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Monografia
Rio de Janeiro
Dezembro de 2016
Agradecimentos
Agradeço primeiramente, à minha família, se não fosse toda a estrutura que ela me
reservou durante todo este tempo, enchendo minha vida de amor e alegria, conferindo a mim
o privilégio de poder dedicar-me exclusivamente as rotinas universitárias, fazendo todo
esforço necessário para garantir minha permanência, minha mãe Claudia, meu pai Anael, meu
padrasto João, minha madrasta Gilcimar, minha sogra Nalva, meu tio Edson, meus padrinhos
Paula e Túlio, e a Gabrielle, meu porto seguro e companheira de caminhada.
Foram cinco anos nesta Universidade que me abrigou desde o momento em que fui
aprovado pelo Prouni. A PUC sempre me foi um lugar distante, estudar aqui não passava pela
minha cabeça antes de ingressar. Depois de iniciados os estudou continuou longe
geograficamente, atravessar a cidade todos os dias para ir as aulas não foi fácil, lembro-me
dos choques que sofri no começo, não sabia como portar com meu corpo, de que maneira
deveria me expressar (e isso as vezes me causa embaraços até hoje), era um novo mundo que
se abria para mim e eu ia descobrindo. No coração da Zona Sul, a universidade da elite
carioca nunca foi um ambiente acolhedor para um suburbano, mas felizmente eu estava no
Departamento de Ciências Sociais, ali estavam também boa parte daquela gente diferente que
não se enquadrava no estereótipo “filho da PUC”.
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Minha turma era maravilhosa, nos corredores nossos veteranos nos chamavam de “os
felizes”, todos jovens, cheios de energia, andávamos juntos desbravando as xerox em busca
dos textos introdutórios, e os bares atrás de cerveja. Agradeço à Kaua Vasconcelos, Luana
Fonseca, Tatiana Araújo, Pedro Braga, Milena Trindade, Everton Sampaio, Natália Guindani,
os amigos que me acompanharam no inicio dessa jornada. Hoje, termino com dezenas de
grandes amigos que construí ao longo desse tempo e creio, ficarão para todo o resto da vida,
agradeço imensamente a todos pelas trocas e ensinamentos. Idjahure Kadiweu, Heitor
Zaguetto, Bruno Teixeira, Caio Muniz, Yeza Lojo, Andrezza Pereira, Julia Sá, Guilia Luz,
Leandro Marinho, Mariana Lopes, Antonio Pedro de Barros, Alyne Costa, Clara Vale, Daniel
Mota, Danielle Ferreira, Igor Valemiel, Joana Willemsens, Juliana Moreira, Sarah Laurindo,
Lucas de Deus, Caique Bellato, Dani Vidal, Luis Paulo, Yago Reis, Tabáta Lisboa e Bruno
Costa.
Quando eu aqui cheguei eu pouco sabia, na verdade eu não sabia nada mesmo. E se
não fosse a generosidade e paciência de todo o corpo docente com a minha ignorância, talvez
eu não tivesse nem terminado a graduação, creio meus professores acreditaram mais em mim
do que eu próprio. A proximidade permitiu que de educadores se tornassem amigos. Agradeço
a todos os professores do Departamento de Ciências Sociais, em especial à Luiza Leite, Paulo
Jorge, Luiz Fernando, Maria Alice, Werneck Vianna Valter Sinder, Tatiana Bacal, Felipe
Sussekind, Marcelo Burgos, Marcelo Sorrentino, Maria Isabel, Robert Wegner, e a todos os
encontros do Laboratório de Teoria da Cultura.
Agradeço também ao Departamento de Filosofia que foi para mim uma segunda casa,
lá que me defrontei com a questão ambiental, e pude realizar graças à Deborah Danowski a
pesquisa de Iniciação Científica que deu origem a esta monografia. A ela eu tenho uma
extensa dívida pela sua sempre generosidade, atenção com temas de pesquisa que me
angustiavam e confiança depositada em mim. Se hoje termino a graduação tendo realizado
três meses de trabalho de campo, é ela a principal responsável. Felipe Sussekind sempre ao
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meu lado tem sido mais que um orientador, junto a Deborah Danowski com todo empenho e
dedicação tem me ajudado na construção de um conhecimento necessário para a elaboração
do trabalho monográfico. Orlando Calheiros tem sido uma inspiração para continuar no
campo acadêmico, suas revisões e críticas durante o processo de escrita da monografia o torna
também co-orientador deste trabalho.
Todo apoio prestado pela equipe do PROPAC (Ação Social Diocesana de Patos) foi
fundamental também para que este trabalho acontecesse, Rosivania Jeronimo foi quem me
levou até os agricultores. Quando cheguei ao campo estava se iniciando o projeto
Multiplicando saberes com camponeses e camponesas e foi com ela que fiz minhas primeiras
expedições. Nesse contexto interdisciplinar pude aprender muito, além de Rosivania, Lielma
Xavier, José Vicente, Irenaldo Pereira me ofereceram muitas oportunidades de troca de
saberes. José Marcio, Aurino, Ariano, e Allyson Gabriel merecem também um agradecimento
especial, grandes amizades que se constituíram durante o campo.
Os agricultores tem sido meus professores desde o momento que os conheci, a forma
com que receberam esse cabra do sul são difíceis de descrever, Seu Inácio, Dona Maria,
Iranildo, Netinha, Dona Jardas, Seu Mário, Luzia, Cabeludo, Seu Heleno, Dona Branca,
Evanilson, Zé, Marizete, Tales, Cabeludo, Fabrício, Seu Judivan, Dona Ivonete, Paulo de
Ornilo, Andresa, Dória, Erivan, Seu Levi, Dona Francisca, Jéssica, Mikaelly, só tenho a
agradecer por toda a generosidade que tiveram por mim. O que eu tentei realizar aqui foi falar
um pouco dessa filosofia presente entre eles, consciente de que suas vidas transcendem em
muito essas poucas páginas que escrevi, espero conseguir retribuir toda a generosidade e
hospitalidade em que recebi, e ser digno com esses encontros. Este trabalho é sobretudo para
vocês.
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Resumo
Palavras-Chave
Agricultores Experimentadores; Chuva; Convivência com Semiárido; Ontologia
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Abstract
Holliver. Gabriel. "It's good to rain" Experimental Farmers in the Paraíba Semi-Arid. Rio de
Janeiro, 2016. 59 p. Monograph - Department of Social Sciences, Pontifical Catholic
University of Rio de Janeiro.
The possibility of inhabiting the Brazilian semi-arid and facing periods of drought always
seemed a colossal challenge to the civilizing project. The peculiar feature of the caatinga
biome has often served as a weapon for spreading the myth of the scarcity that constitutes the
idea of combating drought. But dry does not fight, if you live with it. In the midst of a
desertification scenario in the process of entropy, mainly from the logging of logs and from
the extensive livestock farming and cotton cultivation in the past, experimental farmers resist
the hegemonic capitalist models by creating, testing and applying their own social
technologies. With only three months of rain per year, they collect and store enough water for
domestic and agricultural use every year. In the face of this rigorous seasonality, the rain
dictates the movements and rhythms of all local agents, the inhabitants of which developed a
particular ontology giving a special value to the rain, as well as a traditional meteorological
knowledge about it, allied to a political economy of the singular nature , Focused on water
resources.
Keyword:
Farmers Experimenters; Rain; Living with Semiarid; Ontology
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Sumário
Resumo................................................4
Introdução............................................7
O Estigma...........................................14
O Mundo em desmantelo....................16
A Cerâmica.........................................17
A Plantation........................................19
O Espectro Eólico..............................24
Os Agricultores..................................28
A Chuva.............................................32
Ecotécnicas do Sertão........................42
O Gado..............................................50
A Vida Brotando...............................53
Bibliografia........................................56
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Introdução
A presente crise ambiental contemporânea pode ser caracterizada por dois conceitos
que têm assumido um lugar de destaque nos últimos anos: Antropoceno e Gaia.
O primeiro conceito foi recentemente proposto por cientistas para se referir à nova era
geológica, no próximo ano segundo tudo indica, ele deve ser oficializado pela União
Internacional de Ciências Geológicas. O grupo de trabalho encarregado de apresentar as
evidências das novas marcas na terra defende que ela teria começado mais provavelmente no
inicio da década de 1950, período caracterizado pela chamada “Grande Aceleração”. Esse
período marca o inicio de uma mudança abrupta seguindo um aumento constante de
temperatura global. Elementos radioativos, microplásticos, e alto dióxido de carbono
encontrados nas geleiras estão sendo utilizados como prova da influência antrópica
preponderante neste processo.
