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Histórias Abertas III

Convenção Ludonarrativas Criação, Inclusão, Transformação

DÉCADA DE 90 ADVANCED DUNGEONS & DRAGONS, UM


EXEMPLO DO REFORÇO NEGATIVO DO SENSO COMUM
QUESTÕES DE RAÇA E REPRESENTAÇÃO

Prof. Luciano Mota Bastos


Orientação Dra. Me. Tais Silva Pereira
Rio de Janeiro Julho de 2017
Resumo

O objetivo do presente artigo é apresentar e discutir a questão de como o termo raça e


a representação de gênero são trabalhados no RPG, Advanced Dugeons & Dragons ou
AD&D, muito popular no Brasil na década de 90. O trabalho apresenta o RPG como
dispositivo cultural, e como tal, seu papel no reforço o seno comum negativo, tanto na
questão da raça como na exclusão da mulher em suas representações imagéticas.
Acreditando na importância do jogo como espaço de construção de significado e
apreensão de sentido, conforme teoria de Huisinga e a partir do conceito de raça
apresentado pelo Professor Kabengele Munanga verificamos a possibilidade de
estabelecer um novo termo para definir as diferenças étnicas que não reforcem
antigos significados de cunho racista associados ao uso do termo raça.
O JOGO DE RPG, UM DISPOSITIVO CULTURAL

Os jogos de RPG ou Role Playing Game, no Brasil, jogos de interpretação de papéis ou


ainda, jogos de representação de papéis, surge como idéia na década de sessenta e
como produto revolucionário na década setenta nos Estados Unidos da América. A
revolução se dá na capacidade do novo produto de unir narrativa á mecânica de jogo,
imaginação e criatividade. Esse novo produto é fortemente influenciado pela herança
dos jogos de guerra, em termos de sistema de regras (jogos de guerra ou Wargames
eram muito populares entre o público jovem e adulto no período), e a literatura de
ficção e fantasia, no tocante aos cenários de jogo, do sword and sorcery de Robert E.
Howard á fantasia épica de J.R.R. Tolkien, permitindo a socialização, dando liberdade
narrativa e de tomada de decisão para seus praticantes.

Os praticantes do RPG ou jogadores de RPG criam personagens que representam os


protagonistas que vivem uma história, um dos jogadores assume o papel de narrador
ou mestre de jogo, ele apresenta o contexto no qual a história se desenrola e
interpreta todos os outros personagens não jogadores ou PDMs personagens do
mestre. Uma partida de RPG se dá principalmente na imaginação de seus jogadores
através da contação de histórias. Essa narrativa ficcional é construída coletivamente,
portanto se dá em um espaço mental, intelectual e virtual compartilhado por seus
praticantes.

Das inovações trazidas pelo jogo temos a possibilidade dos jogadores criarem seus
próprios personagens. A criação do personagem se dá através da combinação de uma
série de lançamentos de dados, para determinar estatísticas iniciais, e a escolha de
características que ajudam a definir esse personagem. Essas características são
apresentadas por conjuntos de habilidades e perícias separadas por classes, ou
profissões, e raças ou grupos étnicos raciais, essas características ajudam o jogador a
definir a origem, história e comportamento gerais do seu personagem. Essa mecânica
com dependência de características divididas por classes ficou conhecida como class
base system ou sistema baseado em classe, e é muito utilizada até hoje em vários
produtos do mercado.
Apesar de ter florescido entre jovens do ensino superior, nas duas décadas iniciais de
produção (70 e 80), pouco se criticava sobre as questões de representação social, raça
ou etnia, e o jogo ainda se encontrava relegado ao universo infantojuvenil, sem a
atenção de uma crítica acadêmica ou do seu reconhecimento como dispositivo
cultural, mas seu impacto sobre uma geração deu origem a uma nova indústria que
num período de quarenta e três anos (1974 á 2017) passou a atender crianças,
adolescentes, jovens, adultos e idosos numa escala global.

Hoje, em uma consulta rápida na ferramenta de busca da web, Google, utilizando-se a


opção de busca, ao pé da letra, e a frase, Jogos de RPG, temos um resultados de
7.610.000 aparições do termo exatamente da forma como foi escrito (anexo1), pesquisas
feitas com a mesma frase em outras línguas como, inglês Tabletop Role Playing Game,
espanhol Juego de rol, ou francês Jeux de rôles, vão apresentar resultados
semelhantes.

