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Copyright© 2019 by Sem Tinta

Capa:

Erick Alves

Projeto gráfico:

Sem Tinta

Revisões:

Jonatas de Souza Jacinto

Pluma Revisão Textual

Esta obra é ficcional, assim como todos os seus personagens, locais e


situações.

Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.


SUMÁRIO

PREFÁCIO

PRÓLOGO

10

11

12

13

14

15

16

17
EPÍLOGO

AGRADECIMENTOS

SOBRE O AUTOR

A EDITORA
PREFÁCIO

Van Ercelle é um mundo que vem sendo remoído em minha cabeça há


um bom tempo. O que tem em mãos não é, nem de longe, a primeira história
que tentei contar nesse universo. Eu já sabia que haveria uma torre caída, um
mundo com uma falta de magia recente e sabia como a energia mágica
funcionava nos objetos restantes. Entretanto, não eram histórias; eram apenas
criação de mundo e ambientação. Faltava algo.

Joguei umas dez mil palavras fora em um protótipo há quase dois anos,
onde um garoto é levado como aprendiz de uma guerreira da ordem de Van
Ercelle. Essa foi a primeira versão de Rathla como personagem. Já tinha seu
nome e sua ordem de mantos vermelhos desde o início, mas ainda me
pareciam desencaixados. Eu estava começando neste ofício de escrever, e fui
me perdendo nas projeções grandiosas de um longo livro.

Depois, no começo de 2018, vieram os sobreviventes de Van Ercelle: a


história dos poucos que não morreram com a queda da torre e o fim da magia
no mundo. Aqui, sim, havia um enredo claro, personagens bem-construídos e
um planejamento. Eu já havia escrito alguns contos e me sentia pronto para
tentar algo maior. No fim, acho que me enganei.

Com os sobreviventes, consegui passar uns bons meses vivendo nos


escombros da torre, entendendo como o mundo funcionava, como a falta de
magia e a doença afetava os habitantes do mundo. Aqui, a ordem das
guerreiras de que Rathla faz parte já havia se tornado lenda entre os
personagens. Quase todas as guerreiras haviam morrido com a torre,
deixando apenas histórias para os sobreviventes.

Então, depois que mudei um pouco de mundo e escrevi As Sombras do


Passado, decidi voltar para Van Ercelle. Mas o que havia de diferente desta
vez? Eu tinha uma intenção maior na história. Durante todos os anos em que
escrevo, em todas as ideias que trabalho, houve uma pessoa que me ouviu
falando de todos os protótipos de livros e me ajudou a construí-los e planejá-
los de várias formas. Sua visão, de fora do gênero de fantasia e apaixonada
pelos livros policiais e de mistério, me mostrou tudo por um prisma diferente.

Assim, consegui deixar de lado todos os projetos de romances épicos e


grandiosos que os amantes de fantasia tendem a ter. Deixei de lado os
impérios, a torre caída e as hordas de guerreiros em batalha. No lugar de tudo
isso, me foquei nos conflitos de Rathla e nos desafios e mistérios que a
guerreira precisa resolver em suas viagens. No fim, todos os conselhos
pareceram fazer as palavras saírem de mim de forma automática e logo a
história ganhou vida, tal qual Frankenstein, em uma junção de gostos
distintos. Em essência, este é um livro de fantasia para alguém que gosta de
mistério.

Mas, sobretudo, é uma história para você, Nayara.


PRÓLOGO

Anahid terminava de varrer a hospedaria quando ouviu as pessoas


gritando sobre a morte. O sino de aviso da vila, fixado próximo ao porto,
gritava suas notas agudas e agoniantes. Havia algo errado em Narba.

A garota olhou para Vahan, o dono da hospedaria e o mais próximo que


ela tinha de um pai. O homem assentiu com a cabeça, permitindo que a
garota deixasse o serviço, e ela logo atravessou a porta da hospedaria,
correndo rumo à confusão.

Narba era uma vila de pescadores onde a única movimentação grande


na cidade acontecia na alta temporada: quando os pescadores se revezavam
em turnos para que os navios não ficassem parados por muito tempo na baía e
os mercadores das vilas vizinhas faziam uma rápida visita para a compra de
peixes e frutos do mar. Fora isso, ou os pescadores estavam em suas curtas
viagens pelo mar ou estavam bêbados na taverna.

Assim, um tumulto era uma surpresa.

Anahid correu o caminho até a praia, seguindo os moradores. Os poucos


cães da vila latiam, presos em suas casas, esperando a liberdade. Na areia,
uma dezena de aldeões se juntava ao redor de algo.

Cortando caminho por entre eles, Anahid escutou murmúrios e


xingamentos. Ouviu o nome de Tyla algumas vezes. A mulher era famosa
pelas redes resistentes que fazia e a quantidade de filhos com o mesmo
marido. A garota se perguntou se poderia ser ela, caída no meio do grupo de
pessoas. Era improvável, mas não seria uma surpresa.

