Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Das inovações trazidas pelo jogo temos a possibilidade dos jogadores criarem seus
próprios personagens. A criação do personagem se dá através da combinação de uma
série de lançamentos de dados, para determinar estatísticas iniciais, e a escolha de
características que ajudam a definir esse personagem. Essas características são
apresentadas por conjuntos de habilidades e perícias separadas por classes, ou
profissões, e raças ou grupos étnicos raciais, essas características ajudam o jogador a
definir a origem, história e comportamento gerais do seu personagem. Essa mecânica
com dependência de características divididas por classes ficou conhecida como class
base system ou sistema baseado em classe, e é muito utilizada até hoje em vários
produtos do mercado.
Apesar de ter florescido entre jovens do ensino superior, nas duas décadas iniciais de
produção (70 e 80), pouco se criticava sobre as questões de representação social, raça
ou etnia, e o jogo ainda se encontrava relegado ao universo infantojuvenil, sem a
atenção de uma crítica acadêmica ou do seu reconhecimento como dispositivo
cultural, mas seu impacto sobre uma geração deu origem a uma nova indústria que
num período de quarenta e três anos (1974 á 2017) passou a atender crianças,
adolescentes, jovens, adultos e idosos numa escala global.
O jogo de RPG, seja ele digital ou analógico, possui uma ampla abrangência e tem uma
popularidade e alcance que supera os de muitos outros dispositivos culturais. No caso
do RPG de mesa ou analógico, entendemos aqui como dispositivo cultural o conjunto
de mecanismos que promovem experiências sensoriais e a capacidade para evocar e
transmitir sentimentos universais a partir de narrativas grupais, bem como sua
qualidade como documento de memória coletiva que na experiência do jogo torna-se
um espaço de significação e apreensão de sentido, e significado como apresentado na
teoria do círculo mágico de Huisinga (2007). Assim como outros jogos, os jogos de RPG
são instrumentos culturais de socialização cognitiva, que funcionam como extensão do
ser humano social, que dá novo significado e permite a construção de uma percepção
da realidade ao trabalhar sentidos, experiências, significados e promover
problematizações em função das histórias vividas na virtualidade narrativa, na
experiência virtual que o jogo proporciona.
Para apresentar uma pequena parcela do interesse pelos jogos de RPG e seu alcance
nacional no período, sobre o qual essa pesquisa se debruça a década de noventa, e
usando como documentação publicações em jornais e revistas, foi realizada uma busca
no acervo digital em três jornais e uma revista de grande circulação, O Globo, Jornal do
Brasil e O Estado de São Paulo e a revista Veja, nesses quatro periódicos encontramos
mais de trezentos e cinqüenta chamadas listadas na busca com, matérias, avisos de
eventos e entrevistas sobre os jogos de RPG (exemplos no anexo 2). De 1990 á 1999, são mais
de duas matérias por mês durante dez anos de publicação, apenas nesses periódicos
pesquisados, mostrando no mínimo a curiosidade e o interesse do tema pelos leitores
do jornal e os produtores de conteúdo.
Fazendo um breve retorno a primeira década do RPG no Brasil, no inicio dos anos
noventa, temos alguns nomes de produtos que se destacam pela iniciativa,
popularidade e alcancem como, GURPS Generic and Universal Roleplaying System,
primeiro RPG lançado em língua portuguesa no Brasil em 1991 criado pela Steve
Jackson Games e lançado aqui pela editora Devir de São Paulo, Tagmar RPG de
Fantasia Medieval, primeiro RPG nacional lançado em 1991 e publicado pela editora
GSA do Rio de Janeiro, O Desafio dos Bandeirantes, primeiro RPG a trabalhar com
temas nacionais lançado em 1992 também publicado pela GSA e o Advanced
Dungeons & Dragons segunda edição da editora estadunidense TSR, lançado no Brasil
em 1995 pela editora Abril Jovem, que fez uma tiragem numerosa para o mercado
nacional. Desse último, podemos extrair exemplos significativos dos temas
apresentados nesse trabalho, como a questão de dispositivo cultural e representação
social e racial, pois o AD&D foi um dos produtos responsáveis pelo avanço e fomento
mais significativo dos RPGs na década de noventa, no Brasil e no mundo.
Entre 1974 e 1997 Dungeons & Dragons já havia sido traduzido para mais de vinte e
seis idiomas, vendido mais de cinqüenta milhões de cópias para mais de cinqüenta
países, tinha uma participação de publico estimada em mais de vinte milhões de
jogadores pelo mundo, como apresentado no documentário Masters of Fantasy - TSR:
The Fantasy Factory executado pelo canal Syfy channel em 1997 e disponível no
youtube1. Aqui podemos ver e ouvir a equipe de criação e sua presidente, na época,
Lorraine Williams, falarem sobre o fenômeno do jogo e seu alcance a partir do ponto
de vista da empresa, que na época era uma companhia multimilionária.