O jogo de RPG, seja ele digital ou analógico, possui uma ampla abrangência e tem uma
popularidade e alcance que supera os de muitos outros dispositivos culturais. No caso
do RPG de mesa ou analógico, entendemos aqui como dispositivo cultural o conjunto
de mecanismos que promovem experiências sensoriais e a capacidade para evocar e
transmitir sentimentos universais a partir de narrativas grupais, bem como sua
qualidade como documento de memória coletiva que na experiência do jogo torna-se
um espaço de significação e apreensão de sentido, e significado como apresentado na
teoria do círculo mágico de Huisinga (2007). Assim como outros jogos, os jogos de RPG
são instrumentos culturais de socialização cognitiva, que funcionam como extensão do
ser humano social, que dá novo significado e permite a construção de uma percepção
da realidade ao trabalhar sentidos, experiências, significados e promover
problematizações em função das histórias vividas na virtualidade narrativa, na
experiência virtual que o jogo proporciona.

Para apresentar uma pequena parcela do interesse pelos jogos de RPG e seu alcance
nacional no período, sobre o qual essa pesquisa se debruça a década de noventa, e
usando como documentação publicações em jornais e revistas, foi realizada uma busca
no acervo digital em três jornais e uma revista de grande circulação, O Globo, Jornal do
Brasil e O Estado de São Paulo e a revista Veja, nesses quatro periódicos encontramos
mais de trezentos e cinqüenta chamadas listadas na busca com, matérias, avisos de
eventos e entrevistas sobre os jogos de RPG (exemplos no anexo 2). De 1990 á 1999, são mais
de duas matérias por mês durante dez anos de publicação, apenas nesses periódicos
pesquisados, mostrando no mínimo a curiosidade e o interesse do tema pelos leitores
do jornal e os produtores de conteúdo.

Fazendo um breve retorno a primeira década do RPG no Brasil, no inicio dos anos
noventa, temos alguns nomes de produtos que se destacam pela iniciativa,
popularidade e alcancem como, GURPS Generic and Universal Roleplaying System,
primeiro RPG lançado em língua portuguesa no Brasil em 1991 criado pela Steve
Jackson Games e lançado aqui pela editora Devir de São Paulo, Tagmar RPG de
Fantasia Medieval, primeiro RPG nacional lançado em 1991 e publicado pela editora
GSA do Rio de Janeiro, O Desafio dos Bandeirantes, primeiro RPG a trabalhar com
temas nacionais lançado em 1992 também publicado pela GSA e o Advanced
Dungeons & Dragons segunda edição da editora estadunidense TSR, lançado no Brasil
em 1995 pela editora Abril Jovem, que fez uma tiragem numerosa para o mercado
nacional. Desse último, podemos extrair exemplos significativos dos temas
apresentados nesse trabalho, como a questão de dispositivo cultural e representação
social e racial, pois o AD&D foi um dos produtos responsáveis pelo avanço e fomento
mais significativo dos RPGs na década de noventa, no Brasil e no mundo.

Entre 1974 e 1997 Dungeons & Dragons já havia sido traduzido para mais de vinte e
seis idiomas, vendido mais de cinqüenta milhões de cópias para mais de cinqüenta
países, tinha uma participação de publico estimada em mais de vinte milhões de
jogadores pelo mundo, como apresentado no documentário Masters of Fantasy - TSR:
The Fantasy Factory executado pelo canal Syfy channel em 1997 e disponível no
youtube1. Aqui podemos ver e ouvir a equipe de criação e sua presidente, na época,
Lorraine Williams, falarem sobre o fenômeno do jogo e seu alcance a partir do ponto
de vista da empresa, que na época era uma companhia multimilionária.

