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Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.

org> © Ciências & Cognição


S u b me t i d o e m 1 6 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7

Artigo Científico

Do herói ficcional ao herói político


From the imaginary hero to the political hero

Hilda Gomes Dutra Magalhães, Luíza Helena Oliveira da Silva e Dimas José Batista

Universidade Federal do Tocantins (UFT), Palmas, Tocantins, Brasil

Resumo

Partindo do pressuposto de que a literatura materializa os valores ideológicos de um determinado gru-


po, pretendemos neste artigo refletir sobre as relações existentes entre o perfil dos personagens das
narrativas de massa consumidas pelos eleitores e a imagem de político vendida/administrada pela mí-
dia em campanhas eleitorais. Utilizando como suporte teórico a Análise do Discurso, pudemos obser-
var que tanto nas sociedades capitalistas quanto nas não capitalistas, temos uma mídia que constrói,
fabrica e inventa heróis políticos. A mitificação da dimensão política corresponde simetricamente aos
desejos e anseios de proteção, amparo e conforto dos eleitores, perdidos num mundo com valores es-
senciais fragmentados. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 18-30.

Palavras-chave: herói; mitificação política; análise do discurso.

Abstract

Having as principle that the literary art represents the ideological values of one determined group,
we want in this article to reflect about the relations between the mass narratives personages profile
consumed by the voters and the profile of the political sold / managed by the media during politics
campaigns. We observed, using the Discourse Analysis theory, as much in the capitalists societies
how much not capitalists, the existence of a media that constructs political heroes. This mystification
of the political dimension corresponds symmetrically to the desires and to the protection necessities of
voters, lost in a world deprived of basic values. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 18-30.

Key Words: hero; politic mitification; discourse analysis.

Introdução ciedade presente e passada, especialmente


quando lidamos com construções/fabricações/
Discutir a construção ideológica, sim- invenções produzidas no universo literário e
bólica e discursiva da figura do “herói” no político. Nesta reflexão, alguns dados poderi-
campo das ciências humanas e sociais remete am ser considerados para precisar melhor a
a uma intrincada teia de reflexões sobre a so- função social do herói e da heroificação

 - H.G.D. Magalhães é Doutora em Teoria da Literatura (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com Pós-
doutorado (Universidade de Paris III e na École des Hautes Études en Sciences Sociale). Atualmente atua como Pro-
fessora do Curso de Letras e do Mestrado Iterdisciplinar em Ciências do Ambiente (UFT). Endereço para correspon-
dência: Campus de Araguaína - Unidade São João (UFT). Rua 1º de Janeiro, S/N, São João, TO 77.080-000. Telefone:
14 (63) 21122219. E-mail para correspondência: hildadutra@uft.edu.br. L.H.O. da Silva é Doutora em Estudos da
Linguagem (Universidade Federal Fluminense). Atua como Professora do Curso de Letras (UFT/Araguaína-TO). D.J.
Batista é Doutor em História (Universidade de São Paulo). Atua como Professor do Curso de História
(UFT/Araguaína-TO).

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(compreendido como processo de produção guardariam os mesmos traços dos heróis con-
discursiva da figuratividade heróica). temporâneos? Certamente que não, mas uma
As qualidades do herói, suas caracte- abstração parece resistir, capaz de subsumir a
rísticas no imaginário coletivo e a natureza diversidade de representações e esquemas cul-
ideológica atreladas a sua figurativização con- turais que definem as especificidades das fi-
tribuem, certamente, para a compreensão do guras que as sociedades elegem como herói-
problema da consciência. A consciência, nes- cas.
se caso, vai ser concebida na perspectiva dia- Neste trabalho, partimos do pressupos-
lógica de Bakhtin como uma produção histó- to de que a arte literária, mais do que um sim-
rica, opondo-se, portanto, à possibilidade de ples documento estético de um povo, materia-
uma subjetividade absoluta capaz de separar- liza os valores ideológicos que sustentam a
se do mundo para melhor desvendá-lo, como cultura de um determinado grupo. Acreditan-
prevista numa abordagem idealista. Para Ba- do nisto, podemos entender a produção literá-
khtin, a consciência não vai ser buscada no ria como um termômetro para se compreender
interior do sujeito, mas na relação entre os a consciência política de um grupo social, o
sujeitos constituídos historicamente, confor- que pode ser observado não apenas no tipo de
me analisa em Marxismo e filosofia da lin- literatura que essa sociedade produz, mas
guagem: principalmente na natureza dos textos que ela
Se tomarmos a enunciação no estágio consome. Isso posto, interessa-nos neste arti-
inicial de seu desenvolvimento, na “alma”, go refletir sobre as relações existentes entre o
não se mudará a essência das coisas, já que a perfil dos personagens das narrativas de mas-
estrutura da atividade mental é tão social co- sa consumida pelos eleitores e a imagem de
mo da sua objetivação exterior. O grau de político que é vendida/administrada pela mí-
consciência. De clareza, de acabamento for- dia em época de campanha eleitoral, na medi-
mal da atividade mental é diretamente pro- da em que muitas vezes o representante a ser
porcional ao seu grau de orientação social. eleito deve corresponder a uma espécie de
Quanto mais forte, mais bem organizada e herói, capaz de abraçar os interesses de uma
diferenciada for a coletividade no interior da maioria, exacerbando-se seus poderes como
qual o indivíduo se orienta, mais distinto e ator na transformação social e econômica.
complexo será o seu mundo exterior (Bakhtin, Mais especificamente, lançamos nosso olhar
1995: 114-115). para alguns recursos mobilizados durante
A produção literária, particularmente, campanha para a eleição do governador do
a ocidental sobre a figura do herói realmente estado do Tocantins, em 2006.
assenta-se no maniqueísmo, na unilateralidade Como suporte teórico utilizaremos a
e no sucesso do herói. Estes elementos são Análise do Discurso (AD), que concebe a a-
centrais para compreensão da criação discur- propriação do discurso como um processo
siva do herói pela reiteração de determinados essencialmente coletivo, social e histórico.
traços semânticos como a imortalidade, a in- Para os representantes dessa corrente, a teoria
vencibilidade, a superação do conflito moral e do discurso deve explicar não apenas a reali-
ético, incidindo sobre a ativação de um senti- dade lingüística do texto, visto como algo em
mento de identidade coletiva: o herói fala aos si, mas sua relação com a ideologia e, desse
anseios de uma maioria, dá contornos precisos modo, ao Poder.
ao que num dado momento representa os seus
anseios e angústias. As determinações do discurso
Tais elementos ônticos não vinculam
automaticamente a figura do herói a um grupo Althusser (1984), um dos teóricos cu-
social específico, embora os processos de he- jas formulações corroboram para a constitui-
roificação, ao atualizá-los, resignifiquem-nos. ção da Análise do Discurso, nos explica que a
Assim, as figuras heróicas das tragédias, epo- classe dominante consegue perpetuar sua he-
péias e fábulas greco-romanas porventura gemonia graças a dois aparelhos fundamen-

