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Gabriel Holliver Souza Costa

“Tá bonito pra chover”


Agricultores Experimentadores no Semiárido da Paraíba

Monografia

Monografia apresentada à Banca examinadora de Graduação em Ciências


Sociais da PUC-Rio

Orientador: Felipe Sussekind


Co-orientadora: Deborah Danowski

Rio de Janeiro
Dezembro de 2016
Agradecimentos

Talvez este seja o momento de ser estruturalista ortodoxo, se cá estou eu agora


apresentando minha monografia creio que isso se deve mais a todo o conjunto de relações que
eu estou inscrito do que à mim próprio. Minha família, meus professores, meus amigos daqui
e do semiárido são todos responsáveis por uma obra que é mais de autoria coletiva que
individual.

Agradeço primeiramente, à minha família, se não fosse toda a estrutura que ela me
reservou durante todo este tempo, enchendo minha vida de amor e alegria, conferindo a mim
o privilégio de poder dedicar-me exclusivamente as rotinas universitárias, fazendo todo
esforço necessário para garantir minha permanência, minha mãe Claudia, meu pai Anael, meu
padrasto João, minha madrasta Gilcimar, minha sogra Nalva, meu tio Edson, meus padrinhos
Paula e Túlio, e a Gabrielle, meu porto seguro e companheira de caminhada.

Foram cinco anos nesta Universidade que me abrigou desde o momento em que fui
aprovado pelo Prouni. A PUC sempre me foi um lugar distante, estudar aqui não passava pela
minha cabeça antes de ingressar. Depois de iniciados os estudou continuou longe
geograficamente, atravessar a cidade todos os dias para ir as aulas não foi fácil, lembro-me
dos choques que sofri no começo, não sabia como portar com meu corpo, de que maneira
deveria me expressar (e isso as vezes me causa embaraços até hoje), era um novo mundo que
se abria para mim e eu ia descobrindo. No coração da Zona Sul, a universidade da elite
carioca nunca foi um ambiente acolhedor para um suburbano, mas felizmente eu estava no
Departamento de Ciências Sociais, ali estavam também boa parte daquela gente diferente que
não se enquadrava no estereótipo “filho da PUC”.

Agradeço a todos os funcionários da PUC-Rio, e faço aqui um agradecimento especial


a todos os funcionários do bandejão, que durante todo esse tempo foram responsáveis por
prepararem minha comida com tanto amor. Ao FESP (Fundo Emergencial de Solidariedade
PUC-Rio) que durante todo esse tempo financiou minha passagem e minha alimentação nesta
universidade, sem o qual eu não teria condições de arcar com essas despesas.

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Minha turma era maravilhosa, nos corredores nossos veteranos nos chamavam de “os
felizes”, todos jovens, cheios de energia, andávamos juntos desbravando as xerox em busca
dos textos introdutórios, e os bares atrás de cerveja. Agradeço à Kaua Vasconcelos, Luana
Fonseca, Tatiana Araújo, Pedro Braga, Milena Trindade, Everton Sampaio, Natália Guindani,
os amigos que me acompanharam no inicio dessa jornada. Hoje, termino com dezenas de
grandes amigos que construí ao longo desse tempo e creio, ficarão para todo o resto da vida,
agradeço imensamente a todos pelas trocas e ensinamentos. Idjahure Kadiweu, Heitor
Zaguetto, Bruno Teixeira, Caio Muniz, Yeza Lojo, Andrezza Pereira, Julia Sá, Guilia Luz,
Leandro Marinho, Mariana Lopes, Antonio Pedro de Barros, Alyne Costa, Clara Vale, Daniel
Mota, Danielle Ferreira, Igor Valemiel, Joana Willemsens, Juliana Moreira, Sarah Laurindo,
Lucas de Deus, Caique Bellato, Dani Vidal, Luis Paulo, Yago Reis, Tabáta Lisboa e Bruno
Costa.

Ao Departamento de Ciências Sociais, devo dizer que o mesmo me abrigou como um


verdadeiro lar, as secretárias Monica Gomes, Eveline Medeiros e Ana Roxo sempre cheias de
amor e solicitas me forneceram toda a estrutura em todas as vezes que precisei, sempre
prontas também para puxar a orelha diante de algum desmantelo meu, exerceram para minha
formação uma função educadora.

Quando eu aqui cheguei eu pouco sabia, na verdade eu não sabia nada mesmo. E se
não fosse a generosidade e paciência de todo o corpo docente com a minha ignorância, talvez
eu não tivesse nem terminado a graduação, creio meus professores acreditaram mais em mim
do que eu próprio. A proximidade permitiu que de educadores se tornassem amigos. Agradeço
a todos os professores do Departamento de Ciências Sociais, em especial à Luiza Leite, Paulo
Jorge, Luiz Fernando, Maria Alice, Werneck Vianna Valter Sinder, Tatiana Bacal, Felipe
Sussekind, Marcelo Burgos, Marcelo Sorrentino, Maria Isabel, Robert Wegner, e a todos os
encontros do Laboratório de Teoria da Cultura.

Agradeço também ao Departamento de Filosofia que foi para mim uma segunda casa,
lá que me defrontei com a questão ambiental, e pude realizar graças à Deborah Danowski a
pesquisa de Iniciação Científica que deu origem a esta monografia. A ela eu tenho uma
extensa dívida pela sua sempre generosidade, atenção com temas de pesquisa que me
angustiavam e confiança depositada em mim. Se hoje termino a graduação tendo realizado
três meses de trabalho de campo, é ela a principal responsável. Felipe Sussekind sempre ao
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meu lado tem sido mais que um orientador, junto a Deborah Danowski com todo empenho e
dedicação tem me ajudado na construção de um conhecimento necessário para a elaboração
do trabalho monográfico. Orlando Calheiros tem sido uma inspiração para continuar no
campo acadêmico, suas revisões e críticas durante o processo de escrita da monografia o torna
também co-orientador deste trabalho.

Rondinelly é também uma figura marcante nesse processo, depois de eu me encantar


com sua palestra no Colóquio Os Mil Nomes de Gaia e desejar conhecer de perto aquelas
práticas, sua receptividade com nosso projeto foi enorme, depois quando me recebeu em sua
casa junto a sua família, Nalva, Chico, Carpegiany e Rodrigo foi para mim um grande irmão.
Durante o campo, Rondinelly foi meu principal interlocutor, eu testava as minhas observações
com ele, sempre pronto a ouvir minhas reflexões rudimentares seguidas de longas conversas
esclarecedoras.

Todo apoio prestado pela equipe do PROPAC (Ação Social Diocesana de Patos) foi
fundamental também para que este trabalho acontecesse, Rosivania Jeronimo foi quem me
levou até os agricultores. Quando cheguei ao campo estava se iniciando o projeto
Multiplicando saberes com camponeses e camponesas e foi com ela que fiz minhas primeiras
expedições. Nesse contexto interdisciplinar pude aprender muito, além de Rosivania, Lielma
Xavier, José Vicente, Irenaldo Pereira me ofereceram muitas oportunidades de troca de
saberes. José Marcio, Aurino, Ariano, e Allyson Gabriel merecem também um agradecimento
especial, grandes amizades que se constituíram durante o campo.

Os agricultores tem sido meus professores desde o momento que os conheci, a forma
com que receberam esse cabra do sul são difíceis de descrever, Seu Inácio, Dona Maria,
Iranildo, Netinha, Dona Jardas, Seu Mário, Luzia, Cabeludo, Seu Heleno, Dona Branca,
Evanilson, Zé, Marizete, Tales, Cabeludo, Fabrício, Seu Judivan, Dona Ivonete, Paulo de
Ornilo, Andresa, Dória, Erivan, Seu Levi, Dona Francisca, Jéssica, Mikaelly, só tenho a
agradecer por toda a generosidade que tiveram por mim. O que eu tentei realizar aqui foi falar
um pouco dessa filosofia presente entre eles, consciente de que suas vidas transcendem em
muito essas poucas páginas que escrevi, espero conseguir retribuir toda a generosidade e
hospitalidade em que recebi, e ser digno com esses encontros. Este trabalho é sobretudo para
vocês.
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Resumo

Holliver. Gabriel. “Tá bonito pra chover” Agricultores Experimentadores no Semiárido da


Paraíba. Rio de Janeiro, 2016. 59 p. Monografia – Departamento de Ciências Sociais,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A possibilidade de habitar o semiárido brasileiro e enfrentar os períodos de seca sempre
pareceu um desafio colossal ao projeto civilizador. A característica peculiar do bioma da
caatinga tem servido muitas vezes como arma para a difusão do mito da escassez que constitui
a ideia do combate à seca. Mas seca não se combate, se convive com ela. Em meio a um
cenário de desertificação em processo de entropia a partir principalmente do corte de lenha
para cerâmica e da pecuária extensiva e o cultivo do algodão no passado agricultores
experimentadores resistem aos modelos hegemônicos capitalistas criando, testando e
aplicando tecnologias sociais próprias. Com somente três meses de chuva por ano, captam e
estocam água suficiente para uso doméstico e agrícola por todo ano. Diante dessa
sazonalidade rigorosa, a chuva dita os movimentos e ritmos de todos os agentes locais, os
habitantes dali desenvolveram tanto uma ontologia particular conferindo um valor especial a
chuva, quanto um conhecimento meteorológico tradicional sobre a mesma, aliado a uma
economia política da natureza singular, voltada para os recursos hídricos.

Palavras-Chave
Agricultores Experimentadores; Chuva; Convivência com Semiárido; Ontologia

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Abstract

Holliver. Gabriel. "It's good to rain" Experimental Farmers in the Paraíba Semi-Arid. Rio de
Janeiro, 2016. 59 p. Monograph - Department of Social Sciences, Pontifical Catholic
University of Rio de Janeiro.
The possibility of inhabiting the Brazilian semi-arid and facing periods of drought always
seemed a colossal challenge to the civilizing project. The peculiar feature of the caatinga
biome has often served as a weapon for spreading the myth of the scarcity that constitutes the
idea of combating drought. But dry does not fight, if you live with it. In the midst of a
desertification scenario in the process of entropy, mainly from the logging of logs and from
the extensive livestock farming and cotton cultivation in the past, experimental farmers resist
the hegemonic capitalist models by creating, testing and applying their own social
technologies. With only three months of rain per year, they collect and store enough water for
domestic and agricultural use every year. In the face of this rigorous seasonality, the rain
dictates the movements and rhythms of all local agents, the inhabitants of which developed a
particular ontology giving a special value to the rain, as well as a traditional meteorological
knowledge about it, allied to a political economy of the singular nature , Focused on water
resources.

Keyword:
Farmers Experimenters; Rain; Living with Semiarid; Ontology

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Sumário
Resumo................................................4

Introdução............................................7

O Estigma...........................................14

O Mundo em desmantelo....................16

A Cerâmica.........................................17

A Plantation........................................19

O Espectro Eólico..............................24

Os Agricultores..................................28

A Chuva.............................................32

Ecotécnicas do Sertão........................42

O Gado..............................................50

A Vida Brotando...............................53

Bibliografia........................................56

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Introdução

A presente crise ambiental contemporânea pode ser caracterizada por dois conceitos
que têm assumido um lugar de destaque nos últimos anos: Antropoceno e Gaia.

O primeiro conceito foi recentemente proposto por cientistas para se referir à nova era
geológica, no próximo ano segundo tudo indica, ele deve ser oficializado pela União
Internacional de Ciências Geológicas. O grupo de trabalho encarregado de apresentar as
evidências das novas marcas na terra defende que ela teria começado mais provavelmente no
inicio da década de 1950, período caracterizado pela chamada “Grande Aceleração”. Esse
período marca o inicio de uma mudança abrupta seguindo um aumento constante de
temperatura global. Elementos radioativos, microplásticos, e alto dióxido de carbono
encontrados nas geleiras estão sendo utilizados como prova da influência antrópica
preponderante neste processo.

Em 1750, quando foi iniciado o uso do carvão na primeira máquina a vapor industrial,
a quantidade de carbono na atmosfera era de 280 partes por milhão. Hoje o carbono na
atmosfera já passa de 400 partes por milhão. Em 2009 um grupo de cientistas liderados por
Johan Rockstrom desenvolveu um modelo em que estipula nove limites seguros que a
natureza nos impõe, e que não podem ser ultrapassados de forma que em caso de rompimento
à essas fronteiras, corremos o risco de por fim a atual estabilidade do sistema capaz de
comportar as formas de vida que conhecemos. São eles as mudanças climáticas, perda de
integridade da biosfera (perda de biodiversidade e extinção de espécies), perda do ozônio
estratosférico, acidificação dos oceanos, alteração dos fluxos geoquímicos (nitrogênio e
fósforo), mudança no sistema terrestre, água doce para consumo, carga atmosférica de
aerossóis, e introdução de novas entidades (como microplásticos e objetos radioativos e
nanomateriais).

Em 2015 esse mesmo grupo realizou a atualização deste estudo, constatando que
quatro limites já haviam sido excedidos, as mudanças climáticas, a perda de integridade da
biosfera, mudança no sistema terrestre e alteração dos ciclos biogeoqúmicos. Os efeitos

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dessas perdas por sua vez são difíceis de calcular, pois estando o sistema todo conectado, cada
alteração retroalimenta e reorganiza todo o sistema, gerando o que se convencionou chamar
de feedbacks positivos, o que torna difícil inclusive a projeção das expectativas, já que os
ecossistemas sempre reagem de maneira não linear (Rockstrom 2009). Em menos de 300
anos, a humanidade alcançou uma potência mortífera de um asteróide da magnitude do
responsável pela extinção dos dinossauros no período cretáceo. Em termos de história
profunda do planeta, constata-se que ele já acabou cinco vezes através de uma perda ostensiva
de biodiversidade, observando a velocidade e a quantidade de espécies extintas nos últimos
anos, cientistas afirmam estarmos vivenciando o sexto acontecimento de fim de mundo
(Kolbert 2014).

A submissão de uma enorme quantidade de culturas à ordem do desenvolvimento


capitalista industrial, que leva em conta prioritariamente o caráter econômico imediatista,
levou a uma exploração desenfreada de recursos naturais, acompanhada da proliferação
incessante de tecnologias cada vez mais complexas, em sua maioria à base de combustíveis
fósseis. O Ocidente com sua ontologia totalitária não soube respeitar os limites que a natureza
nos impõe, sob o plano cartesiano se imaginou uma natureza morta sem agência. E a
consequência do naturalismo que estamos todos testemunhando é uma ampla e profunda crise
ecológica, acirrada sobretudo pelas mudanças climáticas, de modo que o caminho triunfal
seguido pela humanidade parece ser antes um processo de entropia, levando-nos todos a um
futuro de escassos recursos naturais e culturais, e portanto a uma diminuição progressiva das
diferentes possibilidade de vida. O processo de degradação segue em eventos dispersos, locais
em uma “violência lenta”, mas em constante aceleração, onde novos recordes de
temperaturas extremas são quebrados frequentemente. Secas, pragas, extinções, guerras se
retroalimentam de forma que o futuro designado por Stengers (2015) acerca da “barbárie por
vir” se apresenta já empiricamente no presente. (Danowski e Viveiros de Castro, 2014)

O segundo termo, Gaia, inspirado sobretudo na Hipótese ou Teoria de Gaia criada


pelos cientistas James Lovelock e Lynn Margulis, tem servido como uma proposta filosófica
de antídoto ao primeiro, a partir principalmente das obras de Bruno Latour e Isabelle Stengers
sobre o tema. Pensar o planeta a partir de Gaia significa pensar a possibilidade de estabelecer
outras formas de relação a partir de uma visão ecocêntrica, com fluxos de energia intensos, na
qual cada actante planetário é origem e destino de relações e reações não lineares que se
conjugam com as nossas próprias ações numa dinâmica atmosférica frágil. Propõe-se assim
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uma composição cosmopolítica do humano com os outros seres habitantes do planeta, que
permita a emergência de novas formas de interação entre os humanos e o chamado “meio
ambiente”, capaz talvez de resistir à extrema simplificação cultural e natural que ameaça
desestabilizar Gaia e os viventes e não viventes que a compõem.

