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Enny José Pereira Parejo

ESCUTA MUSICAL: uma estratégia transdisciplinar


privilegiada para o Sentipensar

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Educação-Currículo.
Orientador: Profª Dra. Maria Cândida Moraes.

Pontifícia Universidade Católica


São Paulo - 2008
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2

Folha de Aprovação

Aprovado em ___/___/_______

Banca Examinadora

___________________________________________
Ecleide Cunico Furlanetto
Profa. Dra. em Educação-Currículo (UNICID)

___________________________________________
Sonia Regina Albano de Lima
Profa. Dra. em Comunicação Semiótica (UNESP)

___________________________________________
Lucila Maria Pesce de Oliveira
Profa. Dra. em Educação-Currículo (PUC)

___________________________________________
Ivani Catarina Arantes Fazenda
Profa. Dra.em Antropologia (USP)
3

Dedicatória

Dedico este trabalho à minha Mestra e orientadora Maria Cândida


Moraes, por tudo o que me tem dado, tanto que as palavras
sozinhas não conseguem dizer.

A Luiz Carlos, meu marido; Nilo, meu filho; e a meu pai, que
durante todo esse processo suportaram pacientemente tantas
ausências.

À minha mãe que, de algum lugar nesse imenso cosmo, deve


estar vendo e vibrando, pois sempre vibrou mais que eu, e antes
de mim em tudo o que me foi importante.

A todos os meus alunos, de ontem e de hoje, com quem aprendo


diariamente o que é necessário aprender e ensinar.
4

Agradecimentos
Agradecimentos

Agradeço aos sujeitos dessa pesquisa, Matheus, Adriana, Giba,


Liebe, Jaques e Rodrigo, que tão generosamente aceitaram estar
comigo nessa jornada, descortinando sua intimidade e
construindo um processo que para mim será inesquecível.

Agradeço à Adriana Rocha Bruno pelas sábias orientações dadas,


inclusive fora dos momentos previstos.

À Yonne Santiago, um anjo de última hora, pela iluminação de


meu trabalho com sua revisão dedicada, que vai muito além do
texto.

À Tatiane Clauzet, que gentilmente cedeu o uso das imagens de


suas maravilhosas obras plásticas que tanto enriqueceram meu
escrito.

Agradeço a Deus por suas conspirações divinas e


milimetricamente precisas, sem as quais teria sido muito difícil
encontrar os meios para finalizar este trabalho.
5

Sintonia

Estar sempre perto das invenções.


Gostar das coisas impossíveis e
Estar sempre aqui e agora.
Fertilizar corações
Adubar as razões
Amar as sementes e
Semear raízes caules folhas flores e frutos.
Solfejar palavras e gritar canções.
Lamber os dias as noites os sóis as luas
Varrer calçadas e ruas
Sonhar a vida e a morte
Romper os laços de azar e sorte
Vacinar todas as intrigas
Sorrir em paz a paz
Ironizar as brigas
Fermentar anseios e
Idolatrar as mãos amigas
Cismar as mesmas encimesmações
Renovar os foliões e
Perfurar atrizes nos seus atos mais tácitos ou sublimes.
Enfeitar as fantasias com seus crimes
Enfeitiçar feitiços alucinantes
Alucinar os céus mais deslumbrantes
E deslumbrar os ais
Dos pensamentos mais fulgurantes
Vencer os invencíveis medos em todos os instantes e
Amar amores... os mais significantes ...
Pois que todos são...
E estar sempre por perto nas horas das invenções.

Yonne Santiago - 1978


6

Resumo

O presente estudo tem por finalidade investigar o Sentipensar, ou


seja, a maneira pela qual sentimento e pensamento bem articulados,
adquirem uma dimensão passível de contemplar as necessidades de uma
Educação mais abrangente, destinada a um ser humano multidimensional.

A proposta de Sentipensar emerge do trinômio Sentir-Pensar-Agir e,


se viabiliza na prática a partir da Aprendizagem Integrada, na qual, impacto
emocional, multissensorialidade, ambientes e climas favoráveis – entre
outras características – possibilitam uma aprendizagem vívida e significativa
para o sujeito, capaz de ‘reencantar’ o processo educacional.

Neste estudo, a Escuta Musical é apresentada como uma atividade


integrativa, uma estratégia didática privilegiada para o Sentipensar, dentre
outras estratégias possíveis. A pesquisa partiu do pressuposto que a Escuta
Musical – por suas características intrínsecas que afetam ao ser humano de
diversas formas, algumas bastante prazerosas – pode promover a
reintegração das dimensões humanas e reinserir organicidade no processo
educacional, por meio da articulação entre razão e sensibilidade,
pensamento reflexivo e vivência. O interesse pela temática partiu de minhas
experiências pessoais e da observação atenta de centenas de alunos que
tiveram o mesmo tipo de experiência. O foco central é descobrir se, a
estratégia de Escuta Musical efetivamente tem, e por quê, o poder de
potencializar o pensamento reflexivo, como parece ser o caso.

Historicamente, somos seres cindidos; desde que Descartes afirmou


“penso, logo existo”, e antes dele, Platão enalteceu o mundo das idéias em
oposição ao mundo dos sentidos; e antes ainda, os estóicos adotaram por
ideal “a imperturbabilidade da alma por paixões” (ataraxia); o corpo foi para
um lado – res extensa –, a alma para o outro – res cogitans. Estas idéias
proferidas por grandes pensadores, plasmaram visões de mundo que
estavam em curso, em suas respectivas épocas; e, implantaram-se
firmemente em nossas concepções mais íntimas, tornando-se “o paradigma”
da cultura ocidental, para os últimos trezentos anos.

Opor-se a tais pensadores e à força dos processos engendrados por


suas idéias, exigiu a espera de séculos e do prenúncio do séc. XX quando, a
partir da Biologia, teve início o resgate da organicidade do todo; e um pouco
mais tarde, com a revolução científica do início do séc. XX – Teoria Quântica
7

e Relatividade –, o pensamento sistêmico integrativo se alastrou por todas


as áreas – da biológica à social, do infinitamente pequeno ao infinitamente
grande.

Este movimento, em busca da totalidade e de uma concepção


unificadora de mundo, está nos convidando a assumir uma nova perspectiva:
o paradigma Eco-sistêmico. O caminho iniciado nos confins inacessíveis da
ciência começa, paulatinamente, a passar pela vida das pessoas comuns,
pela história do cotidiano. As resistências são muitas, mas os primeiros
passos foram dados.

As teorias que fundamentam esta pesquisa preparam a concretização


de um novo projeto: a Complexidade nos oferece a possibilidade de lidar
com o paradoxo e incorporá-lo; a Transdisciplinaridade, através da lógica
aberta do Terceiro Incluído, orienta a expansão do olhar sobre o mundo e
sobre o indivíduo; o Sentipensar insere estas idéias no ambiente
educacional. Todas juntas, nos conduzem à era da consciência planetária.

Palavras-
Palavras-chave: Escuta Musical. Aprendizagem Integrada. Complexidade.
Transdisciplinaridade. Sentipensar.
8

Abstract

This study aims to investigate Sentipensar, that is, the way in which
feelings and well articulated thinking acquire a dimension which is capable
of contemplating the needs of a multidimensional human being’s broader
education.

The proposed Sentipensar comes from the trinomial Feel-Think-Act


[in the Portuguese language, Sentir-Pensar-Agir]. In practice, it makes
Integrated Learning possible, in which, emotional impact, multi-sensoriality,
favorable climates and environments, among other features, enable a vivid
and significant learning situation for the subject, capable of 're-enchanting'
the educational process.

In this study, Musical Listening is presented as an integrative activity,


a privileged didactic strategy of Sentipensar, among other possible
strategies. The search started with the assumption that Musical Listening –
through its intrinsic characteristics that affect human beings in various
ways, some quite pleasant - can promote the reintegration of human
dimensions and reinject organicity in the educational process, through the
link between reason and sensitivity, reflexive thinking and experience.
Interest in this theme began with my personal experiences and careful
observation of hundreds of students who had the same kind of experience.
The main focus is to discover whether the strategy of Musical Listening
effectively has the power to enhance reflexive thinking, as seems to be the
case, and to discover why it has such power.

Historically, we are separate and distinct beings; since Descartes said


"I think, therefore I am", and before him, Plato praised the world of ideas as
opposed to the world of the senses, and even before Plato, the Stoics
adopted as their ideal the "imperturbability of the soul by desire" (ataraxia),
the body going to one side - res extensa - the soul to the other - res
cogitans. These ideas proffered by great thinkers developed visions of the
world that were current in their respective times, and established
themselves firmly in our most intimate concepts, becoming the paradigm of
Western culture for the last three hundred years.

Opposing such thinkers and the strength of the processes generated


by their ideas required waiting for centuries, and for the harbinger of the
twentieth century when, beginning with biology, the rescue of the organicity
9

of the whole began, and a little later, with the beginning of the scientific
revolution of the twentieth century - Relativity and Quantum Theory -
integrative systemic thinking was spread to all areas - from biological to
social, from the infinitely small to the infinitely large.

This movement, in search of totality and a unifying concept of the


world, is inviting us to take a new perspective: the Eco-systemic paradigm.
The journey that started in the inaccessible frontiers of science begins,
slowly, to affect the life of common people in their everyday life. There is
much resistance, but the first steps have been taken.

The theories underlying this research prepare the way for the
implementation of a new project: Complexity gives us the opportunity to
deal with paradox and incorporate it; Transdisciplinarity, through open logic
of the Included Third, guides the expansion of a look at the world and at the
individual. Sentipensar inserts these ideas in the educational environment.
All together, it leads us to the era of planetary consciousness.

Keywords: Musical Listening. Integrated Learning. Complexity.


Transdisciplinarity. Sentipensar.
10

Sumário

Introdução..
Introdução..............................
..................................................
......................................................................
.......................................................................
....................................................................
..............................................1
.................13
Mapa Conceitual (Revisão da Literatura)....
Literatura)..... ...........................................
...........................................
.... ........................................ ......................20
.....................20

1. O Problema de Pesquisa..............
Pesquisa...............
.............................................
........................................................................
...............................................................
..............................................25
....25
1.1 A trajetória: de algumas inquietações ao problema.......................................26
1.2 Objetivos da tese............................................................................................31
1.3 Justificativa.....................................................................................................32
1.4 Enquadramento teórico...................................................................................33
1.4.1 A Teoria da Complexidade de Edgar Morin............................................34
1.4.2 O Paradigma Educacional Eco-sistêmico de Maria Cândida Moraes.....35
1.4.3 Sentipensar - teoria e prática para reencantar a Educação...................37
1.4.4 A concepção de emoções e sentimentos de Antonio Damásio...............39
1.4.5 Basarab Nicolescu e a Transdisciplinaridade.........................................40

2. Metodologia....................................................................
Metodologia............................................................................
...............................................................................................................42
...........................................42
2.1 Abordagem da pesquisa...................................................................................43
2.2 Breve histórico da abordagem qualitativa.......................................................44
2.3 Um novo enfoque de pesquisa: A Metodologia de
Desenvolvimento Eco-sistêmico......................................................................48
2.3.1 Princípios filosóficos na metodologia de
Desenvolvimento Eco-sistêmico.............................................................51
2.3.2 Questões metodológicas na pesquisa de
Desenvolvimento Eco-sistêmico.............................................................54
2.3.3 Instrumentos de coleta de dados na pesquisa de
Abordagem Eco-sistêmica.......................................................................57

3. A Complexidade: um novo paradigma


para reencantar a Educação.......................
Educação...................................................
............................................................................
.....................................................60
.........................60
3.1 Um mundo fragmentário...................................................................................64
3.1.1 Mas... O que é Complexidade?.................................................................66
3.1.2 Inteligência cega: O paradigma simplificador.........................................67
3.1.3 Século XVI - uma revolução paradigmática:
o paradigma tradicional mecanicista.......................................................70
3.2 Fragmentação e mecanicismo na situação escolar.........................................74
3.2.1 Análise dos problemas educacionais à luz dos operadores
cognitivos da Complexidade.....................................................................76
3.3 Conclusões (sempre) provisórias: uma possível era do sujeito.....................86
11

4. Sentipensar: por uma educação que que religue Razão,


Emoção e Sensibilidade .....................
................................................................................
........................................................................
......................................................................9
..........92
4.1 O que é Sentipensar?......................................................................................96
4.2 Educar para Sentipensar: princípios filosóficos básicos................................98
4.3 Aprendizagem integrada: estratégias e práticas do Sentipensar................103
4.3.1 Características metodológicas da aprendizagem integrada.................106
4.4 Ser humano multidimensional........................................................................110
4.4.1 Circuitos integradores...........................................................................111
4.4.2 O corpo como possibilidade de renovação da experiência humana.....113
4.5 Fundamentos neuropsicológicos do Sentipensar: interdependência
entre regiões subcorticais e neocorticais na racionalidade..........................116
4.5.1 Emoções e Sentimentos........................................................................120
4.5.2 A cadeia Emoção-Sentimento................................................................122
4.6 A Escuta Musical............................................................................................126
4.6.1 Ouvir ou escutar música?......................................................................126
4.6.2 Como processamos os sons?................................................................127
4.6.3 De onde provêm a força emocional da música?....................................130
4.6.4 Benefícios neuropsicológicos da Escuta Musical..................................132
4.6.4.1 Memória emocional.....................................................................132
4.6.4.2 Música e relaxamento.................................................................135
4.6.4.3 Ação anti-estresse da música....................................................136
4.6.4.4 Arrepios musicais.......................................................................137
4.7. Música e cognição....................................................................................138
4.7.1 Efeitos de transferência.................................................................138
4.7.2 A sintaxe musical e a cognição......................................................140
4.7.3 A teoria dopaminérgica dos sentimentos positivos......................141

5. Transdisciplinaridade: Abertura do Olhar sobre o Mundo ................... ...............................


............................14
............145
145
5.1 O espírito transdisciplinar: comentário de uma experiência........................147
5.2 A trindade transdisciplinar: Complexidade, Níveis de Realidade e
o Terceiro Incluído..........................................................................................152
5.3 A Escuta Musical como estratégia transdisciplinar......................................162

6. A Pesquisa de Campo........
Campo........................................
..................................................................
.........................................................................
...............................................
............................
.............1
.......164
6.1 Uma experiência de Sentipensar em sala de aula.........................................168
6.2 A disciplina Didática do Ensino Musical........................................................170
6.3 Perfil dos participantes..................................................................................173
6.4 Descrição da pesquisa....................................................................................176
6.4.1 A estratégia inicial de Escuta Musical..................................................178
6.4.2 Instrumentos de coleta de dados.........................................................181

7. Análise dos Dados.........................................................


Dados..............................................................
......................................................................................
..........................................18
.....................................187
.............187
7.1 Categorias para análise dos dados................................................................188
7.1.1 Abertura do olhar...................................................................................189
7.1.2 Fluxos energéticos.................................................................................198
12

7.1.3 Dialogicidade processual.......................................................................205


7.1.4 Transcendência......................................................................................212
7.1.5 Percepção da estratégia de Escuta Musical pelos sujeitos..................217

Conclusão e Considerações Finais .............................................................................222


.............................................................................222
Epílogo......
Epílogo.........................................................................................................................2
.........................................................................................................................241
...................................................................................................................241
Referências Bibliográficas ........................................................................................243
........................................................................................243
Anexos............
Anexos.........................................................................................................................248
.........................................................................................................................248
Anexo 1 - A música do grupo (Áudio)..........................................................250
Anexo 2 – Relação das músicas utilizadas na estratégia
de Escuta Musical ao longo da pesquisa.......................................250
Anexo 3 – Transcrição da fita da avaliação final do
curso de Didática do Ensino Musical............................................251
Anexo 4 - Respostas ao questionário semi-estruturado.............................260
Anexo 5 – Letras de músicas........................................................................263
Anexo 6 – Historinha para ouvir – Estória da Estrelinha (Áudio)................265
Anexo 7 – Carta da Transdisciplinaridade....................................................265
Anexo 8 - Partitura gráfica e Pentagrama....................................................268
13

Introdução

Ampulheta do Horizonte
Tatiana Clauzet
14

Cenário transdisciplinar

Fim de tarde. O universo parecia conspirar para que tudo fosse perfeito: o
azul profundo – do céu e do mar; uma brisa cálida, quase uma carícia – de
olhos fechados, eu poderia me sentir na intimidade da cozinha, com o forno
ligado preparando alguma coisa gostosa que em seguida eu comeria; a
temperatura era muito agradável, uma espécie de útero materno, azul,
envolvente; as crianças corriam, era o epílogo da brincadeira, a noite viria e
iríamos embora, talvez por isso brincassem ainda mais intensamente.

Dentro de mim havia alguma sombra indefinível, um certo não sei quê –
medo, dúvida, incerteza? – que se insinuava, turvando a perfeição do
momento. As crianças brincam com uma intensidade que somente elas
conseguem experimentar, eu pensava, enquanto percebia que o teatro de
meu corpo era diferente do grande teatro da natureza que estava em volta
de mim.

Num instante quase precipitado, fui até a beira da água – ela também estava
quase morna, deliciosa; pude sentir seu toque de forma prazerosa, nos pés.
Deitei-me. Abri e soltei braços e pernas. Fechei os olhos. No vai-e-vem
suave das pequenas ondas, pude sentir aquela mornidão tomar conta do meu
corpo, a sensorialidade se intensificou esvaziando a minha mente. Agora eu
vivia apenas para esperar a próxima carícia.

Abri os olhos. Eu estava no azul. Eu não podia ver mais nada, apenas o azul.
Minha visão periférica não percebia montanhas, pedras ou pessoas. De fato
não havia coisa ou objeto que eu pudesse ver. Até o limite só havia o azul;
percebi que o azul do mar se fundia com o azul do céu e, pouco a pouco,
algo se delineou – um contorno, redondo, ligeiramente fluorescente: as
bordas da Terra!!

Pude perceber que a Terra é redonda. Não, isso é muito pouco, pude sentir
com meu corpo que a Terra é redonda, e muito além disso; pude me dar
conta naquele momento que nada me separava da imensidão, minhas
partículas estavam vagando pelo cosmo e as dele estavam entrando em mim,
eu fazia parte de tudo aquilo... eu faço parte de tudo isso.

Naquele dia percebi, pela primeira vez, que eu estava à beira do oceano
cósmico, em contato direto e carnal com a imensidão do espaço infinito!!

Ouvi alguém ou alguma coisa, o que me fez sair do grande azul. Levantei-me
e, em princípio, foi como levitar; os pés mal sentiam o chão, sentia-me
expandida, como se não houvesse ninguém ou nada capaz de me deter.
15

A experiência sensorial total, como a que acabo de descrever, sempre


atraiu minha atenção. Possivelmente, por ser musicista e ter iniciado minha
formação com uma professora marcante, com quem pude ter os mais
variados tipos de experiências criativas e vivenciais. O conservatório tomou
o lugar dessa pessoa extraordinária, com sua carga de tecnicismo
mecanicista – além da cultura totalmente européia – que lhe é peculiar.

Tecnicismo1 e Mecanicismo2 não são prerrogativas especiais da


formação musical, mas permeiam nosso sistema educacional como um todo,
o que faz com que o pensamento racional – e mais que isso, racionalista –
seja a meta a alcançar. Isso quer dizer que os estudos assumem
características de esterilidade, no que diz respeito à possibilidade de
encantamento para o ser humano. A forma de estudar, as estratégias e
técnicas utilizadas, não são apenas mecanicistas, mas também, em geral,
reducionistas3; tomam a parte pelo todo, currículos e seres humanos se
reduzem a apenas um ou a alguns de seus aspectos. A maneira de estar em
uma sala de aula se torna desincorporada, afastada da experiência concreta;
pois, a possibilidade da experiência concreta e significativa só passa a
existir quando se considera o indivíduo multidimensional que é o aluno e a
realidade multidimensional na qual nos inserimos todos.

Falar da incorporação de experiências vivenciais, em uma sala de aula


comum, significa falar da reconciliação de todas as dimensões humanas e do
reconhecimento de um ser humano não apenas racional, mas também

1
Predomínio da técnica em detrimento da expressividade.
2
Concepção de mundo segundo a qual o cosmos e os seres humanos são máquinas dependentes de
mecanismos para seu funcionamento. Não há outra explicação possível, e nenhum sentido de
finalidade.
3
O reducionismo considera os fenômenos a partir de um ou alguns de seus aspectos, tomando-os
pelo todo, o que proporciona uma visão incompleta do objeto considerado.
16

sensível, e ainda, de estratégias didáticas que possam contemplar a todas as


vertentes desse ser.

Sensibilidade, emoção e corpo andam juntos; e, juntos permanecem à


margem do processo educacional. A questão é intrincada; ao excluir o
corpo, excluímos emoção (não nos esqueçamos que a emoção é um produto
da fisiologia) e, conseqüentemente, a sensibilidade e os sentimentos (que
nada mais são do que a experiência consciente de nossas emoções); tudo
isso dá margem a processos educacionais desencantados, e a relações
humanas autoritárias, nas quais é possível tornar-se insensível ao ser do
outro.

Eis o grande problema da visão ocidental: fragmentar e sempre


fragmentar. A cisão cartesiana veio corroborar nossa mania fragmentadora
e reafirmou a supremacia da racionalidade sobre todas as outras dimensões.
O ser humano se tornou fragmentário.

Sendo educadora musical e formadora de outros educadores, e tendo


sido oprimida em minha sensibilidade pela fragmentação avassaladora do
paradigma mecanicista, me pareceu fundamental contribuir de alguma forma
efetiva para a transformação dessa realidade. Em minha trajetória, encontrei
pessoas e pensamentos extraordinários que poderiam lançar luzes ao
caminho. Primeiro, aquela professora de música maravilhosa, à qual me
referi anteriormente, com quem pude viver a experiência de meu ser
integral na tenra infância; depois a música, pois, em meio ao mecanicismo
das práticas e ao autoritarismo, consegui estabelecer com ela uma relação
que era só minha e que era emocionante; depois, encontrei grandes teorias
de diversas áreas com as quais possivelmente passarei o resto de minha
17

vida, sentindo-me cada vez maior (e menor): a Teoria Quântica4, a Teoria


dos Sistemas5, a Teoria da Autopoiese6, a Teoria da Complexidade, o
Pensamento Eco-sistêmico7, a Transdisciplinaridade e a Teoria do
Sentipensar. Todas essas teorias, de uma maneira ou de outra, nos acenam
para a mudança de paradigma, pois trazem em seu bojo a conexão, uma
concepção integradora de ser humano e a consciência de que fazemos parte
de um todo muito maior.

Meu desejo de transformação e o instrumental de que dispunha me


fizeram chegar ao Doutorado com o tema da Escuta Musical, como uma
estratégia de Sentipensar, pois a música sempre foi meu porto seguro e o
sentipensamento me ofereceu a possibilidade de reunir as dimensões
dicotomizadas do ser humano – sentir e pensar.

Ao longo de minha trajetória, estive muitas vezes à beira de cair num


extremo, o da vida sensorial pela vida sensorial, ao concentrar toda a minha
energia no aspecto vibratório e sensível da música. Minha experiência
pessoal, tanto quanto a de meus alunos, acenaram para uma abrangência
muito maior; os relatos de transformações pessoais e profissionais, o
desenvolvimento de faculdades de reflexão e sociabilidade, me fizeram ver
que a música poderia contribuir muito mais do que eu havia pensado. Em
meio ao caos dos pensamentos, conheci minha orientadora, o pensamento
sistêmico e as idéias do Sentipensar, e percebi que esse era o caminho.

4
A teoria quântica estuda o mundo infinitamente pequeno das partículas subatômicas e suas
propriedades. Será abordada com mais detalhes ao longo deste estudo.
5
A teoria dos sistemas estuda todos os seres, objetos e processos do ponto de vista da totalidade.
Ter uma concepção sistêmica de alguma coisa, significa ter uma visão global, integrada.
6
Do grego: auto = próprio, poiesis = criação; a palavra autopoiese significa autocriação. A Teoria é
de autoria de Humberto Maturana e Francisco Varela, e nos explica que todos os seres vivos são
autocriadores, no sentido de que, na interação com o ambiente, são capazes de renovar suas
estruturas continuamente, garantindo a manutenção da vida.
7
O Pensamento Eco-sistêmico, as teorias da Complexidade, da Transdisciplinaridade e do
Sentipensar serão abordados com mais detalhes no Enquadramento Teórico (Capítulo 1)
18

A Escuta Musical poderia ser uma estratégia de conciliação entre


razão e emoção, entre experiência sensível e cognição, entre vivência e
reflexão; poderia ser um meio eficiente para promover essas conciliações
em sala de aula, em qualquer sala de aula; não somente na sala de música;
não somente na educação infantil ou no ensino fundamental, mas na
faculdade, na pós-graduação ou em qualquer outro lugar no qual
acontecesse a relação formal de ensino-aprendizagem. Logo, percebi que a
Escuta Musical poderia ser uma estratégia privilegiada para o Sentipensar.
E esse foi um grande e iluminado momento de minha existência.

No primeiro capítulo deste escrito, abordarei a origem do problema de


pesquisa, delimitarei o tema, os objetivos, a relevância pessoal e social das
temáticas abordadas e o enquadramento teórico, através do qual pretendo
fundamentar minhas hipóteses.

No segundo capítulo, apresentarei a metodologia de pesquisa. Trata-


se de uma nova abordagem dentro da pesquisa qualitativa, a Metodologia de
Desenvolvimento Eco-sistêmico, cujos princípios e procedimentos se
adequam perfeitamente a um mundo compreendido como processo e
transformação.

O terceiro capítulo trará o pano de fundo essencial para esta pesquisa


– a Teoria da Complexidade – através da qual se torna possível o
questionamento do paradigma mecanicista vigente e a análise de suas
conseqüências para o processo educacional.

O quarto capítulo apresentará o conceito de Sentipensar e seus


princípios, a aprendizagem integrada como forma prática e concreta para
19

viabilizar o sentipensamento, a fundamentação neuropsicológica do


Sentipensar e dos efeitos da Escuta Musical.

O quinto capítulo, sobre a Transdisciplinaridade, apresenta o trinômio


de sustentação da teoria: complexidade, níveis de realidade e terceiro
incluído, e analisa a escuta musical sob o ponto de vista de uma lógica
ternária, com aberturas consistentes para regiões íntimas da subjetividade
humana.

O sexto capítulo explica e descreve a dinâmica da pesquisa de campo,


seu espaço concreto de realização, os instrumentos utilizados para a coleta
de dados e o perfil dos participantes.

A análise dos dados obtidos tem lugar no sétimo capitulo, a partir de


alguns focos específicos de observação, que emergiram do arcabouço
teórico utilizado, e também do processo vivenciado durante o tempo da
pesquisa.
20

Mapa Conceitual
Brecha microfísica
(Quântica)

PARADIGMA PARADIGMA
MECANICISTA ECO-SISTÊMICO
Brecha macrofísica
(Relatividade)

Fragmentação Não-fragmentação
Mecanicismo Organicidade
Tecnicismo Expressividade
Reducionismo Abrangência
Causalidade Não-linearidade

Cisão Cartesiana: Ressurreição


anulação do sujeito do Indivíduo

COMPLEXIDADE TRANSDISCIPLINARIDADE

Abertura
Incorporação do paradoxo
Multidimensionalidade
Ética e valores

EDUCAÇÃO
SENTIPENSAR

Sentir
Criatividade
Emoção
Corpo

Pensar Agir
Reflexão Aprendizagem
ESCUTA Integrada
MUSICAL
21

Revisão da Literatura

Não sou um ser acadêmico. Isto é certo. Nunca projetei – como tantos
e tantas – minha entrada nesse mundo mais formalizado dos estudos.
Quando li pela primeira vez as normas da ABNT, senti a mesma sensação
descrita ao início – “um certo não sei quê – medo, dúvida, incerteza?”. O que
para tantas pessoas nada mais é do que uma necessidade, uma pequena
pedra a mais do caminho escolhido, para mim representava um enorme
desafio. No entanto, por ter sempre amado a escrita, salvei-me na jornada.
Escrevo um diário, escrevo confidências ao meu filho, escrevo enquanto
espero alguma coisa. E assim, o ato de escrever me inseriu no mundo
acadêmico.

Sou um ser vivencial. Isto também é certo. Parece-me muito natural


iniciar uma aula de didática fazendo a roda com meus alunos, de mãos
dadas, colocando alguma música, contando alguma estória, ou sugerindo
uma parada – alguns momentos de esvaziamento mental. Por isso, desejei
escrever um trabalho que pudesse ser acadêmico, até certo ponto, mas que
jamais perdesse o contato com meus alunos, ou com qualquer pessoa
comum que desejasse entrar no assunto. Não desejei escrever apenas para
meus pares da academia; e, essa é também a razão para escrever de forma
quase redundante, com muitas explicações, muitas notas de rodapé, muitas
idas e vindas. Uma coisa é certa: por alguma razão, o mundo acadêmico se
apossou de mim, talvez por necessitar demais dessa “coisa dionisíaca” que
posso oferecer; e, talvez ainda, por eu necessitar demais de sua sistemática
apolínea.
22

O tema de minha pesquisa é imenso, macroconceitual8, reúne o


Sentipensar e a Transdisciplinaridade. Seria perfeitamente possível
escrever uma tese inteira tendo por base única, a Teoria do Sentipensar, ou
a Teoria da Transdisciplinaridade. Tudo é grandioso: o tema, as teorias e
suas implicações; foi difícil fazer um recorte nessa imensa teia, mas eu
preferi assim, e preferi porque sei que esse trabalho será utilizado por
muitos que pouco conhecem de tudo isso, mas que querem muito conhecer;
e também, para apresentar mais uma idéia pouco acadêmica: eu diria que,
para um educador, é melhor voltar ao humanismo, é melhor tentar saber um
pouco de tudo o que existe, pelo menos até que se possa escolher um ponto
focal.

Meu tema de pesquisa parte da necessidade de conceber o aluno, o


processo educacional e a realidade a partir de uma perspectiva
multidimensional. Todas as teorias que estão em jogo neste trabalho me
oferecem essa possibilidade, porém parece-me que, nenhuma de forma mais
completa que a da Complexidade; essa teoria oferece uma base filosófica
muito consistente, para que se possa unir conceitos aparentemente opostos,
mas complementares, como é o caso de ‘sentir e pensar’ (nesse sentido,
considero-a também como base de fundamentação do Sentipensar); nos
oferece solução de continuidade entre a vida biológica, a vida social e a vida
planetária, e – muito importante – nos ensina a ver o mundo de forma não-
fragmentária. Ao incorporar toda a transformação que adveio das brechas
microfísica (Teoria Quântica) e macrofísica (Teoria da Relatividade), como
nos ensina Morin em diversas de suas obras. A Complexidade pode
constituir uma base filosófica sólida que fundamenta qualquer fenômeno que

8
Um macroconceito associa conceitos atômicos e simples - algumas vezes antagônicos - e os
articula de forma coerente, levando à compreensão de idéias ainda mais abrangentes.
23

ocorra em nosso mundo e que aspire, de alguma forma, ser compreendido


como totalidade integrada.

A meu ver, Sentipensar está para o processo educacional assim como


a Complexidade está para a vida, unindo opostos, abrindo fronteiras para um
mundo mais integrado, consciente e adequado para a vida. No Sentipensar,
reunimos todas as facetas cindidas do aluno, do professor e do processo
educacional: contemplamos o ser sensível, criativo, e também o ser
cognitivo; consideramos o indivíduo e sua subjetividade, mas também o ser
relacional; abordamos conteúdos inovadores e, coerentemente, estratégias
de aprendizagem integrada multissensoriais e impactantes; tratamos do
conhecimento, mas também dos ambientes, espaços e climas que favorecem
sua construção.

E a Transdisciplinaridade? O que dizer sobre ela? Ela poderia nem


estar nesta tese (seria mais ou menos como ser criança e dispensar a
sobremesa). A Transdisciplinaridade é uma licença poética? Sim, eu a
considero dessa forma, neste contexto. Porém, é através dela que o
encantamento se efetiva, pois, através de sua lógica aberta, todas as
peculiaridades mais íntimas da subjetividade se reafirmam; através dela, se
torna possível a grande viagem por mares interiores, por dimensões até
bem pouco tempo negadas; através dela, acessamos o ser interior mais
profundo, a autodescoberta, e também aprendemos o respeito às
alteridades. A Transdisciplinaridade é o espaço privilegiado do indivíduo, e
eu não desejei privar meu leitor desse espaço.

Além dessas teorias que foram aqui exploradas a partir de uma


perspectiva filosófica, faltava-me ‘alguma ciência mais dura’, pensei eu
(certamente, todos esses séculos de paradigma mecanicista continuam a
24

atuar sobre mim de alguma forma); encontraremos então, em especial no


Capítulo 4, a descrição de uma série de estudos neurológicos atuais, que me
auxiliaram na fundamentação dos processos de emoção, sentimento,
cognição musical e efeitos da escuta musical.

O desejo de oferecer um ‘cardápio variado’, e de me tornar acessível


a um público maior, fez com que eu inserisse enquadramentos teóricos nos
Capítulos 3, 4 e 5, e não somente num único capítulo de revisão da
literatura. Esse mesmo desejo, sem dúvida, fará com que muitos considerem
meu trabalho pouco científico. Enfim, são as escolhas da vida; eu fiz a
minha.
25

1. O Problema de Pesquisa

Lua Subindo no Sertão


Tatiana Clauzet
26

1.1 A trajetória: de algumas inquietações ao problema

Desde a infância me dedico aos estudos musicais. Graduei-me e atuo


profissionalmente há vinte e cinco anos. Minha área específica de interesse
é a formação e atualização de professores de música, professores de
educação infantil e demais profissionais interessados na utilização da música
como recurso para o desenvolvimento da criança.

Durante os últimos dezoito anos – período que abrange minha


atividade como formadora de professores de música e educação infantil, na
Espanha e no Brasil – tive como preocupação básica a necessidade de levar
os professores à consciência da importância da música como fenômeno
essencialmente sensível, ou seja, música como som, freqüência vibratória e,
portanto, como fenômeno sensorial, fisiológico e emocional, antes de ser um
fenômeno de linguagem. Essa tomada de consciência me pareceu
fundamental como forma de oposição a um sistema de ensino/aprendizagem
musical extremamente racionalista, mecanicista e reducionista, baseado
quase que exclusivamente no tecnicismo da prática instrumental, na
decodificação e codificação da linguagem, e na comunicação verbal.

Realizei estudos especializados em pedagogia musical no Brasil e na


Europa (Espanha, França e Áustria). Na Espanha, tive a oportunidade de
participar de um projeto nacional de formação de professores de música que
visava a integração do país à comunidade européia, no período que vai de
1987 a 1992; não havia música no currículo escolar e havia urgência em
incluí-la. Minha atuação no projeto, coordenado pela Junta de Andalucia, no
sul do país, foi inesperada, tive então que me adequar a essa nova
necessidade.
27

Uma das primeiras percepções que o contato com os professores


espanhóis me proporcionou foi a de que o processo de formação musical
era, na verdade, bem pouco musical, centrado na teoria, na leitura de
partituras e negligenciando o principal para uma arte dos sons: a
possibilidade de ouvir e sentir música. Foi um período profundamente
enriquecedor, a partir da relação dialética que mantive com variados grupos
de professores: ensinei, é certo, mas aprendi muito mais. Pude resgatar
algo que se tornaria para mim a pesquisa de uma vida: o poder sensorial da
música. Os cursos na Espanha tornaram-se espaços privilegiados de relação
humana, criatividade e vivências da emoção.

No Brasil, a partir de 1993, pude constatar problemas parecidos na


relação entre os professores e a música, apesar da realidade sociocultural
ser bem diferente nos dois países. Percebi que a relação entre as pessoas e
a música é profundamente afetada pelo paradigma educacional antigo, ao
qual me referi anteriormente, no qual fomos todos formados; no caso da
música, este paradigma privilegia o tecnicismo em detrimento da
expressividade e da formação humana; faz-se então necessário questioná-
lo. A busca de um novo paradigma educacional, que permitisse ter uma
visão mais global do aluno e dos processos de ensino/aprendizagem,
tornou-se para mim um ponto crucial.

Na cultura ocidental, o racionalismo e o mecanicismo têm dominado


nossas mentalidades, nossas formas de ação e interação humana, tornando-
as muitas vezes estéreis, desprovidas de beleza, significado, expressão e
sentido de humanidade; de tal maneira que, H. J. Koellreutter9 sempre se

9
Eminente compositor e pedagogo musical alemão, falecido em setembro de 2005, responsável pela
introdução, no Brasil, das correntes musicais vanguardistas do séc. XX, e pela formação de uma
geração de compositores brasileiros. Atuou no Brasil a partir de 1937.
28

referia em seus cursos ao Positivismo10 e ao Mecanicismo como os


“inimigos número um” da educação musical.

Em meu trabalho de Mestrado explorei, sobretudo este tema; a


necessidade da música como arte sensível e sensibilizante, destinada a
seres humanos, interpretados como totalidades integradas de corpo, mente
e espírito, que pudessem ser, ao mesmo tempo, racionais e intuitivos,
lógicos e sentimentais, intelectuais e sensíveis. Minha proposta apresentou-
se, na verdade, como possibilidade de um novo paradigma existencial, ou
seja, como concepção sistêmica de seres humanos e processos
educacionais.

Naturalmente, a abrangência dessas questões, as entrevistas


realizadas junto a vários participantes de meus cursos, tanto quanto os
novos referenciais teóricos a que tive acesso, me fizeram rapidamente
perceber que eu não estava falando apenas de educação musical, mas sim,
de uma proposta de formação sensibilizatória que poderia vir a tornar-se um
instrumento metodológico para o desenvolvimento humano, uma ferramenta
educacional a serviço de alunos e profissionais de qualquer área de atuação.

Partindo então, de uma situação na qual era urgente conscientizar


pessoas sobre a importância do sentir, cheguei a uma outra situação que me
foi colocada pelos próprios entrevistados, que me vem sendo trazida no dia
a dia por alunos e professores, e que eu, de forma clara, já havia percebido
em minha experiência pessoal: parece existir uma articulação intrínseca,
uma filiação inalienável, entre sentir e pensar.

10
Corrente filosófica que interpreta a ciência como único conhecimento possível e válido. Qualquer
outro tipo de conhecimento, como por exemplo o metafísico, não tem valor. O Positivismo foi uma das
doutrinas de sustentação do progresso industrial e teve bastante influência no Brasil. Seu principal
expoente é Augusto Compte.
29

Ao mesmo tempo, ao longo desses anos, passei por um processo de


mudança que considero uma evolução: se antes só me ocupava do sentir, da
intuição e do sentido humano e integrativo da minha ação e da ação dos
professores, nos últimos anos, em especial, percebi que era também
necessário refletir sobre tudo isso e levar os professores a refletirem
comigo. Havia neles uma tendência a querer obter sempre receitas didáticas
prontas para aplicação no próprio trabalho, enquanto em mim vivia o desejo
de que se emancipassem, de que se tornassem mais criativos, menos
dependentes daquelas atividades propostas. Em conseqüência desses
anseios, passei a ter outras preocupações. Se até há pouco tempo, me
colocava insistentemente a questão “como fazer com que os professores
sintam alguma coisa através da música?”, hoje tenho uma outra questão que
se agrega a essa: “como fazer com que os professores pensem sobre sua
prática?” E, mais que isso, “como fazer com que tomem gosto pela prática
reflexiva e, decisivamente, se apropriem dela?”

Além de procedimentos conhecidos e tradicionais da prática reflexiva,


tais como, ler, escrever, relatar, debater, partilhar idéias – que estou
passando a adotar cada vez mais –, posso perceber que o próprio ato de
sentir (entendido como uma tomada de consciência de emoções que leva a
sentimentos de bem-estar, alegria, completude, entre muitos outros
relatados pelos entrevistados), constitui-se num canal poderoso de abertura
à reflexão. O sentir parece potencializar, enriquecer e aprofundar o pensar;
em avaliações orais ou escritas, participantes dos meus cursos corroboram
essas percepções, o que me motiva ainda mais a continuar pesquisando o
assunto. Os professores referiram-se a essa questão de forma instigante,
com expressões do tipo “abrir a cabeça para novas experiências”, “ter
bagagem para poder pensar”, “considerar o indivíduo em toda a sua
30

‘inteireza’”, “desenvolver o uso da intuição, da razão, da sensação e do


sentimento”; reportaram a tomada de consciência sobre temas essenciais à
educação: o desafio de colocar novas metas, a responsabilidade de
transmitir conteúdos, sem deixar de estabelecer pontes com a riqueza que o
aluno traz; e ainda, manifestaram percepção da dinâmica relacional que
envolve todo esse processo, da questão do necessário autoconhecimento do
professor, e do descortinar de um movimento interior consubstanciado em
aspectos cognitivos, sensoriais, emocionais e afetivos.

Através da fala dos professores pode-se perceber, ainda que de


forma não-intencional, que as atividades sensibilizatórias provocaram
inquietude, vontade de refletir, abertura para a transformação, e mudanças
efetivas. Passei a sentir a necessidade de compreender o conteúdo real e
íntimo dessas falas dos professores, no intuito de aprimorar meu trabalho
como formadora e a qualidade da formação que ministro, assim como
procurar contribuir para o avanço desse conhecimento no Brasil.

A busca por referenciais teóricos apropriados para empreender uma


reflexão de tal natureza, levou-me de encontro ao conceito de
“Sentipensar” elaborado por Saturnino de La Torre11, em 1996, e que
começa a ser divulgado no Brasil através do grupo de pesquisadores
coordenado por Maria Cândida Moraes12, do qual faço parte. Este novo
conceito nos resume de forma clara as aspirações de um novo paradigma

11
Saturnino de la Torre é um eminente educador e catedrático em Criatividade, da Universidade de
Barcelona, reconhecido internacionalmente. Mantém ativo intercâmbio de idéias e projetos com o
Brasil, em colaboração com Maria Cândida Moraes, através da PUC de São Paulo e de outras
instituições.
12
Maria Cândida Moraes é professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e da
Universidade Católica de Brasília. Eminente pesquisadora brasileira, dedica-se ao estudo de teorias
importantes para a perspectiva de humanização do mundo acadêmico, dentre elas, a Teoria da
Complexidade, a Teoria da Autopoiese e a Teoria da Transdisciplinaridade. Tenho o privilégio de tê-
la como orientadora de meu trabalho de doutorado.
31

para a educação: “trabalhar conjuntamente pensamento e sentimento”,


fundir e integrar diferentes “formas de perceber a realidade, a partir da
reflexão e do impacto emocional, fazer convergir num mesmo ato de
conhecimento a ação de sentir e pensar.” (TORRE, 2000, p. 546).

A trajetória descrita me fez chegar ao Doutorado com o seguinte tema


de pesquisa: ESCUTA MUSICAL: Uma Estratégia Transdisciplinar
Privilegiada para o Sentipensar.

Diante das situações e problemáticas consideradas acima, uma


pergunta emerge para concretizar meu problema de pesquisa: Quais as
relações existentes entre o sentir – desencadeado pela atividade integrativa
de escuta musical – e o refinamento da capacidade reflexiva?

Prossegui em busca da resposta a essa questão, realizando a pesquisa


de campo (Capítulo 6) com seis alunos da disciplina de Didática do Ensino
Musical, por mim ministrada no curso de Licenciatura em Música da
Faculdade de Música Carlos Gomes. Todos os sujeitos escolhidos para a
pesquisa exercem atividade profissional na área musical, como músicos ou
professores de música. Cursaram dois semestres da disciplina Didática do
Ensino Musical, I e II, respectivamente, no 2º semestre de 2005 e 1º
semestre de 2006.

1.2 Objetivos da tese

No presente estudo, me proponho a pesquisar o Sentipensar como


estratégia metodológica para a formação humana, partindo da suposição que,
pela via do equilíbrio entre emoção e razão – alcançado especificamente
32

através da escuta musical como caminho para o sentipensamento – se pode


promover a transformação do indivíduo, e o enriquecimento da prática
educacional.

Esse objetivo principal, se apóia em objetivos-satélites que lhe dão


sustentação e consistência; são eles: questionar o paradigma educacional
vigente e suas bases de apoio – racionalismo, mecanicismo, reducionismo e
fragmentação; revalorizar o ser humano e a experiência humana sensível,
em sala de aula; questionar a lógica rígida, que subjaz aos processos
educacionais através dos princípios da Complexidade e da
Transdisciplinaridade e reencantar a educação, valorizando as
características criativas, artísticas, intuitivas e subjetivas, tanto quanto as
reflexivas e formais.

1.3 Justificativa

As reflexões aqui propostas inserem-se num momento de mudanças


profundas em todos os âmbitos da experiência humana e social, o qual pode
ser caracterizado como de mudança de paradigmas. O novo milênio iniciou-
se, sob o signo da esperança de uma nova era, mais propícia à realização
das mais profundas aspirações humanas; porém vivemos, por outro lado, o
sombrio; um mar de intolerâncias, violência, desigualdades, plasmados em
conflitos e guerras sem sentido. O progresso econômico e tecnológico não
trouxe ao mundo o bem-estar prometido no séc. XIX, e ao analisar estas
questões, vê-se na base da degradação da vida, a própria degradação do ser
humano, configurada numa eterna luta pelo poder, na insensibilidade, na
perda dos valores essenciais, na destruição do meio ambiente e na
exploração de uns por outros.
33

A educação pode ser um dos espaços privilegiados para a viabilização


de mudanças possíveis na sociedade, desde que se torne uma educação
diferenciada; que prepare crianças, desde tenra idade, bem como futuros
profissionais, para viverem seus mútuos compromissos; uma educação que
contemple o ser humano por inteiro, brindando-lhe com conhecimentos
específicos da cultura, mas também com a possibilidade de um olhar
sensível e perscrutador para a realidade; uma educação que ensine técnicas,
mas também a apreciação da beleza; que possa unir arte e tecnologia, razão
e sensibilidade; uma educação que não abandone o sentido ético da vida.
Enfim, uma educação para o Sentipensar.

1.4 Enquadramento teórico

A natureza complexa do ser humano, da qual decorre sua


multidimensionalidade, implica na conscientização da interdependência
existente entre emoção, sentimento e racionalidade, assim como na
concepção da unidade funcional existente entre corpo, cérebro e mente.
Para a educação, isso significa assumir o aluno como uma totalidade
indivisível, e a aprendizagem como articulação e manifestação dessas
diversas dimensões.

Eminentes cientistas e pesquisadores, nas últimas décadas, têm se


dedicado a compreender essa relação dinâmica e integrativa existente entre
o sentir e o pensar, e têm demonstrado a impossibilidade de dicotomizar
esses processos. A partir de perspectivas diversas – filosóficas,
pedagógicas, neurobiológicas, antropológicas, entre outras – surgem
diferentes teorias que nos apresentam uma visão mais global de mundo na
qual razão, emoção e sensibilidade aparecem intrinsecamente relacionadas.
34

A partir dessas teorias, será possível estabelecer bases sólidas para a


tomada de consciência da importância de se ter sentidos aguçados e corpos
preparados, tanto quanto mentes brilhantes, em processos educacionais e
de formação de professores.

1.4.1 A Teoria da Complexidade de Edgar Morin

A Teoria da Complexidade é a primeira construção teórica que pode


fundamentar uma pesquisa que tem por finalidade discutir o resgate da
multidimensionalidade para o ser humano, para a realidade e para processos
educacionais. “Complexus é o que é tecido junto”, segundo Morin. A
Complexidade nos oferece o antídoto para a fragmentação e para a
disjunção, às quais estamos tão habituados, tornando possível conceber o
ser humano em sua inteireza.

Pela via da Complexidade, compreendemos que toda obra é sempre


obra aberta, ao inesperado, ao novo, às emergências, e abraçamos como
meta educacional, as interações dinâmicas que permeiam o processo de
construção do conhecimento. Estas são relações vivas, que se estabelecem
entre professor e aluno, entre alunos, e entre estes e o ambiente;
caracterizam-se pelo fluxo e pelas trocas constantes de energia e
informação. Suas estratégias são contextualizadas e jamais negligenciam o
aspecto relacional.

A Teoria da Complexidade, ao admitir a multidimensão da realidade e


dos objetos de estudo sobre os quais se debruça, incorpora
necessariamente essa dinâmica organizacional, articulando as partes de um
sistema num todo coerente. Essa dinâmica, mais uma vez, reforça o caráter
35

autônomo de qualquer sistema – entendendo-se por sistema um evento, um


aluno, um processo, uma comunidade – implicando sempre no movimento
orgânico entre partes constituintes e o todo; essa autonomia é relativa e
torna-se estritamente dependente das trocas efetuadas com o meio. O
ambiente é nutridor e possibilitador das unidades autônomas, regula tanto a
dependência quanto a autonomia.

O pensamento complexo abre portais para novas lógicas possíveis na


interpretação do mundo em que vivemos, assim, opostos antagônicos podem
ser reunidos numa unidade complementar; essa comunhão se faz através
dos princípios integradores da Complexidade. Se a própria realidade pode
ser múltipla, a Complexidade nos convida à aceitação plena do diálogo que
torna possível a coexistência desses opostos, assim como à aceitação da
diversidade. Em última análise, esse pensamento nos aproxima das atitudes
de respeito, do comportamento ético e da incorporação de valores caros
para nossa cultura, tão caros quanto esquecidos. Por essa razão é que
figuram entre os saberes para uma educação do futuro, propostos por Edgar
Morin, o “ensinar a compreensão” e “ensinar a ética do gênero humano”
(MORIN, 2002).

1.4.2 O paradigma educacional eco-


co-sistêmico de Maria Cândida Moraes
Moraes

O pensamento eco-sistêmico vem sendo cuidadosamente elaborado


por Maria Cândida Moraes, ao longo das últimas décadas, como resultado de
sua busca incessante por um novo paradigma educacional que possa
reencantar a educação. O termo eco-
eco-sistêmico resulta da junção de dois
macroconceitos: por um lado, sistêmico, indicando a relação dinâmica e
36

recursiva13 existente entre as partes e a totalidade de um sistema, assim


como todos os processos resultantes de sua organização; por outro,
ecológico, sinalizando para o mundo de conexões, no qual se inserem as
ações educacionais.

Na gênese do pensamento de Maria Cândida, encontram-se o


pensamento sistêmico e, posteriormente, as idéias de Edgar Morin, de
Humberto Maturana e Francisco Varela, suas bases epistemológicas
fundamentais.

Um conjunto de princípios e teorias articula-se no pensamento da


autora – Princípio da Incerteza14, Princípio da Complementaridade15, Teoria
das Estruturas Dissipativas16, Teoria da Autopoiese, Teoria da
Transdisciplinaridade e, naturalmente, Teoria da Complexidade – legando-
nos uma construção teórica inestimável para refletir sobre a problemática
educacional, assim como para transmutar o paradigma vigente.

A dinâmica dos processos, o fluxo, e uma encantadora organicidade,


entram para o discurso educacional através dos pressupostos
epistemológicos fundamentais do pensamento eco-sistêmico:

13
Um processo recursivo, segundo Morin (2005, p. 231), é aquele no qual “os estados ou efeitos
finais produzem os estados ou causas iniciais (...) processo pelo qual uma organização ativa produz os
elementos e efeitos que são necessários à sua própria geração ou existência”.
14
O Princípio da Incerteza consiste num enunciado da Mecânica Quântica, formulado inicialmente em
1927 por Werner Heisenberg. Constituindo mais um dos paradoxos da Física Quântica, esse princípio
constata a impossibilidade de medir com precisão e ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de um
elétron, gerando grande incerteza quanto a seu comportamento.
15
O Princípio da Complementaridade, enunciado por Niels Bohr em 1928, assevera que a natureza da
matéria e da energia é dual – ondulatória e corpuscular. Estas naturezas não são contraditórias, mas
sim, complementares; daí, o nome do princípio. A percepção de onda ou corpúsculo, pelo observador,
depende do tipo de experiência realizada, por isso a ciência contemporânea assume a estreita
imbricação existente entre o pesquisador e o objeto pesquisado.
16
A Teoria das Estruturas Dissipativas, de autoria de Ilya Prigogine, explica como os processos
químicos estão sujeitos a um jogo de interações não-lineares, nos quais, os fluxos de matéria estão
sujeitos a flutuações, a assumir diferentes direções e organizar-se em diferentes configurações
dinâmicas, oferecendo belas metáforas para as incertezas nos processos humanos.
37

intersubjetividade, interatividade, complexidade, emergência, auto-


organização, autonomia, mudança, incerteza, causalidade circular, inter e
transdisciplinaridade, temas analisados com maior detalhamento nos
capítulos subseqüentes.