Sendo herdeiro do primeiro RPG, Dungeons & Dragons, o Advanced Dungeons &
Dragons ou AD&D, como ficou mais conhecido, teve um forte impacto sobre o público
jogador brasileiro, trazendo cenários de aventura medieval fantástica gênero muito
popular a época de sua publicação e cujas revisões e atualizações mantiveram suas
linhas de produtos comerciais vivas até hoje. Sua estrutura de regras estava baseada
no sistema básico de classes inaugurado por seu antecessor, Dungeons & Dragons, e
apresentando a divisão de seres inteligentes que compunham os diversos cenários em
grupos raciais, aqui cabe a crítica proposta por esse artigo, mas que pode ser
espelhada, como uma problematização no uso do termo raça, nos jogos de RPG, o
problema se estende também a maneira como a produção gráfica do produto, exclui a
representação da mulher em sua construção, como veremos nos anexos na discussão
proposta.

RAÇA E REPRESENTAÇÃO DA MULHER NO ADVANCED DUNGEONS & DRAGONS

De uma maneira geral os jogos de RPG utilizam o termo raça para fazer uma separação
e distinção entre os vários povos inteligentes que habitam seus cenários ficcionais,
sem muita preocupação com a utilização do termo, seu significado vai perdendo
importância ou se tornando banal na medida que os jogadores começam a entender as
divisões raciais e o juízo de valor que é feito para cada raça no contexto do universo
subcriado, o que reforça de forma negativa o senso comum ao estabelecer esse juízo
de valor entre as raças. Aqui existe a possibilidade de desconstrução desse reforço
negativo do senso comum, que permeia a utilização do termo, que já não é mais
utilizado como forma de distinção entre seres humanos e sim um remanescente do
pensamento etnocêntrico europeu, raiz do preconceito racial. Esse preconceito, como
conhecemos hoje, nasce com o determinismo imposto pela lógica liberal. Uelber
Barbosa Silva em seu artigo para o livro, Relações Étnicoraciais Olhares Plurais, vai
definir essa construção da percepção racial da seguinte forma:

O racismo moderno se origina de condições objetivas


existentes na transição do feudalismo ao capitalismo
expressando-se idealmente como falsificação do real,
quando filósofos e cientistas buscaram dividir
"cientificamente" a sociedade em raças, considerando
também seu grau de hierarquização, influenciados
pelas disputas travadas no interior da burguesia
inglesa pela conservação ou não do Tráfico de
Escravos e da Instituição Escravidão.
Uelber Barbosa Silva, Relações Etnicoraciais Olhares
Plurais, Cap. 1, A forma de ser do racismo e sua relação
com o fenômeno da alienação na sociedade capitalista,
pag. 11, Paco Editorial, SP, 2014

Para uma compreensão mais própria do peso e importância do termo raça, o professor
da Universidade de São Paulo Kabengele Munanga nos fala da utilização de teorias
raciais, como objeto de manipulação política e ideológica. Em cada momento histórico
o termo raça não ocorre de forma aleatória, já que cada uma delas apresentava
intenções e objetivos bastante definidos, sendo necessário o máximo de atenção em
sua análise para perceber sua eficácia em retratar a realidade contemporânea.

Raça já teve vários significados ao longo da história.


Foi utilizada para classificar espécies (animais e
vegetais); como referência de “pureza” de sangue por
meio da expressão “raça nobre”; para classificar a
diversidade humana, apoiando-se na tese do
determinismo biológico. Através da antropometria,
teve o objetivo de analisar os aspectos externos da
raça e do seu potencial criminal (descobrir os
criminosos, antes mesmo da prática do crime);
tentando provar que a mestiçagem produz raças
degeneradas e a superioridade da raça branca sobre
as demais, etc.
Prof. Kabengele Munanga

