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Crítica Histórica da Bíblia, por Eta Linnem ann © 2009 Editora C ultura Cristã.

Este livro foi


prim eiram ente publicado pela V TR de Nurem berg, Alemanha, com o título Wissenschaft oder
Meinung? Copyright © 1999 VTR. Tradução autorizada a partir da edição americana
publicada pela Kregel Publications.

Ia edição - 2009 - 3.000 exemplares

Conselho Editorial
Ageu Cirilo de M agalhães, Jr.
Alderi Souza de Matos
A ndré Luís Ramos Conteúdo
Cláudio M arra (Presidente)
Fernando Hamilton Costa
Francisco Solano Portela Neto
Mauro Fernando M eister
Tarcízio José Freitas de Carvalho Produção Editorial
Valdeci da Silva Santos Tradução Introdução do tradutor p a r a a lín g u a in g le s a .............................................................. 7
W adislau M artins Gomes
Revisão P refá cio ....................................................................................................................................... 15
Davi M iguel M anço Introdução da a u to r a ............................................................................................................. 17
Wilton Vidal de Lima
A lzira M uniz
Editoração Parte 1
A ssisnet Design Gráfico O Cristianismo e a universidade moderna
Capa
1. As raízes anticristãs da u n iv ersid ad e............................................................................. 23
M agno Paganelli
2. Q uestões pertinentes com respeito à u n iv ersid ad e.................................................... 39
3. O antigo Israel e o O cidente m o d ern o ........................................................................... 47
L7587c Linneman, Eta 4. A educação cristã no nível u n iv e rsitá rio ...................................................................... 53
Crítica histórica da Bíblia / Eta Linnem ann; traduzido por W adislau Martins
Excurso 1 : E studos gerais p ara o estudante cristão ...................................................65
Gomes. _São Paulo: C ultura Crista, 2009
Excurso 2: A confiabilidade do p e n s a m e n to ............................................................... 71
208 p.: 16x23cm
5. A B íblia e o bom em m o d e rn o ..........................................................................................81
Tradução de Historical criticism o f the Bible
Parte 2
ISBN 978-85-7622-279-8
A Palavra de Deus e a teologia histórico-crítica
1. Bíblia 6. O estudo da teologia h istó ric o -c rític a ........................................................................... 95
7. A fé da teo lo g ia e a teologia da f é ................................................................................ 121
8. A m entalidade da teologia histó rico -crítica................................................................133
E xcurso 3: C onselho falso e v erd ad eiro ......................................................................145

9. Teologia histórico-crítica e teologia ev an g élica....................................................... 153
RDITORA CULTURA CRISTÃ
Rua Miguel Teles Junior, 394 - Cambuci 10. A Palavra de D e u s ............................................................................................................. 167
01540-040 - São Paulo - SP - Brasil
Fone (11) 3207-7099 - Fax (11) 3209-1255
www.editoraculturacrista.com.br - cep@cep.org.br
0800-0141963 ín d ice de a ssu n to s .............................................................................................................201
ín d ice de textos da E scritu ra..........................................................................................207
Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas
Editor: Cláudio Antônio Batista Marra

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0 estudo do teologia histórico-crítica

Algumas pessoas têm feito objeção à terminologia usada no tí­


tulo deste capítulo. Elas dizem: “Você deveria escrever: ‘O Estudo do
Método Histórico-crítico’” . Muita coisa poderia ser dita em resposta a
essa objeção; restrinjo-me a duas observações:
Uma é a de que o termo teologia histórico-crítica é eminente­
mente justificável na estrutura de uso lingüístico geral. Se, por exem­
plo, alguém, na Alemanha, diz que está indo a um Kneippkur, todos
sabem o que isso significa: a pessoa está indo a uma clínica de repou­
so onde receberá vários tipos de hidroterapia. Mais corretamente, ela
quer dizer que está indo a uma clínica de saúde na qual ela receberá
tratamento segundo os métodos do antigo Pastor Kneipp. Todo alemão
sabe que um Kneippkur envolve esses métodos, distintos dos métodos
utilizados em outras clínicas de repouso.
O mesmo ocorre na teologia. A teologia, como ensinada nas uni­
versidades ao redor do mundo hoje, tanto no Ocidente e no Oriente,
quanto no Norte e no Sul, é baseada no método histórico-crítico. Isso
é verdadeiro especialmente em relação ao método ensinado na Ale­
manha, o qual monopoliza a universidade governamental e reivindica
ser o único porta-voz sobre o assunto. Além disso, o método históri­
co-crítico não é considerado apenas como o fundamento das disciplinas
exegéticas. Esse método decide também o que o especialista sistemático

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0 estudo da teologia histórico-crítica

Algumas pessoas têm feito objeção à terminologia usada no tí­


tulo deste capítulo. Elas dizem: “Você deveria escrever: ‘O Estudo do
Método Histórico-crítico’” . M uita coisa poderia ser dita em resposta a
essa objeção; restrinjo-me a duas observações:
Uma é a de que o termo teologia histórico-crítica é eminente­
mente justificável na estrutura de uso lingüístico geral. Se, por exem­
plo, alguém, na Alemanha, diz que está indo a um Kneippkur, todos
sabem o que isso significa: a pessoa está indo a uma clínica de repou­
so onde receberá vários tipos de hidroterapia. Mais corretamente, ela
quer dizer que está indo a uma clínica de saúde na qual ela receberá
tratamento segundo os métodos do antigo Pastor Rneipp. Todo alemão
sabe que um Kneippkur envolve esses métodos, distintos dos métodos
utilizados em outras clínicas de repouso.
O mesmo ocorre na teologia. A teologia, como ensinada nas uni­
versidades ao redor do mundo hoje, tanto no Ocidente e no Oriente,
quanto no Norte e no Sul, é baseada no método histórico-crítico. Isso
é verdadeiro especialmente em relação ao método ensinado na Ale­
manha, o qual monopoliza a universidade governamental e reivindica
ser o único porta-voz sobre o assunto. Além disso, o método históri­
co-crítico não é considerado apenas como o fúndamento das disciplinas
exegéticas. Esse método decide também o que o especialista sistemático