Diferente do paradigma do século XX, segundo o qual Lovelock afirmou ser


caracterizado pela sua demasia cartesiana, o que pesquisas recentes tem apresentado é uma
ciência interessada sobretudo na interação da espécie e no habitar de cada ser, rompendo com
o paradigma interior/exterior. Jacob Von Uexkull, aquele ecólogo perdido no passado volta à
cena, a partir de autores como Tim Ingold e Bruno Latour que fazem reviver sua teoria sobre
a noção de “Umwelt”, segundo cada animal possuí um mundo próprio com suas formas
singulares de percepções. Parece cada vez mais indiscernível fazer um corte entre a espécie e
o seu meio, pois cada ser para habitar o mundo modifica o ambiente da mesma forma em que
ele é modificado para habita-lo em uma dialética onde nenhuma das partes sai incólume à
relação. Sendo impossível reduzir a vida à ela própria, só existindo enquanto em relação ao
mundo à sua volta.

Como lembra Bruno Latour, “o esquisito não é as pessoas ainda crendo no animismo,
mas em um tempo de mudanças drásticas ainda há gente pensando em um mundo
inanimado” (Latour, 2013) Será necessário reavivar nossa diplomacia cosmológica,
reanimando o mundo, e para isso especularemos mundos possíveis com agricultores do
semiárido. O Antropoceno aponta para uma nova ferida narcísica na sociedade, esta nova era
geológica designa o fim de um espírito de Época em que será necessário reconfigurar a
programação e as formas de agir das maquinas e os humanos. Se as ciências naturais
realizaram o trabalho de cartografar a conjuntura, descrever, e constatar os efeitos
devastadores que a vida humana predominante nos últimos três séculos realizou, colocando
em risco a própria espécie, cabe as ciências humanas expandir nossa latitude de novos
mundos possíveis, nos devolvendo outra figura de nós mesmos. Um virtual para nós, que já é
real para outrem, e por estar no concreto, em uma metafisica da práxis pode ser também real
para nós. (Danowski e Viveiros de Castro, 2014).

Buscando compreender experiências que contribuam para essas novas formas de


existência possíveis no Antropoceno, e de resistência à radical simplificação que ameaça
transformar profundamente nosso mundo, procuramos analisar as “sociotécnicas”
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desenvolvidas por agricultores experimentadores da região do semiárido brasileiro da Paraíba
e compreender o caráter simbiótico de sua relação com o clima, suas narrativas, sua filosofia e
visão de mundo.

A relação de interlocução contemporânea entre saberes científicos e saberes


tradicionais vem rompendo com o paradigma clássico da ciência moderna, que pressupunha
um distanciamento em relação às praticas tradicionais de conhecimento. Esta relação desfaz
também com paradigmas do próprio campo interno de algumas disciplinas, como por
exemplo a farmacologia. Os resultados alcançados pela etnofarmacologia a partir dos
conhecimentos tradicionais tem se mostrado por vezes tão proveitosos quanto aqueles
praticados em laboratório, sob a lógica de teste e resultado de diferentes combinações
(Carneiro da Cunha 2007).

Ora, esta é uma dimensão fundamental na antropologia. A célebre formulação da


ciência do concreto feita por Lévi-Strauss afirma uma simetria entre os saberes científicos e
tradicionais, ambos fundados sob uma intelectualidade prática de ordenação do mundo,
diferindo somente em suas lógicas epistêmicas. De um lado uma lógica conceitual de
distanciamento, do outro uma lógica perceptual, do sensível. A mesma operação de simetria
repercute no perspectivismo ameríndio formulado por Eduardo Viveiros de Castro e Tania S.
Lima, agora no campo da própria filosofia, os autores propõem um contraponto entre o
pensamento ameríndio e as categorias cognitivas euro-americanas.

A antropologia, portanto, esteve na vanguarda deste movimento científico de dialogo


valorização de outras formas de conhecimento e pensamento, incluindo aí pesquisas sobre
ecologias rigorosas e percepções aguçadas do meio ambiente por parte de populações
tradicionais. Apenas como exemplo do que tem sido feito nessa disciplina, podemos citar os
recentes estudos de Mauro Almeida (2013) no Alto Juruá, que mostram como, na ecologia da
caça ribeirinha regida pelo pensamento mítico, existe um caráter tão “ecológico e sustentável”
quanto o proposto pelo estado da arte da produção sustentável guiada pelo conhecimento
científico. Outro exemplo é o trabalho de Renzo Taddei (2006) no sertão brasileiro acerca do
desenvolvimento de sofisticadas técnicas locais de previsão climática pelos chamados
“profetas da chuva”. Fazendo uso das mais diversas tecnologias, geralmente associadas à
observação da natureza (o ciclo reprodutivo de animais) e do espaço (onde as investigações
voltam-se para os astros), esses atores locais ocupam um importante papel no planejamento da
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população, visto que a chuva tem uma centralidade importante no calendário agrícola e a
produtividade depende essencialmente dela.

Por fim, acreditamos que a relevância deste estudo não passa tanto pela preservação de
um certo tesouro que estaria desde sempre guardado no coração do Brasil, mas antes pela
consideração simétrica de saberes e práticas cosmopolíticas em constante atualização,
permitindo-nos encontrar uma linha transversal de conhecimento nos saberes tradicionais, que
se constituem como vias de descolonização do pensamento em alternativa às categorias euro-
americanas de pensamento.

Se o momento de crise gera, a necessidade de novas formas de relação com a natureza,


a antropologia pode enriquecer as discussões sobre as necessidades conjunturais presentes,
recolocando o problema sob outros termos, a partir do encontro com outras categorias de
pensamento, compreendendo formas reais de existência bem sucedidas em caráter ecológico
simbiótico com o clima pode então especular novos mundos possíveis para fugir à barbárie.

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No Vale do Sabugi O agricultor do Sertão
A ameaça da desertificação
Por causa da devastação
O agricultor tem muita disposição
Gerou negatividade
Trabalha com algo pesado
Devido a humanidade
Sem precisar ter estudado
Os campos ter desmatado
As vezes doi no coração
Deixando desanimado
Por provocar a desertificação
O agricultor do Sertão
Estou falando do machado
Deixando desanimado
Quando planta o milho no chão
O agricultor do Sertão
E falta o molhado
O terreno fica encascorado
Em resposta a desertificação tem Luzia,
Devido a sequidão
Iranildo e Seu Heleno
Murchando a plantação
Que a natureza estão protegendo
Por não ser aguado
Fazendo a recuperação
Deixando desanimado
De toda vegetação
O agricultor do Sertão
Que tinha se acabado
Isso não deixa desanimado
Devido a grande extração
O agricultor do Sertão
Por meio desordenado
Do mato explorado
No Vale das Espinharas
Para plantar algodão
No Sertão Nordestino
Pondo em crise a região
Onde Curral é feito com varas
Devido o trabalho inadequado
Nasceu o agricultor José Marcelino
Deixando desanimado
O agricultor do Sertão
Quando menino viveu um tempo na cidade
Só que depois de alguns anos no sítio foi
Toda a população
morar
Precisa ser por fruto alimentado
Mesmo passando por muita dificuldade
Desde o agricultor até o advogado
Hoje é dono do seu próprio lar
Embora essa alimentação
Gera preocupação
Também nas Espinharas
Devido alguns alimentos, está envenenado
Tem Seu José Benício do Sítio Trincheiras
Deixando desanimado
Que planta frutíferas
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E cria vacas leiteiras E sim de negação

Com a silagem alimenta sua garroteira Porém tem seu Cleoberto


Exemplificando a superação Que é um ser consciente
Mostrando que sua vida guerreira Trabalhando de modo certo
Só pode ser de “cabra” do Sertão Preservando o meio ambiente

Embora seu rio seja vitima da poluição Em vez de usar veneno

A agroecologia é por ele vivenciada Utiliza cobertura morta

Tentando por fim nessa má ação Isto é, a sobra do feno

Que pelos outros é provocada Que serve para adubar a horta

Também tem Judivan e Ivonete que são


Seu Levi também é vítima das ameaças
dois seres adaptados
das irrigações
Onde os defensivos naturais
Por ser de formas desordenadas
Por eles são sempre usados
Em vez de ser por encanações
Para proteger suas plantas medicinais
E por valetas rebocadas

Ainda tem os agricultores Luiz, Joaquim e


E não posso esquecer nesses versos,
Damiana
o apicultor Paulo de Ornilo
Que não trabalham com modos perversos
Que também é agricultor
Se preocupando com a saúde humana
E ainda domina poesia com muito estilo
E assim finalizo esses versos

No Vale do Piancó
O uso de agrotóxico e a desmatação
Ygo dos Santos Monteiro
Não é um modelo franco

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O ESTIGMA

A possibilidade de habitar o semiárido brasileiro e enfrentar os períodos de seca


sempre pareceu um desafio colossal ao projeto civilizador. Sabemos disso desde os relatos de
Euclides da Cunha, ao mesmo tempo espantado e encantado com a capacidade de resiliência
do sertanejo de sobreviver naquela região “inóspita”, seja pelo seu bioma, seja pela suas
histórias de resistência aos modelos de ocupação determinadas pela colonização. A
característica peculiar do bioma da caatinga tem servido muitas vezes como arma para a
difusão do mito da escassez, como se esta região fosse condenada a viver na miséria a menos
que ali chegasse o “desenvolvimento”. Segundo Medeiros (2016), a seca seria, do ponto de
vista da colonização, uma desobediência natural que deve ser extinguida. E não faltam
exemplos de programas desenvolvimentistas implementados pelo Estado nacional brasileiro e
o capitalismo industrial ao longo da história da região, guiados por uma visão tecnicista, tais
como a imposição do cultivo de espécies exógenas voltadas à exportação, através do regime
conhecido como plantation, as barragens no leito do Rio São Francisco para captação de
energia, ou o plano de transposição do mesmo para irrigação de monoculturas, ou ainda a
construção de estradas como a Transnordestina, acrescidos sempre de loteamentos de terras às
margens das rodovias ou mesmo a ocupação do espaço rural para a produção de energia eólica
arrendando territórios férteis e impedindo o cultivo nestes espaços. Esse processo se dá
continuamente ao longo da história por meio de grandes intervenções, sob o modo da
violência intensiva aplicada à ecologia local, e de alteração significativa da paisagem. Nessas
intervenções, em geral mal sucedidas, são investidas grandes somas de recursos, concentrados
na forma de projetos extraordinários que supostamente irão resolver a questão da seca,
solução esta que falha a todo momento, não conseguindo sanar o que as autoridades chamam
de “problema da região” (Silva, 2003; Malvezzi, 2007).

Esta articulação constitui a ideia do combate à seca, verdadeira máquina semiótica que
agencia por vez sua própria indústria, produzindo falsos remédios para um falso “problema”
inexorável que é a estiagem climática da região, deixando de lado a endêmica questão da
concentração de terras, de forma que é mantida a estrutura desigual da região e a manutenção

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do poder local. Mas não se combate à seca, se convive com ela.2

Durante meu trabalho de campo, quando conheci dezenas de agricultores espalhados


pelo médio sertão paraibano, pude observar a presença da máquina semiótica colonizadora,
expressa, entre outras coisas, no “senso comum” de que o pequeno agricultor é figura do
passado. A flecha do tempo incide sobre as gerações jovens incentivando-as a deixar o sertão
e ir ganhar a vida na cidade moderna; os jovens filhos de agricultores das gerações mais novas
em diversos casos parecem não ter uma identificação com aquele espaço da sociedade, e
muitas vezes preferem trabalhar como serventes nas roças de um latifundiário a cultivarem
sua própria safra e serem agricultores autônomos, ou ainda em muitos casos são levados a
buscar um meio de vida fora do campo, o que gera como consequência o êxodo rural. No
entanto, há famílias resistentes ao modelo hegemônico, jovens agricultores que seguem
reafirmando sua identidade de camponeses, sucedendo a seus pais, aprendendo com as
invenções e o conhecimento acumulado de gerações passadas, e bem sucedidos no
desenvolvimento de novos conhecimentos e técnicas agroecológicas. Os próprios agricultores
atribuem o aumento do preço dos alimentos ao êxodo rural, confirmando a máxima do
conhecido jargão que diz que, se cada vez há menos agricultores no campo plantando, não há
comida para a cidade se alimentar. E aqueles que migram e vão tentar ganhar a vida na cidade
quase sempre têm como destino as favelas. Em uma conversa com um dos agricultores com
quem convivi, seu Mario, este me explicou como ocorre esse processo: “todo mundo tem esse
sonho de ir para a cidade: Rio de Janeiro, São Paulo, João Pessoa; as pessoas vão para a
cidade achando que vão ficar ricas; assim, só roubando! Meu filho foi há dezesseis anos para
lá, e só conseguiu comprar uma moto esse ano.”

Renzo Taddei (2006) chama a atenção para o modo como os conceitos de


modernidade e progresso são usados como máquinas semióticas políticas pelos investidores
locais para implementação de projetos, sob o pretexto de se oporem ao atraso e
subdesenvolvimento que caracterizariam a agricultura familiar local. Fato é que o semiárido
sempre foi habitado3, e ali sempre se conviveu com os períodos alternados de seca e chuva. O
ambiente do sertão desafia as formas de existência colonizadoras, e deixa claro que a
possibilidade de sobrevivência humana de modo ecologicamente sustentável no semi-árido só

2 Para uma genealogia do debate entre os paradigmas de combate a seca e convívio com o semiárido ver Silva
(2003).
3 O próprio nome semiárido é de origem na língua indígena tupi, que significa caa=mata, tinga=branca. (Silva,
2003)
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é possível através de uma simbiose muito característica e específica com aquele meio
ambiente particular (Medeiros 2014).

Mas consideremos que esses pequenos agricultores não são figuras do passado, como
sugere o paradigma de combate à seca, cujo modelo de ação é o controle e a manipulação de
uma natureza passiva em prol unicamente das vontades humanas; mas antes pré-figurações do
futuro no Antropoceno, tendo em vista as mudanças climáticas globais, que têm acirrado a
aridez de diversos biomas e aumentado as incertezas climáticas que avançam por outras
regiões do planeta. Fazer do solo brotar comida será fundamental para a sobrevivência
humana, tarefa que se tornará mais árdua com a entropia que se expande e desertifica parte do
mundo. Os agricultores do semiárido, mesmo com a irregularidade hídrica de sua região, em
simbiose com a vida que habitam, praticam a arte de produzir alimentos em um ambiente
difícil.