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tais: o repressor, representado pela política, lidade, isto é, depende de seu espaço institu-
pela Administração, pelo Governo, pela Justi- cional, e por isso uma mesma palavra ou frase
ça, etc., e o ideológico, constituído pela famí- terá significados diferentes conforme a for-
lia, pela escola, pela religião, etc. O primeiro mação discursiva na qual se insere.
tem como fundamento a repressão, enquanto O conceito de formação discursiva é
que o segundo é caracterizado pela dissemi- bastante complexo e polêmico. Utilizamos
nação ideológica que perpetua o Poder. Al- inicialmente a definição de Orlandi, segundo
thusser afirma que a ideologia se materializa a qual uma formação discursiva deve ser
na maneira como se organizam os aparelhos compreendida como a atualização no discurso
repressivos e ideológicos, compreendendo por das formações ideológicas: “A formação dis-
ideologia a forma imaginária como os homens cursiva se define como aquilo que numa for-
vivem sua relação com as condições reais de mação ideológica dada – ou seja, a partir de
existência, caracterizada como mitificação. uma posição dada em uma conjuntura sócio-
Neste sentido, a ideologia apresenta histórica dada – determina o que pode e deve
uma existência material e tem como finalida- ser dito” (Orlandi, 1999: 43). Para Mussalim,
de a manutenção do Poder, o que só é possí- os limites de uma formação discursiva (FD)
vel através da perpetuação da ideologia que o são instáveis, uma vez que esta se inscreve
sustenta. Essa perpetuação é garantida, por num espaço de embate ideológico: “uma FD
sua vez, por um contínuo processo de trans- se inscreve entre diversas formações discursi-
formação de indivíduos em sujeitos ideológi- vas, e a fronteira entre elas se desloca em fun-
cos, quando estes são assimilados pelo siste- ção dos embates da luta ideológica, sendo es-
ma, passando a disseminar a ideologia domi- tes embates recuperáveis no interior mesmo
nante. de cada uma das FDs em relação” (Mussalim,
Foucault (1999), ao instituir os fun- 2001: 125). O conceito de formação discursi-
damentos da teoria do discurso, concebe o va remete, pois, à incompletude como condi-
discurso como um conjunto de enunciados ção da linguagem, uma vez que os sentidos
ligados por uma mesma formação discursiva. não estão constituídos definitivamente:
Para ele, o enunciado se caracteriza pela sua “Constituem-se e funcionam sob o modo do
relação com o referencial, compreendido co- entremeio, da relação, da falta, do movimen-
mo o que enuncia o enunciado e pela relação to”, nos “limites moventes e tensos entre a
do enunciado com o sujeito, considerando que paráfrase e a polissemia” (Orlandi, 1999: 52),
é o sujeito que anima, através de sua forma de repetindo ou rompendo com os sentidos de
ver o mundo, as formas vazias da língua, dis- uma dada formação discursiva.
pondo para isso de signos, marcas, traços, le- O conceito de formação discursiva,
tras, etc. Outra característica do discurso está compreendida como atualização de uma for-
na existência de um domínio próprio, ou seja, mação ideológica, é fundamental para a Aná-
de um espaço, responsável por integrar o e- lise do Discurso, do mesmo modo que os
nunciado num conjunto de enunciados, consi- conceitos de enunciado e enunciação. O e-
derando que os enunciados existem sempre nunciado é compreendido como a unidade
em conjunto e nunca isoladamente. Ou seja, lingüística básica, em substituição a sentença,
não se pode falar em enunciado livre, neutro forma, frase. A enunciação, por sua vez, é a
ou independente, mas sempre em um enunci- singularização do discurso, aqui compre-
ado contextualizado, fazendo parte de um jo- endido como jogo estratégico e polêmico, a-
go enunciativo, pois, para Foucault (1999: 9), ção e reação, pergunta e resposta, dominação
a linguagem é exatamente isso: jogo, defesa, e esquiva. Em outras palavras, o discurso,
arma, etc. para Foucault, é o espaço em que saber e po-
Finalmente, outra característica do der se articulam e é justamente por isso que
discurso é a sua condição material, que afirma ele precisa ser controlado, selecionado, orga-
o enunciado enquanto objeto. Assim, a repeti- nizado e redistribuído (Foucault, 1999: 9).
ção de um enunciado depende de sua materia-