Em 1750, quando foi iniciado o uso do carvão na primeira máquina a vapor industrial,
a quantidade de carbono na atmosfera era de 280 partes por milhão. Hoje o carbono na
atmosfera já passa de 400 partes por milhão. Em 2009 um grupo de cientistas liderados por
Johan Rockstrom desenvolveu um modelo em que estipula nove limites seguros que a
natureza nos impõe, e que não podem ser ultrapassados de forma que em caso de rompimento
à essas fronteiras, corremos o risco de por fim a atual estabilidade do sistema capaz de
comportar as formas de vida que conhecemos. São eles as mudanças climáticas, perda de
integridade da biosfera (perda de biodiversidade e extinção de espécies), perda do ozônio
estratosférico, acidificação dos oceanos, alteração dos fluxos geoquímicos (nitrogênio e
fósforo), mudança no sistema terrestre, água doce para consumo, carga atmosférica de
aerossóis, e introdução de novas entidades (como microplásticos e objetos radioativos e
nanomateriais).
Em 2015 esse mesmo grupo realizou a atualização deste estudo, constatando que
quatro limites já haviam sido excedidos, as mudanças climáticas, a perda de integridade da
biosfera, mudança no sistema terrestre e alteração dos ciclos biogeoqúmicos. Os efeitos
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dessas perdas por sua vez são difíceis de calcular, pois estando o sistema todo conectado, cada
alteração retroalimenta e reorganiza todo o sistema, gerando o que se convencionou chamar
de feedbacks positivos, o que torna difícil inclusive a projeção das expectativas, já que os
ecossistemas sempre reagem de maneira não linear (Rockstrom 2009). Em menos de 300
anos, a humanidade alcançou uma potência mortífera de um asteróide da magnitude do
responsável pela extinção dos dinossauros no período cretáceo. Em termos de história
profunda do planeta, constata-se que ele já acabou cinco vezes através de uma perda ostensiva
de biodiversidade, observando a velocidade e a quantidade de espécies extintas nos últimos
anos, cientistas afirmam estarmos vivenciando o sexto acontecimento de fim de mundo
(Kolbert 2014).
Como lembra Bruno Latour, “o esquisito não é as pessoas ainda crendo no animismo,
mas em um tempo de mudanças drásticas ainda há gente pensando em um mundo
inanimado” (Latour, 2013) Será necessário reavivar nossa diplomacia cosmológica,
reanimando o mundo, e para isso especularemos mundos possíveis com agricultores do
semiárido. O Antropoceno aponta para uma nova ferida narcísica na sociedade, esta nova era
geológica designa o fim de um espírito de Época em que será necessário reconfigurar a
programação e as formas de agir das maquinas e os humanos. Se as ciências naturais
realizaram o trabalho de cartografar a conjuntura, descrever, e constatar os efeitos
devastadores que a vida humana predominante nos últimos três séculos realizou, colocando
em risco a própria espécie, cabe as ciências humanas expandir nossa latitude de novos
mundos possíveis, nos devolvendo outra figura de nós mesmos. Um virtual para nós, que já é
real para outrem, e por estar no concreto, em uma metafisica da práxis pode ser também real
para nós. (Danowski e Viveiros de Castro, 2014).
Por fim, acreditamos que a relevância deste estudo não passa tanto pela preservação de
um certo tesouro que estaria desde sempre guardado no coração do Brasil, mas antes pela
consideração simétrica de saberes e práticas cosmopolíticas em constante atualização,
permitindo-nos encontrar uma linha transversal de conhecimento nos saberes tradicionais, que
se constituem como vias de descolonização do pensamento em alternativa às categorias euro-
americanas de pensamento.
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No Vale do Sabugi O agricultor do Sertão
A ameaça da desertificação
Por causa da devastação
O agricultor tem muita disposição
Gerou negatividade
Trabalha com algo pesado
Devido a humanidade
Sem precisar ter estudado
Os campos ter desmatado
As vezes doi no coração
Deixando desanimado
Por provocar a desertificação
O agricultor do Sertão
Estou falando do machado
Deixando desanimado
Quando planta o milho no chão
O agricultor do Sertão
E falta o molhado
O terreno fica encascorado
Em resposta a desertificação tem Luzia,
Devido a sequidão
Iranildo e Seu Heleno
Murchando a plantação
Que a natureza estão protegendo
Por não ser aguado
Fazendo a recuperação
Deixando desanimado
De toda vegetação
O agricultor do Sertão
Que tinha se acabado
Isso não deixa desanimado
Devido a grande extração
O agricultor do Sertão
Por meio desordenado
Do mato explorado
No Vale das Espinharas
Para plantar algodão
No Sertão Nordestino
Pondo em crise a região
Onde Curral é feito com varas
Devido o trabalho inadequado
Nasceu o agricultor José Marcelino
Deixando desanimado
O agricultor do Sertão
Quando menino viveu um tempo na cidade
Só que depois de alguns anos no sítio foi
Toda a população
morar
Precisa ser por fruto alimentado
Mesmo passando por muita dificuldade
Desde o agricultor até o advogado
Hoje é dono do seu próprio lar
Embora essa alimentação
Gera preocupação
Também nas Espinharas
Devido alguns alimentos, está envenenado
Tem Seu José Benício do Sítio Trincheiras
Deixando desanimado
Que planta frutíferas
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E cria vacas leiteiras E sim de negação
No Vale do Piancó
O uso de agrotóxico e a desmatação
Ygo dos Santos Monteiro
Não é um modelo franco
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O ESTIGMA
Esta articulação constitui a ideia do combate à seca, verdadeira máquina semiótica que
agencia por vez sua própria indústria, produzindo falsos remédios para um falso “problema”
inexorável que é a estiagem climática da região, deixando de lado a endêmica questão da
concentração de terras, de forma que é mantida a estrutura desigual da região e a manutenção
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do poder local. Mas não se combate à seca, se convive com ela.2
2 Para uma genealogia do debate entre os paradigmas de combate a seca e convívio com o semiárido ver Silva
(2003).
3 O próprio nome semiárido é de origem na língua indígena tupi, que significa caa=mata, tinga=branca. (Silva,
2003)
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é possível através de uma simbiose muito característica e específica com aquele meio
ambiente particular (Medeiros 2014).
Mas consideremos que esses pequenos agricultores não são figuras do passado, como
sugere o paradigma de combate à seca, cujo modelo de ação é o controle e a manipulação de
uma natureza passiva em prol unicamente das vontades humanas; mas antes pré-figurações do
futuro no Antropoceno, tendo em vista as mudanças climáticas globais, que têm acirrado a
aridez de diversos biomas e aumentado as incertezas climáticas que avançam por outras
regiões do planeta. Fazer do solo brotar comida será fundamental para a sobrevivência
humana, tarefa que se tornará mais árdua com a entropia que se expande e desertifica parte do
mundo. Os agricultores do semiárido, mesmo com a irregularidade hídrica de sua região, em
simbiose com a vida que habitam, praticam a arte de produzir alimentos em um ambiente
difícil.
O MUNDO EM DESMANTELO
4 Em virtude da própria ausência de indivíduos dessas espécies, não temos precisão na definição das mesmas.
Por isso, por precaução, empregamos aqui a nomenclatura cientifica para nos referir às espécies endêmicas
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grande e de lenta locomoção, facilmente caçada como alimento. O mesmo aconteceu com o
tatu-bola (Tolypeutes tricinctus) e com a onça-parda, conhecida também por suçuarana ou
gato-do-mato (Puma Concolor), esta última também caçada impiedosamente devido ao medo
que despertava, e o prestigio da exibição de sua pele como signo de coragem. Há no presente
várias espécies em vias de extinção, com exemplares que aparecem ali com raridade, como é
o caso do papa-capim (Sporophila nigricollis) e do mocó (Kerodon rupestris).
A CERÂMICA
Claudinho, de apenas 20 anos, já trabalhou com esses dois tipos de serviços pesados.
No caso da mineração, o trabalho de servente se resumia em quebrar pedras, e sua ferramenta
de trabalho era a marreta. Permaneceu quase um ano empregado, mas foi dispensado quando
a mina em que trabalhava foi descoberta pelas autoridades e fechada, já que era ilegal.
Tratava-se de uma mina de calcita, empregada principalmente na fabricação de cal para
argamassa, e albita, utilizada como matéria-prima de louças, porcelanas, e vidro. A mineração
ilegal é uma prática constante na região. Minas são constantemente abertas e fechadas quando
descobertas pelas autoridades, embora haja também algumas mineradoras legalizadas.
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A PLANTATION
Toda a região do médio sertão paraibano foi durante muito tempo celeiro da produção
de algodão, o chamado “ouro branco”, principal fonte de renda da região, que alcançou nos
anos de 1960 e 1970 o auge de sua produção através do regime de monocultura conhecido
como plantation. Com competitividade internacional, a atividade envolvia toda a população
(homens, mulheres e crianças) e garantia o emprego e o sustento das famílias. O regime de
posse da terra era dominado pelos latifúndios, em que poucas pessoas detinham quase a
totalidade das terras disponíveis e agricultáveis, sendo a situação mais comum o chamado
regime de meia, em que o dono permitia que famílias ocupassem um pedaço de sua
propriedade com a condição que dessem metade de sua produção ao latifundiário. Além de
sua pequena produção, estes ocupantes trabalhavam colhendo algodão na imensidão das
grandes lavouras dos patrões. Neste caso, ambos estavam atrelados por uma dependência
mútua, o latifundiário precisando dos empregados para que trabalhassem em sua propriedade,
e os meeiros necessitando de trabalho e de terra.