Esses conceitos raciais são embasados por idéias inicialmente apresentadas na


classificação racial dos homens feita por uma série de pensadores entre os séculos XVII
ao XX, a saber, François Bernier que em 1684 lança o título, "Nouvelle division de la
terre par les différents espèces ou races qui lhabitent", (Nova divisão da terra pelas
diferentes espécies ou raças que a habitam), seguido em 1758 pelo sueco Carolus
Linnaeus, conhecido por ser o criador do termo Homo sapiens. Linnaeus apresentou
quatro variedades do homem fazendo um forte juízo de valor orientado pela
perspectiva etnocêntrica da época, ele classifica os homens em, 1) Americano (Homo
sapiens americanus: vermelho, mau temperamento, subjugável); 2) Europeu
(europaeus: branco, sério, forte); 3) Asiático (Homo sapiens asiaticus: amarelo,
melancólico, ganancioso); 4) Africano (Homo sapiens afer: preto, impassível,
preguiçoso). Segundo a visão discriminatória de Linnaeus, a classificação atribuiu a
cada raça características físicas e morais específicas, dando a elas um forte juízo de
valor. Em 1916, Marvin Harris descreveu a teoria da hipodescendência, usada na
classificação de um indivíduo produto do cruzamento de duas raças diferentes. Nessa
teoria, a criança fruto deste cruzamento pertenceria à raça biológica ou socialmente
inferior: “o cruzamento entre um branco e um índio é um índio; o cruzamento entre
um branco e um negro é um negro; o cruzamento entre um branco e um hindu é um
hindu; e o cruzamento entre alguém de raça européia e um judeu é um judeu”2.
As idéias entorno da questão racial, aliadas a lógica da colonização africana, inspiradas
pelas novas necessidades do crescente pensamento capitalista, alicerçaram sua
dominação coercitiva e exploratória sobre as raças consideradas "inferiores", e
trabalharam na lógica escravista, dando aval as atrocidades, sequestros e mortes
decorridos dessa prática.

Durante outro período de atrocidades inspiradas pelas idéias raciais, vimos o nazismo.
Quando Hitler e os nazistas assumiram o poder na Alemanha, estas convicções
tornaram-se a ideologia oficial do governo, e foram difundidas publicamente através
do rádio, filmes em salas de aulas e jornais. Os nazistas começaram a colocar sua
ideologia em prática com o apoio dos cientistas alemães que acreditavam que a raça
humana poderia ser aperfeiçoada através do impedimento da reprodução de
indivíduos por eles considerados “inferiores”. A partir de 1933, médicos alemães foram
autorizados a realizar esterilizações forçadas. Entre os alvos desse programa público
estavam os ciganos, uma minoria étnica com cerca de 30.000 indivíduos na Alemanha,
e também arianos deficientes, incluindo doentes mentais e pessoas com deficiência
visual e auditiva congênita. Cerca de 500 crianças afro-alemãs, filhos de mães alemãs e
soldados coloniais africanos dos exércitos Aliados que ocuparam a região da Renânia
após a Primeira Guerra Mundial, também foram vítimas do programa de esterilização.
Depois que Hitler assumiu o poder, professores nazistas começaram a aplicar os
princípios de sua “ciência racial” (totalmente sem bases científicas) nas salas de aula.
Eles mediam o tamanho do crânio, o comprimento do nariz, registravam a cor dos
olhos e cabelos de seus alunos para tentar determinar se eles pertenciam à verdadeira
“raça ariana” (Confino, 2016)3.
O problema central a ser discutido é como o termo raça, carregado desse "sentido
racial" deve ser trabalhado nos jogos de forma a não encontrar uma semelhança na
maneira como estabelecemos as relações raciais e as características raciais nos jogos
de interpretação. O jogo oferece um espaço de descoberta e mobilização de esferas de
conhecimento (Rodrigues 2004), ele permite uma série de conexões cognitivas entre
saberes e permite a discussão ou a percepção de problemas através de óticas
diferentes, num exercício virtual de se colocar no lugar do outro de construção de uma
empatia, tão necessária nos dias de hoje. Em seu livro, Teoria do Jogo, o professor de
UFRJ Jeferson José Moebus Retondar, citando Huizinga reforça:

Portanto, estaremos apresentando as características


formais e informais do jogo na perspectiva de
Huizinga, procurando interpretá-las de maneira que
possamos minimamente demarcar a noção de jogo ou
brincadeira como realidade que pode ser apropriada
por crianças, adolescentes, adultos, idosos, nos
espaços formais e informais da vida cotidiana com
inúmeras repercussões.