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A contribuição de Foucault é impor- rio desde os primórdios da história humana,


tante porque liga definitivamente língua e rea- quando, numa condição precária em que a
lidade sócio-histórica. A partir dele e de Al- própria existência se revestia em mistérios, os
thusser, Pêcheux desenvolve a Análise do primeiros homens procuraram explicar o
Discurso, englobando o materialismo históri- mundo a partir das divindades. Neste intuito,
co, a lingüística e a teoria do discurso. Para criaram a figura dos deuses, uma mistura do
ele, cada indivíduo recebe uma formação dis- bem e do mal, aliada aos super-poderes e à
cursiva, que define o que pode ou não dizer o imortalidade. Habitando o Monte Olimpo e se
sujeito. Nestes termos, quando alguém se ma- alimentando de néctar e de ambrosia, estes
nifesta, diz não exatamente o que quer, mas o deuses detinham o controle sobre o fogo, a
que pode e deve dizer, pois, assim como uma terra, o ar e tudo o que neles habita. Suas fa-
formação ideológica determina o que o indi- çanhas, tidas como verdadeiras, eram passa-
víduo pensa, uma formação discursiva deter- das com idolatria e respeito de boca a boca,
mina o que esse indivíduo pode e deve falar. indiferentemente de sexo e idade. Na mitolo-
Citando Eni Orlandi (2001:164), “não há sen- gia cristã, esses deuses foram sintetizados em
tidos em si”. Do mesmo modo, “os sentidos dois pólos: na divina trindade e na imagem de
não dependem de nossas intenções, mas de Lúcifer, atualização de Hades, da divindade
possibilidades e necessidades reais concretas greco-romana.
com seus efeitos simbólicos”. Em outras pa- Ao lado da mitologia cristã floresceu,
lavras, existe uma formação discursiva que na Idade Média, uma mitologia laica, absolu-
predetermina o discurso de cada um de nós a tizando o Bem e o Mal. Esta se encontra re-
partir de um espaço determinado histórico e presentada principalmente através do contos
socialmente. de fadas, nas figuras da fada madrinha (Bem)
Analisando o discurso literário, Helia- e da bruxa (o Mal), ressignificados pelos efei-
ne de Castro (1983:17) afirma que o processo tos especiais das produções cinematográficas
de criação da arte escrita acha-se ligado a um de nossos dias e pelos livros ficcionais de na-
assunto, isto é, a uma "idéia ou conjunto de tureza mística, como os de Paulo Coelho. O
idéias" que dizem respeito aos valores ideoló- que se percebe é que a busca da verdade sobre
gicos. Registra ainda que, nesse sentido, a i- o homem e o mundo continua e com isso, a
deologia "é o fundamento da criação literária, varinha mágica, resquício dos poderes dos
pois a partir dela passam a existir os dados deuses gregos, passando também por uma e-
constituintes da obra" (Castro, 1983: 17). volução, transmudou-se para continuar a re-
Uma das características básicas da obra literá- produzir, com mais eficácia, a eterna luta en-
ria é ser, portanto, ideológica, isto é, a obra se tre o bem e o mal, o sim e o não, a vida e a
constitui num meio de propagação de idéias, o morte.
que a torna um instrumento de repetição dos A partir de meados do Século XX,
valores dominantes ou da instauração da pos- surgem novos produtos culturais que perpetu-
sibilidade de ruptura, do novo, de uma outra am a relação Bem/Mal, a partir do manique-
ordem de coisas e sentidos. ísmo dos símbolos bruxa/fada da Idade Mé-
Essa ideologia pode estar impregnada dia: é a cultura massificada colocada à dispo-
nos vários níveis discursivos, dentro da obra sição nas bancas de jornais, na televisão e na
literária. Devido à proposta de nosso estudo, internet, na forma de gibis, jogos infantis,
deter-nos-emos na análise do personagem, filmes, etc.
mais especificamente, na figura do herói. Iniciado geralmente na infância, o
consumo desses produtos não se restringe à
O berço do herói faixa etária infanto-juvenil, estendendo-se a
uma grande parcela de adultos, tornando-se
Antes de analisarmos os heróis como verdadeiros campeões de venda em distintos
produtos culturais de massa, é necessário países. Entretanto, seja pela estrutura automa-
lembrar que o herói está presente no imaginá- tizada das histórias, seja pelos referenciais

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que representam os personagens, esses produ- simbólico, nos processos de representação por
tos mostram um lado mórbido, posto que são via do aparato das instituições (superestru-
potentes instrumentos de manipulação ideoló- tura), conforme preconiza a perspectiva al-
gica, servindo, de diversas formas, à manu- thusseriana:
tenção dos interesses dos sistemas políticos e A ideologia – parte da superestrutura
econômicos. do edifício – , portanto, só pode ser concebida
A estória do Tio Patinhas, por exem- como um modo de reprodução, uma vez que é
plo, é uma típica propaganda capitalista. O por ele determinada. Ao mesmo tempo, por
milionário, além de representar o empresário, uma “ação de retorno” da superestrutura sobre
ou seja, o dono do capital, é a própria alegoria a infra-estruturam a ideologia acaba por per-
do capital em si. Sua empresa visa apenas a petuar a base econômica que a sustenta (Mus-
mais-valia e todos os valores morais desapa- salim, 2001: 104).
recem, sendo substituídos pela perspectiva de
lucro. As pessoas, para o Tio Patinhas (inclu- Eu tenho a força
indo ele próprio) deixam de ter qualquer im-
portância nas estórias. Exemplo disso é a Independente da linguagem de que se
forma como trata o sobrinho Donald, repre- utilizam, esses produtos de massa apresentam
sentante da classe proletária, despudorada- uma estrutura rígida e pobre, fazendo parte do
mente explorado pelo tio. Em nenhum mo- que Flávio René Köthe (1986: 35) chama de
mento existe o questionamento da problemá- narrativa trivial, caracterizada basicamente
tica e a tendência é, pelo automatismo, manter "pelo automatismo, pela repetição e pelos cli-
a relação dominante/dominado, que torna o chês, em nível de enredo, personagens, temá-
tio a cada dia mais rico e o sobrinho cada vez rio, valores e final”, aspectos que tornam a
mais pobre. leitura de tais textos acessível a qualquer tipo
Os filmes de aventura, além de extre- de leitor.
mamente violentos, tentam, através dos ícones Dentre as peculiaridades do gênero,
que compõem o personagem principal, vender entre as que mais chamam a atenção estão,
a imagem do poder hegemônico dos Estados sem dúvidas, a imortalidade e a invencibilida-
Unidos tanto para os próprios americanos de do herói, configurando uma figura demiúr-
quanto (e principalmente) para os países e- gica, cujos poderes se comparam à força da
mergentes. magia. Nesse caso, vamos observar como fato
O leitor passa, desde a mais tenra in- sintomático uma incrível coincidência de i-
fância, por um lento e progressivo processo dentidade entre o herói imaginário e o herói
doutrinário, durante o qual introjeta valores das urnas, o que indica a existência de um de-
que não são necessariamente os de sua cultu- terminado condicionamento entre o real e o
ra, considerando-os, mais do que normais, fictício, entre leitura e leitor. Como exemplos
desejáveis. Gradativamente, o leitor começa a de heróis imaginários, podemos citar uma in-
valorizar mais o "ter" em detrimento do "ser", finidade de personagens que variam da fada à
e, ato contínuo, a converter-se em coisa, con- Cinderela, dos cowboys americanos ao deteti-
vertendo-se por seu "livre arbítrio" em força ve policial do seriado de TV, todos detentores
de trabalho explorada pelo sistema. Como so- de uma força/saber que lhes possibilita reali-
nho de consumo, começa a almejar a posição zar feitos irrealizáveis pelo homem comum,
privilegiada de Patinhas, a força do herói de sintetizando, portanto, o mito do super-
seu filme preferido e, quando tem a oportuni- homem e exercendo sobre o público leitor,
dade de conquistar posições sociais privilegi- mais do que o fascínio, as condições para sua
adas, muitas vezes o faz sem respeitar os inte- submissão ideológica.
resses de sua classe social. Aparentemente, na ficção, o herói é
Temos assim a perpetuação de uma um homem comum, comprometido com os
ordem econômica (infra-estrutura) por via da dogmas do bem e da moral convencionados
ideologia que se manifesta na linguagem, no pela sociedade. O super-herói da literatura de

