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TEXTO 03

AS ATITUDES ORIGINANTES DO FILOSOFAR:


anotações para aula

Alberes de Siqueira Cavalcanti*

INTRODUÇÃO

Uma das questões que instigam o pensamento filosófico é a procura pela sua
própria origem; não no sentido histórico, como veremos, mas na dimensão antropológica e
existencial. As anotações aqui expostas têm o propósito de apresentar o problema sobre a
atitude inicial do filosofar, ou seja, aquele específico comportamento que leva o homem a
ocupar-se de Filosofia, a sentir-se até mesmo um condenado a essa tarefa (Socrátes). A
questão pode ser posta ou desdobrada em perguntas: o que pode levar o homem a ocupar-
se de Filosofia? Existe uma atitude originante do filosofar que seja universal e atemporal (no
sentido de que não esteja circunscrita a um determinado momento histórico)? Sendo assim,
o ponto de partida é a pergunta pelo que se acha na origem da filosofia e não no seu
nascimento histórico.
O problema não deve ser confundido ou reduzido à perspectiva histórica da
origem da Filosofia. Segundo Gerd Bornheim, a análise histórica possui uma “radical
insuficiência” na abordagem da atitude originante do filosofar. O fato forçoso de haver a
Filosofia surgido em um determinado momento da cultura ocidental (Grécia séc. VII e séc.
VI), não é suficiente para considerar a explicação desse fato como um problema coincidente
com o da atitude inicial do filosofar. Isso significa que a origem da filosofia não se confunde
com o começo, a sua origem deve ser buscada nos motivos que levam o homem a filosofar.
Autores como Jaspers e Bornheim colocam o problema sob uma análise
antropológico-existencial, radicada no próprio comportamento daquele ser que faz e é
responsável pela Filosofia: o filósofo. Contudo, alerta Bornheim, existe um obstáculo: poucos
filósofos ocuparam-se do tema ou deixaram transparecer ao menos aspectos de sua biografia
espiritual. O que normalmente se observa é que a obra filosófica apresenta-se já pronta,
deixando completamente de lado aquilo que se poderia chamar a pré-história de um
determinado sistema filosófico. É justamente nesta pré-história que podemos encontrar a
atitude originante do filosofar, o que levou uma pessoa a lançar sua vida na aventura árdua
de fazer Filosofia. Pois o filosofar leva o filósofo não só a buscar a autenticidade de uma
filosofia, mas também de uma vida filosófica, o que o torna muitas vezes “um estranho no
ninho”.
Os caminhos para o despertar da reflexão filosófica são vários: admiração,
dúvida, insatisfação moral, curiosidade, situações existenciais limites, inquietação, angústia,
medo, coragem. Aqui apresentaremos as reflexões feitas por Karl Jaspers e retomadas por
Gerd Bornheim no seu livro “Introdução ao Filosofar”. Analisando o problema da atitude
originante do filosofar, o filósofo alemão Karl Jaspers destaca três atitudes fundantes da
Filosofia: a admiração, a dúvida e a insatisfação moral.

* Professor, graduado em Filosofia e Teologia, especialista em Comunicação e mestre em Educação.


As atitudes originantes do filosofar – Alberes de Siqueira Cavalcanti 2

A ADMIRAÇÃO

A primeira atitude Jaspers busca na Grécia clássica. Platão e Aristóteles


pretendiam ver na admiração (Thaumázein), no espanto (Páthos) o impulso inicial de todo o
filosofar. No comportamento admirativo o homem toma consciência de sua própria
ignorância; tal consciência leva-o a interrogar-se, até atingir a suspensão da ignorância, isto é,
o conhecimento.
Platão expressa o espanto que impulsiona os filósofos à reflexão:
Teeteto – E, pelos deuses, Sócrates, meu espanto é inimaginável ao indagar-me o
que isso significa; e, às vezes, ao contemplar essas coisas, verdadeiramente sinto
vertigem.
Sócrates – Teodoro, meu caro, parece que não julgou mal tua natureza. É
absolutamente de um filósofo esse sentimento: espantar-se. A filosofia não tem
outra origem... (PLATÃO, Teeteto)