O MUNDO EM DESMANTELO

O Vale do Sabugi está localizado dentro do núcleo de desertificação do Seridó, a


região em estágio mais avançado de desertificação da Paraíba, como consequência das
intervenções antrópicas na região, que geraram um processo de entropia, a partir
principalmente do corte de lenha para cerâmica e da pecuária extensiva e o cultivo do algodão
no passado (Costa, et al 2009). Os agricultores relatam uma série de espécies que vêm se
perdendo de geração em geração. Nesse contexto, cada nova criança que chega ao mundo
encontra uma biodiversidade menor, com uma paisagem mais simples. Todo filho ouvirá do
pais relatos de espécies que ele não terá a oportunidade de conhecer e por sua vez falará a
seus filhos sobre aquelas espécies que viu e já não existem mais ali. O jacú (Penelope
Jacucaca4), pelo que me foi relatado, foi o primeiro animal a ser extinto da região, uma ave

4 Em virtude da própria ausência de indivíduos dessas espécies, não temos precisão na definição das mesmas.
Por isso, por precaução, empregamos aqui a nomenclatura cientifica para nos referir às espécies endêmicas
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grande e de lenta locomoção, facilmente caçada como alimento. O mesmo aconteceu com o
tatu-bola (Tolypeutes tricinctus) e com a onça-parda, conhecida também por suçuarana ou
gato-do-mato (Puma Concolor), esta última também caçada impiedosamente devido ao medo
que despertava, e o prestigio da exibição de sua pele como signo de coragem. Há no presente
várias espécies em vias de extinção, com exemplares que aparecem ali com raridade, como é
o caso do papa-capim (Sporophila nigricollis) e do mocó (Kerodon rupestris).

A CERÂMICA

O trabalho na cerâmica5 e na mineração são umas das poucas fontes de emprego na


região. Além de remunerarem muito mal seus empregados, entretanto, são também atividades
que contribuem à desertificação do ambiente. Trabalhar nestes empregos parece ser uma das
"alternativas infernais" (Stengers, 2015) com as quais se deparam os moradores desta zona
rural, já que neste contexto os próprios moradores são obrigados a compactuar com a
destruição do seu habitat para garantir sua sobrevivência pragmática. Pois é preciso trabalhar
para sobreviver, e já que os campos de algodão que no passado era a principal alternativa
econômica da região não existem mais, hoje não há muitas outras fontes de renda e empregos
disponíveis, só restando a cerâmica e o minério, o tipo de “serviço pesado”, como eles dizem,
aquele em que é exigido o máximo de vigor do corpo, sem tempo para descansar, o trabalho
mais duro, que enfada o homem.

A palavra "enfadar" é empregada por esses agricultores sobretudo com respeito às


atividades de serviço pesado, o que pode ser considerado uma forma de construir um corpo
forte para se adaptar à rotina exigida. O enfadamento foi, por exemplo, um processo pelo qual
meu próprio corpo passou na medida em que estive convivendo e me habituando na rotina do
roçado, sentia uma forte dor na musculatura no fim de um dia cansativo, meu corpo ficava
moído, segundo a expressão local. Mas trata-se sobretudo de um processo a ser neutralizado
com o tempo, ou seja, a expectativa é que a pessoa passe a não mais enfadar e que aguente a
sequência em rotina do serviço pesado. Agricultores mais velhos acostumados com o

da região da caatinga que estão catalogadas como espécies em extinção.


5 A cerâmica a que me refiro aqui se dedica especialmente à indústria de produção de tijolos e telhas.
17
cotidiano de práticas do campo diziam não ficarem mais enfadados, e contavam sucessivos
tipos de serviços pesados que já realizaram no passado para justificar o vigor no presente. O
trabalho na cerâmica, na mineração quebrando pedras, ou nos campos de algodão e pastoreio
de bois de latifundiários eram sempre evocados como argumento de autoridade incontestáveis
no assunto.

O processo produtivo da cerâmica funciona na região de maneira semi-industrial com


forno a lenha, no qual a algaroba (Prosopis juliflora) é a principal fonte de energia e a única
legalmente extraída, já que a mesma é considerada exótica na região, embora isso não impeça
que sejam queimadas juntas outras madeiras nativas. O maquinário transforma a matéria
prima em telha, mas é necessária a mão de obra do trabalhador manual para inserir e retirá-la
do forno. Heleno certa vez me disse que “na cerâmica o homem imita a máquina”. A
introdução da argila e a retirada da telha devem acompanhar o ritmo veloz imposto pela
indústria, É preciso ter agilidade já que a forma monta rápido o produto, o que faz com que
neste tipo de serviço tudo seja corrido; segundo contam, não há tempo para conversar, e até
para beber água é preciso correr, já que a produção não pode parar. O homem que ali trabalha
carrega um enfadamento constante; todos sabem que na cerâmica não existe serviço maneiro.
Como ouvi certa vez em uma conversa informal de um vizinho de Heleno, “o cabra passa o
dia inteiro no pesado para ganhar R$800,00”. Ainda mais cruel neste serviço é a função de
introdução da lenha no fogo para a fabricação, um processo em que os braços são as
ferramentas do operário, e no qual o risco de queimaduras é eminente já que as chamas
tomam conta do forno e não há proteção alguma para o trabalhador.

Claudinho, de apenas 20 anos, já trabalhou com esses dois tipos de serviços pesados.
No caso da mineração, o trabalho de servente se resumia em quebrar pedras, e sua ferramenta
de trabalho era a marreta. Permaneceu quase um ano empregado, mas foi dispensado quando
a mina em que trabalhava foi descoberta pelas autoridades e fechada, já que era ilegal.
Tratava-se de uma mina de calcita, empregada principalmente na fabricação de cal para
argamassa, e albita, utilizada como matéria-prima de louças, porcelanas, e vidro. A mineração
ilegal é uma prática constante na região. Minas são constantemente abertas e fechadas quando
descobertas pelas autoridades, embora haja também algumas mineradoras legalizadas.

18
A PLANTATION

Toda a região do médio sertão paraibano foi durante muito tempo celeiro da produção
de algodão, o chamado “ouro branco”, principal fonte de renda da região, que alcançou nos
anos de 1960 e 1970 o auge de sua produção através do regime de monocultura conhecido
como plantation. Com competitividade internacional, a atividade envolvia toda a população
(homens, mulheres e crianças) e garantia o emprego e o sustento das famílias. O regime de
posse da terra era dominado pelos latifúndios, em que poucas pessoas detinham quase a
totalidade das terras disponíveis e agricultáveis, sendo a situação mais comum o chamado
regime de meia, em que o dono permitia que famílias ocupassem um pedaço de sua
propriedade com a condição que dessem metade de sua produção ao latifundiário. Além de
sua pequena produção, estes ocupantes trabalhavam colhendo algodão na imensidão das
grandes lavouras dos patrões. Neste caso, ambos estavam atrelados por uma dependência
mútua, o latifundiário precisando dos empregados para que trabalhassem em sua propriedade,
e os meeiros necessitando de trabalho e de terra.

Este sistema agrícola teve origem na expansão europeia possibilitada pelas grandes
navegações, pois foram nas colônias do Novo Mundo que ele foi inicialmente aplicado, sendo
o sucesso desta técnica crucial para a difusão do processo de conquista das colônias e
acumulação primitiva do capital. A plantation propiciou a produção em larga escala, aliando
monocultura, trabalho escravo e semeadura de espécies exóticas, possibilitando o comércio
intercontinental e a industrialização. Com origem no período escravocrata, o regime da
plantation teve que se modificar conforme as exigências da história. A escravidão no Brasil
teve fim oficialmente em 1888, e com isso os latifundiários tiveram que reorganizar o trabalho
e o valor da mão de obra, mas esta transição foi realizada sem abolir a situação degradante do
trabalhado, sempre em péssimas condições. A mesma lógica fundamental da Plantation
permanece inalterada no agronegócio contemporâneo, com o uso de mão de obra terceirizada
de baixo custo e produção direcionada à exportação. (Tsing, 2015)

Esta relação nos campos de algodão era cercada de conflitos referentes à safra, já que
os principais responsáveis pela produção eram quem menos recebia. Enquanto os donos de
terra adulteravam as balanças de forma que o peso apontado por ela fosse menor do que o
19
peso real da colheita, os empregados por sua vez misturavam pedras aos sacos de algodão
para aumentar o peso da saca na hora da pesagem de forma a compensar o déficit da balança.
Embora, pelo tamanho das sacas e pelo peso sentido sobre seus ombros, os catadores de
algodão tivessem uma percepção aproximada de quantos quilos haviam colhido e soubessem
que estavam sendo roubados, não podiam se desvincular efetivamente do latifúndio, já que
suas próprias terras por vezes estavam instaladas dentro das grandes propriedades, o que lhes
deixava uma escassa possibilidade de mobilidade, alem do fato de não existirem outras
opções de emprego disponíveis na época. Esse tipo de atividade encontra ecos no que diz
James Scott (2002) acerca das formas de resistências camponesas, as quais, segundo o autor,
embora não busquem ameaçar ou confrontar a estrutura da desigualdade, renegociam as
relações assimétricas buscando equalizá-las na esfera cotidiana, sempre de forma anônima e
pouco organizada. Segundo Scott:

“[A] “beleza” de muitas expressões da resistência camponesa é o fato


de frequentemente conferir vantagens imediatas e concretas e, ao
mesmo tempo, negar recursos às classes apropriadoras, sem requerer
pouca ou nenhuma organização explicita. (Scott, 2002:27)

O agrotóxico utilizado nas lavouras de algodão era o folidol, produto químico


reconhecidamente “muito forte”, cuja aplicação era realizada sem proteção alguma, sequer
luva, bota, máscara, ou qualquer equipamento capaz de mitigar os danos à saúde. Conta
Heleno que, quando o folidol era aplicado em um determinado ponto, 3 metros adiante já
havia bichos morrendo. Não faltam histórias de vítimas que foram a óbito devido ao uso de
produtos químicos na agricultura: o próprio agricultor Levi, que ainda vive, recupera-se de
uma doença que o colocou entre a vida e a morte, e afirma ainda hoje não estar recuperado
completamente (coisa que talvez nunca aconteça).

Heleno contou-me um fato que ocorreu em sua terra e que pode exemplificar a
dimensão letal do veneno: existia em seu terreno uma garrafa guardada há mais de dez anos,
que por um acidente quebrou-se e acabou entrando em contato com um novilho que se
lambuzou no local. Não foi possível salvá-lo nem com remédios e o animal acabou morrendo.
Para se desfazer do corpo resolveram enterrá-lo. Uma galinha que ciscou onde foi quebrada a
garrafa foi ainda menos resistente, tendo morrido antes mesmo do novilho. A tragédia
infelizmente não terminou somente assim: um terceiro animal, desta vez um cachorro, cavou a
20
cova do novilho na tentativa de se alimentar dele, e por fim faleceu também infectado.

O fim do ciclo do algodão se deu graças a um besouro conhecido como Bicudo


(Anthonomus grandis). A praga, de origem na América Central, devastou plantações em todo
o Nordeste brasileiro a partir de meados da década de 1980, pois se tornou resistente aos
defensivos químicos utilizados. Enquanto o folidol modificou a relação do Bicudo com o
algodão, o próprio bicudo se modificou a fim de se adaptar a esta nova realidade, atacando as
flores do algodão, depositando ali suas larvas de forma a causar a desnutrição e a consequente
destruição das plantas. Com a chegada do besouro, nunca antes visto na região, a produção do
“ouro branco” despencou, o que obrigou os agricultores locais a buscarem outras formas de
sustento econômico.

Houve ainda por parte da Embrapa tentativas de combater o Bicudo: seja modificando
a época de floração da espécie de algodão de forma que não coincidisse com o período de
reprodução do inseto, ou na tentativa de desenvolver outro tipo de algodão “colorido”, mais
resistente à praga. Mas estes projetos fracassaram, o bicudo descolonizou o Plantation, a
agricultura científica que por um tempo se pensou ser capaz de domesticar a natureza
terminou domesticada pelo Bicudo. Foi uma ingenuidade pensar que excepcionalmente os
humanos detinham o poder de transformação da paisagem. O bicudo em meio às plantações
de algodão desarticulou a máquina da agricultura controlada e demonstrou o fracasso dos
projetos de dominação da natureza. Este não é um fato isolado. A monocultura como modelo
de produção de alimentos tem gerado pragas hiper-resistentes, como foi o caso da vassoura de
bruxa (Moniliophtora perniciosa), que assolou as plantações de cacau na Bahia na década de
90. Parafraseando Marx, “os homens fazem a sua história, mas não a fazem como querem”, e
não o fazem porque a história dos homens é a história das relações multiespécies, que como
um pesadelo nos projetos modernos estão sempre a surpreender e sabotar o antropocentrismo
daqueles que acreditavam poder manipular uma natureza morta e inerte

A plantation se consolidou como modelo hegemônico no século XIX no momento em


que a agricultura se desenvolvia como ciência. Em um contexto de modernização a
agricultura padronizada realizada em um espaço ordenado, cuja finalidade era a própria
domesticação da natureza, se adequava perfeitamente ao “padrão moderno” da época,
atendendo também ao desejo padronizador que o comércio exigia. O capitalismo e a
plantation caminharam juntos: colonização, domesticação e dominação, territórios, humanos
21
e natureza. Mas como lembra Tsing:

“Sem chances de desenvolver variedades resistentes, uma lavoura atacada


pode morrer toda de uma só vez. [...] essas lavouras também sucumbiram a
todo tipo de doenças” (Tsing, 2015:188)

Este sistema já havia se mostrado suscetível às pragas. A história mencionada por


Tsing (2015) sobre as batatas da Irlanda demonstra como a monocultura ocidental criava um
ambiente mais propício aos fungos, que ganhavam um verdadeiro banquete e um convite a se
reproduzir, diferentemente dos roçados das populações tradicionais sul americanas onde o
investimento se fazia na agrobiodiversidade, que apresentavam maior resistência a espécies
invasoras, o que por sua vez dificultava o surto demográfico de culturas não desejadas6.
(Tsing, 2015) Acompanhando a tendência daquilo que ficou conhecido como Revolução
Verde, a introdução de pesticidas no Vale do Sabugi seguiu a ordem da mecanização com
intuito progressivo de extrair do solo o máximo de produção com o mínimo de perdas,
impedindo que quaisquer outras espécies pudessem interferir na safra. A introdução de
defensivos químicos tem relação com o processo de especialização da técnica de plantation,
otimizando, ordenando e controlando as espécies daninhas da produção. As próprias espécies,
no entanto, realizam suas adaptações às adversidades para sobreviver; elas próprias se
adaptam às modificações em seu meio com intuito de perseverar. E foi assim que,
demonstrando sua resiliência diante dos defensivos químicos, o Bicudo se tornou imune a
eles, podendo desfrutar de extensas plantações de algodão.

A história que contam a maioria dos agricultores a respeito do declínio do algodão diz
respeito à força econômica no mercado internacional que o produto brasileiro havia
alcançado. Com competitividade global, o algodão produzido nacionalmente estaria
desbancando o mercado sintético americano, o que teria levado os EUA a produzirem
artificialmente uma praga hiper-resistente com a finalidade de eliminar o algodão nacional da
disputa comercial. Em meio à disputa pelo comércio global, o método norte-americano
utilizado teria sido a sabotagem como forma de competição para que seu produto saísse
vitorioso. Mas a narrativa endossada pela maioria dos cientistas da região diz respeito ao uso

6 Tsing chama atenção para o contraste entre a diversidade das roças com mais de 100 tipos de batatas
diferentes das populações nativas Sul americanas e as consequências da busca europeia pela espécie de batata
que melhor atendesse a seus interesses.
22
excessivo de agrotóxicos na monocultura. Ou seja, graças à presença constante dos
defensivos, e à falta de rotatividade das culturas, o Bicudo teria se adaptado e desenvolvido
uma resistência especial a estes.

Apesar de exemplos de experiências mal sucedidas como a do algodão, há no interior


do Nordeste brasileiro toda uma semiótica ligada ao estigma da falta, do subdesenvolvimento,
e da seca, dentro da qual o pequeno agricultor familiar deve ter como referência o modo de
produção do latifundiário, devendo cultivar e criar os animais da mesma forma que o grande
proprietário de terras. Este imaginário contribui em grande medida para a perda de fé na
agricultura por grande parcela das comunidades tradicionais que, ao repetirem em seus
pequenos sítios o modelo de agricultura e criação de animais das grandes propriedades, não
obtêm o sucesso esperado. Essa semiótica é parte do processo colonizador que continua
avançando na região, relacionado ao desejo de aumento da renda e do poder de compra
proporcionado pela entrada da lógica monetária capitalista na região. Isso por sua vez gera o
anseio pelo dinheiro, estimulado pela entrada no mercado de trabalho, e por conseguinte a
busca por melhores oportunidades supostamente existentes nas grandes cidades. Processo esse
que continua a sustentar o fenômeno da migração em massa rumo às grandes cidades.