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massa não precisa de palanques para provar candidato interessa, o quanto for possível,
que é superior e que é capaz de solucionar os vender uma imagem individual e quanto mais
problemas dos mortais, mesmo porque é úni- biônica ela parecer ao público maiores são
co, não possui concorrentes e, caso apareçam suas chances de vitória: tratar-se-ia de um su-
alguns, são sempre caracterizados como ame- jeito acima das ideologias, acima dos parti-
aças ao bem-estar da população e por isso de- dos, para a garantia do interesse de todos.
vem ser derrotados, exterminados. Sabendo disso, cada político, à sua
Outro aspecto a se observar é que, em maneira, tenta, através de indexadores, reves-
geral, o super-herói não age em grupo, pois tir-se de alguma das faculdades extraordiná-
ele representa o poder absoluto e por isso se rias do super-herói. De fato, se analisarmos a
torna detentor de todas as forças do bem, con- natureza do discurso do herói ficcional e do
siderado como tal as diretrizes do poder (ele "herói" político, veremos que tanto um quanto
estará sempre agindo em nome do Estado, da o outro refletem uma ideologia supra-real.
Igreja, do Poder dominante). Assim é que o Antes de pretender ser analítico, o discurso de
cidadão Clark Kent pode, num piscar de o- ambos é eloqüente. Na figura do herói fictí-
lhos, transformar-se no imortal super-homem, cio, tal eloqüência é mostrada pelo ato efeti-
banir sozinho todos os bandidos que ameaçam vado, reiterando, portanto, o seu discurso e a
a tranqüilidade dos cidadãos e voltar ileso à sua condição de super. Para o herói de palan-
sua condição de pacato jornalista. Lembremos que, a eloqüência é obtida através de associa-
ainda esse respeito os heróis encarnados por ções que o aproximam da figura de Deus ou
Stalone, Schwarznegger e similares. Ultima- de determinados políticos ou personagens ti-
mente, temos assistido nas histórias em qua- dos pela comunidade como mártires ou heróis
drinhos e nos desenhos animados a uma ten- da pátria.
dência dos heróis em trabalhar em grupos, Analisando o personagem He-Man,
porém, nos filmes produzidos por Hollywood veremos que, ao empunhar a espada mágica,
ainda predomina a onipotência individual, torna-se o detentor de uma força inigualável
elemento caro para a ótica neoliberal: é possí- e, observemos, o seu discurso é breve, resu-
vel vencer a tudo e a todos solitariamente, a mindo-se à frase "Eu tenho a força", o que já
despeito das forças contrárias. Por analogia, é é a garantia da solução de todos os problemas
também possível o sucesso econômico, desde dos mortais. O mesmo discurso é por várias
que haja determinação, força de vontade, de- vezes repetido pelo candidato em campanha.
terminação, ousadia, qualidades indispensá- Quando afirma que precisa do voto do eleitor
veis aos homens que “vencem” no mundo dos para resolver os problemas do povo, reclama
negócios, derrotando os concorrentes, angari- para si a força e a espada mágica de He-Man:
ando a simpatia do mercado. eu tenho a força da representatividade, sou,
Os candidatos de palanque, cujo dis- portanto, detentor da legitimidade e das con-
curso é anti-analítico por natureza, refletem dições para pode fazer.
uma circunstância semelhante à apresentada Neste sentido, tanto a espada para He-
pelo herói ficcional. Para o candidato da tri- Man quanto os votos para o político se consti-
buna, a oposição é sempre a ameaça à popula- tuem numa espécie de varinha mágica que os
ção e, portanto, o bandido deve ser, à maneira dota de superpoderes. Observemos, todavia, a
do criminoso da narrativa trivial, derrotado. contragosto, que o discurso do herói imaginá-
Assim como o herói da ficção, ao político, na rio não sofre reversão, isto é, o super, de fato,
narrativa da política nacional, interessa pro- efetiva o predisposto e seu poder é utilizado
mover-se como figura individual, utilizando a em favor do bem-estar da coletividade.
legenda na medida em que serve a sua auto- Diferentemente, no caso do discurso
projeção, uma vez que, nesse quadro, a ideo- político, vemos tantas vezes uma espécie de
logia nem sempre está vinculada ao partido, deterioração da manutenção no compromisso
sendo este reivindicado apenas quando há ga- assumido, o que com maior ou menor rapidez,
nhos individuais para o candidato. De fato, ao confere desgaste a sua credibilidade junto ao