Este sistema agrícola teve origem na expansão europeia possibilitada pelas grandes
navegações, pois foram nas colônias do Novo Mundo que ele foi inicialmente aplicado, sendo
o sucesso desta técnica crucial para a difusão do processo de conquista das colônias e
acumulação primitiva do capital. A plantation propiciou a produção em larga escala, aliando
monocultura, trabalho escravo e semeadura de espécies exóticas, possibilitando o comércio
intercontinental e a industrialização. Com origem no período escravocrata, o regime da
plantation teve que se modificar conforme as exigências da história. A escravidão no Brasil
teve fim oficialmente em 1888, e com isso os latifundiários tiveram que reorganizar o trabalho
e o valor da mão de obra, mas esta transição foi realizada sem abolir a situação degradante do
trabalhado, sempre em péssimas condições. A mesma lógica fundamental da Plantation
permanece inalterada no agronegócio contemporâneo, com o uso de mão de obra terceirizada
de baixo custo e produção direcionada à exportação. (Tsing, 2015)
Esta relação nos campos de algodão era cercada de conflitos referentes à safra, já que
os principais responsáveis pela produção eram quem menos recebia. Enquanto os donos de
terra adulteravam as balanças de forma que o peso apontado por ela fosse menor do que o
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peso real da colheita, os empregados por sua vez misturavam pedras aos sacos de algodão
para aumentar o peso da saca na hora da pesagem de forma a compensar o déficit da balança.
Embora, pelo tamanho das sacas e pelo peso sentido sobre seus ombros, os catadores de
algodão tivessem uma percepção aproximada de quantos quilos haviam colhido e soubessem
que estavam sendo roubados, não podiam se desvincular efetivamente do latifúndio, já que
suas próprias terras por vezes estavam instaladas dentro das grandes propriedades, o que lhes
deixava uma escassa possibilidade de mobilidade, alem do fato de não existirem outras
opções de emprego disponíveis na época. Esse tipo de atividade encontra ecos no que diz
James Scott (2002) acerca das formas de resistências camponesas, as quais, segundo o autor,
embora não busquem ameaçar ou confrontar a estrutura da desigualdade, renegociam as
relações assimétricas buscando equalizá-las na esfera cotidiana, sempre de forma anônima e
pouco organizada. Segundo Scott:
Heleno contou-me um fato que ocorreu em sua terra e que pode exemplificar a
dimensão letal do veneno: existia em seu terreno uma garrafa guardada há mais de dez anos,
que por um acidente quebrou-se e acabou entrando em contato com um novilho que se
lambuzou no local. Não foi possível salvá-lo nem com remédios e o animal acabou morrendo.
Para se desfazer do corpo resolveram enterrá-lo. Uma galinha que ciscou onde foi quebrada a
garrafa foi ainda menos resistente, tendo morrido antes mesmo do novilho. A tragédia
infelizmente não terminou somente assim: um terceiro animal, desta vez um cachorro, cavou a
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cova do novilho na tentativa de se alimentar dele, e por fim faleceu também infectado.
Houve ainda por parte da Embrapa tentativas de combater o Bicudo: seja modificando
a época de floração da espécie de algodão de forma que não coincidisse com o período de
reprodução do inseto, ou na tentativa de desenvolver outro tipo de algodão “colorido”, mais
resistente à praga. Mas estes projetos fracassaram, o bicudo descolonizou o Plantation, a
agricultura científica que por um tempo se pensou ser capaz de domesticar a natureza
terminou domesticada pelo Bicudo. Foi uma ingenuidade pensar que excepcionalmente os
humanos detinham o poder de transformação da paisagem. O bicudo em meio às plantações
de algodão desarticulou a máquina da agricultura controlada e demonstrou o fracasso dos
projetos de dominação da natureza. Este não é um fato isolado. A monocultura como modelo
de produção de alimentos tem gerado pragas hiper-resistentes, como foi o caso da vassoura de
bruxa (Moniliophtora perniciosa), que assolou as plantações de cacau na Bahia na década de
90. Parafraseando Marx, “os homens fazem a sua história, mas não a fazem como querem”, e
não o fazem porque a história dos homens é a história das relações multiespécies, que como
um pesadelo nos projetos modernos estão sempre a surpreender e sabotar o antropocentrismo
daqueles que acreditavam poder manipular uma natureza morta e inerte
A história que contam a maioria dos agricultores a respeito do declínio do algodão diz
respeito à força econômica no mercado internacional que o produto brasileiro havia
alcançado. Com competitividade global, o algodão produzido nacionalmente estaria
desbancando o mercado sintético americano, o que teria levado os EUA a produzirem
artificialmente uma praga hiper-resistente com a finalidade de eliminar o algodão nacional da
disputa comercial. Em meio à disputa pelo comércio global, o método norte-americano
utilizado teria sido a sabotagem como forma de competição para que seu produto saísse
vitorioso. Mas a narrativa endossada pela maioria dos cientistas da região diz respeito ao uso
6 Tsing chama atenção para o contraste entre a diversidade das roças com mais de 100 tipos de batatas
diferentes das populações nativas Sul americanas e as consequências da busca europeia pela espécie de batata
que melhor atendesse a seus interesses.
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excessivo de agrotóxicos na monocultura. Ou seja, graças à presença constante dos
defensivos, e à falta de rotatividade das culturas, o Bicudo teria se adaptado e desenvolvido
uma resistência especial a estes.
Duas grandes histórias unem essas famílias espalhadas por todo o semiárido: uma é
ligada à monocultura e ao uso de defensivos químicos em algum momento de seu passado; a
outra à migração rumo às cidades em busca de oportunidades. Não conheci sequer uma
família da qual não houvesse alguém que saiu do campo atrás de oportunidades nas grandes
metrópoles, em especial São Paulo e Rio de Janeiro.
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Lévi-Strauss já havia apontado como o exercício da antropologia envolve, mais que a
efetivação do encontro com o outro, uma fuga de sí próprio a partir do diálogo que o trabalho
de campo permite experimentar. Fato é que o mesmo ocorre com os coletivos
antropologizados que não permanecem inócuos à presença do etnógrafo: a partir do encontro
com o antropólogo (o outro dos nativos), esses grupos também criam uma forma de
elaboração acerca de suas próprias práticas de sentido – um campo frutífero para repensar os
estigmas estabelecidos, e a emergência das potências latentes entre eles escondidas sob a
semiótica do mito da seca.
O ESPECTRO EÓLICO
Mais recentemente, uma nova investida modernizadora coloca mais uma vez em curso
o projeto de colonizar o semiárido. Agora sob a ótica “verde” e “ecológica”, a energia eólica
promete enfim levar o desenvolvimento ao sertão. Estão em curso o processo de
7 Não desejo aqui exercitar o narcisismo dos efeitos do antropólogo sobre os nativos com os quais aprendeu;
mas neste caso se trata especialmente de uma reflexão sugerida por Rosivania Jeronimo que na ocasião
coordenava o projeto, após ler alguns rascunhos de meu trabalho ainda em execução, me fez essa sugestão
com base em sua experiência de contato junto a eles, especialmente como coordenadora do projeto.
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arrendamento e testes acerca da viabilidade da produção de energia a partir de usinas eólicas,
aproveitando os fortes ventos que sopram na região. Para conseguir convencer os agricultores
a serem arrendatários a empresa que se instala decidiu contratar o presidente da Associação
dos Agricultores de São José do Sabugi, pessoa com conhecimento, influência na zona rural,
como negociador.8 Esta forma de captura impediu qualquer possibilidade de articulação de
resistência em larga escala, deixando a maioria dos agricultores passivos neste contexto.
Certa tarde, estando eu na casa de meus amigos, chegou um homem numa moto com
um cheque no valor de R$160,00. Era a anuidade que meu amigo arrendatário havia recebido.
Ele achou pouco o valor, evidentemente, mas não reclamou. Nem sabia me explicar o que
exatamente tinha recebido, nem quais as condições do contrato (nem aliás onde exatamente
este se encontrava), ou o que a empresa poderia fazer em seu sítio. As tentativas de
colonização e dominação do espaço por parte dos projetos de desenvolvimento não param de
incidir sobre a região, seja pelas técnicas agrícolas, pelo agrotóxico ou por essa sua mais nova
face, a energia eólica. Mas, apesar dessas e outras investidas da frente de modernização, os
coletivos ali existentes jamais se tornaram completamente modernos, os chefes de família em
sua maioria são ágrafos, os acordos são tradicionalmente firmados em torno da palavra, não
em torno da tinta da caneta pintada no papel. Apenas a forma Estado como mediador das
relações econômicas lhes impõe esta forma específica de transação. Com efeito, o modelo do
contrato não faz parte de sua forma de existência, não obstante sejam obrigados a entrar neste
regime, e firmar negócios em folhas e assinaturas.
