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TAVARES, Bráulio. O que é ficção científica? São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

“Enquanto categoria literária, a expressão ‘ficção científica’ é maio difícil de manejar; mas
funciona perfeitamente como categoria de mercado” p.8.

“Esse tipo de fc ganhou fisionomia própria nos EUA, durante os anos 24-40, em revistas
baratas de contos (os pulp magazines) e de histórias em quadrinhos: Flash Gordon e a
série Star Trek (Jornada nas Estrelas) seriam exemplos típicos” p.9.

“texto é texto – é um produto verbal articulado pela mente de uma pessoa. Um conto ou
poema não está ‘mais próximo’ do mundo real do que um artigo de jornal ou uma
autobiografia – assim como uma fotografia não é mais nem menos realista do que uma
pintura. Tudo isso são signos, verbais ou visuais, combinados de acordo com determinados
códigos; alguns deles nos evocam de forma mais intensa o mundo que experimentamos no
dia-a-dia, mas nem por isso existe uma hierarquia entre eles. Flash Gordon é tão real
quando a Gabriela de Jorge Amado ou a Madama Bovary de Gustave Flaubert” p.11.

“O critério de verossimilhança não serve para analisar e julgar a fc; isso inclui também a
questão das ‘justificações científicas’. Na fc a ciência é personagem, e não co-autora” p.11.

“Science fiction foi o nome sonoro e simpático escolhido por Hugo Gernsback, editor da
revista Amazing Stories, nos anos 20, para denominar o tipo de literatura que ele tentava
incentivar” p.11.

“Um tema comum a todos esses tipos da narrativa é o do Outro Eu, ou a justaposição do
conhecido (o Eu) e do estranho (o Outro)” p.13.

“Ela não se dirige a indivíduos, e sim a públicos; não pode se diluir em sutilezas – pelo
contrário, precisa fixar com traços bem firmes os arquétipos, as imagens universais com
que está lidando” p.15.

“A ciência é o triunfo do conhecido sobre o desconhecido, e tem a seu favor um imenso


curriculum vitae de benefícios prestados à humanidade. Grandes inovações e descobertas,
revoluções conceituais, a conquista e o domínio das forças elementares da natureza” p.17.

“Se fosse só isso, tudo bem. Mas também existe uma face tenebrosa. Afinal de contas,
quem foi que inventou a pólvora, a dinamite, a bomba atômica? E as experiências
‘científicas’ dos nazistas nos campos de concentração? E a talidomida, e o napalm, e o gás
da morte da Índia? E as catástrofes ecológicas provocadas pelo lixo industrial ou radioativo?”
p.18.

“Decifrar e dominar a natureza é um desafio que o homem tentou vencer primeiro através
da magia, e depois através da ciência. Esse desafio, muitas vezes, lhe reservou algumas
surpresas desagradáveis; tanto na História quanto na vida cotidiana temos inúmeros
exemplos de processos que parecem inofensivos quando estão sob controle, mas que de
repente viram um câncer, um nazismo ou uma fissão atômica” p.21.

“Cada ciência tem a cebola que merece, porque há várias, e quando falarmos a ciência,
esse plural deve vir sempre subentendido. Cada uma delas manipula um universo próprio,
onde há uma vasta área central já explorada, catalogada e resolvida – e um imenso
pantanal de dúvidas e contradições estendendo-se ao redor” p.23.

“Temos que lembrar que a fc utiliza muita matéria-prima da ciência, mas manipula os
instrumentos da ficção. O resultado disso é que seu compromisso não é com a verdade, e
sim com a imaginação e a fantasia. Uma boa história de fc é a que consegue nos mostrar
um universo diferente do nosso, em geral mais complexo do que o nosso, e dar-lhe uma
coerência satisfatória. Isso garante as condições para se fazer boa ficção, ou seja, contar
uma boa história, uma história que deixe uma impressão forte, e que faça pensar” p.24.

“O objetivo da fc não é prever o futuro” p.25.

“As imagens geradas pela fc não são propriamente ‘proféticas’. O que acontece é que elas,
de tão fortes, acabam por ‘impregnar’ a realidade. Os caríssimos programas espaciais dos
EUA e da URSS foram ajudados pelo fato de que havia, na população de ambos os países,
uma crença generalizada na possibilidade (e até na inevitabilidade) da conquista do espaço.
Americanos e russos sonhavam com essas viagens há muitas décadas, e a civilização
talvez seja isso: a possibilidade de materializar sonhos coletivos” p.26.