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eleitorado. Assim, os discursos de campanha simples troca de bandeira. A inexistência de


se perdem ao longo do processo, modifican- uma memória histórica tem sido apontada por
do-se, tornando-se diferentes das falas subse- muitos como sendo o principal motivador
qüentes: o que se declara na condição de can- deste fenômeno. Nesse caso, seria importante
didato não mais se assemelha ao que se diz considerar os mecanismos que constroem essa
quando empossado. Enquanto He-Man utiliza memória social e histórica, silenciando e apa-
a sua força em prol do povo, o político decaí- gando fatos e processos. Se toda relação do
do a utiliza em benefício próprio, e por isso sujeito com o mundo é mediada pela lingua-
mesmo contra a coisa pública. Enquanto, no gem, constituída pelo discurso, que mecanis-
campo simbólico, temos a confirmação da mos discursivos fazem significar a realidade
necessidade dos super-heróis, na vida das re- tendo em vista essas narrativas sociais?
lações de poder o heróico não parece alcançar
as condições para seu progresso. Assim, mui- O discurso do anti-herói
tas vezes assistimos a uma progressiva deteri-
oração da imagem do pretenso herói nas ur- “A esperança é um urubu pintado de verde.”
nas, rumo à decadência de sua figura e desen- (Mário Quintana)
canto do eleitor com o processo.
Daí para a crucificação há uma peque- Não existem heróis sem fãs. Não exis-
na distância: é quando surgem as imagens dos tem textos sem leitores. Não existem, no to-
judas queimados nos Sábados de Aleluia ou cante aos heróis produzidos pelos discursos,
os enterros simbólicos, marcando a falência heroificação sem leitores que consumam essas
do modelo que havia possibilitado a eleição figurações heróicas. No entanto, temos que
do político. considerar que os fãs/leitores consomem estes
Já citamos em oportunidade anterior produtos culturais que levam a denominação
que o herói ficcional, geralmente antes do de- de heróis, às vezes, de modo muito crítico
senlace da narrativa, sofre uma recaída em quando satirizam ou simplesmente ridiculari-
que é fartamente enganado e nocauteado, po- zam esses heróis e, assim, a recepção dos lei-
rém, ao final, a estória mostra ao leitor que tores/fãs nem sempre são as melhores possí-
fatalmente o herói vence, mesmo porque ele é veis.
absolutamente invencível. O herói, na tradição greco-romana –
Ora, na história política também isso matriz das concepções ocidentais das figura-
ocorre: assim que um determinado discurso ções heróicas – é exemplar, modelar, um pa-
entra em declínio, os representantes do Poder radigma. Assim, quando nos deparamos com
começam a renegar a própria legenda e a se as construções/fabricações/invenções con-
engajarem em outras facções sob a desculpa temporâneas, pensamos que, nem seria ade-
de que o partido desviou-se das suas metas quado denominá-las de figurações heróicas.
iniciais, de que a equipe não está afinada com As angústias do “homem” – que homem? –
o Governo, dentre outras. Enfim, prepara-se contemporâneo fazem com muitas vezes ele
para abandonar o navio naufragado e, obser- busque escapar ao massacrante e insuportável
vamos, é quando o seu discurso torna-se mais contingente e rotineiro da vida. Seria melhor
individualista do que nunca: o suposto herói recolocarmos as figurações heróicas contem-
tenta, ao apontar bodes expiatórios, reverter a porâneas a partir deste sintoma. Ainda mais
situação, reforçando um discurso extrema- quando pensamos nos diversos níveis de
mente individualista. compreensão possíveis para as figurações he-
É novamente a imagem do super-herói róicas. Isto é, quando pensamos que classes e
que entra em cena diante do eleitor, um herói grupos sociais se apropriam e resignifiam es-
que sobrevive para além dos interesses do sas figurações.
grupo e é detentor de um poder inextinguível. Vejam a enorme teia de aranhas: he-
Não são raros os casos de anti-heróis que re- róis, discursos sobre heróis, recepção do pú-
cuperam a imagem diante do público pela blico das figurações heróicas. Ou seja, uma