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pode dizer, e se alguém aceita a sua reivindicação. Ele determina o A relatividade da Bíblia
procedimento na educação cristã, na homilética e na ética. É possí­
vel que aqueles que são mais afetados por ele não estejam plenamen­ A pressuposição de tal teologia científica é a incorporação da
te conscientes de sua influência. Ainda assim, a crítica histórica tem Bíblia e da fé cristã precisamente no mesmo nível de comparação com
realmente permeado o ensino teológico nas universidades da mesma outras religiões e suas escrituras sagradas. Até mesmo quando é enfa­
maneira como o fungo incha a massa levedada. Se alguém, entretanto, tizado aquilo que é distintivo com respeito ao cristianismo, permanece
lida constantemente com a massa levedada, provavelmente, depois de a pressuposição fundamental da abordagem comparativa das religiões
um tempo, não perceberá mais o odor característico, ainda que este em geral. O grau de comparação ao qual o cristianismo foi reduzido,
continue facilmente identificável para outros. no entanto, não é em si mesmo um fato ou um dado necessário; an­
Observaria também que meus antigos colegas, com os quais tive tes, é uma abstração, um construto artificial a que se chega quando se
contato na Sociedade para Estudos do Novo Testamento, protestariam abandona o Deus vivo. Qualquer pessoa que estude teologia científica
veementemente se fossem classificados como metodologistas históri- será inevitavelmente levada a aceitar tal falsa pressuposição.
co-críticos e não como teólogos. Eles vêem a si mesmos como teólo­ O conceito de Sagrada Escritura é tomado relativo de maneira
gos e querem ser levados a sério como tais. Bem, nesse caso, não pode que a Bíblia torna-se nada mais do que um escrito religioso como ou­
haver objeção quanto a considerar seu trabalho como teologia históri- tro qualquer. Uma vez que outras religiões têm seus escritos sagrados,
co-crítica, em vez de meramente como metodologia histórico-crítica. não se pode presumir que a Bíblia seja única e superior. E por isso que
Muito mais poderia ser dito, mas deixemos assim, por enquanto, ela passa a ser tratada como qualquer outro livro. Chega a não haver
e avancemos para o ponto principal. distinção no que diz respeito à maneira como a Bíblia é vista e como se
lê a Odisséia, ainda que fiquem bastante claras, sob exame cuidadoso,
as diferenças entre os dois livros.
Teologia como ciência Para se fazer justiça, alguns pensam que servem à proclamação
do evangelho ao estabelecerem tais diferenças. Negligenciam, porém,
O princípio básico o fato de que, no processo da comparação, reduzem a Palavra de Deus
a uma coleção de idéias religiosas e de conceitos teológicos. Isso trans­
Pesquisas são conduzidas ut si Deus non daretur (“como se forma a Palavra viva em letra morta, como se vê em muitos púlpitos
Deus não existisse”). Isso significa que a realidade de Deus é, logo de à medida que pastores lutam em vão para trazer vida a textos inertes,
início, excluída das considerações, até mesmo se o pesquisador reco­ recorrendo finalmente à psicologia, sociologia, socialismo e outras for­
nhece que Deus poderia dar testemunho de si mesmo em sua Palavra. mas de “ismos” - uma tentativa de infundir relevância aos textos.
O padrão pelo qual tutjo é avaliado não é a Palavra de Deus, mas A Bíblia não é mais estimada como a Palavra de Deus desta ma­
o princípio científic<^)eclarações da Escritura com respeito a lugar, neira como é tratada. Toma-se como certo que as palavras da Bíblia e as
tempo, seqüência de eventos, e pessoas são aceitas somente enquanto palavras de Deus não são idênticas. O material impresso entre as duas
se adequarem às pressuposições e teorias estabelecidas. O princípio capas da Bíblia - dizem - não é a Palavra de Deus em si mesma. Ele se
científico adquiriu a condição de ídolo. toma Palavra de Deus apenas ocasionalmente quando funciona como
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taJ pof-mgio da leitura ou da pregação/Além disso, o Novo Testamento A fim de fa zer justiça à reivindicação da autoridade que o cânon
é lançado contra o Antigo Testamento sob a presunção de que o Deus bíblico tem para a igreja, e também p o r orientação pessoal, alguns
do Novo Testamento seja diferente do Deus do Antigo Testamento, uma buscam um “cânon dentro do cânon Uns poucos chegam a listar
vez que Jesus teria introduzido um novo conceito de Deus. Paulo é lan­ apenas Romanos 7, o Bom Samaritano de Lucas 10, e a parábola do
çado contra Tiago. Mantém-se que o livro de Atos apresenta um Paulo juízo final de Mateus 25. Para outros, esse “cânon dentro do cânon” é
diferente daquele que escreveu Romanos, Gálatas, 1 e 2 Coríntios e ou­ um pouco mais estendido. Em ambos os casos, o padrão é usado para
tras epístolas. Considera-se freqüentemente que Atos tem apenas valor se avaliar o restante da Bíblia, empregando implícita ou explicitamen­
literário; a veracidade histórica dos relatos de Lucas é tomada de modo te o Sachkritic.' Usando Romanos, o livro de Tiago é desvalorizado.
tão leve como a teologia que defende. De fato, cada sentença é posta 1 Coríntios 15.5-8 é criticado usando outros ensinamentos de Paulo
sob a suspeita de conter a teologia de Lucas em vez de ser um relato fiel sobre fé; ali, Paulo não estaria concordando com os altos padrões de
daquilo que realmente ocorreu, e tal teologia é apresentada como prati­ seus próprios insights afirmados em outras passagens, pois trata a res­
camente o oposto da boa teologia. Usando métodos literários grotescos, surreição de Jesus como um fato histórico.
os quais conduziriam imediatamente a resultados absurdos se aplicados Uma vez que o conteúdo dos escritos bíblicos é visto como mera
à obra de um poeta ou teólogo —como Goethe ou Barth —estabelecem- criação de escritores teológicos, qualquer versículo nada mais é do que
se reivindicações de inautenticidade para as epístolas pastorais (1 e 2 um pronunciamento teológico humano, sem nenhuma carga de obriga­
Timóteo e Tito), Efésios e Colossenses. Tais reivindicações são, então, toriedade. João 3.16, por exemplo, toma-se apenas o sentimento teoló­
sem verificação cuidadosa, passadas adiante de uma geração de teó­ gico de um teólogo cristão antigo que escreveu seu evangelho perto do
logos para a próxima. Diferenças entre particulares livros da Sagrada fim do primeiro século. Ele teria sido um gnóstico (isto é, um herege),
Escritura são exageradas e tomadas como inconsistências, j ou alguém que usou terminologia gnóstica para combater o gnosticis-
Uma vez que não se aceite a inspiração da Escritura, não se mo, ou talvez alguém mais ou menos influenciado pelo gnosticismo
pode assumir que os livros da Bíblia, individualmente considerados, que advogou um ensino de salvação anticristão ou quase-cristão. Em
complementem-se uns aos outros. Usando esse procedimento, algumas outras palavras, para a teologiahistórko-crítica^lQ ão 3.16 não é uma
pessoas concluem que a Bíblia seja apenas um amontoado de criações promessa de Deus com força vinculante. É, antes, nada mais do que
literárias não-relacionadas. Certamente, poderão reconhecer que tais uma opinião humana descomprometida. Todas as promessas da Bíblia
criações trazem à luz a fé dos seus autores. Não há, porém, nenhuma são tratadas da mesma maneira, embora segundo a Palavra de Deus
disposição para reconhecer nelas aquele a quem o autor dirige a sua elas todas tenham o “Sim” e o “Amém” em Jesus Cristo (2Co 1.20).
fé. Em outras palavras, não consideram que sejam obras de revelação.
Estas são consideradas meramente como criações literárias e teológi­
cas. Assim - com dois ou três mil anos de idade, escritas por autores A interpretação da Escritura
antigos para leitores antigos, e refletindo condições que a investigação
histórico-crítica alega serem totalmente diferentes das de nosso tempo A Escritura Sagrada é vista como “texto” que requer interpreta­
- elas podem ser consideradas como qualquer coisa, menos algo que ção. Não se discute, nesse ponto de vista, que temos direto acesso à
tem relevância contemporânea. Escritura. Porém, o que se conclui daí é que essa é uma interpretação
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subjetiva e existencial pertinente apenas ao proprio interprete. Sem eles se vêem constrangidos pelo sistema de universidade teológica a
que se processe a passagem utilizando a interpretação histórico-crí- fazer um nome para si mesmos e lutar pela honra humana. Contudo, o
tica, aquilo que se obtém dela é visto como permissível apenas para Senhor Jesus diz: “Como podeis crer, vós os que aceitais glória uns dos
uso privado. outros e, contudo, não procurais a glória que vem do Deus único?” (Jo
Uma interpretação responsável que se destine a outros, como 5.44).
na pregação e ensino, deve ser procedida “metodologicamente”, se­ Um estudante de teologia que não tenha morrido para a necessi­
gundo as regras, de maneira a ser controlável. O Espírito Santo, que dade do reconhecimento de homens se encontra sob a mesma pressão.
atua como lhe apraz (ver Jo 3.8), é deixado de lado “põrqué~ninguém Não é de surpreender, então, que muitos estudantes de teologia crentes
pode garantir que o possui”, como diz Rudolph Buhmann. Õl^pTrito em breve tenham dificuldades com sua fé. Geralmente eles se desviam
é substituído pelo método de interpretação, o qual supostamente ga­ da fé sem que se dêem conta do fato. Alguma coisa do que estão estu­
rante a objetividade da interpretação e sua adequabilidade para o texto dando se apega a eles; como poderia ser diferente? Afinal, é para isso
bíblico em questão. que estão estudando! Uinhas limítrofes são traçados ao longo de par­
Não obstante, aquele que se assenta nos céus desafia todos os tes da Palavra de Deus. Diz-se de algumas dessas partes que elas não
podem mais ser cridas e que, conseqüentemente, seu poder não pode
que defendem essa aproximação. Fora algumas poucas pressuposições
mais ser experimentado como antes. “Paulo não é o autor das epístolas
básicas e alguma concordância metodológica, podemos estar certos de
pastorais”, alguém aprende. “O autor do evangelho de João, certamen­
que sempre que dois teólogos compararem seus resultados, geralmen­
te, não é o filho de Zebedeu e discípulo de Jesus”. “O Pentateuco não
te surgirão duas conclusões. Em contraste, sempre que professores
foi escrito por Moisés, mas compilado de diversas fontes” . Qualquer
bíblicos que tomam a Palavra de Deus literalmente em dependência
estudante que não tenha aprendido isso por volta do sexto semestre é
do Espírito Santo comparam aquilo em que foram iluminados, fica
olhado com pena, se não com desprezo, e assim a videira é devastada
evidente a unidade de espírito e a concordância no ensino - qualquer
pelas pequenas raposas, como em Cântico dos Cânticos 2.15. Tudo isso
que seja a confissão, lugar ou período de tempo.
parece inofensivo: São apenas ninharias; o que está em questão não é
O princípio não-declarado, mas operante, da ciência do Antigo e
decisivo para a fé. Entretanto, a autoridade da Palavra de Deus está
do Novo Testamento é: Aquilo que o texto afirma claramente pode não
em questão. Ela perde seu caráter autoritativo, como evidenciará nosso
ser verdadeiro; a tarefa do exegeta é a de descobrir e solver “dificulda­
trato de passagens que nos deixam mais desconfortáveis. Não nos en­
des” do texto da Bíblia. Quão melhor for o intérprete, mais engenhoso
ganemos: até mesmo um buraco de rato pode ameaçar um dique. Isso
será esse processo. Para conquistar essa posição, o professor precisa ficará ainda mais claro quando as tempestades trouxerem mais água.
fazer nome . Isso é coisa obrigatória, a menos que ele se contente
em descontar seu cheque de pagamento sem fazer aquilo que se espera
de um professor. A situação toma-se aflitiva porque é necessário lu­ Razão crítica e realidade
tar para obter reconhecimento humano, até mesmo quando o professor
se desinteressa por tais cerimônias. Asseguro, com prazer, que muitos Para a teologia histórico-crítica, a razão crítica decide o quej: e
dos meus antigos colegas são pessoas humildes e modestas. Entretanto, que não pode ser real idade na BÍblia; U essa dccTslc) é (eítána base
102 O estudo da teologia histórico-crítica 103
Crítica histórica da Bíblia