As propostas do pensamento Eco-sistêmico são de grande relevância


para a evolução da educação; sua incorporação sofre resistências, mas é
significativa no que tange às reais possibilidades de mudança,
conscientização e ampliação de visão de mundo, conforme se pode
depreender da colocação de Moraes (2004, p. 154):

Um pensamento ecológico-sistêmico é, portanto, um


pensamento relacional, dialógico, interligado, indicando que
tudo que existe co-existe e que nada existe fora de suas
conexões e relações. É um pensamento que se estende além
da ecologia natural, englobando a cultura, a sociedade, a
mente e o individuo.

Finalizando este breve recorte, a autora nos lembra ainda que todas
as nossas ações são ações ecologizadas, ou seja, situam-se numa teia de
conexões, têm o poder de afetar os ambientes e pessoas que nos cercam,
da mesma maneira como somos por eles afetados. No viver cotidiano,
geramos campos vibracionais de interação. Compreender a Educação sob
esse olhar torna-se um ato de poesia.

1.4.3 Sentipensar – teoria e prática para


para reencantar a Educação

A teoria do Sentipensar, formulada por Maria Cândida Moraes e


Saturnino de La Torre, é um poderoso recurso para reencantar a Educação
que se coloca como questão fundamental neste estudo. Através da
38

conjugação de pensamento e sentimento, abre-se um espaço de existência


possível para dimensões tradicionalmente negligenciadas no processo
educacional: emoção, subjetividade, expressão artística, criatividade,
corporalidade, sentido metafórico incorporado à vida, entre muitas outras.

O pensamento dos autores se desenvolve basicamente em duas


vertentes: primeiro, explicar como as emoções podem colocar em marcha
ações, motivações e impulsos que afetam os processos de aprendizagem;
em seguida, desenvolver recursos metodológicos ou estratégias para a
educação emocional, que podem envolver diferentes linguagens artísticas, e
até mesmo cenas do cotidiano como, por exemplo, contemplar a beleza do
mar e refletir sobre a vida. Uma das obras mais interessantes de Torre,
intitulada Diálogos con el mar17, apresenta suas reflexões poéticas,
relacionando metaforicamente as situações e eventos naturais observados
com o dinamismo da vida interior.

Torre (2000, p. 546) explica o valor da dimensão emocional nos


processos educacionais, reforçando ainda mais a visão de um ser humano
integral, defendida também pelas teorias já apresentadas:

(...) a dimensão emocional do ser humano, que há tão-


somente duas décadas estava proscrita em muitas instituições
educativas, emerge com valor próprio junto à experiência e à
razão. Porque nos demos conta que ao analisar os feitos
humanos a partir da vida ou a partir da educação, é preciso
recorrer à vertente emocional caso queiramos obter uma
explicação compreensiva dos mesmos.18

Neste estudo, a escuta musical se apresenta como uma estratégia de


Sentipensar, um recurso a mais para a educação emocional, com capacidade

17
Diálogos con el mar. Barcelona: Editorial Laertes, 2004.
18
Tradução da autora.
39

de colocar em jogo todas as dimensões humanas, criando a partir do


impacto emocional as condições para uma manifestação completa do
indivíduo, inclusive de sua racionalidade.

Os princípios e propostas do Sentipensar têm importância capital na


elaboração deste trabalho; a vivência de emoções em sala de aula promove
o encontro do ser consigo mesmo, preparando-o para atuar por inteiro, e
reintegrando dimensões fragmentadas por uma vida de vivências
educacionais mecanicistas, positivistas e reducionistas.

1.4.4
1.4.4 A concepção de emoções e sentimentos de Antonio Damásio

Antonio Damásio é um neurobiólogo de destacada importância no


cenário contemporâneo. Um dos focos mais importantes de seus estudos
refere-se à ligação intrínseca existente entre razão e emoção. Muito embora
ao longo da história sempre tenha havido pensadores que admitiram a
relevância do assunto, nunca houve tanto quanto na atualidade, condições
para o estudo da neurobiologia humana e de como os fenômenos
neurológicos se interligam aos psicológicos e à própria vida social.

O desenvolvimento neurológico do ser humano se confunde com a


própria história da evolução. No início, contávamos com as estruturas
límbicas e com as emoções primárias do cérebro primitivo, habilitadas a
assegurar a sobrevivência; ao longo do tempo, desenvolvemos a afetividade
e nos tornamos conscientes dessas emoções; em período relativamente
recente da história humana, desenvolvemos as estruturas corticais
superiores. Estas se tornaram o apanágio da racionalidade. Subitamente, a
história evolutiva humana parece ter caído no esquecimento; movidos pelas
40

convicções de um paradigma disjuntor, cartesiano, negligenciamos as


limitações que uma disfunção emocional pode imprimir à racionalidade;
cindimos emoção e razão. A Contribuição de Damásio para este estudo é
constatar a base emocional da racionalidade; por essa razão, suas idéias
tornam-se também muito importante para a compreensão do Sentipensar.

Do ponto de vista neurológico, além do pensamento de Damásio,


outras pesquisas sobre plasticidade cerebral e cognição musical virão
subsidiar a fundamentação do Sentipensar, em especial, as conduzidas por
Robert Zatorre, Tobias Esch e suas respectivas equipes, Jaak Panksepp e
David Servan- Schreiber, entre outros.

1.4.5 Basarab Nicolescu e a Transdisciplinaridade

As reflexões sobre o mundo contemporâneo propostas pela teoria


transdisciplinar, terminam de emoldurar o quadro epistemológico que me
fundamenta. Elaborando explicações possíveis para um mundo atribulado,
ameaçado de destruição tanto no plano material quanto espiritual, a
Transdisciplinaridade contribui aqui, uma vez mais, para a crítica do que
Nicolescu chamou “razão triunfante”: as conquistas mais brilhantes da
humanidade se ofuscam por uma incapacidade crônica de verticalização do
homem. Segundo o autor, esse processo se dá quando a consciência humana
se eleva atravessando e integrando níveis de percepção da realidade, em
direção a uma “verticalidade consciente e cósmica”, que permite ao ser
humano acessar uma realidade muito mais abrangente (NICOLESCU, 2005,
p. 65).
41

A lógica transdisciplinar é muito adequada para as situações


complexas com as quais nos deparamos, na vida em geral e na educação,
pois o ser humano é concebido na totalidade de suas dimensões visíveis e
invisíveis; interessa tanto o que está por fora, quanto o que está por dentro;
seus mitos, crenças, imagens representações; a realidade – também
multidimensional e multireferencial – admite múltiplos enfoques e a
existência do inexplicável.

O pensamento transdisciplinar se sustenta em três pilares: a


Complexidade, a lógica do Terceiro Incluído (T) e a existência de diferentes
Níveis de Realidade, que permitem conciliar opostos, aparentemente,
inconciliáveis. O que não pode ser compreendido em determinado nível de
realidade torna-se compreensível a partir de um nível mais elevado, no qual
opostos contraditórios se integram. Se tomarmos como exemplo, o conceito
de Sentipensar, e o considerarmos a partir de uma perspectiva tradicional,
sentir e pensar surgem inconciliáveis; se o considerarmos a partir de um
outro nível de realidade, ao qual acedemos pela verticalização da
consciência, sua união torna-se possível e passam a constituir uma unidade
complexa.

A dinâmica transdisciplinar é abordada com mais detalhes em outra


parte desse escrito; interessa naturalmente a este trabalho, por incorporar a
subjetividade e unir o que se encontra artificialmente separado.

Fundamentando minhas percepções em aspectos diversos das teorias


já explanadas, e aguçando o sensível olhar-pensante, como diria Martins
(1996, p. 20), é que pretendo encontrar os caminhos para dar resposta ao
problema de pesquisa.
42

2. Metodologia

Janela Oriental
Tatiana Clauzet
43

2.1 Abordagem da pesquisa

Partir em busca do novo é sempre um ato de coragem; o novo tem


sido rejeitado de início, em todas as instâncias; na dúvida, nos tornamos
misoneístas, aferrados às velhas referências que trazem com elas a
segurança.

No entanto, vive-se num mundo de certezas abaladas e de trânsito


constante entre a ordem e a desordem, entre a estabilidade e o caos. As
teorias expostas desde o início incorporam essa instabilidade, abrem espaço
para a relação orgânica, dialógica e recursiva, que pode permitir a
coexistência desses opostos.

A complexidade desses opostos se manifesta na natureza,


primeiramente; e, no ser humano, que também é natureza, por mais que se
esqueça disso; a complexidade se manifesta a cada vez que se lida com a
natureza e com o humano.

Entendo a Educação como uma relação entre seres humanos, portanto,


revestida de complexidade. A complexidade está naturalmente nesta
pesquisa, por envolver o humano e por enfocar processos educacionais
numa concepção ampla. Tanto a aprendizagem como o ensino são processos
de natureza complexa. A cada vez que se enfoca um objeto de estudo de
forma contextualizada nos inserimos numa complexidade crescente.

Por questão de coerência – problemas complexos exigem


metodologias complexas de pesquisa – é que se tornou necessário criar uma
nova forma de fazer pesquisa, a metodologia de desenvolvimento Eco-
44

sistêmico. Segundo Moraes19: “é preciso examinar a congruência


paradigmática existente entre as teorias que fundamentam a pesquisa, o
método selecionado e os respectivos procedimentos estratégicos
planejados”.

Os pioneiros da pesquisa qualitativa, a partir da virada do séc. XX,


foram também aqueles que, pela primeira vez, deram voz aos sujeitos
pesquisados. A abordagem fenomenológica de pesquisa deu um passo além,
atribuindo importância aos atos de consciência dos sujeitos pesquisados, a
seu universo interior e aos significados por eles atribuídos aos fenômenos
vividos e, ainda, considerando a maneira pela qual a consciência de cada
indivíduo lhe permite captar e perceber a realidade; esses foram grandes
passos em direção a uma metodologia de pesquisa para as ciências
humanas.

A metodologia de desenvolvimento Eco-sistêmico transcende tais


conquistas, assumindo a total subjetividade do ser humano com tudo o que
comporta de incerto, de oculto, de interno, de externo e de maravilhoso. O
ser humano transcendente torna-se agora o objeto de pesquisa, o ser
humano transcendente é o observador pesquisador; ambos se encontram na
intersubjetividade e se inserem na complexidade do mundo.

2.2
2.2 Breve histórico da abordagem qualitativa

Segundo Sandin (2003), a pesquisa qualitativa nasceu no início do séc.


XX, desenvolvendo-se ao longo do mesmo, na Grã-Bretanha e na França, e

19
‘Perspectivas teórico-epistemológicas da complexidade e suas implicações na pesquisa
educacional’, de autoria de Maria Cândida Moraes e Armando Valente, a ser editado pela PAPIRUS,
2008.
45

ainda, através das escolas americanas de Sociologia e Antropologia das


Universidades de Chicago e, posteriormente, Columbia, Harvard e Berkeley.

Na gênese dessa abordagem de pesquisa – séc. XIX – encontra-se a


necessidade de equacionar as condições de vida das populações urbanas,
em especial, o impacto de imigrações maciças, situação de pobreza, entre
outros problemas das grandes cidades.

No mesmo período, cientistas, missionários e viajantes, num


movimento característico da época, lançaram-se ao mundo interessados nas
formas de vida não-ocidentais. A partir desse interesse antropológico
surgiu a etnografia. A palavra, segundo Sandin, origina-se de ethnoi, que
para os gregos significava estrangeiros. Na pesquisa etnográfica, o
pesquisador se insere no ambiente a ser pesquisado, na tentativa de
compreender a cultura e o cotidiano dos grupos pesquisados.

A Escola de Chicago, fundada em 1892 por Albion W. Small, teve


papel importante nessa evolução durante as décadas de 1920 a 1930,
aplicando estratégias de pesquisa de campo a minorias sociais – gangues,
imigrantes trabalhadores, gângsteres, entre outros. Pela primeira vez, essas
populações passaram a ganhar voz, configurando um verdadeiro avanço
metodológico.

A partir dos anos 50, começou a consolidar-se o campo da


Antropologia educativa, em especial, a partir dos trabalhos de
pesquisadores da Universidade de Columbia. Estes defendiam a inclusão da
disciplina nas políticas públicas de pesquisa. Outra conquista do período, do
ponto de vista metodológico, foi a adoção da entrevista, como uma
estratégia fundamental da pesquisa qualitativa.
46

Os anos 60, tidos como os “anos de ouro” da pesquisa qualitativa,


assistiram significativos avanços metodológicos. A participação de
pesquisadores da Educação nesse período era ainda tímida; o positivismo, e
os métodos quantitativos e estatísticos dominavam o campo da pesquisa
educacional. No entanto, como explica Sandin (2003, p. 81), “numerosos
educadores começaram a questionar os métodos de investigação
tradicionais, que se baseavam exclusivamente na medição, e apareceram
monografias descritivas da vida escolar”. Apesar de resistências, começou a
crescer o interesse por parte de instituições governamentais em
investimentos para estudos etnográficos acerca da escolarização de
diversos grupos sociais. Data também desse período, talvez a mais valiosa
das aquisições – o questionamento da hegemonia de grupos sociais:

(...) os métodos qualitativos supuseram uma ruptura com o


que havia sido denominado “hierarquia de credibilidade”, a
idéia de que a opinião e visão das pessoas que detêm o poder
são mais valiosas. Frente a essa idéia, a perspectiva
qualitativa defende e reconhece a visão dos mais pobres, dos
excluídos, enfatizando a compreensão das perspectivas de
todos os participantes. (SANDIN, 2003, p. 81)

A partir dos anos 80, os pesquisadores já dispunham de uma ampla


variedade de métodos e estratégias de pesquisa. O séc. XX viu nascer e se
desenvolver diversos enfoques de pesquisa, dentre eles, o interacionismo
simbólico, a etnometodologia, a fenomenologia e o enfoque crítico marxista;
diversificaram-se também os métodos de coleta e análise de dados
qualitativos; e, com o advento da informática a pesquisa qualitativa mudaria
para sempre.

Na gênese do desenvolvimento educacional da pesquisa qualitativa


encontra-se a necessidade de avaliar os resultados dos programas
47

educacionais implementados pelo governo americano ao longo dos anos 60


e 70. Na mesma época, começaram a surgir publicações sobre pesquisa
qualitativa, revistas, e os primeiros encontros reunindo pesquisadores
qualitativos.

Em grande medida, os debates metodológicos dos anos 80


permanecem atuais para nossa época: dados quantitativos versus dados
qualitativos, científico versus intuitivo, postura empirista versus interação
humana. Como ressalta Chizzotti:

O termo qualitativo implica uma partilha densa com pessoas,


fatos e locais que constituem objetos de pesquisa, para
extrair desse convívio significados visíveis e latentes que
somente são perceptíveis a uma atenção sensível e, após este
tirocínio, o autor interpreta e traduz em um texto,
zelosamente escrito, com perspicácia e competência
científicas, os significados patentes ou ocultos do seu objeto
de pesquisa.20

Um avanço notável, agregado pela abordagem qualitativa, é


justamente a admissão de uma realidade fluente, sujeita às emergências e à
abertura da possibilidade de aproximação entre sujeito e objeto pesquisado,
em função da interpenetração existente entre ambos, o que permite a troca
e a compreensão. Na pesquisa qualitativa, vivências subjetivas começam a
ser valorizadas; as concepções, valores e visões de mundo dos atores
encontram forma de estar presentes.

20
‘Pesquisa qualitativa’, de autoria de Antonio Chizzotti, a ser editado (2003).
48

2.3
2.3 Um novo enfoque de pesquisa: A Metodologia de Desenvolvimento Eco-
Eco-
sistêmico
sistêmico

Um dos aspectos mais importantes em qualquer pesquisa é justamente


a tomada de decisão sobre a metodologia a ser adotada em relação ao tipo
de objeto de estudo e ao contexto. Esta coerência acima evocada como uma
congruência paradigmática requer, segundo Moraes21, análises a partir das
“implicações de natureza ontológica, epistemológica e metodológica, que
explicam o funcionamento da realidade e do que é cognoscível”, ou seja, é
necessário tomar consciência das concepções que se tem, acerca da
natureza da realidade, do conhecimento e dos métodos utilizados.

Questões metodológicas são tratadas com grande ênfase nos


ambientes acadêmicos, as questões de natureza ontológica e epistemológica
são normalmente negligenciadas. A questão ontológica implica em como se
interpreta a natureza da realidade; a questão epistemológica refere-se
àquilo que se entende por conhecimento, as duas questões são naturalmente
imbricadas. Toda escolha implica num momento de decisão; a escolha de
uma metodologia é um desses momentos. A postura filosófica do
pesquisador torna-se então fundamental; sua atitude diante da vida e sua
concepção de mundo, fatores determinantes.

A questão paradigmática não deve ser esquecida, nesse contexto.


Assumimos paradigmas de ação na vida cotidiana, tem-se normas sobre
como fazer cada coisa, conjuntos de regras obedecidas às vezes cegamente,
como diria Morin (2002, p. 26) “o paradigma é inconsciente, mas irriga o

21
“Perspectivas teórico-epistemológicas da complexidade e suas implicações na pesquisa
educacional”, de autoria de Maria Cândida Moraes e Armando Valente, a ser editado pela PAPIRUS,
2008.
49

pensamento consciente, controla-o e, neste sentido, é também


supraconsciente”.

Existem três enfoques que se tornaram tradicionais na pesquisa em


Educação, constituindo-se em paradigma de pesquisa: a perspectiva
empírico-analítica de base racionalista e positivista, identificada com o
paradigma clássico ou tradicional; a perspectiva humanístico-interpretativa,
de base fenomenológica e a perspectiva crítica baseada na tradição
filosófica da teoria crítica. (SANDIN, 2003, p. 32).

Pode ser bem ilustrativo considerar um exemplo, de como a visão que


se tem do mundo interfere nas escolhas do pesquisador. Na perspectiva
tradicional, a dimensão ontológica da realidade é ser estática, mensurável,
objetiva, passível de fragmentação por observações e deduções lógicas; o
conhecimento sobre ela só poderia ser linear, purificado de incertezas,
determinado e, em muitos aspectos, mecanicista. A coerência paradigmática,
nessa situação, exigiria um pesquisador neutro, um sujeito desprovido de
nuances internas, assim como também exigiria meios de coleta de dados
quantitativos, matematicamente rígidos, submetidos a análises muitas vezes
reducionistas.

Moraes (2004, p. 20), refletindo sobre essa questão, corroborou a


contribuição das três perspectivas citadas acima, para a pesquisa
educacional, mas consciente da necessidade de um novo paradigma para
uma Educação renovada - em acordo com as exigências de uma realidade
multidimensional, na qual sujeito-pesquisador e objeto de pesquisa passam
a relacionar-se organicamente -, propôs um novo enfoque de pesquisa, o
paradigma complexo ou eco-sistêmico:
50

No pensamento Eco-sistêmico, pelo contrário, a realidade é


dinâmica mutável e multidimensional, ao mesmo tempo,
contínua e descontínua, estável e instável. Uma realidade
incerta e de natureza complexa. Esta linha de pensamento,
que tem a complexidade como um dos fundamentos
principais, ressalta a multidimensionalidade da realidade, dos
processos, dos sujeitos, bem como a causalidade circular de
natureza recursiva ou retroativa, a ordem em sua relação com
a desordem, reconhecendo a presença do indeterminismo, da
incerteza, do acaso e das emergências nos mais diversos
níveis. Uma realidade, portanto, constituída de processos
globais, integradores e não-lineares.22

22
“Perspectivas teórico-epistemológicas da complexidade e suas implicações na pesquisa
educacional”, de autoria de Maria Cândida Moraes e Armando Valente, a ser editado pela Papirus,
2008.
51

2.3.1 Princípios filosóficos


filosóficos na Metodologia de Desenvolvimento Eco-
Eco-
sistêmico

Uma pesquisa baseada na Metodologia de Desenvolvimento Eco-


sistêmico envolve uma multiplicidade de pressupostos filosóficos, que
devem ser levados em conta; ressalto, a seguir, aqueles que me pareceram
ser absolutamente imprescindíveis:

G A complexidade do real e de todos os processos em educação ― objetos

de pesquisa, sejam pessoas, situações ou grupos, estarão sempre situados


organicamente num ambiente e sujeitos a interações, interferências e
interdependências, que passam a ser constitutivas da relação. A realidade é
multidimensional, os sujeitos são multidimensionais, não há como estudá-los
sem os inserir na teia da qual fazem parte. Por essa razão, inspirada em
Morin, Moraes ensina que “toda ação é sempre ação ecologizada”23, o que
significa que toda ação promove mudanças, alterações no ambiente, e que a
pesquisa está sujeita a probabilidades, incertezas e conseqüências, nem
sempre previsíveis. As próprias disciplinas tornam-se multidimensionais,
quando se tem sobre elas um olhar que expande; a visão complexa
reconhece o lugar das disciplinas, porém, em função de seus pressupostos,
destaca a importância da interdisciplinaridade e a necessidade de ir além,
através da Transdisciplinaridade.

G Visão transdisciplinar ― a Transdisciplinaridade originou-se da percepção

que, existimos num mundo, no qual, diferentes dimensões ou níveis de

23
“Ecologia dos saberes – Complexidade, Transdisciplinaridade e Educação”, de Maria Cândida
Moraes, a ser editado em 2008.
52

realidade coexistem, a começar pela coexistência da dimensão quântica


inerente a toda a matéria, e pelo mundo macrocósmico, cenário de nossas
vidas. Mais do que nunca a compreensão, do ser humano e da realidade
multidimensionais, torna-se agora urgente. A Transdisciplinaridade impõe a
abertura do olhar sobre o mundo, a expansão da consciência utilizando uma
lógica que incorpore o aparentemente contraditório, a lógica ternária, sobre
a qual se falará mais adiante. O ser humano em sua subjetividade, por
“medida de segurança”, sempre esteve afastado da ciência; a complexidade
humana colocava em cheque o determinismo na ciência e,
conseqüentemente, na pesquisa. O sujeito-pesquisador deveria ser
“neutro”, para evitar contradições e a falta de objetividade. A
Transdisciplinaridade coloca o sujeito transcendente no centro do processo.

G Incorporação orgânica da subjetividade – felizmente, a objetividade não


está mais associada à ausência de humanidade. A ciência elucidou a
interdependência entre sujeito e objeto de estudo, e o quanto ambos
exercem mútuas interferências; a objetividade só pode ser “objetividade
entre parênteses”, como propõe Maturana (2002). Como pode existir
realidade independente do sujeito que a observa? O sujeito está de volta à
ciência com corpo, mente e transcendência, além de que, nossa mente é uma
“mente encarnada” como ensinam Varela e seus colaboradores (2003). A
pesquisa, neste momento, reconhece “o pleno emprego das forças
subjetivas”, acrescenta Barbier (2002, p. 86). Nossas construções racionais,
mais do que nunca, dependem de acordos intersubjetivos.

G Caráter processual – a pesquisa, na atualidade, vai perdendo o caráter


determinista e incorporando cada vez mais a característica de processo
auto-organizador, no qual, caminhar torna-se tão significativo quanto
53

chegar. As idas e vindas são interpretadas com naturalidade; encontra-se


espaço para aprender com a experiência e o erro. Os agentes e
componentes materiais da pesquisa encontram-se em interação, sujeitos à
retroalimentação e à recursão24: resultados parciais são incorporados
durante a pesquisa, transformando-a numa espiral evolutiva; a causalidade
deixa de ser linear, transformando-se em causalidade circular. Processos
caracterizam-se pela mudança no transcorrer do tempo, dessa maneira dão
lugar a emergências, ou seja, a novas ocorrências. As emergências não
devem ser compreendidas como “desvios de rota”, mas sim, como
“novidades qualitativas”25, pois vivificam o processo de pesquisar,
tornando-o orgânico, aberto, flexível, passível de incorporar novas
descobertas que, cada vez mais, exigem um olhar atento do observador.

G Ética e valores – nunca antes foi tão necessário repensar as questões


éticas e os valores que regem nossa cultura, pois agora é a própria
sustentabilidade da vida que se encontra ameaçada. A biosfera está em
perigo, pois não se soube tomar decisões pensando até a sétima geração a
partir de nós, não se aprendeu a “escutar o abrir das folhas na primavera, o
ruído das asas de um inseto”26; nem a preservar as relações humanas e o
diálogo intercultural. A questão do respeito se impõe, e como não poderia
deixar de ser, também na pesquisa científica: a preocupação com os sujeitos
envolvidos deve ser a tônica, evitando todas as formas de manipulação,
comunicando claramente intenções e resultados, assim como pautando todas
as ações por decisões democráticas e não-autoritárias, baseadas no diálogo.

24
Segundo Morin, um processo recursivo é aquele no qual “os estados ou efeitos finais produzem os
estados iniciais ou as causas iniciais”, gerando uma dinâmica circular.
25
“Ecologia dos saberes – Complexidade, Transdisciplinaridade e Educação”, de Maria Cândida
Moraes, a ser editado em 2008.
26
Carta do Chefe Seattle. Disponível em: http://www.comitepaz.org.br/chefe_seattle.htm.
54

2.3.2 Questões metodológicas


metodológicas na pesquisa de desenvolvimento Eco-
Eco-sistêmico

Na perspectiva tradicional positivista de pesquisa, o processo de


pesquisar caracterizava-se por grande determinação; métodos, estratégias e
cronograma deveriam estar rigorosamente previstos antes do início da
pesquisa, não admitindo, portanto, a eclosão de emergências. Tal exigência,
a priori, me faz pensar nos planejamentos escolares, realizados antes do
ano letivo e antes de qualquer contato entre professores e alunos, feitos
para um aluno abstrato e para uma turma ainda virtual; o planejamento
deveria ser construído no iniciar das aulas, com a total participação dos
sujeitos envolvidos, ou pelo menos, a partir desse contato, pois o
planejamento não deveria preceder a existência de uma situação real; assim
como “o método não precede a experiência, o método emerge durante a
experiência e se apresenta ao final, talvez para uma nova viagem”. (MORIN;
CIURANA; MOTTA, 2003, p. 20) Como explica Moraes27:

Esta opção metodológica é conseqüência da percepção de que


existe uma relação recursiva entre teoria e método, entre
método e estratégia onde o método é gerado pela teoria que,
ao mesmo tempo, regenera a própria teoria, bem como as
estratégias derivadas da metodologia regeneram o próprio
método que lhe deu origem. Assim, a partir do método de
pesquisa é que se planejam as estratégias de ação capazes de
responder às incertezas cognitivo/emocionais e históricas que
se apresentam.

Outra questão metodológica fundamental se evidencia a partir da frase


de Maturana “tudo o que é dito, é dito por alguém” (MATURANA; VARELA,
2002, p. 32). A frase não nos permite esquecer, uma vez mais, que por trás

da pesquisa existem subjetividades ― do pesquisador, dos sujeitos

27
“Ecologia dos saberes – Complexidade, Transdisciplinaridade e Educação”, de Maria Cândida
Moraes, a ser editado em 2008.
55

envolvidos na pesquisa ― e que tudo o que se possa dizer sobre um fato ou

situação tem sempre caráter interpretativo, é sempre a visão de um sujeito


determinado, com um determinado conjunto de referências, sobre um fato
da realidade que exige explicação. Construímos idéias, interpretações,
roteiros para pensar sobre fatos em qualquer pesquisa, no entanto, não se
pode esquecer que tais construções não constituem uma representação fiel
da realidade, mas sim, uma interpretação possível, aquilo que se consegue
perceber dela: ”o mapa não é o território”28, diria Korzybski, a realidade é
sempre mais do que aquilo que se pode dizer sobre ela.

Na pesquisa qualitativa com enfoque Eco-sistêmico, as hipóteses


verificáveis são substituídas pela “pergunta de pesquisa”, mais aberta,
admitindo o caráter processual em questão e, sobretudo, livre do
determinismo gerado pela rigidez das etapas a seguir na confirmação de
uma hipótese. Perguntas de pesquisa são mais adequadas à complexidade
dos fenômenos humanos que se deseja conhecer.

Em vista da grande abertura de olhar e flexibilidade metodológica


propostos pela abordagem Eco-sistêmica de pesquisa, resta esclarecer de
que maneira esta se submete aos critérios de rigor científico exigidos em
qualquer pesquisa.

Ao longo da trajetória científica e intelectual ocidental, a subjetividade


sempre esteve associada à falta de rigor; a proposta Eco-sistêmica, como
discutido anteriormente, revaloriza esse sujeito e tudo o que lhe caracteriza.
O critério objetividade é substituído pelo de interação entre todos os
participantes e componentes da pesquisa, articulados de forma coerente e

28
Frase de Alfred Habdank Skarbek Korzybski (1879-1950) filósofo e cientista polonês que
desenvolveu uma teoria geral sobre a semântica.
56

intersubjetiva. A interdependência e coerência dessas partes garantem a


consistência do todo; alterar uma parte significa alterar o todo e,
conseqüentemente, invalidar todo o procedimento.

Na perspectiva Eco-sistêmica, tampouco se fala de generalização ou


transferibilidade, termos que se originam de um pensar absoluto, regido por
leis absolutas e que ignoram a especificidade intrínseca a cada objeto
pesquisado, seja indivíduo, grupo ou situação. A generalização coisifica o
resultado da pesquisa, tornando-o neutro e transferível a qualquer
ambiente, o que se sabe não ser mais possível. Os conceitos de polinização
e fertilização do conhecimento substituem a possibilidade de generalização;
cada pesquisa será sempre única, mas poderá partir de sementes, do pólen
deixado por pesquisas anteriores como explicam Torre e Moraes29: “a
polinização nos permite não só ir mais além do dado obtido sem renunciar ao
contexto em que se gerou, mas também ser germe e origem de novas
propostas”.

Finalmente, e provisoriamente, visto que muito ainda haverá de ser


dito sobre os critérios de rigor na pesquisa de abordagem Eco-sistêmica,
parece importante ressaltar seu caráter ético, que oferece mais uma
garantia de validade. A ética está presente na própria escolha do tema de
pesquisa, na escolha do método e das estratégias e, sobretudo, nas relações
sociais envolvidas, o que significa construir um diálogo democrático, franco
e aberto com os sujeitos, com as instituições, e comprometer-se na
divulgação e partilha de resultados.

29
Projeto “Escenarios y redes de aprendizaje integrado para una enseñanza de calidad” (ERAIEC)
elaborado por Maria Cândida Moraes e Saturnino de La Torre, e promovido pela Red Internacional de
Ecologia de los Saberes, em 2007.
57

2.3.3
2.3.3 Instrumentos de coleta de dados na pesquisa de abordagem Eco-
Eco-
sistêmica

A questão da coleta de dados numa pesquisa de abordagem Eco-


sistêmica segue a impulsão geral dos princípios filosóficos discutidos:
tornam-se flexíveis na aplicação a fim de incorporar as exigências de uma
visão complexa e transdisciplinar, para tanto, sujeitam-se às mesmas
normas de processos orgânicos com suas interações, retroações,
recursividades. Durante minha pesquisa, apenas para citar um exemplo
claro, pude experienciar tal processo, pois a estratégia de Escuta Musical

produzia, a cada aula, efeitos sentidos pelos sujeitos da pesquisa ― meus

alunos. Estes, à continuação, agregavam a suas experiências anteriores,


cada vez mais, referências vivenciadas em situação de escuta e de interação
com o grupo, de tal maneira que é possível dizer que, a cada aula o grupo se
transformava; e, conseqüentemente, transformavam-se os destinos da
pesquisa e as decisões a tomar, assim como surgiam variações nas
estratégias de coleta de dados, configurando um processo vivo de
pesquisar, que apenas corrobora a fala de Moraes30: “dados não são
coletados, mas sim, construídos”.

Princípios éticos e valores não podem ser esquecidos quando se tem a


intersubjetividade como um dos pressupostos epistemológicos. Na presente
pesquisa, me inseri como observador ativamente participante no processo;
tornei-me um elemento do grupo, entrando em interação e troca
intersubjetiva com ele, revelando minhas intenções e partilhando decisões.
Naturalmente, como em toda pesquisa, houve momentos em que não seria
totalmente indicado que os alunos soubessem exatamente o que eu estaria

30
“Ecologia dos saberes – Complexidade, Transdisciplinaridade e Educação”, de Maria Cândida
Moraes, a ser editado em 2008.
58

observando, mas passada a experiência, essa intencionalidade era


comunicada, estabelecendo com eles um pacto de consentimento, informado
no uso dos dados obtidos.

A Metodologia de Desenvolvimento Eco-sistêmico cria novos


instrumentos de coleta de dados; não descarta os eficientes instrumentos já
existentes, a exemplo da observação participante, da entrevista semi-
estruturada, da história de vida, do estudo de caso, entre outros, porém, os
submete aos novos operadores cognitivos, constituídos pelos princípios da
Complexidade que funcionam como instrumentos para um pensar complexo.
Ela provoca uma expansão no que concerne à sua aplicabilidade num
contexto complexo e transdisciplinar, como explicam Torre e Moraes31:
“Não pretendemos gerar recursos únicos, mas sim, tomar alguns dos já
existentes dotando-lhes de um olhar amplo, interativo, intersubjetivo e
crítico”.

Dentre os novos instrumentos de coleta de dados propostos pela


Metodologia de Desenvolvimento Eco-sistêmico, podem ser citados os que
seguem: Testemunhos, Declarações de impacto, Depoimento ou declaração
sentida, Depoimento coletivo; inspirados da proposta de Sentipensar, que
possibilita a união de sentimentos, pensamentos e ações, ou seja, a
incorporação do ser sensível e das emoções dos sujeitos. Idéias de
inspiração artística também podem gerar instrumentos eficientes, a exemplo
da Estratégia de encenação e das Dinâmicas criativas aparentadas do
psicodrama.

31
Fala dos autores em projeto elaborado para a Rede Internacional de Ecologia dos Saberes,
Barcelona, 2007.
59

A presente pesquisa se utilizou de uma dessas estratégias artísticas


como instrumento de coleta de dados, que será descrita em detalhes no
Capítulo 6.
60

3. A Complexidade:
omplexidade: um novo paradigma para reencantar a educação

A Complexidade não elimina a simplicidade (...)


integra nela tudo o que põe ordem, clareza,
distinção, precisão no conhecimento;
(...) o pensamento simplificador desintegra
a complexidade do real(...)
E. Morin

Saber Cuidar
Tatiana Clauzet
61

O cenário

Eu era a aluna naquele ambiente ao mesmo tempo tão sonhado e


hostil. Sonhado, pois, desde sempre eu havia sido criada para admirar
aquele mundo europeu, a França, “o berço da cultura”; hostil, pois eu
não havia dimensionado o quanto seria difícil navegar naquele mar de
diferenças, ora encaradas como exóticas, ora encaradas como
excludentes. Eu estava no Conservatoire National de Région de
Musique de Lyon.

O fascínio era grande ao ver aquele mundo tão bem preparado e


instituído para estudar música em comparação ao nosso Brasil, onde
há que ser bandeirante, explorador, desbravador dos sete mares, e
ainda mais, há vinte anos.

E o que dizer das bibliotecas e lojas nas quais era possível encontrar
tudo o que se quisesse e tão acessível...

Por outro lado, quem vive em São Paulo pode viver em qualquer
lugar, quem é brasileiro está preparado para o mundo (são meus
adágios preferidos), pois aqui nada nos é dado, e tudo deve ser
duramente construído, o que tornava a experiência do conservatório e
das bibliotecas francesas ainda mais fascinantes. Mas havia algo que,
sem dúvida alguma, somente um brasileiro poderia ter: criatividade a
toda prova; e mais que isso: poder de criação.

A estrutura do conservatório era rígida, com sistemas de emulação e


premiação, com professores ultracompetentes e rígidos, havia uns
poucos ao lado de quem era possível respirar – não posso ser tão
injusta.

Ali também estavam presentes as diferenças culturais, havia cidadãos


de segunda classe, aqueles considerados “muito velhos” para estar
ali; eu estava inserida neste grupo, e estrangeiros, de uma maneira
geral. Por duas vezes, pelo menos, senti que minha competência foi
colocada em cheque: na primeira vez, quando numa aula se precisou
de alguém que tocasse um acompanhamento ao piano, à primeira
vista, ninguém se habilitou a fazê-lo; eu me ofereci, mas o professor
hesitou, e pude ler em seu rosto que ele não acreditava que eu seria
capaz; uma outra vez, falávamos de compositores contemporâneos e
citei um compositor italiano que ele aparentemente não conhecia,
senti também uma ponta de escárnio, “eu deveria estar enganada”,
“ele nunca ouvira falar daquele compositor...”
62

Havia um professor especial, o incômodo que ele me causava passou


a ser algo subliminar em minha vida, ele era tão sábio e competente
quanto frio; e um ano depois de conhecê-lo, passou a habitar meus
sonhos e depois minhas sessões de terapia. Ele maravilhava a todos
com todo o conhecimento que tinha, e sua capacidade de tocar quase
qualquer obra do repertório ocidental em qualquer tonalidade, e suas
leituras de Bachelard, entre muitos outros talentos. Ele costumava
dizer-nos que se começássemos a estudar assiduamente naquele
momento quando morrêssemos teríamos apenas uma pequena parte
do conhecimento necessário, etc. etc..

Sua disciplina era Análise musical – período clássico. Estávamos


analisando todos os segundos movimentos de sonatas de Beethoven.
Um dia, uma dessas sonatas ficou como tarefa e ele colocou como
dever de casa o desafio de descobrir a forma musical daquele
movimento.

Lancei-me à tarefa com entusiasmo, como sempre fazia, escutei


inúmeras vezes e a forma continuava ambígua, poderia ser uma forma
lied, mas por alguma razão, achei também que poderia ser uma forma
sonata sem desenvolvimento e isso seria bem pouco usual e eu nem
sabia se existia... A dúvida cresceu e decidi levá-la para a sala de
aula.

A aula começou naquele lugar que tinha mais ou menos a estrutura


física de um tribunal. Ele perguntou com uma ponta de ansiedade
quem tinha feito a tarefa. Respondi logo que eu tinha feito e como
sabia que deveria tentar ser o mais objetiva possível, eu disse que
poderia ser uma forma lied, mas também uma forma sonata sem
desenvolvimento.

O tempo fechou. O professor ficou muito incomodado e disse


agressivamente, “e se fosse a prova? você responderia que tanto
pode ser uma coisa como outra? Como ficaríamos? Que nota eu
poderia lhe dar, zero ou dez?” Na época, eu não dispunha de arsenal
argumentativo, apenas me calei, e a aula transcorreu normalmente
durante duas horas com muitas citações de Bachelard e outros
filósofos, com muitas intervenções ao Piano, exemplos e explanações
competentes, e... ao final, depois de muitas idas e vindas, ele
enunciou com ênfase que a forma era sonata sem desenvolvimento.

Compreendi que eu não poderia ter tido o direito de antecipar-me, eu


não poderia ter tido sucesso na tarefa, pois isso não estava previsto,
e ainda mais eu, uma sul-americana...
63

Comentário sobre a experiência

A experiência relatada acima é uma experiência típica do cenário


educacional tradicional que todos de minha geração conheceram tão bem:
não-dialógica, opressora, magistocentrista, um tipo de experiência que nega
o outro e a subjetividade do outro e, com isso, tudo que pode haver de
incerto na maravilhosa construção que é o humano.

O professor não havia compreendido ainda, apesar de sua erudição, o


quanto a partir de agora nossas vidas estariam regidas por incerteza, o
quanto existe a aprender na ambigüidade e, até mesmo no erro; não havia
aprendido a conciliar opostos, apenas aparentemente contraditórios. Zero ou
dez poderia ser a nota, não havia intermediação, nada de caminho do meio,
nada de discutir e chegar juntos à conclusão, a resposta deveria vir de um
só, e esse indivíduo era ele.

O professor vivia plenamente na dimensão cartesiana, como aliás é


bem natural na França, mas poderia não ser, pois de lá também vieram os
grandes, alguns dos mais importantes pensadores de todos os tempos, de
uma visão integradora da vida: Lupasco, Morin, Random, entre outros.

No entanto, aquele professor ainda tinha algo a aprender, pelo menos


mais uma coisa: como conceber a vida de forma não-fragmentária.
64

3.1
3.1 Um mundo fragmentário

Tal como noutros períodos de transição, difíceis de entender e


de percorrer, é necessário voltar às coisas simples, à
capacidade de formular perguntas simples, perguntas que,
como Einstein costumava dizer, só uma criança pode fazer mas
que, depois de feitas, são capazes de trazer uma luz nova à
nossa perplexidade.
Boaventura Sousa Santos

As concepções sobre a Educação têm que mudar com urgência, e a


questão da fragmentação de processos e do ser humano pareceu-me ser um
ponto focal dos mais importantes para essa discussão. Colocar a
fragmentação no centro da questão realça todas as formas possíveis de
integração, pois vive-se num universo educacional cindido, tanto no nível
macro, quanto no nível micro, como bem explica Moraes (1999, p. 85):

A cosmovisão quântica implica, em nível macro, uma concepção


de totalidade da realidade a ser transformada, a formulação de
conceitos e modelos interligados, e o desenvolvimento de
organizações sociais correspondentes, que se comuniquem e
cooperem entre si. Pressupõe um movimento dialético entre as
diferentes esferas do poder público, entre as diversas
instâncias setoriais, para que demandas comuns e específicas
sejam, ao mesmo tempo, ponto de partida e de chegada.

No nível individual, essa cosmovisão importa um novo diálogo


criativo entre a “mente” e o “corpo”, entre interior e exterior,
sujeito e objeto, hemisfério cerebral direito e esquerdo,
consciente e inconsciente, indivíduo e seu contexto, ser
humano e natureza. Até que ponto a educação, os ambientes de
aprendizagem, as propostas curriculares e as práticas
educacionais vêm facilitando esses diálogos? O diálogo do
indivíduo consigo mesmo, com a sociedade e a natureza?
65

Por outro lado, em esferas mais restritas e diretamente ligadas à sala


de aula, como é o caso, por exemplo, do ambiente pedagógico e
administrativo das escolas, os níveis de fragmentação permanecem; o ser
humano e suas necessidades foram esquecidos no processo. Não é
totalmente surpreendente que se tenha chegado a isso diante de nossa
descendência intelectual; refiro-me ao pensamento cartesiano e a todas as
idéias que ajudaram a forjar o paradigma mecanicista sob o qual temos
vivido nos últimos quatro séculos.

A Educação pode ligar mundos, o macro e o micro, o externo e o


interno, o individual e o coletivo, razão e emoção, e tudo isso ocorre
simultaneamente enquanto se vive a vida e a escola. Ao confrontar estes
extremos e sua possibilidade de ocorrência simultânea, percebe-se num
mundo de complexidade, um mundo paradoxal, impreciso, aberto, no qual os
opostos convivem, se complementam, dialogam, interagem. O ser humano é
complexo em sua multidimensionalidade; a Educação é complexa em sua
multidimensionalidade. A unidimensionalidade falseia a compreensão da
realidade, trata-se de “um modo mutilador de organização do conhecimento,
incapaz de reconhecer e apreender a complexidade do real”, como diz
Morin (2003, p. 14).

O movimento filosófico e científico que se constrói na atualidade,


aponta para uma realidade extremamente mais complexa, multifacetada,
para um ser humano cheio de mistério. Todas as formas de redução
falharam, o paradigma disjuntor, como diria Morin, não dá mais conta de
explicar esse mundo de complexidade no qual estamos imbricados.
66

3.1.1
3.1.1 Mas... O que é Complexidade?

A Teoria da Complexidade oferece uma nova perspectiva de


compreensão e análise do mundo. A palavra vem sendo utilizada desde fins
dos anos 60; dentre uma plêiade de pensadores a ela dedicados destaca-se
Edgar Morin, que a define como complexus, ‘o que é tecido em conjunto’. Na
concepção cotidiana, a palavra complexidade remete ao que é difícil, à
complicação, este é seu sentido coloquial. A complexidade se nos apresenta
como uma realidade ampla, difícil de abraçar, um “fenômeno quantitativo:
extrema quantidade de interações e interferências entre um número muito
grande de unidades” (MORIN, 2003, pg. 51). Porém, complexidade não é
complicação: o ser humano não é complicado, a realidade não é complicada;
ambos são fenômenos complexos e isso quer dizer que fazem parte de um
ambiente complexo de conexões e que devem ser considerados a partir de
uma multiplicidade de pontos de vista.

O pensamento disjuntor racionalista não se habituou à análise


contextualizada, coloca-se agora a necessidade urgente de reaprender a
pensar de forma integrativa, reinserindo seres e fenômenos em seu
ambiente. Trata-se de uma concepção sistêmica; parte do pressuposto de
que esses fenômenos são complexos, articulam em si grande número de
aspectos integrados numa dinâmica relacional e organizacional interna, que
depende de uma interação com o meio. O pensamento complexo ensina que
somos seres relacionais, indivíduos em interação com a sociedade – embora
internamente constituídos por uma outra dinâmica - e ainda, que tecemos
juntos a teia da vida.
67

3.1.2 Inteligência Cega: O paradigma simplificador

(...) o simples não existe: só há o simplificado(...)


Gaston Bachelard

Tudo o que se pensa e se faz, é decidido pelo paradigma que nos


rege, não se escolhe um paradigma. Este, pode ser compreendido como o
conjunto de idéias que se forma sobre determinado assunto ou situação,
sejam estas conscientes ou inconscientes. Desde o útero materno
vivenciamos os paradigmas de nossos pais, as idéias e experiências que
estes consideram boas e adequadas. Valores e crenças nos são ensinados
pelas pessoas que mais amamos: pais, parentes, professores e, por isso é
tão difícil questionar e perceber o próprio comportamento. Uma mudança de
paradigma exige mexer no âmago do ser, questionar; exige estar sempre
munido da palavra “por que?”.

Segundo Koellreutter, a palavra por que é uma universidade, pois


através dela e simplesmente dela, se torna possível chegar à compreensão
de qualquer coisa que se deseje, e caso se una ao questionamento um olhar
agudo e perspicaz, não haverá dificuldade no mundo que fique sem resposta.
Foi assim que, prodigiosamente, se ergueu todo o império da civilização, na
esteira de uns pioneiros, às vezes, tidos como loucos, que sempre se
perguntaram de antemão: por que? e partiram em busca da resposta. O

senso comum ― aquele conjunto de idéias intuitivas que se tem sobre como

fazer alguma coisa ―, em geral, espontâneo e acrítico, é que torna tão difícil

promover a mudança na escola. (LUCKESI, 2000, p. 95)


68

Além disso, se está também sob o domínio da Inteligência Cega, como


diria Morin, a inteligência que fragmenta, disseca para compreender,
esquecendo-se de voltar ao todo, que toma a parte pelo todo. Em última
análise, é um tipo de inteligência que retira do ser humano o que há de mais
humano: sua complexidade, sua multidimensionalidade, adotando formas
reducionistas para atender a esse ser. A Inteligência Cega é “um modo
mutilador de organização do conhecimento, incapaz de apreender a
complexidade do real”.

O simples não existe, as menores coisas estão inseridas em teias


complexas de relacionamento. Em música, sempre se nutre algum
preconceito em relação às peças simplificadas para Piano, por exemplo. Na
simplificação, a obra conserva algo de sua essência, a melodia talvez, que
emocionalmente cativa ao ouvinte. Este, se interessa apenas por ter acesso
à parte da música que lhe cativou, negligenciando o ambiente do arranjo
criado pelo autor. No entanto, a sutileza concebida pelo autor, em termos de
um acompanhamento diáfano, com harmonias bem encadeadas e
surpreendentes, se esvai, dando lugar a uma espécie de vaidade do ouvinte,
que se empenha em ouvir aquilo que entende ser a obra musical; o simples,
por outro lado, nada perde e tudo agrega, basta pensar nas pequenas peças
do ‘Microcosmo’, de Bela Bartok, ou naquelas de J. S. Bach, compostas para
o livro de Anna Madalena, muito simples, acessíveis a qualquer iniciante;
preservando, porém, sua essência, sua integridade; nelas, o autor continua
presente, na íntegra.

O Pensamento Complexo recusa todas as formas de simplificação e


recupera, para seres e fenômenos, a complexidade do real. Este se parece
muito mais com uma teia, a teia da vida, como diria Capra (1996). Na teia,
69

todas as partes se interligam. Tornam-se interdependentes, e alterar parte


dela promove sua total mudança.

A escola trabalha com concepções disjuntivas: separa as dimensões


do aluno, separa o professor do aluno, negando a dialogicidade que anima
este relacionamento; isola conteúdos de seu contexto histórico e da trama
estrutural que poderia via a clarificá-los, desintegra o processo de ensino-
aprendizagem. Na visão educacional magistocentrista, vigente por tanto
tempo e ainda resistente em nossa época, se tem a garantia de que existe o
ensino, mas nem sempre se pode garantir que exista a aprendizagem, pois
esta deveria se dar na troca efetuada entre os atores, e entre estes e o
ambiente que os envolve. Paulo Freire, o grande apóstolo do diálogo, coloca
a prática dialógica no cerne de qualquer processo em Educação.

A nova cegueira fragmentadora e alienante coloca em risco o próprio


destino da humanidade; o uso inadequado da razão, a substituição dos
valores qualitativos pelos quantitativos, a valorização desenfreada do
consumo e do dinheiro, a mercadologização de tudo e de todos, podem
destruir as possibilidades antes que se concretizem:

Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos


conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma
sociedade de comunicação e interativa libertada das carências e
inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós: o
séc. XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão
cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico
combinada com os perigos cada vez mais verossímeis da catástrofe
ecológica ou da guerra nuclear faz-nos temer que o séc. XXI termine
antes de começar. (SANTOS SOUSA, 2003, pg. 14)
70

3.1.3 Século XVI: uma revolução paradigmática: o paradigma tradicional


mecanicista

Na filogênese do pensamento ocidental, aprende-se a mutilar o todo,


seccioná-lo em pequenas e, pretensamente, mais compreensíveis partes;
essa é a essência do método científico. O pensamento que sustenta nossa
ação é o do Paradigma cartesiano, mecanicista, chamado por Morin
“paradigma simplificador”.

Descartes plasmou a transformação do pensamento, em curso nos


sécs. XVI e XVII. Suas idéias simbolizaram e materializaram uma ruptura

com a concepção medieval do mundo ― configurada pelo pensamento

aristotélico e pela doutrina escolástica32. Esta revolução paradigmática


engendrou uma nova concepção de mundo: “Os protagonistas do novo
paradigma conduziram uma luta apaixonada contra todas as formas de
dogmatismo e de autoridade” (SANTOS, 2003, p. 15). Uma nova ordem
científica estava se consolidando e lançando as bases de uma nova forma de

ideologia ― o cientificismo. Esta afetaria profundamente a humanidade, e iria

imperar soberana pelos séculos seguintes.

Descartes é tido como um dos pensadores mais importantes e


influentes da história ocidental; sua prioridade era construir um “método”
para a busca da verdade, partindo do zero e descartando todas as doutrinas
que lhe haviam sido ensinadas: “Meu desígnio se limita a tratar de reformar
meus próprios pensamentos e edificar sobre um terreno inteiramente meu, e

32
O problema-chave da filosofia escolástica é harmonizar as esferas da fé e da razão. Seus maiores
representantes foram Sto. Agostinho (final do séc. IV) e São Tomás de Aquino (séc. XIII). Separados
no tempo e no espaço por quase um milênio, dão a justa medida do poder da Igreja durante todo o
período medieval, o que justifica plenamente a oposição que passa a sofrer, a partir do séc. XVI.
71

se vos apresento aqui o modelo, tendo me satisfeito bastante minha obra, a


ninguém aconselho por isso que a imite”. Para tanto, decide “descartar
como absolutamente falso” tudo aquilo que lhe oferecesse a menor dúvida
(DESCARTES, 1984, pg. 13). Assim, descarta os sentidos que enganam,
descarta demonstrações racionais “porque há homens que se equivocam ao
raciocinar”, desconfia de seus próprios pensamentos, pois “estes podem
apresentar-se também como sonhos sem nada de realidade”, mas chega a
uma verdade que considera inquebrantável: para poder duvidar de todas as
coisas, era necessário que ele próprio – o que pensa – existisse com
certeza. Daí então a célebre frase: “Penso, logo existo”.

Ao estabelecer o pensar como critério único de existência, promoveu


uma cisão indelével no ser humano. Por um lado, ficou o sujeito pensante
(ego cogitans), o ser reflexivo; por outro lado, a vida material, o corpo, os
objetos do mundo (res extensa).