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teia de discursos em que o “herói” se torna dir depende, assim, da adesão a certos discur-
difuso. Sem ao menos dizermos uma linha sos, que materializam determinados valores
inteira sobre: “os heróis anônimos”, os heróis ideológicos. Desse modo, não há um sujeito
da véspera, os de circunstância e aqueles que onipotente, que regula o que quer dizer, mas
se tornam heróis da circunstância, ou seja, os um sujeito histórico, interpelado pelo incons-
heróis que os mídia constroem. A heroifica- ciente e pela ideologia, que diz o que é possí-
ção, então, seria aquele processo complexo e vel. A construção de uma figura heróica, por-
difuso pelo qual o herói pode ser todos e nin- tanto, não prevê um sujeito que manipula oni-
guém. potente a massa de cidadãos indefesos, mas
Certamente, quando o processo de he- negociação, como porta voz do que naquele
roificação ocorre, envolve uma relação de momento se edifica para estes como poder e
Domínio e Poder, ou seja, quando um grupo, esperança. Assim, ao pretender manipular o
classe ou nível institucional se apropria e re- outro, o sujeito é também por este manipula-
significa uma figuração heróica, esta passa a do, a ele também se submete.
adquirir novos conteúdos, às vezes, diame- Dando continuidade a esse raciocínio,
tralmente opostos dos originários. Quando um propomos a seguir a análise de um jingle de
intelectual faz uso metafórico, metalingüístico campanha política em 2006 (anexo) para o
ou parafrasal de uma figura heróica, ele o faz governo de estado. Nesse ano, os brasileiros
com uma intencionalidade política, econômi- elegeram por voto direto deputados estaduais
ca ou social, a depender do leitor a quem se e federais, governadores e Presidente da Re-
destina tal discurso. Desta forma, o falante e o pública, o que implicou a mobilização de di-
lugar do falante determinam o conteúdo das versas estratégias de marketing, que parecem
figurações heróicas. Por outro lado, o receptor ser cada vez mais indispensáveis para a garan-
destas construções/fabricações/invenções das tia da vitória de um candidato. O jingle, repe-
figurações heróicas não poder ser concebido tido à exaustão em barulhentos carros de som
como um mero receptáculo. Existe um espaço pelas ruas das cidades tocantinenses, acaba
de interferência do interlocutor. Há que se por ser memorizado, para o que contribui ain-
considerar ainda que não há um sujeito cons- da a própria simpatia pelo ritmo musical.
ciente de um lado, capaz de manipular um Como predomina no gosto popular da região
sujeito inconsciente e alienado na outra ex- o forró, os candidatos souberam disso tomar
tremidade. A ideologia atravessa os sujeitos partido, apresentando em suas campanhas a-
(de ambos os lados) que não detêm de contro- nimadas composições. Cruzando inúmeras
le consciente sobre o que se enuncia, sobre as vezes as mesmas ruas, os carros instauravam
implicações ideológicas do que seu dizer pro- uma espécie de debate em campo aberto,
põe. Retomando Bakhtin (1995), temos que a quando, como ocorre com os repentes nordes-
interação é a realidade fundamental da lin- tinos, uma composição dialogava, respondia,
guagem: as trocas interlocutivas constroem-se provocava a outra. Caberia, pois, ao eleitor,
mediante a negociação de valores, de senti- verificar a consistência das idéias expostas, a
dos, na remissão a outros dizeres, na atualiza- melhor argumentação, a resposta mais con-
ção de um imaginário historicamente compar- vincente, atribuir estatuto de credibilidade a
tilhado. esta ou àquela fala, analisando a “verdade”
Na perspectiva retórica, estamos dian- dos versos.
te de um sujeito que manipula conscientemen- Para nossas reflexões, escolhemos um
te recursos tendo em vista a adesão do inter- dos jingles do candidato Siqueira Campos. Na
locutor. Na perspectiva da AD, não há essa história do Estado do Tocantins, Siqueira é
autonomia na construção da persuasão. A efi- um dos personagens que recebe maior desta-
cácia depende, pois, da inscrição do dizer que. Muitos a ele atribuem a própria respon-
numa dada formação discursiva, que prescre- sabilidade pela “criação” do Estado, em 1988,
ve o que pode ou não ser dito, bem como o tendo em vista sua atuação como senador e,
modo como as palavras aí significam. Persua- posteriormente, como governador. Nesse pe-

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ríodo, envia cartilhas às escolas, nas quais se no imaginário social. Na composição, a opo-
narra a luta pela emancipação do Estado. No sição bezerro versus boi velho alude à relação
texto da cartilha e nas imagens que a ilustram, juventude/inexperiência versus velhi-
Siqueira surge como uma espécie de herói que ce/experiência. Assim, o boi velho teria me-
representa os interesses do povo esquecido lhores condições de governar o Tocantins
pelo poder público no então norte de Goiás. porque sabe como fazê-lo, tem grande lastro
O jingle escolhido é constituído por político, enquanto o opositor é bezerro, ani-
três estrofes e um refrão que inicia a compo- mal ainda novo, que ainda mama, submisso e
sição: dependente.
Ainda considerando a cena nessa nar-
“Mamãe, eu já vou rativa política, a composição atualiza novos
mamãe, eu vou já sentidos para o verbo mamar. É comum a ex-
vou votar 45 pro Siqueira retornar.” pressão “mamar nas tetas do Estado”, isto é,
apropriar-se indevidamente dos recursos pú-
Temos aqui um enunciador projetado blicos para benefício próprio. Ao bezerro se
no texto em 1ª. pessoa (eu), que, como eleitor, associa agora a imagem de corrupção, o que é
comunica sua decisão de votar em Siqueira. reiterado em outros momentos do jingle:
Ao longo do texto, esse enunciador deixa cla-
ra a existência de uma disputa entre dois can- “Não voto em marajá
didatos, o que apóia em seu dizer, Siqueira, e (...) Dar lapada no bezerro
o seu opositor, Marcelo Miranda1, a ser des- que ganha 28 mil
qualificado para o cargo. Caberia, assim, aos (...) Eles têm medo da espora e do chicote
demais eleitores, a identificação com os dis- que o Siqueira está guardando
cursos que esse “eu” passa em seguida a arro- pra bater em marajá.”
lar, aoncorando sua decisão. Não há, pois,
projetada de forma direta uma enunciação as- Aqui surge outra expressão que alude
sumida pelo ator candidato, que se encontra à corrupção, a do marajá. Na política brasilei-
aqui na posição de não-pessoa, assunto de que ra, a figura do marajá surge nos anos 80 como
se fala, ausente da cena enunciativa. Ainda adjetivação para os políticos que recebem al-
projetado no texto está o “tu”, com quem o tos salários, beneficiando-se do poder para
locutor-enunciador dialoga: Preste atenção, garantirem por força do aparato legal salários
amigo compositor. Este locutor representaria, não condizentes com o exercício do cargo.
assim, o eleitorado de Siqueira, falando em Em 1989, Fernando Collor elege-se presiden-
nome desses eleitores e, do mesmo modo, por te como “caçador de marajás”, preconizando
extensão, em nome do próprio candidato. para si o papel de moralizador da política na-
Na segunda estrofe do refrão, surgem cional. Na fala do enunciador projetado no
dois novos versos: jingle, Siqueira vai bater em marajá, fazendo
uso de espora e chicote. Trata-se, pois, de um
“Dar lapada no bezerro sujeito que pretende moralizar a política pelo
que ele pára de mamar.” emprego da força, enunciando, pois, por um
processo polifônico (Bakhtin), o modo como
No diálogo entre as composições, os se dá a gestão pública no país e o rigor com
nomes dos candidatos com maior número de que deve ser combatida a corrupção: bater,
votos são substituídos pelas metáforas bezer- lapada, espora, chicote, metáforas que mais
ro (correspondendo ao oponente, Marcelo Mi- uma vez remetem ao universo da pecuária,
randa) e boi velho (Siqueira Campos). No ce- base econômica do estado, e ao caráter das
nário econômico, em que a produção pecuária relações de poder e força aí legitimadas.
responde como fundamental fonte de renda Há, porém, aqui, uma coincidência
para o Estado, o emprego de expressões como que aproxima os opositores. Nos versos Pois
essas configura adesão a elementos presentes quem mama é bezerro / Que foi boi velho