da experiência diária acessível a cada pessoa. Nada é aceito como fato do é algo totalmente arbitrário. O limite é geralmente 1900 ou talvez
a menos que seja geralmente sustentado como possível.'Â quíltrque é 1945. No período de 1900— 1945, somente seletos clássicos da teolo­
espiritual é julgado segundo critérios da carne. As experiências dos gia histórico-crítica recebem menção. Raras, raríssimas obras escritas
filhos de Deus são totalmente desprezadas. antes de 1900 são consideradas. Embora a teologia histórico-crítica
Devido à pressuposição adotada, a razão crítica perde de vista o seja praticada hoje em virtualmente todos os continentes e países, o
fato de que o Senhor nosso Deus, o Todo-Poderoso, reina. Nenhuma amplo espectro de publicações continua sendo negligenciado, pois
pessoa, obviamente, sequer está em posição de explicar os milagres os diversos escritos são compostos em línguas que ainda nem todos
dos dias modernos, nem mesmo se forem plausivelmente atestados podem ler. Para muitos pesquisadores de língua inglesa ou alemã, as
e medicamente provados. A principal razão para isso é que os livros publicações em francês já constituem uma barreira que muitos enfren­
que glorificam o Senhor relatando tais incidentes, somente serão tra­ tam somente se a obra for um clássico absolutamente indispensável.
tados por certas editoras. E essas são as editoras cujas publicações são E quantos obtêm o preparo lingüístico requerido para estudar livros
depreciadas pelos teólogos da crítica histórica. Logo de início e sem escritos por colegas em grego moderno, espanhol ou japonês - citando
exame pessoal da evidência, esses teólogos rotulam tais livros de dis­ apenas alguns exemplos? A busca da verdade promovida pela teologia
parate religioso popular. histórico-crítica tropeça nesse ponto: muito dessa literatura lingüisti-
Aos seus próprios olhos, a teologia histórico-crítica deseja pres­ camente inacessível tem de ser negligenciada.
tar assistência à proclamação do evangelho por meio de uma interpre­ Além disso, geralmente é difícil até mesmo procurar literatura
tação da Bíblia que seja cientificamente confiável e objetiva. Há, po­ que seja conhecida e acessível. Pode levar meses para se encontrar algo
rém, uma monstruosa contradição entre o que se diz querer fazer, por usando o sistema de empréstimo interbibliotecário. Explícita ou impli­
um lado, e aquilo que realmente se faz, por outro. À luz de tudo o que citamente, o espectro da pesquisa fica restrito à literatura acessível a
tenho dito, deveria estar patentemente óbvio que a maneira como a teo­ mim” . Muitas pessoas têm recorrido a um novo meio de lidar com a
logia histórico-crítica maneja a Bíblia não promove a proclamação do enxurrada de literatura. Os lingüistas especialmente recorrem a esse re­
evangelho, antes, retarda-a —na verdade, impede-a. Pior ainda, sequer curso, pelo qual a literatura que não emprega os mesmos métodos par­
fica claro que lidamos aqui com uma abordagem que realmente produz ticulares que um dado acadêmico prefere, é logo de início excluída.
uma interpretação confiável e objetiva da Bíblia, tal como é reivindi­ Mais e mais se observa o uso de outra tática questionável para
cado. Simplesmente não é verdadeiro que a teologia histórico-crítica contornar a dificuldade de se lidar com literatura que, devido ao seu
substitui impressões subjetivas por uma bem fundamentada descoberta tema, obviamente deveria ser pesquisada intensivamente: Um livro
da verdade, através de cuidadosa avaliação de argumentos. relevante é citado, e depois de um sumário distorcido, umas poucas
A contradição entre teoria e prática, entre ideal e realidade, mos­ linhas são avaliadas tão negativamente que parece não ser necessá­
tra-se quando a pessoa se familiariza com a literatura pertinente. Na ria nenhuma atenção posterior. Dessa maneira um acadêmico pode se
teoria, toda publicação histórico-crítica relevante a respeito de um dado poupar do trabalho que poderia atrasar por alguns anos a publicação
tema deveria ser levada em conta. Na prática, isto se mostra impossí­ de seu novo livro. Em vista das prevalentes condições, alguém poderia
vel devido à enxurrada constantemente crescente de publicações. justificar essa tática como sendo uma de defesa pessoal acadêmica.
Até que ponto a pesquisa literária de alguém deve ir no passa­ Não obstante, tal procedimento efetivamente afasta como de “discus­
104 O estudo da teologia histórico-crítica 105
Crítica histórica da Bíblia

