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Das estratégias aos diálogos: transformações na terapia de família.

Eloisa Vidal Rosas é psicóloga clínica, terapeuta de família e casal, mestra em


Comunicação (UFRJ), facilitadora de processos coletivos, professora e supervisora da
formação em Terapia de Família no Instituto Noos.

Uma pessoa, sua vida, sua obra, seu estilo, está marcada pela epistemologia a
qual professa; um corpo teórico/instrumental é encarnado na vida profissional e
conceitual de quem a vive (Fuks, 2004). A clínica de onde falo tem uma origem
sistêmica e, neste momento, é fortemente marcada pelas chamadas “terapias pós-
modernas” ou “abordagens conversacionais narrativas”, baseadas no construcionismo
social. Há algum tempo, assim como muitos outros terapeutas de família, me
entusiasmei pelas possibilidades existentes em perspectivas mais colaborativas na
prática: “Além de nossas referências dentro dos aportes construcionistas, vivemos uma
história que foi tecida no contexto do pensamento sistêmico, e continuamos dialogando
com Gregory Bateson, Heinz Von Foerster, Humberto Maturana e muitos outros autores
dentro desta tradição. Fizemos grandes amigos que também são referências e
interlocutores próximos ao nosso trabalho cotidiano, como Tom Andersen, Saúl Fuks,
Marcelo Pakman, Marilene Grandesso, entre outros. Alguns desses amigos conhecemos
primeiro através de diálogos com os textos aos quais tínhamos acesso. A curiosidade
sobre eles nos fez trazê-los para mais perto, para conversas pessoais.” (Corsini e Rosas,
2015)
A virada narrativa e pós-moderna atingiu a terapia de família no final da década
de 1980 e tornou-se uma forte influência nos anos 1990. Desde então, a terapia de
família tem privilegiado uma relação terapêutica colaborativa (Anderson, 1997),
participativa (Hoffman, 1991) e de coautoria (White, 1991). A natureza representacional
do conhecimento, a ideia de que este seria algum tipo de representação de um mundo
real foi posta em cheque. Mais do que uma evolução epistemológica, o giro linguístico
pós-moderno fez com que muitos terapeutas de família assumissem outro
posicionamento. A conversa terapêutica se tornou um diálogo no qual uma relação
participativa e colaborativa é privilegiada. As primeiras abordagens de terapia de
família passaram a ser contestadas e seu alcance questionado de tal maneira que os
terapeutas atuais dificilmente intitulam-se como pertencentes a apenas uma escola. Essa
escolha pelo diálogo foi oposta a uma relação terapêutica técnica, hierárquica e

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intervencionista, que havia dominado a área por muito tempo – por exemplo, na forma
das terapias de família da escola de Milão e estrutural.
A partir destas perspectivas narrativistas, as intervenções clássicas se
transformam em formas de se posicionar (Harré, 2004) e de participar nas conversações
terapêuticas; a ênfase nas metáforas conversação, narrativa e história concentram a
atenção em como a linguagem cria realidade/realidades e passaram a influenciar
fortemente a minha prática.
Conforme Emerson Rasera (Rasera e Japur, 2004), “a delimitação do que é uma
terapia construcionista também é uma construção retórica, isto é, se dá segundo
determinados objetivos contextuais”.
As terapias baseadas nas ideias pós-modernas não estão voltadas para a busca de
um conhecimento universal que possa servir, por exemplo, para o diagnóstico – seu
foco está em compreender os significados atribuídos à experiência vivida a partir de
uma pluralidade de ideias e vozes. Não se trata de corrigir um déficit, mas de
possibilitar a criação de contextos para que os clientes acessem suas possibilidades e
encontrem um lugar de autores de sua própria vida.
As minhas transformações epistemológicas – perpassadas pela certeza de que a
minha única certeza é a de que não há uma certeza – são atualmente mais coerentes com
a metáfora do GPS (Global Positioning System) como orientador. A bússola aponta a
direção, mas creio que o máximo que posso conseguir é averiguar onde estou. Essas
coordenadas se tornam importantes para encontrar um lugar de conforto para terapeuta e
cliente(s) (Andersen, 1996). Saber “onde estamos” implica num diagnóstico da situação,
construído colaborativamente através de um modelo de entrevista reflexiva/apreciativa
(Cooperrider e Whitney, 1995). A intenção é chegar a uma visão compartilhada do
“problema”, para que possamos chegar a uma perspectiva compartilhada das
“soluções”. A tarefa de elaborar um diagnóstico sobre a situação é um esforço conjunto
de todos os envolvidos no “sistema determinado pelo problema” (Goolishian, 1989)
para compreender e construir uma descrição – uma “teoria local” (Geertz, 2001) – sobre
a experiência que está sendo vivenciada. A partir desse relato é que se organiza qual
será o papel do terapeuta e de todos os participantes para a dissolução do problema que
originou a consulta – e do sistema terapêutico determinado pelo problema. Todos os
“coadjuvantes” – familiares, amigos, profissionais que fazem parte da equipe de
cuidados – podem e devem, para maior riqueza da rede de conversas, receber o convite
para participar de alguma maneira, tanto aqueles que podem colaborar para a