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quem criou, identificamos a existência de um do o raciocínio: a lapada é do voto. Mais uma


contrato inicial entre os dois personagens po- vez, a argumentação deixa espaço para dúvi-
líticos. O bezerro seria uma “criação” de Si- das em relação ao comportamento de Siqueira
queira Campos, uma vez que este o teria in- no poder, no uso que fará da espora e do chi-
troduzido na política como uma espécie de cote, que funcionam aqui como uma mostra
continuador de suas propostas, aliado político. de poder e intimidação. Pelas histórias que se
A partir desses elementos, podemos constatar associam ao comportamento intransigente e
que a dissidência não se dá necessariamente intempestivo de Siqueira, a argumentação pe-
no plano das concepções políticas e ideológi- ca por mais uma vez lembrar que existem mo-
cas, pelo menos num plano inicial. Se o inte- tivos para intranqüilidade, justificando o pe-
resse do enunciador locutor é a de denegrir o dido do locutor: Fique tranqüilo.
opositor, Marcelo Miranda, valorizando as- Como se verifica, a persuasão preten-
pectos positivos de Campos, aqui vemos que dida pelo enunciador esbarra em algumas
a estratégia argumentativa compromete o se- contradições, que vêm à tona em sua fala.
gundo. Siqueira é quem “cria” Miranda e o Pretendendo elevar Siqueira e denegrir o opo-
que podemos ler na narrativa é a ocorrência sitor, o enunciador acaba trazendo à luz ele-
um momento de ruptura entre os dois. A idéia mentos polêmicos, que poderiam compro-
de continuidade e similitude é ainda reforçada meter o próprio Siqueira. Retomando Orlandi
pelas próprias metáforas. O bezerro de hoje é (1999), lembremos que são as formações dis-
o boi de amanhã, ambos compactuam de uma cursivas que prescrevem o que pode ou não
mesma essência, distanciando-se apenas pelo ser dito. Atualizando discursos que alcança-
aspecto temporal. O verso, portanto, em vez ram legitimidade, o que pode ser polêmico e
de servir para reiterar a diferença dos oposito- contraditório deixa de sê-lo na medida em que
res, serve para aproximá-los, confundi-los, se verifica a filiação a um dado discurso do
mostrando que não falam e legislam de dife- qual retira sua lógica. Desse modo, o que o
rentes lugares. enunciador atualiza na figura de Siqueira é a
Na segunda estrofe, ressalta-se o cará- do político empreendedor, mas de mão forte,
ter empreendedor de Siqueira: com o qual parcela da população se identifica.
O caráter autoritário não assusta e, de algum
“Ai, que saudade modo, é determinante para o culto a sua figu-
que eu tenho das grandes obras ra. Num país em que a democracia ainda en-
o que fez de nosso Estado gatinha, a concentração de poder ainda é vista
o mais lindo do Brasil” como aceitável e natural, legitimada pelo dis-
curso dominante. Siqueira representa a ala
Deixando subentendido que, no go- pecuarista do Estado, os empresários do agro
verno de Miranda, nesse momento buscando o negócio. Votar nele é, assim, dar continuidade
segundo mandato consecutivo, as grandes a um projeto econômico, que faz o Estado a-
obras estariam ausentes. Seria Miranda o ma- pontar no cenário nacional como região pro-
rajá, uma vez que seu salário seria de 28 mil, missora, atraindo levas de migrantes que po-
devendo, pois, ser rejeitado pelos eleitores. dem ou não ler nas entrelinhas dos discursos a
Na última estrofe, a oposição ao ad- assimetria das relações de poder aí estabeleci-
versário se intensifica, incluindo agora um das, o que por esses discursos é silenciado.
outro sujeito, “eles”: Eles têm medo da espora O herói político surge, pois, como uma
e do chicote. Certamente a expressão “eles” figura um tanto decaída, mas que se sobressai
corresponde aos aliados de Miranda, derrota- como o que tem condições de fazer o que de-
dos nas urnas: Fique tranqüilo que a lapada é ve ser feito: gerar empregos, combater a cor-
do voto. Nesse momento, por efeito polifôni- rupção, fazer obras. Seus pecados são enun-
co, evidencia-se a intranqüilidade que poderia ciados, ecoando em altíssimo e bom som pe-
ser produzida no interlocutor. O enunciador las ruas do país, embora nem tudo possa ser
orienta, assim, para a tranqüilidade, explican- lido ou percebido como pecado.