são sem valor” livros aceitos como dissertações e, portanto, recomen­ lar descobertas da totalidade do espectro da pesquisa do Antigo e do
dados por reconhecidos professores teológicos - um estado de coisas Novo Testamento. Só é possível para ele, entretanto, em um dado mo­
que não parece receber atenção adequada. mento, se dedicar com profundidade somente a questões pertinentes
Concluímos que não há necessidade de ir além da consideração à área restrita daquilo em que estiver trabalhando. Suas observações
de como a literatura é empregada, para questionar seriamente a procla­ são até mesmo altamente determinadas pelas suas prévias investiga­
mada objetividade da teologia histórico-crítica. ções, de maneira que qualquer aceitação de novas idéias demandaria
A reivindicação de que a verdade é descoberta na base da argu­ uma quantidade excessiva de revisão de antigos pontos de vista. Tais
mentação crítica é outro tipo de auto-engano. Hipóteses mutuamente revisões não são esperadas quanto tantos outros deveres profissionais
opostas podem ser geralmente mantidas por argumentos de aparente­ reclamam ação, como palestras, trabalho administrativo, avaliação de
mente igual valor, e, algumas vezes, até mesmo pelo mesmo pesqui­ exames e ensaios, supervisão de dissertações, complemento da própria
sador. Dependendo de como alguém considera as autoridades estabe­ publicação e a edição de contribuição a periódicos acadêmicos.
Por essas razões, a aceitação de resultados de pesquisas mais re­
lecidas ou as evidências numa dada área, essa pessoa se deixará im­
centes por parte de acadêmicos que já têm uma opinião formada numa
pressionar mais por aquilo que confirma sua própria suposição. Se ar­
área abrangente, é inevitavelmente arbitrária. O nome do autor de uma
gumentos opostos são apurados na investigação, estes inevitavelmente
publicação e o da escola à qual ele pertence geralmente determinam
se tomam não-convincentes. Tal escrutínio, portanto, tende somente a
como a publicação e recebida. Sob tais pressuposições, a apregoada
corroborar ou estabilizar a própria tese do pesquisador.
objetividade da interpretação histórico-crítica da Bíblia está fadada,
A disposição básica da interpretação crítico-histórica da Bíblia
desde o início, ao insucesso.
para considerar suas próprias teses como provisionais e questionáveis
de modo nenhum implica a intenção real de estabelecer a verdade. Na
situação isolada em que um ponto de vista é alterado - o que ocorre de
Verdade e subjetividade
modo especialmente raro com acadêmicos de carreira - novos argu­
mentos, tão persuasivos quanto os anteriores, mas que apóiam a nova Em meio a emergente geração de acadêmicos prevalece certa
posição, são fornecidos. A argumentação racional nos meios acadêmi­ resignação em relação à verdade. Essa resignação e evidenciada nas
cos, alguém poderia concluir, é suscetível de prostituição.2 teorias de subjetividade. Na verdade, o corolário lógico disso deveria
Quanto às relações entre os acadêmicos, à parte de publicações, ser o fim do trabalho científico na teologia, mas essa conclusão não é
a tendência dominante é a de manter as posições já adotadas. Quando levada a sério. Entretanto, surge a questão de se a ciência está servindo
um deles envia uma publicação a outro acadêmico para revisão, a res­ apenas como meio para a auto-realização. Não se deveria desprezar,
posta comum é. Suas considerações são interessantes, mas não posso contudo, a boa consciência que as faculdades teológicas podem man­
concordar com elas”. Nenhuma razão é dada. E isso não represen­ ter quanto ao seu trabalho, em vista da relação entre oferta e demanda
ta uma falha de caráter, mas uma reação naturalmente emergente da que existe à medida que as igrejas geralmente fazem do estudo formal
maneira como as coisas são. O professor, em seu ensino, deve cobrir nessas faculdades um requisito obrigatório.
uma área relativamente ampla. Ele precisa estar em posição de assimi­ Cada vez mais, as mais novas gerações de teólogos são infiltra­
106 O estudo da teologia histórico-crítica 107
Crítica histórica da Bíblia