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manutenção do problema quanto aqueles que podem contribuir para dissolvê-lo. O
trabalho sobre histórias e narrativas – sua desconstrução e sua reformulação – são
maneiras de participar dos relatos que desempenham um papel central (Myerhoff,
1986). Os modelos narrativo e colaborativo fornecem o cenário para que se possa
exercitar um olhar generoso, que não procura vítimas ou culpados, erros ou acertos,
olhar este que singulariza cada encontro, promovendo aquilo para o qual Spinoza já
apontava como ‘bons encontros’, os que potencializam positivamente o existir. Na
mesma onda, um olhar que promove e valoriza habilidades e conhecimentos prévios:
não é uma questão de quanto, mas de como estas habilidades e conhecimentos podem
ser exercidos, sem comparações de melhor ou pior. (Não seria este um dos critérios de
bem estar... a utilização de nossas capacidades até onde as podemos expandir naquele
momento?)
Algumas bifurcações se apresentaram no meu percurso. Uma das vantagens de
uma postura construcionista é a possibilidade de transitar por diferentes conceitos,
mantendo a criatividade alimentada pela curiosidade, o que possibilita atender ao
desafio de manter as técnicas úteis advindas de outras teorias, tais como as utilizadas
pelos criativos terapeutas pioneiros da terapia sistêmica: Virginia Satir (1967) e seus
exercícios para desenvolver habilidades comunicacionais, os genogramas desenvolvidos
por McGoldrick (2001), a utilização de rituais, proposta por Evan Imber Black (1989),
por exemplo. Cecchin (1993) nos desafia a atuar sem restrições (teóricas), desde que
assumindo a responsabilidade por nossas ações. Creio que esse conceito de
“irreverência” frente a uma rigidez teórica também traz, na minha interpretação, um
convite a uma clínica menos grave, menos sisuda, onde o jogo, o prazer e o riso entram
como tempero para conversas sobre problemas e possibilidades. Não podemos esquecer
que a terapia se processa na vida, não no espaço físico do consultório.
Um dos pressupostos que guiam a minha curiosidade é a crença de que os
clientes são os especialistas nas suas vidas (Anderson & Goolishian, 1998); são eles que
conhecem sua história, os caminhos possíveis, e detém a experiência relevante para
abordar a situação problemática. Assim, vejo atualmente meu papel menos como uma
“terapeuta” ou “curadora” e mais como uma facilitadora de processos e conversas
criativas. Facilitar um encontro é não tentar controlar os outros em direção a resultados
predefinidos, mas ajuda-los a alcançar o que querem; o facilitador não só ajuda os
participantes a se auto administrarem como ajuda que o processo de pensamento seja
auto-organizado. As técnicas que pensamos têm a finalidade de sustentar a dinâmica