Ao interpretar a matéria como alguma coisa totalmente separada da


alma, o mundo como uma coleção de objetos, e o corpo humano como um
conglomerado de funções independentes, o terreno estava fertilizado para o
florescimento de uma visão mecanicista de mundo; o corpo humano e o
cosmos transformaram-se em máquinas. Isaac Newton foi um dos principais
arquitetos da visão de mundo mecanicista. Em 1666, formulou a Lei da
Gravitação Universal, e, em 1687, as Leis do Movimento33, uma verdadeira
revolução científica, a partir da qual veio a consagração e quase

33
Essas leis foram apresentadas em seu livro intitulado Philosophiae Naturalis Principia Mathematica
e consistem nos seguintes enunciados: Primeira Lei ou princípio da inércia: Todo corpo continua em
seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a menos que seja forçado a
mudar aquele estado por forças imprimidas sobre ele. Segunda Lei ou princípio fundamental da
mecânica: A mudança de movimento é proporcional à força motora imprimida, e é produzida na
direção da linha reta na qual aquela força é imprimida. Terceira Lei ou lei de ação e reação: A toda
ação há sempre oposta uma reação igual, ou, as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são
sempre iguais e dirigidas a partes opostas.
72

sacralização de sua teoria, tida como uma explicação absoluta para o


funcionamento do mundo por pelo menos 250 anos, até ser contestada pela
Teoria da Relatividade e pelas surpreendentes descobertas da Teoria
Quântica, no séc. XX. Como ilustra Capra (1983, p. 25):

Essa visão mecanicista do mundo foi sustentada por Isaac


Newton, que elaborou sua mecânica a partir de tais
fundamentos, tornando-a o alicerce da Física clássica. Da
segunda metade do séc. XVII até o fim do séc. XIX, o modelo
mecanicista newtoniano do universo dominou todo o
pensamento científico. Esse modelo caminhava paralelamente
com a imagem de um Deus Monárquico que, das alturas
governava o mundo, impondo-lhe a lei divina. As leis
fundamentais da natureza, objeto da pesquisa científica, eram
então encaradas como as leis de Deus, ou seja, invariáveis e
eternas, às quais o mundo se achava submetido.

A visão mecanicista de mundo depende de um determinismo absoluto;


a máquina do mundo, posta a funcionar por iniciativa divina, era
completamente previsível; conhecendo-se as causas iniciais, se poderia
prever todo o comportamento dos corpos e fenômenos. A causalidade
linear, intimamente associada ao pensamento determinista, viria a
desmoronar; toda e qualquer forma de determinismo causal viria a ser
abalada a partir de meados do séc. XIX, com descobertas impactantes no
campo da Biologia, da Termodinâmica, da Física, da Cosmologia,
estendendo-se também às ciências humanas. O mundo não seria mais o
mesmo, nem as concepções sobre ele; uma nova revolução paradigmática
estava se armando.
73

Tais doutrinas fertilizaram o terreno para uma concepção materialista


da vida e do ser humano. O Iluminismo34 e o Positivismo da segunda metade
do séc. XVIII são os últimos alicerces de uma visão de mundo centrada na
racionalidade, na objetividade e na exclusão de qualquer possibilidade
metafísica.

34
Movimento filosófico da segunda metade do séc. XVIII – século das luzes, na França ― que
propunha a razão e a ciência como formas para a explicação de todos os campos da experiência
humana.
74

3.2 Fragmentação e mecanicismo na situação escolar

Voltando ao cenário inicial deste Capítulo, lá estava eu, no


Conservatório de Lyon, no olho do furacão; forças antagônicas lutavam
entre si: o sonho e minhas projeções interiores, por um lado, versus o
ambiente marcadamente determinista que encontrei, um ambiente que em
muito me desiludia; não era aquilo que eu esperaria encontrar. A escola
também é assim; como professores, desejamos que seja um espaço de
ensino, de silêncio, concentração; não é nada disso, porém, o que esperam
os alunos. Estes vêem na escola mais um espaço de convivência, mais um
espaço para viver a vida.

Eu era ‘diferente’ no Conservatório; muito mais velha do que deveria


ser, segundo o paradigma vigente, apesar de ter apenas vinte e oito anos;
pouco para mim, muito para eles. A diferença era muitas vezes exótica, mas
na maior parte do tempo excludente; sempre havia um momento para eu ser
lembrada que era diferente... e assim é, também, em qualquer sala de aula:
“seres exóticos” são rapidamente enquadrados, ainda quando pouco se sabe
sobre eles.

Aquele ambiente padecia de muitos contrastes que não dialogavam,


muitas oposições que não se encontravam; por um lado, o professor em sua
racionalidade técnica cartesiana, por outro lado, alunos sem voz; por um
lado, aqueles que foram premiados, por outro, aqueles que estavam errados,
a priori; por um lado, excesso de autoconfiança, por outro, desconfiança
total do conhecimento do outro; por um lado, a dúvida e o erro construindo
um caminho de conhecimento, por outro lado, a exigência do acerto, e em
presença dele, sua negação, em nome do ego exacerbado.
75

Era um ambiente problemático. Os ambientes escolares sempre se


tornam problemáticos quando o outro lado não tem voz, quando a redução e
a disjunção impedem que os opostos aparentes se integrem numa lógica
ternária35 e inclusiva; e, quando erros não são interpretados como
emergências resultantes da riqueza do processo.

Mais uma vez, trata-se da fragmentação que separa: fragmentação de


processos, fragmentação de disciplinas, fragmentação da visão de mundo e,
sobretudo, fragmentação do ser humano que existe no aluno. A esse
processo incessante de fragmentação de tudo e de todos, herança das
origens culturais e do paradigma racionalista disjuntivo que nos tem sido
transmitido, Morin denominou Inteligência Cega, como discutido
anteriormente.

Na Educação, além de tudo, suporta-se um processo neoliberal feroz.


Escolas transformam-se em empresas, o conhecimento se torna uma
mercadoria, pais e alunos consumidores. Professores são desautorizados em
sua função de educar, pois no paradigma mercadológico em que se assenta
boa parte das escolas, os esforços concentram-se em incrementar a
mercadoria, e não exatamente na transformação interior que a Educação
pode e deve promover.

A Inteligência Cega e mutiladora continua coordenando as concepções


sobre o aluno e sobre o processo de educar. Por tudo isso, a Complexidade
me pareceu uma teoria tão adequada para discutir os problemas
educacionais e, o Sentipensar uma necessidade tão urgente. Os princípios

35
A lógica ternária é a lógica da Transdisciplinaridade; nela, os opostos se integram através de um
terceiro termo, o Terceiro Incluído, como exemplifica a própria temática desta tese: sentir, pensar,
conduz ao sentipensamento. É a lógica adequada para a análise de fenômenos complexos, pois
permite transcender e ir além do aparente.
76

da Complexidade, também denominados por Morin ‘operadores cognitivos’,


oferecem um excelente pano de fundo filosófico para a transformação da
Educação, em teoria e prática.

2.1 Análise dos problemas educacionais à luz dos operadores cognitivos da


complexidade

A inteligência cega destrói os conjuntos e as totalidades, isola


todos os objetos daquilo que os envolve. Não pode conceber o
elo inseparável entre o observador e a coisa observada.
Edgar Morin

Operadores cognitivos são princípios básicos que nos ajudam a


conhecer e interpretar os fatos e processos da realidade, ou seja, nos
permitem operacionalizar o trânsito das idéias, relacionando aspectos,
circunstâncias e sujeitos envolvidos nas situações que se deseja
compreender. Segundo Moraes (1997, p. 13), “são princípios-guia
constitutivos de um pensar complexo”.

Concepções reducionistas e fragmentárias têm sido adotadas sobre o


aluno, sobre o currículo e sobre o processo educacional como um todo. O
saber do aluno, via de regra, não é incorporado; a dimensão privilegiada é a
da racionalidade.

O mesmo se pode dizer do currículo, tradicionalmente tratado como


uma organização estática, uma reunião de conteúdos extremamente
hegemônica, fragmentária, reducionista, disjuntiva, linear, fechada ao fluxo
de informações. Numa concepção abrangente de Educação, o currículo
torna-se um tecido complexo, multidimensional e aberto ao novo.
77

Todas essas “perdas” foram abundantemente exemplificadas pela


situação narrada na abertura deste Capítulo. A seguir, algumas
considerações sobre o processo educacional a partir dos operadores
cognitivos da Complexidade.

G O Princípio Sistêmico-organizacional

Através deste Princípio, chega-se a compreender os atores e

componentes do processo educacional ― educador, educando, conhecimento,

relação professor-aluno, relação sujeitos/meio, conteúdo, material didático,


procedimentos de ensino, currículo, avaliação – como sistemas orgânicos em
estreita relação, entre si, e com o ambiente. Os sistemas vivos são abertos
em suas trocas de energia e informação com o meio, porém fechados em
sua forma de operar.

Assim como os sujeitos necessitam fechar-se em sua individualidade


utilizando seus recursos cognitivos para que se realize o processo de
ensino/aprendizagem, necessitam igualmente abrir-se para a influência do
meio; a autonomia de cada um é estritamente dependente do fluxo de
informações que circula e não pode construir-se no isolamento. Isso implica
numa dinâmica relacional.

“A inteligência cega destrói os conjuntos e as totalidades, isola todos


os objetos daquilo que os envolve”, ensina Morin (2003, p. 18). Destrói,
portanto, a possibilidade de concepção do aluno, dos processos
educacionais, e do currículo como conjuntos integrados, totalidades; isola-
os do contexto promovendo a fragmentação. Separa o aluno do
conhecimento e da possibilidade de refleti-lo; separa o professor do aluno,
78

inviabilizando as relações qualitativas entre ambos. Esse foi o


acontecimento notável de minha experiência no Conservatório de Lyon, o
isolamento e a fragmentação, passaram a afetar a qualidade do
relacionamento humano e, portanto, a produtividade do processo de
aprendizagem. A falta de troca, ou seja, o bloqueio do fluxo gerou
desassossego e menos eficiência.

G Princípio Retroativo

A organização interna de um ser vivo ou de um processo depende de


circuitos retroativos; estes, rompem a causalidade linear e instituem a
causalidade circular, se retroalimentam circularmente produzindo
organização, “o circuito retroage sobre o circuito, renova a sua força e a
sua forma, agindo sobre os elementos/acontecimentos que, caso contrário,
tornar-se-iam logo particulares e divergentes”, explica Morin (2005, p.
228). O organismo humano é resultado de um processo de múltiplas
retroações organizadoras, fechadas em si, produzindo sua auto-regulação, a
exemplo da circulação do sangue, do ar, a circulação de alimentos, os
hormônios, entre milhares de outros circuitos. Da mesma maneira
retroorganizadora e circular, se dá o processo educacional; os hábitos de ler
e escrever, por exemplo, a cada vez que postos em prática, reorganizam
aquisições anteriores que são então reforçadas.

O mesmo se dá nas relações humanas; o fluxo energético da troca


acontece no circuito orgânico das relações, circularmente: simpatia gera
simpatia, diálogo gera diálogo, opressão gera opressão, violência gera
violência, sempre que realimentados no fluxo retroativo. Por isso, dizia
Jung, (1963) que a aprendizagem depende de um “vetor emocional” que se
79

estabelece entre professor e aluno; talvez se pudesse falar de um circuito


emocional que opera circularmente, gerando motivação e alegria de
aprender, ou quando não existe, levando ao desânimo e à tristeza.

G Princípio Recursivo

E de circuito em circuito, chegaremos ao circuito recursivo ao


mesmo tempo o mais fechado e o mais aberto: a consciência do
homem.
Edgar Morin

“A dinâmica engendrada a partir deste princípio, vai além da


pura retroatividade auto-reguladora, pois gera uma dinâmica
de natureza autopoiética, ou seja, auto-produtora de sua
organização, auto-produtora daquilo que a produz.
Maria Cândida Moraes

Um processo recursivo é aquele no qual “os estados ou efeitos finais


produzem os estados iniciais ou as causas iniciais” (MORIN, 2005, p. 231).
Ao final de minha dissertação de Mestrado, lembro-me de haver pensado e
escrito: ‘todo final é um recomeço, todo final é um novo portal que se abre a
realizações’. Eu me sentia profundamente transformada, o fluxo e a energia
do crescimento haviam perpassado meu ser, eu estava ali inteira, e pronta
para realimentar novo processo. O resultado de minha transformação é que
me permitiria continuar.

A Educação poderia ser definida como um “multiprocesso retroativo”


fechado em si mesmo e aberto ao fluxo de informações proveniente do
meio. Tais processos, representados por minicircuitos retroativos –
aprender a ler, compreender o significado denotativo e conotativo das
palavras, relacionar conceitos, partilhar informações, entre muitos outros –
se influenciam, “se geram, e, se regeneram”, como diria Morin (2005, p.
80

231), atuando na transformação profunda do educando; o circuito global


resultante da interação de todos esses circuitos mais específicos é o
significado da recursão; um educando renovado emerge e, sobre essa
estrutura cognitiva global é que se erguerão novas descobertas.

A recursividade é característica da vida e de todos os processos


vivos; através dela ocorre a renovação constante, a dialógica interativa
entre a ordem e a desordem, e as múltiplas aprendizagens que advêm da
possibilidade de unir opostos contraditórios que se tornam complementares.

G Princípio Hologramático

A relação antropossocial é complexa, porque o


todo está na parte que está no todo.
Edgar Morin

O Princípio Hologramático evidencia a tensão entre o todo e as partes,


e ao mesmo tempo a transcende; vai além do holismo, pois o todo nada pode
agregar sem a dinâmica interna gerada a partir do relacionamento entre as
partes, que geram o todo; vai além do reducionismo, pois é no todo que a
parte encontra plena razão de ser.

Esse princípio é biológico ― cada célula do corpo contém a informação

da quase totalidade do que somos – e, é social – contemos em nós todos os


produtos da sociedade que integramos; valores, crenças, mitos e o conjunto
de tudo isso: nosso substrato cultural.

Produzimos a sociedade e somos produzidos por ela. Produzimos a


escola e somos produzidos por ela. A incorporação desse princípio impede
81

qualquer forma de absolutismo: o professor é também uma das partes desse


grande todo social, carrega em essência a mesma cultura do aluno.

Dessa maneira, todas as produções escolares, o material didático, os


conteúdos, o currículo, estão impregnados de dupla autoria:
indivíduo/sociedade. Uma questão deve se colocar sempre: a quem
pertencem estas idéias? Ou ainda, quem são todos esses outros que vivem
em mim?

G Princípio Dialógico

(...) tudo o que produz ordem e organização produz


também irreversivelmente desordem.
Edgar Morin

O Princípio Dialógico também poderia ser chamado Princípio da


Integração; é o que permite associar termos antagônicos, mas
complementares. De uma forma geral, idéias antagônicas se excluem dentro
de uma lógica formal clássica; a primeira forma de inclusão seria justamente
a do pensar integrador; por isso Morin (2002) propõe, como um de seus
sete saberes, ensinar a compreender os princípios do conhecimento
pertinente; é o conhecimento que se opõe ao pensamento disjuntor e
descobre as ligações e interdependências existentes nos fatos,
relacionamentos e processos.

Um exemplo muito iluminador é a dialógica existente entre ordem e


desordem, que esteve presente na própria gênese do Universo, na
organização e constituição de qualquer ser vivo e, naturalmente, na
construção do conhecimento. Morin explica o diálogo entre ordem e
82

desordem e como ambas são mutuamente geradoras através do circuito


tetralógico:

desordens interações ordem

organização

A turbulência inicial, resultante da “catástrofe térmica original”,


desencadeou as interações entre partículas que, ao longo de milhões de
anos, ao se tornarem recorrentes, puderam gerar as primeiras moléculas e
os princípios da vida.

Os processos educacionais não dependem de uma catástrofe inicial


geradora, porém, incorporam a dinâmica dialógica entre ordem e desordem.
A cada vez que se escreve um texto, que se reorganiza um currículo ou
material didático, subitamente nos inserimos no caos da presença de todos
os elementos misturados, e num tipo de desordem que, com a reflexão, se
reorganiza e volta a ser ordem. Esse movimento dialógico representa o
inacabamento, a abertura de todos os processos e, naturalmente, o
inacabamento do ser humano em constante construção e reconstrução.

Em Educação, o Princípio Dialógico ensina a aceitar e conciliar


opiniões divergentes, aceitar as diferenças, e a lançar sobre o conhecimento
e sobre nossos semelhantes um olhar aberto, expansivo e integrador. Numa
concepção dialógica de Educação, a frase de meu professor francês não
poderia ter lugar: “e se fosse a prova? Você responderia que tanto pode ser
uma coisa como outra? Como ficaríamos? Que nota eu poderia lhe dar, zero
ou dez?”
83

G Princípio da Auto-Eco-Organização

Por trás desse princípio encontra-se um macroconceito de


importância capital para a vida e, naturalmente, para o processo
educacional. Organização implica em circuitos retroativos circulares e na
coordenação destes no processo de recursão; a organização de seres
viventes e seus processos se tornam realidade a partir da recursividade.
Auto é tudo o que se refere ao si, a como os seres se organizam,
reorganizam e se transformam, no processo de auto-organização, o que
quer dizer que os organismos são produtores de si mesmos, seres
autocriadores; a palavra eco, por sua vez, indica justamente essa inserção
no ambiente, de forma ecológica e nutridora.

A relação com o meio depende de fluxos nutrientes, seja no plano


biológico ou no plano sociológico; depende-se do meio para obter energia e
informação. Como seres vivos, temos uma base de constituição físico-
química e estamos sujeitos às leis da Termodinâmica. O processo
educacional tende a tornar-se entrópico36, desordenado, pela degradação da
energia; isso é uma peculiaridade de todos os sistemas vivos e não-vivos –

máquinas, por exemplo ― que se utilizam de algum tipo de energia. As trocas

constantes efetuadas com o meio circundante é que devolvem os sistemas à


ordem, através de uma afluência constante de energia.

36
Esse trecho escrito por Morin (2005, p. 53), aclara o conceito de entropia: O segundo
princípio da Termodinâmica, formulado por Clausius, em 1850, estabelece a idéia de
degradação de energia, e introduz a idéia de entropia: Enquanto todas as formas de energia
podem se transformar integralmente uma na outra, a energia que toma a forma calorífica
não pode se reconverter inteiramente, perdendo então uma parte de sua aptidão para
efetuar um trabalho. Ora, toda transformação, todo trabalho libera calor, contribuindo para
esta degradação. Essa diminuição irreversível da aptidão de se transformar e de efetuar um
trabalho, própria do calor, foi denominada por Clausius de entropia.
84

O alimento não deve ser provido somente ao corpo físico; o

conhecimento alimenta o espírito – é um tipo de energia ―, por isso em

Educação é tão importante permitir que ocorram os fluxos, primeiramente,


nas trocas entre as pessoas, que devem ser reais e qualitativas; para que
isso ocorra é necessária a abertura, novamente o olhar que expande e o
pensamento que integra. É necessário interpretar os componentes do
processo educacional com grande flexibilidade, sujeitos aos fluxos, às
trocas e à mudança, características de todos os processos vivos.

G Princípio da reintrodução do sujeito cognoscente

A objetividade , instituída como critério supremo de verdade,


teve uma conseqüência inevitável: a transformação do sujeito
em objeto. A morte do homem, que anuncia tantas outras
mortes, é o preço a pagar por um conhecimento objetivo.
Basarab Nicolescu

O mundo paradoxal e surpreendente da Física Quântica e da


Relatividade, reintroduziu o sujeito com total vigor. Este passou a afetar a
realidade observada, passou-se a viver a Era da Dialogia sujeito-objeto.

A Ciência sempre primou por um distanciamento entre pesquisador e


coisa pesquisada, estabelecendo como critério a neutralidade. A partir da
descoberta da imbricação existente entre sujeito e objeto, nos fenômenos
quânticos e na Teoria da Relatividade, a própria ciência passou a admitir o
espaço da subjetividade.

A Educação, mais que qualquer outra área, tem que primar pela
formação do humano, por promover a transformação do pensamento e,
coerentemente, saber lidar com a diversidade de tipos humanos, garantindo
85

seu espaço subjetivo de manifestação e de interpretação da realidade. A


educação terá que partir, cada vez mais, de um sujeito que conhece e
transforma a realidade a seu modo.

As transformações requeridas para a prática pedagógica têm sido


exaustivamente discutidas na atualidade, deixando, porém, à margem, um
aspecto essencial: a formação do ser interior. Ao tomar como exemplo a
formação do professor, dentre todos os fatores citados como obstáculos à
sua mudança, encontra-se a mesma falha, referente a seu desenvolvimento
pessoal, emocional, criativo, relacional e filosófico. Esta dimensão não está
ausente do discurso educacional, mas sim, encontra-se ausente das práticas
formativas; é necessário repensar a formação inicial e contínua do
professor, para que se contemple essa faceta de forma séria e duradoura,
tanto quanto é necessário repensar a formação do educando.
86

3. Conclusões (sempre) provisórias: uma possível era do sujeito.

Pensamos situar-nos hoje num ponto crucial dessa aventura,


no ponto de partida de uma nova racionalidade que não mais
identifica ciência e certeza, probabilidade e ignorância.
Ilya Prigogine

A ordem cósmica só poderia inventar um observador abstrato.


Somente a desordem poderia revelar a seus próprios olhos o
observador concreto. Efetivamente, enquanto a ordem é
justamente o que elimina a incerteza, apaga o espírito humano
(pois toda certeza subjetiva se toma por realidade objetiva), a
desordem é justamente o que faz surgir a incerteza no
observador, e a incerteza tende a fazer com que o incerto se
interrogue, (...)assim, diante de toda desordem coloca-se
inevitavelmente a questão: isso é aparência ou realidade? Não
é a forma provisória da nossa ignorância? Não é a forma
irracionalizável de uma complexidade fora do alcance de nosso
entendimento?
Edgar MORIN

Talvez não seja exagerado afirmar que estamos na Era do sujeito; a


história dirá. Possivelmente, a grande idéia a se reter, das discussões
anteriores, é a de um mundo regido pela Complexidade, um mundo incerto,
impreciso, sujeito ao caos e à deriva filosófica, um mundo para ser
reconstruído em novas bases que incorporem o humano. “Hoje, a tentação é
mais a de um recuo, que se traduz por um ceticismo geral quanto ao
significado de nossos conhecimentos. Assim, a filosofia pós-moderna
defende a ‘desconstrução’ ”, nos diria Prigogine. (1996, p. 22). Valores
necessitam ser resgatados e a fé no futuro reconstruída; essa é uma missão
para a Educação: reencantar o ser humano.

A ciência moderna propôs uma epistemologia que visava à elaboração


de leis absolutas, as chamadas “leis da natureza”. O cânone positivista de
87

Comte ― ver para prever, para prover ― pressupunha um mundo estático,

não sujeito à mudança e ao fluxo, um mundo neutro, sem nuances de


humanidade, um mundo perfeito para o demônio de Laplace37 que, do alto de
seu ponto de vista absoluto e único, poderia prever todo o devir da natureza
e da humanidade.

A própria ciência, tendo excluído o sujeito por necessidade de


“objetividade”, volta a incorporá-lo, na tentativa de transcender seu
paradoxo. O sujeito voltou com força total e “imiscuiu-se” em todos os
assuntos, desde a perplexidade gerada no mundo subatômico, até a Teoria
da Relatividade. Como explica Covolan:

(...) a Física Quântica apresentou uma dificuldade essencial: a


necessidade de se atribuir um papel fundamental para a figura
do observador (...). Isso decorre do fato da Teoria Quântica ser
de caráter não-determinístico, ou seja, trata-se de uma teoria
para a qual a fixação do estado inicial de um sistema quântico
(...) não é suficiente para determinar com certeza qual será o
resultado de uma medida efetuada posteriormente sobre esse
mesmo sistema. (...) quem define o que estará sendo medido e
tomará ciência de qual resultado se obtém com uma
determinada medida é o observador. (...) Contudo, não é tanto
esse problema de caráter epistemológico que se quer focalizar
aqui, mas sim, a possibilidade de que certos efeitos quânticos
possam fazer parte do funcionamento do cérebro e estejam
envolvidos na manifestação da consciência.38

O primado da racionalidade, que foi criticado ao longo de todo esse


escrito, estabeleceu alguns pares de opostos antagônicos que são, em

37
O Demônio de Laplace é um experimento mental concebido pelo físico Pierre Simon Laplace. Tal
personagem estaria apto, de posse de todas as variáveis que determinam o estado do Universo num
instante determinado, a prever o seu estado num instante futuro. Tal conceito só pode sustentar-se
num Universo regido por determinações mecânicas absolutas.

38
COVOLAN, Roberto J. M. Consciência Quântica ou Consciência Crítica? Disponível em:
www.comciencia.br/reportagens/fisica/fisica02.htm.
88

verdade, complementares, sujeito/objeto é um deles. O cientificismo


pregava a necessidade da neutralidade do sujeito-observador em relação ao
fenômeno observado, um sujeito que não fosse mais que um coletor de
experiências, que não se envolvesse ou interferisse na evolução do fato
observado, nada de sua psique ou de seu corpo deveria misturar-se ao fato
científico. Nessa ótica, ao se conceber a Educação como uma ciência,
compreende-se como esta pode afastar-se tão radicalmente de seu foco
real; possivelmente, a busca de tornar-se científica é que desviou a
Pedagogia de sua trajetória, e transformou a experiência de sala de aula em
algo inerte para os alunos, uma experiência não-motivante, desprovida de
encantamento. Isso é o que ocorre para o ser humano quando não pode
existir integralmente.

Da mesma forma, plasmou-se a separação entre subjetividade e


objetividade. A subjetividade, ou seja, tudo aquilo que é inerente ao interior
do ser humano, suas concepções, suas visões singulares do mundo, regidas

por experiências pessoais ― sensações, emoções, sentimentos – tornaram-

se marginais na concepção moderna de ciência, e confinaram-se aos


campos da introspecção: Filosofia, Psicologia, Artes, ciências humanas, de
forma geral. Não foram poucas as tentativas de tornar mais científicas,
essas disciplinas. As Artes ficaram com o pouco que restou da subjetividade
humana, as Artes podem ser subjetivas, podem ser irracionais, não
necessitam necessariamente seguir padrões de coerência tidos como
científicos; por isso mesmo, no senso comum, as Artes são tão marginais
quanto admiráveis, e os artistas – loucos – têm direito a pensar e sentir tudo
o que quiserem.
89

O mundo nem sempre é o que parece ser, o mundo é como aparece, é


como pode ser discernido na experiência de um sujeito determinado. Não
existe um mundo dado à priori, não trabalhamos com representações de
objetos, fenômenos e eventos externos, mas sim, os reconstruímos a cada
vez que se apresentam à nossa percepção. Não existe uma objetividade
pura, uma “objetividade-sem-parênteses”, diria Maturana, através da qual é
possível conceber o mundo como algo separado de nós. Só existe a
“objetividade-entre-parênteses”, através da qual nos tornamos unos com o
mundo, e este se contamina do olhar subjetivo. Nas palavras de Maturana:

(...) colocando a objetividade-entre-parênteses, me dou conta


de que não posso pretender que eu tenha a capacidade de
fazer referência a uma realidade independente de mim.
(MATURANA, 2002, p. 45)

A ameaça persiste: ruptura e fragmentação podem induzir ao erro e à


cegueira:

“Assim, o saber que liga um espírito a um objeto é reconduzido


seja ao objeto físico (empirismo), seja ao espírito humano
(idealismo), seja à realidade social (sociologismo). Assim, a
relação sujeito/objeto é dissociada, a ciência se apodera do
objeto, a filosofia do sujeito”. (MORIN, 2005, p. 31)

Percebe-se com clareza que sujeito e objeto não poderão seguir


dissociados, existe muito mais organicidade nesse relacionamento do que
poderiam admitir os pressupostos da ciência clássica.

Ao longo da formação escolar, tivemos que conviver com as


disciplinas exatas, as disciplinas biológicas e as disciplinas humanas; a falta
de um olhar complexo sobre esse currículo impediu de ver o quanto de
humano e biológico pode existir no exato e vice-versa, jamais se saberá
90

como teria sido o desenvolvimento da ciência sem essa cisão, como teriam
sido os cientistas, se formados numa concepção filosófica mais abrangente.
Foi uma perda ou um ganho de tempo? Não sabemos, com certeza; mas sim,
é certo, pode existir uma filosofia mais abrangente para a ciência, e aqueles
que a fazem não podem perder de vista o alcance do efeito de suas
descobertas; esse é um compromisso ético.

Creio não ser necessário ressaltar que o pensamento cientificista


legou progressos e conquistas imprescindíveis, nos expandimos além das
fronteiras da terra, foram descobertas curas para doenças, tecnologias, e
fantásticos meios de comunicação e transporte foram desenvolvidos, e o
mundo se tornou uma aldeia global. No entanto, passados quase quatro
séculos, ao fazer um balanço, percebe-se primeiramente que tais
descobertas e desenvolvimentos foram partilhados com a humanidade numa
escala mínima, e o progresso não garantiu bem-estar a todos. Algo se
perdeu no meio do caminho. O objetivo final de todo conhecimento nunca
poderá se afastar de um compromisso com o bem-estar de todos e com a
preservação de nosso lar: a Terra.

A separação entre nós e o mundo é responsável por boa parte das


agruras vividas, e das perdas sofridas, incita ao comportamento predatório e
destruidor; auto-destruidor, pois ao destruir aquilo de que fazemos parte,
produzimos a própria destruição, e admitimos que outros também o façam. É
essa abominável separação que nos faz agora perseguir o sentido ético da
vida, na busca eterna da resposta para as questões que não querem calar:
quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?

O sujeito está de volta e parece ter vindo para ficar, com todas as
suas incertezas, mitologias, sonhos, desejos, medos, subjetividades, razão,
91

loucura; um sujeito noosférico39, errático e perfeito, sábio e louco – sapiens


demens, diria Morin –, que há de reencantar a vida e a Educação.

39
A noosfera, segundo Morin é “a esfera das coisas do espírito”; na Transdisciplinaridade,
representa um nível de realidade possível. A noosfera é um espaço do ser interior, profundo
ancestral, sistematicamente negado pela ciência, no paradigma mecanicista.
92

4.Sentipensar - por uma educação que religue razão, emoção e


sensibilidade

Não podemos continuar educando com procedimentos de


ontem alunos que já vivem no amanhã. Sentipensar é
educar para a vida, para os valores, para uma
convivência e bem estar sustentáveis, mediante
impactos criativos.
S. de la Torre e M.C. Moraes

Tecendo o Horizonte
Tatiana Clauzet
93

Cenário para Sentipensar

Em trabalho realizado para a PUC de São Paulo, em 2002, para uma


das disciplinas de mestrado, entrevistei diversas alunas que cursavam o
último ano de Pedagogia e já exerciam atividade profissional. Havia duas
perguntas básicas: qual o pior aspecto da formação recebida até ali, e qual o
melhor aspecto; a transcrição de trecho da entrevista, apresentada a seguir,
ilustra, magistralmente, a necessidade do Sentipensar em sala de aula.

Falando sobre um dos melhores professores do curso:

(...) ele sabia explicar, ele pedia a nossa opinião, assim, ele não
chegava na sala e apresentava o tema, só ele falando; não era só
expositivo, ele ia perguntando o que a gente sabia, alguma aluna ia
completando... aí ele fazia um resumão e explicava tudo.

Falando sobre a melhor disciplina:

Aluna - (...) uma matéria que eu estou tendo agora no terceiro ano
que eu adorei é Introdução à Psicopedagogia, muito bom, muito bom,
a professora trabalhou na auto-estima, tanto a auto-estima individual
como a coletiva...
Eu - a de vocês?
Aluna - a nossa...
Eu - Como ela fez isso?
Aluna - Ela começou com trabalhos assim... em grupos... no início do
ano, tudo o que ela fazia ela pedia para a gente redigir. (...) então ela
fez a dinâmica do nome... e a partir disso ela começou a tentar... a
tentar... a descobrir, né? A partir do nome, se a pessoa aceitava o
nome, porque que ela não aceitava, se ela queria mudar o nome, e
como que foi a infância dela e o nome, a adolescência dela e o nome,
depois de adulto e o nome... ela trabalhou muito bem, muito gostoso.
(...) aí a sala começou a se desenvolver melhor, tanto é que as aulas
dela são as mais produtivas: todo mundo participa, ninguém reclama...
Eu - por causa dessas dinâmicas...
Aluna - por causa das dinâmicas, (...) você se sentia à vontade nas
aulas. E a minha sala tinha muito problema de convivência, (...) eu
acho que eram vários líderes para um grupo só. Então, tinha muito
choque, todo mundo queria mandar, todo mundo queria falar na
mesma hora, então nós tivemos várias brigas. E, com o desenrolar
94

dessa dinâmica ela começou a perceber – ninguém falava – ela


começou a sentir que havia muito conflito no grupo, então ela
começou a trabalhar a auto-estima coletiva do grupo. Melhorou
bastante. Então... foi muito bom.
Eu - Você acha que deveria existir matérias assim todos os anos?
Aluna - Todos os anos! (entusiasticamente), tanto é que nós fizemos
uma proposta e enviamos para a coordenação (propondo) desde o
primeiro ano.
Eu - Como é o nome da matéria?
Aluna - Introdução à Psicopedagogia.
Eu - Então o foco foi voltado para vocês...
Aluna - Foi, acabou sendo, no I semestre foi. Aí o que ela colocou
para não ficar assim tão fora de uma Psicopedagogia voltada para o
aluno: que o que estava acontecendo com a gente podia estar
acontecendo numa sala de aula, então foi uma maneira de trabalho
que ela passou para gente estar trabalhando, desde o individual até o
problema coletivo.
Eu - Vocês puderam perceber que o professor tem que se trabalhar,
não só ficar aprendendo para fazer com o aluno...
Aluna - É... e agora a gente está trabalhando no II semestre
identidade e autonomia. Ela apresentou um filme que chama “A
Onda”. Fala sobre o nazismo e da importância do professor... porque
nesse filme o professor, ele... faz uma experiência com os alunos (os
alunos são muito rebeldes); ele começa a aula mostrando o campo de
concentração, né? e os alunos ficam assim horrorizados: “como a
sociedade deixava acontecer a matança?” Aí o que aconteceu: ele (o
professor do filme) entrou na outra aula falando sobre disciplina, e
ele fez uma experiência com os alunos, então ele começou a ter
maneiras, assim antipáticas, como era a do nazista, então começou a
falar que os alunos tinham que sentar retos na cadeira... que quando
falasse com o professor tinha que levantar... Ele fez isso como
experiência. Só que os alunos levaram isso muito a sério, ele
apresentou de uma maneira séria, então os alunos achavam que eles
deviam ser daquela maneira, só que eles não fizeram a ligação com o
nazismo, né? e aí foi se desenrolando o filme e acabaram criando uma
associação que era a onda; então, era assim, quem não estivesse
engajado dentro dessa comunidade eles agrediam, então virou um
ciclo, né? (...) e dois alunos começaram a perceber que tudo aquilo
era um erro, que era um absurdo aquilo que estava acontecendo, e
todos os alunos começaram a andar igual, tinham o mesmo
comportamento faziam as mesmas coisas, e eles tinham um lema.
Muito interessante... e aí no final de tudo, o professor desfez isso, e
os alunos que estavam fissurados, fanáticos por esse movimento, eles
realmente perceberam o quanto o ser humano é frágil - o pior é que o
salão inteiro chorou - porque eles perceberam que qualquer pessoa,
95

qualquer coisa, podia estar induzindo eles, se eles não tivessem uma
postura...

A aluna ressaltou aspectos absolutamente cruciais para as questões


que vimos discutindo, por exemplo, o melhor professor era um professor
dialógico; a melhor disciplina, a que se voltava diretamente para o problema
dos alunos e da relação entre eles; e que, além disso, utilizava estratégias
insólitas: escrever sobre a experiência pessoal vivida na aula; dinâmica
reflexiva sobre os nomes dos alunos; trabalho da auto-estima do grupo;
comparação da situação deles em aula com a de seus próprios alunos;
análise de situação escolar no filme “A Onda” e análise da situação
psicodramática criada pelo professor do filme. Além disso, é importante
ressaltar que tais situações ocorreram nas disciplinas de Psicopedagogia e
História da Educação, o que demonstra a necessidade de que as disciplinas
assumam novos enfoques, mais humanos e criativos.

Todos estes procedimentos são exemplos do que Moraes e Torre


apontam como estratégias para o desenvolvimento da inteligência emocional
(2004), assim como a estratégia que utilizo em minhas aulas envolvendo a
Escuta Musical. Estas e outras estratégias e disciplinas deveriam fazer
parte do currículo de formação de professores de forma constante e
duradoura, não como evento especial ou isolado, assim como poderiam fazer
parte do currículo escolar, num tipo de educação que chamarei de Educação
para o Sentipensar.
96

4.1 O que é Sentipensar?

Sentipensar é um poético neologismo, criado por Saturnino de La


Torre, em 1997. A expressão traduz a preocupação de seu autor em unir na
experiência educativa esses mundos tão próximos, interdependentes e, ao
mesmo tempo, separados por um verdadeiro abismo: o pensamento e o
sentimento. Nas palavras de Saturnino:

Sentipensar é o processo mediante o qual colocamos para


trabalhar conjuntamente, o pensamento e o sentimento. É a
fusão de duas formas de interpretar a realidade, a partir da
reflexão e do impacto emocional, até convergir num mesmo ato
de conhecimento a ação de sentir e pensar. (MORAES e
TORRE, 2004, p. 54)

O sentipensamento nos permite integrar dualidades interpretadas


como realidades excludentes que, na verdade, são complementares.
Possibilita que se questione e se transcenda polaridades, reinterpretando-
as de forma integrada e complementar, tão necessárias à evolução de
nossos discursos e ações sobre Educação.

A palavra “ação” reveste-se de importância capital, pois Sentipensar


não é apenas a união de sensibilidade e razão, mas sim, também deve
comportar a garantia de que tais concepções cheguem efetivamente ao ato,
em sala de aula; assim, Sentipensar, como macroconceito, articula os
conceitos de pensar, sentir e agir; isso quer dizer que, ao conjunto de
princípios filosóficos que enuncia, deve corresponder um conjunto de
princípios metodológicos, coerentemente selecionados e viabilizáveis na
prática. A ação do professor deve manter a coerência em relação às idéias
que veicula.
97

Sentipensar não é um conceito que brotou ao acaso na imaginação de


seu autor; fundamenta-se na própria dinâmica de funcionamento cerebral.
Segundo Schreiber (2004, p. 18) temos dois cérebros, o emocional e o
cognitivo, “um verdadeiro cérebro dentro do cérebro”. O primeiro, responde
pelo bem-estar psicológico e pela regulação da homeostase40, e é
essencialmente ligado ao corpo; o segundo – neocórtex –, é “o centro da
linguagem e do pensamento”. O equilíbrio entre esses dois cérebros
representa o equilíbrio entre razão e emoção; cada um deles contribui de
maneira diferente para a vida e para o comportamento; o funcionamento
integrado desses dois cérebros está na base dos objetivos de Sentipensar.

Schreiber explica, com base nas pesquisas de Damásio, que as


emoções “devem estar moderadas pela análise racional que o cérebro
cognitivo fornece. Senão, decisões impetuosas tomadas no calor da ação
podem pôr em perigo o complexo equilíbrio de nossas relações com os
outros” (SCHREIBER, 2004, p. 23); por outro lado, o cérebro cognitivo é um
componente essencial de nossa humanidade, o qual se responsabiliza pelo
controle das funções cognitivas superiores, pela elaboração de projetos
futuros, e pelo comportamento moral.

É principalmente essa idéia do ímpeto emocional, em descontrole, que


tem servido de argumento contrário às emoções ao longo da história. É
necessário equilibrar e integrar as ações de “nossos cérebros”, essa é a
proposta do Sentipensar que confere fluência ao processo educacional:

A inteligência emocional é mais bem expressa quando os dois


sistemas – os cérebros cortical e límbico – cooperam
constantemente. Nesse estado, nossos pensamentos, decisões

40
Segundo Damásio (2004), homeostase é um conjunto de processos fisiológicos de regulação da vida,
dos quais fazem parte o metabolismo, os reflexos básicos, as respostas imunitárias, os
comportamentos que expressam dor e prazer, pulsões, motivações e, ainda, as emoções, entre outros.
98

e movimentos se fundem e fluem naturalmente, sem que


precisemos prestar atenção neles. (SCHREIBER, 2004, p. 41)

Sentipensar é uma grande idéia para um futuro que já começou.


Através da incorporação de seus princípios promove-se não somente a
reintegração de um pensar sobre o mundo, mas acima de tudo,
desencadeamos um processo de repensar o papel do humano na Educação.
O ser humano em formação é um ser complexo, um emaranhado de
dimensões, um ser multidimensional que se apresenta como um desafio
novo, a cada aula. A Educação deve preparar-se para vislumbrar a
diversidade de aspectos formativos da personalidade: racionalidade,
sensibilidade, sociabilidade e ética.

4.2 Educar para Sentipensar: Princípios filosóficos básicos

Sentipensar é, portanto, o encontro intensamente consciente


entre sentimento e razão. É como uma espiral em
desenvolvimento permanente que tem sua razão de ser na
fusão de duas energias, a exemplo do óvulo e do
espermatozóide, de maneira que avançam unidos, formando um
todo complexo, interativo, presentes em cada ato humano.
S. de la Torre e M.C. Moraes

G Educar para a Complexidade e para a Era planetária

Sentipensar é uma proposta filosófica e metodológica coerente com o


paradigma da complexidade; propõe uma visão holística, da realidade e do
processo educacional, plasmada na integração de seus três eixos
constitutivos complementares: sentir, pensar, agir. A partir da visão
99

complexa ou ecossistêmica, Sentipensar permite conciliar opostos,


compreender antagonismos, contextualizar fatos e problemas, numa rede
muito mais ampla de interconexões. Como explica Moraes (2004, p. 41):

Esta é uma condição para o desenvolvimento de um maior


sentimento de cidadania planetária, uma cidadania auto-
sustentável, como a única maneira possível de se construir um
futuro viável para todos, um futuro rico em possibilidades
criadoras para toda a sociedade, em especial, para as gerações
vindouras.

G Educar o ser humano multidimensional

No Sentipensar, o ser humano multidimensional é reintegrado, e

algumas de suas esferas de existência, tradicionalmente dicotomizadas ― o

âmbito afetivo-emocional e o âmbito cognitivo ―, podem voltar a reunir-se.

Grandes pesquisadores da atualidade ― Maturana, Damásio e Morin, entre

muitos outros ― corroboram o valor do solo emocional como base fértil para

nossas ações racionais e para a tomada de decisões. “A dimensão emocional


do ser humano, que há duas décadas apenas estava proscrita em muitas
instituições educativas, emerge com valor próprio junto à experiência e à
razão”, explica Torre (2000, p. 546). Incluir emoção e sentimento significa
também reincluir o corpo, esse eterno negligenciado.

A dimensão emocional é indispensável à vida e, naturalmente, à vida


da sala de aula, como ensina Torre no texto a seguir:

A inteligência emocional, e não a capacidade abstrata de


raciocinar, é realmente a que determina o êxito nas relações
humanas e muitas vezes também profissional. É a inteligência
emocional a que determina atos e decisões importantes da
100

vida. É a inteligência emocional a que mais contribui para um


clima construtivo nas organizações. É a inteligência emocional
que permite tirar proveito social das aprendizagens. É a
inteligência emocional a que governa os atos da vida diária. É a
inteligência emocional a que está na base de muitas atuações
criativas. É a inteligência emocional a que mais nos aproxima
da felicidade. Porque esta tem a ver com a própria consciência
e harmonia consigo e com os outros, tem a ver com o
equilíbrio entre expectativas e realizações.41 (TORRE;
TEJADA, 2006, p. 3)

G Educar para a ética, para valores humanos e para o amor

Sentipensar é uma proposta significativamente humana e socializante,


primando pela valorização de aspectos da individualidade, tanto quanto pela
possibilidade de desenvolver o sentido ético nas relações humanas e
educacionais. A compreensão e aceitação do outro, nos reintroduz na
possibilidade de uma vida com valores humanos preciosos, baseados na
cooperação, na compreensão, na interação, na convivência e no amor:
“educar na biologia do amor”, como diria Moraes (2003). Isto significa
respeitar o outro e aceitá-lo em plenitude. Para tanto, é necessário acoplar-
se ao outro, entrar em sintonia, e juntos acoplarem-se ao ambiente que
acolhe a todos.

A Inteligência cega, e o ego, nos haviam afastado da possibilidade de


compreender e amar ao outro, em plenitude; ela só é possível numa relação
íntegra, entre seres humanos também íntegros que preservam o espaço de
manifestação de sua multidimensionalidade. Somente com emoção e
sentimento é possível compreender o verdadeiro sentido da alteridade,
abandonar o ego e toda forma de subjugação. Somente seres humanos

41
Tradução da autora.
101

integrais estão preparados para o religare, o que implica em respeitar e


ligar-se a si mesmo, ao outro e à natureza, ou seja, compreender o
verdadeiro e abrangente sentimento de pertinência: “uma maior consciência
ecológica traz consigo um sentimento de pertencimento mútuo que nos une
à terra e ao cosmo”, ensina Moraes (2004, p. 41).

G Educar para a mudança

Vive-se uma era de grande evolução tecnológica, uma mudança de


paradigma que, possivelmente, no futuro venha a ser conhecida como Era da
Informação. No entanto, não se pode esquecer que o ser humano é quem
está no centro do processo, de forma aparentemente paradoxal; quanto mais
o desenvolvimento científico e tecnológico se torna acessível a nós, mais se
necessita das qualidades intrínsecas ao ser humano; valores pessoais e
éticos que sensibilizem e responsabilizem o indivíduo no uso das novas
tecnologias e conquistas científicas do nosso tempo, “tecnologia e
humanismo, não são, portanto, dois conceitos contrapostos, mas sim,
complementares no mais intrínseco do ser humano: em sua dimensão
emocional”. (TORRE; TEJADA, 2006, p. 7). Por isso mesmo, uma das metas
importantes do Sentipensar é promover mudanças atitudinais, que coloquem
de manifesto reais transformações interiores.

A mudança não ocorre apenas devido a fatores ambientais externos


ao indivíduo, mas sim, também a partir do próprio indivíduo que, interagindo
com o meio, promove mudanças em sua própria estrutura, se acopla ao meio

transformando-o ― como explicam Maturana (2001) e Moraes (2003) ―,

concebe a mudança como “uma correlação”, envolvendo o sujeito


cognoscente, por um lado, e a realidade a conhecer, por outro.
102

Compreender a mudança é um ato de autocriação que envolve


desenvolvimento e transformação da consciência humana (TORRE, 2005, p.
57).

G Educar para compreender a diversidade humana

A Educação pode e deve valorizar a diversidade humana através do


enriquecimento de estratégias metodológicas que permitam ao aluno, ao
mesmo tempo, manifestar-se e autoconhecer-se. A base de aceitação do
outro está em aceitar a si próprio. Educar para Sentipensar promove a
abertura e integração do interno e do externo no ser humano; não somente
promove a reintegração de todas as suas dimensões, mas possibilita a
abertura de um portal interior para o autoconhecimento, e de um portal
exterior, para a vida compartilhada e para a consciência planetária.

G Educar para a Transdisciplinaridade

Na Educação para o Sentipensar, todas as formas de perceber,


compreender e vivenciar o mundo são admitidas e bem-vindas, todos os
saberes são incorporados. O ser humano, finalmente liberto das cadeias
epistemológicas, aprende a transcender a si mesmo e à realidade que o
cerca. O Sentipensar estabelece o reencontro entre as zonas interiores
proibidas e sua manifestação concreta nas experiências educacionais e
vivenciais, abre o diálogo entre razão e intuição, entre o sagrado e o
científico, readmite o “inferno da subjetividade” de Basarab (2005), a esfera
noológica de Morin (2002), reconhece o “mito oculto sob a etiqueta da
ciência ou da razão” e nos permite mergulhar, sem reservas, na zona de
não-resistência da Transdisciplinaridade; portanto, as estratégias de
103

Sentipensar são também transdisciplinares, libertando-nos de uma lógica


insípida e resgatando nossa natureza complexa.

Por tudo o que foi dito, e por tudo o mais que poderia ser dito sobre
Sentipensar – pois, como seres inconclusos jamais conseguiremos abranger
o todo em qualquer aspecto –, é que sua filosofia se propõe a resgatar, para

a Educação e para todos os seus atores, o sentido do reencantamento, a


idéia de prazer, alegria, bem-estar e vida na escola, um espaço mental e
concreto, onde a sala de aula se torna um espaço de convivência, as
relações entre professor e aluno se tornam compreensivas, e o sonho de
uma sociedade mais justa e sustentável se mostra um pouco mais próximo.

4.3 Aprendizagem integrada: estratégias e práticas do Sentipensar

A estratégia ou recurso metodológico é como a alavanca


que torna possível o movimento ou mudança
desejada.(...) Com estratégias facilitamos a ação ou pelo
menos a tentativa inicial de levar em consideração o
emocional em nossas aulas, do nível infantil ao
universitário. Porque é aqui onde mais se deverá incidir
para contrabalançar o efeito racionalizador de algumas
tecnologias e conhecimentos científicos.
Saturnino de la Torre

Educar, no paradigma da Complexidade, exige coerência entre


princípios filosóficos, métodos e estratégia didática, equilíbrio entre teoria e
prática e, sobretudo, exige determinação e persistência para alcançar os
objetivos traçados. A locomotiva desse processo é a Aprendizagem
Integrada, definida por Moraes (2004, p. 82) da seguinte forma:
104

Processo mediante o qual vamos construindo novos


significados das coisas e do mundo ao nosso redor, ao mesmo
tempo em que melhoramos estruturas e habilidades cognitivas,
desenvolvemos novas competências, modificamos nossas
atitudes e valores, projetando tais mudanças na vida, nas
relações sociais e laborais. E isto baseado em estímulos
multissensoriais ou processos intuitivos que nos impactam e
nos fazem pensar, sentir e agir.

As tensões fragmentárias que nos cercam não deixam de lado os


acontecimentos e decisões escolares; a escola, como ambiente de
relacionamento humano e de formação de seres humanos vive, como todos
os setores da sociedade, problemas complexos decorrentes da tensão entre,
por um lado, a fragmentação crescente e níveis sofisticados de
especialização, e por outro, a necessidade de formar o ser humano de forma
integrada e multidimensional. A tensão da especialização manifesta-se no
currículo, nas práticas e, principalmente, na mentalidade dos docentes:

A educação inicial e a formação posterior têm sua razão de ser


enquanto buscam um desenvolvimento pessoal equilibrado; isto
é, em conhecimentos, atitudes, hábitos, crenças e habilidades
tanto pessoais quanto sociais. O desenvolvimento emocional e
da própria imagem pode ser mais importante do que o êxito
acadêmico.42 (TORRE, 2005, p. 18)

A Aprendizagem Integrada fundamenta-se, epistemologicamente, no


paradigma integrador da Complexidade; neurologicamente, na plasticidade
cerebral, afetada pelas diversas interações com o meio, estudada mais
adiante; psicopedagogicamente, na “criação de situações de aprendizagem,
nas quais estejam presentes os diferentes sentidos e processos mentais, e
nas quais se compartilhem significados” (TORRE, 2005, p. 23) e tem seus
fundamentos socioafetivos na qualidade dos relacionamentos estabelecidos

42
Tradução da autora.
105

em sala de aula e, de forma muito especial, no papel humano do educador,


conforme explica Torre:

Daí o relevante papel socioafetivo do educador, tanto mais


importante quanto menor seja a idade do sujeito. Os aspectos
relacionais e as motivações são mais importantes que os
instrutivos, pois, a influência aumenta com os laços
socioafetivos, e diminui quando estas relações geram conflito,
tensão e distanciamento.43 (TORRE, 2005, p. 24)

As expressões utilizadas por Torre (2005), para caracterizar a


Aprendizagem Integrada, dão uma perspectiva muito clara de sua total
adequação a um sistema educacional orientado pelo paradigma
ecossistêmico: ela é interdisciplinar, holística, planetária, estratégica,
relevante, vinculada à vida, experiencial, multissensorial, que incorpora os
erros, (...) gratificante e motivadora, autopoiética e criativa, implicativa,
compartilhada. Tais características transcendem a questão escolar ou
acadêmica transformando esta proposta numa “universidade para a vida”.

43
Tradução da autora.
106

4.3
4.3.1. Características metodológicas
metodológicas da aprendizagem integrada

Sentipensar: Exato. Por isto se diz que, quando o amor e a


criatividade trabalham juntos, é fácil esperar uma marca
indelével, uma obra-mestra, um ambiente feliz.
Sentir: Quem põe o coração naquilo que faz, consegue recursos
aonde os incapazes se dão por vencidos.
Pensar: Agora sei que, embora lhe tirem tudo, sempre ficará o
mais importante.
Sentipensar: Assim é, meus amigos, dentro de nós está tudo o
que fora nos falta. Sentir e pensar são os meus dois olhos,
meus dois ouvidos, minhas duas mãos, o meu Eu completo.
Somos uma unidade, você e eu.44

O trecho citado, criativamente, concebido por Saturnino de La Torre


para ilustrar o embate entre Sentir e Pensar, constitui um recurso didático
poderoso que, num momento da aula ou de uma apresentação, pode suscitar
reflexões interessantes, e a mobilização de variados recursos humanos
imaginativos, reflexivos, criativos; e, indo mais além, recursos que afetam o
estado de consciência dos alunos, preparando-os para o trabalho
intelectual, e potencializando suas habilidades cognitivas. A Aprendizagem
Integrada proporciona as técnicas e estratégias para Sentipensar, dentre
elas: relato imaginário, cinema formativo, música comentada, espetáculos
artísticos, dramatizações, diálogos analógicos, textos poéticos ou literários,
experiências compartilhadas, ambientes virtuais de aprendizagem, situações
ocasionais da vida, excursões, utilização de humor, entre outras
possibilidades. Aqui, talvez seja o momento de enfocar, com maior clareza,
algumas das características metodológicas da Aprendizagem Integrada:

44
Trecho final do diálogo imaginário entre Sentir, Pensar e Sentipensar, transformados em
protagonistas nesta criativa estratégia didática de Saturnino de la Torre.
107

G As estratégias de Aprendizagem Integrada são multissensoriais.

