a irrelevância do discurso
mesmo, se solicitar, como se, juntas, satisfizessem científico (incapaz de tocar questões essenciais da
a necessidades da vida humana. Não raro, um cam- vida e de referir-se ao mundo como um todo, do
po almeja a suficiência por caminhos perigosos, ponto de vista do altíssimo, pois situado no mun-
como os que levam a idolatrar a razão, chamada, do), quanto a ausência de significado da adesão ao
então, a proferir respostas científicas aos mistérios mais elevado, cuja relevância irrecusável não sa-
da vida, ou os que, ao contrário, pretendem limi- tisfaria, contudo, as condições de uma linguagem
tar a investigação científica, em função de acordos que esteja em ordem e, por isso, seja capaz de di-
que sequer passariam pela manifestação dos inte- zer o mundo, de enunciar o que é o caso.
Em meio a essa tensão, este dossiê tem um
* Doutor em filosofia. Professor da Universidade Federal
da Bahia com pesquisa apoiada pelo CNPq e pela FAPESB. interesse duplo. Em primeiro lugar, reúne um con-
Membro da Academia de Ciências da Bahia.
junto de trabalhos de membros da Academia de
Estrada de São Lázaro, 197. Cep: 40210-730. Federação –
Salvador – Bahia – Brasil. jcsalles@ufba.br Ciências da Bahia, que, reconhecendo a importân-

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cia do tema, se mobilizaram em reuniões, ao longo amostra, sendo exemplar de como o tema da reli-
de 2012 e 2013, com debates e exposições, segun- gião não deixa indiferentes pesquisadores dedica-
do perspectivas diversas. Aqui, portanto, é apre- dos ao trabalho científico. Esse vínculo manifes-
sentada uma seleção dos estudos realizados se- tou-se, então, em arco amplo, como bem podem
gundo procedimentos característicos da comuni- verificar os que apreciarem este dossiê. Com isso,
dade científica, no grau elevado de sua inserção têm aqui lugar tanto a manifestação mais distante,
em uma Academia de Ciências. Vale, então, regis- a análise sociológica de um tema religioso, como
trar a singularidade da Academia de Ciências da ainda a pauta mais íntima, aquela capaz de dispor
Bahia, que nada tem da modorra própria de ou- o cientista a uma reflexão que, sem esperança de
tros centros, sendo hoje um espaço de interação resposta, o mobiliza com todas suas forças intelec-
acadêmica. Para esse seu traço contribui, decerto, tuais e lhe provoca o espanto. Como amostra, nós
a liderança do Dr. Roberto Santos, especialmente a julgamos, enfim, significativa em quantidade e
amparado no dinamismo de outros membros da qualidade, sobretudo por seu recorte, que apenas
Academia, a exemplo de Edivaldo Boaventura e um olhar externo pode doravante estudar e julgar.
Eliane Azevêdo, cujos nomes destacamos como Os autores principais são, portanto, mem-
uma justa homenagem, pois esses três membros bros da Academia de Ciências, com claro desta-
da Academia foram os primeiros a cobrar a conti- que acadêmico em suas respectivas áreas. Amílcar
nuidade dos nossos debates, que já geraram, ante- Baiardi, professor titular aposentado da Universi-
riormente, uma publicação sobre ética e ciência. E, dade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e pro-
como podemos ver, há uma clara continuidade fessor da Universidade Católica do Salvador, em
entre a investigação sobre ética e a investigação seu trabalho sobre a percepção da ciência por líde-
sobre a religião, ao menos no aspecto mais essen- res religiosos do Recôncavo Baiano (outrora o mai-
cial de ambos os temas tocarem valores e o que, or centro comercial da província), contou com a
em suma, ressalvada sua ineludível relevância, não colaboração de doutorandos de seu grupo de pes-
se deixa expressar, salvo pelo estudo de suas ma- quisa, Fabiana Mendes e Wellington Rodrigues. O
nifestações exteriores como práticas sociais. Recôncavo Baiano (para mim, aliás, ainda o centro
Outro aspecto da Academia de Ciências da do universo) comporta uma diversidade de cren-
Bahia merece ser destacado, pois, acreditamos, ex- ças, marcadas quer pela gênese cristã, quer pela ori-
plica parte de seu dinamismo. A Academia de Ci- gem africana. Convivendo sem conflito, são, contu-
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ências, reconhecendo-se baiana, não se calcou sim- do, bastante diversas as reações dessas matrizes re-
plesmente em modelos exógenos, que costumam ligiosas a símbolos bem estabelecidos da ciência,
restringir-se às “ciências duras”, com raro espaço reações que o trabalho pretende sistematizar.
até para as ciências humanas, que, antes, neles fi- Dante Galeffi, professor da Faculdade de
gura por força de concessão magnânima. Nossa Educação da Universidade Federal da Bahia
Academia de Ciências, ao contrário, abriga todas as (UFBA), mostra seu refinamento filosófico na lei-
dimensões que, na Bahia, atingiram excelência aca- tura cuidadosa de Henri Bergson, que toma como
dêmico-científica e, com isso, representatividade. ponto de partida. Escolhe, assim, um dos veios
Logo, em nosso caso, por nossa história e pelo mais ricos na contemporaneidade para interpelar
rigor das contribuições científicas nesses campos, os caminhos diversos do conceito e da intuição.
a Academia acolhe, inclusive, as artes e a filosofia. Com isso, com seu fôlego para percorrer o vasto
Acreditamos que tal acolhimento favorece e exige acervo bergsoniano, pode dirigir-se com originali-
um clima de debates, bem como temas como o que dade às dimensões da Mecânica e da Mística.
ora constitui este dossiê. O texto de Eliane Azevêdo, professora
Em segundo lugar, além de comportar estu- emérita da Faculdade de Medicina da Bahia (UFBA)
dos, este dossiê tem o interesse próprio de uma e uma de nossas mais destacadas cientistas, com