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auto-organizada. Para manter viva em mim a “neutralidade”, e para que essa postura me
aproxime do interlocutor, lanço mão de dois recursos: a ideia da neutralidade como um
estado de curiosidade (Cecchin, 1987) – enquanto me mantenho curiosa não fecho uma
“verdade” – e a ideia da neutralidade como uma técnica. Segundo Michael White, “... a
neutralidade no contexto tem um significado. Por isso e porque as crenças e os valores
do/a terapeuta não podem ser enterrados, eu compreendo que neutralidade é só um
nome de uma técnica.” (White, 1986). Alio a estes conceitos a proposta de Marcelo
Pakman (1995) sobre a “paixão educada”, o reconhecimento de meus afetos como
instrumentos soberanos no meu ofício, a ressonância (Elkaïm, 1990) das emoções como
ferramentas, depois de trabalhadas, para a conexão, a possibilidade da inclusão da
minha própria perspectiva e da minha voz, sem ser anulada e sem ser privilegiada. Um
olho no processo, outro no conteúdo.
Para que um terapeuta possa desenvolver uma relação colaborativa com seus
clientes, se faz necessário que abra mão do lugar de especialista, de detentor de um
conhecimento especializado; para resistir às tentações do poder e da arrogância, o
conceito de “não saber” foi apresentado por Anderson e Goolishian (1998). Não saber
refere-se à situação em que o terapeuta demonstra uma curiosidade genuína pela história
do cliente. O terapeuta não sabe a priori, mas ouve com atenção a história do cliente,
acredita nela e se junta a este na exploração das experiências dele. “Não saber exige que
nosso entendimento e nossas explicações e interpretações na terapia não sejam limitadas
por experiências anteriores nem por conhecimentos ou verdades formadas
teoricamente” (pag. 38). O conceito de não saber enfatiza o conhecimento do cliente e
estimula o terapeuta a ser crítico em relação a si mesmo.

Keeney (1987) introduz o conceito de estética na terapia, o que não aponta para
o julgamento do que é certo e do que é errado, mas para uma “arrumação” harmoniosa.
É um organizador precioso para a/o terapeuta, quando esta/e se sente demasiadamente
atraída/o por alguma ideia do que seria “o melhor”, o que implica no risco de diminuir a
liberdade em explorar opções. O termo ‘estética’ vem de aisthesis, “sentir com”. O
contrário disso é anestesia, “não sentir com”. “A estética é a ciência que cuida das
constelações simultâneas do sentir.” (Castiel, 1996). Segundo Allman (2000), “O
terapeuta de família é como um artista em busca da beleza e unidade da estrutura. É
através do processo estético que flexibilidade e diferenciação são mais bem
desenvolvidos. Identificar a natureza dos arranjos estéticos significativos, dentro dos

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sistemas familiares, é a diferença que faz a diferença ao definirmo-nos como terapeutas
de família.”.
Fuks (2004) se refere à terapia como um “artesanato de contextos”. Um
comportamento inadequado, ações que levam ao sofrimento, aquilo que anteriormente
chamávamos de “sintoma”, ocorre em determinado contexto. Assim, a transformação
vai ocorrer, talvez com impactos diferenciados, para todos os que transitam nesse
cenário. O sintoma, desde esse ponto de vista, não é considerado como propriedade do
indivíduo, mas sempre contextualizado, o sujeito compreendido como conhecedor da
sua experiência, especialista na sua vida (Anderson & Goolishian, 1998) e produtor
ativo de mudanças a partir de sua relação com seus diversos contextos de pertinência,
desde o biológico, até o cultural. Sintomas ou problemas estão apoiados e são gerados
em meio a narrativas históricas, individuais e relacionais que os mantém, na falta de
alternativas mais viáveis e menos sofridas. O pensamento construcionista social fornece
ferramentas para promover uma rede de conversa que cria o contexto para a reflexão,
que promove a autoria, o agenciamento.
Na sessão o terapeuta introduz observações que podem ser descritas como
diferenças significativas – nem banais, nem excessivas (Andersen, 1996) – em relação à
descrição proposta originalmente pela família, a partir das quais surgem novas
perspectivas compartilhadas que aumentam os graus de liberdade do sistema. O estilo
terapêutico que deriva deste ponto de vista é respeitoso, minimalista. A sessão de
terapia é mais parecida a uma conversa com um especialista em ‘ver mais lados das
coisas’, que sabe acompanhar o grupo para que o conjunto família-terapeuta vislumbre
as múltiplas perspectivas ou incorpore, pelo menos, pontos de vista alternativos que
permitam resoluções originais de problemas crônicos. As descobertas e as mudanças
que resultam da conversação terapêutica são necessariamente propriedade da família
que consulta, é o resultado de sua própria participação única na coevolução das ideias
que se foram dando entre o terapeuta e a família no curso da entrevista. Os processos de
mudança e transformação, razão de ser da terapia, necessitam de cuidados para
transcorrerem de forma satisfatória.
A minha teoria favorita consiste numa teoria sobre as vantagens de “suspender”
(Maturana e Varela, 2001) toda a teoria e aumentar a capacidade de surpresa e
curiosidade que vão guiar e serão guiadas por perguntas. Não há uma teoria sobre
patologia, doença, disfunção, o que me levaria a construir um diagnóstico fundamentado
no meu saber “sobre” o cliente, o que também orientaria uma estratégia definida de