Freqüentemente, envolvem uma multiplicidade de estímulos: visuais,


táteis, sonoros, motores, entre outros, que têm o efeito de potencializar a
ação do cérebro através da sinestesia45 que se estabelece entre os sentidos.
A palavra, dessa maneira pode, enfim, ceder algum espaço para outras
linguagens. Quanto mais essas linguagens colaborem entre si, maior reforço
terá a aprendizagem.

G As estratégias de Aprendizagem Integrada baseiam-se no impacto


emocional.

O impacto emocional envolve a pessoa como um todo, e caracteriza as


estratégias didáticas em coerência com a filosofia de Sentipensar. Segundo
Moraes e Torre (2002, p. 70), “o impacto é uma estratégia que induz
eficazmente o Sentipensar, pois, graças ao efeito surpresa, provoca-se na
pessoa uma reação emotivo-cognitiva persistente que facilita a reflexão e a
mudança”. Assim, relatos imaginários, belas imagens, uma parábola, uma
música, subitamente lançam o sujeito num plano diferente de consciência,
via emoções e sentimentos. Nas palavras de Torre (2005, p. 20):

(...) as estratégias que favorecem a Aprendizagem Integrada


são aquelas que estimulam os diferentes sentidos, a
imaginação, a intuição, a colaboração, o impacto emocional, a
aplicabilidade. (...) Estratégias como o cinema formativo, a
música comentada, os espetáculos artísticos, (...) são variantes
metodológicas de grande valor formativo... Cada formador ou
guia pode imaginar, a partir destes exemplos, de que modo
pode facilitar esse tipo de aprendizagem mais profunda e
persistente no tempo.46
45
Sinestesia é a sensação secundária, despertada por outra, vinda por outro sentido; um exemplo
poderia ser “ver a luz de uma poesia”, não se trata de um sentido metafórico, mas de uma
transposição que pode realmente ocorrer.
46
Tradução da autora.
108

Através do estudo de Damásio e Maturana, aprende-se que, no


subsolo da razão subjaz a emoção. As experiências que causam impacto
emocional podem agir como moduladores do estilo cognitivo; a pesquisa
neuropsicológica fundamenta tal afirmação. Mais adiante essa questão será
analisada com detalhes.

G As estratégias de Aprendizagem Integrada requerem ambientes, climas, e


situações especificas.

Bastante relacionado ao impacto emocional e à escolha da estratégia


de Sentipensar, está a questão do ambiente favorável, que tanto pode ser

externo (uma sala agradável, bonita, com iluminação adequada) ― “há uma

pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço”, diria Paulo Freire

―, quanto interno, como por exemplo, aquele ambiente gerado ao

experimentar o sentimento de pertencer ao grupo e ser ouvido


dialogicamente.

Climas e ambientes agradáveis favorecem “a expressão das


diferentes dimensões do ser humano”. (MORAES; TORRE, 2002, p. 50).
Tudo isso me leva a formular aqui, a mesma questão dos autores:

Até que ponto as circunstâncias criadas pelos filmes, imagens,


sons, cores, ambientes virtuais ou ambientes lúdicos
promovem interações que favorecem a mudança de estado
emocional, gerando campos energéticos e vibratórios que
podem estimular a ocorrência de ações/reflexões mais
significativas?

Contextos e situações prazerosas “modelam o operar da inteligência”,


criam “um novo espaço de ação/reflexão fundado nas emoções” (MORAES,
109

2004, p. 64), levando o indivíduo a experimentar estados de bem-estar e


harmonia que o fazem desejar o crescimento, a transformação e a
transcendência, rumo a níveis de consciência mais elevados.

G A Aprendizagem Integrada utiliza procedimentos indutivos que levam à


aprendizagem inferencial.

Espera-se que o processo de Aprendizagem Integrada possa


desenvolver a capacidade crítica dos alunos, aguçando a capacidade
reflexiva e dedutiva, de variadas e criativas formas, habilitando-os dessa
maneira à resolução de situações-problema e a equacionar temas diversos
de estudo. Como explica Moraes (2004, p. 70), isso significa “partir do
concreto, vivencial, particular, para elevar-se progressivamente em direção
ao conceitual e teórico”.

G A Aprendizagem Integrada possibilita e estimula a criatividade.

Diversos aspectos colaboram e contribuem para que isso ocorra,


dentre eles, as situações de bem-estar vivenciadas, a conexão que se
estabelece entre a escola e as situações da vida cotidiana, a junção de
diversos tipos de estímulos sensoriais e situações imaginativas em
estratégias inovadoras, o caráter dinâmico das relações que se estabelecem
entre os atores. Sentipensar significa acionar todas as dimensões do ser
humano, implica numa “cooperação global de todo o organismo” (TORRE,
2005, p. 21), que envolve aspectos neurofisiológicos – emoção, sensações
de bem-estar e diferentes estilos cognitivos – aspectos psicossociais, e
aspectos transcendentes.
110

A experiência de sentir -se íntegro e pertencente ao ambiente, gera


um estado prazeroso de fluxo, no qual tudo parece fácil e favorável à
criatividade; são “momentos brancos”, ou nas palavras de Moraes e Torre
(2005, p. 71), “instantes de ânimo alto, de fluxo, nos quais tudo parece
contribuir para nossos objetivos”.

4.4 O ser humano multidimensional

A mudança de paradigma nos conduz à reintegração das dimensões


humanas, do processo educacional e da inserção deles, no todo maior, o
hólos. As bases teóricas deste estudo permitem vislumbrar a
multidimensionalidade do ser humano a partir de perspectivas diversas: a
Teoria da Complexidade incorpora a dinâmica processual interna do ser
humano, tanto no que concerne à sua constituição biológica como no que
concerne à articulação desta esfera com a esfera antropossociológica;
através da conciliação de opostos, possibilita a concepção do ser humano
como totalidade integrada; a Teoria transdisciplinar adentra o ser de modo
profundo, através dos níveis de realidade e da zona de não-resistência
(estudada no Capítulo 5); admite facetas humanas questionadas desde
sempre, a exemplo da intuição; o Sentipensar, a partir de uma base
neuropsicológica, integra o ser humano emocional e cognitivo, e propõe
estratégias concretas para lidar com o fato.

O ser humano, em sua multidimensionalidade, é um exemplo perfeito


de sistema complexo, estende sua influência a toda parte, do micro ao
macrocosmo. Por outro lado, é um sistema fechado em sua individualidade,
único, diferenciado, e sua originalidade jamais será destruída por participar
do todo social.
111

Talvez, pela primeira vez na história do pensamento Ocidental, se


esteja reunindo todas as condições para valorizar o ser humano como
unidade multidimensional; o que antes se espalhava por vastos territórios,
da filosofia, da ciência, da antropologia, da religião, entre muitos outros,
encontra-se agora respaldado tanto em teorias científicas quanto na
sabedoria popular, para constituir-se em todo coerente.

4.4.1
4.1 Circuitos integradores
integradores

O humano é um ser a um só tempo plenamente biológico


e plenamente cultural, que traz em si a unidualidade
originária.
Edgar Morin

Morin propõe, para a análise do ser humano multidimensional, três


circuitos integradores: o circuito Cérebro-mente-cultura, o circuito Razão-
afeto-pulsão e o circuito Indivíduo-sociedade-espécie (MORIN, 2002, p.
52). Estes circuitos integradores evidenciam a multidimensionalidade do ser
humano e a diversidade de aspectos que podem ser considerados em sua
análise, fazendo-a partir das origens primeiras da espécie; passando por
seu desenvolvimento afetivo - base das relações humanas; evoluindo das
construções mais primitivas do cérebro límbico às mais elaboradas do
neocórtex; do ser animal, ocupado da sobrevivência, ao ser complexo,
vivendo em sociedade e tendo suas relações com seus semelhantes
mediadas pela cultura. Em suma, esses circuitos integradores possibilitam a
rearticulação das esferas biológica e antropossociológica da experiência
humana, oferecem solução de continuidade entre elas.
112

O primeiro circuito Cérebro-mente-cultura ilustra a relação de


interdependência existente entre a produção de uma consciência individual e
sua inserção no social mediada pela cultura:

Não há cultura sem cérebro humano (aparelho biológico dotado


de competência para agir, perceber, saber, aprender), mas não
há mente (mind), isto é, capacidade de consciência e
pensamento sem cultura. A mente humana é uma criação que
emerge e se afirma na relação cérebro-cultura. Com o
surgimento da mente, ela intervém no funcionamento cerebral
e retroage sobre ele. (MORIN, 2002, p. 52)

O circuito Razão-afeto-pulsão foca a evolução do homem, e como a


humanidade surgiu da animalidade, no momento em que evolucionariamente
aprendemos a sobreviver na convivência afetiva; e ainda, como as funções
superiores do cérebro evoluíram das estruturas mais primitivas do cérebro
reptílico:

O cérebro humano contém: a) paleocéfalo, herdeiro do cérebro


reptiliano, fonte de agressividade, do cio, das pulsões
primárias, b) mesocéfalo, herdeiro do cérebro dos antigos
mamíferos, no qual o hipocampo parece ligado ao
desenvolvimento da afetividade e da memória a longo prazo, c)
o córtex, que, já bem desenvolvido nos mamíferos, chegando a
envolver todas as estruturas do encéfalo e a formar os dois
hemisférios cerebrais, hipertrofia-se nos humanos no
neocórtex, que é a sede das aptidões analíticas, lógicas,
estratégicas, que a cultura permite atualizar completamente.
Assim emerge outra face da complexidade humana que integra
a animalidade (mamífero e réptil na humanidade, e a
humanidade na animalidade). (MORIN, 2002, p. 53)

O terceiro circuito Indivíduo-sociedade-espécie ressalta o sentido de


pertencimento para o indivíduo e a relação recursiva existente entre os
componentes da “tríade constitutiva do conceito de homem” (MORIN, 2005,
p. 26):
113

Indivíduo sociedade

espécie

Morin afirma, com grande ênfase: “todo desenvolvimento


verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das
autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de
pertencer à espécie humana” (MORIN, 2002, p. 54).

A negação do aspecto trinitário da espécie humana –


indivíduo/sociedade/espécie – representa mais uma base para as cisões que
assolam nossa cultura. O Sentipensar se reafirma como proposta filosófica
adequada para conduzir a mudança na Educação, pois não existem
hierarquias no indivíduo; vivenciamos nossas dimensões de forma
emaranhada, e somente deixamos de fazê-lo quando constrangidos por
alguma restrição imposta. Nesse caso, conhecemos o resultado: uma
educação fragmentária e destituída de humanidade.

4.4.2
4.2 O Corpo como possibilidade de renovação da experiência humana

(...) uma aula com emoção, com relaxamento, onde o


corpo é integrado no ser, não está só um intelecto aqui,
não tem só um monte de cabeças pensando...
Um dos sujeitos da pesquisa

Muito se tem falado sobre o corpo, sobre a inteligência emocional,


sobre a sensorialidade; lamentavelmente, no entanto, os corpos continuam
fora do processo, e com eles, a possibilidade de sentir. Essa é minha tese
114

pessoal mais cara: os corpos foram descartados da experiência humana


para garantir a isenção do pensamento, para consolidar a superioridade da
razão, mantendo em quarentena aquelas indesejáveis e contaminadoras
emoções. A história da negação do corpo é quase a mesma história da
negação das emoções. Estas histórias exigiriam outro estudo completo, uma

outra tese, no entanto, devem pelo menos ser tangenciadas – enquanto

espero o momento oportuno para estudá-la ― pois, não há como conceber

um ser humano multidimensional desincorporado.

Durante muitos séculos perdurou, e ainda perdura, “a dúvida” com


relação à emoção, evidenciando-se o medo da perda da racionalidade ou de
sua simples perturbação. Para o corpo, no entanto, sempre houve “a
certeza” de que deveria permanecer à parte, isolado, estigmatizado, fosse
para negar a existência da emoção, fosse para negar ao ser humano o
sentimento de integridade.

Em seu tratado das paixões humanas, Descartes propôs a não-


existência de qualquer relacionamento entre as “paixões da alma” e as
“paixões do corpo”:

(...) conheci então que eu era uma substância cuja essência ou


natureza é pensar, e que, para existir, não tem necessidade de
lugar algum nem depende de nenhuma coisa material, de modo
que este eu, quer dizer, a alma pela qual sou o que sou, é
inteiramente distinta do corpo, e inclusive que é mais fácil de
conhecer do que ele e que, ainda que não existisse, a alma não
deixaria de ser como é. (DESCARTES, 1984, p. 27)

A experiência humana total e multidimensional não pode prescindir da


inclusão do corpo no processo; através dele, emoções e sentimentos
retomam seu lugar na educação e na vida. A grande dificuldade é que,
115

reconsiderar o papel do corpo exige uma mudança de paradigma; e,


transcender a cisão tão radical que Descartes ajudou a consolidar.

O pensamento de Antonio Damásio, estudado a seguir, oferece uma


bela porta de entrada para a consideração de um ser humano sem hiato
entre corpo e alma; em sua discussão sobre o “erro de Descartes”,
Damásio explica que “antes do aparecimento da humanidade, os seres já
eram seres” e que, para nós, “no princípio foi a existência e só mais tarde
chegou o pensamento” (DAMÁSIO, 2000, p. 279). Assim como a
Complexidade articula vida biológica e antropossocial, Damásio articula vida
orgânica, alma e espírito, justificando-se por oferecer a estes últimos
“origem tão humilde”:

(...) a mente verdadeiramente incorporada que concebo não


renuncia aos seus níveis mais refinados de funcionamento,
aqueles que constituem sua alma e seu espírito. Do meu ponto
de vista o que se passa é que a alma e o espírito, em toda sua
dignidade e dimensão humana são os estados complexos e
únicos de um organismo. (...) É claro que essa não é uma tarefa
fácil: tirar o espírito do seu pedestal em algum lugar não
localizável e colocá-lo num lugar bem mais exato, preservando
ao mesmo tempo sua dignidade e sua importância; reconhecer
sua origem humilde e sua vulnerabilidade e ainda assim
continuar a recorrer à sua orientação e conselho. Uma tarefa
indispensável e difícil, sem dúvida, mas sem a qual talvez seja
melhor que o erro de Descartes fique por corrigir. (DAMÁSIO,
2000, p. 282) (Grifo da autora)

O esforço em direção ao ser humano integral começa exatamente


neste ponto: readmitindo a existência ativa do corpo, através do qual se
estabelece a interface com o mundo, e se tornam acessíveis emoções,
sentimentos e pensamentos.
116

neuropsicológicos do Sentipensar: interdependência entre


4.5 Fundamentos neuropsicológicos
regiões neocorticais47 e subcorticais48 na racionalidade

Ao longo da história da cultura Ocidental, as emoções têm sido vistas


com desconfiança. Muito embora não caiba no âmbito deste trabalho uma
análise completa de tal evolução, pareceu-me essencial comentar pelo
menos uma destas visões, a dos Estóicos (300 a.C.). Estes propunham que
os animais eram inexoravelmente guiados pelo instinto e os homens pela
razão; a maneira como as emoções podiam “mover” o ser humano,
perturbando sua racionalidade os incomodava; negaram-lhes, portanto,
significado, e adotaram por ideal, de forma radical, a ataraxia
(imperturbabilidade da alma por paixões) e a apatia (indiferença a todas as
emoções através do exercício da virtude); nesta concepção, a perfeita
racionalidade do mundo identifica-se com a ausência total de elementos
perturbadores, como pode ser o desvio da vontade por uma emoção. A
doutrina estóica exerceu grande influência no pensamento Ocidental e
muitos de seus fundamentos são ainda evocados em doutrinas modernas e
contemporâneas. As teorias sobre a emoção que se sucederam ao longo da
história colocaram em evidencia uma tensão: atribuir significado à vida
emocional ou não atribuir (ABBAGNANO, 1998, p. 323).

Teve-se que esperar a segunda metade do séc. XX para que


importantes pesquisadores, de diversas áreas, resgatassem para as
emoções o lugar que lhes compete na psique humana, nas ações da vida
cotidiana, e em especial, na Educação. Antonio Damásio reavivou o debate
47
São as regiões evolutivamente mais modernas do córtex cerebral – neocórtex-, responsáveis por
funções cognitivas superiores tais como a percepção, a linguagem, o pensamento consciente, entre
muitas outras.
48
São as regiões mais primitivas do córtex, responsáveis pelas funções de regulação homeostática,
emoções, entre outras. Localizam-se na parte interna do cérebro, enquanto o neocórtex o recobre
externamente.
117

em torno da estreita interdependência existente entre razão e emoção; em


seu livro, O Erro de Descartes, discute, analisa e clarifica uma série de
casos patológicos e situações normais nas quais se evidencia o fato.

Damásio retomou o estudo do caso Phineas Gage, que após sofrer um


terrível acidente de trabalho em 1848, com graves lesões no lobo frontal,
passou por fantástica transformação da personalidade. Após o acidente,
Gage não teve qualquer seqüela na fala, na linguagem, ou mesmo nos órgãos
dos sentidos, no entanto, as transformações em seu caráter foram de tal
monta que aos poucos tornou-se um marginal social, foi demitido de seu
emprego e abandonado pela família.

Na ilustração, observa-se o
hemisfério esquerdo do córtex
Parietal cerebral, e os quatro lobos
Frontal cerebrais: frontal, parietal,
temporal e occipital. O lobo frontal
Occipi
-tal relaciona-se ao planejamento de
Temporal ações futuras e controle do
movimento, desempenha funções
também no processamento da
música; o lobo parietal relaciona-se
à sensação somática; o lobo
occipital com a visão; o lobo
temporal, com a audição, e através
de suas estruturas profundas –
hipocampo e amígdala - com a
emoção, a memória e a
aprendizagem.

Ilustração baseada no livro Princípios da Neurociência de KANDEL, Eric R.; SCHWARTZ,


James H.; JESSELL, 2003.
118

Damásio reabriria o caso, quase cento e quarenta anos depois, queria


descobrir que regiões do cérebro haviam sido lesadas para compreender
exatamente o que havia ocorrido. As pesquisas de Damásio revelaram que
Gage havia sofrido lesões no córtex pré-frontal ventromedial, o que
comprometeu sua “capacidade de planejar o futuro, de se conduzir de
acordo com as regras sociais que tinha previamente aprendido e de decidir
sobre o curso de ações que poderiam vir a ser mais vantajosas para sua
sobrevivência”. (DAMÁSIO, 2000, p. 55).

Córtex pré frontal (em azul)

Estas ilustrações mostram regiões do córtex, de acordo com os tipos de corte que
perior) se pode efetuar, e os nomes utilizados para indicá-las. Ventromedial quer dizer
inferior e na região mediana (interna).

)
Dorsal
(superior)
Lateral medial lateral

Rostral Ventral Caudal


(inferior)

Ventral
(inferior)
119

O mais revelador, no entanto, foi constatar que as estruturas corticais


superiores, responsáveis pela racionalidade, se construíram a partir das
regiões mais primitivas do cérebro humano, envolvidas na regulação
homeostática do organismo e no processamento das emoções primárias,
como explica Damásio, neste trecho (2000, p. 157):

A aparelhagem da racionalidade, tradicionalmente considerada


neocortical, não parece funcionar sem a aparelhagem da
regulação biológica, considerada subcortical. Parece que a
natureza criou o instrumento da racionalidade não apenas por
cima do instrumento de regulação biológica, mas também a
partir dele e com ele. Os comportamentos que se encontram
para além dos impulsos e dos instintos utilizam, em meu
entender, tanto o andar superior como o inferior: o neocórtex é
recrutado juntamente com o mais antigo cerne cerebral, e a
racionalidade resulta de suas atividades combinadas.

A ilustração a seguir, mostra o sistema límbico, na região subcortical,


profundamente implicado no processamento de emoções. Constitui-se do
lobo límbico (em azul) que circunda o corpo caloso (estrutura que interliga
os dois hemisférios cerebrais). São estruturas integrantes do sistema
límbico o giro do cíngulo, o giro parahipocampal, o hipocampo, a amígdala, o
hipotálamo e o tálamo:

Giro do Cíngulo

Corpo caloso

Giro parahipocampal
Amígdala Hipocampo
120

4.5.1
4.5.1 Emoções e Sentimentos

Se imaginarmos uma emoção forte e depois tentarmos


abstrair da consciência que temos dela todos os
sentimentos dos seus sintomas corporais, veremos que
nada resta, nenhum “substrato mental” com que
constituir a emoção, e que tudo o que fica é um estado
frio e neutro de percepção intelectual.
William James

Emoções e sentimentos captam nossa atenção de forma irresistível na


discussão que ora se encaminha, como parte integrante da racionalidade;
emergindo de estruturas cerebrais muito antigas, do cérebro límbico,
participam ativamente do processo de regulação biológica do organismo, a
homeostase, e fundam as bases das estruturas corticais superiores a que
chamamos neocórtex.

A palavra homeostase refere-se a um conjunto de processos de


regulação da vida, dos quais fazem parte o metabolismo, os reflexos
básicos, as respostas imunitárias, os comportamentos que expressam dor e
prazer, pulsões, motivações e, para culminar, emoções e sentimentos
(DAMÁSIO, 2004), sem os quais a vida não pode existir. Emoção,
etimologicamente, significa “movimento para fora” (DAMÁSIO, 2000, p.
168); o ponto de referência é o corpo, e a emoção, aquilo que só pode
ocorrer a partir de uma vivência do corpo, resultando em sua regulação
ótima para a vida. As emoções fazem parte de nossa evolução biológica e
são “um meio natural de avaliar o ambiente que nos rodeia e reagir de
forma adaptativa”. (DAMÁSIO, 2004, p. 62). Damásio classifica as emoções
em três categorias interdependentes. São elas: emoções de fundo, emoções
primárias e emoções sociais.
121

As emoções de fundo falam de um estado basal do corpo, muitas


vezes inconsciente. Sua percepção no próprio organismo se dá de forma
difusa, nem sempre fácil de qualificar, ou implica na leitura de
manifestações sutis no comportamento de outra pessoa: uma tristeza
subjacente, ou alegria que contagia, que se espelha em cada gesto, nas
expressões faciais, no tônus geral da pessoa e são qualificadas como
percepções intuitivas. Resultam do conjunto de processos regulatórios do
organismo, e como informa Damásio “nosso bem-estar ou mal-estar resulta
dessa calda imensa de interações regulatórias” (DAMÁSIO, 2004, p. 52).

As emoções primárias são aquelas que dão a tonalidade a nossas

vidas, cotidianamente ― medo, raiva e tristeza, por exemplo. As emoções

sociais incluem a compaixão, a simpatia, a gratidão, o orgulho, entre várias


outras, e, como o nome indica, se engendram nas relações sociais. Pode-se
dizer que os diferentes tipos de emoção representam uma elaboração, um
refinamento de sua constituição, que parte da vida biológica e se estende à
vida mental: as emoções sociais incorporam elementos mais simples das
emoções primárias que, por sua vez, incorporam processos diversos da
regulação biológica; isso fez com que Damásio utilizasse, para explicá-las, a
metáfora da boneca russa (DAMÁSIO, 2004, p. 53).

Algumas emoções são inatas, encontram-se prontas para entrar em


ação automaticamente, no momento do nascimento, por isso foram
denominadas emoções inatas ou pré-organizadas; outras, por sua vez,
dependem de aprendizagem, de uma interação mínima com o ambiente; a
reação do indivíduo a esse tipo de emoções depende da associação de um
certo estímulo ou situação à uma resposta emocional, adquirida na
experiência individual.
122

Aos poucos, vai se percebendo que a fronteira entre emoções e


sentimentos é tênue, são processos interdependentes que em nossa escala
de tempo podem parecer simultâneos. Damásio define a emoção como “uma
coleção de mudanças no estado do corpo (...) sob o controle de um sistema
cerebral dedicado (...) o qual responde ao conteúdo dos pensamentos
relativos a uma determinada entidade ou acontecimento”. (DAMÁSIO, 2000,
p. 168). Para definir o sentimento de forma muito simples, se poderia
afirmar que eles representam a tomada de consciência das emoções.

4.5.
4.5.2
5.2 A cadeia emoção-
emoção-sentimento

(...) sentir os estados emocionais, o que equivale a dizer que se tem


consciência das emoções, oferece-nos flexibilidade de resposta, com
base na história específica de nossas interações com o meio
ambiente. Embora sejam precisos mecanismos inatos para por a bola
do conhecimento em jogo, os sentimentos oferecem-nos algo extra.

Os sentimentos são a expressão mental de todos os outros


níveis da regulação homeostática.
Antonio Damásio

A partir de um estímulo emocional competente (EEC) que pode ser um


evento real ou apenas sua recordação, respostas químicas e neurais são
ativadas, produzindo uma mudança no estado do corpo e nas estruturas
cerebrais que têm por função mapear o estado do corpo e produzir as
imagens mentais encadeadas ou pensamentos correspondentes à emoção
vivenciada. Todo esse processo tem por resultado levar o organismo à
reação que tanto pode ser uma reação de defesa, em uma situação de
perigo, como a ativação de estados regulatórios requeridos para o bem-
estar.
123

A resposta do corpo ocorre tão logo se detecta o EEC, seja de forma


automática e inconsciente, nas emoções inatas, ou, de forma consciente e
deliberada, quando as emoções envolvem respostas adquiridas. Nosso
organismo está evolutivamente preparado para reagir a um estímulo, ainda
quando este não se apresentou plenamente à consciência.

Antes da consciência, sinais começam a ser enviados a uma das


regiões desencadeadoras de emoção (amígdala, cíngulo ou córtex pré-
frontal ventromedial), e em seguida, num processo extremamente rápido, às
regiões executoras da emoção (prosencéfalo basal, hipotálamo, tronco
cerebral); a partir disso, podemos começar a sentir incômodo ou bem-estar,
ou qualquer outro tipo de reação subliminar. As respostas encetadas pelo
corpo nesse momento são múltiplas e prodigiosas, colocando em marcha um
complexo processo homeostático como ilustra Damásio no trecho a seguir
(DAMÁSIO, 2000, p. 166):

As disposições nessas últimas regiões respondem: a) ativando


os núcleos do sistema nervoso autônomo49 e enviando os sinais
do corpo através dos nervos periféricos, (...) as vísceras são
colocadas no estado mais tipicamente associado ao tipo de
situação desencadeadora; b) enviando sinais ao sistema motor,
de modo que a musculatura esquelética complete o quadro
externo de uma emoção por meio de expressões faciais e
posturas corporais; c) ativando os sistemas endócrino e
peptídico, cujas ações químicas resultam em mudanças no
estado do corpo e do cérebro; (...) d) ativando, com padrões
especiais, os núcleos neurotransmissores50 (...) no tronco
cerebral e prosencéfalo basal, os quais liberam então as

49
O sistema nervoso autônomo se constitui de dois ramos: o ramo simpático que libera adrenalina e
noradrenalina, regulando as reações de “luta ou fuga”; e, o ramo parassimpático, que libera a
Acetilcolina promovendo relaxamento e calma. A ação dessas substâncias se inicia a partir do cérebro
emocional.
50
Neurotransmissores são substâncias químicas liberadas pelos neurônios que modulam a atividade
cerebral e o comportamento. Adrenalina e Noradrenalina, por exemplo, preparam o corpo para a luta;
a Acetilcolina tranqüiliza e faz o coração bater mais lentamente.
124

mensagens químicas em diversas regiões do telencéfalo


(gânglios basais e córtex cerebral).

Essas respostas inconscientes do corpo são um dos principais


argumentos que advogam pela emoção como processo prévio ao sentimento,
e que define o sentimento como uma tomada de consciência da emoção
vivida. Nas palavras de Damásio (2004, p. 37):

(...) temos emoções primeiro e sentimentos depois porque na


evolução biológica as emoções vieram primeiro e os
sentimentos depois. As emoções foram construídas a partir de
reações simples que promovem a sobrevida de um organismo e
que foram facilmente adotadas pela evolução.

Começa-se, então, a perceber a atividade do corpo; imagens mentais


são geradas, referentes à qualidade da emoção experimentada; toma-se
consciência das sensações; nesse momento, é possível afirmar algo a
respeito delas, nomeá-las, é o momento em que a emoção se transforma em
sentimento. As imagens mentais, que acompanham as emoções, emergem
dos mapas corporais que representam toda essa prodigiosa coordenação
neurofisiológica acima descrita.

Na seqüência, pode-se visualizar os processos que conduzem da


emoção ao sentimento:
125

EEC Regiões cerebrais envolvidas:


51 52
Córtices iniciais (representações autônomas ),

Avaliação do EEC Integração do estímulo em


53
Córtices de associação de alta ordem

Desencadeamento da
emoção Sistema límbico: amígdala, cíngulo, córtex pré-frontal

Prosencéfalo basal
Execução da emoção Tronco cerebral
Hipotálamo

Ativação de estado Sistema somatossensorial: respostas internas


do corpo musculares, viscerais, químicas e eletroquímicas

Percepção do funcionamento Mapas cerebrais do corpo


do corpo

Imagens mentais
mentais Emergem dos mapas corporais de forma
ainda não elucidada

Sentimento Percepção consciente do estado do corpo


e dos pensamentos

Reação

51
Conjunto de áreas cerebrais referentes ao processamento inicial de informação proveniente de um
dos sentidos .
52
São padrões potenciais (off line) de atividade neuronal, interconectando diferentes conjuntos de
neurônios que participam de determinado estímulo sensorial quando ativados.
53
São áreas associativas do cérebro que servem para associar a entrada de informação sensória à
resposta motora e efetuar os processos mentais que intervêm entre a entrada da informação sensória
e a saída de informação motora.
126

4.6
4.6 A Escuta Musical

Todas essas reações homeostáticas e a emergência do sentir de uma


emoção interessam sobremaneira a este estudo, pois, são profundamente
afetadas pelo processo de Escuta Musical. Parâmetros fisiológicos, sob o
controle do sistema nervoso autônomo – pressão sanguínea, fluxo sanguíneo
nas estruturas cerebrais, liberação de hormônios, ritmo respiratório, entre
outros –, se vêem sensivelmente modificados sob o efeito da Escuta
Musical.

O estimulo musical e as modificações induzidas no estado do corpo


mantém sua constância no tempo, dialogam, se influenciam mutuamente ao
longo do processo de escuta de forma recursiva, começam a preparar os
estados de bem-estar, ou mesmo mal-estar, que modularão a qualidade dos
pensamentos e afetarão os estilos cognitivos. Seria praticamente impossível
realizar uma descrição completa desse emaranhado complexo de processos
dinâmicos que têm lugar nesse momento. Através das falas dos sujeitos se
verá que estes não permaneceram alheios a essa revolução dinâmica, que
teve como palco seus corpos e mentes.

4.6.1 Ouvir ou escutar musica?

Ouvir e escutar não são sinônimos, pois implicam em posturas muito


diferentes em relação ao fenômeno sonoro. Ouvir é um de nossos sentidos
fisiológicos, e o ato de ouvir decorre de se ter um aparato auditivo em bom
funcionamento; escutar é diferente, exige uma atitude engajada por parte do
ouvinte, que envolve o desejo de apropriar-se do fenômeno ouvido. Nas
palavras de Tomatis (1975, p. 122):
127

Ouvir é se deixar aproximar pelo som (...) é se deixar


passivamente invadir por ele. É se abandonar sem defesa, sem
que haja, portanto, uma real percepção. É, por exemplo,
permitir ao discurso do outro nos atingir sem uma verdadeira
participação de nossa parte. (...) Escutar é um engajamento
total do corpo a fim de que o ser que existe no interior desse
corpo possa beneficiar-se daquilo que deseja perceber. A
percepção em relação à sensação induz a necessidade de uma
manifestação voluntária. Existe uma passagem ao ato que não é
outra coisa senão a participação do sujeito chegando ao
oferecimento de seu ouvido, de seu corpo e de seu sistema
nervoso à mensagem musical ou verbal que ele deseja integrar.

É a escuta como atitude engajada, imbuída de intencionalidade, o que


interessa para esta pesquisa; a escuta como entrega, vivência e
sensorialidade; quando as vibrações sonoras, material e concretamente, nos
atingem, nos tocam e sensibilizam, dando vazão a emoções e sentimentos. A
esse tipo de escuta venho chamando Escuta Musical Sensível.

4.6.
4.6.2
6.2 Como processamos os sons?

Os estímulos auditivos chegam a nós através da orelha externa; as


ondas sonoras fazem vibrar o tímpano, as vibrações são transmitidas à
orelha média através dos três ossículos – bigorna, martelo e estribo. A
vibração do estribo estimula mecanicamente a cóclea – órgão auditivo
responsável pela análise das freqüências do som, localizado na orelha
interna – as células ciliadas são excitadas e se movem com a chegada da
onda sonora; é quando tem início o processamento auditivo.

Através de um processo altamente complexo – a transdução – a


energia mecânica que ativa as células ciliadas é transduzida em potenciais
elétricos que então são transportados pelas fibras nervosas para o tronco
128

cerebral (via nervo coclear). No tronco cerebral, mais exatamente no


tálamo, a música é, pela primeira vez, analisada e filtrada; as características
de freqüência e direção dos sons são examinadas. O tálamo é um elo
essencial de comunicação entre o estímulo sensorial e seu processamento
cerebral; “guardião da consciência”, decide sobre o próximo destino da
música no cérebro (ESCH et al., 2005, p. 10); esse efeito de comporta que o
tálamo exerce é importante para a avaliação da informação musical e para a
proteção do organismo de alguma sobrecarga sonora que possa danificar o
sistema. Via tálamo, a informação chega a áreas corticais primárias (córtex
auditivo), onde outras características do som são analisadas em separado –
timbre, duração, intensidade, por exemplos. A informação, até então
processada em áreas unimodais do cérebro, é então integrada em áreas de
associação ou córtices de alta ordem. Essas áreas, além de integrarem a
informação multimodal, preparam o indivíduo para a ação, ou seja, para
reagir ao estímulo musical recebido. (KANDEL et al., 2003, p. 590).
Observe-se a ilustração:

Córtex auditivo

Bigorna Estribo Tronco encefálico

Martelo

Nervo coclear

Pavilhão da orelha
Cóclea
Tímpano
Ilustração baseada no livro Princípios da
Neurociência de KANDEL, Eric R.;
SCHWARTZ, James H.; JESSELL,
2003.
129

No processamento musical sempre se admitiu a lateralidade


específica do funcionamento cerebral, uma espécie de divisão do trabalho.
Assim, de maneira geral, o hemisfério direito trabalha na estrutura geral da
música, processando a informação de forma holística, o que envolve a
expressividade e outras características mais imprecisas e globais da
música, ao passo que o hemisfério esquerdo conduz a análises mais sutis,
precisas, de caráter estrutural.

Numa pesquisa realizada por Altenmüller (2003, p. 346), o autor


procurou saber se a maneira de ouvir música teria influência sobre os
diferentes locais de processamento musical. Os sujeitos tinham de 13 a 15
anos, e foram divididos em três grupos. No primeiro (grupo declarativo),
todos os sujeitos tinham formação musical suficiente para empreender uma
análise estrutural da música, e passaram por um pré-teste, no qual puderam
familiarizar-se com as estratégias que seriam utilizadas no teste, de forma
teórica; os indivíduos do segundo grupo (grupo procedimental), também com
formação musical, passaram por um pré-teste prático, no qual puderam
tocar e improvisar utilizando as estratégias que seriam propostas no teste;
e, um terceiro grupo foi constituído por indivíduos sem formação musical. O
primeiro grupo teve ativação significativa do lobo temporal frontal esquerdo,
refletindo provavelmente um tipo de processamento cognitivo verbal e
analítico; o segundo grupo revelou incremento da atividade do lobo frontal
direito, e bilateralmente dos lobos parietais e occipitais, o que reflete uma
forma mais global de processar, incluindo associações visuo-espaciais, com
certeza decorrentes da vivência prática anterior.

O resultado dessa pesquisa comprovou que, o tipo de contato ou


treinamento musical recebido, afeta a plasticidade cerebral. Redes
130

neuronais, amplamente difundidas nos dois hemisférios cerebrais,


desenvolvidas de forma específica para cada pessoa, podem estar
subjacentes ao processamento musical. Nas palavras de Altenmüller (2003,
p. 351), “os substratos cerebrais do processamento musical refletem a
‘biografia’ auditiva aprendida, a experiência pessoal acumulada ao longo do
tempo”.

4.6.3
4.6.3 De onde provêm a força emocional da música?

Talvez música, e toda arte de alguma forma, leve a


transcender a mera percepção precisamente por acessar
nossa neurobiologia mais primitiva.54
Robert Zatorre

Provavelmente a música faça parte de nossas vidas desde tempos


imemoriais, perpassando vivências afetivas e sociais ao longo da evolução.
Segundo Panksepp e Bernatzky (2002, p. 140), nosso amor pela música
pode ser decorrência de uma “habilidade ancestral” para receber e
transmitir sons com mensagens emocionais; a relação afetiva mãe-filhote
talvez tenha realizado uma transição importante, quando as mães
começaram a se comunicar com seus filhos de formas arrebatadoras. O
nome que esse idioma especial recebe atualmente é “mamanhês”, ou seja,
aquele idioma específico entre mãe e bebê, caracterizado pelo uso
intrinsecamente afetivo de entonações melódicas em freqüência mais
elevada que a habitual e ritmo entrecortado, o que permite ao bebê ter
tempo para ensaiar algum tipo de resposta (LAZNIK; PARLATO-OLIVEIRA,
2006, p. 62).

54
Tradução da autora
131

Além desse aspecto, emocional e humano, a música pode também ter


tido origem na relação do homem com o meio ambiente: “o mecanismo de
processamento de tons (freqüência do som) não teria se desenvolvido para a
música per se, mas poderia ser parte de um sistema geral para utilizar sons
naturais do ambiente”55 (ZATORRE, 2005, p. 313).

A música esteve presente ainda, na gênese da vida social, talvez


também na origem da comunicação verbal (HURON, 2003, p. 66). Segundo
Panksepp e Bernatzky (2002, p. 145), a música foi um elemento agregador,
ritualístico:

(...) a música funciona como um ímã para as atividades sociais


humanas. Essa não é uma observação trivial, pois pode
clarificar uma das maiores funções adaptativas da música na
evolução humana, a habilidade da música para promover
interações sociais é um aspecto evidente de seu uso em todas
as sociedades.

A partir de cinco meses no útero materno, e imediatamente ao nascer,


os bebês já são detentores de uma competência musical prodigiosa:
percebem freqüências, tempo e timbre de forma refinada, muito mais do que
a necessária para se fazer música; agrupam elementos estruturais da música
por suas características intrínsecas (percepção gestáltica); reconhecem e
reagem a transposições de tonalidade e andamento; têm excelente memória
melódica e conseguem reconhecer melodias convencionais ou pouco
convencionais, superando, nesse aspecto, a performance dos adultos, que
retêm apenas melodias convencionais de sua experiência (TREHUB, 2003,
p. 3). Zatorre faz notar que “o sistema nervoso dos bebês parece ser
equipado com uma capacidade para classificar os diferentes sons musicais

55
Tradução da autora.
132

que atingem seus ouvidos com vistas a construir uma gramática, ou um


sistema de regras.”56 (ZATORRE, 2005, p. 314).

Possuímos habilidades muito antigas para perceber e processar


música. (ESCH, 2005; HURON, 2003; PANKSEPP, BERNATZKY, 2002;
ZATORRE, 2005). Todas as evidências apresentadas até aqui permitem
deduzir que o processamento musical não é uma aquisição recente, mas sim,
antiga, o suficiente para ter participado dos estágios primordiais do
desenvolvimento humano evolutivo.

4.6.
4.6.4 Benefícios neuropsicológicos da Escuta Musical

Claramente, a música dá voz a nossos sentimentos, e


provê uma maneira altamente ética e única para estudar
as emoções do cérebro/mente humanos.57
Jaak Panksepp

4.6.4.1 Memória emocional

A escuta musical atua no nível neuropsicológico do ser humano. Ouvir


música é fonte de emoções (PANKSEPP, 2002; ZATORRE, 2005). Tão logo
as vibrações sonoras são processadas no córtex auditivo, uma série de
reações fisiológicas tem início, ativando o sistema límbico, responsável pelo
processamento de emoções; e, resgatando memórias emocionais que ficam

associadas à música ― sejam elas prazerosas ou indesejáveis. Segundo

Schreiber (2004, p. 93), a memória tem uma propriedade especial ― chamada

56
Tradução da autora.
57
Tradução da autora
133

“propriedade de conteúdo acessível” ― que permite a ela ser acionada a

partir de qualquer de seus elementos constituintes:

(...) o odor de perfume de uma ex-namorada pode ser


suficiente para que toda a memória dessa pessoa volte:
imagens, pensamentos e palavras. E mais, ao contrário dos
computadores que precisam de equivalentes exatos, a
recuperação da memória no sistema nervoso procede por
analogia; portanto, qualquer coisa que possa, mesmo que
vagamente, nos lembrar de algo que saibamos pode trazer de
volta a memória.

As observações de Schreiber referiam-se ao resgate de eventos


traumáticos na experiência de seus pacientes, porém é possível inferir, por
analogia, que o cérebro conserve essa propriedade para outros tipos de
evento; assim, quando se ouve música significativa, memórias emocionais
podem ser reativadas, induzindo reações corporais e mentais diversas.

As informações provenientes do córtex auditivo interagem com


diversas regiões cerebrais, em especial, com o lobo frontal, para formação
da memória e avaliação do estímulo emocional (ZATORRE, 2005, p. 312).

Como se viu, memórias musicais emocionais podem ser geradas a


partir de interações sociais primordiais. Segundo Panksepp e Bernatzky
(2002, p. 137):

(...) uma passagem obrigatória para o processamento auditivo,


o colículo inferior, é onde a voz materna deve deixar suas
primeiras marcas afetivas: essa região (...) é ricamente dotada
de receptores opióides que devem modular o apego que
desenvolvemos por certos sons (por exemplo, as vozes
daqueles que amamos) e, portanto, por uma linha paralela de
raciocínio, a certos tipos de música.
134

Circuitos cerebrais muito antigos – motivação e recompensa –,


intimamente ligados a essas memórias, são estimulados quando se ouve
música que nos agrada; tal despertar emocional é acompanhado por
marcadores somáticos (sensações secundárias do corpo, desencadeadas a
partir da emoção sentida), a partir da escuta, esses circuitos são
mentalmente reforçados com sentimentos positivos ligados à música,
induzindo sentimentos de completude e bem-estar. A ativação do sistema de
recompensa maximiza o prazer gerado pela música, não somente por sua
própria atividade, mas também por promover, simultaneamente, alterações
que diminuem a atividade em estruturas cerebrais associadas a emoções
negativas, a exemplo da amígdala e do hipocampo, que passam a receber
impulsos sinápticos58 inibitórios (BLOOD; ZATORRE, 2005, p. 11.823).

Na ativação do circuito cerebral de motivação e recompensa se


registra aumento da atividade cerebral no córtex pré-frontal e orbitofrontal,
giro cingulado, amígdala, hipocampo e núcleo accumbens, as mesmas
estruturas que serão estimuladas na resposta de relaxamento (ESCH et al.,
2005, p. 9).

Em musicoterapia, em especial na chamada musicoterapia receptiva,


os pacientes ouvem músicas emocionalmente significativas que trazem
associações e memórias; estas podem ser então trabalhadas de forma
emocionalmente segura ou tão simplesmente prazerosa (ESCH et al., 2005,
p. 10).

58
Sinapse é o ponto no qual dois neurônios – célula nervosa – se comunicam através da transmissão
de sinais eletroquímicos. A célula que transmite o sinal é chamada pré-sináptica, a que o recebe,
pós-sináptica. É através de trilhões de sinapses organizadas em circuitos que se realiza todo o
processamento cerebral.
135

4.6.4.2 Música e relaxamento

A Escuta Musical é indutora de relaxamento e, por essa via, promove


alterações nas funções homeostáticas do organismo, desencadeando uma
cascata de reações fisiológicas sob controle do sistema nervoso autônomo.
Tais alterações são decorrentes de um metabolismo reduzido e de um
decréscimo geral na atividade cerebral: o consumo de oxigênio diminui, o
que altera os padrões respiratórios e o batimento cardíaco; a pressão
sanguínea se reduz com a estimulação da vasodilatação periférica, o que faz
decrescer o ritmo cardíaco, gerando uma agradável sensação de bem-estar.
A resposta de relaxamento envolve, de maneira complexa, diversas
estruturas subcorticais do sistema límbico: – ínsula, cíngulo, amígdala e
hipotálamo –, como explica Esch (2005, p. 12):, “uma associação de música
e emoção, neurotransmissores e produção do hormônio do stress, respostas
autonômicas, comportamento e estados de humor, se torna óbvia”.

O relaxamento também leva a uma diminuição geral da atividade


cerebral, facilmente detectável no eletroencefalograma: o estado de
relaxamento caracteriza-se por ondas Alfa (freqüência de 8 a 13 Hz) e pela
sincronização das ondas cerebrais; daí provém a expressão popular “entrar
em Alfa”; ao entrar em meditação profunda, a freqüência das ondas cai ainda
mais – ondas Teta. Esse tipo de onda, presente num indivíduo normal e
desperto, representaria algum tipo de disfunção cerebral, no entanto, o
estado meditativo é diferente, pois é um estado ativo (KANDEL et al., 2003,
p. 916).
136

4.6.4.3 Ação anti-


anti-estresse da música

Pesquisas comprovam que a música tem uma atuação decisiva na


redução dos níveis do hormônio do estresse no organismo (ESCH, 2003;
TREHUB, 2003) e na elevação da concentração de endorfina59 e
endocanabinóides60 no sangue, o que facilita o relaxamento.

Em presença de um estímulo estressante, a amígdala é ativada e envia


uma mensagem ao hipotálamo, o hormônio ACTH (adrenocorticotrófico) é
liberado pela hipósife e libera o cortisol no sangue. O cortisol inibe algumas
funções, a exemplo da secreção de insulina; a glicose liberada pelo fígado
fica disponível para consumo muscular; o cortisol age também no cérebro
favorecendo o comportamento agressivo para a defesa, ou simplesmente
para reagir a inúmeros pequenos ataques cotidianos, como pode ser, um
desentendimento no trabalho.

O estresse faz parte da vida e tem uma ação positiva, no entanto,


quando se instala de forma permanente, se torna prejudicial afetando a
memória, a capacidade de concentração, o sistema imunológico, as funções
de reprodução, além de favorecer o surgimento da diabete tipo 2 e da
depressão.

A Escuta Musical tem o poder de estancar a reação de estresse no


organismo; a partir dela, como se viu, as estruturas límbicas interagem com
o córtex auditivo, nesse caso, em especial a amígdala, responsável pela
reação de medo; o hipotálamo deixa de ser ativado e de ativar a hipófise; na
falta do ACTH a liberação de cortisol é interrompida; os efeitos calmantes
59
A endorfina é um neurotransmissor que entre diversas outras propriedades também atua na
resposta de relaxamento.
60
Endocanabinóides são também substâncias produzidas no cérebro que atuam como moduladoras nos
processos metabólicos e de secreção hormonal.
137

começam então a se fazer sentir. Músicas com andamento lento, tempo


regular, e que respeitem as normas da tonalidade são as mais indicadas para
essa finalidade; o repertório escolhido deve considerar tais aspectos
(KHALFA, 2005, p. 72).

4.6.4.4 Arrepios musicais

Os arrepios musicais, que se experimenta diante de músicas


aprazíveis, são mais uma forma de manifestação das emoções. Em pesquisa
realizada por Blood e Zatorre (2001, p. 11.819), o fluxo sanguíneo de
regiões cerebrais foi medido através da TEP (tomografia por emissão de
pósitrons); os autores partiram da hipótese da estimulação do sistema
motivação-recompensa, estar relacionada à ocorrência dos arrepios. Os
sujeitos da pesquisa tinham formação musical, escolheram músicas do
repertório clássico que normalmente lhes causavam agradáveis sensações
de arrepio, e se encontravam numa das seguintes condições: 1. Ouvindo a
música por eles selecionada, 2. Ouvindo uma música controle, 3. Silêncio, e
4. Ouvindo ruídos amplificados e equalizados; a escuta de cada condição
durava 60 segundos e se repetiu por três vezes, em ordem aleatória. Os
sujeitos qualificaram suas reações emocionais numa escala que ia de
desprazeroso a prazeroso (-5 a +5); diversas outras medidas foram
efetuadas: batimento cardíaco, eletromiograma61, ritmo respiratório,
resposta eletrodérmica e temperatura da pele.

As experiências de arrepio foram relatadas pelos sujeitos em 77% dos


scanners quando soava a música por eles escolhida, correspondentes a

61
O eletromiograma é um exame no qual são registrados os impulsos elétricos provenientes dos
músculos, o que ajuda a determinar se eles estão normais.
138

alterações na atividade autônoma: elevação no batimento cardíaco e


respiratório e no eletromiograma. Não foram relatados arrepios nas
condições de escuta da música-controle, de ruído ou silêncio. Na escala
utilizada, a avaliação de prazer ou desprazer dos sujeitos foi mais elevada
do que a própria intensidade dos arrepios, sugerindo que estes se
manifestam após a potencialização de certo estado emocional. O aumento do
fluxo sanguíneo cerebral afetou justamente o circuito cerebral de
recompensa, ilustrando mais uma vez a profusão de interconexões que as
emoções promovem no cérebro humano.

4.7
4.7 Música e cognição

4.7.1 Efeitos de transferência

As pesquisas comprovam que o relaxamento e situações de bem-


estar podem melhorar a concentração, a capacidade de memória, e,
conseqüentemente, o desempenho cognitivo. (ASHBY et al., 1999; ESCH,
2003; ZATORRE, 2005). Seria por essa razão que o senso comum passou a
admitir que a música nos torna mais inteligentes? O efeito Mozart alimentou
essa hipótese durante a última década.

O efeito Mozart62 é um efeito de transferência ― transfer effect ―,

baseado na similaridade de processos envolvidos na situação original e na

62
O primeiro estudo data de 1993, F. Rauscher, G. Shaw e K. Ky. Os pesquisadores se perguntavam
se uma breve exposição a certos tipos de música poderia incrementar habilidades cognitivas. Trinta e
seis estudantes de 2º grau foram divididos em três grupos, os quais passaram dez minutos numa das
seguintes condições: a) ouvindo a Sonata para Dois Pianos em Ré maior, de Mozart, K 448; b) ouvindo
uma gravação com instruções de relaxamento; e c) em silêncio. Imediatamente após, os grupos foram
testados em raciocínio espacio-temporal, utilizando uma das baterias do teste Stanford-Binet: depois
de observar uma folha de papel dobrada várias vezes e submetida a vários cortes com uma tesoura,
os estudantes deveriam predizer quais seriam os padrões formados no papel desdobrado. A pontuação
139

situação facilitada, como por exemplo, ocorre com a habilidade para andar
de bicicleta, aproveitada também para a prática do skate ou do esqui.
(WEINBERGER, 1999, p. 1). No caso do efeito Mozart, a transferência se dá
do domínio das estruturas musicais elaboradas para o domínio das
habilidades espacio-temporais. Os pesquisadores não conseguiram repetir o
experimento com sucesso e passaram a questionar sua validade, a partir de
perspectivas diversas: qualquer música de estrutura comparável à música de
Mozart poderia suscitar o efeito, pois música é um estímulo muito mais
poderoso para o cérebro do que as condições de controle (instruções de
relaxamento, silêncio ou música minimalista); diante de música de igual
interesse e com o mesmo grau de complexidade, o efeito simplesmente
desapareceu, como observado em diversos estudos (CHABRIS, 1999;
THOMPSON, 2001; WEINBERGER, 2000); as preferências musicais dos
sujeitos, como se viu, modelam seus parâmetros de reação, interferem na
performance cognitiva; assim, o efeito Mozart poderia ser nada mais do que
o efeito positivo do humor induzido pela música, na performance cognitiva
(BLOOD, ZATORRE, 2001; PANKSEPP, BERNATSKY, 2002; THOMPSON,
2001) Esses dados tornam-se importantes para esta pesquisa, pois através
das discussões anteriores, viu-se que a música tem a capacidade de induzir
tais estados positivos.