“O filme de Wise (O dia em que a Terra parou) se destaca, entre outras coisas, por causa
da época em que apareceu. Na década de 50, o cinema americano não imaginava de forma
muito positiva os ‘primeiros contatos’. A Segunda Guerra Mundial acabara há pouco tempo,
e estava começando a chamada guerra fria: a tônica das relações EUA-URSS eram as
ameaças, a desconfiança e o medo recíproco. Foi a época do macartismo nos EUA: a
Comissão de Investigação de Atividades Antiamericanas, comandada pelo senador Mac
Carty, deflagrou uma perseguição aos comunistas, aos socialistas, depois aos esquerdistas
em geral, e finalmente a qualquer indivíduo que se atrevesse a criticar qualquer coisa. Havia
uma paranoia generalizada, um terror anticomunista no ar; intelectuais e jornalistas
entraram na lista negra; artistas como Charles Chaplin e Bertolt Brecht foram levados a
deixar o país” p.28.

“O cinema de fc dava uma medida dessa paranoia coletiva. Proliferavam nesse período os
filmes em que a Terra era invadida por alienígenas, que tomavam a forma de seres
humanos, ou passavam a comandá-los a distância” p.28.

“2001 conseguiu um sucesso de público e de crítica que foi muito importante para a fc nos
anos seguintes. Todo mundo sabe que o cinema de fc repousa, em grande parte, na criação
de efeitos especiais. Muitas excelentes ideias de filmes acabaram prejudicadas pela falta
de dinheiro: sem o reforço visual necessário, os roteiros acabam resultando em filmes
grosseiros e pouco convincentes. O impacto provocado por 2001 encorajou os produtores
a maiores investimentos na fc; o desenvolvimento disso resultou na existência, quinze anos
depois, de um verdadeiro ‘império’ cinematográfico, onde as figuras mais famosas são
George Lucas e Steven Spielberg, mas também há um segundo e um terceiro escalões de
diretores, roteiristas, técnicos, desenhistas, cinegrafistas, etc., todos voltados para a fc. Em
30 anos, a fc americana passou de produções classe B em preto e branco para a primeira
linha dos sucessos de bilheteria e das produções milionárias de Hollywood” p.30.

“a tendência que cresceu nas últimas décadas foi, por motivos óbvios, a das histórias de
catástrofes nucleares e ambientais. Essas narrativas assumem muitas vezes um propósito
didático, apresentando-se com a intenção deliberada de seduzir o público para uma causa.
São obras engajadas. O filme O dia seguinte (The day after) é um bom exemplo, inclusive
pelo fato de ter merecido um lançamento em TV que atingiu 100 milhões de espectadores
e ter provocado mais de 400 manifestações pró-desarmamento, só nos EUA. Nesse caso,
não se trata de profecia (ninguém está afirmando: ‘será assim’) ou especulação futurista (‘o
que aconteceria se...’) – na realidade, é uma tática tipo ‘mostrar, antes que aconteça’, como
a mãe que mostra a uma criança a foto de uma pessoa atropelada: ‘– cuidado quando
atravessar a rua’” p.34.

“Os autores de fc não brilham pela modéstia, mas todos esses depoimentos convergem
para uma constatação: a de que a fc representa um dos caminhos possíveis para que se
estabeleçam sínteses de ideias de natureza diferente. A fc é uma literatura transversal, um
canal de comunicação que põe a cibernética em contato com o surrealismo, o humor em
contato com a física nuclear, e assim por diante, até o infinito” p.73.
“Tudo isso que examinamos nos permite visualizar alguns dos traços característicos da fc:

1) a tentativa de síntese (ou pelo menos de aproximação) entre elementos de diferentes


áreas do conhecimento (ciências humanas, exatas e experimentais, filosofia, religião,
etc.), através da narrativa de ficção;

2) a semelhança de estrutura com outras formas de narrativa: formas clássicas (as


utopias, as viagens imaginárias), formas populares e anônimas (os contos de fadas,
as lendas, os mitos) e a literatura de massas dos últimos séculos (os folhetins, as
histórias de aventuras, as narrativas góticas ou de terror);

3) a recorrência de imagens e temas desenvolvidos a partir de fins do século passado


(Verne, Wells) e fixados nos pulp magazines americanos entre as décadas de 20-40;

4) a tentativa de síntese mais ampla a partir dos anos 60, assumindo uma postura
reflexiva auto-consciente; ao mesmo tempo, a aproximação com o mundo
acadêmico e com algumas vanguardas e movimentos culturais contemporâneos”
p.80.

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