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ação. Essa teoria é corolário de apostar nos conhecimentos e habilidades do outro,
conhecimentos e habilidades que podem não estar disponíveis ou reconhecidos pelo
cliente naquele momento. Essa minha forte crença me assegura um estado de
curiosidade que não se contenta com a história saturada pelo problema com que uma
pessoa chega à terapia.
Os mosaicos selecionados acima constituem parte de meu estilo e contribuem
para facilitar uma conexão especial a cada encontro. Procuro trabalhar como se cada
encontro fosse o último, ou único. Essa é a minha responsabilidade, que contém tudo o
que vivi na minha vida de estudo e treinamento, como terapeuta e como pessoa de uma
maneira geral. Quando percebo uma mudança que gera outras mudanças, no presente,
no passado e no futuro na vida dos clientes (que também geram mudanças na minha
própria vida), isso me alenta e emociona: significa uma transformação na “herança” que
será legada para outras gerações. Estas experiências múltiplas compõem a minha
bagagem, onde posso procurar ferramentas que me forneçam pontos de apoio para que
nos sustentemos mutuamente, terapeuta e clientes, e para que não corramos a buscar a
segurança quando surge a incerteza, a imprevisibilidade, a instabilidade, matérias
primas para a mudança e a transformação.

Bibliografia

Allman, L. R. A preferencia estética: superando o erro pragmático. NPS 17 ano


IX numero 17
Andersen, T. Processos Reflexivos: Noos, Rio de Janeiro, 1996.
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Castiel, S. Em busca de um terapeuta poético. In L. C. Prado (org.) Famílias e
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Cecchin, G. Hipothetizing, circularity and neutrality revisited: an invitation to
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__________ De la estrategia a la no-intervención: hacia la irreverencia en la
practica sistémica. Sistemas Familiares, dezembro 1993

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Cooperrider, D. L. Introduction to Appreciative Inquiry. In W. French & C. Bell
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Corsini, L. e Rosas, E. Mixing voices: interchanges and reflections on the
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PERSPECTIVES ON GROUP WORK. Taos Institute, Chagrin Falls, 2015
Elkaïn, M. Se você me ama não me ame: Papirus, 1990.
Fuks, S. “Craftsmanship of contexts”: an yet unfinished story of my connection
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__________ Entrevista com Saúl Fuks. Entrevista realizada por R. Rapizo. Nova
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Geertz, C. Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa: Vozes,
2001
Goolishian, H. e Winderman, L. Constructivismo, autopoiesis y sistemas
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Harré, R. Positioning Theory http://www.massey.ac.nz/~alock/virtual/welcome.htm,
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Imber Black, E. Transiciones idiosincráticas del ciclo de vida y rituales
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Keeney, B. La Estetica del Cambio: Paidos, Buenos Aires, 1987
Maturana, H. e Varela, F. A árvore do conhecimento: Palas Athena, 2001.
McGoldrick, M. As mudanças no ciclo de vida: Artmed, 2001.
Myerhoff, B. 1986: “Life not Death in Venice: it’s second life”. In Turner, V.
and Bruner, E. (eds). 1986
Pakman, M. Investigacion e intervención en grupos familiares. Una perspectiva
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Juan Manuel Delgado e Juan Gutierrez Madri: Síntesis, 1995.
Rasera, E. e Japur, M. Desafios da aproximação do construcionismo social ao
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Satir, V. Terapia do grupo familiar, um guia: Francisco Alves, 1967.
White, M. Negative explanation,restraint and double description: a template for
family therapy. Family Process, 25(2). 1986

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