Quando lhes perguntei sobre quais as intervenções que eles imaginavam que seriam
realizadas na paisagem, eles não conseguiam responder-me. Parecia algo fora de seu campo
de pensamento imaginar torres eólicas de aproximadamente 100 metros se erguendo, centenas
ou milhares de trabalhadores chegando para a construção de um campo de produção de
energia, sendo necessário para isso a abertura de novas estradas para viabilizar a chegada
desse material, pois as que existem hoje não têm capacidade de absorção de caminhões com
este porte de carga. Dona Jardas certa vez me contava sobre um de seus medos com a chegada
dos campos eólicos e o descompasso entre o ritmo presente e este nova modalidade a se
estabelecer ali: “Se não puder mais tirar uma lenha para o fogão, acabou-se o mundo”.
Sempre que a conversa sobre a implantação dos campos de energia eólica retornava,
8 Este cidadão acaba de se eleger para o próximo mandato como vereador da cidade.
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havia aqueles otimistas que imaginam poder ganhar algum dinheiro com isso, e outros, talvez
mais pessimistas, que se negavam a arrendar suas terras, como é o caso de Heleno, que
conseguiu criar uma pequena resistência ao arrendamento junto a seus vizinhos. Em uma
discussão certa vez na associação de moradores, ficou claro que não se sabia nem se o
arrendante poderia realizar o Cadastro Ambiental Rural, o que por conseguinte gerava novas
dúvidas em relação à utilização pelos arrendatários do seguro safra, um subsídio destinado aos
agricultores para sobreviverem em caso de infortúnios na plantação, e a futura aposentadoria
pelo trabalho agrícola. Pois se o agricultor arrenda sua terra a terceiros, além da própria
experiência da agricultura que corre perigo, toda a rede de seguridade social na qual ele se
insere através da categoria “agricultor” pode ser perdida.
Não consegui ver os contratos a partir dos agricultores, mas a partir de outras fontes
pude ter acesso a um documento modelo da empresa Renova Energia S.A.. Alguns pontos
merecem destaque, por nos darem um panorama do que está em jogo neste processo obscuro e
pouco inteligível para os agricultores9: O arrendamento por parte da empresa garante a ela o
uso da superfície, solo, subsolo e espaço aéreo da propriedade para fazer o cabeamento
subterrâneo e aéreo, bem como para viabilizar as vias de acesso. De início, os contratos são
firmados para que seja possível a realização de uma fase de estudo de viabilidade durante 10
anos, podendo o arrendatário renovar o contrato mediante notificação. Durante este período, o
arrendante recebe R$12,00 por hectare no primeiro ano, R$18,00 no segundo ano e R$24,00 a
partir do terceiro ano de contrato, sendo prometida a indenização em caso de perdas na
produção rural, embora não estejam descritas as formas de calcular tais danos. Depois dos
aerogeradores instalados, aquelas propriedades que os receberão ganharão o valor de R$6.996
anualmente por torre eólica instalada, o que equivale a R$583,00 mensais por torre eólica. Os
contratos, por sua vez, possuem vigência de quarenta anos, podendo ser renovados
automaticamente, e a rescisão podendo ocorrer em caso de inviabilidade do projeto, falta de
licenças ou decreto de falência da empresa, não estando à disposição do arrendante a decisão
da mesma – o que demonstra uma assimetria no que diz respeito aos direitos e conflitos de
interesses envolvidos no processo. Por fim o contrato impõe uma confidencialidade entre as
partes, e, em caso de descumprimento de qualquer cláusula, uma multa de R$20.000.000,00
(vinte milhões de reais) ao infrator. Ao que tudo indica, tal cláusula beneficia somente um dos
lados: não parece ser vantajoso para a empresa tornar públicos os termos em que foram
9 Não desejo realizar uma antropologia do direito ou do contrato, mas apenas acrescentar mais uma camada, a
dos papéis, nesta controvérsia.
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firmados os contratos, já que é ela própria a autora do acordo redigido de maneira unilateral.
Deixemos claro que, ao fazer essas afirmações, não estamos nos opondo às fontes de
energias renováveis, até porque a utilização de energia eólica no semiárido já é hoje uma
realidade, porém em outra escala. Iranildo, a partir de um cata-vento, bombeia toda a água da
barragem para sua casa a partir desta mesma matriz energética – não sem custos, pois nas
proximidades da mesma já é possível ouvir o barulho emitido pela sua válvula de
bombeamento. Mas o que está em questão aqui é a própria extensão, a escala do uso dessa
tecnologia. A que já vigora nos sítios é efetiva e atende aos interesses locais. Mas uma torre
cinco vezes maior geraria um ruído proporcionalmente mais forte, interferindo tanto na vida
humana quanto em todo o resto da vida que habita ali, obrigando todos os habitantes,
humanos e extra-humanos, a conviver com este som, ou a fugir do mesmo. Ainda que fosse
com as melhores das intenções, de atender o máximo possível as demandas de energia em
crescente escala, a lógica de grandes complexos geradores é impossível sem o custo, sacrifício
e o fim de todo um conjunto de ecossistemas de determinado local. Se a tecnologia atual
atende satisfatoriamente às necessidades conjunturais presentes, e ainda é capaz de compor
com todo meio ambiente, não há por que se aceitar como necessária essa mudança de ritmo.
27
OS AGRICULTORES
29
A família de Luzia em Riacho da Serra foi beneficiada recentemente (no inicio de
2015) pela construção de uma "cisterna calçadão" através do Programa P1+210 (Programa
Uma Terra e Duas Águas) implantado pela ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro) em
parceria com a Ação Social Diocesana de Patos. Em um terreno onde eram cultivados apenas
umbuzeiros já com certa idade e algumas fruteiras no quintal de casa, além dos tradicionais
milho e feijão, agora se espalham também dezenas de mudas de árvores frutíferas, como
cajueiro, pinha e acerola. Com a quantidade de água agora disponível para o plantio,
juntamente com o conhecimento aprendido no contato com outros agricultores sobre técnicas
agroflorestais, a família de Luzia transforma a paisagem de seu sítio.
10 Este programa, proporcionado pela ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro) em parceria com outras
organizações locais, neste caso o PROPAC, oferece uma segunda cisterna com capacidade para armazenar 52
mil litros, com finalidade de irrigação na agricultura.
11 O projeto resultou ainda na realização de um vídeo-documentário produzido pelos jovens e que está
disponível online. https://www.youtube.com/watch?v=87SxPoNF1w8 Para saber mais:
http://www.projetomultiplicandosaberes.org/
30
próprios técnicos ou cientistas que aprendem com os agricultores as tecnologias
experimentadas previamente dentro dos sítios.
José Vicente, engenheiro agrônomo que atua no PROPAC e com quem mantive
contato, certa vez me disse ter compreendido que, quando um agricultor, diante de uma
determinada solução por ele proposta, responde que “não dá para fazer”, é porque realmente
essa solução não é possível, e a técnica proposta não teria a efetividade esperada. Rosivania
Jeronimo, engenheira florestal também daquela instituição, corrobora o mesmo discurso,
tendo aprendido, segundo ela, muito mais em campo, junto aos agricultores, do que na
universidade. Em outra ocasião, em uma oficina de defensivos naturais promovida pela
EMATER/PB, pude acompanhar a embaraçosa e cômica situação dos técnicos que, enquanto
professores, tinham nojo de manipular o esterco com as mãos. Atitude que provocará além de
muitas risadas, uma dúvida acerca da legitimidade daquele saber. Lielma Xavier, bióloga,
também do PROPAC, ao me explicar sobre como funcionava a epistemologia de
conhecimento dos agricultores, dizia que para eles é preciso “ver para crer”. A difusão do
conhecimento não se dá através de planos abstratos e teóricos, mas a partir da própria
experiência concreta como forma de conhecimento. Se o sujeito não tem capacidade de
manipular bem a substância, ou não consegue provar empiricamente o sistema produtivo, a
simples teoria não lhes basta.
31
A CHUVA
O médio sertão paraibano se apresenta numa paisagem em quase tudo oposta à cena
pintada pelo pensamento hegemônico e amplamente difundida sobre o semiárido brasileiro:
uma região de solo rachado e castigado, esqueletos de vacas mortas pela seca e apodrecendo
expostas ao sol, lugar pobre em biodiversidade12, dominado pela miséria. A máquina
semiótica de produção do sertão como lugar da seca tem sido bem sucedida em seu
empreendimento de marginalização da região. Os agricultores, embora reconheçam esse
estigma difundido no “sul”, não se identificam com ele. Em nossas conversas, a todo
momento me questionavam e me cobravam, no sentido de que eu não endossasse este senso-
comum de uma relação indissociável entre semiárido e falta ou seca. Perguntas como “o que
você imaginava ver aqui, e o que você viu?” proliferavam em meio às nossas conversas. Eles
pareciam querer, e mesmo exigir, que eu contasse uma história não convencional, uma
história "menor" do sertão; desejavam que eu falasse sobre as narrativas alternativas que
estavam encobertas pelo grande mito da seca, de miséria, do “subdesenvolvido” fadado ao
atraso. Contar uma outra história, evidenciando os agentes minoritários ocultados pela
narrativa hegemônica, implica ressignificar e dar novas cores à fantasia de pobreza
historicamente formulada sobre a região.