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reconhecido trabalho em genética, mostra bem como sistir à tirania da transcendência, por quaisquer ra-
a temática da religião acompanha sua reflexão, a zões com que ela se pretenda vindicar. Com isso,
ponto de ela poder recuperar, na vasta tradição oci- pode falar da perspectiva de um ateísmo, significan-
dental, a intrincada confluência entre saberes religi- do-o como uma prática existencial emancipatória.
osos e os interesses da ciência, com o que pôde Enfim, Paulo Costa Lima, professor da Es-
ainda refletir, de modo instigante, sobre o interesse cola de Música da UFBA, serve-se do célebre texto
atual em tal confluência de ciência e religião. “O futuro de uma ilusão”, de Sigmund Freud, como
Manuel Veiga, professor emérito da Escola ponto de partida de sua reflexão. A partir daí, como
de Música da UFBA, faz aproximar sua investiga- é usitado nos trabalhos de Paulo, tudo é surpresa,
ção de etnomusicólogo do mistério mesmo que faz a começar do contraponto inicial com John Lennon
coevas a religião, a língua e a música. Faz assim, a e da fórmula da “libideme”, tomada “como equi-
seu modo (e sem blasfêmia!), obra de genealogia valente gozosa da episteme epocal proposta por
no melhor sentido filosófico, qual seja, o de co- Foucault”. E assim, como é próprio do seu texto (e
lher o sentido de um termo, uma ação, uma insti- de cada um dos que compõem o Dossiê), pode-
tuição, no desafio mesmo de sua gênese, quando mos deliciar-nos com uma reflexão original, capaz,
as forças do tempo retiram um corpo qualquer do em seu caso, de incidir sobre a vida e a arte, e
limbo da existência, com boas ou más razões. também capaz, no caso de todos os textos, de pro-
Pasqualino Magnavita, professor emérito da duzir ou provocar “questões urgentes e aparente-
Faculdade de Arquitetura da UFBA, dialoga com mente não resolvíveis”.
pensadores contemporâneos (em especial, com
Deleuze), desdobrando a reflexão no campo da ten-
Recebido para publicação em 14 de agosto de 2013
são entre saber e poder, por cuja denúncia pode re- Aceito em 26 de agosto de 2013

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João Carlos Salles – Doutor em filosofia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Sua experiência na
área de filosofia volta-se, sobretudo, na perspectiva da epistemologia e da filosofia da linguagem, para a
história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase no empirismo clássico e na obra de Ludwig
Wittgenstein. Com bolsa do CNPq, desenvolve a pesquisa “A gramática da experiência: o anímico na filosofia
da psicologia de Wittgenstein”; e, com recursos do PRONEX (FAPESB/CNPq), coordena o projeto Filosofia e
Ciências. Além disso, coordena o Grupo de Pesquisa do CNPq Filosofia Moderna e Contemporânea, ao qual se
vincula o Grupo de Estudos e Pesquisa Empirismo, Fenomenologia e Gramática. Publicações recentes:
Conhecimento e Ação: entre laços teóricos e redes institucionais. Caderno CRH (UFBA. Impresso), v. 25, p. 9-
11, 2012; Percepção e cor. Dois Pontos (UFPR), v. 9, p. 123-133, 2012; Comportamento e Significação: uma
nota sobre Wittgenstein e o Behaviorismo. Analytica (UFRJ), v. 15, p. 49-60, 2011; O cético e o enxadrista:
significação e experiência em Wittgenstein. 1. ed. Salvador: Quarteto, 2012. v. 1. 208p.

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