Jeferson José Moebus Retondar, Teoria do Jogo, 2°ed.,


Editora Vozes, Rio de Janeiro 2013

Como a experiência do jogo permite a apreensão de significados, é importante a crítica


na forma como esses elementos são apresentados e discutidos no mesmo. Não existe
uma reposta fácil. Para desconstruir quarenta anos de ação direta do termo raça
sobre a cultura do próprio jogo, que funciona tanto para cenários de fantasia medieval
como de ficção científica, o termo virou uma instituição. Mesmo levando essa
discussão para jogadores experientes inseridos no universo de produção de conteúdo
ou entre jogadores engajados nas discussões sobre relações étnico raciais o termo raça
é visto como uma regra interna do universo subcriado, sem ser percebido de forma
clara como um elemento negativo no reforço do senso comum que por si só já
trabalha negativamente nesse mesmo sentido.

O AD&D, foi um produto influente no período destacado nesse artigo, de 1990 á 1999.
O jogo foi popularizado no Brasil por uma produção em escala pela editora Abril
Jovem, e foi disponibilizado, além das livrarias, em bancas de jornais tornando seu
acesso ainda maior. O AD&D desde sua primeira edição criou um modelo de produto
que tornou-se um padrão para a linha editorial e um exemplo para outros produtos no
mercado. O jogo foi dividido em três livros, cada volume contemplava um aspecto do
jogo, essa divisão foi estabelecida entre, Players handbook no Brasil, Livro do Jogador,
que traz as regras e características dos personagens a serem criados pelos jogadores
(cada jogador de AD&D era encorajado, tanto no texto como na prática do hobbie a
adquirir e ler uma cópia desse volume). O Dungeon Master Guidem, no brasil lançado
com o título Livro do Mestre, dedicado ao narrador ou Mestre de Jogo, como era
conhecido o jogador responsável pela trama, enredo e tema das aventuras, ele
também é o jogador responsável por interpretava todos os personagens "não
jogadores" ou PDN (personagens do narrador) ou ainda NPCs em inglês (non player
characters) e o Monster Compendium, no Brasil Manual dos Monstros, que
apresentava as características dos monstros e seres fantásticos que desafiariam e se
relacionariam com os personagens dos jogadores. O próprio design gráfico do livro
que ressalto aqui é passível de uma observação crítica na escolha de representações
raciais e ou de gênero apresentados na arte gráfica dos seres inteligentes disponíveis
para os jogadores, essas imagens ou representações do universo subcriado destacam
uma exclusão da representação da mulher e uma forma de racismo velado em seu
interior.

Nas páginas do anexo 3 disponibilizo, a título de representação das idéias sobre as


quais trabalho nesse artigo, as imagens do capítulo de criação de personagens onde
figuram as ilustrações acima citadas, podemos perceber dois problemas centrais nas
formas como os seres foram representados no livro, em primeiro lugar em todas as
representações de indivíduos pertencentes as raças disponíveis para jogadoras e
jogadores, vemos representado apenas o gênero masculino, tanto nas ilustrações que
fazem referência as raças, como nas ilustrações que fazem referência as classes
(profissões para os personagens). Em segundo lugar na representação tanto das raças
como das classes disponíveis para jogadoras e jogadores, vemos personagens
representados como brancos de pele rosada ignorando a miríade quase infinita de
variações possíveis para essa apresentação, tendo em vista uma representação que
fosse minimamente próxima da realidade tanto a ficcional, submetida as regras
internas do universo subcriado, como a da realidade dos jogadores, que não
encontram ali uma representação coerente com essas realidades.

Os gráficos abaixo revelam uma questão que á época da construção do produto,


poderia não ter chamado atenção, mas hoje, com um olhar mais crítico sobre a forma
como o material foi produzido, revela tendências preocupantes.
Os gráfico foram construídos com base em análise do numero de ilustrações e da
forma como os seres são representados nas mesmas. A tendência a representações
que tem o homem branco como centro dessas amostras é bastante clara. É importante
entender que conforme explicado anteriormente, essa representação é construída em
um momento em que as discussões sobre representação social, seja ela de classe ou
de gênero, não fazem parte das preocupações relacionadas ao jogo, mas não
podemos ignorar o histórico de lutas sociais contra o racismo e o sexismo nos EUA,
embora esse tema seja muito grande e abrangente para ser discutido nesse trabalho.