Em meio ao povo, Anahid viu um braço. A pele meio azulada dizia tudo
que a garota precisava saber. O que quer que tenha matado aquela pessoa,
tinha usado magia raskiana.

Os raskianos haviam sido conhecidos por seguirem Vä Rask, o deus


afogado. Um deus cruel e quase morto. Restavam poucos de seus fiéis pelo
continente, o que tornava improvável que um deles estivesse em Narba,
principalmente na baixa temporada.

Assim, não se falava sobre os raskianos na vila. Era mais seguro não os
mencionar e fingir que não existiam, tirando qualquer referência deles do
cotidiano dos pescadores. Era quase uma crença comum de que, se evitassem
falar sobre eles, seria como se não existissem.

Mas lá estava, um cadáver azulado, frio como um boneco de neve.

Se aproximando mais, Anahid viu que a areia ao redor do corpo estava


remexida, marcada com pegadas humanas e caninas, marcas de braço e sinais
de luta. Então, a garota viu o rosto do corpo. Era Paki, filho de Tyla, um
menino da sua idade. Treze anos e morto como um animal, pensou ela.

Os sons à sua volta pareceram se afastar, e a garota sentiu sua


respiração ofegante. O peito palpitava, e a lembrança da semana anterior lhe
trouxe um arrepio. Quase podia ver o garoto vivo, correndo e brincando pela
praia.

Anahid sentiu medo.

Não pela morte ou pelo perigo de algum mal estar a solto na vila.
Sequer pensou que poderia ser ela, deitada ali, sem vida. Sua mente vagava
pelo assunto não falado na vila, pela realidade que fora negligenciada e
tratada como mito até aquele momento. Anahid temeu o azul dos raskianos.
1

O ruído de um galho se quebrando iniciou toda a sequência de golpes de


Rathla. Saltando de seu esconderijo nas árvores, a mercenária desceu toda a
distância com a espada empunhada. Caiu sobre uma das feras, decapitando-a.
O cheiro de sangue se espalhou pelo ar. No momento seguinte, outros três
felinos a atacaram, criando sombras sobre o manto escarlate da guerreira.

Sua espada emitiu um brilho laranja e ela sentiu a energia mágica


correndo pelo corpo. Com uma velocidade sobrenatural ela girou a lâmina em
um arco, barrando dois dos três animais. O terceiro passou sobre seu corpo
enquanto ela abaixava e girava, criando um redemoinho com o metal e a lona
de seu manto. Quando a última criatura tocou o chão, já estava morta.

Esperou até que o silêncio voltasse à mata. Quando teve certeza que não
restava mais monstro algum, saiu da posição de ataque.

A movimentação calma e tranquila era de um contraste gritante com os


momentos anteriores. Com o corpo todo escondido pelas longas vestes ela
sequer parecia se mover ao andar até um dos animais.

Rathla limpou a espada na pelagem da fera caída. Era um lobo, ou pelo


menos fora um dia. A energia que havia irradiado na queda da torre de Van
Ercelle há mais de um ano causava mutações em toda forma de vida nos
arredores da ilha, e agora também se espalhava pelo continente.

Os bichos estavam maiores, mais ágeis. E isso era apenas o começo.

Não devia se importar com isso, repreendeu-se em pensamento. Seu


trabalho é só matá-los e se manter viva.

***
— Quatro feras, oito peças de prata — disse Rathla, colocando o saco
com partes dos animais sobre o balcão para provar seu serviço. — Como
combinado.

O dono da taverna olhou impressionado, mas não ousou questionar. O


manto da mercenária exalava uma autoridade óbvia. Mesmo que Van Ercelle
tivesse caído, questionar uma de suas guerreiras não era uma coisa muito
inteligente de se fazer.

— Obrigado, senhora — disse o velho grisalho. — Não é comum que os


lobos cheguem tão perto daqui, mas é como dizem: os tempos estão
mudando.

— Ainda assim, eu prestaria atenção nos próximos dias. Além de


arranjar alguém para vigiar o senhor e sua esposa.

— É claro, senhora.

O homem fez um sinal de agradecimento com as mãos e empurrou para


a mercenária as oito peças de prata e depois um caneco de cerveja.

A mulher o encarou.

— Por conta da casa, senhora. Pela ajuda.

Rathla estendeu a mão enluvada e pegou o dinheiro. Suas luvas eram


escarlates, assim como seu manto e o restante do velho uniforme de sua
ordem.

Exceto pelo barulho das panelas vindo da cozinha, o lugar permanecia


em uma espécie de silêncio secundário que os sons do ambiente pareciam
temer quebrar, se reduzindo ao mínimo possível. Rathla correu os olhos pelas
paredes de pedra do lugar e pensou que a queda da torre de sua ordem parecia
ter tirado um pouco da cor do mundo. Olhou o pôr do sol através das vidraças
sujas do lugar e depois para as mesas ao redor; pareciam opacas demais.