12 Não obstante, tem se constatado o fato da caatinga brasileira ser a região semiárida mais biodiversa do
planeta, como afirma o biólogo João Arthur Seyffarth.
13 Além disso, devido à proximidade da linha do equador, a posição perpendicular dos raios solares faz com que
a evapotranspiração seja maior que a quantidade de precipitação.
32
e ritmos de todos os agentes locais, que se movem de acordo com o curso das águas vindas do
céu. Conviver com a seca exige uma desaceleração em relação à velocidade que o mundo
moderno exige. A reprodução dos animais, bem como a floração das plantas, os ciclos de
roçado, e os rituais a eles relacionados, além da economia e as disputas políticas, estão todos
em consonância com a força gravitacional exercida pelos lentos fluxos rítmicos do
acontecimento da chuva nesta região.
Diante do céu nublado com perspectiva de chuva, no sertão se diz: “Tá bonito pra
chover!” Diferentemente das expressões mais comuns no sudeste, como “o tempo fechou”,
ou “o céu está feio”, fazendo alusão a momentos de tensão ou a uma situação de conflito, no
sertão a chuva é um evento aguardado com muita esperança. No tempo da chuva é ela o
principal assunto; quando chega é recebida com alegria, espera-se um volume grande para ir
festejar debaixo da água caindo do céu. As biqueiras dos telhados por onde escorre a água da
chuva se transformam em cachoeiras, as crianças brincam de pular sobre as poças d'água que
se formam no chão e os barreiros se transformam em piscinas. Bráulio Bessa, poeta do sertão,
consegue exprimir esse sentimento em um poema de apenas um verso: “Aqui no sertão,
quando o céu chora, a gente acha é graça”14.
Essa expectativa diante da chuva não deve ser vista com estranheza; afinal, é preciso
que chova para que a vida se mantenha e prospere. Quanto aos tempos secos e às dificuldades
de sobreviver sem chuva, o sertão conhece bem essa dura realidade15, e portanto os habitantes
dali desenvolveram tanto uma ontologia particular conferindo um valor especial a chuva,
quanto um conhecimento meteorológico tradicional sobre a mesma, aliado a uma economia
política da natureza singular, voltada para os recursos hídricos.
14 Tive a ideia de incluir aqui este verso ao ler um post de minha amiga Andresa Pereira no Facebook, em que
comentou com esta frase uma foto da chuva caindo no sitio onde ela reside. Agradeço a Andresa pela
inspiração.
15 Há uma vasta literatura da seca debruçada sobre este tema, que não tivemos tempo de explorar aqui. A saber,
Raquel de Queiroz em O Quinze, Euclides da Cunha, em Os Sertões, Guimarães Rosa, com Grande Sertão:
Veredas, Vidas Secas de Graciliano Ramos, entre outros. Além da presença na arte como nas poesias de
Patativa do Assaré e nas músicas de Luiz Gonzaga.
33
mudanças climáticas) que atingiu algumas das principais metrópoles brasileiras nos anos de
2014 e 2015. Quanto a isso, há que se admitir que é no semiárido que estão os especialistas
neste assunto. Com somente três meses de chuva por ano, os agricultores ali aprendem a
captar e a estocar água suficiente para uso doméstico e agrícola por todo o ano, até que um
novo período de chuvas possa reabastecer seus estoques. Isso só é possível por um imaginário
bem diverso daquele do sudeste, que dá sentido à experiência cotidiana, e fundamenta práticas
de captação e utilização dos recursos hídricos no sertão. Aqui nos inspiramos especialmente
no tratamento que Mauro Almeida (2013) confere ao conceito de ontologia e seus efeitos
sobre a textura do mundo.
Em julho de 2015, o período em que estive pela primeira vez na região, aconteceu algo
inusitado. Embora estivéssemos no verão, chegou uma chuva inesperada que, ainda que em
forma de chuvisco, durou alguns dias. Eu fiquei surpreso, pois havia sido avisado que do céu
não cairia sequer uma gota neste período, e essa chuva gerou também uma perplexidade geral
entre os agricultores,.
Quando perguntados sobre o porquê daquele evento, uma resposta muito recorrente entre os
meus amigos, com pequenas variações, foi: “Deus disse que quando o homem quiser saber
mais que Ele, Ele vai mudar os tempos.” “Ninguém mais entende o tempo, ele está
desmantelado”, dizia Heleno. “Essa mudança do clima se dá devido a uma culpa nossa, nós
estamos provocando o que está acontecendo”, completava Dóia. No período de chuvas já não
chove mais como o esperado, e no período de seca vem a chuva sob forma de fina garoa.
A chuva é responsável por organizar a vida. Quando ela mesma se desorganiza, isso
gera um desalinhamento completo para todos os agentes acostumados com uma certa ordem
de eventos. Os agricultores percebem essas mudanças através das espécies cultivadas que
safrejam fora do tempo habitual, como também através da migração de animais terrestres e
34
pássaros que aparecem ou desaparecem fora do período previsto. As previsões climáticas
baseadas na observação dos ciclos naturais e floração de plantas têm sido afetadas por aquilo
a que os agricultores se referem como a “mudança dos tempos”. A percepção local é análoga
àquela da ciência climática, que cada vez menos consegue antecipar os eventos pontuais do
clima devido ao que progressivamente vem se reconhecendo como efeitos do Antropoceno16.
Referindo-se a este conceito, Bruno Latour recentemente afirmou, de maneira muito próxima
aos agricultores do semiárido: “as coisas têm mudado tão rápido que se tornou difícil de
acompanhá-las” (Latour 2013).
Quando, no mês de dezembro, uma árvore seca e cheia de cupins se quebra, isso é um
sinal de que a chuva está chegando. Uma aroeira17 que resistiu e chegou até esse mês
16 A constatação de que os humanos se tornaram o principal ator responsável pelas alterações nos processos
biofísicos do Sistema Terra (Danowski e Viveiros de Castro 2014), passando assim de meros agentes
biológicos a agentes geológicos (Chakrabarty 2013), longe de representar a realização do ideal modernista de
triunfo do humano sobre a natureza, constituiu uma verdadeira utopia invertida, com a simplificação
inexorável do mundo cultural e biológico planetário.
17 Todos estes indicativos referidos foram recolhidos através de conversas em momentos informais. O pouco
35
carregada de folhas indica o mesmo. As aves também são consideradas adivinhadoras do
tempo. Quando o bacurau canta no fim do dia, isso é um indicativo de que o inverno ainda
não terminou, ainda há chuva por vir neste período. Já o canto dos “gavião de rapina”
significa seca. O ponto de vista das aves sobre a seca tem ressonância também nas artes
produzidas no nordeste. A música “Acauã”, sucesso na voz de Luis Gonzaga, de autoria de Zé
Dantas, fala do canto solitário da ave durante o tempo da seca, segundo conta o verso:
Outra técnica bem conhecida é a observação da vida social das formigas, em particular
da altitude do terreno onde elas fazem seus ninhos: quanto mais alto o monte de terra onde
está a entrada, maior será a quantidade de chuvas prevista, pois as formigas não querem correr
o risco de ver suas casas inundadas. A quantidade de bagaço que as mesmas formigas retiram
de suas casas para fazer uma nova armazenagem sugere também fortes indicativos: uma
grande quantidade demonstra que as formigas estão em processo de limpeza de seus ninhos,
pois precisarão de muito espaço para estocar o novo capim do inverno. Da mesma forma, as
formigas tanajura avistadas circulando pelo solo são indício de estiagem. Dona Jardas, ao ver
em seu quintal a circulação dessas formigas carregando folhas para os ninhos, perdia sua
alegria contagiante e esbraveja com a constatação de que “lá vêm três dias de verão.”18
Inácio me disse certa vez, acerca dessas experiências, que “a natureza é um negócio
bem feito”. Mas para além de indicar e permitir a previsão de como será o próximo período de
chuvas, o que essas técnicas exprimem é também um conhecimento meteorológico por parte
dos outros seres da natureza. Com efeito, a meteorologia praticada pelos agricultores se
tempo de campo impossibilitou o recolhimento e o registro cientifico das espécies, o que portanto restringe
nossa identificação ao conhecimento tradicional formulado pelos próprios nativos.
18 Para além da marcação de estações meteorológicas, o dualismo das expressões “verão”/”inverno” concerne a
própria descrição da paisagem do céu, bem como o tempo dado no sentido do presente, um tempo chuvoso é
descrito como “inverno”, enquanto o céu azul, de sol à pino é um dia de “verão” .
36
fundamenta na meteorologia que outros agentes praticam. É observando como os animais e as
plantas se preparam para o inverno que os agricultores assim o fazem, de modo que os ritmos
humanos acompanham os extra-humanos.19 Através da articulação entre os indicativos e os
acontecimentos, repetidas por gerações, uma cadeia de sentidos inesgotável se multiplica, na
qual torna-se impossível definir um corte preciso onde terminariam essas “experiências”.
