INTRODUÇÃO
Uma das questões que instigam o pensamento filosófico é a procura pela sua
própria origem; não no sentido histórico, como veremos, mas na dimensão antropológica e
existencial. As anotações aqui expostas têm o propósito de apresentar o problema sobre a
atitude inicial do filosofar, ou seja, aquele específico comportamento que leva o homem a
ocupar-se de Filosofia, a sentir-se até mesmo um condenado a essa tarefa (Socrátes). A
questão pode ser posta ou desdobrada em perguntas: o que pode levar o homem a ocupar-
se de Filosofia? Existe uma atitude originante do filosofar que seja universal e atemporal (no
sentido de que não esteja circunscrita a um determinado momento histórico)? Sendo assim,
o ponto de partida é a pergunta pelo que se acha na origem da filosofia e não no seu
nascimento histórico.
O problema não deve ser confundido ou reduzido à perspectiva histórica da
origem da Filosofia. Segundo Gerd Bornheim, a análise histórica possui uma “radical
insuficiência” na abordagem da atitude originante do filosofar. O fato forçoso de haver a
Filosofia surgido em um determinado momento da cultura ocidental (Grécia séc. VII e séc.
VI), não é suficiente para considerar a explicação desse fato como um problema coincidente
com o da atitude inicial do filosofar. Isso significa que a origem da filosofia não se confunde
com o começo, a sua origem deve ser buscada nos motivos que levam o homem a filosofar.
Autores como Jaspers e Bornheim colocam o problema sob uma análise
antropológico-existencial, radicada no próprio comportamento daquele ser que faz e é
responsável pela Filosofia: o filósofo. Contudo, alerta Bornheim, existe um obstáculo: poucos
filósofos ocuparam-se do tema ou deixaram transparecer ao menos aspectos de sua biografia
espiritual. O que normalmente se observa é que a obra filosófica apresenta-se já pronta,
deixando completamente de lado aquilo que se poderia chamar a pré-história de um
determinado sistema filosófico. É justamente nesta pré-história que podemos encontrar a
atitude originante do filosofar, o que levou uma pessoa a lançar sua vida na aventura árdua
de fazer Filosofia. Pois o filosofar leva o filósofo não só a buscar a autenticidade de uma
filosofia, mas também de uma vida filosófica, o que o torna muitas vezes “um estranho no
ninho”.
Os caminhos para o despertar da reflexão filosófica são vários: admiração,
dúvida, insatisfação moral, curiosidade, situações existenciais limites, inquietação, angústia,
medo, coragem. Aqui apresentaremos as reflexões feitas por Karl Jaspers e retomadas por
Gerd Bornheim no seu livro “Introdução ao Filosofar”. Analisando o problema da atitude
originante do filosofar, o filósofo alemão Karl Jaspers destaca três atitudes fundantes da
Filosofia: a admiração, a dúvida e a insatisfação moral.
A ADMIRAÇÃO
Que a filosofia não é uma ciência prática mais teorética, mostra-se pela história dos
mais antigos filósofos. Com efeito, outrora, como hoje, foi, e é, pela admiração (tó
thaumázein) que os homens chegaram, e chegam, ao filosofar (...) Aperceber-se de
uma dificuldade e espantar-se é reconhecer sua própria ignorância e, por isso, amar
os mitos (philómythos) é, de certa maneira, mostrar-se filósofo (philósophos), pois
o mito está repleto do espantoso. Foi para escapar à ignorância que os primeiros
filósofos entregavam-se à filosofia, buscavam a ciência para conhecer e não para
usá-la. (ARISTÓTELES, Metafísica)
Características da admiração
Analisando a atitude originante do filosofar, Bornheim dará prioridade à
admiração como o primeiro surto do espírito humano. Ele parte da análise do que denomina
admiração ingênua, passando pelo comportamento dogmático e a experiência negativa, para
de forma dialética chegar à conversão filosófica, onde a admiração ingênua transforma-se em
admiração crítica, própria do espírito filosófico.
Bornheim apresenta três características fundamentais da admiração ingênua:
sentido de abertura, consciência e significação positiva.
Abertura - Na admiração ingênua brota o primeiro gesto de abertura do
homem para uma realidade que o transcende. Na admiração, verifica-se um simpatizar, um
sentir unido ao real, e esta disponibilidade apreende o real como uma presença insofismável,
porque, longe de impor-lhe o que quer que seja, o deixa ser em toda a sua dimensão, como
plenitude de presença. Esta presença não pode, porém, ser compreendida como uma
espécie de fusão entre o “eu” admirante e a realidade admirada. Quem admira não se
dissolve na realidade que admirada, nem esta se desfaz naquele. Ao contrário, o que
caracteriza a admiração é o reconhecimento do outro como outro.