O que percebemos a partir da forma como as raças e os gêneros são apresentados nos
livros básicos de AD&D é que existe ai uma exclusão real do homem e da mulher
afrodescendentes em suas imagens, assim como um redução da representação do
gênero feminino, ambas as formas de exclusão não dão conta de reproduzir a
realidade social na qual se inserem seus jogadores e por isso, merece uma atenção
enquanto crítica da forma como trabalhamos e representamos os seres humanos ou
seres inteligentes em jogos de interpretação, para o combate do senso comum
negativo. Aqui podemos reconhecer mais uma vez, conforme observação de Uelber
Barbosa Silva que o racismo se expressa também na falsificação do real, não ignorando
representações que possam estar submetidas as regras internas do universo
subcriado, mas que quando existentes, devem ser apresentadas de forma clara e
explícita.

É importante entender que esse fenômeno se dá, justamente pela naturalização da


exclusão, que busca justificativas variadas para se perpetuar, a exemplo de desculpas
sobre o período histórico em que o jogo é representado e ou condições adversas para
a representação e participação da mulher como protagonista. O poder efetivo de
negação dessa naturalização, que trabalha no reforço do senso comum negativo é de
desconstruir esse fenômeno e trabalhar a favor da naturalização, aí sim, da
representação da diversidade étnico-racial e de gênero da realidade imediata que
compartilhamos enquanto sociedade e que se estende ao jogo como simulacro de
relações sociais, a partir da representação e construção de narrativas pois aqui
também reside a extensão do ser humano social que aprende e trabalha significados a
partir da experiência do jogo.

SUGESTÕES A RESOLUÇÃO DO PROBLEMA

Como explicado anteriormente, desconstruir quarenta e três anos de utilização do


termo raça nos jogos de RPG não é uma tarefa fácil, a utilização do termo foi
banalizada e naturalizada, mas seu significado negativo não se desconstruiu. O
professor Kabengele Munanga vai fazer a sugestão da substituição da palavra raça, por
etnia, e explica.

"Derivado da palavra grega ethnos (povo), etnia é um


grupo de pessoas que se diferenciam das demais por
afinidades culturais, históricas, lingüísticas,
morfológicas..."
“Uma etnia é um conjunto de indivíduos que,
histórica ou mitologicamente, têm um ancestral
comum; têm uma língua em comum, uma mesma
religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram
geograficamente num mesmo território.”

Prof. Dr. Kabengele Munanga.

A partir da apresentação inicial da utilização do termo raça e dos significados


atrelados a sua aplicação ao longo da história, podemos trabalhar com duas
alternativas possíveis para desconstrução e correta utilização do termo sem o peso
negativo de suas representações. O que proponho a partir da crítica desse trabalho é,
em primeiro lugar o abandono da utilização do termo raça para definir grupos étnicos
de seres inteligentes que dividem espaço no universo subcriado seja ele qual for,
apesar essa postura parecer radical a princípio, temos de levar em consideração a
capacidade do jogo em permitir a experiência de apreensão de significados, termos e
conceitos a partir da atividade lúdica, é nossa obrigação moral trabalhar a favor de
uma compreensão de mundo mais plural e inclusiva, livre de miasmas de pensamento
racista e de representações negativas ou excludentes, essas que já impregnam o senso
comum e dividem seres humanos em classes e subcategorias, fazendo juízo de valor
entre seres iguais. A segunda postura, que manteria a utilização do termo, seria o
esclarecimento de como o termo deve ser entendido dentro da experiência do jogo,
ou das regras do universo subcriado, é deixar claro que esse significado não deve
extrapolar as suas barreiras, que na realidade fora do jogo, raça não serve para definir
ou explicar as complexas relações e características que nos definem, melhor expressas
na utilização do termo etnia. Algumas publicações contemporâneas já destacam esse
elemento em sua materialidade textual, a exemplo do RPG Weird Wars II, que no
capítulo de criação de personagens, faz não só uma clara definição o termo, como
também se expressa em relação as minorias e da forma como são representadas no
jogo. Mike Montesa e Shane Lacy Hensley explicam:

"1 Raça, todos são humanos (apesar da propaganda


nazista dizendo o contrário)."