Nelas, o ponto de vista de todos os agentes importa, na medida em que todos os agentes têm
um ponto de vista próprio acerca da chuva para perseverar no ambiente (Vieira 2013).
No cotidiano desses agricultores, frases que fora daquele contexto aparentemente não
têm sentido algum guardam conexões para mim até então insuspeitas. A frase “O trovão é o
pai da coalhada” me soou muito estranha na primeira vez que a ouvi21. Que relação pode
haver entre o trovão, um ruído provocado por uma descarga elétrica sob a atmosfera, e a
coalhada, alimento feito a partir do leite, muito consumido e apreciado na região? Entre o
trovão que cai e a coalhada que aqueles sertanejos comem há uma série de acontecimentos
que se sucedem e se encadeiam em um ritmo particular. A chuva que cai forte provoca o
trovão; a grama cresce vigorosa a partir da umidade criada no solo pelas gotas d'água vindas
do céu e se transforma em alimento farto e nutritivo para o gado; a produção de leite aumenta;
a fartura de alimento chega finalmente à mesa do agricultor, que, com o excedente de leite,
19 Nossa preferência pelo conceito de “extra humanos” em detrimento do conceito de “não humanos” tem
fundamento análogo à preferência de Viveiros de Castro pelo conceito de “extramodernos” (2016) uma vez
que o prefixo “não” parece caracterizar uma certa ideia evolucionista de falta, da qual gostaríamos de nos
distanciar.
20 A expressão local “dar com força” é usada como um intensificador de determinado evento. Por exemplo: “O
feijão está dando com força” significa que a safra está vindo em grande quantidade.
21
Esta simples afirmação revela, para além do conhecimento local, a equivocidade que pode existir entre duas
culturas que, apesar de falarem a mesma “língua nacional”, possuem um abismo colossal entre suas
categorias constitutivas de pensar. Aprender o português do médio sertão foi aprender uma nova língua
dentro do próprio país, com novas modulações de palavras, expressões, e um dialeto próprio. As palavras
transcendem a fortaleza da língua, e onde quer que estejamos podemos encontrar a dissolução da unidade
nacional expressa através dos pequenos dialetos que proliferam. (Bagno, 1999)
37
pode desfrutar do prazer de uma coalhada. A continuidade e os efeitos de todos esses atores
revelam a complexa trama23 de alianças não hierárquicas com os extra humanos em que os
agricultores estão entrelaçados.
23 Aqui nos inspiramos especialmente no conceito de malha de Tim Ingold (2012), quando o autor se refere aos
feixes de linhas emaranhadas de movimento e crescimento que se entrelaçam nas diversas relações das
diferentes formas de vidas. Segundo o autor, são essas trajetórias que constituem a textura do mundo.
24 Almeida, Mauro, "Caipora e outros conflitos ontológicos". Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1,
jan.-jun., p.7-28, 2013.
25 Tomo os dois conceitos, "Modernistas" e "Terranos", de Bruno Latour, que, transformando uma ideia
presente já em seu clássico Jamais Fomos Modernos (1994), propõe, no contexto da crise ecológica global e
do Antropoceno, que reconheçamos a existência hoje de uma guerra de mundos, uma divisão entre o povos
dos Humanos (ou Modernos, ou ainda Modernistas) e o povo dos Terranos. Os primeiros acreditam que ainda
vivem no Holoceno, pretendendo submeter a Natureza à sua Cultura, sem levar em conta os limites que a
própria Terra impõe ao desenvolvimento e ao modo de vida da sociedade industrial capitalista. Enquanto os
Terranos, conscientes de estarem vivendo a nova época geológica do Antropoceno, entendem que precisam
compor seu mundo com os outros seres viventes, de forma a não subsumi-los aos seus próprios interesses.
38
hiberna, esperando as primeiras gotas d'água para acordar e florir. A chuva acorda a vegetação
que a estiagem fez adormecer, e o verde então pode ressurgir na caatinga que perdera suas
folhas para resistir à seca. A capacidade de resiliência vegetativa da região impressiona: em
menos de quinze dias de chuva a transformação do marrom e do cinza ao verde é radical, a
coloração de folhas novas faz a paisagem brilhar; o juazeiro, uma das poucas árvores que
resistem à perda de folhas na seca, fica com um verde ainda mais intenso. Essa mesma
resiliência encontramos nos agricultores, que precisam conviver com o clima semiárido. Ali
não se pode intervir na paisagem sem pensar na disponibilidade de recursos e nos limites que
a própria natureza impõe; os humanos não podem acelerar o ritmo lento da natureza, é preciso
acompanhar seu movimento.
Evanilson, filho de Heleno, já havia perdido duas vezes no mesmo ano o roçado de
milho e feijão, um consórcio de plantio feito tradicionalmente no inverno que depende da
regularidade de chuvas para safrejar. Neste caso, não basta apenas que a chuva caia em
bastante quantidade, mas é preciso que ela venha em determinada frequência, de preferência
com potência mais fraca, para “aguar” regularmente as plantas e não agredir o solo
provocando erosões. Devido à extensão do roçado e à própria escassez de água disponível, a
atividade humana de regar se torna inviável: é preciso que o céu mande chuva para sustentar o
solo úmido por todo período de cultivo até o período de reprodução, quando se pode recolher
as favas de feijão e as espigas de milho.
39
Além disso, todo o regime agrícola regional é pautado pelo calendário religioso. O São
João, por exemplo, que é reconhecidamente a festa mais famosa do nordeste (e que hoje faz
um sucesso estrondoso com a realização de megaeventos produzidos pelas prefeituras de
diversas cidades), é tradicionalmente a festa da colheita. Os festejos de São João, no final de
junho, sucedem o período intenso de chuvas, e coincidem principalmente com a safra de
feijão e milho. O dia 19 de março, dia de São José, padroeiro dos agricultores, é também
aguardado com muita expectativa e celebrado com entusiasmo. Dizem os agricultores que
chover nesta data é um sinal de que haverá um bom "inverno", já que se espera que o santo
traga a chuva do céu. O Dia de São José marca justamente a entrada no período mais
proveitoso do ano para o agricultor, pois se supõe o início do período em que as chuvas
ocorrem com mais frequência. É sempre também nas proximidades desta data26 que, de
acordo com o saber da ciência meteorológica, ocorre a transição das estações do verão para o
outono, sendo o outono a estação caracterizada pelo maior índice de pluviosidade do ano na
região do Semi-árido, acompanhada de uma regularidade de chuva. É importante neste caso
compreender o ritual situado dentro de um ciclo temporal, no qual as datas religiosas
fornecem uma noção concreta do movimento do clima, marcando os eventos e hábitos de
processos extra humanos e expressando um saber próprio difundido pelo ritual como forma de
conhecimento (Morin de Lima, 2016).
26
No ano de 2016 o outono se iniciou oficialmente dia 20 de março na região.
40
se especular um diálogo possível entre eles, já que em muitos aspectos há uma convergência
entre ambos (Almeida, 2013).
41
ECOTECNICAS DO SERTÃO
42
bancárias do tipo hawala, à arboricultura diferencial dos indígenas
amazônicos, à navegação estelar polinésia, aos “agricultores
experimentadores” do semiárido brasileiro, a inovações hiper-
contemporâneas como o movimento das ecovilas, a psicopolítica do
tecnoxamanismo ou as economias descentralizadas das moedas comunitárias
do bitcoin e do crowdfunding”. (Danowski e Viveiros de Castro 2014: 148)
Pois bem, acreditamos que podemos ver nas práticas dos agricultores
experimentadores do semiárido nordestino exemplos dessas tecnologias terranas. Trata-se de
invenções locais, adaptadas e modificadas de acordo com as possibilidades particulares de
cada território, sendo cada agricultor ao mesmo tempo inventor local, agente propagador e
aprendiz constante numa rede intensa de associações e trocas.
Uma tecnologia difundida por toda a área rural do sertão da Paraíba são as cisternas de
armazenamento de água, inventadas por um agricultor sergipano que trabalhou por anos em
São Paulo fazendo piscinas a partir de placas de cimento pré-moldadas. Ao retornar à sua
terra natal, teve a ideia de fazer uma piscina a partir das placas, porém tampada de forma que
fosse possível captar água de chuva sem que o calor evaporasse o líquido armazenado. Essa
invenção simples, a partir de uma gambiarra, garantiu uma qualidade de vida sem igual no
campo.
43
Desde sua implantação, as mulheres não precisam mais andar quilômetros atrás de
água para cozinhar. Além disto, a qualidade da água para uso tornou-se muito superior,
havendo uma forte diminuição na incidência de infecções bacterianas causadas por água de
baixa qualidade, o que era muito comum quando a fonte para cozinhar e beber se limitava aos
açudes e barreiros onde os reservatórios estavam expostos a céu aberto e a contaminação de
animais e outros dejetos que pudessem ali se alojar.
No quesito armazenamento de água, essa sem dúvida é a tecnologia mais presente nas
residências, mas não a única. Os agricultores possuem diversas formas de armazenamento e
irrigação, cada qual de acordo com a sua necessidade e com a especificidade de cada terreno.