Aristóteles reconhece na admiração a atitude originante do filosofar:

Que a filosofia não é uma ciência prática mais teorética, mostra-se pela história dos
mais antigos filósofos. Com efeito, outrora, como hoje, foi, e é, pela admiração (tó
thaumázein) que os homens chegaram, e chegam, ao filosofar (...) Aperceber-se de
uma dificuldade e espantar-se é reconhecer sua própria ignorância e, por isso, amar
os mitos (philómythos) é, de certa maneira, mostrar-se filósofo (philósophos), pois
o mito está repleto do espantoso. Foi para escapar à ignorância que os primeiros
filósofos entregavam-se à filosofia, buscavam a ciência para conhecer e não para
usá-la. (ARISTÓTELES, Metafísica)

Mas o que significa mesmo admirar-se ou espantar-se do ponto de vista


filosófico? Vejamos alguns comentários sobre a admiração:

Platão e Aristóteles indicam com precisão a experiência que, segundo eles, dá


origem ao pensar filosófico. É aquilo que os gregos chamam “thauma” (espanto,
admiração, perplexidade). [...] A filosofia, pois, começa quando algo desperta
nossa admiração, espanta-nos, capta nossa atenção (que é isso, por que é assim?
Como é possível que seja assim?), interroga-nos insistentemente, exige uma
explicação. (IGLÉSIAS, 1997, p. 13-14)

Admirar, em grego “thaumázein”, significa ver e, no ato de ver, sentir o


estranhamento do que aparece. Neste caso, o que aparece é sempre admirável e
tem força de produzir em nós uma tonalidade ou disposição afetiva a que
chamamos de espanto ou admiração. (BUZZI, 1998, p. 166)

Tò thaumázein é o espanto feito admiração. Admirar é mirar, olhar para,


contemplar. Contemplação, em grego, se diz theoría, do verbo theoreó, que
significa observar, examinar, contemplar e cujo correspondente, em latim, é o
verbo specio, de onde vem a palavra especulação. A filosofia, espanto admirativo,
é contemplação, conhecimento ou saber especulativo. Por este motivo, na
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primeira afirmação da Metafísica, Aristóteles prossegue dizendo que a melhor


prova de que, por natureza, desejamos conhecer está no prazer que sentimos
em ver as coisas, “mesmo fora de qualquer utilidade” e “mesmo quando não nos
propomos nenhuma ação”. O espanto admirativo desperta nosso desejo de
conhecer e é para nós causa de prazer. A filosofia é desejo de conhecer e prazer
no conhecimento. “Conhecer e saber para conhecer e saber”, a filosofia é um
fim em si mesma. Ora, ser livre, diz Aristóteles, é ter o poder de dar a si mesmo
seu próprio fim e ser para si mesmo seu próprio fim. Por isso a filosofia é o
único de todos os saberes que é verdadeiramente livre, pois “somente ela é seu
próprio fim”. (CHAUÍ, 1994, p. 231)

Características da admiração
Analisando a atitude originante do filosofar, Bornheim dará prioridade à
admiração como o primeiro surto do espírito humano. Ele parte da análise do que denomina
admiração ingênua, passando pelo comportamento dogmático e a experiência negativa, para
de forma dialética chegar à conversão filosófica, onde a admiração ingênua transforma-se em
admiração crítica, própria do espírito filosófico.
Bornheim apresenta três características fundamentais da admiração ingênua:
sentido de abertura, consciência e significação positiva.
Abertura - Na admiração ingênua brota o primeiro gesto de abertura do
homem para uma realidade que o transcende. Na admiração, verifica-se um simpatizar, um
sentir unido ao real, e esta disponibilidade apreende o real como uma presença insofismável,
porque, longe de impor-lhe o que quer que seja, o deixa ser em toda a sua dimensão, como
plenitude de presença. Esta presença não pode, porém, ser compreendida como uma
espécie de fusão entre o “eu” admirante e a realidade admirada. Quem admira não se
dissolve na realidade que admirada, nem esta se desfaz naquele. Ao contrário, o que
caracteriza a admiração é o reconhecimento do outro como outro.
Consciência - Esta característica é um pressuposto para o sentido de
abertura, uma vez que o homem só pode abrir-se ao outro como outro, se possuir
consciência de que ele e o mundo não são um só. Pascal já afirmava que “os animais não se
admiram”. O animal vive de tal modo imbricado em seu meio ambiente, que todo o seu
comportamento se determina por um imanetismo funcional. Não existe transcendência no
mundo animal, por não ter consciência. O animal apenas age; o homem age e sabe que age
(homo sapins sapins). Esta consciência natural (ingênua), espontaneamente voltada para fora
de si, apresenta-se com duas características: a distância e a experiência da heterogeneidade.