Duas grandes histórias unem essas famílias espalhadas por todo o semiárido: uma é
ligada à monocultura e ao uso de defensivos químicos em algum momento de seu passado; a
outra à migração rumo às cidades em busca de oportunidades. Não conheci sequer uma
família da qual não houvesse alguém que saiu do campo atrás de oportunidades nas grandes
metrópoles, em especial São Paulo e Rio de Janeiro.

Essa migração em massa de nordestinos para as metrópoles penso ter também


contribuído para a relação de afeto que se criou no encontro entre eu e os agricultores. Afinal,
estava realizando um movimento inverso ao esperado, pois na maioria das vezes o nordestino
migra ou gostaria de migrar rumo ao Sul na tentativa de ganhar a vida na cidade grande, na
busca pelo ritmo de vida do desenvolvimento, ao passo que ali estava um jovem universitário
do Rio de Janeiro, um "cabra" do Sul, no meio do sertão paraibano, com o intuito de aprender
com os agricultores sobre sua história, suas práticas agrícolas e sua filosofia de vida. Além de
toda a curiosidade por mim e pela minha cultura, minha presença ali parecia despertar um
sentimento de prestígio local por conta desse sentido inverso ao movimento de migração.

23
Lévi-Strauss já havia apontado como o exercício da antropologia envolve, mais que a
efetivação do encontro com o outro, uma fuga de sí próprio a partir do diálogo que o trabalho
de campo permite experimentar. Fato é que o mesmo ocorre com os coletivos
antropologizados que não permanecem inócuos à presença do etnógrafo: a partir do encontro
com o antropólogo (o outro dos nativos), esses grupos também criam uma forma de
elaboração acerca de suas próprias práticas de sentido – um campo frutífero para repensar os
estigmas estabelecidos, e a emergência das potências latentes entre eles escondidas sob a
semiótica do mito da seca.

O efeito da minha presença sobre os agricultores pode despertar uma valorização de


suas práticas, pois se tratando de um grupo estigmatizado, minha chegada os levou a refletir
sobre a diferenciação do que eles próprios fazem, uma vez que suas experiências chamavam
atenção de alguém de longe, que vinha de onde eles queriam estar, mas preferia estar ali, e
gostaria de realizar um estudo com eles de forma dialógica, aprendendo com eles, expondo a
própria ignorância ao "pegar no pesado", deixando evidente toda minha incapacidade frente
àquela forma de viver. É possível inclusive que eu tenha despertado no grupo de jovens do
projeto uma pequena quebra dos preconceitos estabelecidos em relação à sua identidade
camponesa, animando-os a mexer no roçado novamente, atividade da qual muitos haviam se
distanciado. Afinal, eu era da mesma faixa etária que eles mas estava interessado em
vivenciar a vida que eles vivem e não valorizam, o que, creio, não deixava de funcionar como
um novo espelho para a ideia que eles possuem acerca da de sua própria cultura.7

O ESPECTRO EÓLICO

Mais recentemente, uma nova investida modernizadora coloca mais uma vez em curso
o projeto de colonizar o semiárido. Agora sob a ótica “verde” e “ecológica”, a energia eólica
promete enfim levar o desenvolvimento ao sertão. Estão em curso o processo de

7 Não desejo aqui exercitar o narcisismo dos efeitos do antropólogo sobre os nativos com os quais aprendeu;
mas neste caso se trata especialmente de uma reflexão sugerida por Rosivania Jeronimo que na ocasião
coordenava o projeto, após ler alguns rascunhos de meu trabalho ainda em execução, me fez essa sugestão
com base em sua experiência de contato junto a eles, especialmente como coordenadora do projeto.
24
arrendamento e testes acerca da viabilidade da produção de energia a partir de usinas eólicas,
aproveitando os fortes ventos que sopram na região. Para conseguir convencer os agricultores
a serem arrendatários a empresa que se instala decidiu contratar o presidente da Associação
dos Agricultores de São José do Sabugi, pessoa com conhecimento, influência na zona rural,
como negociador.8 Esta forma de captura impediu qualquer possibilidade de articulação de
resistência em larga escala, deixando a maioria dos agricultores passivos neste contexto.

Certa tarde, estando eu na casa de meus amigos, chegou um homem numa moto com
um cheque no valor de R$160,00. Era a anuidade que meu amigo arrendatário havia recebido.
Ele achou pouco o valor, evidentemente, mas não reclamou. Nem sabia me explicar o que
exatamente tinha recebido, nem quais as condições do contrato (nem aliás onde exatamente
este se encontrava), ou o que a empresa poderia fazer em seu sítio. As tentativas de
colonização e dominação do espaço por parte dos projetos de desenvolvimento não param de
incidir sobre a região, seja pelas técnicas agrícolas, pelo agrotóxico ou por essa sua mais nova
face, a energia eólica. Mas, apesar dessas e outras investidas da frente de modernização, os
coletivos ali existentes jamais se tornaram completamente modernos, os chefes de família em
sua maioria são ágrafos, os acordos são tradicionalmente firmados em torno da palavra, não
em torno da tinta da caneta pintada no papel. Apenas a forma Estado como mediador das
relações econômicas lhes impõe esta forma específica de transação. Com efeito, o modelo do
contrato não faz parte de sua forma de existência, não obstante sejam obrigados a entrar neste
regime, e firmar negócios em folhas e assinaturas.

Quando lhes perguntei sobre quais as intervenções que eles imaginavam que seriam
realizadas na paisagem, eles não conseguiam responder-me. Parecia algo fora de seu campo
de pensamento imaginar torres eólicas de aproximadamente 100 metros se erguendo, centenas
ou milhares de trabalhadores chegando para a construção de um campo de produção de
energia, sendo necessário para isso a abertura de novas estradas para viabilizar a chegada
desse material, pois as que existem hoje não têm capacidade de absorção de caminhões com
este porte de carga. Dona Jardas certa vez me contava sobre um de seus medos com a chegada
dos campos eólicos e o descompasso entre o ritmo presente e este nova modalidade a se
estabelecer ali: “Se não puder mais tirar uma lenha para o fogão, acabou-se o mundo”.

Sempre que a conversa sobre a implantação dos campos de energia eólica retornava,

8 Este cidadão acaba de se eleger para o próximo mandato como vereador da cidade.
25
havia aqueles otimistas que imaginam poder ganhar algum dinheiro com isso, e outros, talvez
mais pessimistas, que se negavam a arrendar suas terras, como é o caso de Heleno, que
conseguiu criar uma pequena resistência ao arrendamento junto a seus vizinhos. Em uma
discussão certa vez na associação de moradores, ficou claro que não se sabia nem se o
arrendante poderia realizar o Cadastro Ambiental Rural, o que por conseguinte gerava novas
dúvidas em relação à utilização pelos arrendatários do seguro safra, um subsídio destinado aos
agricultores para sobreviverem em caso de infortúnios na plantação, e a futura aposentadoria
pelo trabalho agrícola. Pois se o agricultor arrenda sua terra a terceiros, além da própria
experiência da agricultura que corre perigo, toda a rede de seguridade social na qual ele se
insere através da categoria “agricultor” pode ser perdida.

Não consegui ver os contratos a partir dos agricultores, mas a partir de outras fontes
pude ter acesso a um documento modelo da empresa Renova Energia S.A.. Alguns pontos
merecem destaque, por nos darem um panorama do que está em jogo neste processo obscuro e
pouco inteligível para os agricultores9: O arrendamento por parte da empresa garante a ela o
uso da superfície, solo, subsolo e espaço aéreo da propriedade para fazer o cabeamento
subterrâneo e aéreo, bem como para viabilizar as vias de acesso. De início, os contratos são
firmados para que seja possível a realização de uma fase de estudo de viabilidade durante 10
anos, podendo o arrendatário renovar o contrato mediante notificação. Durante este período, o
arrendante recebe R$12,00 por hectare no primeiro ano, R$18,00 no segundo ano e R$24,00 a
partir do terceiro ano de contrato, sendo prometida a indenização em caso de perdas na
produção rural, embora não estejam descritas as formas de calcular tais danos. Depois dos
aerogeradores instalados, aquelas propriedades que os receberão ganharão o valor de R$6.996
anualmente por torre eólica instalada, o que equivale a R$583,00 mensais por torre eólica. Os
contratos, por sua vez, possuem vigência de quarenta anos, podendo ser renovados
automaticamente, e a rescisão podendo ocorrer em caso de inviabilidade do projeto, falta de
licenças ou decreto de falência da empresa, não estando à disposição do arrendante a decisão
da mesma – o que demonstra uma assimetria no que diz respeito aos direitos e conflitos de
interesses envolvidos no processo. Por fim o contrato impõe uma confidencialidade entre as
partes, e, em caso de descumprimento de qualquer cláusula, uma multa de R$20.000.000,00
(vinte milhões de reais) ao infrator. Ao que tudo indica, tal cláusula beneficia somente um dos
lados: não parece ser vantajoso para a empresa tornar públicos os termos em que foram

9 Não desejo realizar uma antropologia do direito ou do contrato, mas apenas acrescentar mais uma camada, a
dos papéis, nesta controvérsia.
26
firmados os contratos, já que é ela própria a autora do acordo redigido de maneira unilateral.

Deixemos claro que, ao fazer essas afirmações, não estamos nos opondo às fontes de
energias renováveis, até porque a utilização de energia eólica no semiárido já é hoje uma
realidade, porém em outra escala. Iranildo, a partir de um cata-vento, bombeia toda a água da
barragem para sua casa a partir desta mesma matriz energética – não sem custos, pois nas
proximidades da mesma já é possível ouvir o barulho emitido pela sua válvula de
bombeamento. Mas o que está em questão aqui é a própria extensão, a escala do uso dessa
tecnologia. A que já vigora nos sítios é efetiva e atende aos interesses locais. Mas uma torre
cinco vezes maior geraria um ruído proporcionalmente mais forte, interferindo tanto na vida
humana quanto em todo o resto da vida que habita ali, obrigando todos os habitantes,
humanos e extra-humanos, a conviver com este som, ou a fugir do mesmo. Ainda que fosse
com as melhores das intenções, de atender o máximo possível as demandas de energia em
crescente escala, a lógica de grandes complexos geradores é impossível sem o custo, sacrifício
e o fim de todo um conjunto de ecossistemas de determinado local. Se a tecnologia atual
atende satisfatoriamente às necessidades conjunturais presentes, e ainda é capaz de compor
com todo meio ambiente, não há por que se aceitar como necessária essa mudança de ritmo.

O processo de modernização e globalização não pode impor sua velocidade como um


paradigma. O que a crise ecológica tem demonstrado é, pelo contrário, a necessidade de uma
desaceleração geral, e, ao contrário das técnicas de grande escala, a possibilidade de uma fuga
da crise parece se dar antes por via das sociotécnicas (Danowski e Viveiros de Castro, 2014),
ou ecotécnicas como as chamou Almeida (2007), ou seja, a articulação dos conhecimentos
tradicionais e suas formas de usos dos recursos naturais. No caso dos agricultores
experimentadores temos como exemplos o cuidado com a chuva (como é o caso das cisternas
de captação de água), os fundos rotativos solidários e os roçados trabalhados pelas mãos de
um agricultor, à semelhança de um artesão em simbiose com as outras formas de vida que o
ajudam a tecer a roça. Uma outra cosmopolítica já existente, propagada de forma fluida
através da reciprocidade, mas sempre ameaçada pela simplificação cultural e biológicas
gerada pelos grandes projetos.

27
OS AGRICULTORES

Em meio ao cenário de devastação que descrevemos mais acima, agricultores resistem


aos modelos hegemônicos capitalistas criando, testando e aplicando tecnologias sociais
próprias, garantindo em feiras populares a suficiência econômica para os produtores, fazendo
uso de técnicas de manejo agroecológicas, que funcionam sob uma ótica de coabitação dos
humanos com o meio ambiente, respeitando e aprendendo com os períodos de seca e chuva,
sem impor ao solo culturas para as quais o mesmo não está preparado, provendo alimentos de
qualidade, livres de agrotóxicos, aos moradores da região (Medeiros 2014). Em paralelo há
ainda um movimento de intercâmbio das tecnologias inventadas pelos agricultores e aplicadas
em seus sítios. Estas servem de exemplos a outros agricultores, os quais por sua vez as
reproduzem com pequenas variações, adaptando-as de acordo com suas próprias necessidades
e capacidades.

Em meu trabalho de campo convivi com agricultores tradicionais no Médio Sertão da


Paraíba, morando sucessivamente com três famílias da região do Vale do Sabugi, localizado
no município de São José do Sabugi, especificamente nas zonas rurais das localidades de
Riacho da Serra, Penedo e Lagoa do Brejinho. Além disso, pude conhecer dezenas de
agricultores espalhados pelo médio sertão paraibano em outras cinco regiões: Vale do Piancó,
Vale das Espinharas, Serra do Cariri, Serra do Teixeira e Serra de Princesa. Este vasto espaço
geográfico coincide com uma grande diversidade de técnicas e especialidades de formas de
convívio com o bioma semi-árido, no campo da captação, armazenamento, e utilização dos
recursos hídricos. Esta região do Nordeste é marcada por uma forte sazonalidade climática,
com apenas cerca de três meses de chuva em regime irregular com baixa pluviosidade média
por ano.

Os agricultores do Vale do Sabugi se auto-definem como “agricultores


experimentadores”; eles possuem técnicas e especialidades que variam entre si conforme a
particularidade de cada território, o tamanho de cada terreno, as qualidades nutricionais de
cada solo, o relevo, o clima e a quantidade de água disponível que consegue armazenar –
todos são aspectos que importam na seleção da tecnologia mais adequada a cada sítio. Cito
28
como exemplos as experiências das famílias de Zé e Marizete, com sua produção de
hortaliças; de Cabeludo, com foco na agropecuária conciliando agrofloresta e criação de
animais; de Judivan e Ivonete, que, em uma terra pequena, possuem uma alta biodiversidade
produtiva e experimentam as mais variadas possibilidades de combinações de plantas em
conjunto com a agricultura, os chamados "consócios"; de Paulo de Orlino, com produção de
mel; de Dóia e Erivan, que plantam arroz, e finalmente de Levi e Francisca, que superam os
efeitos da violência dos agrotóxicos no corpo, e, por meio dos intercâmbios de experiências
com outros agricultores, reinventam sua maneira de plantar, transformando a paisagem de seu
sítio.

O sistema agroflorestal de Iranildo, por exemplo, é referência na região por suas


diferentes formas de captação de água e de irrigação. Coadunado com a criação de animais
num sistema simbiótico, o campo de plantio fornece alimento para o gado e as ovelhas,
enquanto estes fornecem adubação de excelente qualidade por meio do esterco produzido.
Com uma notável capacidade de invenção e criatividade para lidar com as adversidades da
terra e do clima singular, Iranildo já praticava a agroecologia em ato antes mesmo de ter
contato com este conceito que aprendeu nas interações com as organizações não
governamentais que atuam na região, e soube com perspicácia fazer a interseção entre os
conhecimentos tradicionais - a respeito dos quais seu pai foi seu principal professor - e o
discurso moderno da ecologia e agroecologia.