Inúmeros outros efeitos musicais de transferência têm sido


observados, um exemplo seria a facilitação da aprendizagem da leitura, em
decorrência da habilidade musical para discriminar diferentes alturas,
compreender e emitir novos sons (SPYCHIGER, 1998). Comprova-se,
portanto, que a música contribui para o desenvolvimento de diversas

do grupo que ouviu Mozart foi significativamente superior ao dos outros dois grupos, no entanto, o
efeito era muito breve, não mais que dez a quinze minutos.
140

funções cognitivas, ainda que por breves períodos de tempo. O grande


desafio para a pesquisa neuropsicológica, neste momento, é elucidar como a
plasticidade cerebral se altera a partir de efeitos permanentes que um
contato duradouro com a música possa desencadear. A pesquisa nesse
campo apenas se inicia, mas certamente poderá contribuir para consolidar a
presença da música no currículo escolar básico.

4.7.2 A sintaxe musical e a cognição

A sintaxe musical ― maneira como os elementos da estrutura musical

estão organizados e encadeados (acordes, escalas, tonalidades, entre muitos

outros) ― não nos deixa indiferentes. Provavelmente, a percepção desses

elementos estruturais se inicie num nível profundo e inconsciente, pois a


música tem nos acompanhado desde tempos remotos quando não se
necessitava conhecer e racionalizar sobre a sua estrutura. Como explicam
Panksepp e Bernatzky (2002, p. 134):

(...) há certos aspectos físicos ou mentais da chamada ‘vida


interior’, que têm propriedades similares àquelas da música,
padrões de movimento e repouso, de tensão e relaxamento, de
concordância e discordância, preparação, resolução, ‘excitação’
etc.63

Quando se estuda música, toma-se consciência desses padrões.


Envolvemo-nos com a sintaxe musical, sendo ou não músicos, consciente ou
inconscientemente. Segundo Sloboda (1985, p. 16):

As provas sugerem que pessoas não treinadas (em música) têm


um conhecimento implícito daquilo que os músicos podem falar
explicitamente. Nesse sentido, existe semelhança entre a

63
Tradução da autora.
141

música e a linguagem. Mesmo que tenham um conhecimento


consciente muito limitado, indivíduos comuns falam sua língua
natural, baseados nas mesmas regras gramaticais das quais se
servem lingüistas profissionais64.

Desde o início, com as primeiras canções de ninar, percebemos


intuitivamente o encadeamento das estruturas musicais, observando as
reações das pessoas, construímos representações mentais sobre a música,
que permanecem latentes e se manifestam sempre que evocadas em
situações concretas. Aprende-se música na vida cotidiana, no processo de
crescer e conviver na família e nos grupos sociais freqüentados.

4.7.3 A Teoria dopaminérgica dos sentimentos positivos

As pesquisas têm comprovado, de modo convincente, que os


sentimentos positivos experimentados pelas pessoas podem afetar
sistematicamente o processamento cognitivo. Sentimentos positivos podem
ajudar a melhorar nossa performance na solução criativa de problemas, no
incremento da memória e na escolha de estratégias para tarefas que
implicam na tomada de decisões (ASHBY et al., 1999, p. 529).

Nas pesquisas descritas por Ashby, os sentimentos positivos foram


induzidos de formas simples: antecipação de uma pequena recompensa em
dinheiro, assistir a um filme de comédia, ler cartoons divertidos, ou
experimentar a sensação de obter sucesso numa tarefa difícil. A natureza
simples dessas estratégias indica que os efeitos podem ser prontamente
acessados por coisas simples que se experimenta diariamente.
Possivelmente, na estratégia de Sentipensar, a música atue como uma

64
Tradução da autora.
142

dessas estratégias indutoras de sentimentos benéficos, com o poder de


promover mudanças no estado cognitivo; tais sentimentos foram
amplamente relatados pelos sujeitos da pesquisa.

A cada vez que o circuito cerebral para recompensa é ativado pela


escuta de música que nos agrada, ocorre a liberação de dopamina em áreas
frontais do cérebro (córtex pré-frontal e giro anterior do cíngulo), a
exemplo do que ocorre também para estímulos biológicos relativos ao sexo
e à alimentação, ou artificialmente ativados por drogas (BLOOD; ZATORRE,
2001, p. 11.823).

A teoria dopaminérgica dos sentimentos positivos ― elaborada por

Ashby, Turken e Isen ― partiu da seguinte hipótese: “algumas alterações no

processamento cognitivo que foram observadas na condição de sentimentos


positivos são devidas ao incremento dos níveis de dopamina no cérebro
associados aos sentimentos positivos” (ASHBY et al., 1999, p. 529). Trata-
se de uma primeira descrição do mecanismo neuropsicológico subjacente à
influência dos sentimentos positivos na cognição.

No artigo intitulado A neuropsychological theory of positive affect and


its influence on cognition (ASHBY et al., 1999), amplamente documentado
em pesquisas já realizadas nessa área, Ashby e seus colegas descreveram e
comentaram resultados de mais de vinte cinco experimentos, realizados
com diferentes sujeitos em contextos variados (escolas, organizações,
contextos de consumo, situações de negócios, entre muitas outras),
servindo-se de diferentes métodos para a indução de sentimentos positivos
e diversas medidas de flexibilidade cognitiva; os autores relataram a
143

observação de alterações comportamentais e de estilo cognitivo, associadas


à elevação dos níveis de dopamina, como veremos a seguir:

Os sentimentos positivos levam à flexibilidade e facilitam a


solução criativa de problemas através de uma ampla variedade
de situações. (...) A pesquisa sugere que os sentimentos
positivos aumentam a habilidade de uma pessoa para organizar
idéias de múltiplas formas e para acessar perspectivas
cognitivas alternativas.

(...) sentimentos positivos têm conseqüências previsíveis em


diferentes tipos de tarefa. (...) em associação de palavras (as
pessoas com afetos positivos ranquearam melhor, tendo mais
associações do que o grupo controle). (...) incrementaram a
fluência verbal bastante mais em relação ao grupo controle, em
situação neutra.

(...) pessoas na condição de sentimento positivo são hábeis


para classificar de formas mais flexíveis e são mais hábeis
para ver meios pelos quais membros não típicos de certas
categorias possam a ser aceitos ou vistos como membros
dessas categorias. (...) Esse efeito foi observado para
categorias de itens naturais, para produtos e na classificação
de grupos sociais humanos (habilitando um grupo socialmente
diferente a ser integrado e percebido como tomando parte de
uma situação).

(...) na condição de sentimento positivo, pessoas foram


observadas percebendo o interesse em resolver uma tarefa
interessante, mas não uma tarefa medíocre, mais do que o
grupo controle. (...) a riqueza de uma tarefa é estritamente
relacionada à sua complexidade, variedade, diversidade e
interesse.

(...) sentimentos positivos têm sido mostrados como fatores de


melhoria na performance de tarefas diversas que são
tipicamente utilizadas como indicadores de criatividade e
inovação na solução de problemas. (...) cada resposta (à
experiência descrita de arranjo criativo) pode ser vista como
envolvendo flexibilidade cognitiva, ou a habilidade de colocar
144

idéias juntas em novas e úteis formas – uma definição clássica


de criatividade.65

A descrição detalhada dos fenômenos constatados por essa série de


experimentos científicos teve lugar nesse escrito, pois se, a partir da
análise dos dados se confirme a indução de sentimentos positivos através da
música, essa teoria será uma base importante de fundamentação das
relações existentes entre sentir e pensar, e da utilização de uma estratégia
de Escuta Musical para promover o incremento do pensamento reflexivo.

65
Citações traduzidas por esta autora.
145

5. Transdisciplinaridade:
ransdisciplinaridade: abertura do olhar sobre o mundo

Como pode uma concha vazia ser habitada por fantasmas


infinitos, como um homem oco torna-se o Deus de um povo? A
cisão entre o espaço interior e o espaço exterior de um ser
humano pode trazer um esclarecimento interessante a este
gênero de processo. Quando o espaço interno se reduz a nada,
o espaço externo pode tornar-se monstruoso.
Basarab Nicolescu

Do alto do infinito
Tatiana Clauzet
146

Cenário Transdisciplinar

Estávamos na PUC de São Paulo, era um seminário sobre a


Complexidade e a Transdisciplinaridade na educação. Eu deveria
participar de uma mesa de debates que depois de assistir a um vídeo
sobre o processo criativo em Pablo Picasso, procuraria elucidar para
o público presente os princípios da Transdisciplinaridade.

A mesa se compunha de palestrantes brasileiros e espanhóis. Eu não


havia tido tempo suficiente para preparar minha fala, o que incluiria
naturalmente assistir ao vídeo antecipadamente, no entanto, não me
preocupei excessivamente com isso, pois, para mim é um
comportamento habitual tecer meus comentários mentais e teorias ao
assistir qualquer filme ou apresentação artística. Porém, não pude
deixar de pensar que a situação era um tanto inédita para o ambiente
acadêmico.

A mesa teve início na tarde do primeiro dia do simpósio. Decidi a


priori concentrar minha atenção na parte de áudio, pois sendo a
música minha área de especialização, com certeza haveria algo a
agregar sobre isso. De fato, o áudio era muito interessante a começar
pelo som do pincel atômico com o qual Picasso traçava suas figuras.
Havia uma deliciosa sincronia entre som e imagem, e aquele som
sobre o silencio tornou-se encantatório. Na seqüência, havia uma
música clássica, possivelmente anos 20, de caráter fragmentário, os
elementos pareciam misturar-se algumas vezes ao acaso, numa
espécie de arte combinatória, uma espécie de caleidoscópio de som, o
mesmo estava acontecendo com as imagens que se construíam e
desconstruíam o tempo todo. Som e imagem estavam sincronizados
do ponto de vista material e concreto, mas também a partir dos
sentidos que se podia atribuir a toda essa dinâmica.

Iniciei minha fala recordando idéias do mestre Koellreutter: “não


existe nada mais programado do que uma improvisação”. Sim era
necessário dize-lo, pois, em especial aos olhos de meus colegas de
mesa, tudo poderia parecer uma grande improvisação; tão pouco
havia algum mal nisso, pois, a improvisação é tão fundamentada e
referenciada quanto a composição, para improvisar é necessário um
cabedal de competências e grande quantidade de referências
provenientes da linguagem que se utiliza, seja ela sonora, visual,
corporal, verbal ou qualquer outra.

Essa liberdade e aparente falta de planejamento foi o primeiro


elemento de abertura que incorporamos naquela tarde. As falas
147

tornaram-se poéticas, todos os palestrantes falaram algo sobre o ato


de improvisar e sobre as diferentes linguagens artísticas, sobre eles
próprios, sobre a subjetividade de cada interpretação, e a busca do
sentido por parte de cada um, e esse foi um segundo elemento de
abertura.

O público se sentiu livre para interagir e as perguntas foram muito


interessantes. O diálogo franco se estabeleceu, entre o conhecimento
acadêmico e a sabedoria das pessoas, um terceiro elemento de
abertura. O tempo passou com incrível rapidez.

O olhar das pessoas era tranqüilo e por parte de várias delas havia
encantamento. Pude sentir ar de liberdade. O clima foi se tornando
mágico, estávamos todos conectados, pertencíamos todos àquele
ambiente. Havia algo mais entre as pessoas, algo que não se vê.
Havia uma energia compartilhada e unificadora que religou a todos.

No dia seguinte ainda acordei com aquela sensação e possivelmente


eu a carregue sempre, me sentia energizada, me sentia feliz e em
fluxo, sentia que o mundo era pequeno para mim e que eu poderia dar
conta de fazer tudo o que tinha a fazer e além do mais, sentia que
isso era prazeroso.

No dia seguinte, aquela mesa foi evocada em vários momentos,


sempre de forma prazerosa e aberta, tivemos o depoimento de duas
graduandas que se sentiam incluídas naquele mundo primeiramente
tão resistente dos mestres e doutores. Havíamos vivido juntos uma
linda experiência de partilha. O espírito transdisciplinar havia estado
conosco.

5.1 O espírito transdisciplinar: comentário da experiência

A experiência que acabo de descrever, vivida intensamente por cada


um dos indivíduos presentes, foi uma experiência do coletivo unificado no
campo energético que se formou.

Vivemos tempos difíceis, carentes de uma reforma total do


pensamento, e de uma transmutação paradigmática profunda, comparável a
148

uma revolução. Estes tempos pós-modernos caracterizam-se pela incerteza


e pela convivência de opostos; pela descrença na razão, no progresso e nos
grandes ideais que alimentaram a modernidade. A situação filosófica da pós-
modernidade mergulhou-nos num mar de desesperança, no qual parece
inútil nadar. Estamos precisamente no ponto de bifurcação, ou se sucumbe
junto às grandes narrativas modernas, ou se fortalece um discurso inovador
que, poderia apresentar-se como fonte de renovação para as possibilidades
da humanidade. A esperança já esteve presente em outra parte deste
escrito, quando discuti o conceito de Sentipensar, e agora retorna pelas
mãos da Transdisciplinaridade; ela é muito necessária e, como educadores,
é preciso que nos tornemos seus arautos, anunciando entusiasticamente sua
chegada.

Os saberes, o acúmulo de conhecimentos pela humanidade, não têm


garantido uma vida mais feliz. Estamos à beira de um ataque de nervos,
afastados do ser interior; é como se não houvesse mais autoconhecimento
possível. A ‘mãe terra’ também pede socorro. Como poderia ser diferente?
Como cuidar do ambiente, se somos incapazes de nos cuidar?

A Carta da Transdisciplinaridade (vide Anexo 7) e seus signatários,


falam de uma “tecnociência triunfante”; e, em contraste, de uma nova forma
de obscurantismo: “o ser interior cada vez mais empobrecido”; como
teríamos chegado a isso? O que é possível ainda fazer?

O espírito transdisciplinar alia-se a nós numa incessante luta por um


mundo sustentável e relações humanas mais felizes. Mas o que seria o
espírito transdisciplinar? A análise do cenário transdisciplinar, que abre esta
seção, permite vislumbrar algumas respostas.
149

O espírito transdisciplinar manifestou-se na construção atenta, sutil e


improvisada das ações daquela tarde e, de forma bem especial, para mim;
sentei-me à mesa com a disposição de elaborar o conhecimento a partir dos
dados que me fossem apresentados; isso implicava abertura em todos os
sentidos: das percepções, das capacidades analíticas, abertura também da
escuta, tanto dos dados concretos apresentados no áudio, como da fala dos
outros participantes e do público, a partir das quais eu faria minha própria
construção.

O espírito transdisciplinar se manifestou na exposição dos sujeitos,


promovendo a “ressurreição do indivíduo”, como diria Basarab (2005, p.
11); olhares e opiniões se entrecruzaram e se esclareceram mutuamente.
Na subjetividade das interpretações, reorganizadas através de uma troca
intersubjetiva, a busca do sentido pode ter lugar transformando-se
gradualmente, a cada traço de Picasso, a cada alternância de imagem. Por
um momento, durante aquela mesa, desejei ter a panorâmica dos sentidos
atribuídos por todas as pessoas àquela dinâmica, o que comporia uma
espécie de polifonia mental a várias vozes. A subjetividade do “outro” nunca
me pareceu mais inacessível; a sensação, por instantes, foi de impotência;
então, pensei, pensei, e me coloquei a questão fatídica: será que nunca será
realmente possível saber “como o outro pensa e sente?” Conclui que o
sentido da alteridade é precisamente isso: o esforço de compreensão de
como o outro sente e pensa, e encontrei consolo.

O diálogo esteve presente, assim como a disponibilidade para a


escuta. Diálogos entre aparentes opostos: o mundo acadêmico e a sabedoria
das pessoas, a fala do especialista e a fala do leigo, o pressuposto
disciplinar e a integração interdisciplinar, a arte e a ciência, a escuta do
150

outro e a escuta de si; são diferentes formas de diálogo configurando, mais


uma vez, o cenário transdisciplinar.

A atitude transdisciplinar implica numa escuta sensível, aquele que


ouve deve “saber sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro,
para compreender do interior as atitudes e os comportamentos, o sistema
de idéias, de valores, de símbolos e de mitos” (BARBIER, 2002, p. 94); a
escuta sensível é, então, o portal de comunicação que se abre entre as
subjetividades.

Através da escuta sensível possibilita-se a aceitação do outro, e sua


compreensão “fundamentada no respeito absoluto às alteridades unidas pela
vida comum numa só e mesma Terra”, diz a Carta em seu Artigo 13; por
isso mesmo, a transdisciplinaridade é transcultural, não privilegia o foco
numa cultura ou em outra, mas sim, naquilo que está entre as culturas e que
pode uni-las. Toda forma de hegemonia não é compatível com a visão
transdisciplinar. Da fala das duas graduandas que quiseram dar seus
depoimentos no contexto da experiência que se está analisando,
depreendia-se a alegria da aceitação, a liberdade de expressão e,
sobretudo, o sentido de pertencer a um ambiente. Esse é o espírito
transdisciplinar que se almeja para a sala de aula.

Todos os fatores discutidos aqui, até o momento, tiveram alguma


parcela de responsabilidade na magia e encantamento experimentados
durante aquela tarde, no entanto, o grande orquestrador, a meu ver, só pode
ter sido o espírito artístico; este vive em cada um de nós, algumas vezes
sufocado, impedido, às vezes espezinhado, porém, quando se manifesta,
liberta e promove a catarse humana. A arte esteve presente naquela tarde,
no fantástico processo criativo de Picasso, na articulação criativa entre
151

áudio e imagem, no diálogo criativo que se estabeleceu entre as diferentes


disciplinas representadas à mesa, na participação criativa do público,
naquela sensação de improviso e indeterminação que terminou por libertar a
todos. A arte, tantas vezes negligenciada, finalmente encontrou seu lugar:

A visão transdisciplinar é completamente aberta, pois, ela


ultrapassa o domínio das ciências exatas pelo seu diálogo e sua
reconciliação, não somente com as ciências humanas, mas
também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência
interior.66

Encerrados os debates, no dia seguinte – e eu diria, ainda hoje –,


restaram os influxos da maravilhosa experiência com o vídeo de Picasso.
Experimentou-se uma sensação de religação e de aceitação que gerou
alegria, prazer e muita vontade de continuar por essa via. Havia algo mais
no ar, algo mais que a simples noção de missão cumprida, mais forte do que
simplesmente ter conseguido falar algo de significativo; havíamos criado,
juntos, um campo energético, um campo vibracional.

A natureza humana talvez nunca venha a ser completamente


conhecida; sabemos – porque sentimos – que somos mais do que a visão
reducionista concorda em nos conceder:

Em nosso aspecto mais elementar, não somos uma reação


química, mas sim, uma carga energética. Os seres humanos e
todos os seres vivos são uma configuração energética dentro
de um campo de energia conectado com todas as demais
coisas do mundo. Este campo de energia pulsante é o motor
central de nosso ser e de nossa consciência, o alfa e o ômega
de nossa existência. (MCTAGGART, 2006, p. 18)

66
Carta da Transdisciplinaridade – Artigo 5.
152

O tempo passou rápido naquela tarde, pois o tempo não é uma linha
que corre do passado para o futuro, mas sim, uma forma de sentir, uma
forma de perceber, uma dimensão.

5.2 A trindade transdisciplinar: complexidade, níveis


níveis de realidade e o
terceiro incluÍdo

Uma matéria mais fina penetra uma matéria mais grosseira. As


duas coexistem, cooperam numa unidade que vai da partícula
quântica ao cosmo.
Nicolescu Basarab

O pensamento transdisciplinar é precisamente uma primeira


abertura, uma ação concreta sobre a nossa realidade, para nela
inserir a visão de um real global e não mais causal, revelado
pela nova física quântica, um real ’holistico’ no qual todos os
aspectos da realidade podem ser considerados e respeitados,
sejam eles científicos, materiais, afetivos ou espirituais.
Michel Random

Entrei na temática da Transdisciplinaridade pelas portas do sentir e


do agir. Possivelmente, através do comentário construído na abertura desse
Capítulo, seja possível deduzir o significado da Transdisciplinaridade; no
entanto, o que responder a meu aluno – incipiente e insipiente – quando
coloca a questão: mas afinal, o que é Transdisciplinaridade?

Tenho que responder concretamente e de forma compreensível;


respondo então que a Transdisciplinaridade é uma tentativa ainda mais
profunda do que as anteriores de unir as disciplinas, englobando não apenas
o diálogo entre elas, mas também todas as transformações que o ser
153

humano tem que abrigar em seu interior para viver verdadeiramente este
espírito integrador.

A palavra surgiu em 1970, com Piaget, no I Seminário Internacional


sobre pluri e interdisciplinaridade, realizado na Universidade de Nice. O
prefixo “trans” exprime a idéia de ir além e através das disciplinas, o que
significa penetrar nas entrelinhas e nos significados ocultos; “‘trans’
exprime a abertura, a ultrapassagem (...) dá-se o mesmo em ‘transgredir’: ir
além das proibições para ‘transformar’ o real” (RANDOM, 2000, p. 26).
Dessa maneira, a transdisciplinaridade procura transgredir os limites entre
as disciplinas, assim como os limites interiores que nos impomos ao assumir
uma visão transformadora de mundo.

A transdisciplinaridade se ergue sobre três pilares: a complexidade


do mundo, da natureza, do humano e de tudo o que existe; a lógica do
terceiro incluído, apresentado mais adiante, implica na abertura mental para
conciliar opostos, integrando-os numa nova forma de percepção; e, os
níveis de realidade, que pressupõem a existência de uma realidade
multidimensional e a transformação de nossos níveis de percepção. Nesse
sentido, a transdisciplinaridade é mais um dos desenvolvimentos
existenciais, gerado a partir das descobertas quânticas: dois mundos
diferentes coexistindo no mesmo tempo e lugar, o mundo macro de nossa
realidade concreta e o mundo micro em eterno movimento na forma de
energia e matéria que nos constitui; esses dois níveis de realidade nos
dizem respeito diretamente.

E por que não outros mundos, outras dimensões? Possivelmente,


existam outros mundos que transitam entre o macro e o micro, entre o
visível e o invisível, mundos que a transdisciplinaridade interpreta e assume
154

como diferentes níveis de realidade, e assim, realidade macro, realidade


quântica, realidade virtual, e ainda, realidades interiores plasmadas nos
diferentes sentidos que os indivíduos atribuem à vida, nos diferentes
conjuntos de valores que alimentam as culturas, ou seja, nos diferentes
níveis de percepção que se constrói sobre a realidade.

Muito se tem dito sobre a ‘realidade’. Para Basarab (2005, p. 30),


Realidade é “aquilo que resiste às nossas experiências, representações,
descrições, imagens ou formalizações matemáticas”67, ou seja, a realidade é
o território e não o mapa, e tem muito de indescritível.

A física quântica revelou uma realidade misteriosa, interconectada, na


qual os eventos e indivíduos surgem interligados. Tal constatação se iniciou
na percepção de que as partículas subatômicas que, em algum momento
tenham interagido, permanecem conectadas, ainda que separadas por longas
distâncias; elas permanecem ligadas por uma espécie de força invisível que,
nos primeiros tempos, Einstein ironizou chamando de 'ação fantasma à
distância'; essa é uma propriedade das partículas e, em conseqüência, de
toda a matéria, e a isso se denominou princípio da não-separabilidade68.

Se existe uma conexão não-local entre as partículas, com certeza


nossos corpos estão sujeitos a ela; isso quer dizer que existe também uma
conexão entre as pessoas, uma ligação ainda por explicar, e que tem sido
alvo de estudos, mas também de especulações. Tudo isso tem implicações
mais sérias, pois o cérebro também é parte do corpo; fenômenos de
consciência podem também estar sujeitos às regras da não-separabilidade,

67
É a esse conceito que Basarab se refere quando utiliza Realidade com letra maiúscula.
68
Sobre esse tema é interessante conhecer os experimentos de Alain Aspect que comprovaram a
não-separabilidade na Física, e também as Teorias das variáveis ocultas, uma delas é a de David
Bohm, que procura encontrar outros princípios, ainda não conhecidos, que possam explicar o efeito
da não-localidade.
155

e isso poderia explicar muitos fenômenos de comunicação transpessoal.


Essas idéias estão animando a vida da ciência na atualidade e gerando
diversas teorias explicativas.

Esse tipo de conexão é não-local, ou seja, não está sujeita às leis da


causalidade linear (a toda causa corresponde um efeito); aparentemente,
não existe uma causa que possa explicar o efeito que duas partículas
continuam exercendo uma sobre a outra, mesmo depois de separadas, assim
como ainda busca-se uma explicação causal para fenômenos como a
telepatia, a intuição, a premonição, a ligação forte existente entre irmãos
gêmeos, entre vários outros.

Tudo isso quer dizer que a realidade é muito maior e mais complexa
do que nossos mapas, e que há ainda muito por compreender. Culturas
milenares, tanto quanto culturas primitivas que ainda existem entre nós,
incorporaram a conexão cósmica em suas religiões, crenças e rituais de
religação entre o homem e a natureza; seria o ‘fazer parte’ de algo global e,
de uma forma de comunicação especial e mágica, denominada “visão”; nossa
cultura, racionalista, avessa às coisas do espírito, abriu uma pequena brecha
para tudo isso através da parapsicologia que, sempre lutando para alcançar
credibilidade, dedicou-se a tentar explicar o inexplicável.

A partir da revolução paradigmática da ciência, tais fenômenos


começaram a demonstrar cada vez mais evidências concretas, mas os
cientistas resistiam, como relata Random, a propósito das discussões sobre
o princípio da não-separabilidade que tiveram lugar durante o Colóquio de
Veneza em 1986:

(...) a maioria dos cientistas (...) limitava-se a constatar os


fatos sem extrair deles outras conseqüências filosóficas. No
156

entanto, se a filosofia não podia, a partir disso, levar uma nova


visão do mundo, para que serviria a ciência? Para descobrir um
novo real envolto em proibições? Eu percebia entre esses
cientistas o medo de formular uma hipótese, por menor que
fosse, capaz de levar à mínima abertura do imaginário.
(RANDOM, 2000, p. 11)

Teorias científicas atuais explicam de forma cabal como estamos


todos inseridos num campo energético que nos conecta com tudo o que
existe; esse campo vem sendo chamado, por Erwin Laszlo, campo akásico,
palavra derivada de akasha, do sânscrito, e que significa, na filosofia hindu,
radiação ou resplendor (LASZLO, 2004, p. xi); Teresa Versyp, o chama de
campo de ponto zero ou vazio quântico, uma espécie de mar de energia e
informação resultante do jogo das flutuações quânticas, da criação e
destruição constante de partículas e anti-partículas que preenchem esse
vazio com “uma fonte de energia sem limite e sem contaminação, a energia
do ponto zero, chamada ZPE (zero point energy)” (VERSYP, 2006, p. 1).
Neste ponto, a ciência abre um portal de comunicação com as tradições
milenares; a radiação e o movimento vibratório incessante das partículas de
luz (quanta), materializam a dança eterna de Shiva, da tradição do
hinduísmo.

Essas teorias nos incitam a resgatar o antigo adágio ”há mais coisas
entre o céu e a terra do que possa supor nossa vã filosofia”. Daí a
pertinência dos níveis de realidade propostos pela transdisciplinaridade e a
necessidade de se fazer evoluir nossos níveis de percepção.

Basarab define os níveis de realidade da seguinte forma (2005, p. 31):

(...) um conjunto de sistemas invariantes sob a ação de um


número de leis gerais: por exemplo, as entidades quânticas
submetidas às leis quânticas, as quais estão radicalmente
157

separadas das leis do mundo macrofísico. Isto quer dizer que


dois níveis de realidade são diferentes se, passando de um ao
outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos
fundamentais (...).

Dois níveis de realidade, portanto, submetidos a diferentes conjuntos


de leis, tornam-se incomunicáveis, separados na visão tradicional por uma
lógica clássica. Esta lógica baseia-se em três axiomas: O axioma da
identidade: A é A; o axioma da não-contradição: A não é não-A e o axioma
do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (de “terceiro incluído”)
que é ao mesmo tempo A e não-A (BASARAB, 2005, p. 35).

Ao tomar como exemplo a performance instrumental, ao longo de


vários séculos, prejudicada e reduzida por uma visão tecnicista, teria-se o
seguinte:

Técnica Sensibilidade

(A) (não-A)

Nesta concepção, os dois termos tornam-se opostos excludentes,


pois a lógica tradicional binária não permite sua existência simultânea. Essa
coexistência caracterizaria o terceiro termo incluído, inviável e, portanto,
excluído. Em música, durante muito tempo predominou essa visão – e em
muitos setores predomina ainda hoje –; uma visão tecnicista e mecânica,
tornando a performance instrumental intelectualizada, e tecnicamente
impecável; com o passar do tempo, e com a exigência de níveis de
excelência, se requer algo mais que técnica, se requer o espírito artístico, é
onde se sente a necessidade de “aulas de interpretação”. O objetivo dessas
158

aulas é reintegrar sensibilidade e técnica, razão e emoção, algo que nunca


deveria ter sido separado, desde os níveis elementares.

Os opostos inconciliáveis, podem conciliar-se através de um terceiro


estado T, de Terceiro Incluído. No exemplo acima, esse terceiro termo
apareceria como a resultante altamente desejável: arte da performance, em
elevado grau.

Arte da performance

Técnica Sensibilidade

(A) (não-A)

Na Transdisciplinaridade, os diferentes níveis de realidade se


organizam verticalmente e se comunicam, a partir da noção integradora de
Terceiro Incluído. Este é resultante de uma lógica ternária, na qual pode
existir A, não-A e sua união; a comunicabilidade entre os dois ocorre
justamente num nível acima de realidade, com a abertura do olhar e a
verticalidade, transdisciplinares.

Tomando agora como exemplo, o Sentipensar, vê-se que este resulta


da integração entre sentir e pensar, que podem unir-se num nível acima de
realidade; Sentipensar torna-se, então, o Terceiro Incluído:

nível de percepção 2 Sentipensar nível de realidade 2

nível de percepção 1 Sentir Pensar nível de realidade 1

(A) (não-A)
159

A lógica do Terceiro Incluído nos permite viver no mundo de


contradições, descortinado pela revolução científica do séc. XX; permite
encontrar explicação para paradoxos aparentemente inexplicáveis, e unir
pares de contraditórios excludentes, a exemplo destes, ressaltados por
Basarab (2005, p. 33): “onda e corpúsculo, continuidade e descontinuidade,
separabilidade e não-separabilidade, causalidade local e causalidade global,
simetria e quebra de simetria, reversibilidade e irreversibilidade do tempo,
etc...”

A cada vez que se está diante de um conceito integrado pela lógica do


Terceiro Incluído, novos opostos se anunciam. Estes encontrarão sua
síntese num próximo nível de realidade; esta estrutura caracteriza uma
abertura, uma realidade sempre no processo de vir a ser, dependente
também da evolução de nossos níveis de percepção da realidade.
Possivelmente, o vir a ser, o inacabamento, sejam características
constitutivas de tudo o que existe: o universo é aberto e está em constante
expansão, não se conhece seu início nem seu final; o ser humano é
inacabado, “onde há vida, há inacabamento”, diria Paulo Freire (1998, p.
55); o processo de conhecer é aberto, implica em transformação e mudança
interior e exterior; a realidade é inacabada e, se encontrar unidade, será
uma unidade aberta, como bem esclarece Basarab neste trecho (2005, p.
58):

A lógica do Terceiro Incluído pode descrever a coerência entre


os níveis de realidade pelo processo interativo,
compreendendo as seguintes etapas: 1. um par de
contraditórios (A, não-A) situado num certo nível de realidade
é unificado por um estado T situado num nível de realidade
imediatamente vizinho; 2. por sua vez, este estado T está
ligado a um par de contraditórios (A’, não-A’), situado em seu
160

próprio nível; 3. o par de contraditórios (A’, não-A’) está, por


sua vez, unido por um estado T’ situado num nível diferente de
Realidade, imediatamente vizinho daquele onde se encontra o
ternário (A’, não A’, T). O processo interativo continua
infinitamente até o esgotamento de todos os níveis de
Realidade conhecidos ou concebíveis.

Assim, ampliando esse exemplo sobre o Sentipensar, é possível


chegar à compreensão dessa unidade:

(A) (Terceiro incluído) (não-A)

nível de percepção 4 nível de realidade 4

nível de percepção 3 Ser integral nível de realidade 3

nível de percepção 2 Corpo Sentipensar Mente nível de realidade 2

nível de percepção 1 Sentir Sentimento Pensar nível de realidade 1

Regulação Percepção da
biológica regulação biológica

A lógica aberta do Terceiro Incluído implica, então, numa unidade


aberta, que integra os diferentes níveis de Realidade, com implicações
importantes para o conhecimento: não existe coisa estática, não há
conhecimento completo nem teoria completa capaz de dar explicação, em si
mesma, para qualquer fenômeno observado. A evolução da ciência é um
exemplo claro dessa unidade aberta, na qual as teorias se opõem, se
complementam, por vezes se anulam, construindo os mapas do mundo
aceitos como válidos.
161

O pensamento trans pode ser considerado como um antídoto para o


pensamento dual e disjuntor, pois essa unidade aberta se prolonga para o
que Basarab chamou uma zona de não-resistência, uma região (da psique?
da consciência coletiva?) até então descartada pelo pensamento ocidental e
por sua forma clássica de fazer ciência. Trata-se de um lugar de entrega
que incorpora o inexplicável, o aparentemente contraditório, uma região
onde fluímos e somos admitidos como seres plenamente subjetivos: “ao
fluxo de informação que atravessa de maneira coerente os diferentes níveis
de Realidade corresponde um fluxo de consciência atravessando de maneira
coerente os diferentes níveis de percepção” (BASARAB, 2005, p. 64).

O pensamento transdisciplinar não poderia estar ausente de um


trabalho que discute o Sentipensar e a Escuta Musical como uma de suas
estratégias, pois a arte freqüentemente nos leva para regiões de não-
resistência, regiões de não-racionalidade, impossíveis de descrever com
palavras. Este é o momento para a frase lapidar de Basarab (2005, p. 62):
“A zona de não-resistência corresponde ao sagrado, isto é, àquilo que não
se submete a nenhuma racionalização”.
162

5.3 A Escuta Musical como estratégia transdisciplinar

Toda e qualquer tentativa de reduzir o ser humano a


uma definição e de dissolvê-lo no meio de estruturas
formais, sejam quais forem, é incompatível com a visão
transdisciplinar.
Carta da Transdisciplinaridade – Art. 1

O que é isso que nos acomete depois de um relaxamento? Para que


regiões insondáveis nos leva a Escuta Musical? Como colocar tudo isso nos
escaninhos de uma razão mecânica?

A Escuta Musical alimenta o saber interior. Ao desenvolver um


conjunto de atitudes a ela inerentes – relaxamento, concentração, atenção,
entrega, fruição de emoções – produz uma vivência interior muito rica, reúne
as dimensões humanas separadas, integra corpo e mente, numa coordenação
perfeita para o Sentipensar. Seus efeitos beneficiam o ser humano de muitas
formas, da emoção à espiritualidade, como visto no Capítulo anterior. Não
por acaso, inúmeras pessoas a tem descrito como uma possibilidade de
autodescoberta, de renovação do contato com o ser interior, de
transcendência. Trata-se de um portal aberto para o autoconhecimento.

A Escuta Musical une as pessoas de forma sensível, leva à


compreensão da via de comunicação entre os extremos de uma dualidade, à
aceitação dos valores e formas de sentir do outro. Na forma como foi
conduzida nesta pesquisa, algo se evidenciou: o fato de se realizar a escuta
no grupo, e de experienciar tais vivências interiores no coletivo, estabelecia
uma conexão energética, uma forma de comunicação sensível, que unia o
grupo de forma cada vez mais íntima. Alguns sujeitos relataram o bem-estar
advindo de ser ouvido, ser aceito por um grupo, e de fazer parte de uma
163

sintonia fina. Todo esse discurso estaria nos levando a hipertrofiar as


propriedades da escuta? Estou certa que não, pois, é no interior do seu
humano onde se iniciam todas as possibilidades.

A Escuta Musical nos leva para regiões insondáveis, às bordas do


universo interior. No Capítulo 6, que descreve a pesquisa de campo, a
“volta” da Escuta Musical, por mim denominada “despertar”, torna evidente
essa passagem por regiões insondáveis; é possível perceber essa passagem
nas expressões dos alunos e na morosidade com que o “ritmo normal” é
retomado.

Por tudo isso, e por muito mais que isso, por tudo o que não sei se
perceberei um dia, a Escuta Musical é naturalmente transdisciplinar, tanto
quanto a experiência humana: rica, complexa e indescritível. A Escuta
Musical abre um canal direto para essas regiões desconhecidas onde reina
a magia, a beleza e o contágio emocional.

Qual o caminho para a experiência humana direta? Varela o encontrou


na meditação da atenção-consciência (VARELA et al., 2003, p. 34); eu o
encontro no Sentipensar, em especial, através da Escuta Musical, mas não
só, pois esse caminho estará sempre aberto a cada vez que se incorpore,
em sala de aula, o espaço do ser humano sensível.
164

6. A Pesquisa
Pesquisa de Campo

A Arvore sonhadora (sem janela)


Tatiana Clauzet
165

Cenário transdisciplinar

Estávamos na Faculdade de Música Carlos Gomes, numa manhã de 3ª


feira, era a última aula de um curso memorável de Didática do Ensino
Musical. Ao longo de dois semestres, o grupo havia se constituído de
forma afetiva, orgânica, e as emoções estavam então à flor da pele.
Tínhamos que avaliar o curso nesse dia.

Eu queria muito saber como os alunos tinham vivido a experiência de


escuta musical e relaxamento, antes de cada aula desse curso, mas
não desejava perguntar diretamente, necessitava apreender deles, de
alguma maneira se a experiência havia sido significativa ou não, por
isso mesmo, a aula estava sendo gravada. Pensei em fazer uma
avaliação diferente, algo que fosse marcante, que abrisse espaço para
o não verbal e o artístico, tantas vezes relegados, mesmo numa
escola de música. Decidi partir de uma pergunta metafórica “Caso o
curso que estamos terminando fosse uma música, que música seria?”

Houve alguma estranheza e hesitação no início, mas logo os alunos


começaram a se expressar a respeito, de formas cada vez mais
profundas, poéticas e naturalmente metafóricas. As falas seriam
realmente marcantes e as emergências do processo abundantes:

“(...)seria uma surpresa a cada compasso...ela poderia ser


paradoxal, não linear”

“(...) é uma partitura livre, porém um pouco calculada,


referenciada, interessante, acho que é isso, acho que foi uma
música perfeita.”

“eu penso numa forma, eu penso na Suíte,(...) eu não achei que


foi caótico, foram pequenos lances encadeados, todos no
mesmo tom, alguns movimentos mais acelerados, outros mais
lentos, mas eu acho que a tônica do semestre se manteve,
assim, teve uma coloração meio única do grupo, que eu acho
que é bacana, dá um caráter de unidade.

“São várias músicas, e eu colocaria um paralelo (...) com banda


de baile, porque você é obrigado a tocar tudo, interpretar da
sua forma, são vários tipos de ritmo, vários tipos de música,
mas um fundamento só: terminar satisfatoriamente, terminar
com sucesso”.
166

“Vou dar uma de metido, posso tocar uma música?”

O aluno se sentou ao Piano e começou a tocar “Começar de novo” de


Ivan Lins (V. anexo 5), foi um momento de intensa emoção para o
grupo, todos choraram e ao final, começaram a cantar juntos as
últimas frases da música. Essa foi a primeira emergência do processo
avaliatório, algo inesperado que se tornou essencial.

Ao final dos depoimentos, também escolhi a minha música: uma


colagem, uma riqueza enorme de informações, de cruzamentos, de
individualidades, identidades se misturando, épocas diferentes se
juntando, a diversidade e a possibilidade de tudo isso estar junto.
Para mim seria essa colagem inspirada por tudo que há de mais
humano. Como é possível educar sem tocar na dimensão humana?
Isso é o que me preocupa na formação de professores: como é
possível pretender mudar a cabeça alheia sem mudar a própria
cabeça?

Eu não tinha certeza de que a partir desses depoimentos eu iria


conseguir a síntese que estava pretendendo, apesar de sua riqueza,
talvez seria ainda necessário utilizar mais algum instrumento que
pudesse sintetizar melhor os dados?

O que era certo é que aquele tempo excepcional de convivência


estava chegando ao fim.. Movida pela idéia de meu aluno que se
sentara ao piano e tocara, um pensamento me ocorreu forte e
repentinamente: “E se fizéssemos aqui e agora, todos juntos, uma
música que simbolizasse o curso?” A idéia cresceu rápido, e saiu: “E
se fizéssemos essa música? Vamos abrir o armário de instrumentos?”,
disse aos alunos. Essa foi a segunda emergência do processo, pois,
até então, eu não havia pensado nesse tipo de avaliação. Seguiu-se
um murmúrio geral, cada um escolhendo seu instrumento. O Piano foi
escolhido, mas também vozes, instrumentos de plaquetas -xilofones e
metalofones- e diversas percussões.

De início, estava difícil “entrar na música” pois todos queriam discutir


como ela deveria ser, qual seria seu início, de onde partiria, qual
seria sua forma, entre muitas outras questões; outros insistiam para
tocar, “a gente tem que sentir o som, prá gente sentir o som, a gente
tem que fazer silêncio...” disse um aluno; eu coloquei que toda música
partia de uma idéia, Schafer69 havia partido de uma paisagem em
Snowforms, outros compositores partiam de textos ou de fórmulas

69
Murray Schafer, importante educador musical e compositor canadense da atualidade.
167

matemáticas, um aluno então respondeu que já tínhamos a idéia: “a


gente já tem já, é a aula, e agora vai rolar, som-diversão...”

Decidi então colocar uma diretriz: “é o seguinte, vamos tirar o verbal


da jogada, ninguém mais fala, abram as percepções para ver e ouvir o
que acontecerá com o som, e antes de começar, façam silêncio, de
olhos fechados, alguém quebrará esse silêncio tocando alguma coisa,
a partir daí, a música se construirá, mas esperem, não tenham medo
de curtir um pouco esse silêncio, fechem os olhos...”

Seguiu-se menos de um minuto de silêncio, a música começou


rarefeita e pontilhista, predominando percussões; aos poucos, outros
instrumentos e vozes foram se agregando. A música aconteceu
durante aproximadamente vinte minutos com momentos de agregação
e desagregação sonora, ilustrando pontos de bifurcação, conduzindo a
resultados inesperados; momentos poéticos, momentos sensuais,
momentos diáfanos, sutileza e violência. Ao final, alguém gritou
“quebra tudo” e outros entraram no mesmo refrão, a música cresceu,
tornou-se criativamente selvagem e caótica, terminando com um
sentimento de grande euforia gerado no grupo. (Ouça anexo 1)

Comentário sobre a experiência

A experiência de improvisação musical descrita acima passaria a ter a


pregnância de uma forma gestáltica que se impõe à percepção; não estava
inicialmente prevista, emergiu quase que por acaso e tornou-se figura,
sobre um fundo pleno e borbulhante de atividade; chamou para si a síntese
do que poderia ser toda essa pesquisa: houve ação e reflexão, razão e
sensibilidade: Sentipensamento.

Na não-verbalidade dos sons manifestou-se a riqueza da vida


interior, a experiência do fluxo energético conectou as pessoas, de maneira
a fazer-se sentir fisicamente; fazia calor ao final e era difícil sair, difícil
abandonar aquele magnetismo; a ligação persiste até hoje, quase um ano e
meio depois de terminada a disciplina; ao encontrar um daqueles alunos,
168

existe algo mais, uma espécie de cumplicidade. Estaremos ligados para


sempre pelas lembranças, pela energia do campo.

Fizemos arte – e isso não deveria ser surpreendente numa escola de


arte – fazer arte, porém, transcende o que normalmente as escolas

conseguem ensinar, fazer arte é uma religião, no sentido do religare70 ―

aquilo que nos reúne por dentro e nos reúne ao mundo.

As subjetividades estavam lá, se reconstruindo na intersubjetividade;


a emoção estava lá, o irracional, o sentir, a arte. Era o caos71, um caos de
onde se deseja, por instantes, nunca sair.

6.1 Uma experiência de Sentipensar em sala de aula

Ao introduzir este escrito, no primeiro Capítulo, pude descrever a


trajetória que, ao longo de dezoito anos de formação de professores, me
conduziu da valorização da música como fenômeno sensorial, vibratório,
sensível, e de práticas essencialmente sensibilizatórias, à tomada de
consciência do poder estratégico da música no incremento do pensar e das
habilidades reflexivas. Descobri, pela vivência intuitiva e pela observação
de meus alunos-professores, que havia interesse real em focalizar a
formação de um ponto de vista sistêmico, complexo, reintegrando atividades
de natureza sensível e prática, àquelas de natureza teórica e reflexiva, tanto
quanto reintegrando o ser humano em suas diversas dimensões.

70
Religare vem do latim "re-ligare", que significa "ligar com", “ligar novamente”, restabelecer a
ligação perdida com o mundo que nos cerca ou com o nosso interior. www.religare.org.br.
71
O estado primordial, primitivo do mundo é o Caos. Era, segundo os poetas, uma matéria que existia
desde tempos imemoriais, sob uma forma vaga, indefinível, indescritível, na qual se confundiam os
princípios de todos os seres particulares. Caos era ao mesmo tempo uma divindade, por assim dizer
rudimentar; capaz, porém, de fecundar. www.mundodosfilosofos.com.br/caos.htm.
169

A partir da experiência geradora vivida em Málaga, com os


professores espanhóis, também relatada no primeiro Capítulo, pude
perceber a urgência em resgatar o reencantamento, não-somente para a
educação musical infantil ou para a formação de professores de música, mas
para a Educação, de uma maneira geral. O reencantamento é necessário e
urgente, desde o trato com bebês até a formação dos futuros profissionais.
As fórmulas de encantamento deveriam ser onipresentes, em todos os
níveis educacionais, do berçário à maturidade, pois trazem consigo o prazer
do bem-estar e toda a magia das coisas belas.

Decidi observar o Sentipensar em ação numa disciplina teórica que


ministrava na Faculdade de Música Carlos Gomes. Tradicionalmente, as
disciplinas teóricas tendem a se concentrar em pressupostos teóricos e
formas de ação, muito distanciados da prática efetiva, dependendo de como
a disciplina é conduzida; torna-se um espaço conservador de discussão, no
qual os alunos, via de regra, não conseguem experienciar outras estratégias
de aprendizagem; podem aborrecer-se ou cair numa enfadonha rotina de
leituras. Além disso, o ambiente acadêmico – e isso me parece muito mais
grave – parece ignorar que seus acolhidos são também seres humanos; toda
e qualquer forma de encontro do ser humano consigo mesmo é alijada do
processo; refiro-me a práticas que levem para a sala de aula a possibilidade
de relaxar, de utilizar outras linguagens expressivas e até mesmo a
meditação, como meio de preparação de um dia de trabalho. Uma disciplina
em ambiente acadêmico me pareceu ser o ambiente ideal para uma pesquisa
sobre o Sentipensar.
170

6.2 A Disciplina Didática do Ensino Musical

Ao longo do segundo semestre de 2005 e primeiro semestre de 2006,


a experiência foi colocada em prática na Faculdade de Música Carlos
Gomes, dando início à fase de pesquisa de campo em meu trabalho.
Tratava-se da disciplina de Didática do Ensino Musical, integrante da grade
curricular do curso de Licenciatura Plena em Música. Todos os alunos
matriculados exerciam, já, algum tipo de atividade profissional no campo da
música, como músicos, regentes ou professores de música.

Em geral, os alunos matriculados em cursos de música sofrem de uma


grande alienação quanto ao alcance de seus estudos72 e mesmo com relação
ao alcance de suas ações educativas e formativas; além do mais, a formação
no Ensino Médio não vislumbra de forma satisfatória questões relativas ao
possível trabalho futuro como professores. O resultado disso é que, com
freqüência, recebemos no curso de Licenciatura alunos com pouco contato
com as idéias do discurso educacional e com os pensadores da Educação,
configurando uma situação difícil. Por essa razão, pareceu-me
imprescindível trabalhar, no primeiro semestre, alguns conceitos da
Filosofia da Educação; a questão dos valores que permeiam a prática
educacional e a reflexão sobre a própria prática, tendo como foco uma
situação específica, vivida como aluno ou como professor; e, no segundo
semestre, partir para a análise comparativa de algumas metodologias de
ensino musical, surgidas no séc. XX, vivenciando diversos de seus

72
Além do processo acelerado de superficialidade intelectual que parece acometer aos jovens, em
nossa época, no caso específico da música, a legislação contribuiu para impulsionar tal processo de
alienação, desarticulando o Ensino Médio de música (atual curso técnico) ministrado em
Conservatórios. Esse curso, antigamente exigido de forma tácita, para a entrada no curso superior de
música, deixou de sê-lo, com apoio legal, tornou-se equiparável ao antigo curso colegial, nos anos
80; muitos alunos, desobrigados de passar pelos conservatórios, numa rápida análise, decidiram-se a
aprender música na própria faculdade. Não é necessário dizer que o nível das faculdades de música
está em queda livre.
171

procedimentos em aulas práticas. A estruturação curricular dos semestres


resultou aproximadamente no que segue:

I Semestre

− Princípios de filosofia da educação;


− Conceitos de filosofia e didática;
− O processo do filosofar: Inventário, crítica e reconstrução de valores;
− Instrumentos metodológicos: observação, registro, reflexão,
planejamento, avaliação;
− O senso comum na educação e a dificuldade de mudança;
− Concepções de educação: redenção, reprodução, transformação;
− Paulo Freire, a dialogicidade; a negação da pedagogia bancária;
− Introdução à visão eco-sistêmica do aluno e dos processos de
aprendizagem: emoção, razão, intuição, cognição, corporeidade;
− Pedagogia de projetos – uma possibilidade de lidar com a
fragmentação do tempo escolar;
− Reflexão sobre a própria prática a partir de uma experiência
específica;
− TCC gestado ao longo do semestre: “Quais os valores que orientam
minha prática pedagógica?”

II Semestre

− Metodologias do ensino musical: tradicionais, contemporâneas,


brasileiras;
− Visão geral das metodologias e de seus princípios metodológicos;
− Estudos comparativos de procedimentos didáticos em algumas
metodologias, musicais do século XX: Murray Schafer, H.J.
Koellreutter, George Self e Carl Orff;
− Vivências práticas de alguns procedimentos didáticos dessas
metodologias;
− Reflexão final do curso: “Quais métodos e procedimentos didáticos
utilizo em minha prática? Por que?”

Ao longo dos dois semestres foram utilizadas as seguintes estratégias


didáticas:

− Depoimento dos alunos sobre as relações anteriores com a didática,


como aluno e como professor;
− Descrição oral e escrita de experiências didáticas escolhidas;
− Leituras, eventualmente, fichamentos e quadros sinópticos;
172

− Relato escrito detalhado da experiência didática escolhida para


reflexão;
− Inventário de valores da experiência, realizado coletivamente, a partir
da leitura, em sala de aula, da descrição da experiência;
− Questões para refletir e escrever, a exemplo de:
− “Quais seriam as características de um ensino de qualidade na
perspectiva da formação de seres humanos integrais?”
− “Como o senso comum se manifesta na minha prática?”
− “Como posso tornar minha prática mais democrática?”
− Construção da monografia ao longo de todo o semestre com a
participação crítica do grupo;
− Escolha de um foco de observação de interesse pessoal e profissional
para observação e análise de metodologias do ensino musical (na
Didática II);
− Constituição de um portfólio (na Didática II) incorporando impressões
pessoais, reportagens e tudo o mais que se relacionasse ao foco de
observação escolhido;
− Assistência e análise de filmes:
“Cosmos – I Episódio” – ilustrando a geração do conhecimento a
partir da observação e do pensar;
“Sociedade dos poetas mortos” – observando os efeitos danosos
de uma pedagogia tradicional acrítica em ação;
“Discovering paradigms” – definição de paradigmas, discussão
sobre pressupostos necessários para a mudança.

G Outras características da disciplina

Na Faculdade de Música Carlos Gomes, as turmas costumam ser


pequenas, no máximo doze alunos; o número reduzido de participantes
permite construir um ambiente intimista no qual é possível haver contato e
atenção individuais para cada aluno e entre os mesmos.

Essa situação abre a perspectiva de um trabalho real de grupo, no


qual todos os trabalhos podem ser compartilhados e, inclusive, construídos,
tendo a participação do grupo em todo o processo. Outra decorrência disso
é que os alunos podem ter maior participação na escolha de conteúdos
curriculares, e de fato, essa consulta é feita ao grupo; torna-se possível
173

atender a necessidades específicas dos alunos, não todas, naturalmente,


existindo, porém, uma abertura para isso.

Por todas essas razões e, sobretudo, pela qualidade das vivências e


do relacionamento humano que se estabelece, o vínculo afetivo torna-se
forte, facilitando o fluxo da aula e manifestações de criatividade.