Consciência - Esta característica é um pressuposto para o sentido de
abertura, uma vez que o homem só pode abrir-se ao outro como outro, se possuir
consciência de que ele e o mundo não são um só. Pascal já afirmava que “os animais não se
admiram”. O animal vive de tal modo imbricado em seu meio ambiente, que todo o seu
comportamento se determina por um imanetismo funcional. Não existe transcendência no
mundo animal, por não ter consciência. O animal apenas age; o homem age e sabe que age
(homo sapins sapins). Esta consciência natural (ingênua), espontaneamente voltada para fora
de si, apresenta-se com duas características: a distância e a experiência da heterogeneidade.
A DÚVIDA
Fui nutrido nas letras desde a infância, e por me haver persuadido de que, por meios
delas, se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo que é útil à vida, sentia
extraordinário desejo de aprendê-las. Mas, logo que terminei todo esse curso de estudos,
ao cabo do qual se costuma ser recebido na classe dos doutos, mudei inteiramente de
opinião. Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não haver
obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais
minha ignorância. (DESCARTES, 1999, p.37)
Também no livro “Meditações”, Primeira Meditação, Descartes retoma essa experiência.
As atitudes originantes do filosofar – Alberes de Siqueira Cavalcanti 5
Portanto, a dúvida cartesiana não é niilista, não leva ao nada, ao vazio. Ela não
nega ao ser humano a capacidade de conhecer o real. A dúvida cartesiana é metódica, ela é
um método encontrado e proposto por Descartes para que a razão possa alcançar o
verdadeiro conhecimento, sem enganos, incertezas ou dogmas. Por isso, faz-se necessário
desfazer-se de todas as certezas, colocar todo o conhecimento adquirido sob a análise da
dúvida metódica. Assim escreve Descartes:
Agora, portanto, que meu espírito se encontra livre de todas as precauções, e que
obtive um descanso garantido por uma tranqüila solidão, irei me dedicar com a
máxima seriedade e plena liberdade a demolir em geral todas as minhas antigas
opiniões. Mas não haverá necessidade, a fim de conseguir esse intento, de
demonstrar que todas elas são falsas, o que talvez eu nunca jamais pudesse realizar;
porém, contanto que a razão já me convence de que não devo com menor zelo
evitar de dar crédito às coisas que não são totalmente seguras e incontestáveis, do
que àquelas que nos parecem claramente falsas, o menor indício de dúvida que eu
nelas encontrar será suficiente para impelir-me a repelir todas”. (DESCARTES,
1999, p.249)
Por meio da dúvida metódica, Descartes alcança uma verdade que para ele é a
primeira e fundamental verdade, um verdade indubitável e que se constituirá na descoberta
da subjetividade, do homem enquanto um ser pensante e referência da realidade, base do
pensamento moderno. O cogito, ergo sum (penso, logo existo) é essa verdade fundamental e
indubitável, base para qualquer conhecimento verdadeiro.
Para Bornheim, a dúvida é a atitude filosófica que nos tira do dogmatismo e de
uma consciência ingênua do mundo, fazendo-nos atingir a consciência crítica própria do
pensar filosófico.
As atitudes originantes do filosofar – Alberes de Siqueira Cavalcanti 6
A INSATISFAÇÃO MORAL
Um homem de valor não deve calcular suas chances de vida e de morte, mas ao
agir, deve considerar unicamente se o que faz é justo ou não, e se sua conduta é a
de um homem de coragem ou de um covarde. (...) Enquanto eu tiver um sopro de
vida, enquanto for capaz, podeis estar certos, não deixarei de filosofar. (PLATÃO,
Apologia de Sócrates)
Morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma
sensação de coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, trata-se duma
mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não
há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem
sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte! (...) Se, do outro lado, a morte é
como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão
todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes? (PLATÃO,
Apologia de Sócrates)
Outro filósofo, Santo Agostinho, que viveu durante parte da sua vida entregue
aos prazeres do mundo, convertido ao cristianismo meditará sobre a infinita grandeza de
Deus em contraposição com a pequenez do ser humano, tão cheio de contradições. No
Livro X das suas famosas “Confissões”, o bispo de Hipona constata a “miséria da vida
humana”:
As minhas alegrias, que deveriam ser choradas, lutam com as tristezas que me
deviam incutir júbilo. Ignoro de que lado está a vitória. As tristezas do meu mal
pelejam com os contentamentos bons, e não sei em que parte está o triunfo.
As atitudes originantes do filosofar – Alberes de Siqueira Cavalcanti 7
“Ai de mim! Ó Senhor, tende compaixão de mim!” Olhai eu não escondo as minhas
feridas. Vós sois o médico, e eu o enfermo; sois misericordioso e eu miserável.
Não é a vida do homem, sobre a terra, uma continua tentação”? (AGOSTINHO,
1999, p. 285-286)
Nessa luta espiritual e interior que Agostinho trava consigo mesmo emergem o
problema de Deus e o problema do mal, aflorando a noção do livre-arbítrio nas reflexões
agostianianas.