"Mulheres e minorias, Mulheres e minorias sofreram


uma discriminação evidente durante a Segunda
Guerra Mundial (embora muitas mulheres tenham
servido à União Soviética como snipers, atiradoras de
defesa Antiaérea (AA), e até mesmo pilotos). Essa
situação existiu até mesmo nas democracias
ocidentais que lutaram contra as idelogias racistas
virulentas da força do eixo. Isso só reforça os grandes
sacrifícios, heroísmo e patriotismo de mulheres e
minorias nos países Aliados durante a guerra."

Weird Wars II, Pags. 10, 12

O texto revela uma preocupação que já vem ocupando um lugar de destaque nas
prerrogativas de construção de textos por escritores e empresas que levam a crítica
sobre o tema raça e representação para seus jogos, mostrando que é possível
trabalhar a favor da conscientização e não proliferação ou reforço do senso comum
negativo.

Chegando ao final da apresentação das idéias e propostas no artigo, gostaria de


reforçar a intenção, com base no histórico do uso do termo raça, como apresentado,
assim como a forma como são excluídos das representações imagéticas do jogo o
homem e a mulher afrodescendentes, de apresentar um base para a crítica contínua
de publicações que ignorem a representação real e livre de racismos nos jogos de RPG,
para que os seres humanos inseridos em um ambiente social plural, vejam
representados ali os mesmos rostos que se apresentam e dialogam com o seu ser
social . AD&D serviu como lembrete sobre um dispositivo cultural que na sua época
teve um alcance e um impacto grande no meio RPGista nacional e que já poderia ter
contribuído desde então para a desconstrução desse senso comum negativo.
Pensando na proposta de Huisinga sobre a forma como os jogos trabalham e permitem
uma experiência de significação, socialização, ou ainda no trabalho da Dra. Sonia
Rodrigues ao afirmar que os jogos mobilizam as esferas do conhecimento é
indispensável, quase uma obrigação moral, que nós sejamos conscientes na busca pela
igualdade e respeito as diferenças em todas as instâncias da vida em sociedade,
mesmo no meio RPGista, mais um entre milhares de formas de entretenimento e lazer.
Bibliografia

2
SANTOS, Diego Junior da Silva. PALOMARES, Nathália Barbosa. NORMANDO, David.
QUINTÃO, Cátia Cardoso Abdo, Raça versus etnia: diferenciar para melhor aplicar, .

3
CONFINO, Alon, Um mundo sem Judeus: da perseguição ao genocídio, a visão do
imaginário Nazista, São Paulo SP, Cultrix, 2016.

EUGENIO, Benedito Gonçalves, Relações Etnicorraciais Olhares Plurais, Jundiaí, SP,


Paco Editorial, 2014.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo. Editora Perspectiva 2007.

COOK, David "Zeb", Advanced Dungeons & Dragons, Livro do Jogador 2° edição, São
Paulo SP, Abril Jovem, 1995.

COOK, David "Zeb", Advanced Dungeons & Dragons, Livro do Mestre 2° edição, São
Paulo SP, Abril Jovem, 1995.

COOK, David "Zeb", Advanced Dungeons & Dragons, Livro dos Monstros 2° edição, São
Paulo SP, Abril Jovem, 1995.

MONTESA, Mike. HENSLEY, Shene Lacy, Weird Wars II, Retropunk Publicações, Curitiba
PR, 2017.

RODRIGUES, Sonia. Roleplaying Game e a Pedagogia da Imaginação no Brasil. Rio de


Janeiro RJ. Editora Bertrand Brasil Ltda, 2004.

1
Masters of Fantasy - TSR: The Fantasy Factory, disponível noi link:
https://www.youtube.com/watch?v=Tq8G-gjpWM8&t=256s
ANEXOS
Anexo 1

Pesquisa feita no Google com a fase Jogos e RPG e a opção de busca ao pé da letra
apresenta 7.610,00 resultados.
Anexos 2

As matérias apresentadas aqui ilustram a afirmação feita no artigo de que o jogo de


RPG trabalha como um dispositivo cultural e apresenta uma idéia do interesse pelo
hobbie no período destacado na pesquisa, de 1990 a 1999.
Anexos 3

Páginas do Livro do Jogador, recurso básico para construção de personagens do jogo


Advanced Dungeons & Dragons, publicado pela editora Abril Jovem, 1995.

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