a) A distância - o homem sente-se ou sabe-se separado daquilo que o cerca.


Por um lado, a consciência está toda tendida para fora de si, orientada
para as coisas, para o mundo, habitando-o e sentindo-se em casa nele
pactuando. Mas por outro lado, este pactuar jamais implica em um
confundir-se com a realidade. A consciência é de tal natureza, que em seu
ato não permite a fusão com o mundo, ela permanece sempre consciência.
b) A experiência da heterogeneidade – a experiência do radicalmente outro,
do diferente a si e em si mesmo. A consciência torna o mundo objeto,
pois o reconhecimento da heterogeneidade é precisamente o que faz
afirmar o mundo como objeto contraposto a um sujeito.

A consciência revela-se, assim, como pressuposto fundamental, fundante, de


todo ato admirativo. Realmente, a admiração supõe distância, ruptura de toda imanência e
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entrega ao transcendente. Já a palavra o diz bem: ad-miratio. Eu só admiro na medida em que


meu comportamento num processo de distanciação diante do objeto admirado, em que esta
realidade se apresenta, portanto, como objeto. Por isto, compreende-se que não possa
verificar o fenômeno da admiração onde não existe vida consciente.
Significação Positiva – a admiração refere-se, exclusivamente, ao que possui
uma significação positiva, afirmativa. Isto distingue a admiração do pasmo e da surpresa.
Tanto o pasmo quanto a surpresa processam-se indiferentemente em relação a um
significado afirmativo ou negativo. Por exemplo: um gesto magnânimo ou um assassinato
podem provocar pasmo ou surpresa. Se um assassinato pode suscitar admiração, ela se
refere, por exemplo, à perícia com que foi executado, mas nunca aos aspectos danosos e
imorais, negativos, do assassinato.

A DÚVIDA

A segunda atitude Jaspers a encontra na dúvida, podendo apontar René


Descartes como sendo o seu representante clássico. Neste comportamento, a verdade é
atingida através da supressão provisória de todo o conhecimento ou de certas modalidades
de conhecimento, que passam a ser consideradas como meramente opinativas. A dúvida
pode ser cética, como no filósofo grego Górgias, ou metódica, como em Descastes e
Husserl.
A dúvida se processa com uma intensidade variável, atingindo o seu máximo de
possibilidade no ceticismo. Górgias, que pode ser tomado como exemplo de
exacerbação do processo da dúvida, reduz, como se sabe, a sua doutrina a três
proposições:
a) nada é;
b) se alguma coisa é, é incognoscível para o homem;
c) mesmo na hipótese de que alguma coisa seja cognoscível, é incomunicável aos
outros.
Neste exemplo extremo de dúvida, a negatividade atinge o seu absoluto, incidindo
em niilismo. (BORNHEIM, 1998, p. 83-84)

A dúvida cética nega, portanto, a própria possibilidade do conhecimento. Nega


ao homem a capacidade de conhecer a realidade ou de transmitir alguma forma de
conhecimento.
Existe, contudo, uma outra forma de dúvida que não leva ao niilismo. Essa dúvida,
denominada metódica, aguça o espírito crítico próprio da vida filosófica. O exemplo clássico
dentro da filosofia é a dúvida cartesiana. Na sua obra “Discurso do Método”, Descartes
afirma:

Fui nutrido nas letras desde a infância, e por me haver persuadido de que, por meios
delas, se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo que é útil à vida, sentia
extraordinário desejo de aprendê-las. Mas, logo que terminei todo esse curso de estudos,
ao cabo do qual se costuma ser recebido na classe dos doutos, mudei inteiramente de
opinião. Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não haver
obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais
minha ignorância. (DESCARTES, 1999, p.37)