Além dela e do casal de hospedeiros, apenas dois fazendeiros bebiam


em um canto afastado. Era um movimento abaixo do comum para uma
estalagem de beira de estrada.

—... em Narba? Nesta época do ano? — Rathla pôde ouvir um dos


fazendeiros. A audição aguçada se focou nos dois por um momento, tentando
entender o teor da conversa.

O homem atrás do balcão esfregou a madeira de forma mecânica,


tentando achar uma maneira de conversar com a guerreira.

— Sabe, minha esposa pode arrumar um quarto lá em cima para você,


caso queira passar a noite. Nunca é bom viajar ao luar — disse o velho,
pensando que fora estupidez mencionar a última parte para uma guerreira
como ela. — Digo, não é bom dormir ao relento.

— Claro. — Ela empurrou uma moeda de volta para o homem.

— Não, não. Guarde isso. Será um favor para nós tê-la aqui. — Ele
sorriu, deixando à vista um dente faltando no canto da boca. — Vou chamar
Leena, e assim que o quarto estiver pronto eu lhe aviso.

Rathla pegou a cerveja e sentou-se em uma mesa, no canto oposto ao


dos fazendeiros, voltando sua atenção à conversa.

— ... Parece que foram duas, já. A última estava na praia, afogada. — O
homem deu mais um trago na cerveja quente e abaixou o tom. — A pele
estava azul como... você sabe.

— É mentira — disse o outro, coçando a barba rala. — Tenho certeza


que só se afogaram. Meu pai sempre dizia: “deixar criança perto d’água é
pedir para o mar levar.”

— É uma vila de pescadores, otário. Todo mundo nasce sabendo nadar,


já. Não são como as nossas crianças.

A bebida além da conta fazia com que os rostos dos dois homens
ficassem ainda mais expressivos. Estava claro que o primeiro deles estava
realmente perturbado. Não só pelas crianças morrendo afogadas, mas a pele
azul indicava que havia um mal maior. Um mal que aldeão nenhum desejava
ver em suas terras. Não era tão fácil quanto lidar com pragas e feras. Não se
podia pagar um mercenário para matar um raskiano.

No último ano, este havia sido o hábito que a mercenária criara: viajava
de aldeia em aldeia, ouvido boatos e eliminando pragas. Quando terminava,
seguia para a próxima. Não havia algo maior, não havia um objetivo. Apenas
sobrevivia.

O velho hospedeiro surgiu descendo a escada e acenou para ela,


indicando que o quarto estava pronto. Rathla empurrou o caneco para o
centro da mesa, ainda cheio, e se levantou. Gravou bem o nome em sua
mente: Narba. Era seu próximo destino.
2

Seus pés chapinharam nas pedras molhadas, ecoando nas paredes de


pedra ao seu redor. Suas mãos tremiam e as lágrimas que desciam por seu
rosto estavam camufladas pela água do mar. O medo que sentia parecia
congelar seus ossos.

Atravessou o limiar das pedras com a areia e parou por um instante para
respirar. Sua mente, sobrecarregada de pensamentos, não permitiu que visse a
sombra que dançava pelas pedras, oscilando com o reflexo da água, se
aproximando.

Ele então andou até um caixote quebrado e mofado que estava em um


canto, se abaixou e olhou o frasco de vidro que carregava. Seu conteúdo
brilhou numa cor esmeralda. Uma voz conhecida soou em sua mente.

Se acalme... não precisa ficar assim.

Ele respirou fundo e tentou conter o tremor. As imagens do garoto


morto correram sua cabeça.

Vamos! Não foi tão ruim quanto a primeira vez, não é?

Ele demorou a responder, temendo que a voz não saísse.

— T-tem razão.

O brilho se intensificou. A sombra chegava mais perto, estendendo a


mão translúcida para ele.

Respire, vamos. Confie em mim, como sempre fez.

— Eu... Eu vou ficar bem. — disse ele, mais para si mesmo do que para
a voz em sua cabeça. — Vai dar certo, não vai?
Vai! Logo, não vai sentir medo.

Ele então se deitou no chão, sentindo o cansaço de um trauma o puxar


para o sono.

A sombra ficou ali, velando por ele.

***

Anahid apagou as luzes na entrada da Baleia Afogada, a única


hospedaria de Narba, e entrou de volta no salão.

Não havia mais ninguém ali. Até mesmo o último bêbado já havia
partido, trôpego, vila afora. Entretanto, ainda havia trabalho a fazer. Já havia
limpado as mesas, levantado as cadeiras, varrido o chão e lavado os canecos.
Aos poucos, as tarefas pareciam chegar ao fim, mas a garota torcia para que
isso não acontecesse.

Se seus trabalhos acabassem, ela teria que voltar para casa, para perto
da mãe. Anahid odiava sua mãe.

Seria obrigada a ouvir reclamações e xingamentos, enquanto a mulher


destruía alguma coisa ou virava mais uma garrafa de bebida. Seria chamada
de vagabunda por ter ficado até tão tarde nas ruas — mesmo que fosse a
única com um emprego entre as duas. E durante todo o processo, a garota
teria que torcer para que a mãe não estivesse bêbada o suficiente para
resolver lhe bater.