das pelo socialismo. O propósito salvador de Deus bem como a eterna tese é uma pressuposição de que algo é ou se comporta de certa maneira.
redenção em Jesus Cristo, estão sendo substituídos pelos objetivos hu­ Nas ciências naturais as observações empíricas servem como pressupo­
manos para o progresso do mundo. Esses objetivos são velados pelas sições básicas quanto a regularidades no reino natural. Tais observa­
palavras arbitrariamente selecionadas do chamado “Jesus histórico”, o ções são verificadas por meio de experimentos. Nas humanidades, em
qual é interpretado como um reformador social ou em revolucionário, contraste, as hipóteses, de forma alguma, possuem a mesma função e
dependendo do desejo do intérprete. Os textos preferidos incluem a não podem ser verificadas da mesma maneira. O estudo do Antigo e do
parábola do Bom Samaritano (Lc 10.25-37) e o discurso sobre o juízo Novo Testamento como ciência assumiu como seus, além de outros, as
final (Mt 25.31-46), assim como as palavras de Jesus referentes ao abordagens gerais usadas na historiografia crítica e na crítica literária.
Sábado (Mc 2.27,28). Nessa última passagem o termo filho do homem,
no versículo 28 é tomado para significar simplesmente homem, o que é
Historiografia crítica
lingüisticamente possível. A comunhão de Jesus à mesa com coletores
de impostos e pecadores (por exemplo, Mc 2.15-17) é tomada como
Na historiografia crítica o remanescente antigo e as evidências
prova de que ele mudou estruturas socialmente injustas e que, nisto,
lingüísticas são usados como fontes de informação sobre uma era pas­
nós deveríamos imitá-lo.
sada para a qual o próprio pesquisador data o remanescente e as evi­
Uma característica dessa abordagem é a teoria da projeção. O
dências. Nessa datação, as pressuposições já estão operando. Esse é
Antigo Testamento é posto de lado em sua maior parte como sendo
um importante componente na formação de hipóteses. Dois exemplos
irrelevante para nós por ser, inteira ou parcialmente, apenas uma cons­
ilustrarão o que foi dito:
trução intelectual, uma projeção. Ele é o resultado da então corrente Primeiro, se alguém presume que a parábola das Dez Virgens
estrutura patriarcal e reflete antigas condições de produção agrária; o (Mt 25.1-13) não foi proferida pessoalmente por Jesus, mas, antes, que
Antigo Testamento tinha a função de justificar e emprestar estabilida­ ela apareceu na igreja primitiva, então esse alguém a está colocando
de a essas estruturas e condições. De conformidade com essa teoria, em contexto diferente. Ela dá informação não sobre Jesus, mas sobre
até mesmo os Dez Mandamentos não são mais normativos para nós. É a igreja primitiva. Para analisá-la, o pesquisador a compara com o que
dito que Jesus os aboliu trocando-os pelo mandamento do amor. Mas já se conhece da igreja primitiva, não com o que é conhecido acerca
o que esse amor significa não é derivado da Palavra de Deus, mas sim, de Jesus.
determinado por meios sensuais. Segundo, se alguém presume, com base nas diferenças entre o
Os profetas são tidos como reformadores sociais. Amós serve de Evangelho de João e os outros três Evangelhos, que o autor de João
álibi para essa afirmação. não é João, o discípulo de Jesus, então uma série de inferências se
segue naturalmente: Nesse caso, o próprio autor não experimentou
pessoalmente aquilo que ele afirma sobre Jesus. Ele teve que modelar
A prática da teologia histórico-crítica sua apresentação a partir de fontes mais antigas. Isso levanta também
a questão sobre a natureza desses documentos mais antigos. E isso, por
Como qualquer ciência, a teologia depende de hipóteses. A hipó­ sua vez, levanta a questão adicional de como o Evangelho de João se
108 O estudo da teologia histórico-crítica 109
Crítica histórica da Bíblia

distingue das fontes sobre as quais foi baseado. suposições que já são mais ou menos aceitas. Sua aceitabilidade se
Agora, outras pressuposições vêm à baila em relação à teologia deriva das cuidadosas conexões estabelecidas com prévias pesquisas.
e às tendências do Evangelho, assim como sobre a natureza da comu­ Em outras palavras: A formação de hipóteses no Antigo e no Novo
nidade que ele reflete. Juntamente com isso, surgem questões quanto Testamento é um sistema auto-estabilizado.
ao contexto histórico para um ponto de vista religioso comparativo; Isso chega a ser uma tola brincadeira com a Palavra de Deus que
aqui a tarefa é a de distinguir entre o próprio ponto de vista de João e o não busca a Deus nem mesmo quando um pesquisador em particular
de suas fontes. Quais foram as principais influências sobre o autor do está convencido de estar prestando um serviço a Ele. Trabalho e pri­
Evangelho de João? Gnosticismo? Qumran? Judaísmo com tendências vação estão muito envolvidos —uma semana de trabalho de sessenta
gnósticas? Ou o autor tomou seus fundamentos diretamente do Antigo horas é coisa comum para esse tipo de pesquisa - e esse grau de esfor­
Testamento? Se suas fontes foram gnósticas, como ele se relaciona ço segue por toda a vida, até que faltem as forças intelectuais e físicas.
com elas: Polemicamente? Positivamente? Criticamente? A fim de que essa proposta de vida não seja em vão, as hipóteses do
pesquisador do Antigo ou Novo Testamento precisam receber reco­
nhecimento. Ele tem de lutar para conseguir honra. A única coisa que
Crítica literária dá a esse trabalho —que exige tanto esforço e sacrifício —a aparência
de realidade é o processo de dar e receber honra uns dos outros.
Na crítica literária a formação de hipóteses tem uma função di­
ferente. Procuram-se respostas para questões sobre a estrutura e tradi­
ção histórica do texto. Tais questões, entre outras, desempenham papel Os resultados da pesquisa
importante: Foi o texto formado por fatores orais, ou foi fixado em
forma escrita desde o início? Foi, então, transmitido de forma oral ou Com base em seu trabalho, o professor de teologia inevitavel­
escrita? Trata-se de uma unidade literária ou não? Ele reflete fontes mente obtém convicção segura de que a Palavra de Deus não pode ser
escritas ou um complexo unificado de tradições compostas de várias entendida sem o uso cuidadoso dos construtos hipotéticos da ciência
tradições individuais, ou de uma tradição em particular? Mostra sinais do Antigo e do Novo Testamento. Ele se tom a convencido disso e,
de dependência literária? Parece ter sido editorialmente reformulado, portanto, habilitado a passar tal convicção aos seus ouvintes.
talvez mais de uma vez? Há padrões reconhecíveis na maneira como Uma vez que os estudantes não podem atingir o mesmo grau de
essa unidade literária em particular se encontra conectada? controle dos “resultados da pesquisa” do qual o professor se assenho­
Essas são questões levantadas aleatoriamente e não compõem reou ao longo de anos de estudo, eles se tomam inseguros e passam a
uma lista compreensiva. Cada uma das questões é respondida com depender de tudo o que o professor diz. Em vez de suplicar - não ape­
base em suposições. Nenhuma dessas suposições admite verificação nas ritualisticamente, mas com expectação verdadeira - que o Espírito
definitiva. Meramente demonstram ser sustentáveis por meio de sua Santo lhes abra a Palavra de Deus, eles tomam um comentário, uma
plausibilidade e do talento do pesquisador em fundamentar suas su­ obra que “explica” um livro da Bíblia verso a verso à luz da crítica
posições através de argumentações. Elas se tomam aceitáveis a outros histórica. Seu estudo é tão condicionado a encontrar dificuldades no
pesquisadores por meio da sua adequação aos vários complexos de texto que não mais concebem a descoberta do sentido do texto sem o
110 O estudo da teologia histórico-crítica 111
Crítica histórica da Bíblia