Como podemos interpretar a experiência descrita por Descarte, vejamos um


comentário a esse respeito:


Também no livro “Meditações”, Primeira Meditação, Descartes retoma essa experiência.
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Podemos compreender o seu processo da seguinte maneira: suponhamos um


homem que só possua conhecimentos vulgares ou imperfeitos, isto é,
conhecimentos adquiridos através da experiência comum, dos sentidos, da
conversação, dos livros, da escola. Um homem, portanto, que vive em um
mundo fundamentalmente dogmático, desde sempre constituído. Que devemos
fazer, pergunta Descartes, para instruí-lo? No caso, a tarefa consiste em instruí-
lo num sentido radical, desde os fundamentos, dentro de uma dimensão,
portanto, metafísica. O que Descartes se propõe é acordar o homem daquele
esquecimento fundamental, da indiferença ontológica própria da concepção
ingênua da realidade, fazendo-o passar de uma postura dogmática para um
perguntar crítico. (BORNHEIM, 1998, p. 84)

No seu percurso em busca da verdade, Descartes elaborou quatro regras


fundamentais para orientar o espírito:
1. Só aceitar idéias claras e definitivas;
2. Dividir cada problema em tantas partes quantas forem necessárias para a sua solução;
3. Ordenar os pensamentos do simples ao complexo;
4. Verificar exaustivamente se há algum lapso.

Portanto, a dúvida cartesiana não é niilista, não leva ao nada, ao vazio. Ela não
nega ao ser humano a capacidade de conhecer o real. A dúvida cartesiana é metódica, ela é
um método encontrado e proposto por Descartes para que a razão possa alcançar o
verdadeiro conhecimento, sem enganos, incertezas ou dogmas. Por isso, faz-se necessário
desfazer-se de todas as certezas, colocar todo o conhecimento adquirido sob a análise da
dúvida metódica. Assim escreve Descartes:

Agora, portanto, que meu espírito se encontra livre de todas as precauções, e que
obtive um descanso garantido por uma tranqüila solidão, irei me dedicar com a
máxima seriedade e plena liberdade a demolir em geral todas as minhas antigas
opiniões. Mas não haverá necessidade, a fim de conseguir esse intento, de
demonstrar que todas elas são falsas, o que talvez eu nunca jamais pudesse realizar;
porém, contanto que a razão já me convence de que não devo com menor zelo
evitar de dar crédito às coisas que não são totalmente seguras e incontestáveis, do
que àquelas que nos parecem claramente falsas, o menor indício de dúvida que eu
nelas encontrar será suficiente para impelir-me a repelir todas”. (DESCARTES,
1999, p.249)

Por meio da dúvida metódica, Descartes alcança uma verdade que para ele é a
primeira e fundamental verdade, um verdade indubitável e que se constituirá na descoberta
da subjetividade, do homem enquanto um ser pensante e referência da realidade, base do
pensamento moderno. O cogito, ergo sum (penso, logo existo) é essa verdade fundamental e
indubitável, base para qualquer conhecimento verdadeiro.
Para Bornheim, a dúvida é a atitude filosófica que nos tira do dogmatismo e de
uma consciência ingênua do mundo, fazendo-nos atingir a consciência crítica própria do
pensar filosófico.
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A INSATISFAÇÃO MORAL