Iranildo, por exemplo, construiu uma barragem subterrânea a partir de uma extensa lona
plástica atravessada no subsolo formando uma parede dentro da terra, que impede a dispersão
das águas pelos lençóis freáticos. A água ali retida cria uma vazante artificial que mantém a
umidade no solo e lhe permite plantar até meados de agosto sem regar. Criou também um
sistema de irrigação de agrofloresta que utiliza canos de PVC como condutores e tampas de
garrafas pet como gotejadores, nutridos por uma pequena barragem que armazena água para
uso tanto na agricultura como na residência nas atividades de higiene doméstica. Já no
terreno de Mario Virginio, ao lado do qual sua filha Luzia possui uma casa, são utilizadas
duas cisternas de captação de chuva que foram construídas em seu terreno, além da recente
"cisterna calçadão" de 52 mil litros para utilização na agricultura. Heleno inventou uma
técnica sofisticada de irrigação por meio de potes confeccionados com barro e esterco, o que
deixa-o poroso e vazando lentamente, alimentando por cerca de uma semana as plantas, de
maneira que não há desperdício por evaporação e há uma economia do trabalho, não sendo
necessário aguar sempre. Cinco cisternas diferentes acumulam água em sua terra, totalizando
um armazenamento de mais de 100 mil litros de água, incluindo a cisterna tradicional de 16
mil litros e a cisterna calçadão, além ainda de uma cisterna de 32 mil litros feita com as
próprias mãos utilizando a forma pré-moldada prevista no programa "Um milhão de
cisternas", mas dobrando seu tamanho e sua capacidade de armazenamento, além de um
tanque de pedra adaptado no lageiro, uma formação rochosa comum não região e existente em
seu sítio, na qual foi necessário somente construir os muros para barrar a água. Quando uma
cisterna sangra, Heleno direciona um cano rumo a outra cisterna.
Há também um outro programa do governo com atuação do exército, que fornece água
potável para as residências que assim o desejarem27. Entretanto, a qualidade para consumo
humano dessa água é contestada pelos próprios agricultores, devido a seu cheiro forte e
coloração. Os agricultores reclamam também dos requisitos para enquadramento no
programa, os quais incluem a exclusividade do uso desta cisterna como condição para o
recebimento da água fornecida pelas forças armadas, ou seja, proíbe o armazenamento das
cisternas com água da chuva, o que impossibilita sua emancipação (mesmo que temporária) e
os torna dependentes de assistência. Mas os agricultores também sabem criar formas de burlar
as adversidades impostas sem deixar sua vida ser precarizada. Algumas famílias recebem
água do caminhão-pipa distribuída pelo exército e a utilizam para diversos fins; a água do
exercito é usada no banho, na agricultura, para dar de beber aos animais, enchendo suas
cisternas calçadão, exceto para beber. Para uso humano recolhem água das cisternas de seus
parentes que moram muito próximos e captam a água da chuva. Não há uma rejeição ao
recurso oferecido, mas de forma silenciosa se nega a proposta, conferindo novos fins ao
benefício oferecido (ver Medeiros, 2016).
A água para beber necessita de um cuidado especial para manter sua qualidade, Luzia
possuí uma técnica de purificação, na qual ela exibe uma garrafa d’água da cisterna cheia ao
sol, sob uma lona preta, de maneira que o calor dos raios que incidem sobre a mesma matam
27 As verbas para este programa destinadas ao exército foram cortadas recentemente pelo governo de Michel
Temer como forma de contenção de gastos.
45
as microbactérias que podem ser danosas ao corpo humano, sem extinguir completamente os
nutrientes benéficos à saúde.
28 Esta técnica foi utilizada primeiramente por Iranildo, mas tem se espalhado entre outros agricultores através
das trocas de experiências entre eles. Levi me contou que a água de sua pia escoava a céu aberto no jardim,
mas que, logo após escutar de Iranildo sobre os benefícios e a facilidade de implementação daquela
tecnologia, ele a reproduziu em seu sitio.
46
árvores de médio porte e mantendo o arredor de casa verde. Mario Virginio e Heleno
receberam em 2015, de um programa do governo, uma nova cisterna calçadão cujo objetivo é
armazenar uma segunda água para uso agrícola através da captação da chuva, dinamizando os
quintais produtivos nos arredores de casa. Ambos estão ampliando suas culturas de
subsistência graças à água captada nessas cisternas.
Com efeito, o agricultor só semeia se existir água suficiente para o plantio até o
período da colheita. Desta forma, para fazer o roçado é necessário fazer um planejamento
levando em conta as chuvas que caíram, a água disponível nos reservatórios de água e o
consumo de que essas plantas necessitarão até que safrejem29. Assim, logo após as chuvas, é o
período em que a horta está mais cheia de sementes e plantas. À medida que vai se
aproximando o mês de dezembro e a água vai chegando ao fim, o tamanho da horta vai
esmiuçando, colhe-se o que safrejou, mas se tem a paciência de esperar um novo “inverno”
para se plantar de novo.
29 As decisões e os planejamentos dos agricultores nada têm a ver com cálculos matemáticos complicados, mas
sim com sua percepção, baseada na experiência passada da quantidade de volume d'água disponível e do que
é possível semear com ele.
47
breve se mostrar imprescindíveis – e não só alí – como formas de resistência ao Antropoceno,
por implicarem toda uma outra relação com o tempo e os ritmos da natureza, que vai na
contracorrente da temporalidade unidirecional pressuposta pela ideia de progresso e de
aceleração do crescimento, característica do pensamento moderno.
Nos arredores de casa, os quintais produtivos dão uma diversidade de frutas, alimentos
e temperos utilizados diariamente na cozinha. Embora os agricultores não cheguem à
subsistência total, parte das refeições são preparadas com alimentos vindos de sua própria
terra; o coentro, por exemplo, ingrediente essencial na culinária local, é também planta
sempre presente nos quintais. Além disso, em seus roçados, os agricultores realizam uma série
experimentos de cultivo lado a lado de espécies variadas, maximizando o espaço e os
nutrientes do solo e realizando uma espécie de simbiose, ou o que chamaríamos
convencionalmente, no campo da agronomia, de consócios, juntando duas ou mais espécies
diferentes que se combinam em alianças não hierárquicas, sem estabelecer competição entre
si. Segundo eles dizem, “uma planta segura a outra”. O exemplo mais conhecido é a técnica
de plantar milho junto ao feijão, podendo ainda se inserir no mesmo roçado o jerimum
(abóbora), a melancia, e eventualmente até a palma.
Na maioria dos casos observados, aliás, a agricultura não é a principal fonte de renda
familiar, devido tanto ao tamanho da produção e sua sazonalidade, quanto ao próprio valor
financeiro dos alimentos, o que por sua vez reforça a ideia de que a atividade não está
relacionada a aspectos econômicos, mas sim a uma certa concepção de cuidado com a terra.
Luzia trabalha na casa da prefeita Nelis, e também é merendeira noturna em Riacho da Serra;
48
e tanto Iranildo quanto Heleno trabalham como agentes de saúde em suas respectivas regiões.
Embora a agricultura tenha deixado de representar uma estabilidade econômica, o que tem
levado a uma proletarização dos trabalhadores rurais, obrigando-os a ingressar no mercado de
trabalho, isso não fez com que deixassem de semear e cuidar de seu roçados e fazer do solo a
vida brotar.
Quando argumento que o processo de agenciamento é sintrópico, isso quer dizer que
nada se perde, ou ao menos que se tenta perder o mínimo; reaproveita-se tudo que é possível,
num continuo de vida, de forma a sempre buscar maximizar, não a produção, mas as fontes
vivas de energia. Certo dia, quando o capim colhido estava verde demais e a forrageira não
conseguia moer por completo, sobraram alguns tocos de capim que os animais não foram
capazes de digerir. No dia seguinte lá estavam os tocos de capim reaproveitados, plantados
em forma de mudas no sistema agroflorestal (SAF). O esterco da vaca é um potente adubo, e
isso já é bem conhecido. Mas neste processo de produção de adubo quem realiza um papel
importante são as galinhas, que, ciscando nas fezes, as espalham, acelerando o processo de
fermentação e transformando em adubo o que antes era esterco.
Não que estes agricultores nunca tenham utilizado defensivos químicos. Como já
dissemos, isso já aconteceu no passado, e eventualmente pode até ser que diante de uma praga
incontornável eles recorram novamente aos agrotóxicos. Fato é que acabaram vítimas daquilo
que imaginavam ser remédio. Levi chegou por esse motivo a ficar internado, envenenado
entre a vida e a morte; mas, como me contou, graças ao bom Deus se recuperou, embora não
completamente. Outros não tiveram a mesma sorte. Vítimas fatais dos agrotóxicos, hoje ao
menos suas mortes servem de exemplo aos agricultores experimentadores.