auxílio de um comentário. são os argumentos. Como regra, nas instituições de ensino esses ar­
Tudo o que leva a disparar a necessidade de um estudante que gumentos de apoio vem a bada somente quando estao sendo lançados
lê uma passagem olhar o que os experts dizem, é lembrar-se de uma como relativamente novos e ainda não totalmente aceitos; ou quando
hipótese crítica. Suposições críticas são postas em íntima ligação, e o professor encontra objeções aos seus comentários que o forçam a
levantar apenas uma delas tende a despertar todas as outras. dar as razões para o seu ponto de vista. Existe, é claro, um cuidado na
O estudante de teologia é geralmente incapaz de detectar o que orientação em certas áreas do conhecimento e em casos particulares,
Deus diz em sua Palavra, e assim passa à sua congregação a convicção mas essa não é a regra. E nem poderia ser, pois o edifício da ciência
na qual foi doutrinado: A Sagrada Escritura libera seu significado ape­ consiste de uma pletora de hipóteses, cada qual dependendo de seu
nas através do uso do método histórico-crítico. Os membros da igreja apoio para numerosos argumentos.
recebem uma versão condensada daquilo que aprendeu no seminário. Uma série de suposições tendo o caráter de um consensus com-
Quanto maior o esforço para obtê-lo mais precioso se tom a tal munis, isto é, que seja geralmente aprovada entre os cientistas de
conhecimento. Além disso, esse conhecimento traz a honra de poder uma agremiação, forma uma grade sem a qual é simplesmente im­
se apresentar diante daqueles a quem ele ensina ou pastoreia como
possível se manter ou processar a informação apresentada em pales­
um especialista”. O simples uso da Palavra de Deus com o objetivo
tras ou seminários.
de ser um praticante da Palavra não traz tanta honra, pois quando este
As suposições básicas são colocadas no mesmo nível de fatos,
é o padrão, o Espírito Santo confere a honra a quem ele quer. E não
não em teoria, é claro, mas certamente na aplicação prática. Isto é,
será necessariamente para alguém que seja respeitosamente saudado
alguém as utiliza como se fossem fatos. Qualquer um que incorpore
como “Pastor”.
tais suposições básicas em seu pensamento é influenciado e finalmente
Subjugados pela especialidade” dos teólogos, o estudante, a
transformado por elas.
pessoa que é consagrada, ou o membro de igreja perdem a confiança
O risco envolvido no estudo teológico crítico é assim tão grande
na própria capacidade de pessoalmente entender a Palavra de Deus.
porque tais mudanças tomam lugar de modo inexorável e impercep­
Outra perda típica é a da alegria que o estudante um dia teve na leitura
da Bíblia. tível. A pessoa respira numa atmosfera tão mortal como aquela po­
luída com monóxido de carbono, um gás inodoro e incolor, difícil de
ser detectado. Não menos difíceis de serem detectados são os efeitos
Suposição e fato danosos do estudo da teologia crítica. A única esperança é a de que a
graça de Deus intervenha de maneira distinta.
Em nenhum outro lugar as coisas são “assumidas pela fé” como A objetividade do trabalho científico é em grande parte uma
no estudo científico, pelo menos no estudo teológico. Há certamente ilusão. N a prática, elementos extra-científicos desempenham papel
argumentos para suportar uma hipótese em particular. Mas na média, considerável. Alguns exemplos são: a formação de grupos;’ as habili­
de fato até mesmo o estudante mais cuidadoso aceita 80— 90 por cen­ dades pessoais, personalidade e habilidades relacionais na defesa de
to das hipóteses sem estar em posição de avaliar seus argumentos. uma idéia; o “nome” do cientista (com variável significância em di­
Ele aceita 40—50 por cento delas, talvez mais, sequer sabendo quais ferentes campos teológicos); se a pessoa detém posição-chave como
112 Crítica histórica da Bíblia O estudo da teologia histórico-crítica 113