Mas de novo refletia: Quem me criou? Não foi o meu Deus, que é bom, e é
também a mesma bondade? De onde me veio, então, o querer eu o mal e não o
bem? Seria para que houvesse motivo de eu justamente ser castigado? Quem
colocou em mim e quem semeou em mim este viveiro de amarguras, sendo eu
inteira criação do meu Deus”. (AGOSTINHO, 1999, p. 175)
Refletindo sobre a origem do mal, Agostinho perceberá que tal realidade não
pode ter Deus como autor, mas o próprio homem. À pergunta “É Deus o autor do mal?”,
Agostinho responde: “[...] Se acreditas que Deus é bom, Deus não pode praticar o mal [...]
Se Deus não pode praticar o mal, outro deve ser o autor, no caso o homem. Deus é o autor
do livre-arbítrio, que é um bem”. (AGOSTINHO, 1999, p. 175)
Mas nenhuma corrente filosófica refletiu tanto e tão profundamente sobre a
realidade humana em sua finitude do que o existencialismo. Filósofos como Kierkeggard,
Sartre, Heidegger dão testemunho de uma filosofia profunda centrada na existência humana.
Nestes filósofos a insatisfação moral toma nova feição, sendo expressa em conceitos como:
angústia, desespero, náusea, ser-para-a-morte.
Vejamos algumas passagens desses filósofos:
Num conto de Grimm, fala-se de um jovem que saiu à aventura para aprender o
que era a angústia. Deixemos o aventureiro seguir seu caminho, sem nos
preocupar se encontrou ou não algo que o tivesse angustiado. Por outro lado,
quisera advertir que aprender a angustiar-se é um risco que todos devem correr;
quem não aprende sucumbe por nunca sentir angústia ou por nela afogar-se; quem,
pelo contrário, aprendeu a angustiar-se na devida forma, aprendeu o que mais
elevado se deve aprender. (KIERKEGGARD apud BUZZI, 1998, p. 169)
Com isso o cristão Kierkeggard quer dizer que a angústia nos educa. Educa-nos a
sermos os cavaleiros da fé, a não nos apegarmos às ilusões que a vida nos apresenta. A
angústia revela-nos a pura possibilidade da nossa existência, nos recorda o nada que somos.
Nada está dito sobre a nossa existência, não temos uma essência predeterminada, somos
pura possibilidade e na possibilidade tudo nos é possível, daí a nossa angústia, pois
gostaríamos de ter certezas sobre a nossa vida, saber do nosso futuro, no entanto, somos
somente possibilidade-de-sim, de dar certo, ou possibilidade-de-não, de nos enganarmos, de
jogarmos nossa vida em algo que não nos realizará. Debaixo de toda possibilidade humana se
esconde sempre a ameaça do insucesso, do fracasso e da morte. No possível, tudo é
possível não há certezas absolutas.
humanismo", ele afirma que não existe nenhuma forma de determinismo na realidade
humana, o homem é radical e essencialmente livre. "O homem está condenado a ser livre".
Radicalmente livre, o homem vê-se no dilema de não saber o motivo de estar vivo, de
existir, ele não escolheu viver e, no entanto, ele está ai, é um ser-no-mundo e deve viver.
Ou seja, deve escolher-se enquanto um ser livre e, portanto, totalmente responsável por sua
escolha. Daí a angústia. A angústia advém da liberdade que somos. Somos pura possibilidade,
e eis a nossa angústia.
Com efeito, se a existência precede a essência, nada poderá jamais ser explicado
por referência a uma natureza dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o
homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não
encontramos, já prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta.
Assim, não teremos nem atrás de nós, nem na nossa frente, no reino luminoso dos
valores, nenhuma desculpa. Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar
dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou
a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é
responsável por tudo o que faz. O existencialista não acredita no poder da paixão.
Ele jamais admitirá que uma bela paixão é uma corrente devastadora que conduz o
homem, fatalmente, a determinados atos, e que, conseqüentemente, é uma
desculpa. O existencialista não pensará nunca, também, que o homem pode
conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente no mundo, pois considera
que é o próprio homem quem decifra o sinal como bem entende. Pensa, portanto,
que o homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a inventar o homem a cada
instante. (SARTRE, 1999, p. 9)
Mas foi no seu romance "A Náusea", que Sartre magistralmente trabalhou a
situação de absurdo da vida humana. Antoine Roquetin, principal personagem do romance,
descreve a experiência da náusea:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos que a filosofia não está dissociada da vida, como bem observa
Arcâgelo Buzzi:
O ato de filosofar versa sobre o ato de viver, a Filosofia e a História. Por outro
lado, isso não significa que a história, que o puro viver, seja anterior à filosofia. Não
anterioridade da filosofia sobre a história nem da história sobre a filosofia. O ato de
viver já está posto na percepção do ser, a vida é filosofia. Ao filósofo só resta
extrair essa filosofia, dizer o pensamento pressuposto de um tal viver, indicar a
partir de qual horizonte, de qual dimensão, um tal viver se constitui. (BUZZI, 1998)
REFERÊNCIAS