6.3 Perfil dos participantes

O grupo de sujeitos dessa pesquisa é bem especial, em relação à


média dos grupos de alunos da faculdade; dentre os seis sujeitos escolhidos,
quatro têm mais de trinta anos, e estão interessados no processo de
reflexão sobre a própria prática. A escolha de um grupo de pessoas com
mais maturidade facilitou a condução da pesquisa, pois se requeria uma
capacidade de lidar com questões sensíveis e de autopercepção.

Matheus Barrichello Sigali

PROFISSÃO: Professor de Música


EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Trabalhos com bandas de baile, aulas
particulares
LOCAL DE TRABALHO: aulas particulares
IDADE: 24 anos
PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Ser músico-terapeuta e
ministrar palestras para executivos em diversos setores do mercado de
trabalho, mostrando como a música pode ser benéfica para o
desenvolvimento profissional e humano de cada integrante de uma
determinada empresa.
174

Liebe Silva Lima

PROFISSÃO: Funcionária do SESC-SP


EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Licenciada em Música pela Faculdade de
Música Carlos Gomes, exerceu atividades de oficineira no Museu de Arte e
Cultura Popular da Universidade Federal de Mato Grosso, foi proponente do
Projeto "Recicle e Faça Arte" financiado pela Secretária de Cultura do
Estado de Mato Grosso e realizado na rede de escola pública e Casa
Cuiabana em Cuiabá, participou da elaboração de Cartilhas do Programa de
Formação de Professores Indígenas para o Magistério, junto à Secretaria de
Educação do Estado de Mato Grosso. Atualmente é funcionária efetiva do
SESC , desenvolve atividades administrativas no Centro de Música da
Unidade do SESC Vila Mariana em São Paulo.
LOCAL DE TRABALHO: SESC Vila Mariana
IDADE: 36
PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Usar o conhecimento
musical adquirido no curso de Licenciatura Plena em Música a serviço das
pessoas, tanto no âmbito da educação como também através de
performances musicais.

Jaques da Silva

PROFISSÃO: Músico
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Regente de coro, tecladista-pianista e
professor de música.
LOCAL DE TRABALHO: Colégio Nossa Senhora Aparecida (CONSA) em
Moema
IDADE: 38
PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Estou desenvolvendo um
projeto de ensino de música através de teclados eletrônicos em aulas
coletivas que permita um aprendizado sério do instrumento e não um faz-
de-conta que transformou esse tipo de instrumento mais num brinquedo
(sem desmerecer a importância do brincar...). A proposta associa técnicas
específicas de dedilhado usadas por organista a técnicas de piano aplicáveis
aos teclados sensitivos.
Minha paixão é transformar poemas em canções - se pudesse viveria disso.
175

José Gilberto Pires Estebez

PROFISSÃO: Músico
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Trabalho como instrumentista em vários
estabelecimentos com música ao vivo na cidade de São Paulo. Sou
correpetidor de algumas cantoras como Alaíde Costa, Claudette Soares,
Patrícia Marx entre outras. Atuo na área educacional como professor de
piano popular no CLAM (Centro Livre de Aprendizagem Musical dirigida
pelo Zimbo Trio) e ministro aulas particulares.
LOCAL DE TRABALHO: Escola de música CLAM
IDADE: 42
PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA:
Eu pretendo aplicar meus conhecimentos acadêmicos na minha vida
profissional. Gravei recentemente um CD com a cantora Claudette Soares
atuando como instrumentista, arranjador e orquestrador, este último
aplicando os conhecimentos fornecidos pela faculdade. Meus objetivos
seriam continuar meus estudos de composição, orquestração e tentar fazer
um mestrado e doutorado nos EUA no curso de música. Quem sabe possuir
uma própria big band de jazz.

Rodrigo Alexandre Sperandio

PROFISSÃO: Músico
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Atuação como músico em turnês nos anos de
2000 a 2006 nos EUA, fazendo bailes de carnaval e chorinho; em estúdios
de gravação particulares em São Paulo (capital e interior), Rio de Janeiro e
Minas Gerais; free lance como músico intérprete e contratado para várias
bandas e artistas amadores e profissionais. Atuação como professor na
Escola de música Solar das Artes em Rio Claro e aulas particulares em São
Paulo e Rio Claro.
IDADE: 32 anos
PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Continuar exercendo o que
faço atualmente.
176

Adriana Agostini Mello

PROFISSÃO: Professora
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL: Atuação como instrumentista e cantora em
grupo vocal, banda e orquestra. Professora de música.
LOCAL DE TRABALHO: Escola Waldorf Francisco de Assis
IDADE: 26 anos
PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA: Desenvolver minha
musicalidade e capacidade de reflexão acerca da música. Enquanto
professora, contribuir para este processo nos meus alunos de maneira
interessante e prazerosa.

6.4 Descrição da pesquisa

A parte de campo da pesquisa consistiu em utilizar a primeira parte de


cada aula de didática, para congregar o grupo, realizar um breve
relaxamento e uma Escuta Musical Sensível73, na finalidade de reintegrar as
dimensões sensoriais, afetivas e intelectuais, preparando o trabalho
reflexivo subseqüente da aula.

A utilização de uma estratégia de Escuta Musical no curso de Didática


do ensino musical, tão diretamente implicado na ação profissional futura dos
alunos, decorre de uma constatação: é necessário humanizar o processo de
ensinar/aprender. Humanizar tal processo significa, primeiramente,
compreender o processo educacional como uma relação entre seres
humanos, “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao
aprender”, diria o grande mestre Paulo Freire (1998, p. 25).
Ensinar/aprender não é apenas um ato de relacionamento humano, é uma

73
Entendo por escuta musical sensível um tipo de escuta intencional, na qual o indivíduo
tem por intenção entregar-se e ser tocado pela vibração sonora, vivendo a experiência
direta do sensível que desperta emoções e o imaginário.
177

troca que se reveste de intensa beleza, a beleza da descoberta e da


construção do conhecimento na partilha, “podemos tratar das idéias, dos
fatos, e dos problemas, com rigor, mas sempre num estilo leve, próximo ao
dos dançarinos, um estilo amistoso”, diria ainda o grande mestre (FREIRE,
1997, p. 13).

Então, para educar é necessário ser sensível e aberto, e despender


tempo na construção do ser humano sensível. As estratégias
transdisciplinares de Sentipensar levam para a sala de aula essa
possibilidade, pois antes de serem alunos, os participantes são reconhecidos
como seres humanos sensíveis que se relacionam. Não é possível ensinar,
nem aprender fora da beleza e da sensibilidade.

Por outro lado, a estratégia de Escuta Musical é uma possibilidade


privilegiada de unir discurso e ação, teoria e prática, os três pilares do
Sentipensar confirmam essa possibilidade: sentir, pensar, agir.

A realização dessa estratégia inicial de aula se deu ao longo de dois


semestres, perfazendo um total aproximado de 32 aulas, com a participação
do grupo de alunos de Didática que se manteve o mesmo, ao longo desse
período.

Eu seria um dos participantes do grupo utilizando-me de uma


estratégia básica de coleta de dados: a observação participante, e a tomada
sistemática de notas após as aulas. Durante a aula, eu não adotaria, em
tempo algum, a postura do pesquisador, mas sim, participaria do grupo com
organicidade.

Fazia parte do conteúdo do curso discutir o conceito de Sentipensar,


em especial no primeiro semestre, quando se estudasse a visão Eco-
178

sistêmica do aluno e dos processos educacionais. Os alunos estavam,


portanto, informados sobre o porquê de nossas praticas sensibilizatórias ao
inicio da aula; e, poucas aulas depois, vieram a saber que tais experiências
seriam objeto de estudo em minha pesquisa de doutorado, nos colocamos de
acordo sobre isso.

6.4.1 A estratégia inicial de Escuta Musical

A cada aula se utilizou para iniciar uma estratégia de Escuta Musical,


com duração aproximada de quinze a vinte minutos, constituída pelos
seguintes momentos:

1. Reunião do grupo ― de pé, em círculo, de mãos dadas, olhos fechados,


luzes apagadas;
2. Concentração ― por breves momentos, no ritmo respiratório, e na
postura corporal;
3. Alongamento e espreguiçamento ― intuitivo de cada participante, de
acordo com a percepção daquilo que o corpo necessita para entrar em
ação;
4. Relaxamento – estando sentados nas cadeiras, em círculo, postura
ereta, mas relaxada, de olhos fechados, tinha início um relaxamento
de aproximadamente 5 a 7 minutos, conduzido por mim, utilizando
uma das seguintes estratégias:
a. Relaxamento progressivo do corpo, no qual eu conduzia a ação
citando as partes a serem relaxadas;
b. Visualização de partes do corpo e órgãos internos,
sincronizando ao ritmo respiratório; a atividade poderia ser
conduzida por mim, ou, cada aluno poderia realizar mentalmente
seu próprio processo.
5. Escuta Musical Sensível – ainda sentados, durante alguns minutos,
três a sete aproximadamente, os alunos dedicavam-se à escuta
musical, com a intencionalidade de tornarem-se sensíveis e
receptivos à vibração sonora.
6. Despertar – início da programação curricular normal do dia. O nome
dessa etapa deve-se à observação do estado dos alunos após a
179

escuta, aparentando total relaxamento, como se houvessem estado


em algum outro lugar, possivelmente, nas profundezas do ser de cada
um.

G Sobre a escolha e utilização das músicas

Preferências musicais, individuais e subjetivas têm forte impacto


emocional, desencadeando efeitos fisiológicos diversos. Segundo Zatorre
(2005, p. 315), “fatores culturais e sociais têm claramente papéis
importantes na modulação de nossas respostas emocionais à música”74.
Freqüentemente, negamos o gosto musical que não corresponda ao nosso, o
exemplo típico é o que ocorre entre adolescentes e seus pais.

Num estudo realizado com adolescentes, citado por Esch (2005, p.


11), ao ouvir música de sua preferência, os sujeitos tinham o hemisfério
esquerdo ativado (região frontal e temporal); por outro lado, ao ouvir música
da qual não gostavam, ativam-se as mesmas áreas do hemisfério oposto. A
região frontal anterior esquerda e o giro cingulado (sistema límbico) são
ativados com a escuta de música prazerosa. Quando a música não causa
prazer ou traz desconforto, são regiões do hemisfério direito que se ativam,
em especial, a amígdala, responsável pelo processamento do medo e da
ansiedade.

O aspecto mais difícil nessa escolha foi, para mim, justamente o fato

de estar diante de um grupo de pessoas – os sujeitos ― e de saber que as

preferências musicais variam bastante de pessoa para pessoa, como


explicam Panksepp e Bernatzky (2002, p. 151): “as preferências são
altamente individualizadas e idiossincráticas, e a escolha de itens pode

74
Tradução da autora.
180

necessitar ser talhada da melhor forma para cada indivíduo”75. No caso, a


escolha foi minha, parti de minhas preferências que naturalmente já haviam
sido partilhadas com outras pessoas que, como eu, também se sentiam
tocadas por essas músicas. Tive que deduzir que as sensações dos sujeitos
não se afastariam tanto das minhas próprias; além do mais, eu era um
elemento participante do grupo. Essas deduções vieram a se confirmar na
prática, pois, muitas vezes, os alunos solicitaram cópia das músicas
utilizadas por considerarem-nas belas, tocantes e adequadas para a
finalidade. As músicas escolhidas (vide Anexo 2) obedeciam aos seguintes
critérios:

- Qualidade estética;
- Caráter encantatório ou plano – a maior parte das músicas utilizadas
tem esse caráter, decorrente das seguintes propriedades musicais:
andamento de moderado a lento, suavidade (em alguns casos,
substituída ou complementada pela diafaneidade), ausência de
contrastes, uniformidade do timbre, maior liberdade no uso do
parâmetro tempo; em todos os casos, a beleza das linhas melódicas,
ou uma qualidade temporal especial, torna-se crucial na avaliação
emocional da música;
- Duração entre três a sete minutos.

Durante os quatro primeiros momentos descritos acima (reunião,


concentração, alongamento e relaxamento), uma música de fundo estava
sempre soando. Em seguida, no quinto momento – Escuta Musical Sensível –
parte da mesma música ou outra música era escolhida para esse trabalho de

75
Tradução da autora
181

escuta intencional, focalizada no caráter sensorial da música e em como


esse caráter nos afeta.

6.4.
6.4.2
4.2 Instrumentos de coleta de dados utilizados

G Observação participante

Inseri-me no grupo de alunos de Didática, da Faculdade Carlos


Gomes, como professora e como participante ativa de todas as atividades.
Tal procedimento é habitual em aulas de música e iniciação musical infantil:
o professor participa ativamente da ação, em muitos momentos. Nas aulas
de Didática, e em especial no segundo semestre, havia uma parte
substancial de prática, pois para fazer a panorâmica das metodologias de
ensino musical havíamos escolhido as seguintes categorias de observação:
Contextualização histórica, Pressupostos e princípios filosóficos,
Procedimentos didáticos utilizados. Dessa forma, alternavam-se aulas
teóricas expositivas, algumas vezes com transparências, ou discussão em
cima de algum texto do referido pedagogo; nas aulas seguintes, vivenciava-
se um ou alguns dos procedimentos propostos pela metodologia. Esses
momentos foram muito ricos para a produção musical e sintonia do grupo.

Teria sido ideal gravar tudo isso, porém, a profusão de dados seria
inadministrável; por essa razão, optei por participar totalmente do processo,
numa forma de imersão, e realizar as observações e reflexões escritas, logo
em seguida, no mesmo dia. No entanto, a riqueza das vivências era tão
grande que o papel não poderia dar conta de tudo isso, de tal maneira que a

memória ― o que ficava de sensações e sentimentos dentro de mim, em

relação à experiência, eram ainda mais determinantes.


182

G Rodas de conversa

A cada atividade terminada, se abria a roda de conversa e cada um


podia expor o que havia sentido, como havia vivenciado a experiência,
trocar com os colegas vários tipos de informações e memórias sensoriais;
eram momentos muito ricos, com exposição das impressões e sentimentos
de cada um, e também das dúvidas e de algumas críticas; nesses momentos,
eu aproveitava para estabelecer as pontes com os pressupostos teóricos
estudados. Essas rodas de conversa contribuíram decisivamente para a
sintonia do grupo.

G Dinâmicas, atividades práticas e modelos de improvisação.

Muitas dessas atividades, criativas e expressivas, exigem algumas


vezes elevado grau de exposição por parte do aluno, seja para improvisar,
para colocar-se criativamente, tomar uma iniciativa, entre outras situações
de exposição. A vivência dessas dinâmicas foram momentos marcantes,
possibilitaram tomadas de consciência, transformações e me
proporcionaram uma forma de perceber a maneira pela qual o Sentipensar
estava se encaminhando com esse grupo; algumas delas serão comentadas
na análise dos dados.

Um rio nunca é o mesmo rio, e não é possível apertar a mesma mão


duas vezes; eu diria também que não foi possível reencontrar o mesmo
grupo a cada aula acontecida nesse Curso; o processo de transformação
interior vivenciado pelos alunos foi intenso, tanto quanto a revisão de idéias
e o direcionamento para uma renovação total de paradigma na forma de
lidar com a Educação. A espiral tornou-se mais complexa a cada volta,
caracterizando um processo aberto de pesquisa.
183

G Depoimento oral por parte dos sujeitos

A riqueza do processo vivenciado pelos sujeitos da pesquisa, ao longo


desses dois semestres de trabalho, foi tão grande que passei a ter um
problema: como eu ria lidar com os dados e que categorias de observação
seriam escolhidas? Esse foi o momento para mais uma emergência; decidi
utilizar algum outro instrumento de coleta de dados, não previsto
inicialmente, que possibilitasse agregar um pouco as percepções dos
sujeitos e as minhas também, e ainda, que facilitasse uma forma de obter
dados comparáveis. O momento de avaliação final do curso pareceu-me
ideal, teríamos uma conversa para avaliar o curso, baseada numa pergunta,
sobre a qual cada aluno deveria discorrer. Passei um tempo pensando que
pergunta seria essa, pois eu desejava, na verdade, mais do que avaliar o
curso: perceber se a estratégia inicial de Escuta Musical havia sido
significativa para eles e por quê. Reservei as duas últimas aulas do curso
para realizar esta estratégia, caso não se conseguisse em uma única aula.

Acabei optando por uma metáfora; através de uma pergunta simbólica


eu acreditava que poderia ter acesso à informação que eu queria; partimos
da questão já mencionada anteriormente: “Caso o curso que estamos
terminando fosse uma música, que música seria?” Como se verá na análise
das respostas, a estratégia de Escuta Musical foi evocada várias vezes, de
forma espontânea, sem que qualquer referência de minha parte tivesse sido
feita, o que torna essas percepções dos alunos ainda mais valiosas para
minhas finalidades (vide Anexo 3). Na gravação dessa conversa, há uma
primeira parte, na qual os alunos se expressam livremente, tentando
associar as práticas de sala de aula a alguma música, e elaborando
explicações sobre o porquê das escolhas. A síntese do que foi esse
184

encontro do grupo encontra-se na abertura deste Capítulo na parte


intitulada Cenário Transdisciplinar.

G Uma improvisação: a música do grupo

Durante essa avaliação, várias emergências tiveram lugar; a primeira,


como relatado anteriormente, quando um aluno, em vez de citar uma música
decidiu tocá-la; a segunda, quando eu mesma tive a idéia de fazer acontecer
a música do grupo; essa música, embora em linguagem de sons, plasma
todos os princípios educacionais que se veio estudando, e constitui-se no
mais belo registro de dados dessa pesquisa, muito embora em linguagem
não-referencial; além disso, essa improvisação consolida e torna memorável
a sintonia, a dialogicidade, a forma de comunicação fina que se estabeleceu
entre todos. A gravação desse belo momento encontra-se inclusa nessa
tese, no Anexo 1. Essa percepção não é apenas minha, como ilustra o
depoimento da aluna, um dos sujeitos da pesquisa:

Neste momento, vi a teoria inserida na prática, pois muito do


que estudamos em sala se refletiu nesta composição.
Conceitos, idéias dos pedagogos e o próprio conhecimento
construído pelo grupo. Os instrumentos convencionais e não-
convencionais foram bem explorados, além de terem sido
utilizados de forma criativa, personalizada, com liberdade.
Também diria que praticamos algo pré-figurativo, onde a
improvisação partiu de uma idéia e foi se constituindo de
forma aberta, livre. A música foi surgindo naquele momento
presente e a partir das idéias de cada elemento que iam sendo
lançadas e complementadas se formou uma grande teia, algo
único dentro da diversidade que cada colega trazia. Fizemos
uma improvisação coletiva realmente interessante.
185

G Questionário semi-estruturado

Agora eu tinha em mãos um material mais precioso ainda, e um pouco


mais focalizado, do que havia sido o conjunto de nossas práticas ao longo de
dois semestres. No entanto, nem todos os alunos haviam se expressado
sobre a questão da estratégia inicial de escuta de forma clara, mesmo
depois de eu ter feito uma pergunta direta sobre isso, durante aquele último
encontro; no momento em que coloquei a questão, o grupo já estava se
preparando para a festa de encerramento, alguns já estavam dispersivos ou
cansados, como era natural depois de viver experiência tão intensa; além do
mais, o número de alunos me pareceu um pouco elevado para realizar a
tabulação dos dados, por isso, depois de vários meses, no transcorrer da
pesquisa, optei por realizar um questionário semi-estruturado, perguntando
dessa vez exatamente o que eu queria saber. Seis alunos disponibilizaram-
se a responder e tornaram-se efetivamente os sujeitos da pesquisa. Esses
alunos foram os únicos presentes a todas as estratégias utilizadas. A seguir,
apresento o questionário proposto aos alunos:

Título provisório da pesquisa: ESCUTA MUSICAL: uma estratégia


transdisciplinar privilegiada para o Sentipensar

Trata-se de uma pesquisa centrada no conceito de Sentipensar,


termo cunhado por Saturnino de la Torre (catedrático em criatividade
da Universidade de Barcelona). O Sentipensar é a conjugação de
pensamento e sentimento no processo educacional. Acredito que a
escuta musical seja uma boa estratégia para potencializar essa fusão.
Vocês me dirão. O pano de fundo filosófico é oferecido pelas teorias
da Complexidade e da Transdisciplinaridade.

Por favor, preencha os dados abaixo:

NOME:
PROFISSÃO:
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL (sintético):
186

LOCAL DE TRABALHO:
IDADE:
PROJETO DE VIDA EM RELAÇÃO À MÚSICA:

Por favor, responda, por escrito, às questões abaixo:

1. Transcorridos vários meses do final da disciplina Didática do


Ensino Musical, ministrada na Faculdade de Música Carlos Gomes,
que lembrança marcante você conserva dessa experiência?
2. Normalmente, as aulas se iniciavam com uma estratégia especial,
envolvendo a Escuta Musical. Você sente que essa abertura da aula
pudesse ter influência sobre as atividades subseqüentes? Que tipo de
influência?
3. Você deve se lembrar que ao final do curso, fizemos uma avaliação
do mesmo a partir da seguinte questão: Caso o curso que estamos
terminando fosse uma música, que música seria?
A resposta resultou numa bela improvisação musical do grupo. Caso
tiver vontade de deixar algum tipo de registro escrito sobre a
experiência vivida no curso, utilize o espaço que segue abaixo. Muito
obrigada por sua participação.

As respostas dos alunos (Vide anexo 4) corroboraram amplamente


minhas percepções intuitivas iniciais que acabaram gerando o interesse em
realizar tal pesquisa sobre a Escuta Musical como uma estratégia de
Sentipensar.

A conjugação de sentimento e pensamento será evocada e confirmada


pelas falas dos alunos como se verá na análise dos dados. As respostas para
a ultima pergunta do questionário, que propunha uma forma de expressão
livre, expôs todas as características transdisciplinares da estratégia,
desnudando as subjetividades, abrindo novos horizontes e, mais que tudo,
fazendo aflorar indescritível beleza.
187

7. Análise
nálise dos dados

Detalhe da árvore sonhadora


Tatiana Clauzet
188

7.1
7.1 Categorias para análise
análise dos dados

Compreender o Sentipensar tendo como pano de fundo a


Complexidade, a Transdisciplinaridade, e dados atuais da pesquisa científica
sobre cognição musical, me coloca, sem dúvida alguma, um enorme desafio:
fazer um recorte da realidade, contextualizando eventos e situações num
todo maior, sem, no entanto, reduzi-la ou falseá-la. Naturalmente, a
dificuldade se encontra tanto no recorte quanto na escolha de focos de
observação que possam levar a respostas sobre a pergunta de pesquisa.
Uma multiplicidade de aspectos pode ser considerada, e vir a constituir-se
em categoria de análise dos dados, pois, parte-se de uma realidade
multidimensional atuada por seres humanos multidimensionais. A tarefa é
grandiosa e exige humildade; por mais profunda que possa ser a reflexão,
não será mais do que aquilo que consigo perceber a partir de minha
estrutura cognitiva.

O mesmo ocorre na definição dos instrumentos de coleta de dados,


como visto anteriormente, dados não são apenas coletados, mas sim, se
constroem na relação intersubjetiva, que passa a existir entre as pessoas e
se alteram na própria recursividade do processo. Além de tudo isso, uma
pesquisa de desenvolvimento Eco-sistêmico não pode prescindir da
subjetividade que caracteriza a complexidade humana: sentimento, emoção,
intuição, sensibilidade, escuta sensível e todos esses processos existindo de
forma encarnada, integrados na corporeidade.

Os dados que serão analisados de forma atenta, a seguir, foram


obtidos em três tipos de situação: ao longo de uma vivência de forte impacto

emocional ― a avaliação final do curso de Didática ― descrita ao início do


189

Capítulo 6, que resultou numa improvisação musical coletiva; através de


respostas individuais dos sujeitos a um questionário com três questões,
sendo uma delas diretamente sobre o problema de pesquisa, com base em
diversas situações vividas durante o tempo da pesquisa, e por mim
documentadas.

Partindo dos pressupostos dessas grandes teorias, mas também de


minhas observações pessoais durante as práticas desenvolvidas e, de forma
significativa, das discussões com minha orientadora, é que pude me decidir,
dentre outras possibilidades, pelas seguintes categorias de análise:
Abertura do olhar; Fluxos energéticos; Dialogicidade processual;
Transcendência e Percepção da estratégia de Escuta Musical por parte dos
sujeitos.

Para manter acesa a chama da memória e o rigor na busca da


resposta ao problema de pesquisa, antes de empreender a análise dos dados
parece-me oportuno repetir, uma vez mais, a pergunta geradora: Quais as
relações existentes entre o sentir – desencadeado pela atividade integrativa
de Escuta Musical – e o refinamento da capacidade reflexiva?

7.2 Abertura do olhar

Verdadeiro emblema da atitude transdisciplinar possibilitando a


mudança e a transformação, esta categoria tem importância nada
negligenciável, a ponto de Basarab haver afirmado o que segue: “se tivesse
de resumir em duas palavras o que a Transdisciplinaridade é para mim,
colocaria como epígrafe as palavras ‘atitude’ e ‘visão’” (RANDOM, 2000, p.
190

94). A mudança de olhar sobre o mundo é também uma prerrogativa para o


Sentipensar, pois, como Maria Cândida explica:

(...) este “implica uma compreensão de formação entendida


como transformação, mudança interior, incorporação e
desenvolvimento de competências, habilidades, atitudes,
valores e crenças (...) implica processos e interações entre o
mundo interior do sujeito e os estímulos exteriores, mediados
pela ação docente”76 (informação verbalizada)

A partir disso é que me pareceu fundamental perceber se a abertura


para a mudança se fez também presente nos sentimentos dos sujeitos dessa
pesquisa. Todos eles relataram haver passado por transformações
profundas, a partir do que vivenciaram durante o tempo da pesquisa,
relacionadas a seu desenvolvimento pessoal, profissional, às relações
interpessoais e à construção do conhecimento, entre outras, caracterizando
uma verdadeira mudança de paradigmas. As falas dos sujeitos anunciam a
abertura do olhar:

Espero que a música e o ensino musical sigam esse caminho e


que todos nós possamos quebrar e criar novos paradigmas.
QUEBRAR TUDO é CONSTRUIR TUDO. (Giba) (o grifo é do
sujeito)

(...) você plantou em cada um de nós alguma coisa, e eu acho


interessante é que cada um de nós está saindo daqui com uma
visão diferente, cada um com o seu pensamento, com a sua
forma de ver. (Matheus)

(...) fez com que eu enxergasse de outra forma, já foi plantado


na minha cabeça que a visão que eu preciso ter em termos da
educação ou em termos de música já é outra. (Rodrigo)

76
Fala de Maria Cândida Moraes em reunião de orientação.
191

Ao longo desse escrito, considerou-se uma série de possibilidades de


transformação da visão de mundo. Primeiramente, a Complexidade que, ao
conciliar opostos e considerar a trama de eventos na qual nos inserimos,
resgata uma visão do todo; em segundo lugar, a proposta do Sentipensar,
que propõe a concepção de um ser humano multidimensional; e, a
Transdisciplinaridade que, mais do que teoria ou princípio, incita a
transformar atitudes e olhares e a perceber o sentido de estar aqui e agora.

A grande contribuição da Transdisciplinaridade para a vida e para o


processo educacional é a lógica do Terceiro Incluído, uma “lógica da
contradição”, na qual se torna possível uma “complementaridade
contraditória” (LUPASCO, 1941, p. viii), e a conciliação de opostos
aparentemente inconciliáveis, através de um terceiro termo T (de Terceiro
Incluído). Essa lógica não elimina a necessidade da lógica tradicional binária,
“apenas limita sua área de validade” (BASARAB, 2005, p. 40); na vida
cotidiana, continuam valendo as normas do que pode e não pode ser; é
justamente a expansão do olhar, a possibilidade de abertura o que mais
interessa. Para praticar o sentipensamento é necessário integrar e, para
tanto, questionar a Inteligência Cega, que impede a conciliação de opostos
complementares e fragmenta processos, disciplinas, visão de mundo e,
sobretudo, o ser humano que existe no aluno.

G Abertura ao processo profissional: descoberta e construção do


conhecimento

Todos os sujeitos, em algum momento, referiram-se a descobertas


pessoais, motivação e entusiasmo gerados pelo processo de construção de
conhecimento e ampliação de paradigmas. Três sujeitos citaram como
192

aspecto mais marcante ― na pergunta 1 do questionário ― a possibilidade de

conhecer novos educadores:

Conhecer os educadores musicais e vivenciar seus métodos


de ensino. (Giba)

(...) conhecer educadores e pedagogos musicais que não


conhecia antes... (Rodrigo)

Achei importante a professora ter apresentado pensadores


importantes para a Educação, mesmo fora da área musical.
(Adriana)

O fluxo de mudanças importantes, que começou a operar-se na


prática dos alunos, foi realmente decisivo, promovendo alterações
substanciais em diversos aspectos da prática profissional, como por
exemplo, na busca do aprimoramento, na pesquisa de novas estratégias, no
fortalecimento da segurança, entre outros, como se depreende das falas que
se seguem:

Durante uma aula de exploração de sons do entorno da escola,


uma experiência me marcou de forma especial. O prédio ao
lado da Faculdade forma um grande paredão de reverberação.
Durante a aula, passou um helicóptero sobre a escola e alguns
de nós foram pegos pela ilusão de serem dois helicópteros, por
causa da reverberação do prédio. Essa experiência me intrigou
e me levou a estudar as técnicas de microfonação e gravação
estéreo (...) (Jaques)

(...) meus próprios alunos sentiram muita diferença, fez com


que eu desenvolvesse métodos. (Rodrigo)

(...) o que eu tiro da minha prática é que eu comecei a fazer de


novo esses registros (...) meus livros são cada vez mais
rabiscados. (Adriana)

(...) pudemos conhecer (...) propostas de nossos colegas,


como desenvolver uma aula, (...) projetos, e também (...) o
193

fato deste curso ter nos proporcionado a chance de nos


avaliar também como profissionais. (Matheus)

(...) eu comecei a dar aula agora pra criança, e eu comecei a


caminhar, isso foi subsidiando mais ainda o meu jeito de dar
aula, me ajudou a ter segurança nesse caminho. (Adriana)

A improvisação foi uma experiência muito importante no meu


dia a dia (...) Lecionando, aprendi a ouvir mais meus alunos (...)
Produzindo, deixei um pouco de lado os solos que eu escrevia
antes para os músicos interpretarem, atualmente, escrevo a
cifra e peço para o músico contratado colocar sua expressão
(...) eu acabei, usando tudo que eu aprendi aqui, (...) fez a
gente olhar de outra forma (...) (Rodrigo)

(...) uma coisa que eu gravei, eu falei que pra mim cantar com
criança é muito complicado, aí você (eu) falou: porque você vai
gastar tempo fazendo uma coisa que você não faz tão bem se
você pode fazer aquilo que você faz tão bem? (Jaques)

(...) íamos para a aula com vontade de estudar e não por que
ficaríamos sem nota. (Adriana)

No segundo dia de aula com esse grupo, um evento simples que relato
a seguir, proporcionou um insight maravilhoso para que os alunos iniciassem
os questionamentos sobre suas práticas:

Solicitei a cada aluno que escolhesse um instrumento qualquer; foram


escolhidos, basicamente, pequenos instrumentos de percussão e xilofones77.
Estávamos sentados em roda, solicitei a cada aluno que improvisasse um
pequeno solo78 em seu instrumento. Todos eles tinham um paradigma sobre
como os solos devem ser, em geral, muito elaborados como no Jazz; o
primeiro aluno iniciou sua produção, em seguida, cada um dos outros;
produziam qualquer som com o instrumento, sem qualquer envolvimento

77
Instrumento de plaquetas de madeira, tocados com duas baquetas e semelhantes a pequenas
marimbas.
78
O conceito de solo instrumental em pedagogia musical é muito elástico; não é tão parecido com o
que ocorre na improvisação em jazz, ou na música popular, por exemplo. Os solos que ocorrem em
contexto educacional são, antes de tudo, formas de exploração sonora do referido instrumento ou
fonte sonora; podemos falar, por exemplo, de um solo de pandeiro, ou de um solo de caixa de
fósforos; nessa situação o aluno tem que realmente utilizar todos os seus recursos criativos para
criar algo interessante e que faça sentido para ele e para os demais.
194

criativo ou emocional, e depois olhavam para mim com uma cara de “tudo
bem é isso aí, já fiz... e daí?”, e assim foi, com quase todos os alunos. Ao
chegar a minha vez, eu também tinha um xilofone; comecei a improvisar,
elaborando uns efeitos, tocando também a madeira lateral do instrumento, e
ainda escapando do instrumento e “tocando a mesa”, ou tocando o suporte
de metal de uma estante de partitura, e tudo isso ia se ligando às
possibilidades sonoras do xilofone; resultou num solo bem inusitado e
interessante.

Ao terminar, olhei para eles com a mesma expressão com a qual eles
tinham me olhado. Os alunos começaram a ter percepções interessantes: ”há
muito mais o que fazer com um instrumento”, “suas possibilidades podem
ser muito expandidas quando utilizados de forma não-convencional”,
“nenhum deles tinha pensado em fazer isso”, “a criatividade tinha sido muito
limitada”, e o melhor: perceberam que todas essas carências se
manifestavam também quando eles davam aula. Mais interessante que tudo
isso foi constatar que é possível mudar, é possível questionar o que se
entende por “dar aula de música” e por “solo instrumental”. Essa aula
prática promoveu uma verdadeira quebra de paradigma; não foi intencional,
e isso exemplifica o quanto esse processo foi rico em emergências.

Em outra dinâmica do mesmo tipo, colocamo-nos no centro da


reflexão sobre a construção coletiva de conhecimento:

Nesse dia, nossa vivência de Escuta Musical Sensível não versou sobre uma
música, mas sim, sobre a escuta do próprio ambiente, realizamos as etapas
iniciais (Reunião, Concentração, Alongamento, Relaxamento), em seguida,
nos sentamos e durante aproximadamente quatro minutos escutamos, de
olhos fechados, aos sons do ambiente. Essa escuta revelou-se tão musical
quanto a própria escuta de música; trata-se de uma outra perspectiva na
qual é possível atribuir status de música a tudo o que ocorre na sonosfera79
(FREGTMAN, 1989). Em seguida, os alunos, um por vez, deveriam dirigir-se
79
Nas palavras do autor da expressão: “Estamos imersos numa “sonosfera”. Esta, por si mesma,
acha-se implicada pela atmosfera terrestre, na qual o meio condutor (ar-água) e a vibração sonora
expansiva coincidem em suas origens e limites. Onde há ar há som. Onde há água há som. Onde há
vida há som.”
195

ao centro da sala (onde havia um pequeno monte de folhas de papel sulfite),


pegar uma folha e voltar a seus lugares, no mais absoluto silêncio. Todos
nós ficaríamos atentos para ouvir qualquer som que fosse produzido. A
obrigatoriedade de produzir silêncio absoluto modulou todos os gestos e
movimentos, tornando-os muito mais cuidadosos, planejados e lentos; na
seqüência, comentamos essa primeira parte da aula; a alteração da dimensão
temporal foi, aliás, o que mais chamou a atenção nesse comentário. Os
alunos foram então convidados a explorar os sons que a folha poderia
produzir, durante alguns minutos, e essa sonoridade foi extremamente
contrastante com o silencio anterior, tanto quanto todas as atitudes
requeridas. Os sons foram mostrados ao grupo e reproduzidos por todos, a
partir disso, escolhemos um repertório de sons de papel com os quais
fizemos uma música, elaborada em processo coletivo, todos podendo opinar
sobre a forma de encadear os sons e de modular suas propriedades.

Novos insights tiveram lugar, afinal “o que é música?”, “Ruído também


é música? O que falta para o ruído ser música?”, “Porque é tão difícil
produzir um silêncio absoluto?”, “Por que todas essas questões ficam fora
de uma educação musical tradicional?”. Estas e outras questões foram
amplamente discutidas com base nos educadores que estávamos estudando,
Murray Schafer, George Self e H. J. Koellreutter, e nas percepções dos
alunos que não paravam de se multiplicar e enriquecer cada vez mais.

G Pesquisa e liberdade no processo criativo: a incorporação do novo

Os instrumentos convencionais e não convencionais foram


bem explorados além de terem sido utilizados de forma
criativa, personalizada, com liberdade. (Adriana)

(...) praticamos algo pré figurativo, onde a improvisação partiu


de uma idéia e foi se constituindo de forma aberta, livre
(Adriana)

As aulas de improvisação com os instrumentos pedagógicos,


podendo expressar os próprios sentimentos, e aprendendo a
explorar os sons dos mesmos. (Rodrigo)
196

Em outra aula prática, realizamos um modelo de improvisação cujo


objetivo didático é ensinar crianças e principiantes na linguagem musical,
que os sons se escrevem da esquerda para a direita no pentagrama80 e que,
na representação gráfica, quando as notas são escritas embaixo, no
pentagrama, representam sons graves; quando escritas acima, sons
agudos. A discussão que se seguiu a esse modelo foi o mais belo exemplo
de como a prática musical pode ilustrar e tornar claros, conceitos teóricos
dos mais complexos:

Iniciei tocando alguns sons ao piano que os alunos foram representando um


a um, numa folha em branco, com pontinhos81. Esses pontos no plano
passaram a constituir uma espécie de partitura gráfica aproximativa (vide
Anexo 8), não-determinada, que pode ser executada ao piano, mas também
em qualquer outro instrumento que produza diferentes alturas82, e o
melhor, não é sequer necessário saber ler uma partitura tradicional para
tocar a partitura gráfica; por isso mesmo os iniciantes gostam muito dessa
atividade. De posse da partitura, solicitei a cada aluno que fosse ao piano e
executasse a partitura, mesmo àqueles que não eram pianistas. Ao chegar
ao piano, instrumento mitificado, os alunos hesitavam, faltava-lhes um
pouco de “coragem” para tratar o piano como um meio de expressão
através do qual é possível produzir a própria música ― um condicionamento
da formação tecnicista. Movidos, porém, pela recordação de aulas
anteriores, foram pouco a pouco se tornando mais criativos na exploração
das possibilidades do piano.

A experiência revelou-se também paradigmática e outras percepções


agregaram-se às anteriores, caracterizando ainda mais a recursividade do
processo: “é possível renovar as estratégias”, “os instrumentos são meios
para chegar à expressão”, “não é necessário sequer ser músico ou
estudante de música para encontrar sua forma de expressão”, “as

80
Pentagrama é o espaço utilizado para escrever música em partituras tradicionais, compõe-se de
cinco linhas e quatro espaços, todos utilizados na escrita musical (vide Anexo 8).
81
Vide Anexo 8.
82
Alturas são as diferentes freqüências do som, que vão do grave ao agudo. A unidade de medida de
freqüência é o Hertz (vibração/segundo).
197

possibilidades expressivas são sempre muito maiores do que nossa prática


habitual”, entre muitas outras.

Em todas as experiências relatadas acima, o espírito pré-figurativo


esteve presente. Como denota a expressão, pré-figurativo é o que vem
“antes da figura”, antes da forma preestabelecida, explica Koellreutter
(1997, p. 54):

Entendo por ensino pré-figurativo um método de delinear


antecipadamente o que, provavelmente, sucederá no futuro, ou
seja, figurar imaginando. Entendo por ensino pré-figurativo um
método de delinear aquilo que ainda não existe, mas que há de
existir, ou pode existir ou se receia que exista.

O espírito pré-figurativo tem tudo a ver com “o caminho que se


constrói ao caminhar” de Antonio Machado, com o “método que não precede
a experiência” e que “supõe a presença inevitável da arte e da estratégia”
(MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003); é a obra aberta, em eterna construção,
está para a atividade artística assim como a complexidade está para a vida,
tornando-a processual, cambiante, multifacetada. O ensino pré-figurativo,
dessa maneira, prefigura e dá forma à complexidade e à
transdisciplinaridade do pensar sobre a arte.

A grande dificuldade ao lidar com alunos que são também professores


é criar as condições para que transcendam o senso comum. Ele é que torna
tão difícil promover a mudança na escola. Em sala de aula, somos o que
somos, utilizamos receitas que dão mais ou menos certo; enquanto se
alcança resultados tudo parece bem; é difícil parar, realizar a autocrítica e
se perguntar se haveria diferentes formas, mais eficientes, de realizar a
mesma ação, isso ocorre, por causa do controle “supraconsciente” de um
198

paradigma, diria Morin. Idéias de senso comum, e paradigmas são assumidos


de forma acrítica, transcendem a consciência, provêm dessa região profunda
de não-resistência, como diria Basarab (2005, p. 62). Pela via da vivência
artística coletiva e da fruição de emoções, a transição pareceu iniciar-se
com mais facilidade.

A Educação tem sido tratada como um processo mecânico, no qual,

juntando-se certos componentes tidos como essenciais para a Educação ―

uma sala de aula, um professor, alunos, livros didáticos, uma seqüência


curricular muitas vezes não refletida democraticamente, um sistema
burocrático e administrativo que supervisione “o todo”, e um discurso

pretensamente emancipado ― tudo passa a funcionar perfeitamente como

uma máquina; por isso mesmo, é tão importante colocar algumas questões:
qual o sentido de nossas ações e, como educadores, qual o sentido de nossa
atuação na sociedade? Qual a medida de nossa contribuição? De que maneira
estamos contribuindo para aclarar as idéias do tempo presente? Talvez a
maior conquista para os sujeitos dessa pesquisa tenha sido a oportunidade
de se colocar tais questões, a cada dia.

7.3 Fluxos energéticos

Os fluxos de energia estiveram constantemente presentes, ao longo


de todas as ações práticas nesta pesquisa, “gerados pela emoção que
circula, pela empatia, pela mediação, pela vibração dos sons, pelo silêncio”
(informação verbalizada)83, foram responsáveis por alguns dos momentos
mais intensos vividos pelo grupo no decorrer da pesquisa; fluxos de energia

83
Fala de Maria Cândida Moraes durante reunião de orientação.
199

e informação caracterizam também diversos princípios da Complexidade,


representam ao mesmo tempo a conexão, a sinergia e a possibilidade de
transformação criativa, através de processos realimentadores. Por essa
razão, me pareceu importante saber como os sujeitos perceberam essa
conexão e como foram por ela afetados.

Os fluxos energéticos foram enfaticamente percebidos por todos os


elementos do grupo como uma unidade energética, construída e
realimentada a cada aula. No questionário e na gravação da avaliação, cinco
sujeitos manifestaram-se de forma clara sobre isso:

(...) a improvisação veio para confirmar a total integração do


grupo, (...) aquela sala era como uma outra dimensão, onde
éramos inalcançáveis diante de uma energia intensa, tanto que
ao final da aula, algumas pessoas eu lembro que comentaram
sobre o calor que estava no ambiente. (Matheus)

Os períodos de audição e relaxamento foram importantíssimos


para sintonizar o grupo e permitiram um assentamento e
focalização das energias. Era nítido que mesmo os que
chegavam depois de iniciado o processo e ficavam assentados
fora da roda se sentiam magnetizados pela experiência.
(Jaques)

A música foi surgindo (...) e a partir das idéias de cada


elemento que iam sendo lançadas e complementadas se
formou uma grande teia, algo único dentro da diversidade que
cada colega trazia. (Adriana)

(...) todos nós, alunos e professor, fizemos o som único. (Giba)

A ligação sonora com vários indivíduos e a comunicação feita


numa esfera onde a racionalidade ficava subjugada pelas
sensações. (Jaques)
200

G Um fluxo perpassando o ambiente...

Da Biologia à Cosmologia, dos sistemas mecânicos às sociedades, a


entropia tende sempre a crescer. A entropia representa a tendência à
desordem que caracteriza a todos os seres vivos. Os organismos, por
exemplo, são sistemas submetidos a essa lei; são, no entanto, sistemas
abertos que trocam, o tempo inteiro, matéria, energia e informação com o
meio ambiente, ou seja, fluxos de energia, que os percorrem, os
realimentam e os reorganizam. Por um lado, existe um ciclo entrópico
positivo levando à desorganização crescente; por outro lado, neguentropia
(entropia negativa) reconduzindo o sistema à ordem, através de fluxos
realimentadores; entropia e neguentropia mantêm o fluxo orgânico num
equilíbrio dinâmico que caracteriza a vida, por isso os organismos
necessitam alimentar-se, ingerir água e ar realimentando constantemente o
processo metabólico. Esse equilíbrio dinâmico, que implica em constante
transformação e movimento, sustenta o fluxo da vida.

As sociedades também se alimentam de fluxos culturais e criativos,


ou seja, de tudo aquilo que se produz. Relações sociais são complexas e
assumem diversas formas oscilantes, recursivas; o equilíbrio social é frágil
e se altera de formas imprevisíveis. Freqüentemente, as sociedades se
situam à beira do caos; momentos de flutuação e instabilidade se
apresentam e exigem a escolha de caminhos, a tomada de decisões; a
sociedade fornece um exemplo cabal de processo em andamento com
capacidade autocriadora.84

84
Este parágrafo faz alusão à Teoria das Estruturas Dissipativas, de Ilya Prigogine, que, originada na
Química, se transfere aos fenômenos sociais possibilitando belas metáforas.
201

Na música, também se encontram ótimos exemplos. Todas as


experiências musicais aqui descritas se alimentavam de um fluxo
energético: os sons produzidos pelos improvisadores. Modelos de
improvisação funcionam como estruturas de flutuação, percorridas por um
fluxo energético; estão sujeitos a regras organizacionais e relacionais; os
participantes devem obedecer a certas consignas e, sobretudo, ouvirem-se
mutuamente; a escuta é alimentadora e retroalimentadora da prática.
Momentos de caos sobrevêm ― quando todos os elementos musicais estão

presentes ao mesmo tempo ―; uma escolha se impõe, um ponto de

bifurcação, no qual se opta, muitas vezes intuitivamente, por um caminho;


novos motivos e elementos musicais entram no fluxo gerando um novo
equilíbrio. Na música produzida pelos sujeitos dessa pesquisa, diversos
momentos desse tipo tiveram lugar, gerando sempre novidades absorvidas
pelo fluxo de criação e saindo dele da mesma forma como entraram.

Pelo menos um dos sujeitos referiu-se à manifestação concreta da


energia durante a avaliação do curso, em forma de calor:

(...) aquela sala era como uma outra dimensão, onde éramos
inalcançáveis diante de uma energia intensa, tanto que, ao
final da aula, algumas pessoas eu lembro que comentaram
sobre o calor que estava no ambiente. (Matheus)

“Toda transformação, todo trabalho libera calor” (MORIN, 2005, p.


53), e isso é precisamente o que se vivenciou na avaliação do curso: intenso
trabalho criativo. Na ausência de trabalho, “sobrevém o equilíbrio térmico,
decorrente da falta de energia, também chamado por Morin “morte térmica”,
e o frio. Desde tempos primeiros, a energia do calor é uma necessidade
202

vital - calor físico e calor simbólico - como explicam Panksepp e Bernatzky


(2002, p. 143):

(...) quando estamos perdidos, nos sentimos frios, não


simplesmente fisicamente, mas também talvez neuro-
simbolicamente como conseqüência do abandono social. (...)
Esse pode ser um dos caminhos naturais para se promover
reuniões; a experiência da separação pode evocar desconforto
termoregulatório o qual pode ser aliviado pelo “calor” social de
voltar a estar junto.85

Ao final da improvisação, naquele dia inesquecível, alguém gritou


“quebra tudo” e outros entraram no mesmo refrão, a música cresceu,
tornou-se criativamente caótica, um crescendo energético tomou conta do
grupo, a temperatura subiu e o som terminou deixando no grupo uma
transbordante sensação de euforia.

G A experiência do fluxo

Uma dessas situações transcendentes, para a qual as estratégias do


Sentipensar abrem caminho, é aquela que melhor se manifesta quando se
vivencia um momento branco. Trata-se de um momento especial do ser, no
qual se experimenta o fluxo criativo, a sensação de sentir-se uno e em
harmonia com o cosmo. Torre e Moraes o definem como “uma síntese
integradora do global e do particular, o instante atemporal, a confluência do
emocional e do cognitivo” (MORAES; TORRE, 2004, p. 55). Csikszentmihalyi
(1992, p. 67) o denomina experiência máxima:

(...) trata-se de situações, nas quais a atenção pode ser


livremente investida para alcançar as metas pessoais, porque
não existe desordem a ser corrigida, nem ameaça contra a qual

85
Tradução da autora.
203

o self precise defender-se. Chamamos a esse estado


experiência do fluir porque é um termo usado por muitas das
pessoas que entrevistamos para descrever como se sentem
quando em sua melhor forma; “Era como flutuar”; “Eu fluía
junto com a coisa”. É o oposto da entropia psíquica – na
verdade, algumas vezes é chamada de neguentropia ― e
aqueles que a alcançam desenvolvem um self mais confiante e
mais forte, porque uma quantidade maior de sua energia
psíquica foi investida com sucesso em metas que eles próprios
decidiram atingir.

Muitas vezes as preocupações da vida diária seqüestram os

pensamentos e introduzem desordem na psique ― os fenômenos de

consciência também estão sujeitos aos fluxos entrópicos ―; ao se colocar, de

alguma forma, ordem na consciência, vivencia-se a experiência de estar “no


comando de nossa energia psíquica”, sente-se o fluir (CSIKSZENTMIHALYI,
1992, p. 91). É raro se tornar “inalcançável”, “magnetizado”, “focalizado” e
produzir “o som único”, como disseram os sujeitos, isso ocorre quando
episódios de entropia que interferem no curso livre da energia psíquica são
afastados, ou seja, na experiência de fluir, quando, temporariamente, nos
libertamos do self. Entrar em outro plano de consciência, perder a noção do
tempo, tais sensações eram vivenciadas após os momentos de escuta e de
produção sonora conectiva.

G A conexão que permanece no tempo

Todos os sujeitos da pesquisa referiram-se à conexão que a partir


daquele ano passaria a nos ligar de forma íntima e irreversível, cinco deles
de forma direta, a exemplo das falas que seguem:

(...) terminar simbolicamente porque nunca vai terminar, (...) vai


estar sempre ao nosso redor, (...) vou estar sempre envolvido com
204

isso, mesmo não estando presente nas aulas, não tendo mais as
aulas. (Rodrigo)

Essa forma de comunicação direta com vários ao mesmo tempo


(praticamente contrapontística) é irreprodutível pela linguagem
verbal. (Jaques)

(...) outra música que eu acho faz parte do curso é “Canção da


América”. (Matheus)

Durante a avaliação final do curso, Matheus escolheu para tocar duas


músicas: “Brincar de viver”, de Guilherme Arantes, e “Canção da América”,
de Milton Nascimento (vide Anexo 5); as duas canções falam do valor da
amizade, da permanência, e da conexão: “Como sou feliz, eu quero ver feliz
quem andar comigo”, “Amigo é coisa pra se guardar, no lado esquerdo do
peito, mesmo que o tempo e a distância digam não”. Eu também pude sentir
que estaríamos, de alguma forma, conectados para sempre.

A Física Quântica permite explicar esse sentimento de forma


concreta, e mais que isso, poética: “as coisas que estiveram alguma vez em
contato continuarão estando em contato ao longo do espaço e do tempo”
(MCTAGGART, 2006, p. 20).

Como demonstrado no princípio da não-separabilidade, partículas


subatômicas que tenham interagido alguma vez permanecerão conectadas

para sempre, mesmo separadas por longas distâncias ― é a memória da

natureza. A realidade subatômica revela que a matéria só pode ser


compreendida como uma teia de interconexões; esse mundo constitui um
outro plano de realidade no qual não existem objetos sólidos. Caso
pudéssemos nos reduzir às dimensões de uma partícula subatômica, não
veríamos objeto sólido algum, seriam mais e mais partículas, às quais
estaríamos ligados. Na dimensão quântica não se privilegia a diferença;
205

todas as partículas são iguais e, unindo-se umas às outras, constituem a


matéria. Essa é a mais bela metáfora a serviço da Educação e da vida.

7.4
7.4 Dialogicidade processual

Precisamos respeitar as necessidades que nosso


cérebro emocional tem de harmonia e ligação. Não há
como reverter o que a evolução nos fez querer e sentir
nos relacionamentos.

David Servan-Schreiber

Essa categoria procurará analisar o diálogo em alguns de seus


aspectos essenciais: o diálogo como fonte de aprendizagem, a relação
dialógica professor-aluno, e o diálogo como partilha da intimidade; serão
considerados os efeitos benéficos de ser ouvido e aceito por um grupo, a
catarse da expressão no coletivo, e a imensa contribuição trazida pelas
trocas e aprendizagens mútuas.