livre-docência, ou se é diretor de um instituto, e mais importante, se que o professor deseja que seja feita em preparação para um
é editor de um periódico ou conselheiro para publicadores em relação projeto que ele está completando, ou na revisão de material
a séries monográficas. já completado. O estudo procede, então, da mesma maneira
Ostensivamente, o estudante está em posição para formar uma pela qual as crianças constroem casas ou carros com blocos
opinião objetiva. Na realidade, a tomada de informação é antes passa­ de Lego. É claro que é possível haver variações, mas essas
da por um crivo. O crivo, ou filtro, é formado... acabam sendo menos do que o desejado quando comparadas
com o modelo planejado, como o professor ou um aluno mais
p o r professores. A escolha que o estudante faz da faculdade, avançado facilmente podem demonstrar. Ao longo do mate­
geralmente baseada em critério totalmente diferente daquele rial, o resultado esperado está garantido; não obstante, o estu­
mantido pela faculdade escolhida, pode ser decisiva para a dante fica ostensivamente “auto-convencido” . Dessa maneira
orientação teológica que ele recebe. rebeldes são domesticados e adequados ao sistema. A honra
de terem sido levados a sério como pesquisadores adiciona
pela limitação de possibilidades para estudar todo o espectro de
livros relevantes. O estudante poderá trabalhar apenas com peso à atratividade disso tudo.
uma seleção e assim ater-se primariamente àquilo que é re­
comendado nas aulas e palestras. Até mesmo o estudante que
Socialização e conformação
faz escolhas independentes tem apenas um vislumbre de pe­
quena parte do que existe disponível. A literatura nas biblio­
O curso de estudos tem o caráter de uma socialização secundá­
tecas departamentais e universitárias é previamente filtrada.
ria. O estudante é profundamente afetado. Ele adentra o estudo formal
Literatura cristã de autores que crêem na Bíblia é praticamen­
como um novato, como alguém que nada sabe ou pode fazer e como
te tabu. A produção de algumas publicadoras não é levada a
um ignorante das práticas e regras do novo jogo. A fim de ser aceito,
sério e não pode ser alistada na bibliografia de manuscritos ele tem de possuir tais práticas e regras e obter a especialidade e o co­
formais, a menos que o estudante esteja preparado para rece­
nhecimento que contam ali.
ber uma nota baixa. Também, o professor não está realmente O estudante é inundado por uma verdadeira enchente de infor­
familiarizado com esses trabalhos e poderá se sentir pressio­ mações que nenhum artifício pedagógico poderia reter. O professor
nado quando o estudante os menciona em seus escritos. O dissemina em aulas e palestras os resultados de uma vida de trabalho,
professor teria de tomar tempo, ler e interagir com eles. Já a qual é baseada no trabalho de prévias gerações de pesquisadores.
pressionado pelo tempo e convencido de início da dubiedade De sua parte, os estudantes têm dificuldades só para compreender os
dessas publicações, o professor geralmente as rejeita. métodos pelos quais os resultados do professor são obtidos. Em vista
pelo próprio envolvimento acadêmico do estudante. É ofereci­ desse transbordamento de informação fica difícil para o estudante se
da ao estudante a oportunidade de “participar da inquisição apegar aos insights que tinha da Palavra de Deus no início do estudo
científica”. Uma visão mais próxima, porém, revela que seu formal, especialmente quando tais insights são desqualificados como
envolvimento será em tarefas rotineiras que demandam e “não-científicos” . O estudante crente geralmente encontra oposição
114 Crítica histórica da Bíblia O estudo da teologia histórico-crítica 115

dos instrutores das seguintes formas: apreendida. Ele é compelido a pensar, falar e escrever histórico-criti-
Condescendência: “Estou certo de que você acabará entendendo!” camente. À parte da intervenção aberta da graça de Deus, isso leva a
Tentação: “Por favor, aceite este ponto de vista ao menos na uma grave mudança de pensamento e fé. A pessoa não é mais a mes­
teoria e veja como ele funciona!” ma, pois seu manejo da Palavra de Deus é fundamentalmente transfor­
Sedução: “Sua fé é tão pequena e seu Deus tão fraco que você se mado, até mesmo a sua leitura pessoal para edificação. Aquilo que foi
recusa a aceitar esta idéia?” aprendido nos estudos se coloca entre o cristão e a Palavra, barrando
o acesso.
Assim o estudante é conduzido a aceitar pessoalmente idéias que
conflitam com aquilo que aprendeu anteriormente na Palavra de Deus.
Ao mesmo tempo, o estudante enfrenta a poderosa pressão do
Palavras e significado
grupo. Companheiros estudantes são “co-instrutores”, dando orienta­
No manejo prático da tradição cristã comum à teologia históri­
ção decisiva no processo de socialização. Isso é especialmente verda­
co-crítica, ganha espaço algo que, no estudo do gnosticismo, veio a
deiro no que diz respeito aos veteranos, ou para os que se distinguem
ser chamado de pseudomorfose. A pseudomorfose ocorre quando con­
por alguma habilidade ou aptidão especial. Um estudante crente, que
ceitos são esvaziados de seu sentido original e preenchidos com novo
por causa de suas atitudes em relação a Deus não está disposto a acei­
conteúdo que nada mais tem em comum com o sentido original do
tar certos métodos ou resultados da crítica histórica, geralmente é dis­
que o próprio nome. Essa confusão de sentidos é encontrada em cada
criminado. Tal estudante recebe sorrisos condescendentes, é zombado
ponto da ciência teológica. Conceitos bíblicos tais como: justificação
e - ainda que secretamente respeitado - tratado como um forasteiro.
pela fé, substituição, graça, redenção, liberdade, pecado original, fé,
Se ele é capaz de articular um ponto de vista com habilidade, pode oração e a filiação divina de Jesus continuam a ser usados, mas com
até receber algum respeito aqui e ali. Mas pode contar com a plena significados completamente diferentes.
aceitação apenas de pontos particulares, no máximo, e esses ainda se­ Por exemplo, que Jesus seja Filho de Deus, na teologia histórico-
rão pontos que não se distanciem muito da estrutura tradicionalmente crítica freqüentemente não significa que ele é “Deus de Deus, Luz de
aceita pela disciplina científica em questão. Luz, Próprio Deus do Próprio Deus”. Esse conceito é entendido como
A medida que vai sendo iniciado no modo de pensamento his- apenas uma cifra que expressa que houve algo especial com o Jesus
tórico-crítico, o estudante se tom a alienado daqueles com os quais histórico” que o distingue de outras grandes figuras da História, e que
partilhava íntima comunhão na fé. Eles não falam mais a “mesma lin­ nele nós estamos —de alguma forma —em contato com Deus. Em relação
guagem”, e o estudante tem dificuldade para ouvi-los. Não os entende a isso alguém ouve a expressão que diz que cada época tem sua própria
mais e vice-versa. Isolada, a pessoa se coloca na perigosa situação de sorte e deve operar sua própria cristologia. Tenho ouvido essa fórmula
se julgar superior e se tom a mais suscetível à pressão do grupo repre­ pelos últimos trinta anos. Eu mesma costumava apregoar isso e, com
sentado por instrutores e colegas estudantes. grande fervor, esperei por essa cristologia —em vão. Descobri que essa
O estudante também tem de apresentar trabalhos escritos que fórmula era apenas um alvará que permitia que aquilo que a Palavra de
demonstrem que a abordagem histórico-crítica foi suficientemente Deus diz acerca de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo fosse posto de
7/6 Crítica histórica da Bíblia O estudo da teologia histórico-crítica 117