Vahan entrou no salão, tirando a menina de seus pensamentos. Trazia


uma leva de lenha debaixo do braço esquerdo, que colocou no suporte ao
lado da lareira. Tinha a expressão cansada e os olhos vermelhos de sono.

— Sabe, estou cada vez mais velho para isso, garota. — disse enfim,
quebrando o longo silêncio costumeiro do fim de expediente. — Não é um
trabalho pesado como passar os dias no mar, mas a idade faz com que tudo
pareça exigir o dobro de esforço.

Ele desceu uma das cadeiras de cima da mesa e se sentou, grunhindo


enquanto se abaixava.

— Se quiser, posso terminar tudo sozinha. — A garota se apoiou no


balcão e encarou o homem. — Sabe que dou conta de fechar a Baleia, não é?

— É claro que sei, garota. No fim de tudo, estou lhe ensinando bem. —
Ele lhe deu um sorriso cansado.

Vahan sabia da situação familiar de Anahid, fora o motivo para o


hospedeiro ter lhe oferecido um trabalho. Sabia que, se ninguém fizesse nada,
a garota ficaria nas ruas e seguiria o mesmo caminho da mãe para as bebidas,
ou seguiria o pai para a cova. Nenhum dos fins lhe parecia uma aposta
melhor do que passar os dias na hospedaria.

—Bem... vamos experimentar, certo? — disse ele, se levantando. —


Não se esqueça de tirar o capacho, apagar a lareira e...

— Trancar as portas e conferir bem — ela completou sua fala.

— Isso mesmo. — Vahan lhe entregou a chave da porta e bagunçou os


cabelos curtos da garota, sorrindo. — Se continuar assim, vai se tornar uma
boa hospedeira um dia.

Ela enfim lhe devolveu o sorriso, enquanto o homem se afastava escada


acima.

***

A chave deu seu último giro na fechadura de ferro, trancando a porta da


hospedaria, e consigo o intervalo de sossego da vida de Anahid.

A garota permaneceu na entrada por um momento, encarando a vila. A


lua cheia iluminava as pedras da calçada e refletia nas ondas que se deitavam
sobre a areia da praia. Voltar para a casa, naquele momento, soava como um
desperdício daquela noite.

Geralmente, quanto mais tarde Vahan fechava sua hospedaria, mais


Anahid sentia que tinha as ruas só para si na madrugada. Raramente alguém
se aventurava a sair de casa com a mata tão perto da vila. Então, a garota
ganhou a rua vagando pelas pedras da calçada até o centro de Narba.

Gastou uns dez metros até conseguir escutar um chiado. Parecia o


barulho de folhas sendo pisoteadas, Anahid soube que alguém se aproximava
dali. Em sua mente, as imagens do corpo na praia se acenderam e ela pôde
ver a si mesma daquele jeito. Vou ser a próxima, merda. Então, correu até o
centro da praça, se jogando no chão e se escondendo atrás das pedras que
formavam a fonte. Prendeu a respiração, tentando não fazer barulho. O
coração pulava em seu peito, implorando pela vida.

Sob a luz da lua, Anahid viu a sombra de um garoto. Andava distraído


pela calçada, com um cachorro pequeno o seguindo. Lefter?, pensou ela,
confusa. O menino atravessou em direção à praia, quase passando perto da
fonte. Anahid respirou fundo, aliviada. Sabia que o garoto perambulava pela
cidade, mas nunca o vira na rua até tão tarde. Também não tinha a animação
que sempre vira nele. Lefter sempre a lembrava de um esquilo, esguio e
ligeiro. Agora, tinha o andar carregado, cansado.

Preparava-se para levantar quando ouviu mais passos. Desta vez, eram
pesados e vinham do mesmo lugar que o menino saíra. Era um homem — ou
pelo menos parecia ser. Tinha um manto sobre o corpo e levava nas costas
um fardo de lenha grande. Um capuz tornava a visão de seu rosto uma tarefa
difícil. Estava atravessando a entrada da cidade, indo em direção à trilha que
levava para o morro do lado direito da vila. Lá, só havia a casa do carpinteiro.
E aquele não poderia ser ele. Ao que tinha ouvido falar, o homem estava
doente e mal se levantava da cama.

Seguiu os dois com o olhar por um tempo, tentando entender o que


acontecia ali. Lefter vagou pela praia, distraído. Às vezes brincava com o
cachorro, jogando gravetos para que o animal fosse buscar. Mas até mesmo o
cachorro não parecia muito animado com a brincadeira. No fim das contas,
pensou Anahid, ele é só um menino estranho.

Abaixada, ela deu a volta na fonte e seguiu o homem de capuz. Ele se


esforçava para carregar o fardo de lenha, se encurvando para começar a subir
a trilha que levava para o monte. Parecia murmurar alguma coisa, mas ela
estava longe demais para conseguir escutar.