Já em Lagoa do Brejinho, Heleno se tornou um especialista em recuperação de solos,


por ter que lidar com um terreno de acentuado relevo e com alto nível de desertificação,
acrescido por um passado de monocultura extenuante com uso de agrotóxicos. Nesse sítio, o
agricultor realizou uma série de barramentos com pedras para a contenção de terra e
nutrientes, sem o que dificilmente ali a agricultura seria possível, já que o terreno íngreme
acarreta a perda da matéria orgânica escoada junto à chuva, rachando o solo. As pedras eram
material disponível em abundância no terreno, e Heleno utilizou-as como matéria-prima para
a construção das pequenas barragens. De outro modo, se permanecessem dispersas pelo
campo, essas mesmas pedras dificultariam o enraizamento das árvores. Desse modo, além de
proporcionar a contenção de nutrientes, a tecnologia inventada por Heleno faz a limpeza do
solo pedregoso, tornando-o propício para o plantio.

29
A família de Luzia em Riacho da Serra foi beneficiada recentemente (no inicio de
2015) pela construção de uma "cisterna calçadão" através do Programa P1+210 (Programa
Uma Terra e Duas Águas) implantado pela ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro) em
parceria com a Ação Social Diocesana de Patos. Em um terreno onde eram cultivados apenas
umbuzeiros já com certa idade e algumas fruteiras no quintal de casa, além dos tradicionais
milho e feijão, agora se espalham também dezenas de mudas de árvores frutíferas, como
cajueiro, pinha e acerola. Com a quantidade de água agora disponível para o plantio,
juntamente com o conhecimento aprendido no contato com outros agricultores sobre técnicas
agroflorestais, a família de Luzia transforma a paisagem de seu sítio.

Todos esses agricultores fizeram parte de um projeto de intercâmbio


denominado“Multiplicando saberes com camponeses e camponesas”11, realizado pelo Centro
Semear com apoio da Ação Social Diocesana de Patos (PROPAC), ambas instituições que já
atuam há anos com os agricultores da região. O projeto teve como objetivo dinamizar as
atividades agroecológicas através do intercâmbio de experiências e tecnologias,
sistematizado-as em boletins, banners e documentários em vídeo produzidos pelas próprias
famílias envolvidas. Diferentemente da prática mais comum, em que um técnico agrícola
informa e ensina seu saber ao pequeno agricultor, a ideia do projeto era proporcionar a
interação entre as experiências dos próprios agricultores de forma horizontal, com cada um
avaliando os sistemas de seus colegas e identificando as potencialidades e os desafios de cada
sítio para assim otimizar e replicar as novas tecnologias.

Além das práticas de intercâmbios e experimentações agrícolas aprendidas e


disseminadas cotidianamente pelos agricultores em seus próprios sítios, os mesmos estão em
interação constante com cientistas e técnicos agrícolas, através de visitas e assessoramento
agrícola, seja por entidades governamentais como a EMATER/PB ou as organizações não
governamentais, especialmente as ligadas à ASA. Nestas relações, eles não deixam suas
práticas serem submetidas aos saberes dos técnicos agrônomos, nem se deixam subordinar à
autoridade epistemológica dos acadêmicos. Esse encontro, por vezes conflituoso, é cercado de
tensões e controvérsias entre os diferentes tipos de saberes, sendo que muitas vezes são os

10 Este programa, proporcionado pela ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro) em parceria com outras
organizações locais, neste caso o PROPAC, oferece uma segunda cisterna com capacidade para armazenar 52
mil litros, com finalidade de irrigação na agricultura.
11 O projeto resultou ainda na realização de um vídeo-documentário produzido pelos jovens e que está
disponível online. https://www.youtube.com/watch?v=87SxPoNF1w8 Para saber mais:
http://www.projetomultiplicandosaberes.org/
30
próprios técnicos ou cientistas que aprendem com os agricultores as tecnologias
experimentadas previamente dentro dos sítios.

José Vicente, engenheiro agrônomo que atua no PROPAC e com quem mantive
contato, certa vez me disse ter compreendido que, quando um agricultor, diante de uma
determinada solução por ele proposta, responde que “não dá para fazer”, é porque realmente
essa solução não é possível, e a técnica proposta não teria a efetividade esperada. Rosivania
Jeronimo, engenheira florestal também daquela instituição, corrobora o mesmo discurso,
tendo aprendido, segundo ela, muito mais em campo, junto aos agricultores, do que na
universidade. Em outra ocasião, em uma oficina de defensivos naturais promovida pela
EMATER/PB, pude acompanhar a embaraçosa e cômica situação dos técnicos que, enquanto
professores, tinham nojo de manipular o esterco com as mãos. Atitude que provocará além de
muitas risadas, uma dúvida acerca da legitimidade daquele saber. Lielma Xavier, bióloga,
também do PROPAC, ao me explicar sobre como funcionava a epistemologia de
conhecimento dos agricultores, dizia que para eles é preciso “ver para crer”. A difusão do
conhecimento não se dá através de planos abstratos e teóricos, mas a partir da própria
experiência concreta como forma de conhecimento. Se o sujeito não tem capacidade de
manipular bem a substância, ou não consegue provar empiricamente o sistema produtivo, a
simples teoria não lhes basta.

31
A CHUVA

O médio sertão paraibano se apresenta numa paisagem em quase tudo oposta à cena
pintada pelo pensamento hegemônico e amplamente difundida sobre o semiárido brasileiro:
uma região de solo rachado e castigado, esqueletos de vacas mortas pela seca e apodrecendo
expostas ao sol, lugar pobre em biodiversidade12, dominado pela miséria. A máquina
semiótica de produção do sertão como lugar da seca tem sido bem sucedida em seu
empreendimento de marginalização da região. Os agricultores, embora reconheçam esse
estigma difundido no “sul”, não se identificam com ele. Em nossas conversas, a todo
momento me questionavam e me cobravam, no sentido de que eu não endossasse este senso-
comum de uma relação indissociável entre semiárido e falta ou seca. Perguntas como “o que
você imaginava ver aqui, e o que você viu?” proliferavam em meio às nossas conversas. Eles
pareciam querer, e mesmo exigir, que eu contasse uma história não convencional, uma
história "menor" do sertão; desejavam que eu falasse sobre as narrativas alternativas que
estavam encobertas pelo grande mito da seca, de miséria, do “subdesenvolvido” fadado ao
atraso. Contar uma outra história, evidenciando os agentes minoritários ocultados pela
narrativa hegemônica, implica ressignificar e dar novas cores à fantasia de pobreza
historicamente formulada sobre a região.

Diferentemente da divisão climática convencional do ano marcada em quatro estações


pelo saber meteorológico, no sertão, como em algumas outras regiões do Brasil, os
agricultores marcam a sazonalidade do tempo em apenas duas estações, verão e inverno, ou,
em outras palavras, seca e chuva. Ou seja, eles associam o inverno ao período de chuvas,
sempre incerto e mutante, que costuma ocorrer entre janeiro e maio. Excetuando-se as
flutuações climáticas ao longo dos diferentes anos, em geral, segundo dizem, são apenas três
meses de chuva na região, que podem se estiver até cinco meses de chuva em um ano de
inverno bom. A média anual pluviométrica na região do Vale do Sabugi gira em torno de 569
milímetros (Costa, et al, 2013), distribuídos especialmente neste período de chuvas intensas 13.
O resto do ano é verão, seca. Diante dessa sazonalidade rigorosa, a chuva dita os movimentos

12 Não obstante, tem se constatado o fato da caatinga brasileira ser a região semiárida mais biodiversa do
planeta, como afirma o biólogo João Arthur Seyffarth.
13 Além disso, devido à proximidade da linha do equador, a posição perpendicular dos raios solares faz com que
a evapotranspiração seja maior que a quantidade de precipitação.
32
e ritmos de todos os agentes locais, que se movem de acordo com o curso das águas vindas do
céu. Conviver com a seca exige uma desaceleração em relação à velocidade que o mundo
moderno exige. A reprodução dos animais, bem como a floração das plantas, os ciclos de
roçado, e os rituais a eles relacionados, além da economia e as disputas políticas, estão todos
em consonância com a força gravitacional exercida pelos lentos fluxos rítmicos do
acontecimento da chuva nesta região.

Diante do céu nublado com perspectiva de chuva, no sertão se diz: “Tá bonito pra
chover!” Diferentemente das expressões mais comuns no sudeste, como “o tempo fechou”,
ou “o céu está feio”, fazendo alusão a momentos de tensão ou a uma situação de conflito, no
sertão a chuva é um evento aguardado com muita esperança. No tempo da chuva é ela o
principal assunto; quando chega é recebida com alegria, espera-se um volume grande para ir
festejar debaixo da água caindo do céu. As biqueiras dos telhados por onde escorre a água da
chuva se transformam em cachoeiras, as crianças brincam de pular sobre as poças d'água que
se formam no chão e os barreiros se transformam em piscinas. Bráulio Bessa, poeta do sertão,
consegue exprimir esse sentimento em um poema de apenas um verso: “Aqui no sertão,
quando o céu chora, a gente acha é graça”14.

Essa expectativa diante da chuva não deve ser vista com estranheza; afinal, é preciso
que chova para que a vida se mantenha e prospere. Quanto aos tempos secos e às dificuldades
de sobreviver sem chuva, o sertão conhece bem essa dura realidade15, e portanto os habitantes
dali desenvolveram tanto uma ontologia particular conferindo um valor especial a chuva,
quanto um conhecimento meteorológico tradicional sobre a mesma, aliado a uma economia
política da natureza singular, voltada para os recursos hídricos.

A desatenção do sudeste brasileiro à escassez de água, em razão talvez do índice de


pluviosidade elevado característico desta última região, associada à própria lógica moderna
que engendra um pensamento desenvolvimentista, acaba se traduzindo em má administração e
irresponsabilidade quanto ao uso dos recursos hídricos, situação que ficou muito evidente
recentemente por ocasião de uma seca inusitadamente prolongada (devida provavelmente às

14 Tive a ideia de incluir aqui este verso ao ler um post de minha amiga Andresa Pereira no Facebook, em que
comentou com esta frase uma foto da chuva caindo no sitio onde ela reside. Agradeço a Andresa pela
inspiração.
15 Há uma vasta literatura da seca debruçada sobre este tema, que não tivemos tempo de explorar aqui. A saber,
Raquel de Queiroz em O Quinze, Euclides da Cunha, em Os Sertões, Guimarães Rosa, com Grande Sertão:
Veredas, Vidas Secas de Graciliano Ramos, entre outros. Além da presença na arte como nas poesias de
Patativa do Assaré e nas músicas de Luiz Gonzaga.
33
mudanças climáticas) que atingiu algumas das principais metrópoles brasileiras nos anos de
2014 e 2015. Quanto a isso, há que se admitir que é no semiárido que estão os especialistas
neste assunto. Com somente três meses de chuva por ano, os agricultores ali aprendem a
captar e a estocar água suficiente para uso doméstico e agrícola por todo o ano, até que um
novo período de chuvas possa reabastecer seus estoques. Isso só é possível por um imaginário
bem diverso daquele do sudeste, que dá sentido à experiência cotidiana, e fundamenta práticas
de captação e utilização dos recursos hídricos no sertão. Aqui nos inspiramos especialmente
no tratamento que Mauro Almeida (2013) confere ao conceito de ontologia e seus efeitos
sobre a textura do mundo.

“Ontologias e encontros pragmáticos não são, contudo, separáveis.


Pode-se ver isso já a partir da seguinte consideração: pressupostos
ontológicos dão sentido, ou permitem interpretar, encontros pragmáticos, mas
vão além de qualquer encontro particular, seja qual for seu número.”
(Almeida, 2013:9)

Em julho de 2015, o período em que estive pela primeira vez na região, aconteceu algo
inusitado. Embora estivéssemos no verão, chegou uma chuva inesperada que, ainda que em
forma de chuvisco, durou alguns dias. Eu fiquei surpreso, pois havia sido avisado que do céu
não cairia sequer uma gota neste período, e essa chuva gerou também uma perplexidade geral
entre os agricultores,.

Quando perguntados sobre o porquê daquele evento, uma resposta muito recorrente entre os
meus amigos, com pequenas variações, foi: “Deus disse que quando o homem quiser saber
mais que Ele, Ele vai mudar os tempos.” “Ninguém mais entende o tempo, ele está
desmantelado”, dizia Heleno. “Essa mudança do clima se dá devido a uma culpa nossa, nós
estamos provocando o que está acontecendo”, completava Dóia. No período de chuvas já não
chove mais como o esperado, e no período de seca vem a chuva sob forma de fina garoa.

A chuva é responsável por organizar a vida. Quando ela mesma se desorganiza, isso
gera um desalinhamento completo para todos os agentes acostumados com uma certa ordem
de eventos. Os agricultores percebem essas mudanças através das espécies cultivadas que
safrejam fora do tempo habitual, como também através da migração de animais terrestres e

34
pássaros que aparecem ou desaparecem fora do período previsto. As previsões climáticas
baseadas na observação dos ciclos naturais e floração de plantas têm sido afetadas por aquilo
a que os agricultores se referem como a “mudança dos tempos”. A percepção local é análoga
àquela da ciência climática, que cada vez menos consegue antecipar os eventos pontuais do
clima devido ao que progressivamente vem se reconhecendo como efeitos do Antropoceno16.
Referindo-se a este conceito, Bruno Latour recentemente afirmou, de maneira muito próxima
aos agricultores do semiárido: “as coisas têm mudado tão rápido que se tornou difícil de
acompanhá-las” (Latour 2013).

Entre diversas pesquisas publicadas no Brasil acerca da importância, para as


comunidades tradicionais, de observações meteorológicas, os trabalhos de Renzo Taddei
sobre os “profetas da chuvas” no sertão do Ceará (Taddei 2006, 2007, 2010, 2014) e Suzane
Vieira (2015) no alto sertão da Bahia, tiveram bastante influência em minha pesquisa pela sua
proximidade etnográfica com a região onde fiz meu trabalho de campo.

Sendo a escassez de chuva um acontecimento central em toda essa região do Brasil, os


conhecimentos meteorológicos de previsão climática extraídos da observação dos seres da
natureza a partir dos indicativos de resiliência das plantas e das atividades dos animais são
difundidos em vários locais do semiárido. Os agricultores da região do Vale do Sabugi com
quem convivi têm uma tradição semelhante aos profetas da chuva analisados por Taddei,
porém com algumas transformações e diferenças. Ali eles se guiam pelo que chamam de
"experiências". As experiências são indicativos climáticos baseados em observações do
comportamento passado dos agentes da natureza, que por sua vez coincidem com
determinados períodos de seca ou chuva que sucederão. Essas técnicas de observação e
previsão são transmitidas entre as gerações principalmente por parentesco, os filhos
aprendendo com os pais, mas também entre os próprios agricultores, que compartilham suas
experiências.