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contingências e de circunstâncias que o eleitor


Considerações finais não está interessado diretamente em analisar.
A vida cotidiana assim mediada, mati-
A vida cotidiana é permanentemente zada e mitificada pelos meios de comunicação
reinventada desde os mais remotos tempos. envolve o eleitor com uma fina camada ilusó-
No mundo contemporâneo isso se tornou um ria, superficial e frágil segurança social, que
axioma e um anátema. Os meios de comuni- para ele nem sempre é suficiente. Neste qua-
cação de massa, os mass mídia reelaboram os dro, o herói ficcional e o pseudo-herói políti-
conceitos e noções que o homem tem de si e co se fundam e fundem. Aparecem como os
dos “outros”. Estas percepções que são cons- salvadores e protetores de eleitor consciente
truídas diariamente conduzem a reelaboração de sua condição sensivelmente insegura. Isso
do próprio homem. As “sociedades anôni- não significa dizer que o eleitor seja uma ma-
mas”, as sociedades plurais, pulverizadas e rionete ou fantoche nas mãos da mídia, do
fluidas do mundo contemporâneo abriram um governo, dos sistemas sociais e muito menos
enorme espaço para essa reelaboração do ho- dos políticos. O eleitor sabe quem é quem na
mem. Nesse espaço aberto agem sem freios os dinâmica social. Apenas joga o jogo. Constrói
meios de comunicação de massa provocando um conjunto de princípios e valores que com-
a sensação de participar e de intervir ilimita- põem uma cidadania, no caso brasileiro, uma
das. Esta digressão tem o propósito de colocar cidadania fragmentada e parcial, pois a mitifi-
em questão o seguinte: tanto em sociedades cação da dimensão política não é total.
orientadas pelo capital como em sociedades A célebre frase dá o tom: “a César o
não explicitamente orientadas por ele temos que é de César, a Deus o que é Deus” ainda
uma mídia que constrói, fabrica e inventa he- com o intuito de polemizar e problematizar a
rói políticos. Os sistemas sociais em que o figura do herói propomos aqui um reflexão
eleitor vive é apenas um elemento a mais para final com base nas reflexões de Michel Maf-
compreendermos o processo de mitificação da fesoli, com seu Elogio da razão sensível
dimensão política. Os sistemas sociais são (1998). Este autor afirma que é preciso retor-
elementos nada desprezíveis para essa com- nar à vida cotidiana do homem comum e ao
preensão. Mas pensamos que a mitificação da seu senso comum de realidade. É preciso ob-
dimensão política corresponde simetricamente servar e compreender como o senso comum
aos desejos e anseios de proteção, amparo e constrói a sua compreensão do mundo sensí-
conforto dos próprios eleitores. Isto é, diante vel, i.e., da realidade, propondo uma fenome-
de um mundo com valores essenciais frag- nologia da vida cotidiana.
mentados as pessoas buscam segurança, pro- O século que se inicia exige essa fe-
teção, amparo. Nos discursos políticos, essa nomenologia da cotidianidade para entender-
tônica está presente. mos as figurações heróicas e seu estrondoso
Os discursos políticos mobilizam ain- sucesso e popularidade. Podemos dizer que as
da outros valores e princípios que os tornam figurações heróicas são mistificadoras, reifi-
creditáveis ou pelo menos passíveis de crédi- cadoras e alienantes, no entanto, elas perma-
to. Um exemplo, dentre tantos, o apelo a necem e se multiplicam vigorosamente. À
Deus, ou mais amplamente, aos sentimentos guisa de conclusão e ao mesmo tempo nada
religiosos e espirituais dos eleitores, como concluindo, cabe perguntar: elas não são o
vimos se acionados por Bush como justifica- alimento de que precisamos para suportar o
tiva para a invasão do Iraque. Novamente, banal, o ritual rotineiro e a insignificância de
estamos diante de uma teia de discursos me- nossas vidas intimas e privadas? Poderíamos
diados e matizados pelos meios de comunica- viver sem as figurações heróicas? Por que as
ção. O discurso político passa a ser mais um figurativizações heróicas ainda fazem sentido
produto do mercado de idéias. É vendido, do- na vida do homem contemporâneo?
ado, emprestado, permutado em função das
Referências bibliográficas

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Mussalim, F. (2001). Análise do discurso.


Althusser, L. (1984). Ideologia e aparelhos Em: Mussalim, F. e Bentes, A.C. (Orgs.). In-
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ça/Martins Fontes. (pp. 101-142). Vol.2. São Paulo: Editora Cor-
Bakhtin, M. (1995). Marxismo e filosofia da tez.
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Castro, H. (1983). Ideologia da obra literá- princípios e procedimentos. Campinas: Edito-
ria. Rio de Janeiro: Editora Presença. ra Pontes.
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(Trad. L.F.A. Sampaio). 5ª Ed. São Paulo: ção e circulação dos sentidos. Campinas:
Editora Loyola. Editora Pontes.
Maffesoli, M. (1998). Elogio da razão sensí-
vel. (Trad. A.C.M. Stuckenbruck). Petrópolis:
Editora Vozes.

Notas

(1) É importante lembrar que para o cargo de governador concorriam outros candidatos, aos quais ao jingle não faz
menção. Esse apagamento dos demais concorrentes também é significativo para compreender as relações de poder no
Estado.

Anexo

Jingle de campanha eleitoral no Tocantins, eleições 2006

Mamãe, eu já vou
Mamãe, eu vou já
Vou votar 45
Pro Siqueira retornar.
Refrão Mamãe, eu já vou
Mamãe, eu vou já
Dar lapada no bezerro
Que ele pára de mamar.

Eu sou capaz.
Eu não quero confusão,
Não voto em marajá
Nem pra ganhar um milhão.
1
Preste atenção, amigo compositor,
Pois quem mama é bezerro
Que foi boi velho quem criou.

Ai, que saudade,


Que eu tenho das grandes obras
O que fez do nosso Estado o mais lindo do Brasil.
2 Chama Siqueira pra botar as coisas em ordem
Dar lapada no bezerro
Que ganha 28 mil.

Eles têm medo da espora e do chicote


Que o Siqueira ta guardando

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Pra bater em marajá.


3 Fique tranqüilo que a lapada é do voto
Nas costas desse bezerro
Que vai parar de mamar.

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