Anahid tirou as sapatilhas e continuou a segui-lo mais de perto.


Qualquer atividade que atrasasse sua chegada em casa seria mais que bem-
vinda.

Se sua memória não estivesse falhando, Madin era o velho carpinteiro.


Já havia cruzado com ele pela vila algumas vezes, mas suas lembranças dele
pareciam antigas. O velho realmente havia sumido nos últimos meses.

Desviando os passos dos arbustos que começavam a fechar a trilha,


Anahid tentou se aproximar mais do homem para ouvir o que ele falava, mas
foi inútil. Apenas o murmurar grave e ininteligível.

Não demorou para que uma lanterna da pequena cabana de madeira


fosse avistada. A luz amarelada fez com que as sombras parecessem mais
densas, tornando difícil discernir as coisas à sua volta. Então, Anahid parou
por um segundo, temendo fazer algum barulho. Seguiu passo a passo, com as
mãos estendidas, tentando não se chocar com nada.

O homem desceu o fardo de lenha de suas costas e pousou-o ao lado da


entrada. Ao se virar em seu movimento, Anahid pôde ver que realmente era
Madin. Estava com a face mais magra e a barba, cheia e grisalha, estava
maior do que de costume. Mas havia algo mais.

Ela deu os últimos passos, se aproximando até quase o fim da trilha, se


escondendo. Porém, fizera o movimento rápido demais. Os arbustos chiaram
sobre os pés da garota, chamando a atenção de Madin. O velho carpinteiro
virou-se para ela, assustado.

Então, Anahid viu sua face por completo.

— Quem está aí? — chamou ele, com a voz firme e inquisitiva.


Anahid permaneceu o mais imóvel que conseguiu, vigiando o homem
por entre as folhas. Seu coração batia em fúria mais uma vez. Merda, pensou
ela.

O homem deu um passo à frente, percorrendo o perímetro com o olhar.


Sem desviar a atenção, o homem tateou a lateral da parede, procurando dentre
o fardo de lenha. Puxou um dos galhos mais grossos e se armou. A luz da
lanterna não era forte o suficiente para iluminar além da mata, mas ao menor
sinal de movimento o homem não hesitaria em atacar.

A garota permaneceu encarando o rosto marcado do velho carpinteiro.


A cada movimento com a cabeça que o homem fazia, as sombras revelavam
mais da marca cinzenta que tomava quase a metade de sua face. Anahid
nunca vira nada parecido. A pele parecia enrugada e grossa, como a de um
lagarto.

Quando Madin ergueu o galho em uma posição ofensiva, a menina viu


que suas mãos também estavam tomadas pelas manchas.

Ela sentiu medo.

Não havia como sair dali de uma forma fácil. Então, enquanto
murmurava uma prece em pensamento, Anahid esperou o momento certo.
Madin andou pelo perímetro da entrada da cabana, tentando discernir
qualquer coisa entre a mata.

Anahid viu o homem se afastar, vigiando o outro lado, e então ela


correu.

Pulou cada arbusto como uma corça assustada, fugindo de um predador


prestes a abatê-la. Anahid continuou correndo, escutando as pragas do velho
atrás de si e torcendo para que ele não a alcançasse. Sequer olhou para trás.
Não parou quando começou a sentir as pontadas de dor na lateral de seu
corpo pela fadiga, ou quando sua respiração começou a falhar, insuficiente.

Anahid só parou de correr quando pulou a janela de seu quarto, se


escondendo debaixo de sua cama, ofegante e com medo.
3

O nevoeiro saía do mar e infestava a vila portuária de Narba. Subia a


estrada, se infiltrando entre as árvores e escondendo quase toda a estrada. As
folhas chiavam com o vento, se arrastando no chão de terra batida. Rathla era
como um risco de sangue escorrendo em uma folha branca, se movendo com
constância e determinação. Os cabelos negros esvoaçavam, chicoteando sua
face enquanto a mercenária cerrava os olhos, tentando distinguir a paisagem.

O cenário se abriu, tornando as árvores mais escassas enquanto o


barulho do mar se tornava audível. Em poucos minutos, Rathla já andava
sobre as pedras da cidade.

Era um lugar pobre. As casas, feitas em sua maioria de madeira, sofriam


com o efeito da maresia. Estavam distribuídas ao redor de uma praça e ao
longo da praia. Esta última não era tão longa, sendo delimitada por barrancos
e pedras que subiam até passar a altura das árvores. Narba era quase o ralo
daquela parte da costa.

Um cachorro latiu ao longe, e o barulho de um portão batendo cortou a


morbidez do lugar. Fora isso, não havia alma viva nas ruas.

Rathla andou até o final da praça, encontrando uma espécie de doca


seca, onde os navios eram levados para a manutenção. Lá, a mercenária viu
vários botes em partes. Pareciam abandonados, com materiais soltos e
reparos inacabados.