A terceira atitude implica no sentimento de insatisfação moral. Se em seu


comportamento usual encontramos o homem absorvido no mundo que o cerca, a filosofia
se impõe como tarefa a partir do momento em que esse homem imerso no cotidiano cai em
si e pergunta pelo sentido de sua própria existência. O mundo exterior é abandonado em
conseqüência de um sentido de insatisfação, levando o homem a tomar consciência de sua
própria miséria, da sua finitude e corruptibilidade.
O filósofo estóico Epiteto, por exemplo, afirmava que “o princípio da filosofia,
para aqueles que se dedicam a esta ciência como deve ser [...], é a consciência de sua própria
fraqueza e de sua impotência nas coisas necessárias”.
O ser humano é um ser-no-mundo, um ser situado e que sente necessidade de
significação e sentido para sua própria vida. Contudo, a vida por si mesma, por si só, não nos
oferece gratuitamente este sentido, está significação para a existência humana. Ao contrário,
as vezes a vida apresenta-se desconstituida de qualquer sentido para a existência humana.
Daí decorre a busca angustiante de si mesmo, o sentimento de estar perdido no mundo, a
experiência da finitude, as chamadas “situações limites” – o sofrimento, a dor, a angústia, o
desespero e a mais desorientadora das experiências: a morte. Essa realidade coloca o
homem no âmago da reflexão filosófica, traz à tona os questionamentos sobre a existência
humana.
Vemos, por exemplo, Sócrates como um ícone para a filosofia, pois traduziu seu
pensamento na própria vida. Quando levado à Assembléia de Atenas para ser julgado e
posteriormente condenado à morte, Sócrates reflete sobre o próprio sentido da sua vida e
busca a compreensão para a morte:

Um homem de valor não deve calcular suas chances de vida e de morte, mas ao
agir, deve considerar unicamente se o que faz é justo ou não, e se sua conduta é a
de um homem de coragem ou de um covarde. (...) Enquanto eu tiver um sopro de
vida, enquanto for capaz, podeis estar certos, não deixarei de filosofar. (PLATÃO,
Apologia de Sócrates)

No final da “Apologia”, avizinhando-se o momento em que beberia a cicuta,


Sócrates reflete sobre a morte:

Morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma
sensação de coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, trata-se duma
mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não
há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem
sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte! (...) Se, do outro lado, a morte é
como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão
todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes? (PLATÃO,
Apologia de Sócrates)

Outro filósofo, Santo Agostinho, que viveu durante parte da sua vida entregue
aos prazeres do mundo, convertido ao cristianismo meditará sobre a infinita grandeza de
Deus em contraposição com a pequenez do ser humano, tão cheio de contradições. No
Livro X das suas famosas “Confissões”, o bispo de Hipona constata a “miséria da vida
humana”:

As minhas alegrias, que deveriam ser choradas, lutam com as tristezas que me
deviam incutir júbilo. Ignoro de que lado está a vitória. As tristezas do meu mal
pelejam com os contentamentos bons, e não sei em que parte está o triunfo.
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“Ai de mim! Ó Senhor, tende compaixão de mim!” Olhai eu não escondo as minhas
feridas. Vós sois o médico, e eu o enfermo; sois misericordioso e eu miserável.
Não é a vida do homem, sobre a terra, uma continua tentação”? (AGOSTINHO,
1999, p. 285-286)

Nessa luta espiritual e interior que Agostinho trava consigo mesmo emergem o
problema de Deus e o problema do mal, aflorando a noção do livre-arbítrio nas reflexões
agostianianas.
Mas de novo refletia: Quem me criou? Não foi o meu Deus, que é bom, e é
também a mesma bondade? De onde me veio, então, o querer eu o mal e não o
bem? Seria para que houvesse motivo de eu justamente ser castigado? Quem
colocou em mim e quem semeou em mim este viveiro de amarguras, sendo eu
inteira criação do meu Deus”. (AGOSTINHO, 1999, p. 175)

Refletindo sobre a origem do mal, Agostinho perceberá que tal realidade não
pode ter Deus como autor, mas o próprio homem. À pergunta “É Deus o autor do mal?”,
Agostinho responde: “[...] Se acreditas que Deus é bom, Deus não pode praticar o mal [...]
Se Deus não pode praticar o mal, outro deve ser o autor, no caso o homem. Deus é o autor
do livre-arbítrio, que é um bem”. (AGOSTINHO, 1999, p. 175)
Mas nenhuma corrente filosófica refletiu tanto e tão profundamente sobre a
realidade humana em sua finitude do que o existencialismo. Filósofos como Kierkeggard,
Sartre, Heidegger dão testemunho de uma filosofia profunda centrada na existência humana.
Nestes filósofos a insatisfação moral toma nova feição, sendo expressa em conceitos como:
angústia, desespero, náusea, ser-para-a-morte.
Vejamos algumas passagens desses filósofos:

Num conto de Grimm, fala-se de um jovem que saiu à aventura para aprender o
que era a angústia. Deixemos o aventureiro seguir seu caminho, sem nos
preocupar se encontrou ou não algo que o tivesse angustiado. Por outro lado,
quisera advertir que aprender a angustiar-se é um risco que todos devem correr;
quem não aprende sucumbe por nunca sentir angústia ou por nela afogar-se; quem,
pelo contrário, aprendeu a angustiar-se na devida forma, aprendeu o que mais
elevado se deve aprender. (KIERKEGGARD apud BUZZI, 1998, p. 169)

Com isso o cristão Kierkeggard quer dizer que a angústia nos educa. Educa-nos a
sermos os cavaleiros da fé, a não nos apegarmos às ilusões que a vida nos apresenta. A
angústia revela-nos a pura possibilidade da nossa existência, nos recorda o nada que somos.
Nada está dito sobre a nossa existência, não temos uma essência predeterminada, somos
pura possibilidade e na possibilidade tudo nos é possível, daí a nossa angústia, pois
gostaríamos de ter certezas sobre a nossa vida, saber do nosso futuro, no entanto, somos
somente possibilidade-de-sim, de dar certo, ou possibilidade-de-não, de nos enganarmos, de
jogarmos nossa vida em algo que não nos realizará. Debaixo de toda possibilidade humana se
esconde sempre a ameaça do insucesso, do fracasso e da morte. No possível, tudo é
possível não há certezas absolutas.

Na possibilidade tudo é igualmente possível e quem foi educado pela possibilidade


entende o espantoso não menos que agradável. Quando alguém passou pela escola
da possibilidade, com mais segurança do que uma criança conhece o abc, ele sabe
que não pode exigir absolutamente nada da vida e que o espantoso e a perdição
moram com todos os homens (KIERKEGGARD apud BUZZI, 1998, p. 169)

Jean-Paul Sartre também utilizou o conceito de angústia para transmitir o quanto


o homem encontra-se abandonado a si mesmo. Em sua obra o "Existencialismo é um
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humanismo", ele afirma que não existe nenhuma forma de determinismo na realidade
humana, o homem é radical e essencialmente livre. "O homem está condenado a ser livre".
Radicalmente livre, o homem vê-se no dilema de não saber o motivo de estar vivo, de
existir, ele não escolheu viver e, no entanto, ele está ai, é um ser-no-mundo e deve viver.
Ou seja, deve escolher-se enquanto um ser livre e, portanto, totalmente responsável por sua
escolha. Daí a angústia. A angústia advém da liberdade que somos. Somos pura possibilidade,
e eis a nossa angústia.

Com efeito, se a existência precede a essência, nada poderá jamais ser explicado
por referência a uma natureza dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o
homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não
encontramos, já prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta.
Assim, não teremos nem atrás de nós, nem na nossa frente, no reino luminoso dos
valores, nenhuma desculpa. Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar
dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou
a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é
responsável por tudo o que faz. O existencialista não acredita no poder da paixão.
Ele jamais admitirá que uma bela paixão é uma corrente devastadora que conduz o
homem, fatalmente, a determinados atos, e que, conseqüentemente, é uma
desculpa. O existencialista não pensará nunca, também, que o homem pode
conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente no mundo, pois considera
que é o próprio homem quem decifra o sinal como bem entende. Pensa, portanto,
que o homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a inventar o homem a cada
instante. (SARTRE, 1999, p. 9)

Mas foi no seu romance "A Náusea", que Sartre magistralmente trabalhou a
situação de absurdo da vida humana. Antoine Roquetin, principal personagem do romance,
descreve a experiência da náusea:

Gostaria tanto de me abandonar, me esquecer, dormir. Mas não posso, eu sufoco:


a existência me penetra de todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, pela boca... E de
repente, num instante, o véu se rasga, eu compreendi, eu vi. Não posso dizer que
me sinta aliviado ou contente; ao contrário, isto me esmaga. Mas minha finalidade
foi atingida: eu sei o que queria saber; tudo o que me aconteceu do mês de janeiro,
eu compreendi. A Náusea não me abandonou e não creio que me abandone tão
cedo; mas já não a sofro, não é mais uma doença ou uma febre passageira: eu sou a
Náusea. (SARTRE, apud BORNHEIM, 1998, p.88)