Quando, no mês de dezembro, uma árvore seca e cheia de cupins se quebra, isso é um
sinal de que a chuva está chegando. Uma aroeira17 que resistiu e chegou até esse mês

16 A constatação de que os humanos se tornaram o principal ator responsável pelas alterações nos processos
biofísicos do Sistema Terra (Danowski e Viveiros de Castro 2014), passando assim de meros agentes
biológicos a agentes geológicos (Chakrabarty 2013), longe de representar a realização do ideal modernista de
triunfo do humano sobre a natureza, constituiu uma verdadeira utopia invertida, com a simplificação
inexorável do mundo cultural e biológico planetário.
17 Todos estes indicativos referidos foram recolhidos através de conversas em momentos informais. O pouco
35
carregada de folhas indica o mesmo. As aves também são consideradas adivinhadoras do
tempo. Quando o bacurau canta no fim do dia, isso é um indicativo de que o inverno ainda
não terminou, ainda há chuva por vir neste período. Já o canto dos “gavião de rapina”
significa seca. O ponto de vista das aves sobre a seca tem ressonância também nas artes
produzidas no nordeste. A música “Acauã”, sucesso na voz de Luis Gonzaga, de autoria de Zé
Dantas, fala do canto solitário da ave durante o tempo da seca, segundo conta o verso:

“Acauã vive cantando / Durante o tempo do verão


No silêncio das tardes agourando
Chamando a seca pro sertão
[...]
Teu canto é penoso e faz medo
Te cala acauã,
[...]
Mas na tristeza da seca
Só se ouve acauã”

Outra técnica bem conhecida é a observação da vida social das formigas, em particular
da altitude do terreno onde elas fazem seus ninhos: quanto mais alto o monte de terra onde
está a entrada, maior será a quantidade de chuvas prevista, pois as formigas não querem correr
o risco de ver suas casas inundadas. A quantidade de bagaço que as mesmas formigas retiram
de suas casas para fazer uma nova armazenagem sugere também fortes indicativos: uma
grande quantidade demonstra que as formigas estão em processo de limpeza de seus ninhos,
pois precisarão de muito espaço para estocar o novo capim do inverno. Da mesma forma, as
formigas tanajura avistadas circulando pelo solo são indício de estiagem. Dona Jardas, ao ver
em seu quintal a circulação dessas formigas carregando folhas para os ninhos, perdia sua
alegria contagiante e esbraveja com a constatação de que “lá vêm três dias de verão.”18

Inácio me disse certa vez, acerca dessas experiências, que “a natureza é um negócio
bem feito”. Mas para além de indicar e permitir a previsão de como será o próximo período de
chuvas, o que essas técnicas exprimem é também um conhecimento meteorológico por parte
dos outros seres da natureza. Com efeito, a meteorologia praticada pelos agricultores se

tempo de campo impossibilitou o recolhimento e o registro cientifico das espécies, o que portanto restringe
nossa identificação ao conhecimento tradicional formulado pelos próprios nativos.
18 Para além da marcação de estações meteorológicas, o dualismo das expressões “verão”/”inverno” concerne a
própria descrição da paisagem do céu, bem como o tempo dado no sentido do presente, um tempo chuvoso é
descrito como “inverno”, enquanto o céu azul, de sol à pino é um dia de “verão” .
36
fundamenta na meteorologia que outros agentes praticam. É observando como os animais e as
plantas se preparam para o inverno que os agricultores assim o fazem, de modo que os ritmos
humanos acompanham os extra-humanos.19 Através da articulação entre os indicativos e os
acontecimentos, repetidas por gerações, uma cadeia de sentidos inesgotável se multiplica, na
qual torna-se impossível definir um corte preciso onde terminariam essas “experiências”.
Nelas, o ponto de vista de todos os agentes importa, na medida em que todos os agentes têm
um ponto de vista próprio acerca da chuva para perseverar no ambiente (Vieira 2013).

Entretanto, estas relações parecem ter se complexificado e gerado algumas


controvérsias nos últimos anos, em virtude do “tempo desmantelado”. Heleno me disse
diversas vezes, nesse sentido, que as previsões baseadas nos indicativos da natureza já não
batem mais com as chuvas. A ordem das coisas parece ter desandado, e nem mesmo os
animais estão conseguindo prever com igual precisão o inverno por vir. Um exemplo disso era
o caso de espécies que normalmente apareceriam somente no final das chuvas, como é o caso
da lagarta de fogo que atinge o umbuzeiro, as quais já estavam começando a “dar com
força”20 em fevereiro.

No cotidiano desses agricultores, frases que fora daquele contexto aparentemente não
têm sentido algum guardam conexões para mim até então insuspeitas. A frase “O trovão é o
pai da coalhada” me soou muito estranha na primeira vez que a ouvi21. Que relação pode
haver entre o trovão, um ruído provocado por uma descarga elétrica sob a atmosfera, e a
coalhada, alimento feito a partir do leite, muito consumido e apreciado na região? Entre o
trovão que cai e a coalhada que aqueles sertanejos comem há uma série de acontecimentos
que se sucedem e se encadeiam em um ritmo particular. A chuva que cai forte provoca o
trovão; a grama cresce vigorosa a partir da umidade criada no solo pelas gotas d'água vindas
do céu e se transforma em alimento farto e nutritivo para o gado; a produção de leite aumenta;
a fartura de alimento chega finalmente à mesa do agricultor, que, com o excedente de leite,

19 Nossa preferência pelo conceito de “extra humanos” em detrimento do conceito de “não humanos” tem
fundamento análogo à preferência de Viveiros de Castro pelo conceito de “extramodernos” (2016) uma vez
que o prefixo “não” parece caracterizar uma certa ideia evolucionista de falta, da qual gostaríamos de nos
distanciar.
20 A expressão local “dar com força” é usada como um intensificador de determinado evento. Por exemplo: “O
feijão está dando com força” significa que a safra está vindo em grande quantidade.
21
Esta simples afirmação revela, para além do conhecimento local, a equivocidade que pode existir entre duas
culturas que, apesar de falarem a mesma “língua nacional”, possuem um abismo colossal entre suas
categorias constitutivas de pensar. Aprender o português do médio sertão foi aprender uma nova língua
dentro do próprio país, com novas modulações de palavras, expressões, e um dialeto próprio. As palavras
transcendem a fortaleza da língua, e onde quer que estejamos podemos encontrar a dissolução da unidade
nacional expressa através dos pequenos dialetos que proliferam. (Bagno, 1999)
37
pode desfrutar do prazer de uma coalhada. A continuidade e os efeitos de todos esses atores
revelam a complexa trama23 de alianças não hierárquicas com os extra humanos em que os
agricultores estão entrelaçados.

Outra afirmação muito difundida entre os agricultores-experimentadores que se


conecta a este arcabouço de pensamento é que: “Onde se tira e não se bota, um dia se
acaba”. Era comum eu ouvir de um agricultor um lamento semelhante sempre que víamos
passar um caminhão carregado de madeira. Muitas vezes, seus próprios vizinhos, alguns dos
quais latifundiários, são responsáveis pela desertificação do bioma local, pela extração de
matéria-prima em busca de uma maximização das fontes de energia, em sua maioria para a
fabricação de cerâmica, tornando o espaço cada vez mais árido, com a retirada de madeira,
pedras e barro, num processo francamente entrópico. A todo momento parece existir um
confronto ontológico de mundos nesses sucessivos encontros pragmáticos24, de um lado a
dialética colonizadora antrópica e "Modernista", e do outro a resistência "Terrana" do sertão,
de composição com a Terra25. A posição incerta do território em relação às ameaças do
capitalismo desterritorializador é algo que parece angustiar todas as famílias com as quais tive
contato, seja diante dos latifúndios que dominam a região e tentam se expandir
progressivamente, seja diante da produção de cerâmica e da extração de minério, que, junto
com o desmatamento, ao mesmo tempo desertificam as paisagens e impõem aos trabalhadores
um regime degradante; ou ainda diante da (mais recente) introdução de centrais de energia
eólica, que, com o arrendamento de sítios agrícolas perante uma irrisória compensação
monetária e a promessa de levar a modernidade à região, ameaçam por fim a esta forma
particular de existência.

Duas paisagens se revezam e contrastam entre os períodos de seca e de chuva, em uma


sazonalidade rigorosa. Durante a estiagem, a paisagem marrom/cinza dorme sob o sol forte,

23 Aqui nos inspiramos especialmente no conceito de malha de Tim Ingold (2012), quando o autor se refere aos
feixes de linhas emaranhadas de movimento e crescimento que se entrelaçam nas diversas relações das
diferentes formas de vidas. Segundo o autor, são essas trajetórias que constituem a textura do mundo.
24 Almeida, Mauro, "Caipora e outros conflitos ontológicos". Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1,
jan.-jun., p.7-28, 2013.
25 Tomo os dois conceitos, "Modernistas" e "Terranos", de Bruno Latour, que, transformando uma ideia
presente já em seu clássico Jamais Fomos Modernos (1994), propõe, no contexto da crise ecológica global e
do Antropoceno, que reconheçamos a existência hoje de uma guerra de mundos, uma divisão entre o povos
dos Humanos (ou Modernos, ou ainda Modernistas) e o povo dos Terranos. Os primeiros acreditam que ainda
vivem no Holoceno, pretendendo submeter a Natureza à sua Cultura, sem levar em conta os limites que a
própria Terra impõe ao desenvolvimento e ao modo de vida da sociedade industrial capitalista. Enquanto os
Terranos, conscientes de estarem vivendo a nova época geológica do Antropoceno, entendem que precisam
compor seu mundo com os outros seres viventes, de forma a não subsumi-los aos seus próprios interesses.
38
hiberna, esperando as primeiras gotas d'água para acordar e florir. A chuva acorda a vegetação
que a estiagem fez adormecer, e o verde então pode ressurgir na caatinga que perdera suas
folhas para resistir à seca. A capacidade de resiliência vegetativa da região impressiona: em
menos de quinze dias de chuva a transformação do marrom e do cinza ao verde é radical, a
coloração de folhas novas faz a paisagem brilhar; o juazeiro, uma das poucas árvores que
resistem à perda de folhas na seca, fica com um verde ainda mais intenso. Essa mesma
resiliência encontramos nos agricultores, que precisam conviver com o clima semiárido. Ali
não se pode intervir na paisagem sem pensar na disponibilidade de recursos e nos limites que
a própria natureza impõe; os humanos não podem acelerar o ritmo lento da natureza, é preciso
acompanhar seu movimento.

Plantar perseverando, dizem os experimentadores, é o que faz o verdadeiro agricultor,


aquele que nem se importa com o que vai gastar para plantar. Não se sabe o futuro do que se
está semeando, se no inverno choverá o suficiente até que as plantas safrejem ou se alguma
praga virá atrapalhar seu sucesso. Conheci agricultores que há 5 anos semeavam e não
conseguiam colher nada na safra de feijão com milho, situação que não fez com que eles
esmorecessem e desistissem de semear mais uma vez na esperança de colher alguma coisa.
Como bem me explicou Heleno “tem pessoas que parecem agricultores, se parecem com o
agricultor em todos os aspectos, se você olhar dirá que ele é um agricultor; mas se planta
com o fim do trabalho, de colher para ganhar dinheiro, ele é um micro-agronegócio. A terra
dele não é um espaço de sobrevivência, é um espaço comercial. O agricultor velho de
verdade planta por prazer”.

Evanilson, filho de Heleno, já havia perdido duas vezes no mesmo ano o roçado de
milho e feijão, um consórcio de plantio feito tradicionalmente no inverno que depende da
regularidade de chuvas para safrejar. Neste caso, não basta apenas que a chuva caia em
bastante quantidade, mas é preciso que ela venha em determinada frequência, de preferência
com potência mais fraca, para “aguar” regularmente as plantas e não agredir o solo
provocando erosões. Devido à extensão do roçado e à própria escassez de água disponível, a
atividade humana de regar se torna inviável: é preciso que o céu mande chuva para sustentar o
solo úmido por todo período de cultivo até o período de reprodução, quando se pode recolher
as favas de feijão e as espigas de milho.

39
Além disso, todo o regime agrícola regional é pautado pelo calendário religioso. O São
João, por exemplo, que é reconhecidamente a festa mais famosa do nordeste (e que hoje faz
um sucesso estrondoso com a realização de megaeventos produzidos pelas prefeituras de
diversas cidades), é tradicionalmente a festa da colheita. Os festejos de São João, no final de
junho, sucedem o período intenso de chuvas, e coincidem principalmente com a safra de
feijão e milho. O dia 19 de março, dia de São José, padroeiro dos agricultores, é também
aguardado com muita expectativa e celebrado com entusiasmo. Dizem os agricultores que
chover nesta data é um sinal de que haverá um bom "inverno", já que se espera que o santo
traga a chuva do céu. O Dia de São José marca justamente a entrada no período mais
proveitoso do ano para o agricultor, pois se supõe o início do período em que as chuvas
ocorrem com mais frequência. É sempre também nas proximidades desta data26 que, de
acordo com o saber da ciência meteorológica, ocorre a transição das estações do verão para o
outono, sendo o outono a estação caracterizada pelo maior índice de pluviosidade do ano na
região do Semi-árido, acompanhada de uma regularidade de chuva. É importante neste caso
compreender o ritual situado dentro de um ciclo temporal, no qual as datas religiosas
fornecem uma noção concreta do movimento do clima, marcando os eventos e hábitos de
processos extra humanos e expressando um saber próprio difundido pelo ritual como forma de
conhecimento (Morin de Lima, 2016).

Enquanto os agricultores marcam a precipitação do maior período chuvoso através de


seu calendário religioso tradicional e são capazes de prever as chuvas com base no
movimento dos animais e plantas, a ciência meteorológica interpreta o mesmo fenômeno de
alta pluviosidade através da precipitação de massas de ar na atmosfera observadas a partir de
imagens de satélite. O saber meteorológico dos agricultores, assim como as experiências e
todo o regime cosmopolítico associado à chuva, permite interpretar o mundo segundo uma
ontologia própria. O acontecimento ritual de São José, seguido do período de chuvas
interpretado via uma religiosidade própria, não é o mesmo acontecimento que a meteorologia
denomina de outono. O que está em jogo são duas realidades diferentes em competição,
segundo o princípio metodológico de simetria; não se pode privilegiar nenhum dos regimes,
embora seja possível neste caso o estabelecimento de algum tipo de acordo pragmático para

26
No ano de 2016 o outono se iniciou oficialmente dia 20 de março na região.

40
se especular um diálogo possível entre eles, já que em muitos aspectos há uma convergência
entre ambos (Almeida, 2013).

41
ECOTECNICAS DO SERTÃO

Em recente ensaio sobre imaginações do “fim do mundo”, Déborah Danowski e


Eduardo Viveiros de Castro propõem uma espécie de torção no conceito latouriano de
tecnologia. Assim como o próprio Bruno Latour rejeita o conceito modernista de uma Ciência
única, e propõe em seu lugar uma antropologia das ciências ou práticas científicas diversas, os
autores afirmam que a mesma operação deveria ser efetuada no modo de existência que
Latour chama, em seu livro Investigación sobre los modos de existencia, de Técnica [TEC].
Diante das ameaças trazidas pelo Antropoceno, aqueles que apostam todas as suas fichas nas
“soluções tecnológicas” (technofixes) costumam pensar a Técnica segundo o modelo daquelas
inovações apoiadas em uma Ciência centralizada e centralizadora, dependente de enormes
incentivos financeiros, estatais ou privados, e servindo à estrutura de poder que se confunde
com a que sempre esteve na origem das tecnologias causadoras do aquecimento global e da
devastação ambiental (e que hoje se reproduzem nos perigosos projetos de geoengenharia). A
essas Técnicas (ou Tecnologias) Modernas, entretanto, opõe-se o que os autores chamam de
“tecnologias terranas”, uma espécie de devir minoritário da Técnica, que se agencia antes com
o que Isabelle Stengers chamou de slow science do que com a Big Science. Não poderemos
viver no Antropoceno com as Técnicas do Holoceno.