Não satisfeita, se encaminhou para o deque.

Finalmente, avistou alguém. Ao longe, dois homens carregavam uma


pequena embarcação. As roupas puídas falavam mais da situação da vila do
que qualquer coisa. Com certeza não era uma boa época para os habitantes.

— Alto aí! — exclamou o mais magro dos dois, tentando enxergar


através da névoa.
O segundo colocou o caixote no chão e se atentou também.

— Quem diabos é você?

— Baixa temporada? — perguntou Rathla, ignorando o homem.

O segundo pescador, reconhecendo o manto da guerreira, cutucou o


companheiro, censurando-o.

— Sim, senhora. As redes não têm pegado nada no último mês. Não
acho que vá encontrar muita coisa por aqui.

— Não foi o que eu soube no caminho de Altelo.

Os dois homens trocaram um olhar, se perguntando se deveriam ou não


falar sobre o que vinha acontecendo na vila.

— Senhora? — O mais corpulento se fez de desentendido.

O magrelo voltou a carregar o bote, fugindo da conversa. É de se


esperar que ninguém aqui vai querer falar sobre as crianças, pensou ela.
Pescou uma moeda de dentro de seu manto e atirou para o homem. O rapaz
pegou-a, desajeitado, e pareceu se assustar quando notou que era uma peça de
prata.

— Não me pareceu nada de mais, senhora. Eu não vi os meninos, mas


sei que um deles era da Tyla — disse ele, apontando para as casas próximas à
entrada da vila. — Sabe como são os boatos. Só caminham para o improvável
e impossível, e ainda assim o povo acredita.

Ao virar-se para olhar, Rathla notou uma casa maior que as outras.
Seguia o mesmo padrão de madeira e maus cuidados e tinha uma porta dupla.
Na frente, uma pequena placa apagada.

— A hospedaria ainda funciona?

— Vahan nunca a fecha. Pode chegar lá agora mesmo que o homem vai
te receber.
Os dois pescadores permaneceram observando-a enquanto a guerreira se
virava e se misturava com a névoa da manhã.

— O que aconteceu que do nada você ficou tão pomposo, falando


“senhora” para lá e para cá? — perguntou o mais esguio, debochando do
companheiro.

— Não me admira que seja tão burro, garoto. Era uma sectária de
Ercelle. Ela cortaria essa sua língua antes de você terminar de abrir a boca.

O garoto pareceu cair em si, tirando a expressão de deboche do rosto.


Ameaçou dizer algo, mas desistiu, voltando ao trabalho. O outro homem
ficou ali por um momento, olhando para o vazio, como se ponderasse se os
boatos realmente seriam verdadeiros. É claro que as crianças morreram no
mar, era óbvio e até previsível. Mesmo assim, Narba era muito pequena para
chamar a atenção de uma sectária.

Terminando de colocar todo o equipamento no bote, o rapaz mais novo


parou ao lado do amigo com uma cara de quem tinha mil dúvidas em sua
mente.

— A queda da torre não havia matado todas elas?

— Era o que eu também achava, garoto.

***

A porta da hospedaria se abriu com um rangido, revelando um interior


bem diferente das expectativas de Rathla. O lugar estava arrumado e com
cada tábua envernizada. A lareira já queimava um toco de madeira, dando um
tom alaranjado ao ambiente e dissipando a névoa que tentava entrar.

Três grandes mesas estavam dispostas perto do fogo, limpas e


convidativas. Atrás do balcão, um homem corpulento reorganizava uma
coleção de garrafas na prateleira. Escutando o ruído da porta, ele se virou e
encarou a mercenária.

A luz alaranjada do fogo dava um tom dourado à pele morena do


homem. Os suspensórios pareciam se esforçar além da conta para se
manterem sobre os ombros dele.

— Está meio longe de casa, senhora — disse enfim.

Rathla se aproximou do balcão, tomando uma posição estratégica pela


força do hábito.

— Você fala como se ainda houvesse alguma coisa naquele deserto.

— Só não achei que veria uma de vocês deste lado do continente. Na


última vez em que vi um manto escarlate, eu ainda tinha a outra mão — disse
o hospedeiro, levantando o coto no braço direito.

O homem deu uma risada carregada, que se transformou em uma tosse


no final. Depois de recuperado, indicou que a mercenária se sentasse.

— Imagino que esteja aqui pelas crianças, não é? — O homem deu a


volta no balcão enquanto falava, indo até a lareira. — Não há nada em Narba
além de areia e madeira velha de barco. Como sei que não está pensando em
velejar... — Ele deu de ombros, tentando conter os risos para não começar
outro ataque de tosse.

Tirou do fogo uma pequena caçarola que já fervia e a levou para o


balcão, servindo duas canecas do líquido.

— Os boatos são verdade? Houve mais do que afogamento?

— Eu não vi os corpos, para ser sincero. — Ele empurrou uma das


canecas para ela. — Mas Anahid viu o último. Chegou aqui com os olhos
marejados.