G O diálogo como fonte de aprendizagem: a relação professor-aluno

A troca e diálogo foram citados nas respostas ao questionário 14


vezes. Durante a avaliação final do curso, questões referentes ao diálogo
foram citadas oito vezes e duas músicas que valorizam a amizade e a
conexão entre as pessoas foram lembradas. No questionário, aparece como
um dos aspectos mais marcantes, para quatro sujeitos:

(...) as discussões, as idéias que eram trocadas, o quanto


pudemos conhecer as propostas de nossos colegas...
(Matheus)
206

O modo como a Profa. Enny conduziu o curso e sua grande


humanidade em relação aos fatos do cotidiano, partilhando
alegria, dúvidas e tristezas com seus educandos. (...) A
liberdade de colocar minhas idéias e experiências musicais e
partilhar com meus colegas de classe a vivência de cada um.
(Giba)

A primeira lembrança (...) os diálogos realizados em círculos,


discutindo assuntos com os amigos de classe e o professor.
(Rodrigo)

Foi gostoso participar deste grupo e ver os colegas


crescendo junto, construindo o conhecimento e com a ajuda
da professora, fazendo relações da teoria com a prática.
(Adriana)

O diálogo é o primeiro passo na aprendizagem da escuta do outro. Não


há como falar do diálogo sem pensar na dialogicidade de Paulo Freire,
proposta por ele como forma de mediar a relação professor-aluno e a
construção do conhecimento. Os sujeitos dessa pesquisa também evocaram
o mestre ao fundamentar suas escolhas:

(...) como Paulo Freire fala, “vem, deposita, é isso, tchau”, não
é bem assim, então, eu acho que essa é a essência... (Rodrigo)

(...) você não deu a receita do bolo, pronto: dois quilos de


açúcar, não, mas a gente foi construindo (...) com essa leitura
desses pedagogos, desde o Paulo Freire até os musicais (...),
eu fui montando, isso foi subsidiando mais ainda o meu jeito de
dar aula. (Adriana)

Quando somos ouvidos aprendemos a ouvir sempre que não estejamos


subjugados pelo ego ou apegados ao vício magistocentrista. Paulo Freire
desistiu da carreira de advogado por “não ser capaz de violentar o ser do
207

outro”86 e por acreditar que todos têm conhecimento. A partir dessa


perspectiva filosófica, abandona-se a prática da “alienação da ignorância” –
crença segundo a qual a ignorância está sempre no outro (FREIRE, 1997, p.
58). A fala que segue é eloqüente nesse aspecto, e demonstra como o
sujeito aprendeu a confiar no saber de seus músicos:

A improvisação foi uma experiência muito importante no meu


dia a dia (...) Lecionando, aprendi a ouvir mais meus alunos,
suas idéias, suas interpretações, suas expressões (...)
Produzindo, deixei um pouco de lado os solos que eu escrevia
antes para os músicos interpretarem; atualmente, escrevo a
cifra e peço para o músico contratado, colocar sua expressão e
sua interpretação diante do que ele está ouvindo e sentindo...
(...) eu acabei, usando tudo que eu aprendi aqui, principalmente
com a professora que fez a gente olhar de outra forma, não vir
e depositar, né? (Rodrigo)

Do ponto de vista da Complexidade, a Educação é compreendida como


um sistema dinâmico; os processos de ensinar e aprender não são exatos,
nem estáticos, mas sim, incorporam a contradição e a transformação. A
Educação é um desses sistemas e depende do fluxo nutriente que se
estabelece entre os alunos, entre estes e o professor e, entre todos e o
meio. Esse fluxo alimenta aos diversos circuitos recursivos existentes no
processo educacional: ensinar, aprender, realizar tarefas individualmente e
coletivamente, processar o conhecimento, trocar, entre muitos outros.

A Escuta Musical ensina a ouvir, não somente música, mas também a

escuta do outro ― como bem observou um dos sujeitos: “o grupo seguia a

aula mais tranqüilo, centrado e receptivo à experiência de ouvir os colegas”

86
Fato relatado pela segunda esposa de Paulo Freire no segundo programa da série Paulo
Freire - o andarilho da utopia. RÁDIO NEDERLAND (Holanda) e CRIAR – Assessoria de
Comunicação de São Paulo. O Andarilho da Utopia. São Paulo: Estúdio Trilha Certa, 1998.
208

– ilustrando, dessa maneira, a um dos princípios da Transdisciplinaridade:


“o saber compartilhado deve levar a uma compreensão compartilhada,
fundamentada no respeito absoluto às alteridades unidas pela vida comum

numa só e mesma Terra”87. Pela via da escuta sensível ― em suas duas

acepções88 ― alcança-se a atitude aberta, essencial para viver, a lógica

ternária e conciliadora, que leva à compreensão e à aceitação das


alteridades, dos valores e crenças de outras “tribos”.

Finalmente, ouvir e ser ouvido não são somente necessidades da


psique humana, ou uma regra de conduta para o bem-viver; Schreiber
(2004, p. 252) explica que “é uma necessidade que emana do cérebro”, e
uma consumação altamente significativa de nossas existências:

No entanto, depois de milhões de anos de evolução, nosso


cérebro emocional é feito para ansiar por quatro aspectos da
vida (...): um senso de conexão com o nosso corpo e estados
interiores; intimidade com alguns seres humanos seletos; um
papel sério em nossa comunidade; e um sentido de conexão
com o mistério da vida. Distanciados desses aspectos,
buscamos em vão por uma meta fora de nós, em um mundo no
qual nos tornamos estrangeiros.

G O diálogo como partilha da intimidade

O que é importante é o sentimento de estar totalmente


com outra pessoa. Ser capaz de mostrar que somos
fracos e vulneráveis, mas igualmente fortes e radiantes.
Ser capaz de rir mas também de chorar. Sentir que
nossas emoções são compreendidas.
David Servan-Schreiber

87
Carta da Transdisciplinaridade, Art. 13.
88
A escuta sensível de René Barbier e a escuta musical sensível, como a defino.
209

O grupo se tornou cada vez mais íntimo na partilha ampla de


experiências, conhecimentos, e da emoção; o sentimento de intimidade se
tornou recorrente. Algo extraordinário aconteceu: a capacidade de
desbloquear sua expressão no grupo e sentir o calor de ser aceito; a
eliminação de bloqueios e inibições. Todos os sujeitos experimentaram essa
sensação:

Esta estratégia (escuta) ajudou o grupo a se constituir


enquanto tal, deixando os colegas à vontade para se colocarem
e exporem seu processo de aprendizagem sem
constrangimento. (Adriana)

(...) estávamos completamente “nus”, digo no sentido de não


nos preocuparmos com a opinião alheia...” (Matheus)

(...) tive uma experiência anterior a essa, numa faculdade onde


a chibata entrava nas aulas, essa experiência de ter chegado
aqui e começar a aula ouvindo música, (...) foi como sair do
inferno mesmo e ir pro céu mesmo, sabe? (Liebe)

(...) esse tipo de trabalho (...) mexe muito, imagina então se


todas as disciplinas fossem trabalhadas nesse molde... (...)
(Jaques)

A liberdade de colocar minhas idéias e experiências musicais e


partilhar com meus colegas de classe a vivência de cada um.
(Giba)

As aulas de improvisação com os instrumentos pedagógicos,


(permitiram) expressar os próprios sentimentos. (Rodrigo)

(...) esse “quebra tudo” e a gente saiu quebrando pau mesmo


(...) é uma outra percepção, você tem a liberdade total, com teu
corpo, com a tua mente. (Matheus)
210

G A partilha do choro

Signo máximo de abertura ao outro; chorar ou somente permitir que o


olhar marejado fosse perceptível, se tornou comum no grupo. Diversas
vezes, a emoção não se expressou em palavras, mas em expressões,
lágrimas, atitudes. É permitido que as crianças chorem ou que adultos com
algum problema façam o mesmo, nesse caso, chorar é um ato solitário.
Neste grupo, o choro despiu-se de seus estigmas sociais e passou a
significar apenas intimidade e fluxo transbordante de emoção, um desnudar-
se engendrado no dia a dia da partilha pessoal. A fala de um dos sujeitos
ilustra o momento marcante, no qual, através da partilha do choro, as
“hierarquias” da sala de aula puderam ser transcendidas, colocando
professor e alunos no mesmo patamar de experiência humana íntima:

Mas uma cena assim, que eu sempre falo pra todo mundo, foi
uma vez que você (eu) (...) colocou aquele CD do Paulo Freire,
aí ele estava falando da ditadura e você chorou (...) acho que
isso foi, isso pra mim foi f... (Giba)

Schreiber ensina que o choro é uma das formas de nossa


“comunicação límbica”:

O choro e nossa resposta instintiva a ele criam o “circuito


reflexo” dos relacionamentos entre os seres – humanos ou não
humanos. Esse circuito é a base para toda comunicação vocal –
o canto dos pássaros, o mugido, o miado, o grunhido, toda a
poesia e as canções. A impressionante atração que a música
exerce em nossos corações – sobretudo o canto da voz humana
– provavelmente tem suas raízes nisso. A música age
diretamente no cérebro emocional e é muito mais eficaz do que
a linguagem verbal ou a matemática. (2004, pg. 180)
211

Eu poderia então dizer que nossos cérebros límbicos se conectaram


através da emoção intensa. Na avaliação do curso, quando Giba tocou
“Começar de novo”, de Ivan Lins, muitos choraram e, juntos, cantaram as
últimas frases da música; depois novamente, quando Matheus tocou
“Coração de estudante”, de Milton Nascimento. A frase de Giba resume o
sentimento de todos: “A emoção da última aula ficará guardada na minha
lembrança”.

Em alguns momentos, a aula parecia derivar para uma terapia de


grupo, o que pode parecer assustador ou inadequado, porém, nem tanto,
pois todas as vezes em que se pode deixar fluir pensamentos, idéias,
concepções e sentimentos, a atividade, seja ela qual for, se torna
terapêutica; não é necessário habilidade especial. Como explica Esch (2005,
p. 11), “na musicoterapia ativa, os pacientes improvisam com instrumentos
de sua escolha e então criam uma nova forma de comunicar seus
sentimentos, emoções e palavras ‘não ditas’”89; na musicoterapia receptiva,
os pacientes acessam suas memórias mais íntimas, o corpo e a psique são
afetados de formas diversas e profundas, como visto anteriormente. Os
sujeitos puderam ter a experiência dessa catarse terapêutica em diversos
momentos.

Outro aspecto relevante, que dificilmente se conseguiria analisar sem


a ajuda de um vídeo, é a quantidade de comunicação emocional não-verbal
manifestada nos gestos, nas atitudes, nos olhos, nas expressões faciais, nas
intenções do corpo, no toque, no sorriso, como Jaques ilustra perfeitamente
nesta fala:

89
Tradução da autora.
212

A ligação sonora com vários indivíduos e a comunicação feita


numa esfera onde a racionalidade ficava subjugada pelas
sensações. Essa forma de comunicação direta (...) é
irreprodutível pela linguagem verbal.

5. Transcendência

E no entanto, existe um campo infinito no fundo de nós


mesmos, que encontramos nos sonhos, em uma emoção
intensa, em raros e misteriosos momentos de nossa vida. Um
físico o chamaria talvez de “campo das variáveis veladas”, um
místico, o sentimento da unidade infinita, o continuum fora do
tempo, a unidade perceptível do invisível dentro do visível.
Michel Random

Os relatos dos sujeitos evidenciaram inúmeras experiências,


situações e sentimentos de transcendência. Se, durante muito tempo, toda
essa referência permaneceu confinada aos relatos místicos, à clausura dos
confessionários, aos sortilégios dos magos, hoje a situação é diferente; a
ciência e, em especial, a revolução quântica, veio abrir novas
possibilidades, descortinar um universo muito mais complexo, liberto de
concepções prosaicas, pleno de incertezas que animarão as buscas para
sempre, atrás de respostas que talvez nunca serão definitivas; a porta
estará sempre aberta para alguma outra impalpável dimensão.

Hoje é possível utilizar as palavras energia, conexão, sintonia, sem


os estigmas que durante tanto tempo as interditaram. A transcendência
existe a cada vez que um limite é transposto; o dicionário da língua
portuguesa a define como propriedade do que vai além, algo muito elevado,
que transcende do sujeito para alguma coisa fora dele, que transcende os
limites da experiência possível.
213

G A transcendência em direção ao interior

Os sujeitos referiram-se à transcendência de seus limites pessoais,


na conquista da abertura para o outro e na superação de limites
profissionais, como visto anteriormente; e agora, uma volta ao tema,
através do autoconhecimento – o olhar para o interior – que permite
perceber e incorporar novos valores. Os sujeitos se expressam, a seguir,
sobre a transcendência através do autoconhecimento:

(...) quando nos encontramos com o nosso interior,


descobrimos que existe uma paz interna que não há lá fora.
(Rodrigo)

(...) o que me chamou a atenção (...) não temos outra aula que
faça relaxamento, é você buscar você mesmo, seu interior,
você não tem isso no dia a dia... (Rodrigo)

Através deste curso consegui um melhor autoconhecimento e


ampliar minha paisagem sonora. (Giba)

Toquei naquele momento a música Começar de Novo do


compositor Ivan Lins atendendo o meu falar interno (...) (Giba)

(...) poderia ter tido várias técnicas de... fazer pedagogia, mas
não foi assim, foi uma coisa mais profunda, (...) a gente foi
construindo com essas outras coisas mais profundas...
(Adriana)

(...) porque a reflexão ela é como lava de vulcão, né?


Eventualmente acontecem algumas erupções que deixam uns e
outros desnorteados. (Jaques)

(...) você pode viajar, através do teu interior, do pensamento,


do que está à volta, transcender, acho que essa é a palavra
certa, transcender. (Matheus)

Um sentido transdisciplinar desponta intrinsecamente relacionado à


transcendência de todos os limites, pessoais, profissionais, de espaço físico,
214

configurando uma verdadeira mudança de paradigma. O olhar se expande


para fora e para dentro. Uma vez, Matheus escolheu para tocar ‘Coração de
Estudante’, de Milton Nascimento (vide Anexo 5), sua criança interior
estava lhe chamando – Seu sorriso de menino quantas vezes se escondeu –
pois, o coração de estudante é o coração eternamente jovem que habita
regiões profundas, em cada um de nós.

Os níveis de realidade se projetam na interioridade. Existem muitos


níveis em nós e muito sutis; carregamos na intimidade todos os valores,
crenças e paradigmas da cultura que nos forjou e, um mundo impalpável,
sobrenatural, representado por mitologias, por todas as criações do
imaginário: “os humanos possuídos são capazes de morrer ou de matar por

um deus, por uma idéia...” (MORIN, 2002, p. 29). A noosfera ― esfera das

coisas do espírito ― possivelmente, seja a característica mais humana, e

constitua um nível de realidade, uma outra dimensão, um outro mundo como


diriam os sujeitos, a partir do qual o inexplicável tantas vezes encontra
explicação.

“A perda do senso de um self separado do mundo à sua volta é


algumas vezes acompanhada de um sentimento de união com o ambiente”,
ensina Csikszentmihalyi (1992, p. 98), e eu acrescentaria que é como uma
“viagem” a esses mares profundos, a essas zonas de não-resistência, tão
intimamente ancoradas. Ao voltar dos momentos de Escuta Musical, é como
voltar de um lugar assim.
215

G A sensação de transcender o espaço físico

A sensação de transcender o espaço ― que parece ser o limite ―

surgiu de formas diversas na experiência dos sujeitos: na experiência do


fluxo, no sentimento de conexão, mesmo à distância, no sentir-se uno com
o grupo e nas impressões de estar em outra dimensão. Os sujeitos se
exprimiram sobre isso de forma metafórica:

(...) essa experiência de ter chegado aqui e começar a aula


ouvindo música, foi como sair do inferno e ir pro céu. (Liebe)

(...) a escuta traz uma liberdade total, outra percepção, outro


mundo, outra forma de ver (...) (Matheus)

(...) aquela sala era como uma outra dimensão, onde éramos
inalcançáveis diante de uma energia intensa. (Matheus)

A experiência vivida tem o significado de uma porta aberta ao


infinito. (Liebe)

A perspectiva transdisciplinar oferece a possibilidade de interpretar a


transcendência, lembrando que a realidade é mais ampla do que as
concepções que se tem sobre ela e que através de uma abertura mental é
possível posicionar-se em diferentes perspectivas: o inconciliável torna-se
possível e integrado à experiência. A lógica transdisciplinar inclui o ser e o
não-ser, facilita a compreensão de sua coexistência no mesmo espaço, em
diferentes níveis de realidade. Essa nova visão tornou-se possível a partir
da descoberta inalienável da existência desses diferentes níveis em nós, o
micro, representado pela constituição física, pelo movimento eterno e
frenético do mundo subatômico que constitui a materialidade – algumas
vezes indiferenciável da espiritualidade – e o macro, incorporado pelos
corpos viventes no tempo-espaço, na vida social, no mundo do cotidiano.
216

G A questão dos valores

Os valores permearam a pesquisa ao longo de toda sua duração:


questionados, confirmados, rejeitados, descobertos, redescobertos. “Os
valores são a reserva moral e espiritual reconhecida da condição humana”;
encontram-se em nosso ser profundo, sinalizando para o sentido da vida,
ainda que “adormecidos na mente e latentes na consciência”, ensina
Martinelli (1996, p. 15). Através da estratégia de Escuta Musical, uma porta
se abriu para a interioridade; os sujeitos puderam reencontrar muitos de
seus valores e descobrir outros que lhes trouxeram riqueza pessoal e
profissional; apenas para citar alguns exemplos: a paz, o encantamento, a
dialogicidade, o respeito, o silêncio interior, o autoconhecimento, entre
tantos outros. Analisar estes dados sob o ponto de vista dos valores,
exigiria certamente uma nova tese.

No entanto, se a questão axiológica não pode ser analisada neste


escrito, deve pelo menos ser citada, pois emergiu com a força da vivência
dos sujeitos. Além disso, ética e valores, constituem princípios essenciais
na pesquisa de desenvolvimento Eco-sistêmico, e nas teorias filosóficas
que dão sustentação para refletir este trabalho: Sentipensar, Complexidade
e Transdisciplinaridade.

A meta é educar para a Era planetária, como diria Morin; valores

consistentes ensinam a preservar a vida ― nossas vidas ―, preservar o

planeta ― nossa casa ― e, preservar as relações humanas, o que torna

possível um futuro para a humanidade.


217

7.6 Percepção da estratégia de Escuta Musical pelos sujeitos

Nas respostas à primeira pergunta do questionário ― sobre o aspecto

mais marcante da experiência que conservavam em suas lembranças ―,

dois dos sujeitos ressaltaram a estratégia inicial de Escuta Musical e, um


deles, a escuta dos sons do ambiente, ou seja, 50% dos sujeitos
escolheram a escuta o que é bastante significativo:

A lembrança mais marcante é realmente o clima propício para


se pensar em música e em educação musical, gerado a partir
da escuta. (Liebe)

A primeira lembrança são as músicas que ouvíamos no início


das aulas... (Rodrigo)

Durante uma aula de exploração de sons do entorno da escola


uma experiência me marcou de forma especial... (Jaques)

A segunda pergunta do questionário era uma questão direta sobre a


Escuta Musical como estratégia de Sentipensar:

Normalmente, as aulas se iniciavam com uma estratégia especial,


envolvendo a Escuta Musical. Você sente que essa abertura da aula
pudesse ter influência sobre as atividades subseqüentes? Que tipo de
influência?

A análise das respostas à questão 2, se tornou muito interessante,


pois nas correlações estabelecidas pelos sujeitos, entre a estratégia de
escuta e seus objetivos, diferentes aspectos do Sentipensar foram
vislumbrados, e ainda, os sujeitos só fizeram corroborar a adequação da
218

Escuta Musical como estratégia válida na integração de emoção e


racionalidade. Como vê-se na seqüência:

Matheus
Escuta........
Escuta concentração/entrega..... conteúdos...... aulas mais dinâmicas

Acredito piamente nesta possibilidade, pois a escuta musical a que éramos


submetidos era uma forma de concentração e, ao mesmo tempo, de
entrega, para que pudéssemos usufruir o máximo de conteúdo possível, o
que resultava em aulas mais dinâmicas e, conseqüentemente, mais
proveitosas.

O primeiro sujeito relacionou a atividade de escuta a aulas mais


dinâmicas, decorrentes da possibilidade de concentração e entrega, para
uma absorção melhor dos conteúdos; nesse caso, a Escuta Musical
Sensível torna-se indutora de estados fisiológicos e mentais favoráveis ao
trabalho cognitivo subseqüente. Por trás da palavra entrega existe a
postura física e mental de relaxamento e abertura.

Liebe
Escuta...................... sensibilização.......... influência positiva no aprendizado
Escuta

Como eu já havia relatado na ocasião em que gravamos a finalização do


curso, tive uma experiência de aprendizagem que me marcara muito e de
maneira bastante negativa, então, quando experimentei uma aula que
buscava a sensibilização antes de tratar dos conteúdos, pude referenciar-
me acerca da influência positiva que é possível exercer no aprendizado,
dependendo da forma que estes conteúdos são abordados.

O segundo sujeito, de forma semelhante ao primeiro, ressalta a


importância da escuta em seu caráter sensorial, no entanto, enfatiza a
escuta sensível, no sentido atribuído por Barbier (2002, p. 94), na qual se
procura “sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro para
compreender do interior”. A ênfase está na possibilidade de aproximação
219

entre as pessoas, e a influência positiva no aprendizado decorre da “forma


de abordar o conteúdo”, o que, por um lado, significa ser psico-
fisiologicamente afetado, e por outro, ser ouvido e aceito por um grupo.
Esse sujeito havia relatado experiências anteriores muito negativas nas
quais “a chibata entrava na sala de aula”.

Jaques
Escuta/relaxamento.... sintonia.. focalização.. magnetização.. grupo receptivo
Escuta/relaxamento
à experiência de ouvir os colegas

Os períodos de audição e relaxamento foram importantíssimos para


sintonizar o grupo e permitiram um assentamento e focalização das energias.
Era nítido que mesmo os que chegavam depois de iniciado o processo e
ficavam assentados fora da roda se sentiam magnetizados pela experiência.
O grupo seguia a aula mais tranqüilo, centrado e receptivo à experiência de
ouvir os colegas.

Este sujeito ressaltou a importância da formação do grupo, não-


somente no aspecto exterior de sua constituição, mas na vertente interna de
sua coesão; enfatizou os aspectos energéticos relativos à coesão do grupo e
utilizou idéias fortes e significativas: sintonia, assentamento, focalização,

magnetização. Como resultado dessa coesão forte ― a conexão energética

discutida anteriormente ―, é que o grupo, como organismo “tranqüilo e

centrado”, se abre para a experiência de escuta do outro. Esse sujeito teceu


muitos comentários sobre a função terapêutica das experiências vividas em
sala de aula, e, naturalmente, quando fala de ouvir o outro se trata daquela
escuta sensível de Barbier.

Giba
Escuta....
Escuta presença da música...... concentração... clima/ambiente mais leves

A escuta musical permite maior concentração para as atividades seguintes.


Tem que haver MÚSICA em qualquer assunto envolvendo música. O clima e
220

o ambiente ficam mais leves e prontos para qualquer atividade musical.


Falar de música sem MÚSICA transforma seres humanos em repetidores de
livros e não em pessoas ativas e seres pensantes. Importante destacar:
SOM – NOTAS – MÚSICAS - SERES HUMANOS (os grifos são do sujeito)

Este sujeito corrobora a propriedade que a música tem de induzir


estados de concentração. Porém, agrega a isso uma percepção crucial:
“tem que haver MÚSICA em qualquer assunto envolvendo música”; a
simples presença da música é o fator principal que torna “o clima e o
ambiente mais leves”. Poderia ser uma coisa óbvia demais, a presença da
música numa escola de música, mas não ;, raríssimos professores se
utilizam do poder da música para induzir estados fisiológicos e mentais
favoráveis, mesmo numa escola de música. Mais que isso, advogo que a
Escuta Musical pode transcender o ambiente estritamente musical e
tornar-se uma estratégia para o Sentipensar em qualquer área de atuação.
Essa é claramente a ponte que o sujeito também estabelece: som....
notas...... músicas... seres humanos, ou seja, uma ponte para a formação
humana.

Sujeito 5
Escuta......
Escuta auto-encontro....... paz interna.... influência nas atitudes, idéias e
comportamentos
comportamentos

Acredito que sim. Pelo fato de o ser humano conseguir se encontrar


novamente consigo mesmo, pois estamos vivendo num mundo onde
precisamos sobreviver, alcançar objetivos e realizar-se, de modo geral, e
quando nos encontramos com o nosso interior, descobrimos que existe uma
paz interna que não há lá fora. Acredito que a escuta musical influencia nas
atitudes, comportamentos e idéias do ser humano, de crianças a idosos.

Este sujeito trouxe à discussão a importante questão axiológica, e foi


talvez o único a citar a modulação do comportamento a partir da Escuta
Musical. Os valores foram ressaltados pelo sujeito como uma conquista
221

interna, ― “conseguir se encontrar”, “influência nas idéias do ser humano” ―,

mas também, como manifestação externa, nas atitudes e comportamentos,


em todas as faixas etárias, constatação importante, pois, muitas vezes se
pensa que não é necessário discutir esses assuntos com crianças. O sujeito
fala ainda de “uma paz interna que não há lá fora”. A paz poderia ser o
objetivo último de nossos esforços educacionais, quando finalmente, através
de estratégias diversas, se estendesse dessa vida interior para
comportamentos, atitudes e pensamentos em relação aos outros.

Sujeito 6
Escuta....
Escuta sensibilização.... grupo.... desbloqueio......... exposição do próprio
processo de aprendizagem

Certamente. Esta foi uma maneira de sensibilizar e preparar os alunos para


a aula. Esta estratégia ajudou o grupo a se constituir enquanto tal deixando
os colegas à vontade para se colocarem e exporem seu processo de
aprendizagem, sem constrangimento. Nesta partilha, todos contribuíram para
o crescimento do grupo.

Este sujeito enfatiza, de forma especial, a constituição do grupo,


através de um tipo de partilha, na qual os sujeitos podem se expressar
livres de bloqueios e inibições. Esse processo foi intensamente vivido pelo
sujeito e, muitas vezes, manifestado: nas respostas ao questionário, e em
seu depoimento registrado durante a avaliação final do curso, no qual se
referiu ao crescimento pessoal e profissional, à construção do conhecimento
e à importância da partilha desse conhecimento na intimidade do grupo.
Foram muitos os insights, ”eu acho que fluiu e é a primeira vez que
aconteceu isso esse semestre (...) foi uma coisa mais profunda, de buscar...
buscar o nosso jeito”, disse ela, caracterizando, uma vez mais, o aspecto
terapêutico que o processo assumiu algumas vezes.
222

Conclusão e considerações finais

Do alto do infinito
Tatiana Clauzet
223

Conclusões preliminares sobre a Escuta Musical

A análise das respostas dos sujeitos aos instrumentos de coleta de


dados corrobora que a Escuta Musical teve um papel ativo na qualidade das
experiências transformadoras que vivenciaram. Como fica explícito na
síntese a seguir:

CONCENTRAÇÃO
ENTREGA AULAS MAIS DINÂMICAS E
USUFRUIR DO CONTEÚDO PROVEITOSAS

SENSIBILIZAÇÃO INFLUÊNCIA POSITIVA NO


APRENDIZADO

SINTONIA
ASSENTAMENTO GRUPO RECEPTIVO À EXPERIÊNCIA DE
FOCALIZAÇÃO OUVIR OS COLEGAS
MAGNETIZAÇÃO
ESCUTA
MUSICAL CONCENTRAÇÃO CLIMA/AMBIENTE MAIS LEVES
PRESENÇA DA MÚSICA

AUTO-ENCONTRO INFLUÊNCIA
INFLUÊNCIA NAS ATITUDES,
ATITUDES,
PAZ INTERNA COMPORTAMENTOS E IDÉIAS DO SER
HUMANO
SENSIBILIZAÇÃO
PREPARAÇÃO EXPOSIÇÃO DO PRÓPRIO PROCESSO,
PROCESSO,
CONSTITUIÇÃO DO GRUPO SEM CONSTRANGIMENTO

Muito embora cada sujeito tenha ressaltado um aspecto diferente,


como produto da estratégia de escuta, todos têm em comum a percepção de
que a escuta prepara o trabalho intelectual subseqüente, por promover
tranqüilidade e concentração; todos os comentários sobre a escuta foram
positivos e transmitiram a idéia de bem-estar.
224

Primeira conclusão: música é uma forma de relaxamento

Uma das formas através da qual a escuta leva aos resultados


assinalados pelos sujeitos, é precisamente o relaxamento, o esvaziamento
mental. É possível fazer tal inferência a partir do que os sujeitos relataram
sobre entrega, concentração, assentamento, sensibilização e paz interna,
pois o relaxamento nada mais é do que “atividade física ou mental
repetitiva”90, que promove alterações fisiológicas notáveis, levando quem se
engaja nessa atividade a “afastar todos os pensamentos desviantes” (ESCH
et al., 2005, p. 9).

Como apresentado no Capítulo 4, a música é poderosamente indutora


da resposta de relaxamento, alterando o metabolismo e diversas funções
homeostáticas; tem a propriedade de interromper a produção do hormônio
do estresse e de modular a atividade cerebral, levando-nos a “entrar em
alfa” e experimentar agradáveis sensações de bem-estar. Esta vivência de
estados mentais e corporais positivos naturalmente conduz a “aulas mais
dinâmicas”, e à “influência positiva no aprendizado”. Como explica
Schreiber (2004, p. 67):

Tendo alcançado um estado de maior equilíbrio, estamos


prontos para enfrentar todas as contingências da vida.
Simultaneamente temos acesso à sabedoria do cérebro
emocional – sua “intuição” – e às faculdades de reflexão,
raciocínio abstrato e planejamento do cérebro cognitivo.

Segundo Esch, “a integração dos sistemas autonômico-emocional


pode levar a uma experiência diferente do self e do corpo, um estado
diferente ou alterado de consciência” (ESCH et al., 2005, p. 11). Esse

90
Tradução da autora
225

estado de fluência e bem-estar, que liga as pessoas intimamente ao que


estão vivendo, e que transforma a percepção do tempo e do espaço, foi
também descrito por Csikszentmihalyi (1992), anteriormente, como a
experiência do fluxo.

Segunda conclusão:
conclusão: através da música acessamos sentimentos positivos

Também no Capítulo 4, demonstrou-se que a música ativa memórias


emocionais através dos circuitos cerebrais de motivação e recompensa,
estimulados quando ouvimos música que nos agrada. A partir disso, as
sensações corporais se desencadeiam – nos arrepiamos, nos emocionamos –
os sentimentos de prazer e bem-estar se reforçam com a música; são essas
memórias e reações fisiológicas que conferem à música propriedades
terapêuticas. Como explica Zatorre (2005, p. 314), “o efeito ansiolítico da
música é conhecido agora não somente por especialistas, mas por qualquer
um que escute sua peça musical favorita depois de um dia de afazeres”91. A
emocionalidade da música está profundamente arraigada em nosso
organismo, como ensina Schreiber (2004, p. 57):

(...) emoções negativas tais como raiva, ansiedade, tristeza e


até preocupações comuns, reduzem muito a variabilidade
cardíaca e semeiam o caos em nossa fisiologia. Por outro
lado, emoções positivas, como alegria, gratidão e sobretudo
amor, parecem promover a maior coerência. Em poucos
segundos, essas emoções induzem uma onda de coerência
imediatamente visível no registro da freqüência cardíaca.

O relaxamento, quando praticado com constância e por um tempo


adequado, pode produzir alterações fisiológicas de longa duração (ESCH et

91
Tradução da autora.
226

al., p. 11); esse é mais um argumento para que se incorpore a estratégia de


Escuta Musical ao processo educacional, desde os níveis elementares.

Terceira conclusão: a música é um poderoso catalisador


catalisador da atividade social

Viu-se que a capacidade que a música tem de nos emocionar talvez


remonte aos primórdios da afetividade, dos “gritos primais de desespero”
em busca do calor e conforto maternos (PANKSEPP; BERNATZKY, 2002, p.
143). Os autores explicam ainda que,

(...) nossa habilidade cerebral para ressonar emocionalmente


com música tem uma profunda e multidimensional história
evolucionária, incluindo vertentes relativas à emergência da
comunicação intersubjetiva, estratégias para a seleção de um
companheiro, e a emergência de processos regulatórios para
outras dinâmicas sociais, tais como aquelas vinculadas à
coesão do grupo e à coordenação de atividades.92
(PANKSEPP; BERNATZKY, 2002, p. 139)

Os sujeitos da pesquisa vivenciaram e manifestaram, com toda


clareza, a constituição dessa coesão de grupo e, o quanto isso os impactou,
do mesmo modo que nos impactara em nossas origens ancestrais.

Panksepp e Bernatzky conduziram uma pesquisa com estudantes


americanos, sobre a escuta de músicas consideradas tristes ou alegres por
eles ; sua intenção era estudar por quanto tempo os efeitos de alteração de
humor provocados pela música permaneceriam após a escuta. Através de
uma série de estratégias previstas e controladas, os sujeitos
permaneceriam, após a escuta, num certo estado de isolamento, o que
evitaria possíveis distrações. Sintetizando, esse estudo concluiu que,

92
Tradução da autora.
227

Música feliz eleva os sentimentos de felicidade, música triste


eleva os sentimentos de tristeza. Para ambas, os efeitos do
humor foram significativamente mais altos imediatamente
após a música; e eram ainda significantes ― mas também
significativamente diminuídos ― dez minutos após. As
mudanças induzidas pela música tinham declinado para níveis
pouco significativos após vinte minutos.93 (PANKSEPP;
BERNATZKY, 2002, p. 145)

Avaliando criteriosamente, o resultado da pesquisa dos autores


incentiva a utilizar a estratégia de Sentipensar com música, pois o tempo de
declínio dos efeitos da música – vinte minutos aproximadamente – é mais
que suficiente para gerar, em sala de aula, uma discussão criativa em torno
de algum tema de interesse; e isso, certamente, ocorreu na experiência dos
sujeitos da presente pesquisa.

Quarta conclusão: a música tem a propriedade de alterar estilos cognitivos

Ao iniciar esta pesquisa, intimamente, estava convencida de que os


benefícios da Escuta Musical estariam, praticamente, todos ligados aos
efeitos de transferência. É certo que a música, enquanto linguagem
estruturada, pode produzir efeitos de transferência, a exemplo do efeito-
Mozart e alterações na cognição como visto anteriormente no Capítulo 4.
Porém, além de efeitos de transferência, existem outros fatores que afetam
a modulação do estilo cognitivo através da música; Panksepp e Bernatzky
(2002, p. 134) chamam a atenção para a correlação existente entre certos
padrões de nossa vida interior e os padrões dinâmicos da sintaxe musical –
a exemplo de movimento e repouso, de tensão e relaxamento, entre outros.
Zatorre (2005, p. 313) fortalece tal idéia ao conjecturar:

93
Tradução da autora.
228

(...) a habilidade para organizar um conjunto de palavras numa


sentença com significado e a habilidade para organizar um
conjunto de notas numa melodia bem estruturada poderiam
engajar mecanismos cerebrais de forma semelhante.94

Panksepp e Bernatzky (2002, p. 140) acrescentam que a retenção de


uma informação é melhor, “quando codificada no contexto dinamicamente
rico das estruturas musicais, um efeito evidente mesmo em crianças com
retardo mental”95; talvez por isso se utilizem tantas canções na educação
escolar, nos cursinhos e na campanha eleitoral; além das possíveis
correlações sintáticas; naturalmente, o apelo emocional da música fortalece
ainda mais tais estratégias.

No entanto, nada parece ser mais decisivo para as relações entre


música e cognição do que a propriedade que a música tem de afetar o
humor, induzindo sentimentos positivos e, dessa forma, promovendo a
melhoria de nossa eficiência cognitiva, conforme comprovam os estudos de
diversos autores analisados. Nos estudos descritos por Ashby viu-se que, a
partir da vivência de sentimentos positivos, as pessoas desenvolvem
habilidade para lidar com perspectivas cognitivas pouco usuais; a
flexibilidade e o fluxo de pensamentos se elevam, assim como a fluência
verbal, abrindo caminho para a criatividade e para a solução inovadora de
problemas. Com sentimentos positivos, “o pensamento é flexível, portanto,
aspectos usuais ou não usuais dos conceitos se tornam acessíveis”96.
(ASHBY, 1999, p. 531) Na hipótese de Ashby, tal flexibilidade cognitiva se
associa à liberação de dopamina no cérebro, o que causa a experiência de
bem-estar.

94
Tradução da autora.
95
Tradução da autora.
96
Tradução da autora.
229

Nunca é demais reforçar que todo esse processo decorre da


integração de processos corporais e mentais; quando a escuta desencadeia
alterações neurofisiológicas, concomitantemente, se alteram as funções
autônomicas, levando a modificações no estilo cognitivo, ou seja, mudanças
na forma específica de manifestação do pensar. Segundo Damásio
(DAMÁSIO, 2004, p. 92), a essência do sentimento é constituída pela
percepção de um certo estado do corpo, acompanhado pela percepção de
pensamentos com certos temas e pela percepção de um certo modo de
pensar:

(...) quando temos a experiência de um sentimento positivo, a


mente representa mais do que bem-estar, a mente representa
também bem-pensar. A carne funciona harmoniosamente, é o
que nos diz o espírito, e a nossa capacidade de pensar está
assim enriquecida. Por outro lado, sentir a tristeza não diz
respeito apenas ao mal-estar. Diz respeito também a um
modo ineficiente de pensar, concentrado em torno de um
número limitado de idéias de perda. (DAMÁSIO, 2004, p. 96)

Damásio explica ainda, que os sentimentos são percepções como


quaisquer outras percepções, no entanto – constatação importante –, o
objeto desencadeador de um sentimento está sempre no interior do próprio
corpo, enquanto que os objetos competentes desencadeadores de
percepções – como, por exemplo, na percepção auditiva – são, em geral,
provenientes do ambiente. Na Escuta Musical, esse fato tem bastante
importância, pois o objeto desencadeador do sentimento - o estado do
corpo - pode ser constantemente modificado no processo; “o cérebro pode
atuar diretamente sobre a estrutura do objeto que está em vias de
perceber” (DAMÁSIO, 2004, p. 99), caracterizando um processo circular e
recursivo. Existe naturalmente uma ligação entre o estímulo externo – a
230

música – e a emergência do sentimento, porém, essa ligação é mediada pelo


estado do corpo (estímulo interno) resultante da Escuta Musical.

Resposta à pergunta de pesquisa

Com base na análise dos dados coletados junto aos sujeitos e nas
pesquisas que fundamentam tais dados, é possível concluir que, o
sentimento desencadeado pela E scuta M usical, efetivamente,
favorece a capacidade de reflexão.

As relações entre o sentimento e o pensamento reflexivo são


mediadas por diversas instâncias: pela resposta de relaxamento, pelo
controle do estresse, pela fruição de emoções – que modulam a regulação
homeostática e a atividade cerebral – e, pelo efeito benéfico e catártico de
ser parte integral de um grupo, com conseqüências neuropsicológicas
importantes; todas essas instâncias conduzem a estados altamente
prazerosos de bem-estar, ou seja, sentimentos positivos diversos, que por
sua vez, afetam positivamente as funções cognitivas que dão suporte a todas
as operações mentais – a exemplo de memória, atenção, percepção –
culminando na capacidade de pensar adequadamente.

É possível concluir também, que, o efeito de incremento cognitivo


observado no contexto dessa pesquisa, não se deve exclusivamente aos
benefícios da Escuta Musical – ainda que esta tenha sido uma etapa
essencial – mas sim, à sinergia existente entre as diversas etapas do
processo inicial de aula: 1. Reunião do grupo; 2. Concentração; 3.
Alongamento; 4. Relaxamento; 5. Escuta Musical Sensível; 6. Despertar.
Provavelmente, se realizássemos apenas as quatro primeiras etapas, se
fariam sentir efeitos no desempenho cognitivo, talvez menos intensos. Esse
231

primeiro momento da aula – iniciando em círculo, de mãos dadas e sentindo


a conexão com o grupo – poderia constituir, em si, uma estratégia de
Sentipensar baseada na conexão afetiva entre as pessoas, o que, por sinal,
foi muito valorizado pelos sujeitos.

No entanto, a partir do quinto momento, todos esses efeitos foram


significativamente amplificados, com base nas propriedades específicas da
música – algumas delas evolucionárias –, o que a torna uma poderosa
mediadora no incremento da atividade reflexiva, como visto. Resulta que a
escuta em si, não seria suficiente para garantir a validade do procedimento
como uma estratégia de Sentipensar; caso fosse proposta de forma simples
e desconectada, o conjunto de atitudes que acompanham a Escuta
Musical é tão importante quanto ela própria.
própria Um forte amálgama une
as etapas do processo – reunião do grupo, concentração, alongamento,
relaxamento, escuta musical sensível e despertar – constituindo um
organismo,
orga nismo, um sistema dinâmico, difícil de avaliar, quando
desintegrado.
232

Consideraçõ
Considerações
ções Finais

A integração das dimensões do ser humano

A cisão cartesiana entre corpo e alma está na base de tantas outras


cisões que caracterizaram nosso processo civilizatório. O cientificismo nos
ensinou que, somente as disciplinas naturais e matemáticas eram confiáveis
por serem “objetivas”; as humanidades foram desprezadas, e com elas, a
subjetividade humana. O que era científico foi elevado à categoria do
inquestionável; o humano, descartado; a reflexão, separada da experiência
sensível; o diálogo - entre filosofia, religião e ciência - encerrado; assim, as
esferas objetiva e subjetiva da experiência humana ficaram, indelevelmente,
desunidas:

Todo conhecimento, além do científico, foi afastado para o


inferno da subjetividade, tolerado no máximo como
ornamento, ou rejeitado com desprezo como fantasma, ilusão,
regressão, produto da imaginação. A própria palavra
‘espiritualidade’ tornou-se suspeita e seu uso foi
praticamente abandonado. (BASARAB, 2005, p. 23)

Uma nova visão filosófica para a Educação e, de forma mais


abrangente, para a vida em sociedade, tem por pré-requisito o resgate do
todo, o que significa reintegrar o ser humano em todas as suas dimensões,
da fisiologia à transcendência, do corpo à alma, da emoção à razão.

Cabe aqui lembrar, uma vez mais, aquilo a que Damásio denominou “o
erro de Descartes”, e concordar com ele quando diz que,

(...) a mente teve primeiro de se ocupar do corpo, ou nunca


teria existido. De acordo com a referência de base que o
corpo constantemente lhe fornece, a mente pode então
233

ocupar-se de muitas coisas, reais e imaginárias. (DAMÁSIO,


2000, p.17)

Schreiber (2004, p. 33) corrobora as observações de Damásio: “o


cérebro emocional está (...) mais intimamente relacionado ao corpo do que
ao cérebro cognitivo”, por isso é muito mais fácil acessar as emoções pela
via corporal do que pela linguagem verbal; e, eu complementaria, por isso o
corpo permanece ausente da sala de aula. A dimensão emocional dá um
passo decisivo na valorização do ser humano integral; abre caminho para o
bem-estar pessoal, para a experiência do corpo e para estados prazerosos
que tanto afetam as condições da percepção, da reflexão, da integração ao
grupo, da criatividade e, logicamente, do processo de ensino/aprendizagem.

O esvaziamento da experiência

Como visto anteriormente, por influência de um conjunto de doutrinas


do pensamento – iluminismo, determinismo, mecanicismo e positivismo,
entre outras – plasmou-se uma visão de mundo desprovida de qualquer
sentido metafísico. Os postulados da ciência clássica haviam excluído o
sujeito do horizonte; a necessidade de objetividade, o desejo de chegar ao
“dado concreto”, ao “fato científico”, a necessidade de uma pretensa
neutralidade, levaram a ciência a um esvaziamento humano; esquecemos
que “toda teoria é sempre uma construção do espírito humano”97 e que toda
objetividade será sempre “objetividade-entre-parênteses” (MATURANA,
2002).

97
Perspectivas teórico-epistemológicas da complexidade e suas implicações na pesquisa educacional,
de autoria de Maria Cândida Moraes e Armando Valente, a ser editado pela Papirus, 2008.
234

A conseqüência do esvaziamento humano não se fez sentir apenas na


ciência, mas também, em cada detalhe da vida prática; pouco a pouco, fomos
perdendo o contato com o ser interior; as coisas da subjetividade passaram
a ser vistas com desconfiança, a esfera noológica do ser foi excluída,
juntamente ao que há de mais temível: mitos, fantasmas, sonhos (MORIN,
2005, p. 410). Na atualidade, vivendo um ápice de mal-estar social, nos
perguntamos o que fazer e como nos reencontrar.

Por isso pergunto, acompanhando o pensamento de Csikszentmihalyi


(1992, p. 33): “Qual seria o motivo de, a despeito de termos atingido um
progresso milagroso nunca antes sonhado, parecermos mais indefesos
frente à vida do que nossos ancestrais menos privilegiados?”, e também
respondo com ele: “embora a humanidade tenha, como coletividade,
aumentado seu poder material em milhares de vezes, ela não avançou muito
no sentido de aprimorar o conteúdo de sua experiência.”

Muito se tem falado sobre a mente, sobre as incríveis capacidades


cognitivas do cérebro, e de quão pouco as utilizamos. A ruptura existente
entre corpo e mente talvez seja a responsável por isso; responsável por
nosso fracasso em utilizar plenamente os recursos que nos foram dados
pela natureza. Nesse sentido, alinho-me plenamente à crítica de Varela
(VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 34) sobre a fenomenologia, que
poderia se estender ao pensamento filosófico ocidental como um todo:

Husserl então deu o primeiro passo do cientista reflexivo: ele


afirmou que para compreender a cognição, não podemos ver o
mundo ingenuamente, mas devemos vê-lo, ao contrário, como
possuindo a marca de nossa própria estrutura. Ele também
deu o segundo passo, pelo menos parcialmente, percebendo
que aquela estrutura (o primeiro passo) era algo que ele
estava conhecendo (cognizing) com sua própria mente.
Entretanto, no estilo filosófico da sua tradição ocidental, ele
235

não deu os passos posteriores (...). Ele começou com uma


consciência individual solitária, assumiu a estrutura que
estava buscando como sendo inteiramente mental e acessível
à consciência em um ato de introspecção abstrata e filosófica,
e a partir daí teve grande dificuldade em gerar o mundo
consensual e intersubjetivo da experiência humana.

Varela descreveu como a fenomenologia, apesar de insistir no resgate


da experiência humana vivida, afastando-se da “atitude natural”98, caiu na
armadilha do racionalismo, e pretendeu explicar o mundo tangível somente a
partir de estruturas da consciência, afastando-se mais ainda da experiência
direta. O mesmo acontece em sala de aula; nos afastamos da experiência
vivida, abstraímos, teorizamos, falamos sempre muito e ensinamos nossos
alunos a agir da mesma maneira. Não resta um pequeno espaço sequer de
tempo ou atenção para qualquer coisa que não seja “estudar”, na concepção
mais mecânica, reducionista e desincorporada que a expressão possa ter. O
antídoto proposto por Varela para esse estado de coisas é a meditação
atenta da tradição budista, enquanto que o antídoto que proponho é
precisamente a Escuta Musical, emergindo – com o conjunto de atitudes que
ela desenvolve – como poderoso instrumento para o Sentipensar.

98
A atitude natural consiste na convicção de que as coisas são como parecem ser, e que o mundo é
independente da mente e da cognição do indivíduo que o percebe.
236

A reintrodução de estratégias criativas na formação

(...) o maior problema epistemológico de nossa cultura: a


extrema dificuldade que temos de lidar com tudo aquilo que é
subjetivo e qualitativo.
Humberto Mariotti

Ao fazer uma análise retrospectiva de minha vida, como aluna e como


professora – em especial, até antes do que considero minha mudança de
paradigma –, pude perceber que o aluno é concebido na ilusão da
simplicidade; não há uma visão integradora que busque retirá-lo da
unidimensionalidade; o aluno é concebido como um intelecto, não como um
corpo sensorial de onde brotam emoções sentimentos e subjetividade; a
dimensão privilegiada é sempre a da racionalidade. Numa visão abrangente,
passaríamos a ver o aluno como um tecido complexo, multidimensional e
contraditório; um ser individual, por certo, mas que traz em si a marca da
sociedade que o engendra; um ser, ao mesmo tempo apolíneo e dionisíaco,
um ser complexo, que exemplifica em si o paradoxo do uno e do múltiplo,
como diria Morin (2002, p. 55).

Como podemos nos aproximar desse ser? O que a escola pode fazer
por ele? Com certeza pode fazer muito, desde que se abra para um
pensamento complexo e transdisciplinar, e que, por coerência metodológica,
adapte seus métodos e estratégias a essa nova necessidade.

A tarefa não é fácil, pois exige mexer no senso comum e transcendê-


lo, e se perguntar, a cada dia, se não há formas mais adequadas para se
fazer o que vem sendo feito. Exige levar, para a sala de aula, tudo aquilo
que ainda enfrenta tanta resistência: emoção, dialogicidade, compreensão, o
237

corpo, a criatividade, a escuta sensível (em suas duas acepções); exige


mexer no espaço (interno e externo), criar beleza e, ainda, expandir-se
para outros espaços que também podem tornar-se “a sala de aula”. A sala
de aula tradicional, há muito se afastou desse tipo de experiência
transcendente, na qual o indivíduo encontra espaço para a plena expressão
e criação, onde a partir de um momento como esse, tudo pode acontecer; as
relações afetivas se fortalecem, assim como a auto-estima e a
autoconfiança. “É o momento ideal para se fazer coisas. É por isto que o
docente deve perceber e aproveitar esses momentos, pois são os mais
valiosos para se obter as aprendizagens desejadas.” (MORAES; TORRE,
2004, p. 71)

É claro que estamos falando de aprendizagem integrada; um tipo de


aprendizagem que, através de suas características abertas –
multissensorialidade, impacto emocional, ambientes e climas especiais,
caráter inferencial e criatividade – pode atender à coerência metodológica
que toda essa transformação exige.

O curso de Didática do ensino musical tornou-se, durante essa


pesquisa, um espaço privilegiado para a aprendizagem integrada, tanto no
que concerne à variedade das estratégias – tocar instrumentos, improvisar,
produzir composições coletivas, assistir filmes – quanto à utilização do
espaço: as aulas ocorreram, em sua maioria, na sala de aula, mas também no
pátio e na entrada da escola, experiências extraclasse foram discutidas com
empenho no processo de elaboração do portfólio da disciplina. A ampliação
de espaços externos colaborou na ampliação de espaços internos, levando
ao crescimento pessoal e profissional. Por tudo o que se discutiu até agora,
é de se acreditar que os sujeitos levarão consigo as experiências vividas,
238

incorporando-as na experiência profissional, como confirma um deles,


referindo-se à estratégia inicial da aula: “Eu tenho pena porque eu cheguei
atrasada em muitas aulas, eu perdi essa parte inicial, que pra mim é
fundamental (...), estou saindo da faculdade este semestre (...) isso foi o que
mais valeu a pena de eu ter feito aqui dentro”.

A presença do impacto emocional é a marca da aprendizagem


integrada; esta, só pode ter lugar a partir da inclusão do corpo no processo,
o que não significa exatamente incluir o movimento e a dança em sala de
aula (apesar de ser uma possibilidade factível), pois, o corpo pode adentrar
a sala de aula de formas sutis: o corpo está presente a cada vez que se
atenta para a respiração, ou que simplesmente é ouvido; está presente
quando se abre espaço para atividades “subversivas”, como o relaxamento
e a meditação; o corpo está presente quando se toca outro corpo e quando
somos tocados99; está presente quando permitimos seu movimento, seja
através da yoga100, do alongamento, ou quando se incentiva sua utilização
criativa através da expressão corporal e das danças circulares, que
valorizam o ser sensível e multidimensional que existe em cada aluno e em
cada professor, com inúmeros benefícios que integram fisiologia, psicologia
e sociabilidade.

Este me parece ser o momento oportuno para falar de uma estratégia


de Sentipensar, especialmente criada para as crianças por esta autora,
trata-se de Estorinhas para ouvir. Como o nome informa, são historinhas de

99
Sobre esse assunto é imprescindível conhecer o maravilhoso livro de Ashley Montagu TOCAR – o
significado humano da pele, indicado na bibliografia.
100
Vale a pena conhecer o importante trabalho que vem sendo realizado pela R. Y. E. – Recherche de
Yoga dans l’Education, na França, sob a coordenação de Micheline Flak, com extensões em toda a
América Latina; no Brasil, através da Universidade Federal de Santa Catarina. Este movimento
trabalha com a proposta de inserir exercícios simples de Yoga no espaço convencional da sala de
aula, com resultados mais do que compensadores. Vide sites: http://rye.free.fr;
www.ced.ufsc.br/yoga/cadernos.htm.
239

curta duração, narradas expressivamente para as crianças de maneira a


possibilitar-lhes a aprendizagem da escuta, no caso a Escuta Musical; as
histórias são sempre introduzidas por um momento de relaxamento e
concentração que permite às crianças tomar contato com seu mundo interior
e valorizar o silêncio. As historinhas fazem forte apelo ao imaginário e
contêm sempre um momento para silenciar que faz parte da história; nele, a
atenção é focalizada para a escuta da música sugerida. (Ouça anexo 6)

As historinhas têm sido utilizadas por professores de música e da


escola regular como uma estratégia didática diferenciada para introduzir o
dia de aula. Os professores relataram inúmeros benefícios de sua aplicação:
tranquilização e relaxamento das crianças, participação na história com
dados do imaginário, melhoria das relações afetivas e aumento da
produtividade em sala de aula.