“Pois há técnicas terranas como há técnicas humanas, diferença que não se


reduz, pensamos, à mera questão do comprimento de suas redes. A guerra
entre Terranos e Humanos vai se travar essencialmente neste plano, sobretudo
quando incluímos na categoria alargada e pluralizada das técnicas toda uma
gama de agenciamentos sociotécnicos e de invenções institucionais, alguns
muito antigos, outros muito recentes, que vão dos sistemas de parentesco e dos
mapas totêmicos dos aborígenes australianos à organização horizontal e à
tática defensiva “black Bloc” dos movimentos de protesto altermundialistas,
das novas formas de produção, circulação, mobilização e comunicação
criadas pela internet (Wark 2004), às organizações de guarda e troca de
sementes e cultivares tradicionais em várias zonas de resistência camponesa
pelo mundo afora, aos eficientes sistemas de transferência financeira extra-

42
bancárias do tipo hawala, à arboricultura diferencial dos indígenas
amazônicos, à navegação estelar polinésia, aos “agricultores
experimentadores” do semiárido brasileiro, a inovações hiper-
contemporâneas como o movimento das ecovilas, a psicopolítica do
tecnoxamanismo ou as economias descentralizadas das moedas comunitárias
do bitcoin e do crowdfunding”. (Danowski e Viveiros de Castro 2014: 148)

Pois bem, acreditamos que podemos ver nas práticas dos agricultores
experimentadores do semiárido nordestino exemplos dessas tecnologias terranas. Trata-se de
invenções locais, adaptadas e modificadas de acordo com as possibilidades particulares de
cada território, sendo cada agricultor ao mesmo tempo inventor local, agente propagador e
aprendiz constante numa rede intensa de associações e trocas.

Uma tecnologia difundida por toda a área rural do sertão da Paraíba são as cisternas de
armazenamento de água, inventadas por um agricultor sergipano que trabalhou por anos em
São Paulo fazendo piscinas a partir de placas de cimento pré-moldadas. Ao retornar à sua
terra natal, teve a ideia de fazer uma piscina a partir das placas, porém tampada de forma que
fosse possível captar água de chuva sem que o calor evaporasse o líquido armazenado. Essa
invenção simples, a partir de uma gambiarra, garantiu uma qualidade de vida sem igual no
campo.

As “cisternas de placa” ganharam alguns aprimoramentos desde sua invenção, e


passaram a fazer parte da agenda de política pública. O programa “Um milhão de cisternas”,
do governo federal em parceria com a Articulação do Semiárido (ASA), já instalou quase
600.000 cisternas de 16 mil litros, e planeja instalar essas cisternas em todas as residências
rurais da região com o objetivo de garantir água de qualidade para beber e cozinhar durante o
ano todo para todas as famílias. Com baixo custo e sem grandes intervenções no meio
ambiente, fugindo da lógica de soluções únicas, e de mega construções que sempre tendem a
causar impactos socioambientais, as cisternas de placa, construídas em sistema de mutirão em
cerca de apenas uma semana, conseguem acumular, somadas, um volume de água
extraordinário, terminando com a dependência de uma fonte única, sem grandes intervenções
na paisagem, e garantindo às famílias a autossuficiência hídrica. A cada cisterna instalada um
novo mundo se abre para o agricultor.

43
Desde sua implantação, as mulheres não precisam mais andar quilômetros atrás de
água para cozinhar. Além disto, a qualidade da água para uso tornou-se muito superior,
havendo uma forte diminuição na incidência de infecções bacterianas causadas por água de
baixa qualidade, o que era muito comum quando a fonte para cozinhar e beber se limitava aos
açudes e barreiros onde os reservatórios estavam expostos a céu aberto e a contaminação de
animais e outros dejetos que pudessem ali se alojar.

No quesito armazenamento de água, essa sem dúvida é a tecnologia mais presente nas
residências, mas não a única. Os agricultores possuem diversas formas de armazenamento e
irrigação, cada qual de acordo com a sua necessidade e com a especificidade de cada terreno.
Iranildo, por exemplo, construiu uma barragem subterrânea a partir de uma extensa lona
plástica atravessada no subsolo formando uma parede dentro da terra, que impede a dispersão
das águas pelos lençóis freáticos. A água ali retida cria uma vazante artificial que mantém a
umidade no solo e lhe permite plantar até meados de agosto sem regar. Criou também um
sistema de irrigação de agrofloresta que utiliza canos de PVC como condutores e tampas de
garrafas pet como gotejadores, nutridos por uma pequena barragem que armazena água para
uso tanto na agricultura como na residência nas atividades de higiene doméstica. Já no
terreno de Mario Virginio, ao lado do qual sua filha Luzia possui uma casa, são utilizadas
duas cisternas de captação de chuva que foram construídas em seu terreno, além da recente
"cisterna calçadão" de 52 mil litros para utilização na agricultura. Heleno inventou uma
técnica sofisticada de irrigação por meio de potes confeccionados com barro e esterco, o que
deixa-o poroso e vazando lentamente, alimentando por cerca de uma semana as plantas, de
maneira que não há desperdício por evaporação e há uma economia do trabalho, não sendo
necessário aguar sempre. Cinco cisternas diferentes acumulam água em sua terra, totalizando
um armazenamento de mais de 100 mil litros de água, incluindo a cisterna tradicional de 16
mil litros e a cisterna calçadão, além ainda de uma cisterna de 32 mil litros feita com as
próprias mãos utilizando a forma pré-moldada prevista no programa "Um milhão de
cisternas", mas dobrando seu tamanho e sua capacidade de armazenamento, além de um
tanque de pedra adaptado no lageiro, uma formação rochosa comum não região e existente em
seu sítio, na qual foi necessário somente construir os muros para barrar a água. Quando uma
cisterna sangra, Heleno direciona um cano rumo a outra cisterna.

Embora os agricultores possuam todo este leque de experiências e formas de


observação da vida contida na paisagem para interpretar o clima, eles não hesitam em marcar
44
a intensidade das chuvas em seus sítios com precisão através dos aparelhos simples que a
ciência meteorológica lhes fornece. Quase todas as residências possuem pluviômetro instalado
no quintal para medir a precipitação da água em seus sítios. À chuva sempre segue uma rede
de compartilhamento de informações entre os vizinhos através de encontros espontâneos, nos
quais cada habitante informa ao outro sobre a quantidade de milímetros que caiu em sua área.
Dada a extensão do espaço geográfico, há sempre variações pluviométricas de acordo com os
territórios, o que não exclui o valor das informações acerca dos índices pluviométricos
fornecidos pelo locutor de rádio, mas demonstra a incompletude desses dados, já que estes
fornecem apenas a marcação da precipitação em um ponto específico. Essa rede de
compartilhamento de informações sobre a chuva fornece um mapa completo de sua incidência
nas diferentes regiões.

Há também um outro programa do governo com atuação do exército, que fornece água
potável para as residências que assim o desejarem27. Entretanto, a qualidade para consumo
humano dessa água é contestada pelos próprios agricultores, devido a seu cheiro forte e
coloração. Os agricultores reclamam também dos requisitos para enquadramento no
programa, os quais incluem a exclusividade do uso desta cisterna como condição para o
recebimento da água fornecida pelas forças armadas, ou seja, proíbe o armazenamento das
cisternas com água da chuva, o que impossibilita sua emancipação (mesmo que temporária) e
os torna dependentes de assistência. Mas os agricultores também sabem criar formas de burlar
as adversidades impostas sem deixar sua vida ser precarizada. Algumas famílias recebem
água do caminhão-pipa distribuída pelo exército e a utilizam para diversos fins; a água do
exercito é usada no banho, na agricultura, para dar de beber aos animais, enchendo suas
cisternas calçadão, exceto para beber. Para uso humano recolhem água das cisternas de seus
parentes que moram muito próximos e captam a água da chuva. Não há uma rejeição ao
recurso oferecido, mas de forma silenciosa se nega a proposta, conferindo novos fins ao
benefício oferecido (ver Medeiros, 2016).

A água para beber necessita de um cuidado especial para manter sua qualidade, Luzia
possuí uma técnica de purificação, na qual ela exibe uma garrafa d’água da cisterna cheia ao
sol, sob uma lona preta, de maneira que o calor dos raios que incidem sobre a mesma matam

27 As verbas para este programa destinadas ao exército foram cortadas recentemente pelo governo de Michel
Temer como forma de contenção de gastos.
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as microbactérias que podem ser danosas ao corpo humano, sem extinguir completamente os
nutrientes benéficos à saúde.

Há ainda as tecnologias sociais. O Fundo Rotativo Solidário foi criado quando o


programa de cisternas ainda não havia sido implementado como política pública. Os
agricultores de determinada região se reuniam e contribuíam com uma pequena taxa. Com o
dinheiro acumulado, a cada mês uma cisterna era construída em sistema de mutirão na casa de
um agricultor selecionado mediante sorteio. Entretanto, uma vez o programa tendo sido
implantado, o fundo rotativo se transformou e começou a ser realizado com outras finalidades.
Tal foi o caso da Associação de Agricultores de Penedo, que realizam o Fundo Rotativo
Solidário para a criação de ovelhas, com os participantes circulando animais entre eles a partir
de uma ordem definida também por sorteio. O agricultor recebe cinco ovelhas para dar cria, e
depois da reprodução repassa a mesma quantidade de filhotes ao próximo agricultor da fila, o
qual dará continuidade ao processo repassando novilhos a um terceiro agricultor após as
ovelhas recebidas darem suas proles.

Nos arredores das casas, sempre há uma diversidade de plantas, ornamentais


alimentícias, de utilização principalmente em temperos, além de pequenas árvores frutíferas
que são abastecidas pela reutilização das águas de casa na agricultura. Principalmente as
águas da cozinha nunca são dispersadas, são quase sempre conectadas aos jardins através de
diferentes técnicas, formando pequenos quintais produtivos.

Um exemplo é a distribuição dessas águas através de fileiras de pneus, de forma a dar


um segundo uso à água da cozinha, conectando os canos da pia rumo a uma sequência de
pneus enfileirados, na distância de aproximadamente dez metros da casa, onde a água é
escoada lentamente pelas frestas criadas pelos micro-espaçamentos dos pneus, de modo a
gerar uma umidade permanente na terra.28 É comum também a reutilização na irrigação,
através do armazenamento em baldes e toneis conectados diretamente a esses canos, para que
em seguida essa água seja utilizada na irrigação manual. Desta forma, embora se tenha mais
trabalho, por outro lado é possível definir o espaço que se deseja abastecer de nutrientes.
Assim se garante a vivacidade das plantas do quintal por todo o ano, beneficiando inclusive

28 Esta técnica foi utilizada primeiramente por Iranildo, mas tem se espalhado entre outros agricultores através
das trocas de experiências entre eles. Levi me contou que a água de sua pia escoava a céu aberto no jardim,
mas que, logo após escutar de Iranildo sobre os benefícios e a facilidade de implementação daquela
tecnologia, ele a reproduziu em seu sitio.
46
árvores de médio porte e mantendo o arredor de casa verde. Mario Virginio e Heleno
receberam em 2015, de um programa do governo, uma nova cisterna calçadão cujo objetivo é
armazenar uma segunda água para uso agrícola através da captação da chuva, dinamizando os
quintais produtivos nos arredores de casa. Ambos estão ampliando suas culturas de
subsistência graças à água captada nessas cisternas.

Vemos assim que, frente à natureza indomesticável, os agricultores experimentadores


não plantam a quantidade que desejam a partir de um imperativo abstrato e desconectado do
lugar onde vivem, nem cultivam as culturas que bem entendem, submetendo a terra à sua
vontade. É a quantidade de chuva que cai em determinado período, acrescida da capacidade
de armazenamento da mesma, que definirá o tamanho do plantio e as espécies cultivadas. Se
os regimes de estiagem são incertos e prolongados, selecionam-se as espécies arbóreas mais
resistentes aos longos períodos de baixa pluviosidade. Perder uma árvore ou um animal para a
seca é um acontecimento desgraçado, um desmantelo grande, segundo eles dizem, e portanto
a escolha de espécies nativas supera a de exógenas, que só são introduzidas quando bem
adaptadas ao clima. Iranildo já desistiu de plantar bananas, pois, segundo diz, está cansado de
perder espécies pouco resistentes nos períodos de estiagem.

Com efeito, o agricultor só semeia se existir água suficiente para o plantio até o
período da colheita. Desta forma, para fazer o roçado é necessário fazer um planejamento
levando em conta as chuvas que caíram, a água disponível nos reservatórios de água e o
consumo de que essas plantas necessitarão até que safrejem29. Assim, logo após as chuvas, é o
período em que a horta está mais cheia de sementes e plantas. À medida que vai se
aproximando o mês de dezembro e a água vai chegando ao fim, o tamanho da horta vai
esmiuçando, colhe-se o que safrejou, mas se tem a paciência de esperar um novo “inverno”
para se plantar de novo.

Os roçados dependem dos ritmos da chuva, e se movimentam a partir dela. Cabe ao


agricultor ter cuidado com a terra, para escolher com minúcia o que plantou, pois cada gota
d'água é valorizada. Assim como o cuidado, a paciência de esperar a chuva e se movimentar
segundo suas coordenadas, ambos atributos presentes nessa região que pesquisei, poderão em

29 As decisões e os planejamentos dos agricultores nada têm a ver com cálculos matemáticos complicados, mas
sim com sua percepção, baseada na experiência passada da quantidade de volume d'água disponível e do que
é possível semear com ele.
47
breve se mostrar imprescindíveis – e não só alí – como formas de resistência ao Antropoceno,
por implicarem toda uma outra relação com o tempo e os ritmos da natureza, que vai na
contracorrente da temporalidade unidirecional pressuposta pela ideia de progresso e de
aceleração do crescimento, característica do pensamento moderno.

Nos arredores de casa, os quintais produtivos dão uma diversidade de frutas, alimentos
e temperos utilizados diariamente na cozinha. Embora os agricultores não cheguem à
subsistência total, parte das refeições são preparadas com alimentos vindos de sua própria
terra; o coentro, por exemplo, ingrediente essencial na culinária local, é também planta
sempre presente nos quintais. Além disso, em seus roçados, os agricultores realizam uma série
experimentos de cultivo lado a lado de espécies variadas, maximizando o espaço e os
nutrientes do solo e realizando uma espécie de simbiose, ou o que chamaríamos
convencionalmente, no campo da agronomia, de consócios, juntando duas ou mais espécies
diferentes que se combinam em alianças não hierárquicas, sem estabelecer competição entre
si. Segundo eles dizem, “uma planta segura a outra”. O exemplo mais conhecido é a técnica
de plantar milho junto ao feijão, podendo ainda se inserir no mesmo roçado o jerimum
(abóbora), a melancia, e eventualmente até a palma.

A primeira finalidade da agricultura para o “agricultor velho”, como já dissemos, é a


subsistência. O que sobra eventualmente é comercializado, em geral na própria comunidade,
seja diretamente para os próprios vizinhos, ou em feiras populares existentes na região. Na
divisão do trabalho local cabe às mulheres cuidar da casa e seus arredores, além da criação de
galinhas; aos homens, o trabalho no roçado e a criação de gado. Enquanto estive na casa de
Iranildo, por duas vezes assisti o telefone tocar à procura de sua mãe, dona Maria. Ora era o
padre da região, interessado em saber se ela tinha para vender galinhas para a realização da
festa de São José, ora era a funcionária da farmácia interessada em comprar os ovos de suas
galinhas. Já seu filho, Iranildo, recebia as encomendas de polpas de frutas de seus vizinhos
diretamente das redes sociais pelo celular, quando não eram direcionadas por ligações.

Na maioria dos casos observados, aliás, a agricultura não é a principal fonte de renda
familiar, devido tanto ao tamanho da produção e sua sazonalidade, quanto ao próprio valor
financeiro dos alimentos, o que por sua vez reforça a ideia de que a atividade não está
relacionada a aspectos econômicos, mas sim a uma certa concepção de cuidado com a terra.
Luzia trabalha na casa da prefeita Nelis, e também é merendeira noturna em Riacho da Serra;
48
e tanto Iranildo quanto Heleno trabalham como agentes de saúde em suas respectivas regiões.
Embora a agricultura tenha deixado de representar uma estabilidade econômica, o que tem
levado a uma proletarização dos trabalhadores rurais, obrigando-os a ingressar no mercado de
trabalho, isso não fez com que deixassem de semear e cuidar de seu roçados e fazer do solo a
vida brotar.