— Anahid?

— Trabalha aqui, e não demora a chegar — disse ele, tomando um gole


da bebida quente. — É uma boa menina, só teve o azar de nascer na família
errada.

Rathla tomou o chá, sentindo o gosto amargo de limão.

— Algo além das crianças?

— Bem, só a intriga normal de um lugar tão pequeno quanto a cabeça


de um prego. Ouvi uns pescadores outra noite dizerem que, para um padeiro,
o velho Kojo viaja demais. Mas também contavam histórias sobre o mar e
sobre mulheres. — O hospedeiro deu de ombros. — Mesmo que eu escute
bastante coisa por aqui, é difícil acreditar em beberrões.

A guerreira pareceu refletir um pouco sobre a fala do hospedeiro, até


que o ruído das portas da estalagem se abrindo tirou-a de sua introspecção.
Uma brisa fria entrou no lugar, trazendo consigo uma menina esguia e
magricela. Tinha a expressão preocupada e um hematoma na lateral do rosto.
O vestido sem mangas não parecia ser o bastante para esquentar a garota, que
tremia de frio.

O ar divertido e acolhedor do homem atrás do balcão o abandonou no


mesmo segundo em que viu a menina. Por um momento ele se atrapalhou
tentando servir mais uma caneca do chá, como se tentasse não encarar o rosto
marcado da garota.

— Senhora, esta é Anahid — Ele disse, empurrando a caneca de chá


para a menina.

Anahid encarou a guerreira, confusa. Seu olhar era rápido e esquivo,


não se fixando muito no rosto de Rathla e se mantendo no chão.

— Muito prazer, senhora — disse baixo.

— Rathla — disse a guerreira, que se levantou e estendeu a mão para a


menina.

Foi sutil, mas o ato de se apresentar e apertar a mão de Anahid fazia


parecer que a mercenária não estava ali como uma figura autoritária e
inquisitiva. Era como se Rathla se abaixasse, se nivelando até a garota e a
olhasse nos olhos. Assim ela começava a ganhar sua confiança.

— Bem... — disse o hospedeiro, ainda desconfortável. — Vou deixá-las


por um momento. Este lugar não vai terminar de se abrir sozinho.

Rathla encarou o rosto machucado da menina mais uma vez, criando


cenas em sua mente sobre o autor daquela violência. Sabia que havia mais
naquela vila do que apenas os atentados às crianças.

— Acho que vou precisar passar uns dias aqui — disse ao hospedeiro,
que parou a meio caminho da cozinha. — Pode me reservar um quarto?

Ele assentiu com a cabeça, sem se virar, e continuou para o interior da


estalagem.

— Então, Anahid — começou a guerreira, pousando a caneca de chá


sobre o balcão. — Pode me contar sobre as crianças?
4

— A areia estava toda revirada, como se ele tivesse tentado lutar. Mas
ele estava molhado. Tinha água por todo lado, e todo mundo ficou falando
que ele tinha se afogado.

Rathla prestava atenção na menina. Como era de se esperar, havia uma


pontada de medo em sua voz.

Ambas estavam sentadas frente a frente, o chá no balcão já havia


esfriado e a manhã parecia tentar começar mais cedo. A luz do sol fluía
através das vidraças, refletindo nas mesas do salão.

— Mas... ele não teria os machucados se fosse só isso. Tinha arranhões


no corpo e o pescoço estava roxo.

— E a pele? É verdade?

— Que estava azul? Bem, acho que sim. — A garota se ajeitou no


banco. — Não era como o mar, era mais branco do que azul. Mais azul do
que alguém que se afoga, mas não como as histórias.

— Quais histórias? — Rathla estava cansada de ouvir as mesmas


histórias. Mas era importante manter a menina falando. Além disso, poderia
ajudar ela a se lembrar de algo mais.

— Dos raskianos e de como eles deixam as pessoas azuis. Litia me


contou que seu pai viu um no mar uma vez. Que estava andando por cima da
água e rezando para Vä Rask. É claro que não acreditei, mas o pai dela conta
para todo mundo que viu alguém no mar. Eles podem mesmo fazer isso?

— Depende muito. A magia que eles usam funciona basicamente do


mesmo modo. Se realmente houvesse alguém no mar, ele estaria usando
algum objeto mágico nos pés. Do mesmo modo que eu uso o poder de Van
Ercelle para empurrar meu corpo ou aumentar a força da minha espada, essa
pessoa poderia usar algo mágico nas botas para impulsioná-la para cima.

— Então, ela poderia voar.

— Mais ou menos. Ela precisaria liberar uma quantidade enorme de


energia. — Rathla abaixou-se para ficar no nível da garota, olhando-a nos
olhos. — Agora, foco. Posso lhe contar sobre magia depois.

— Certo. — Anahid fitou os olhos de Rathla, e a mercenária pôde ver a


curiosidade dentro da garota.

— O que mais viu?

— Bem... nesse dia, foi só isso.