lado como não-vinculante, como uma cristologia do passado. o reino do Filho do seu amor (Cl 1.13,14).
E comum ouvir acadêmicos afirmarem que Messias é apenas um Dizem que os velhos conceitos, tal como usados originalmen­
título honorífico, assim como Filho de Deus e Salvador. Tais títulos te, não são mais acessíveis para o homem moderno, e assim, devem
foram atribuídos a Jesus pelos diversos segmentos do cristianismo pri­ ser transpostos para a situação contemporânea. Exige-se que seja feita
mitivo. Foram usados para expressar “relevância” àqueles que associa­ uma distinção na Palavra de Deus entre o que é dito e o que é signifi­
vam suas esperanças religiosas a tais títulos. Hoje muitos não hesitam cado. Mas a Escritura afirma, em resposta a tais asseverações: “Toda a
dizer que, por meio de tais títulos, Jesus “foi ludibriado por seus segui­ Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão,
dores” - ele foi aclamado como algo que na verdade nunca pretendeu para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem
ser. Qualquer um que adote essa maneira de pensar abandona a fé pura de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra”
na Palavra de Deus, e como resultado traz destruição pessoal para a (2Tm 3.16,17).
experiência com Deus. “Se você crer, receberá”, afirmou claramente É dito também que a Sagrada Escritura é tanto Palavra de Deus
Lutero. Se eu descreio ou creio apenas parcialmente naquilo que a quanto palavra do homem, assim como nosso Senhor Jesus é Deus
Palavra de Deus diz sobre Jesus, então ele será correspondentemente e homem conforme a confissão da igreja. A mesma confissão, entre­
menos para mim pessoalmente. Experimentarei Jesus apenas no nível tanto, afirma que essas naturezas de Cristo são “sem confusão, sem
que minha fé permite, e minha atitude carecerá de suas bênçãos e de separação” .4 Portanto, não é permissível nem possível que se separe a
sua comunhão. Não nos deixemos dissuadir da posição de que Jesus é palavra humana condicionada ao tempo, da eternamente válida Pala­
o Messias, o Filho de Deus, o Salvador, até mesmo se formos acusa­ vra de Deus. Numa mistura de limalha de ferro e areia, alguém poderia
dos de usar uma filosofia obsoleta e não-satisfatória porque, à vista de separar o ferro usando um ímã. A Palavra de Deus, porém, não é uma
muitos, aceitamos meras palavras como se fossem fatos. mistura da válida Palavra de Deus com a palavra do homem condicio­
Há apenas um conceito relacionado à salvação a partir da Sagra­ nada ao tempo, de forma que possam ser separadas uma da outra.
da Escritura que não foi incluído na confusão de termos acima men­
cionada: o sangue de Jesus. Tal conceito não foi redefinido, mas sim­
plesmente rejeitado. Foi posto de lado sob a alegação de que falar de Conseqüências da teologia histórico-crítica
sangue é um resquício duvidoso de uma era em que, tanto para judeus
quanto para não-judeus, o sacrifício sangrento estava na ordem do dia. Estas linhas não foram escritas com o propósito de condenar
Somente o Espírito Santo pode lançar a luz que precisamos para pessoas pelas quais, afinal, nosso Senhor Jesus foi à cruz. Antes, o
olhar através dessa confusão de termos. Podemos pedir a Deus a sa­ propósito é o de caracterizar o perigo que o sistema de teologia his-
bedoria para isso. Estamos lidando aqui com uma teia de engano tão tórico-crítico apresenta. O que tentei fazer é comparável à colocação
finamente urdida e entretecida que apenas podemos deslindar com o de um rótulo de aviso numa garrafa de líquido venenoso, a fim de
auxílio do Espírito Santo. Não nos enganemos - os professores de que ninguém inadvertidamente beba do conteúdo pensando tratar-se
teologia crêem naquilo de que falam. Eles próprios estão enredados na de uma delícia nutritiva.
teia, até que graciosamente Deus os retire do domínio das trevas para Entendendo o que envolve o estudo crítico da teologia, a pessoa
119
118 Crítica histórica da Bíblia O estudo da teologia histórico-crítica

não mais assumirá automaticamente que o chamado para ser um envia­ em todas as ciências e artes dos egípcios. Contudo, o preparo
do missionário, um evangelista ou um pastor e mestre deveria implicar para liderar seu povo no Êxodo do Egito para a Terra Prome­
forçosamente o estudo de teologia (veja E f 4.11). No mundo a pessoa tida foi o de uma educação de quarenta anos como pastor no
precisa, se possível, completar um curso de estudos a fim de obter um deserto, trabalhando para seu sogro, Jetro.
Josué recebeu seu preparo ao longo de décadas de serviço subor­
bom salário e “fazer algo na vida” . Este mundo não é o nosso lar, pois
a nossa pátria está nos céus (Fp 3.20). Somos admoestados a não nos dinado a Moisés.
conformar com o mundo (Rm 12.2). Não podemos nos esquecer que
Deus diz: “Dá-me, filho meu, o teu coração, e os teus olhos se
o mundo nos odeia (Jo 15.19; lJo 3.13). Somos soldados de Jesus
agradem dos meus caminhos” (Pv 23.26).
Cristo, e nenhum soldado avança sem suas ordens, especialmente em
campo inimigo. Se o faz, pode esperar pelo pior.
Um jovem que enfrente a questão de se aplicar ao estudo teo­
lógico crítico deveria, de coração puro, dispor-se a abrir mão de seus
planos pessoais e pedir a Deus a iluminação da sua vontade. O indiví­
duo deveria obter direção clara com respeito ao chamado do Senhor
não somente para se tom ar um componente estratégico no corpo de
Cristo (E f 4.16), mas expressamente também para o estudo formal
de teologia.
Qualquer pessoa que o Senhor chame para o treinamento teoló­
gico formal deveria entregar-se alegre e confidentemente a essa tarefa
como um enviado do Rei que sabe como proteger seus súditos até
mesmo dentro de uma faculdade de teologia. Contudo, esse estudan­
te terá de calcular seus movimentos com cuidado, como um soldado
atrás das linhas inimigas.
Quem não recebeu tal chamado para o treinamento teológico
formal deveria saber que muitas outras possibilidades estão aí, postas
à disposição pelô nosso Pai celeste, para preparar a pessoa para o seu
serviço:

José não foi treinado na academia real de administração para ser


o segundo no comando sobre o Egito apenas abaixo de Faraó,
mas, antes, no calabouço real.
Moisés, reconhecido como filho da filha de Faraó, foi instruído

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