Numa outra passagem lemos:

Éramos um monte de existentes constrangidos, embaraçados de nós mesmos, sem


a mínima razão de estarmos aí, nem uns nem outros, cada existente, confuso,
vagante inquieto, sentia-se demais em relação aos outros. Demais: esta é a única
relação que posso estabelecer entre estas árvores, estas grades, estes seixos. [...] E
eu - frouxo, enfraquecido, obsceno, digerindo, agitando mornos pensamentos - eu
também era demais. [...] E sem nada formular com clareza, compreendi que tinha
encontrado a chave da Existência, a chave de minhas Náuseas, de minha própria
vida. Em verdade, tudo o que passei a aprender se reduz a esta absurdidade
fundamental. [...] Mas eu, há pouco, fiz experiência do absoluto; do absoluto ou do
absurdo. (SARTRE, apud BORNHEIM, 1998, p.89)

A vida, a existência humana, o mundo, portanto, tudo, parece desprovido de


sentido, de razão de ser. A existência humana é um completo absurdo. Essa visão de mundo
será expressa de forma radical por Sartre quando afirma que "o homem é uma paixão inútil".
Tanta luta, tanto esforço, tanto trabalho, tanto sofrimento. E, ao final, somos silenciados pela
morte.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essas três atitudes originantes do filosofar, em maior ou menor grau, são


encontradas em todos os filósofos, mesmo com a predominância de uma sobre as demais.
Gerd Bornheim diz que

[...] na admiração encontramos um comportamento de abertura o mais espontâneo


e original possível do homem diante da realidade. Sem a dúvida, não chega a
desenvolver o indispensável espírito crítico, que deve acompanhar toda tarefa de
ordem filosófica. E pela inquietação moral fundamenta-se o filosofar em seus
aspectos éticos. (BORNHEIM, 1998)

Percebemos que a filosofia não está dissociada da vida, como bem observa
Arcâgelo Buzzi:

O ato de filosofar versa sobre o ato de viver, a Filosofia e a História. Por outro
lado, isso não significa que a história, que o puro viver, seja anterior à filosofia. Não
anterioridade da filosofia sobre a história nem da história sobre a filosofia. O ato de
viver já está posto na percepção do ser, a vida é filosofia. Ao filósofo só resta
extrair essa filosofia, dizer o pensamento pressuposto de um tal viver, indicar a
partir de qual horizonte, de qual dimensão, um tal viver se constitui. (BUZZI, 1998)

Portanto, a postura mais adequada para se avaliar a Filosofia não é aquela do


observador que se põe de fora, como um espectador a olhar de forma passiva o desenrolar
de uma trama, mas a postura do autor ou do ator que ativamente participam e são sujeitos
da trama. Somente filosofando é que temos a verdadeira dimensão da grandeza e
profundidade da Filosofia. Nesse sentido é que, penso eu, podemos entender o que diz Kant
ao afirmar que não se ensina filosofia e sim a filosofar. E para filosofar é necessário que
tenhamos as atitudes da admiração, da dúvida, da insatisfação moral. Ou em outros termos,
não nos acomodemos instalados no mundo, como se tudo fosse banal e normal, abdicando
da nossa capacidade humana de refletir sobre o que vivemos. Recordando Sócrates: “uma
vida não refletida, não vale a pena ser vivida”, pois não somos nem pedras, nem vegetais,
nem bichos brutos e muito menos objetos inanimados.

REFERÊNCIAS

BORNHEIM, Gerd A. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases


existenciais. 9. ed. São Paulo: Globo, 1998.
BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar: o ser, o conhecimento, a linguagem, 25. ed.
Petrópolis: Vozes, 1998.
CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. “Os
Pensadores”).
______________ . Meditações. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. “Os Pensadores”).
PLATÃO. Apologia de Sócrates, São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. “Os Pensadores”).
REZENDE (org.), Antonio. Curso de filosofia. 7. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
SANTO AGOSTINHO. As confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. “Os
Pensadores”).
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural,
1987. (Col. “Os Pensadores”).

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