Todas estas estratégias – tão insólitas quanto prazerosas – deveriam


fazer parte da formação escolar, não somente na educação infantil, mas em
todos os níveis, e como é bastante lógico e coerente, deveriam fazer parte
da formação do professor, tanto no que concerne à sua teorização quanto no
que concerne à sua vivência prática.

Chegando ao final dessas reflexões, creio ter argumentos para poder


afirmar que a Escuta Musical é uma estratégia de aprendizagem integrada,
ao lado de várias estratégias indutoras de estados emocionais positivos, a
exemplo de relatos, textos poéticos, filmes, dramatizações, etc. Porém, leva
uma vantagem sobre outras estratégias: seu acesso ao nosso cérebro
límbico é direto, sua capacidade de emocionar não exige filtros conceituais.
Panksepp e Bernatzky ilustram, nessa fala, o poder que a música tem de
atingir nossas regiões mais íntimas (2002, p. 139):
240

(...) muitos aspectos dinâmicos da música provavelmente


ganham acesso ao sistema emocional humano quase
diretamente sem a necessidade de serem processados
proposicionalmente. (...) Dessa forma, podemos apreciar
porque muitos processos cerebrais/mentais (por ex., nossos
sentimentos mais íntimos) difíceis de comunicar em meras
palavras podem ser mais facilmente expressos em música.
241

Epílogo

Uma “estorinha” que encerra este


escrito e abre um portal para toda
uma outra história...

A árvore sonhadora
Tatiana Clauzet
242

Estória da Estrelinha

“Era uma vez um garotinho que adorava a noite porque o céu


ficava cheio de estrelinhas brilhantes que cintilavam...

O que ele mais queria era poder pegar uma delas e


guardá-la dentro de uma caixinha para poder ver sua luz
também durante o dia.

Mas...o céu era muito alto, muito longe...e o menino não


tinha uma nave espacial que o levasse...Por isso, um dia estava
triste à janela e disse à sua mãe: - Mamãe, estou triste, não
posso pegar uma estrela do céu e guardá-la nesta caixinha para
ver sua luz também durante o dia...A mãe então respondeu:

- Filho, você não pode pegar uma estrela do céu, mas


pode ouvir sua voz, se ficar bem quietinho, fechar os olhos e
prestar bastante atenção, ouça...

O menino então se deitou, fechou os olhos, ficou bem


tranqüilo e...ouviu a voz da estrelinha...”

Entra a música e a história continua...


243

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Paulo Freire em forma de programa de rádio.)
250

ANEXOS

ANEXO 1 – “A Música do Grupo”


Grupo” (Áudio)

ANEXO 2 – Relação das musicas utilizadas na estratégia de Escuta


Musical durante a pesquisa

1. Murray Schafer – Miniwanka – obra vocal para coro misto a quatro vozes.
2. Murray Schafer – Snowforms – obra vocal para coro misto a quatro vozes.
3. Cantos Tradicionais Maronitas – música litúrgica russa, de origem bizantina,
canta a uma só voz.
4. As Grandes Vozes Búlgaras – cantos tradicionais búlgaros executados por
exóticas vozes femininas.
5. H.J. Koellreutter – Ácronon – obra contemporânea para pequeno grupo
instrumental, que utiliza diversos procedimentos aleatórios e improvisação.
6. Witold Lutoslawsky – Jogos Venezianos – obra orquestral contemporânea,
utlizando procedimentos composicionais de vanguarda, a exemplo de campos
aleatórios.
7. Canto Gregoriano – Os tons da Igreja – canto monódico da igreja cristã.
8. Fernando Sardo – Bambuzais – música experimental brasileira que utiliza
instrumentos construídos pelo próprio compositor.
9. Celtas...reminiscências – música para harpa celta de caráter intimista e
repousante, executada por Cássia Doninho.
10. Flauta Shakuhachi (flauta de bambu) – música tradicional japonesa, utilizada em
rituais Zen, a partir do século XIV.
11. Gagaku – Etenraku – gênero musical instrumental do Japão muito antigo (a
partir de II d. C)
12. Ihu – Todos os Sons – coletânea com cantos de diversas tribos de índios
brasileiros, pesquisados, agrupados e adaptados por Marlui Miranda.
13. Ihu – Kewere: rezar – obra que reúne cantos de pajés de tribos brasileiras e
versos cristãos de José de Anchieta, acomodados numa forma musical
específica – a missa – a partir de um projeto idealizado por Marlui Miranda.
14. Vivaldi&Pixinguinha – Concerto Grosso op. 3 nº 11, executado por uma
formação instrumental típica do chorinho brasileiro, com arranjos lindos de
Radamés Gnatalli.
15. New World Brasil – coletânea de música experimental brasileira reunindo
trabalhos de vários artistas interessados na pesquisa de novos sons e músicas
étnicas, a exemplo do Grupo Uakti.
16. Meu Neném – encantadoras cantigas de ninar executadas na Kalimba por Décio
Gioieli.
17. Serge Folie – Kyrie ( 1ª parte da missa) – obra contemporânea com harmonia e
ritmo inusitados para o gênero, cuja melodia de rara beleza é entoada por uma
voz infantil.
251

ANEXO 3 - Transcrição da
da fita da avaliação final do curso de Metodologia do Ensino
Musical II
FACULDADE DE MÚSICA CARLOS GOMES - junho de 2006

Proposta avaliativa do curso:

O grupo havia vivido um processo intenso de convivência e estudo das pedagogias


musicais, ao longo de dois semestres. A gravação que segue abaixo foi uma forma de
avaliação encontrada que pudesse abrir espaço também para o não verbal e o artístico que
tantas vezes fica relegado a segundo plano, apesar da natureza artística do curso.

A avaliação iniciou-se a partir da seguinte questão:


Caso o curso que estamos terminando fosse uma música, que música seria?

Enny - Vamos organizar, se não, não dá tempo. Você se importa de começar de novo?
Você falou que seria uma surpresa a cada compasso, que ela poderia ser paradoxal, não
linear, pode continuar...
Matheus – ela pode ser livre, ou baseada num contexto, independente da situação, ela pode
ter expressividade, tanto num caráter forte como mais tranqüilo dependendo do que é
proposto aqui, é uma visão bem simples, geral, né? É o que a aula me passa, o curso me
passa. E também, a oportunidade de crescer.
Enny - hahã...
Liebe – e... a música que você mostrou pr’a gente, é uma do Murray Schafer, aquela
partitura, eu acho que é...eu acho que seria ela, tá?
Enny - hahã...
Liebe - porque é uma partitura livre, porém um pouco assim calculada, referenciada,
interessante, acho que é isso, acho que foi uma música perfeita.
Enny - uma obra prima
Liebe - preciso gravar...
Jaques – eu li que ele fez olhando pela janela, uma paisagem, num dia de neve...
Matheus – eu também poderia dizer que essa música não só a do Schafer, mas também uma
que você colocou que foi do Koellreutter, acho que...vai bem também, pode entrar nesse
baú aí de música.
Enny - por que?
Matheus – porque eu achei ela muito expressiva, né? Ela tinha assim aspectos,
determinados momentos que ela era forte, extremamente forte, aí ela caía num vazio,
tranqüilizava, era paradoxal mesmo, de um pólo ao outro.
Enny - a estética relativista do impreciso e do paradoxal...
Giba – eu queria tentar lembrar essa frase, como que é?
Enny - é o nome da estética dele: estética relativista do impreciso e do paradoxal. Quem
mais fala que música seria?
Jaques – eu penso numa forma, eu penso na Suíte, porque eu acho que foram...prá começar
eu não vejo, eu não achei que foi caótico, eu acho que foram pequenos lances mesmo
encadeados, todos no mesmo tom, alguns movimentos mais acelerados, outros mais lentos,
mas eu acho que a tônica do semestre se manteve, assim, teve uma coloração meio única
do grupo, que eu acho que é bacana, dá um caráter de unidade.
Enny - é, coesão, né?
Giba – tinha que ser... pode ser uma música normal?
Risos.
252

Enny - a sua música, a que você ligaria a esse semestre.


Jaques – vem um Jazz, aí... (risos)
Giba – vou dar uma de metido...
Enny - qual?
Giba – vou dar uma de metido, posso tocar uma música?
Comentário geral, brincadeiras
Jaques – Gostei da idéia...
Giba – eu acho que é essa (e se senta ao piano)
O Giba toca “Começar de novo” de Ivan Lins e esse é um momento de intensa emoção para
o grupo, todos choram e ao final começam a cantar juntos as últimas frases da música.
Matheus – matou giba !
Enny - matou, né?
Matheus – passou um filme dentro da tua cabeça agora, né Enny?
Enny - é passa...é que a gente também está conversando sobre o processo do Giba, né? e,
se é isso mesmo, começar de novo...
Giba – nossa, depois eu te conto...
Orlando – a gente fica meio sem palavras, né? prá descrever um momento desse, eu acho
fantástico isso...
Matheus – esse momento foi de extrema sensibilidade, Giba, obrigado...
Giba – vocês também, prá crescer tem que crescer junto não é individual.
Enny - e quem mais vai dizer que música foi esse semestre?
Segue-se um grande silêncio.
Paulio – Enny esse curso é assim...um samba assim...a galera, pinta uma escola vai
andando, o samba vai andando, todo mundo vai, eu fico ali, eu fico dançando, aí de repente
eu vou lá, pego um tamborim, faço um som, aí volto, aí fico olhando, aí olho os caras assim
tocando, aí vou lá, a música vai, pego um prato aí fica grande, ah!! aí volto, aí vou lá fazer
um som, volto, danço, tomo uma... (muitos risos durante toda essa fala)
Jaques – é isso aí, né? assim, eu me comprometo sem me comprometer, me envolvo sem
me envolver...ótimo...( mais risos)
Paulio – tem uma “harmona” também (harmonia mUsical)
Matheus – harmona?
Paulio – uma harmona rolando aí, tem que ter
Matheus – sem harmona não dá cara...
Paulio – toda 3ª feira de manhã...eu já venho assim, quando chego aqui, chiuuuu (faz um
som de viagem)
Rodrigo – prá mim foi vários tipos de música também, professora. Eu...eu senti que eu
cresci e muito com o primeiro semestre e o segundo semestre de metodologia, foram
várias aulas que fez com que eu desenvolvesse métodos, que eu enxergasse de outra
forma, tanto é que até os meus próprios alunos sentiram muita diferença. Então, como eu
estava num mundo, e...aquilo foi rompido, foi estourado, aí o que aconteceu, eu acabei,
eh...usando tudo que eu aprendi aqui, principalmente com a professora que fez a gente
olhar de outra forma, não vir e depositar, né? como Paulo Freire fala, “vem, deposita, é
isso, tchau”, não é bem assim, então, eu acho que essa é a essência, entendeu? São várias
músicas, e eu colocaria um paralelo que eu já fiz, que aconteceu da mesma forma, com
banda de baile, porque você é obrigado a tocar tudo, você interpretar da sua forma, que são
vários tipos de ritmo, vários tipos de música, mas um fundamento só: terminar
satisfatoriamente, terminar com sucesso. Eu acho que o objetivo também é esse desde a
forma de você começar até terminar com sucesso, só que é uma coisa que...terminar
simbolicamente porque nunca vai terminar, é uma coisa que vai estar sempre ao nosso
253

redor, eu vou estar sempre envolvido com isso, mesmo não estando presente nas aulas, não
tendo mais as aulas, vai fazer com que, já foi plantado na minha cabeça que a visão que eu
preciso ter em termos da educação ou em termos de música já é outra, então eu colocaria
essa aula de metodologia de ensino tanto a I quanto a II, peso maior prá mim. Foi muito
legal, principalmente, o que me chamou a atenção que foi os relaxamentos, que não temos
outra aula que faça relaxamento, é você buscar voce mesmo, seu interior, você não tem
isso no dia a dia, e isso é muito valorizado...

Orlando – eu senti muito isso também, professora, o dia quando começa com um momento
como esse parece que tudo flui, né? prá que dê tudo certo, e isso é legal...
Paulio – é mais fácil, o dia começa com batucada, chega com um tamborim fica treinando, aí
galera !! quando é que vai começar?...
Rodrigo – Cada um tem a sua interpretação mas tudo é lógica só, é exatamente isso é o
crescente...
Orlando – momentos assim de relaxamento de tensão, de emoção como a gente sentiu
hoje...
Rodrigo - são as dinâmicas...
Orlando – pra mim assim foi, foi uma lição de vida mesmo, aprendi bastante, sinto que o
tempo foi pouco porque é muita coisa pra gente estar lendo e correndo atrás, mas a gente
já sabe onde procurar, isso é importante, embora não tenha dado tempo de ver tudo, se
você quiser saber um pouco daquilo você sabe onde procurar, né? e isso é bem legal. Prá
mim foi. Está sendo, né? um aprendizado muito bom. Eu ainda não consegui relacionar com
uma música...
Enny - e você Adriana? Eu perguntei se nosso curso fosse uma música que música seria, e
é isso que o pessoal está respondendo...vai pensando.
Paulio – a festa da Ivete...
Adriana – eu tenho que pensar melhor prá saber que música, mas eu senti assim que as
coisas que você fala, que você pega, se aplicam nessa aula, e isso é legal porque o discurso
não é dissociado da prática; e isso que o Orlando falou de ter uma aula com emoção, uma
aula com relaxamento, onde o corpo é integrado no ser, é não está só um intelecto aqui, não
tem só um monte de cabeças pensando, essa é a avaliação final, que música que
representa? Acho que fecha com chave de ouro. Prá mim foi muito legal desde a I também,
principalmente pelo processo que eu estou vivendo, eu comecei a dar aula agora prá
criança, uma coisa que prá mim é inédita, e... e eu comecei a caminhar – até escrevi um
pouco disso no portfólio- com uma experiência que eu já tinha que foi dos registros que eu
fazia no outro curso de enfermagem, que era de estar registrando sempre minha atividade,
depois analisando o que tinha sido bom, e o que é que não tinha sido, e a partir daí,
construindo um conhecimento e um pensamento em cima, então, por isso eu coloquei no
meu portfólio que eu acho que a Madalena Freire, no primeiro semestre foi legal, eu já
conhecia, não exatamente por ela, por um outro autor, mas eu, me colocando no lugar dos
meus colegas, se eu estivesse aqui e eu fizesse esse caminho, eu estaria aonde eu estou,
eu acho que foi um pouco o que o Mateus fala de não dar o peixe mas ensinar a pescar.
Porque a gente poderia ter tido várias técnicas de...fazer pedagogia e de...mas não foi
assim, foi uma coisa mais profunda, uma coisa que você não deu a receita do bolo, pronto:
dois kilos de açúcar, não, mas a gente foi construindo com essas outras coisas mais
profundas então o que eu tiro da minha prática é que eu comecei a fazer de novo esse
registros, e depois, com essa leitura desse pedagogos, desde o Paulo Freire até os
musicais mesmo que a gente trabalhou, eu fui montando, isso foi subsidiando mais ainda o
meu jeito de dar aula. E está acontecendo de uma forma super legal, e tenho certeza que
254

essas duas, tanto a I quanto a II, me ajudaram a ter segurança nesse caminho e a estar
construindo assim. Então, não sei se fui muito subjetiva, mas é isso que eu levei do curso.
Enny - quem não é subjetivo, né?
Adriana - e o portfólio foi... eu achei muito legal, eu não tinha tido essa experiência, eu
estava lendo, até o Piaget fala que tudo o que a gente pensa deveria ser escrito, tanto que
ele tem mais de cinqüenta livros, e o portfólio foi uma experiência assim , as coisas iam
acontecendo, e, coisas que antes eu deixava passar, eu comecei a escrever a colocar nesse
portfólio, e isso ia aumentando o conhecimento começava pequeno, daí a pouco ele estava
gigante, aí no outro dia maior ainda, maior ainda, e...eu fiz um projeto de mestrado faz uns
três anos, e eu tive dificuldade, porque o texto não saía, né? ele não corria, estava truncado
e no porfólio não foi assim, foi muito tranqüilo, fácil, e aí eu comecei a pensar que se
alguma vez eu quiser tentar o mestrado de novo, eu acho que foi um super exercício
porque as coisas começaram a fluir, as experiências que...as coisas que a gente fazia na
sala de aula, as pessoas que a gente estava estudando, estava lendo, agora os meus livros
são cada vez mais rabiscados, eu estou sempre com o lápis em punho, eu durmo com o
lápis do lado. Eu tenho pena porque eu cheguei atrasada em muitas aulas, eu perdi essa
parte inicial, que pra mim também é fundamental, a primeira então eu acho que prá mim
assim foi muito legal, eu estou saindo da faculdade este semestre e acho que isso foi o que
mais valeu a pena de eu ter feito aqui dentro; na minha formação na UDESC por exemplo
eu tive didática, mas foi completamente diferente, foi sobre os pensadores, desde o Dewey
até vários pensadores da educação, foi bacana, foi legal, mas só que aqui foi uma coisa mais
profunda, eu acho, e de buscar...buscar o nosso jeito, é isso que eu achei legal, porque até
as últimas aulas foi sobre os blocos de conteúdo de cada um e eu fiquei pensando, nossa!
eu acho que isso deveria ter mais tempo.
Enny - é que isso é até uma outra disciplina, né? É a organização curricular, eu que fiquei
com vontade de dar uma passeada nisso...
Adriana – Eu achei que foi ótimo...
Jaques – tem essa disciplina aqui?
Enny - Tinha na Pós-graduação.
Adriana – aí no início eu lembro que você perguntou se a gente preferiria estudar os
pedagogos ou estudar a partir da nossa prática, né? e eu respondi que eu achava melhor
fazer as duas coisas, mas passar pelos pedagogos, e aí depois quando você deu os blocos
de conteúdos eu falei putz eu não sei se eu devia ter escolhido essa opção, né?
Enny - as duas coisas são importantes...
Adriana – são, mas aí no fim eu achei que ficou pouco tempo só prá essa parte
Enny - eu acho que a faculdade, seja boa ou seja ruim, é um lugar que você passa só
acendendo a luz e depois você vai procurar, é o portal entende? Quem acha que sai da
faculdade e que fechou...fecha uma gestalt, com certeza. Mas abre um portal enorme, não é
mais garantia do que quer que seja, a faculdade, é uma etapa, né?
Matheus – eu acho que, eu estava pensando assim , em termos de música né? prá mim eu
acho que uma faz muito sentido pra essa aula, uma é “brincar de viver”...
Enny - quem me chamou? ( canto), você sabe tocar?
Matheus – sei, tem umas outras duas músicas que eu acho que, eu acho, né? fazem parte do
curso, que é “Canção da América” e “Coração de estudante”
Paulio – são as mesmas de todo ano...
Matheus – é não tem...não tem como, né? sempre vem a lembrança, o que a gente está
passando hoje, o que a gente está colhendo de informação, e...tudo que você passou prá
gente, você plantou em cada um de nós alguma coisa, e eu acho interessante é que cada um
255

de nós está saindo daqui com uma visão diferente, cada um com o seu pensamento, com a
sua forma de ver, eu acho que mais ou menos seria por aí...
Matheus se senta ao piano, toca e canta “Coração de estudante”, com a ajuda de outros
colegas no canto, numa espécie de diálogo. Esse é outro momento cheio de emoção.
Matheus – é isso aí...
Todos aplaudem.
Enny - só falta você, Flávio, dizer que música é essa, que música é essa dessa aula...
Flávio – foi uma surpresa assim, eu...
Enny - não precisa ser uma música que existe...
Flávio – eu não sei o que pensar, assim...não assim é que essa aula prá mim foi assim, como
é que fala, chocante, né? a gente vem de várias aulas que a gente vai assistindo e ela é
completamente diferente, o resto é mais sério assim no sentido de...aula mesmo, isso não
parece aula, parece um convívio assim, a gente vai aprendendo, eu percebo assim que no
começo a classe, no começo assim, a gente é mais preso, e tudo... e depois vai soltando,
tanto assim – até escrevi no portfólio – em relação à improvisação o que eu percebi, que no
começo todo mundo começa mais assim preso e depois vai se soltando e vai saindo muita
coisa legal, assim, a gente vai vendo, vai conversando; eu acho que ainda estou na fase
assim de descobrir muita coisa, mas assim abriu minha cabeça, vai caminhando assim, o
jeito que a aula rola é muito diferente de tudo que eu já tinha tido, assim, e...é legal porque
a gente fica mais solto, né? aberto, e saem coisas bonitas, não tem na faculdade... não
sei...mas uma música assim prá essa aula, eu não sei o que é que podia ser...
Enny - eu proponho que voces façam agora essa música, vamos abrir o armário?
Prá mim é uma colagem, e eu estou pensando numa específica que eu vi no...não consigo
lembrar esse nome, um compositor francês que veio dar um curso na UNESP sobre a
música pós 1945, e ele trouxe uma música que era uma colagem, Beethoven colado com
música eletroacústica, claro que tinha critérios pra fazer isso, né? mas era uma riqueza
enorme de informação, de cruzamentos, de misturas, de individualidades, identidades que
se misturavam, épocas diferentes que se juntavam...
Jaques – bem o século XX, né?
Enny - é, uma idéia assim de riqueza muito grande, de diversidade e da possibilidade de
tudo isso estar junto, prá mim seria essa colagem, e essa colagem inspirada, inspirada por
tudo que há de mais humano, não é isso? Como é que a gente vai educar os outros sem
tocar na dimensão humana, é isso que me preocupa na formação de professores; como é
que nós vamos mexer na cabeça dos outros sem mexer com a nossa cabeça? Essa é a
questão.
Sirvam-se crianças ! (de instrumentos do armário), eu não vou falar nada dessa
composição, mas me coloco à disposição prá participar.
Segue-se um murmúrio geral, todos escolhendo seus instrumentos.
Enny - a idéia é a gente fazer uma música...
Giba – pode ser qualquer coisa? Pode ser colagem?
Enny - pode ser qualquer coisa, pode ser colagem...
Murmúrio geral – colagem..colagem...
A música, ou melhor, o aquecimento para ela começa no piano e outros vão se
agregando...inclusive vozes, instrumentos de plaquetas e diversas percussões.
Enny - a música já começou?
Paulio – já tá rolando...
Enny - toda música precisa ter... precisa partir de uma idéia, o Schafer para fazer
“Snowforms” partiu da observação da paisagem, e...você pode partir de uma fórmula
matemática...
256

Paulio – a gente já tem já, é a aula, e agora vai rolar, som-diversão...


Enny - é a última coisa que eu falo, não vou mais interferir.
Matheus – acho que a gente tem que começar, assim por exemplo, uma idéia...
Paulio – tem que rolar, tem que rolar, natural, natural...
Matheus – a gente tem que sentir o som, prá gente sentir o som, a gente tem que fazer
silêncio...
Enny - é o seguinte, vamos tirar o verbal da jogada, ninguém mais fala, e abre as
percepções para ver o que é que está acontecendo com o som, e antes de começar, tem
que fazer um silêncio, de olho fechado, alguém vai quebrar esse silêncio tocando alguma
coisas e a partir daí, a música vai se construindo. Mas espera, não tenham medo de curtir
um pouco esse silêncio. Fechem os olhos...
Segue-se menos de um minuto de silêncio, a música começa rarefeita e pontilhista,
predominando percussões e aos poucos outros instrumentos e vozes vão se agregando.A
música acontece durante aproximadamente 20 minutos com momentos de agregação e
desagregação sonora, ilustrando pontos de bifurcação conduzindo a resultados inesperados;
momentos poéticos, momentos sensuais, momentos diáfanos, sutileza e violência. Ao final
alguém grita “quebra tudo” e outros entram no mesmo refrão, a música cresce torna-se
criativamente caótica e termina com grande euforia gerada no grupo.
Todos – aplausos, risos e murmúrio geral
Giba – a gente acabou se empolgando acima...muito bom
Enny - é música supratemática.
Segue-se comentário geral sobre os detalhes práticos da improvisação.
Enny - eh... vocês já falaram um pouco, mas sabe o que eu queria, que a gente voltasse na
questão da estratégia inicial dessa aula, dessas escutas que a gente faz, que vocês
comentassem um pouquinho o significado disso, que é que vocês sentiram fazendo isso, e
que importância vocês acham que isso tem. Vocês já falaram mas eu só estou reforçando.
Eu queria que vocês comentassem a estratégia inicial da aula, da escuta musical, o que é
que isso traz, o que é que agrega, ou não, pode ser?
Matheus – a escuta traz uma liberdade total prá você ouvir, ter a percepção de tudo o que
está à tua volta e criar em cima disso, uma outra percepção, um outro mundo, uma outra
forma de ver, quando Giba dá esse “quebra tudo” e a gente saiu quebrando pau mesmo,
descendo o braço, acho que fica na cara assim notório a expressão do que eu quero dizer
agora, né? que é uma outra percepção, você tem a liberdade total, com teu corpo, com a tua
mente, você pode viajar, esse é o sentido principal, viajar através do teu interior, do teu
pensamento, através do que está à tua volta mesmo, transcender, acho que essa é a palavra
certa, transcender.
Liebe - prá mim que tive uma experiência anterior a essa, numa faculdade onde a chibata
entrava nas aulas, essa experiência de ter chegado aqui e começar a aula ouvindo música,
prá mi foi assim como sair do inferno mesmo e ir pro céu mesmo, sabe? ir pro lugar onde
eu procurava, eu queria música, e lá as pessoas não fazem música elas se preocupam com
técnica demais, a música mesmo fica esquecida, então começar ouvindo sensibiliza muito
prá todo o resto, sabe? prá todo o trabalho que se pretende fazer. É isso.
Enny - a palavra é livre. Que é que vocês acharam, falem mais, cada um podia falar um
pouquinho...
Giba – esse lance da escuta você abre um pouco mais a tua cabeça, né?
Enny - influencia o que vem depois?
Existe uma concordância geral, em vários comentários que se perdem.
Flávio – você deixa a mente aberta quando a gente faz aquele relaxamento ouvindo música,
parece que você se desliga de lá de fora...
257

Giba – a gente não está acostumado a ouvir música dessa forma, a gente ouve no carro,
ouvir música está muito abandonado, né? escutar música...
Adriana – eu acho que o relaxamento nessa aula ajuda porque a gente ouve, mas despido de
qualquer coisa assim, entregue, o que não acontece muitas vezes, a gente ouve música mas
não se entrega totalmente, e aí prá fazer o que a gente fez aqui é preciso isso, prá fazer
esse quebra tudo, você se entregar, esse tipo de coisa é essencial; eu acho que toda aula
da faculdade deveria ser assim, porque é o que o Flávio falou, toda aula é aula tradicional,
você pega senta e começa a escrever e a ler, e tudo isso não... é engraçado, eu pensei
assim, eu vou acabar o semestre, vou sair da faculdade, e o que eu quero fazer? O que eu
quero fazer é uma coisa que estou com muita saudade de fazer, eu quero fazer arte, eu
pensei assim...porque é incrível, eu estou na faculdade de música e eu estou envolvida com
isso, mas eu não sinto que estou fazendo arte, eu sinto que a minha cabeça está sempre
pensando e tal, mas eu não estou vivendo, eu não estou assim, eu não estou no meio
dessa...de realmente fazer arte, de estar me sentindo viva, estar me sentindo com essa
coisa mágica que a arte traz. E aí eu pensei, eu estou precisando disso assim nesse
momento, eu estou precisando disso, e aí o que a gente fez aqui, é...eu acho que fluiu e é a
primeira vez que aconteceu isso esse semestre, não sei se mais alguém teve essa
experiência aqui dentro da faculdade. Mas eu acho que a aula num curso de música deveria
ser assim, não deveria ser aula... a maior parte pelo menos é assim, é sentar, escrever,
olhar pro quadro...
Enny - é o paradigma vigente, né?
Adriana – e aí como que a gente vai ensinar? Vamos passar a mesma coisa que a gente está
vivendo, a gente vai passar o estudo assim...
Matheus – você sabe qual é a solução que eu vejo para o problema, Enny? Dá todas as aulas
da faculdade...
Risos.
Enny - é preciso que as pessoas desejem mudar o paradigma...aí muda...
Matheus – mas é fantástico,
Giba – depende da gente...
Enny - por isso que eu faço isso, na esperança de que vocês saiam daqui quebrando tudo...
Um dos alunos pega um rádio, os outros começam a fazer brincadeiras e isso flui por um
minuto ou dois.
Liebe - uma coisa eu acho muito importante pra gente: é que apesar de nós não termos
exatamente aquilo que nós quereríamos, que seria o ideal, eu acho que é muito importante
que a gente faça com o que a gente tem, seja pouco ou muito, sabe? E que nunca vai ser
ideal, nunca vai ser exatamente aquilo que a gente pensa, mas essas coisas todas servem
para que a gente busque, quanto menos propício for o ambiente, mais coragem a gente
precisa ter, eu acho que tem isso assim, usar o pouco que tem, não é tudo como deveria
ser, mas o pouco que a gente teve foi pra mim assim ,muito, muito importante, e eu acho
que vou fazer uso disso, muito assim, muito mesmo, eu me sinto muito privilegiada aqui.
Jaques – eu acho que também nessa parte da gente não saber aproveitar o pouco que
tem...também eu acho que uma dose cavalar de aula reflexiva causaria um efeito contrário,
porque esse tipo de trabalho é um trabalho que mexe muito, imagina então se todas as
disciplinas fossem trabalhadas nesse molde. Tem, disciplina que é informativa mesmo, né?
uma série de informações que foram agregadas ao longo da história e que você precisa
assimilar até porque prá depois você refletir a respeito, né? eu acho que a disciplina
cumpre bem o papel assim, de ser uma disciplina reflexiva no meio de várias que são só
informativas, e nem acho que poderiam mesmo ser todas reflexivas, porque eu acho que ia
dar um nó na cabeça de muita gente, e eu acho que acabava que podia ter um efeito não
258

muito...porque a reflexão ela é muito parecida com lava de vulcão, né? eventualmente
acontecem algumas erupções que deixam uns e outros desnorteados.
Adriana – mas isso é preciso, é muito necessário...
Jaques – voce já pensou se todas as aulas começam com essa erupção? É preciso uma
estrutura psicológica absurda prá administrar isso.
Adriana – mas ela se formaria já...
Jaques – não acho, em algumas universidades em que existe atendimento psicológico para
os alunos, eu acho que esse tipo de coisa tem fundamento, mas numa faculdade assim que
não tem toda essa infra-estrutura, o que acontece? O que acontece é que a grande maioria
dos alunos não suporta e sai, e você sendo pé no chão, uma faculdade dessas precisa de
alunos prá sobreviver.
Adriana – mas depende da forma como é conduzido, aqui, não é só reflexiva é informativa,
olha quanta coisa a gente...
Jaques – não, sim, mas depende não é todo professor que tem essa habilidade, é, esse é o
fazer também da Enny, um professor que não tenha esse tipo de fazer, se ele entra nessas
sem saber lidar com isso, porque você está lidando com...e aí você pode provocar uma
catástrofe maior, querendo ou não, a Enny trabalhou uma linha quase psicoterapêutica,
então você precisa de ter um feeling assim prá sacar com que estrutura você está mexendo
que não é todo mundo que tem.
Adriana – mas porque que não tem?
Jaques – porque depende de uma formação humana...
Adriana – é óbvio... mas que a gente não foi educado prá isso, porque desde
O início que entrou na escola, as aulas são desse jeito como é até o final da
faculdade.
Jaques
Jaques – não, eu não acho que toda disciplina tem que ser assim, eu não
penso isso, a Enny falou uma vez uma coisa prá mim que eu gravei na minha
cabeça porque eu achei bacana, a gente estava falando sobre educação de
criança, e eu falei que prá mim cantar com criança é muito complicado, é
difícil porque elas tem que aprender a transposição de oitava, apesar que
elas aprendem, mas é difícil... aí eu lembro que você falou assim mas porque
você vai gastar tempo fazendo uma coisa que você não faz tão bem se você
pode fazer aquilo que você faz tão bem? É muito sofrimento você investir
numa coisa que você não faz tão bem, se você pode investir bastante no que
você faz bem. E isso me gravou porque eu acho que assim como a gente
tem que respeitar as nossas habilidades, a gente precisa respeitar as
habilidades dos nossos professores, eles são limitados, então se o professor
tem essa limitação, não adianta você querer que ele, sabe?
Adriana – não, do nada ele não vai partir, do zero...
Jaques – mas ele não vai partir nunca, às vezes ele sofre uma limitação, eu
Não posso chamar de limitação, mas, às vezes ele é bom em certas coisas
mas não é bom em outras, então assim eu tenho que ter humildade de me
inserir, aí sim eu acho que essa coisa de aprender a refletir mesmo que a
aula não tenha essa conotação reflexiva, eu acho que é importante, mas a
gente tem que ter o maior cuidado de não avaliar um professor em função
da metodologia que ele traz.
Adriana – não, mas se você pensa que o professor que desempenha ele teve uma escola prá
chegar onde ele está certo? E essa escola é o que predomina...
Jaques – não concordo, Adriana, porque fica parecendo que o professor é só fruto da
formação que ele recebeu, ele é fruto de tudo que ele interagiu com a vida e tem certas
259

coisas que ele é mais hábil mesmo. Por exemplo, tem certos professores de Piano que têm
uma puta habilidade de pegar um aluno com problemas de técnica e botar dedo na mão do
aluno, o aluno desenvolve uma técnica fantástica, e, tem outros que desenvolvem nele uma
capacidade de improvisação fantástica, então assim, eu acho que não adianta...eu considero
quase impossível um professor que tenha todas as habilidades, eu pelo menos, eu olho
assim, eu acho que eu tenho que catar, eu tenho que aprender a aprender do professor, eu
tenho que com esse professor mesmo se ele é fraco prá caramba.
Enny - e eu tenho que aprender a aprender do aluno. Eu faço isso, esse curso de didática
sempre foi muito... conflitivo prá mim.
Giba – mas Enny, há quanto tempo você dá aula? São coisas novas, você sempre está
inovando...né? o professor a cada ano inova, mas tem gente que é mais lento mesmo.
Enny - é mas no começo, eu mesma ficava refletindo, eu não tenho vontade de fazer a aula
de didática como ela foi concebida prá ser, você estar discutindo programa de curso,
programa de aula, estratégia de ensino, né? eu não tenho vontade, eu sempre caio prá
filosofia da educação, prá outras áreas, de tal maneira que às vezes dá a impressão que
realmente eu não estou fazendo nada...
Giba – não...
Risos.
Giba – sabe uma cena que...bom é final de curso né? não é que a gente vai, nós vamos
continuar falando com você, te enchendo o saco mesmo, né? vamos lá te encher o saco,
pelo menos. Mas uma cena assim que eu sempre falo prá todo mundo, foi uma vez que
você... no final do semestre, colocou aquele CD do Paulo Freire, aí ele estava falando da
ditadura e você chorou prá cacete, acho que isso foi, isso prá mim foi f...
Enny - é incrível aquele disco eu ouço mil vezes...
Giba – puta aquela cena, aquilo lá quando entrou na revolução você chorou feito criança, na
minha cabeça eu pensei, realmente, pode estar tudo ruim ou tudo bom, mas o elemento, prá
gente é um elemento, né? (corte na gravação, infelizmente)
260

ANEXO 4 - Respostas ao questionário semi-


semi-estruturado

1. Transcorrido quase um ano do final da disciplina Metodologia do Ensino Musical


ministrada na Faculdade de Música Carlos Gomes, que lembrança marcante você
conserva dessa experiência?

Matheus
Entendo que as discussões, as idéias que eram trocadas, o quanto pudemos conhecer as
propostas de nossos colegas como desenvolver uma aula, bem como seus projetos, e
também o fato deste curso ter nos proporcionado a chance de nos avaliar também como
profissionais.

Liebe
A lembrança mais marcante é realmente o clima propício para se pensar em música e em
educação musical, gerado a partir da escuta.

Jaques
Durante uma aula de exploração de sons do entorno da escola uma experiência me marcou
de forma especial. O prédio ao lado da Faculdade forma um grande paredão de
reverberação. Durante a aula, passou um helicóptero sobre a escola e alguns de nós foram
pegos pela ilusão de serem dois helicópteros por causa da
reverberação do prédio. Essa experiência me intrigou e me levou a estudar as técnicas de
microfonação e gravação stereo (2 canais de áudio) e surround (em geral 5 canais de áudio)
onde a busca pela recriação do espaço sonoro é levada bastante a sério. Posteriormente,
ouvi um compositor de música eletroacústica falar sobre o seu interesse na composição
como o espaço e no espaço. Desde essa experiência tenho atentado para o comportamento
de microfones, ambientes e sistemas de sonorização em relação aos tempos de
reverberação.

Giba
Vou enumerá-las:
1)Conhecer os educadores musicais contemporâneos e vivenciar seus métodos de ensino.
2) O modo como a Prof. Enny conduziu o curso e sua grande humanidade em relação aos
fatos do cotidiano, partilhando alegria, dúvidas e tristezas com seus educandos. 3) Através
deste curso consegui um melhor auto-conhecimento e ampliar minha paisagem sonora.4)
A liberdade de colocar minhas idéias e experiências musicais e partilhar com meus
colegas de classe a vivência de cada um.5) A emoção da ultima aula ficará guardada na
minha lembrança.

Rodrigo
A primeira lembrança são as músicas que ouvíamos no início das aulas; os diálogos
realizados em círculos, discutindo assuntos com os amigos de classe e o professor. Depois,
conhecer os principais educadores e pedagogos musicais que não conhecia antes. As aulas
de improvisação com os instrumentos pedagógicos, podendo expressar os próprios
sentimentos, e aprendendo a explorar os sons dos mesmos.

Adriana
Muitas. Lembro que íamos para a aula com vontade de estudar e não por que ficaríamos
sem nota. Foi gostoso participar deste grupo e ver os colegas crescendo junto, construindo
261

o conhecimento e com a ajuda da professora, fazendo relações da teoria com a prática.


Gostei da bibliografia escolhida, especialmente Paulo Freire, Koellreutter e Schafer. Achei
importante a professora ter apresentado pensadores importantes para a educação, mesmo
fora da área musical.

2. Normalmente, as aulas se iniciavam com uma estratégia especial, envolvendo a escuta


musical. Você sente que essa abertura da aula pudesse ter influência sobre as
atividades subseqüentes? Que tipo de influência?

Matheus
Acredito piamente nesta possibilidade, pois a escuta musical a que éramos submetidos era
uma forma de concentração e, ao mesmo tempo, de entrega para que pudéssemos usufruir
o máximo de conteúdo possível, o que resultava em aulas mais dinâmicas e
conseqüentemente mais proveitosas.

Liebe
Como eu já havia relatado na ocasião em gravamos a finalização do curso, tive uma
experiência de aprendizagem que me marcara muito e de maneira bastante negativa, então
quando experimentei uma aula que buscava a sensibilização antes de tratar dos conteúdos,
pude referenciar-me a cerca da influência positiva que é possível exercer no aprendizado,
dependendo da forma que estes conteúdos são abordados.

Jaques
Os períodos de audição e relaxamento foram importantíssimos para sintonizar o grupo e
permitiram um assentamento e focalização das energias. Era nítido que mesmo os que
chegavam depois de iniciado o processo e ficavam assentados fora da roda se sentiam
magnetizados pela experiência. O grupo seguia a aula mais tranqüilo, centrado e receptivo à
experiência de ouvir os colegas.

Giba
A escuta musical permite maior concentração para as atividades seguintes. Tem que haver
MUSICA em qualquer assunto envolvendo música. O clima e o ambiente ficam mais leves
e prontos para qualquer atividade musical. Falar de música sem MUSICA transforma seres
humanos em repetidores de livros e não em pessoas ativas e seres pensantes. Importante
destacar:
SOM-NOTAS-MUSICAS-SERES HUMANOS.

Rodrigo
Acredito que sim. Pelo fato do ser humano conseguir se encontrar novamente consigo
mesmo, pois estamos vivendo num mundo onde precisamos sobreviver, alcançar objetivos e
realizar-se, de modo geral, e quando nos encontramos com o nosso interior, descobrimos
que existe uma paz interna que não há lá fora.
Acredito que a escuta musical influencia nas atitudes, comportamentos e idéias do ser
humano, de crianças a idosos.

Adriana
Certamente. Esta foi uma maneira de sensibilizar e preparar os alunos para a aula. Esta
estratégia ajudou o grupo a se constituir enquanto tal deixando os colegas a vontade para
262

se colocarem e exporem seu processo de aprendizagem sem constrangimento. Nesta


partilha, todos contribuíram para o crescimento do grupo.

3. Você deve se lembrar que ao final do curso, fizemos uma avaliação do mesmo a partir
da seguinte questão: “Caso o curso que estamos terminando fosse uma música, que
música seria?”, a resposta resultou numa bela improvisação musical do grupo. Caso
tiver vontade de deixar algum tipo de registro escrito sobre a experiência vivida no
curso, utilize o espaço que segue abaixo. Muito obrigada por sua participação.

Matheus
O resultado daquela improvisação veio para confirmar a total integração do grupo naquele
momento. Entendo que nesta atividade estávamos completamente “nus”, digo no sentido
de não nos preocuparmos com a opinião alheia, aquela sala era como uma outra dimensão,
onde éramos inalcançáveis diante de uma energia intensa, tanto que ao final da aula
algumas pessoas eu lembro que comentaram sobre o calor que estava no ambiente.
Em suma, foi “Fantástico”.

Liebe
A experiência vivida naquela ocasião, tem para mim o significado de uma porta aberta ao
infinito.
Obrigada, Liebe

Jaques
Senso de momentos. Momento para silenciar, para tocar, para variar, para manter, para
sobrepor, pra "subpor". A ligação sonora com vários indivíduos e a comunicação feita numa
esfera onde a racionalidade ficava subjugada pelas sensações. Essa forma de comunicação
direta com vários ao mesmo tempo (praticamente contrapontística) é irreprodutível pela
linguagem verbal.

Giba
No meu caso, foi um recomeço da minha vida pessoal e profissional. Toquei naquele
momento a música Começar de Novo do compositor Ivan Lins atendendo o meu falar
interno e em seguida todos nós, alunos e professor, fizemos o som único, através do
nosso corpo e voz. Espero que a música e o ensino musical sigam esse caminho e que
todos nós possamos quebrar e criar novos paradigmas. QUEBRAR TUDO é CONSTRUIR
TUDO. Obrigado Enny.

Rodrigo
A improvisação foi uma experiencia muito importante no meu dia a dia, tanto para lecionar
como para a produção em estúdios.
Lecionando, aprendi a ouvir mais meus alunos, suas idéias, suas interpretações, suas
expressões, diante do instrumento que ensino, mesmo sendo às vezes, incorretas, mas
com o objetivo de ouvi-lo e senti-lo tentando captar as suas formas de conduzir
acompanhamentos e solos, coisa que antes não acontecia.
Produzindo, deixei um pouco de lado os solos que eu escrevia antes para os músicos
interpretarem, atualmente, escrevo a cifra e peço para o músico contratado, colocar sua
expressão e sua interpretação diante do que ele está ouvindo e sentindo... em todas as
vezes, deu certo. Agradeço, por tudo que você me ensinou, passou, mostrou, improvisou,
confortou, olhou e formou.
263

Beijos... Rodrigo Sperandio

Adriana
Neste momento vi a teoria inserida na prática, pois muito do que estudamos em sala se
refletiu nesta composição. Conceitos, idéias dos pedagogos e o próprio conhecimento
construído pelo grupo.

Os instrumentos convencionais e não convencionais foram bem explorados além de terem


sido utilizados de forma criativa, personalizada, com liberdade. Também diria que
praticamos algo pré figurativo, onde a improvisação partiu de uma idéia e foi se
constituindo de forma aberta, livre. A música foi surgindo naquele momento presente e a
partir das idéias de cada elemento que iam sendo lançadas e complementadas se formou
uma grande teia, algo único dentro da diversidade que cada colega trazia. Fizemos uma
improvisação coletiva realmente interessante.

ANEXO 5 - Letras de músicas


Canção da América
Brincar de Viver Milton Nascimento
Guilherme Arantes
Amigo é coisa pra se
Quem me chamou guardar
Quem vai querer voltar pro ninho Debaixo de sete chaves
Redescobrir o seu lugar Dentro do coração
Assim falava a canção
Pra retornar
E enfrentar o dia a dia
Que na América ouvi
Reaprender a sonhar
Mas quem cantava chorou
Você verá que é mesmo assim Ao ver seu amigo partir
Que a estória não tem fim Mas quem ficou
Continua sempre No pensamento voou
Que você responde sim Com seu canto que o outro
A sua imaginação lembrou
A arte de sorrir E quem voou
Cada vez que o mundo diz não No pensamento ficou
Com a lembrança que o
outro trancou
Você verá
Que a emoção começa agora Amigo é coisa pra se
Agora é brincar de viver guardar
Não esquecer No lado esquerdo do peito
Ninguém é o centro do universo Mesmo que o tempo e a
Assim é maior o prazer... Distância digam não
Mesmo esquecendo a
Você verá... canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração
E eu desejo amar
Pois seja o que vier
A todos que eu cruzar Venha o que vier
Pelo meu caminho Qualquer dia amigo eu volto
Como sou feliz Pra te encontrar
Eu quero ver feliz Qualquer dia amigo
Quem andar comigo A gente vai se encontrar
Vem...
264

Começar de novo Coração de Estudante


Ivan Lins e Victor Martins Milton Nascimento

Começar de novo e contar comigo Quero falar de uma coisa,


Vai valer a pena ter amanhecido Adivinha onde ela anda?
Ter me rebelado, ter me debatido Deve estar dentro do peito
Ter me machucado, ter sobrevivido Ou caminha pelo ar
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido Pode estar aqui do lado
Começar de novo e contar comigo Bem mais perto que pensamos
Vai valer a pena ter amanhecido A folha da juventude
É o nome certo desse amor
Sem as suas garras sempre tão seguras
Sem o teu fantasma, sem tua moldura Já podaram seus momentos
Sem suas escoras, sem o teu domínio Desviaram seu destino
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio Seu sorriso de menino
Começar de novo e contar comigo Quantas vezes se escondeu
Vai valer a pena já ter te esquecido
Começar de novo Mas renova-se a esperança
Nova aurora a cada dia
E há que se cuidar do broto
Pra que a vida nos dê flor e fruto

Coração de estudante
E há que se cuidar da vida
E há que se cuidar do mundo
Tomar conta da amizade
Alegria e muito sonho
Espalhados no caminho
Verdes: plantas e sentimento
Folhas, coração, juventude e fé
265

ANEXO 6 – Historinha
Historinha para ouvir: “Estória da Estrelinha” (Áudio)

Autoria; Enny Parejo


Música: Antonio Ribeiro
Pianista: Maria Elisa Risarto

ANEXO 7 – Carta da Transdisciplinaridade

Preâmbulo

Considerando que a proliferação atual das disciplinas acadêmicas conduz a um


crescimento exponencial do saber que torna impossível qualquer olhar global do
ser humano;
Considerando que somente uma inteligência que se dá conta da dimensão planetária
dos conflitos atuais poderá fazer frente à complexidade de nosso mundo e ao
desafio contemporâneo de autodestruição material e espiritual de nossa espécie;
Considerando que a vida está fortemente ameaçada por uma tecnociência triunfante
que obedece apenas à lógica assustadora da eficácia pela eficácia;
Considerando que a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais
acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um
novo obscurantismo, cujas conseqüências sobre o plano individual e social são
incalculáveis;
Considerando que o crescimento do saber, sem precedentes na história, aumenta a
desigualdade entre seus detentores e os que são desprovidos dele, engendrando
assim desigualdades crescentes no seio dos povos e entre as nações do planeta;
Considerando simultaneamente que todos os desafios enunciados possuem sua
contrapartida de esperança e que o crescimento extraordinário do saber pode
conduzir a uma mutação comparável à evolução dos humanóides à espécie humana;
Considerando o que precede, os participantes do Primeiro Congresso Mundial de
Transdisciplinaridade (Convento de Arrábida, Portugal 2 - 7 de novembro de 1994)
adotaram o presente Protocolo entendido como um conjunto de princípios
fundamentais da comunidade de espíritos transdisciplinares, constituindo um
contrato moral que todo signatário deste Protocolo faz consigo mesmo, sem
qualquer pressão jurídica e institucional.
Artigo 1:
1
Qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma mera definição e de dissolvê-lo
nas estruturas formais, sejam elas quais forem, é incompatível com a visão
transdisciplinar.
266

Artigo 2:
2
O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por
lógicas diferentes é inerente à atitude transdisciplinar. Qualquer tentativa de
reduzir a realidade a um único nível regido por uma única lógica não se situa no
campo da transdisciplinaridade.
Artigo 3:
A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da
confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos
uma nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o
domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que
as atravessa e as ultrapassa.
Artigo 4:
4
O ponto de sustentação da transdisciplinaridade reside na unificação semântica e
operativa das acepções através e além das disciplinas. Ela pressupõe uma
racionalidade aberta por um novo olhar, sobre a relatividade definição e das noções
de ““definição”e "objetividade”. O formalismo excessivo, a rigidez das definições e
o absolutismo da objetividade comportando a exclusão do sujeito levam ao
empobrecimento”.
Artigo 5:
5
A visão transdisciplinar está resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa
o domínio das ciências exatas por seu diálogo e sua reconciliação não somente com
as ciências humanas mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência
espiritual.
Artigo 6:
6
Com a relação à interdisciplinaridade e à multidisciplinaridade, a
transdisciplinaridade é multidimensional. Levando em conta as concepções do
tempo e da história, a transdisciplinaridade não exclui a existência de um horizonte
trans-histórico.
Artigo 7:
A transdisciplinaridade não constitui uma nova religião, uma nova filosofia, uma
nova metafísica ou uma ciência das ciências.
Artigo 8:
A dignidade do ser humano é também de ordem cósmica e planetária. O surgimento
do ser humano sobre a Terra é uma das etapas da história do Universo. O
reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos da
transdisciplinaridade. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, a
título de habitante da Terra, é ao mesmo tempo um ser transnacional. O
reconhecimento pelo direito internacional de um pertencer duplo - a uma nação e à
Terra - constitui uma das metas da pesquisa transdisciplinar.
267

Artigo 9:
A transdisciplinaridade conduz a uma atitude aberta com respeito aos mitos, às
religiões e àqueles que os respeitam em um espírito transdisciplinar.
Artigo 10:
Não existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras
culturas. O movimento transdisciplinar é em si transcultural.
Artigo 11:
Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Deve
ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar
reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na
transmissão dos conhecimentos.
Artigo 12:
A elaboração de uma economia transdisciplinar é fundada sobre o postulado de que
a economia deve estar a serviço do ser humano e não o inverso.
Artigo 13:
13
A ética transdisciplinar recusa toda atitude que recusa o diálogo e a discussão, seja
qual for sua origem - de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica, política
ou filosófica. O saber compartilhado deverá conduzir a uma compreensão
compartilhada baseada no respeito absoluto das diferenças entre os seres, unidos
pela vida comum sobre uma única e mesma Terra.
Artigo 14:
Rigor, abertura e tolerância são características fundamentais da atitude e da visão
transdisciplinar. O rigor na argumentação, que leva em conta todos os dados, é a
barreira às possíveis distorções. A abertura comporta a aceitação do desconhecido,
do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às
idéias e verdades contrárias às nossas.
Artigo final:
A presente Carta Transdisciplinar foi adotada pelos participantes do Primeiro
Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, que visam apenas à autoridade de seu
trabalho e de sua atividade.
Segundo os processos a serem definidos de acordo com os espíritos
transdisciplinares de todos os países, o Protocolo permanecerá aberto à assinatura
de todo ser humano interessado em medidas progressistas de ordem nacional,
internacional para aplicação de seus artigos na vida.
Convento de Arrábida, 6 de novembro de 1994 Comitê de Redação Lima de Freitas,
Edgar Morin e Basarab Nicolescu.
268

ANEXO 8 – Partitura gráfica e Pentagrama

Modelo de Improvisação – DIRECIONALIDADE • = som de curta duração

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
• •
agudo • • •
• •

médio • •


grave • •

(representação dos sons numa partitura gráfica, a linha pontilhada


que une os sons evita confusões na hora de ler os signos)

Pentagrama

(representação dos mesmos sons no pentagrama)


direção da leitura
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