Sendo herdeiro do primeiro RPG, Dungeons & Dragons, o Advanced Dungeons &
Dragons ou AD&D, como ficou mais conhecido, teve um forte impacto sobre o público
jogador brasileiro, trazendo cenários de aventura medieval fantástica gênero muito
popular a época de sua publicação e cujas revisões e atualizações mantiveram suas
linhas de produtos comerciais vivas até hoje. Sua estrutura de regras estava baseada
no sistema básico de classes inaugurado por seu antecessor, Dungeons & Dragons, e
apresentando a divisão de seres inteligentes que compunham os diversos cenários em
grupos raciais, aqui cabe a crítica proposta por esse artigo, mas que pode ser
espelhada, como uma problematização no uso do termo raça, nos jogos de RPG, o
problema se estende também a maneira como a produção gráfica do produto, exclui a
representação da mulher em sua construção, como veremos nos anexos na discussão
proposta.
De uma maneira geral os jogos de RPG utilizam o termo raça para fazer uma separação
e distinção entre os vários povos inteligentes que habitam seus cenários ficcionais,
sem muita preocupação com a utilização do termo, seu significado vai perdendo
importância ou se tornando banal na medida que os jogadores começam a entender as
divisões raciais e o juízo de valor que é feito para cada raça no contexto do universo
subcriado, o que reforça de forma negativa o senso comum ao estabelecer esse juízo
de valor entre as raças. Aqui existe a possibilidade de desconstrução desse reforço
negativo do senso comum, que permeia a utilização do termo, que já não é mais
utilizado como forma de distinção entre seres humanos e sim um remanescente do
pensamento etnocêntrico europeu, raiz do preconceito racial. Esse preconceito, como
conhecemos hoje, nasce com o determinismo imposto pela lógica liberal. Uelber
Barbosa Silva em seu artigo para o livro, Relações Étnicoraciais Olhares Plurais, vai
definir essa construção da percepção racial da seguinte forma:
Para uma compreensão mais própria do peso e importância do termo raça, o professor
da Universidade de São Paulo Kabengele Munanga nos fala da utilização de teorias
raciais, como objeto de manipulação política e ideológica. Em cada momento histórico
o termo raça não ocorre de forma aleatória, já que cada uma delas apresentava
intenções e objetivos bastante definidos, sendo necessário o máximo de atenção em
sua análise para perceber sua eficácia em retratar a realidade contemporânea.
Durante outro período de atrocidades inspiradas pelas idéias raciais, vimos o nazismo.
Quando Hitler e os nazistas assumiram o poder na Alemanha, estas convicções
tornaram-se a ideologia oficial do governo, e foram difundidas publicamente através
do rádio, filmes em salas de aulas e jornais. Os nazistas começaram a colocar sua
ideologia em prática com o apoio dos cientistas alemães que acreditavam que a raça
humana poderia ser aperfeiçoada através do impedimento da reprodução de
indivíduos por eles considerados “inferiores”. A partir de 1933, médicos alemães foram
autorizados a realizar esterilizações forçadas. Entre os alvos desse programa público
estavam os ciganos, uma minoria étnica com cerca de 30.000 indivíduos na Alemanha,
e também arianos deficientes, incluindo doentes mentais e pessoas com deficiência
visual e auditiva congênita. Cerca de 500 crianças afro-alemãs, filhos de mães alemãs e
soldados coloniais africanos dos exércitos Aliados que ocuparam a região da Renânia
após a Primeira Guerra Mundial, também foram vítimas do programa de esterilização.
Depois que Hitler assumiu o poder, professores nazistas começaram a aplicar os
princípios de sua “ciência racial” (totalmente sem bases científicas) nas salas de aula.
Eles mediam o tamanho do crânio, o comprimento do nariz, registravam a cor dos
olhos e cabelos de seus alunos para tentar determinar se eles pertenciam à verdadeira
“raça ariana” (Confino, 2016)3.