49
Os agricultores experimentadores têm aliás realizado uma verdadeira “transformação
molecular”, no sentido que Felix Guattari (1981) confere ao conceito, que se dá a partir de
uma relação entre diferentes de uma forma que não é nem horizontal, nem hierárquica, mas
transversal. Há em curso uma transformação na linguagem e nos nomes que os camponeses
dão às coisas a partir do contato com as organização e o léxico discursivo moderno da
agroecologia, sem que isso interfira em suas categorias constitutivas tradicional. O que é
comum se ser chamado de cova, por exemplo, buraco onde se cava para enterrar a semente a
germinar, ganha agora o nome de “berço”. Dizem que cova é para enterrar defunto, mas
nesse buraco (ao contrário) se coloca uma vida que vai germinar e crescer e, portanto isso
deve ser chamado de “berço”.
O GADO
Em outra ocasião, o mesmo Levi me disse que “quem tem gado é escravo dele”. De
fato, quando estive vivendo junto à família Garcia, pude observar que as tarefas mais
extenuantes, mais pesadas e que mais consumiam o tempo da família não diziam respeito ao
cuidado com a agricultura. É sobretudo na criação do gado que está presente o tipo de serviço
mais pesado, aquele que enfada o homem. Embora este serviço pesado seja ainda muito
diferente daquele da cerâmica que já descrevemos, pois ele se dá em eventos esporádicos,
alternados por uma série de serviços maneros que implicam na obrigação diária da qual não é
possível se ausentar, de desmamar a vaca e alimentá-la.
Mas seria equivocado interpretar isso como perda de liberdade individual para
dedicar-se aos animais. Como Iranildo me explicou, o gado está a todo momento em nossas
vidas, e por isso todos somos escravos do gado, ao menos à mesa. Seja no leite do café da
manhã, na manteiga, no queijo, na própria carne consumida por quase todos ali e alhures. É
difícil para um vegetariano urbano como eu compreender, mas o sertanejo consegue amar o
gado e comê-lo. A diferença é que na cidade o cidadão nem sequer pensa ou compreende o
esforço que foi despendido até que o alimento chegasse à sua mesa, ao passo que o gado
ocupa uma função central na vida do sertanejo; o criador cuida do gado com amor até que
chegue o momento de alimentar-se dele.
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Em uma rotina típica de serviço manero, o dia na roça começa às 5 da manhã com a
ordenha, atividade na qual confesso ter sido um fracasso completo. Tirar leite definitivamente
não é uma atividade fácil, exige ao mesmo tempo uma força especifica dos dedos e uma
sincronia no movimento. Basta que um dedo esteja posicionado de forma errada, ou que o
movimento não seja articulado de maneira correta, para que o leite não seja expelido do corpo
da vaca. No sertão são os homens que realizam esse trabalho, e a ordenha é realizada somente
uma vez ao dia, pela manhã. Primeiro uma corda é lançada amarrando as patas traseiras da
vaca, e seu bezerro livre bebe um pouco de leite; depois ele é retirado das tetas mãe e tem sua
cabeça amarrada nas patas dianteiras da vaca leiteira. Sentado em um pequeno banco, com um
balde de metal entre as pernas, retiram-se em média 2 a 4 litros, podendo chegar até a 5 litros,
de leite de cada vaca em período de aleitamento; depois o bezerro é solto, as pernas da vaca
desamarradas e o novilho retorna às suas tetas para continuar a mamar. É necessário ter
cuidado para não extenuar a vaca, e também dividir o leite com o novilho, para que ele se
alimente bem e cresça forte. Todas as vacas recebem um nome e seus donos conseguem
distinguir cada uma de acordo com sua personalidade, se é mais dócil ou mais braba, também
através de suas tonalidades de cor e manchas próprias. Esta relação de proximidade com o
animal é cultivada através de gerações, sendo comum um pai presentear seu filho ainda bebê
com um novilho que crescerá junto com a criança.
Na parte da manhã é preciso ainda colher alimento para as vacas, que, assim como
nós, precisam de uma refeição diversificada, saborosa e saudável. Por isso, sempre que
possível se conjuga o corte de capim elefante e o sorgo. Na parte da tarde ainda há o trabalho
de os moer na forrageira, atividade que consiste em otimizar todo o alimento e garantir que
haja um máximo aproveitamento por parte do gado, sem desperdício.
No que tange ao serviço pesado, as atividades que mais enfadam são os eventos
esporádicos de armazenamento, como a silagem, a produção de capim, o plantio de capim na
barragem. Enquanto a água ainda está na altura da cintura na barragem, espalha-se ali capim
retirado de outro terreno ainda em crescimento para que, conforme a área alagada se torne
vazante, ele enraíze, e depois de cerca de três meses, quando a barragem já estiver seca , ele
esteja grande e vigoroso, pronto para alimentar os animais no tempo da seca. O esforço
contido nessas ações aparentemente simples é imenso, ocupando um dia inteiro de trabalho
enfadante, além de apresentar vários perigos contidos na própria atividade. Eu mesmo cheguei
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a sofrer um ataque de formigas conhecidas por alemãs, quando carregava um molho de capim
cheio delas; meu braço chegou a inchar por alguns dias devido à suas picadas.. Para entrar
com o capim na água é utilizada a técnica da paviola, em que duas madeiras resistentes são
enfileiradas de forma paralela, atravessando o capim horizontalmente, e dois homens devem
carregá-la barragem adentro até o ponto onde ela será dispersada e ficará boiando na água. A
paviola ainda exige um cuidado particular, uma vez que não se pode deixar molhar as toras, o
que faria seu peso aumentar significativamente.
Tanto a silagem como o plantio de capim na barragem nos fornecem indicações para
compreender a necessidade do trabalho coletivo como única forma de perseverar no roçado.
Nos tipos de serviço pesado, situações em que só é possível trabalhar através de mutirão,
homens e mulheres participam, pois um corpo só não dá conta da coordenação e da força
física exigidas. Em uma divisão sexual do trabalho visivelmente marcada, cabe aos homens o
feitio da silagem propriamente dita e às mulheres a produção de alimentos e café para o
mutirão. Fica evidente a necessidade de coesão e alianças nos processos de armazenamento
de nutrientes para o verão, Esse tipo de relação é também presente no serviço manero, no
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cotidiano do cuidado com a roça, quando a força enérgica do trabalho em conjunto faz com
que os seres individuais potencializem suas forças e não esmoreçam. Seu Heleno lamentava
que sua rotina era solitária no roçado quando seu filho Evanilson estava ocupado com algum
outro tipo de trabalho e dizia: “se o cabra trabalha sozinho esmorece”. No trabalho em
conjunto, a companhia e o humor das piadas contadas na rotina no campo, a chamada
“manguação”, fazem o serviço e o tempo passar mais rápido.
A VIDA BROTANDO
Mas a potência criativa dos meus amigos do sertão é forte mesmo no sentido de fazer
a vida brotar, recuperar o solo infértil e inventar formas de driblar as investidas colonizadoras
de destruição da paisagem sem se deixarem ser capturados pela semiótica desenvolvimentista
e colonizadora. É verdade que eles eventualmente cedem a essa lógica dada a pressão que elas
exercem a todo momento nas subjetividades, e praticam atividades que poderíamos supor
serem pouco ecológicas. Não é raro encontrar passarinhos presos em gaiolas. Tampouco são
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raras as histórias de caçadas virtuosas em que são mortas centenas de arribaçãs. Mas isso não
é tudo.
Numa outra ocasião, agora na casa de Iranildo Garcia no Vale do Sabugi, enquanto
trabalhávamos no viveiro de mudas nos deparamos com alguns escorpiões. Iranildo fez
questão de apenas afastá-los de modo que não nos oferecessem perigo. Mas não tardou uma
outra ameaça ainda maior à nossa frente no viveiro. Era uma cobra-coral30 que se escondia
entre as mudas. Iranildo foi com calma retirando muda a muda, até conseguir espantar a cobra
que ali estava. Quando contávamos aos outros de nosso encontro na mata, quase sempre nos
perguntavam se nós tínhamos matado a cobra, e, ao ouvirem a resposta negativa, quase
sempre os vizinhos de Iranildo diziam que ele deveria ter dado fim a ela. Mas Iranildo ficava
irredutível em sua posição de preservação da cobra. Dizia que ela tinha seu papel naquele
espaço.
Esses agricultores preservam o meio ambiente por meio de uma percepção local e
particular, não por uma generosidade geral e abstrata em relação a seres menores.
Compreendem a importância desses agentes ecológicos extra humanos no ecossistema e na
dinamização dos processos de vida exercido por eles no ambiente local. Iranildo, com quem
tive a oportunidade de aprender e de fato é um grande intelectual local, volta e meia me
mostrava orgulhoso uma nova espécie de muda nascendo no chão e dizia: “essa planta aqui
não fui eu que plantei; se você cuida da natureza, ela te dá de volta”. É através dessas
interações existentes que os agricultores aproveitam a oportunidade de composição com a
30 Não identificamos com certeza se se tratava de uma coral verdadeira, venenosa, pois existe também a
chamada coral falsa, muito parecida com aquela, mas que não possui veneno.
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terra. É produzindo condições e recebendo os benificios do habitar compartilhado com os não
humanos que eles constituem uma relação intensa de reciprocidade.
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