Quando argumento que o processo de agenciamento é sintrópico, isso quer dizer que
nada se perde, ou ao menos que se tenta perder o mínimo; reaproveita-se tudo que é possível,
num continuo de vida, de forma a sempre buscar maximizar, não a produção, mas as fontes
vivas de energia. Certo dia, quando o capim colhido estava verde demais e a forrageira não
conseguia moer por completo, sobraram alguns tocos de capim que os animais não foram
capazes de digerir. No dia seguinte lá estavam os tocos de capim reaproveitados, plantados
em forma de mudas no sistema agroflorestal (SAF). O esterco da vaca é um potente adubo, e
isso já é bem conhecido. Mas neste processo de produção de adubo quem realiza um papel
importante são as galinhas, que, ciscando nas fezes, as espalham, acelerando o processo de
fermentação e transformando em adubo o que antes era esterco.

Assim como produzem o adubo natural, os agricultores experimentadores preferem


utilizar soluções que chamam de defensivos naturais em oposição à via dos agrotóxicos.
Produzidos com materiais disponíveis nos próprios sítios, esses remédios, que visam
combater as pragas, não causam danos nem aos humanos que os aplicam ou que comem
depois o alimento, nem ao ecossistema em que são utilizados. Pimenta, cebola, alho, fumo e
sabão de coco são alguns dos ingredientes utilizados numa variedade de soluções com
diferentes aplicações e objetivos. A homeopatia da natureza combate as pragas sem causar
danos e sem custos econômicos aos produtores. Sua finalidade não é o extermínio das
espécies invasoras ou em número excessivo, mas apenas espantá-las.

Não que estes agricultores nunca tenham utilizado defensivos químicos. Como já
dissemos, isso já aconteceu no passado, e eventualmente pode até ser que diante de uma praga
incontornável eles recorram novamente aos agrotóxicos. Fato é que acabaram vítimas daquilo
que imaginavam ser remédio. Levi chegou por esse motivo a ficar internado, envenenado
entre a vida e a morte; mas, como me contou, graças ao bom Deus se recuperou, embora não
completamente. Outros não tiveram a mesma sorte. Vítimas fatais dos agrotóxicos, hoje ao
menos suas mortes servem de exemplo aos agricultores experimentadores.
49
Os agricultores experimentadores têm aliás realizado uma verdadeira “transformação
molecular”, no sentido que Felix Guattari (1981) confere ao conceito, que se dá a partir de
uma relação entre diferentes de uma forma que não é nem horizontal, nem hierárquica, mas
transversal. Há em curso uma transformação na linguagem e nos nomes que os camponeses
dão às coisas a partir do contato com as organização e o léxico discursivo moderno da
agroecologia, sem que isso interfira em suas categorias constitutivas tradicional. O que é
comum se ser chamado de cova, por exemplo, buraco onde se cava para enterrar a semente a
germinar, ganha agora o nome de “berço”. Dizem que cova é para enterrar defunto, mas
nesse buraco (ao contrário) se coloca uma vida que vai germinar e crescer e, portanto isso
deve ser chamado de “berço”.

O GADO

Em outra ocasião, o mesmo Levi me disse que “quem tem gado é escravo dele”. De
fato, quando estive vivendo junto à família Garcia, pude observar que as tarefas mais
extenuantes, mais pesadas e que mais consumiam o tempo da família não diziam respeito ao
cuidado com a agricultura. É sobretudo na criação do gado que está presente o tipo de serviço
mais pesado, aquele que enfada o homem. Embora este serviço pesado seja ainda muito
diferente daquele da cerâmica que já descrevemos, pois ele se dá em eventos esporádicos,
alternados por uma série de serviços maneros que implicam na obrigação diária da qual não é
possível se ausentar, de desmamar a vaca e alimentá-la.

Mas seria equivocado interpretar isso como perda de liberdade individual para
dedicar-se aos animais. Como Iranildo me explicou, o gado está a todo momento em nossas
vidas, e por isso todos somos escravos do gado, ao menos à mesa. Seja no leite do café da
manhã, na manteiga, no queijo, na própria carne consumida por quase todos ali e alhures. É
difícil para um vegetariano urbano como eu compreender, mas o sertanejo consegue amar o
gado e comê-lo. A diferença é que na cidade o cidadão nem sequer pensa ou compreende o
esforço que foi despendido até que o alimento chegasse à sua mesa, ao passo que o gado
ocupa uma função central na vida do sertanejo; o criador cuida do gado com amor até que
chegue o momento de alimentar-se dele.
50
Em uma rotina típica de serviço manero, o dia na roça começa às 5 da manhã com a
ordenha, atividade na qual confesso ter sido um fracasso completo. Tirar leite definitivamente
não é uma atividade fácil, exige ao mesmo tempo uma força especifica dos dedos e uma
sincronia no movimento. Basta que um dedo esteja posicionado de forma errada, ou que o
movimento não seja articulado de maneira correta, para que o leite não seja expelido do corpo
da vaca. No sertão são os homens que realizam esse trabalho, e a ordenha é realizada somente
uma vez ao dia, pela manhã. Primeiro uma corda é lançada amarrando as patas traseiras da
vaca, e seu bezerro livre bebe um pouco de leite; depois ele é retirado das tetas mãe e tem sua
cabeça amarrada nas patas dianteiras da vaca leiteira. Sentado em um pequeno banco, com um
balde de metal entre as pernas, retiram-se em média 2 a 4 litros, podendo chegar até a 5 litros,
de leite de cada vaca em período de aleitamento; depois o bezerro é solto, as pernas da vaca
desamarradas e o novilho retorna às suas tetas para continuar a mamar. É necessário ter
cuidado para não extenuar a vaca, e também dividir o leite com o novilho, para que ele se
alimente bem e cresça forte. Todas as vacas recebem um nome e seus donos conseguem
distinguir cada uma de acordo com sua personalidade, se é mais dócil ou mais braba, também
através de suas tonalidades de cor e manchas próprias. Esta relação de proximidade com o
animal é cultivada através de gerações, sendo comum um pai presentear seu filho ainda bebê
com um novilho que crescerá junto com a criança.

Na parte da manhã é preciso ainda colher alimento para as vacas, que, assim como
nós, precisam de uma refeição diversificada, saborosa e saudável. Por isso, sempre que
possível se conjuga o corte de capim elefante e o sorgo. Na parte da tarde ainda há o trabalho
de os moer na forrageira, atividade que consiste em otimizar todo o alimento e garantir que
haja um máximo aproveitamento por parte do gado, sem desperdício.

No que tange ao serviço pesado, as atividades que mais enfadam são os eventos
esporádicos de armazenamento, como a silagem, a produção de capim, o plantio de capim na
barragem. Enquanto a água ainda está na altura da cintura na barragem, espalha-se ali capim
retirado de outro terreno ainda em crescimento para que, conforme a área alagada se torne
vazante, ele enraíze, e depois de cerca de três meses, quando a barragem já estiver seca , ele
esteja grande e vigoroso, pronto para alimentar os animais no tempo da seca. O esforço
contido nessas ações aparentemente simples é imenso, ocupando um dia inteiro de trabalho
enfadante, além de apresentar vários perigos contidos na própria atividade. Eu mesmo cheguei
51
a sofrer um ataque de formigas conhecidas por alemãs, quando carregava um molho de capim
cheio delas; meu braço chegou a inchar por alguns dias devido à suas picadas.. Para entrar
com o capim na água é utilizada a técnica da paviola, em que duas madeiras resistentes são
enfileiradas de forma paralela, atravessando o capim horizontalmente, e dois homens devem
carregá-la barragem adentro até o ponto onde ela será dispersada e ficará boiando na água. A
paviola ainda exige um cuidado particular, uma vez que não se pode deixar molhar as toras, o
que faria seu peso aumentar significativamente.

Outra técnica utilizada em muitos locais é a silagem. Dóia, um agricultor da região do


Vale do Piancó, quando me descrevia a técnica dizia que nem mesmo o técnico da Emater
local a conhecia, embora ela seja difundida entre os próprios agricultores como forma de
estocagem de alimento. Ela consiste em armazenar toneladas de capim verde e saudável para
que, no período de seca, quando todo capim para o gado pastar já tenha se extinguido, ainda
se tenha fonte de alimento fresco e de qualidade para que o gado possa se alimentar e se
manter saudável até que chegue novamente o período de chuvas e o capim volte a crescer.
Este armazenamento só pode ser feito em forma de mutirão, envolvendo cerca de pelo menos
cinco pessoas, geralmente durante um dia inteiro de atividade, em que o capim elefante é
triturado na forrageira, acumulado, e prensado num monte junto com sal para garantir que o
sabor não se perca.. Em seguida se cobre o monte com uma lona, com cuidado para não
deixar ar solto entrar na grama forrada e o plástico evitando a perda de nutrientes. Segue-se
depois uma cobertura de terra para que não exale o aroma, que é um atrativo para animais, e
por último realiza-se o cercamento da estrutura com arame farpado, de maneira a garantir que
nenhum animal fuce e estrague a engenharia. Uma vez feita, a silagem garante a frescura do
capim por até um ano, e são estocadas uma média de 8 a 16 toneladas, dependendo da
quantidade de gado e capim que o agricultor tenha disponível.

Tanto a silagem como o plantio de capim na barragem nos fornecem indicações para
compreender a necessidade do trabalho coletivo como única forma de perseverar no roçado.
Nos tipos de serviço pesado, situações em que só é possível trabalhar através de mutirão,
homens e mulheres participam, pois um corpo só não dá conta da coordenação e da força
física exigidas. Em uma divisão sexual do trabalho visivelmente marcada, cabe aos homens o
feitio da silagem propriamente dita e às mulheres a produção de alimentos e café para o
mutirão. Fica evidente a necessidade de coesão e alianças nos processos de armazenamento
de nutrientes para o verão, Esse tipo de relação é também presente no serviço manero, no
52
cotidiano do cuidado com a roça, quando a força enérgica do trabalho em conjunto faz com
que os seres individuais potencializem suas forças e não esmoreçam. Seu Heleno lamentava
que sua rotina era solitária no roçado quando seu filho Evanilson estava ocupado com algum
outro tipo de trabalho e dizia: “se o cabra trabalha sozinho esmorece”. No trabalho em
conjunto, a companhia e o humor das piadas contadas na rotina no campo, a chamada
“manguação”, fazem o serviço e o tempo passar mais rápido.

A VIDA BROTANDO

Pronto, neste contexto de intensivas experimentações e trocas de conhecimento, os


próprios agricultores se definem experimentadores, pelo fato de estarem a todo momento
testando novas tecnologias. Seu Inácio comentava que, embora seja analfabeto, ele e seu filho
de vez em quando têm uma ideia na cabeça e logo a põem em prática a partir dos materiais
disponíveis, numa invenção que possa dar conta da situação de que necessitam naquele caso
particular. Eles têm a ideia, pegam as coisas, e inventam na hora. Não a partir de um modelo
pronto descrito numa planta, mas através de invenções criativas úteis em situações
pragmáticas, que eles nomeiam por “gambiarras”. Um exemplo seria o motor de geladeira
quebrado, que, após algumas adaptações inusitadas e improvisadas, se transforma numa
bomba de ar de encher pneus. Ou a reciclagem de geladeiras sem uso, que, após uma vedação
com Durepox, se converte em uma pequena caixa d'água a ser colocada no roçado, passando a
ser uma fonte de água disponível para regar as mudas no campo agrícola.

Mas a potência criativa dos meus amigos do sertão é forte mesmo no sentido de fazer
a vida brotar, recuperar o solo infértil e inventar formas de driblar as investidas colonizadoras
de destruição da paisagem sem se deixarem ser capturados pela semiótica desenvolvimentista
e colonizadora. É verdade que eles eventualmente cedem a essa lógica dada a pressão que elas
exercem a todo momento nas subjetividades, e praticam atividades que poderíamos supor
serem pouco ecológicas. Não é raro encontrar passarinhos presos em gaiolas. Tampouco são

53
raras as histórias de caçadas virtuosas em que são mortas centenas de arribaçãs. Mas isso não
é tudo.

Quando conheci o jovem Talis na comunidade de Cacimba de Areia, espantei-me com


um concriz que estava preso numa gaiola em frente à horta. Perguntei a Talis por que aquele
pássaro estava preso, e ele me contou que o pássaro não estava conseguindo voar e quase foi
pego por um gato que estava a caçá-lo. Colocou-o então na gaiola para que pudesse criar asas
e em seguida soltá-lo. Ainda enquanto estávamos visitando sua casa, Talis o soltou e pudemos
vê-lo voando livremente. Neste mesmo dia ele ainda me mostrou um preá que havia aparecido
em sua casa. Contou-me que já experimentou carne de preá, mas como aquela espécie estava
sendo pouco avistada no local, quando os encontrava, ele preferia capturá-los até que
produzissem cria, e em seguida soltava toda a família no mato.

Numa outra ocasião, agora na casa de Iranildo Garcia no Vale do Sabugi, enquanto
trabalhávamos no viveiro de mudas nos deparamos com alguns escorpiões. Iranildo fez
questão de apenas afastá-los de modo que não nos oferecessem perigo. Mas não tardou uma
outra ameaça ainda maior à nossa frente no viveiro. Era uma cobra-coral30 que se escondia
entre as mudas. Iranildo foi com calma retirando muda a muda, até conseguir espantar a cobra
que ali estava. Quando contávamos aos outros de nosso encontro na mata, quase sempre nos
perguntavam se nós tínhamos matado a cobra, e, ao ouvirem a resposta negativa, quase
sempre os vizinhos de Iranildo diziam que ele deveria ter dado fim a ela. Mas Iranildo ficava
irredutível em sua posição de preservação da cobra. Dizia que ela tinha seu papel naquele
espaço.

Esses agricultores preservam o meio ambiente por meio de uma percepção local e
particular, não por uma generosidade geral e abstrata em relação a seres menores.
Compreendem a importância desses agentes ecológicos extra humanos no ecossistema e na
dinamização dos processos de vida exercido por eles no ambiente local. Iranildo, com quem
tive a oportunidade de aprender e de fato é um grande intelectual local, volta e meia me
mostrava orgulhoso uma nova espécie de muda nascendo no chão e dizia: “essa planta aqui
não fui eu que plantei; se você cuida da natureza, ela te dá de volta”. É através dessas
interações existentes que os agricultores aproveitam a oportunidade de composição com a

30 Não identificamos com certeza se se tratava de uma coral verdadeira, venenosa, pois existe também a
chamada coral falsa, muito parecida com aquela, mas que não possui veneno.
54
terra. É produzindo condições e recebendo os benificios do habitar compartilhado com os não
humanos que eles constituem uma relação intensa de reciprocidade.

As ecotécnicas do semiárido fazem a vida brotar lentamente, acompanhando o ritmo


das chuvas e trazendo de volta tudo aquilo que foi expulso pelas máquinas no antigo regime
de plantation da monocultura de algodão. Encontramos nessas práticas moleculares formas de
operar uma resistência à ontologia tecnocientífica moderna, que criam e reinventam a sua
própria existência a partir de seus próprios regimes de conhecimento e verdade, com seus
testes de validação próprios. Em muitos casos essas experiências nos podem ensinar se
estivermos dispostos a ouvir, e assim aprender a coexistir com mundos que estão em vias de
desaparecer diante da crise ecológica contemporânea.

55
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