O problema central a ser discutido é como o termo raça, carregado desse "sentido
racial" deve ser trabalhado nos jogos de forma a não encontrar uma semelhança na
maneira como estabelecemos as relações raciais e as características raciais nos jogos
de interpretação. O jogo oferece um espaço de descoberta e mobilização de esferas de
conhecimento (Rodrigues 2004), ele permite uma série de conexões cognitivas entre
saberes e permite a discussão ou a percepção de problemas através de óticas
diferentes, num exercício virtual de se colocar no lugar do outro de construção de uma
empatia, tão necessária nos dias de hoje. Em seu livro, Teoria do Jogo, o professor de
UFRJ Jeferson José Moebus Retondar, citando Huizinga reforça:
O AD&D, foi um produto influente no período destacado nesse artigo, de 1990 á 1999.
O jogo foi popularizado no Brasil por uma produção em escala pela editora Abril
Jovem, e foi disponibilizado, além das livrarias, em bancas de jornais tornando seu
acesso ainda maior. O AD&D desde sua primeira edição criou um modelo de produto
que tornou-se um padrão para a linha editorial e um exemplo para outros produtos no
mercado. O jogo foi dividido em três livros, cada volume contemplava um aspecto do
jogo, essa divisão foi estabelecida entre, Players handbook no Brasil, Livro do Jogador,
que traz as regras e características dos personagens a serem criados pelos jogadores
(cada jogador de AD&D era encorajado, tanto no texto como na prática do hobbie a
adquirir e ler uma cópia desse volume). O Dungeon Master Guidem, no brasil lançado
com o título Livro do Mestre, dedicado ao narrador ou Mestre de Jogo, como era
conhecido o jogador responsável pela trama, enredo e tema das aventuras, ele
também é o jogador responsável por interpretava todos os personagens "não
jogadores" ou PDN (personagens do narrador) ou ainda NPCs em inglês (non player
characters) e o Monster Compendium, no Brasil Manual dos Monstros, que
apresentava as características dos monstros e seres fantásticos que desafiariam e se
relacionariam com os personagens dos jogadores. O próprio design gráfico do livro
que ressalto aqui é passível de uma observação crítica na escolha de representações
raciais e ou de gênero apresentados na arte gráfica dos seres inteligentes disponíveis
para os jogadores, essas imagens ou representações do universo subcriado destacam
uma exclusão da representação da mulher e uma forma de racismo velado em seu
interior.
O que percebemos a partir da forma como as raças e os gêneros são apresentados nos
livros básicos de AD&D é que existe ai uma exclusão real do homem e da mulher
afrodescendentes em suas imagens, assim como um redução da representação do
gênero feminino, ambas as formas de exclusão não dão conta de reproduzir a
realidade social na qual se inserem seus jogadores e por isso, merece uma atenção
enquanto crítica da forma como trabalhamos e representamos os seres humanos ou
seres inteligentes em jogos de interpretação, para o combate do senso comum
negativo. Aqui podemos reconhecer mais uma vez, conforme observação de Uelber
Barbosa Silva que o racismo se expressa também na falsificação do real, não ignorando
representações que possam estar submetidas as regras internas do universo
subcriado, mas que quando existentes, devem ser apresentadas de forma clara e
explícita.
O texto revela uma preocupação que já vem ocupando um lugar de destaque nas
prerrogativas de construção de textos por escritores e empresas que levam a crítica
sobre o tema raça e representação para seus jogos, mostrando que é possível
trabalhar a favor da conscientização e não proliferação ou reforço do senso comum
negativo.
2
SANTOS, Diego Junior da Silva. PALOMARES, Nathália Barbosa. NORMANDO, David.
QUINTÃO, Cátia Cardoso Abdo, Raça versus etnia: diferenciar para melhor aplicar, .
3
CONFINO, Alon, Um mundo sem Judeus: da perseguição ao genocídio, a visão do
imaginário Nazista, São Paulo SP, Cultrix, 2016.
COOK, David "Zeb", Advanced Dungeons & Dragons, Livro do Jogador 2° edição, São
Paulo SP, Abril Jovem, 1995.
COOK, David "Zeb", Advanced Dungeons & Dragons, Livro do Mestre 2° edição, São
Paulo SP, Abril Jovem, 1995.
COOK, David "Zeb", Advanced Dungeons & Dragons, Livro dos Monstros 2° edição, São
Paulo SP, Abril Jovem, 1995.
MONTESA, Mike. HENSLEY, Shene Lacy, Weird Wars II, Retropunk Publicações, Curitiba
PR, 2017.
1
Masters of Fantasy - TSR: The Fantasy Factory, disponível noi link:
https://www.youtube.com/watch?v=Tq8G-gjpWM8&t=256s
ANEXOS
Anexo 1
Pesquisa feita no Google com a fase Jogos e RPG e a opção de busca ao pé da letra
apresenta 7.610,00 resultados.
Anexos 2