— Teve outro corpo depois do garoto de Tyla?

— Não.

A guerreira manteve o momento de silêncio depois que a garota


respondeu. Ela retorcia as mãos no colo em um conflito interno.

— Não sei se tem algo relacionado. — Anahid desceu da cadeira,


esticando o pescoço para conferir se Vahan estava por perto. O ato
tipicamente infantil fez a mercenária pensar que a garota tivesse entre onze e
quatorze anos. — Foi algo que vi ontem depois que fechei a hospedaria. Eu
estava voltando para casa quando vi Lefter e o velho carpinteiro andando pela
vila. É normal ver Lefter perambulando por aí, mas o velho Madin? Quem
vai buscar lenha no meio da madrugada?

Rathla memorizou o nome dos dois, tentando procurar relações com os


fatos que já conhecia. Era frustrante não saber nada muito preciso.

— Foi ele quem te machucou? — perguntou a guerreira, apontando para


o hematoma no rosto da menina.

Anahid abaixou o olhar e se encolheu, as lembranças do dia anterior


passaram por sua mente, lembrando-a da dor. Esticou os dedos para tocar no
machucado.
— Não. Acho que ele nem me viu.

— Então, quem foi?

Anahid desviou o olhar mais uma vez; era estranho falar sobre aquilo.
Geralmente, quando acontecia, Vahan simplesmente desviava do assunto e
passava o dia tentando ser mais gentil com a garota. Nunca tivera coragem de
perguntar. Aquela era a primeira vez que alguém perguntava de forma direta.

— Minha mãe. Ela... — A garota deixou que os ombros caíssem,


mostrando sua desistência. — Vai melhorar logo. Não é nada de mais.

Rathla a observou em silêncio. Falar sobre aquilo era delicado, e a


guerreira não queria correr o risco de que a garota se retraísse mais.

— Quer que eu faça alguma coisa?

Anahid levantou o olhar, encarando a mercenária. Ela tinha uma


expressão neutra e séria no rosto. Suas expressões pareciam sempre contidas
e a voz era profunda, como um longo sussurro em uma caverna.

— Ela vai melhorar — disse, enfim, a garota, tentando desviar da


imagem de sua mãe bêbada que surgia em sua mente. Porém, era difícil. Não
parecia haver sequer uma memória em que sua mãe não estivesse cheirando a
álcool.

***

Tyla estava sentada no alpendre de sua casa, os olhos inchados


denunciavam um choro recente. O cabelo preso em um coque fazia com que
parecesse mais velha do que realmente era, adicionando-se a isso todo o
desânimo e tristeza visíveis em suas expressões.

A mulher remendava uma rede de pesca enquanto falava.


— Ele só tinha saído para brincar, do mesmo jeito que fazia todos os
dias. Como eu ia adivinhar?

Ela não levantava o olhar para conversar com a guerreira, mas também
não prestava atenção no trabalho que suas mãos faziam. Parecia ser quase
instintivo.

— Não lhe falaram nada depois? As outras crianças que estavam com
ele?

— Não. Se alguém viu mesmo, está escondendo de mim.

Rathla deu mais uns passos e encostou-se na coluna de madeira que


apoiava o telhado do alpendre. Ao se mover, as tábuas sob seus pés
rangeram.

As madeiras do piso, tomadas por arranhados e areia, pareciam ter saído


de um navio fantasma. A porta da frente estava aberta, revelando para Rathla
um interior tão maltratado quanto o alpendre. Não parecia haver nada de
especial ali.

— E seus outros filhos?

— Os outros? — Mais um nó na rede, puxando-a para o lado, para o


próximo conserto. — Só me traz um aperto no coração em pensar que um
deles pode ser o próximo. Por Agelle, tenha certeza de que os dois mais
velhos vão com o pai na próxima pesca. Agora, até mesmo o mar me parece
mais seguro do que aqui.

Rathla escutou vozes de criança nos fundos da casa e imaginou que


seriam os outros filhos da mulher. A guerreira então andou até a lateral do
alpendre e se esticou para enxergar a parte de trás da casa.

Havia uma pequena horta cercada com estacas de madeira espaçadas e


de espessuras variadas. Parecia algo feito às pressas, por um marido que
passava mais tempo no mar do que em terra.

Dois garotos corriam um atrás do outro, brincando com um cachorro de


pelo malhado. O animal pulava e latia, tentando pegar um pedaço de corda
dos irmãos.

Um menino que parecia mais velho cuidava das poucas plantas, tinha o
rosto sério e o olhar distraído. Provavelmente, pelo golpe de realidade que
recebeu, pensou Rathla.

— Qualquer coisa que saiba pode ajudar, Tyla. — Rathla pousou a mão
enluvada no ombro da mulher, tentando soar mais leve. — Um boato, uma
suspeita. Alguém que desgoste de você e de seu marido.

A mulher parou com os remendos e fitou Rathla. Mais lágrimas


brotavam de seus olhos.

— As coisas ficam difíceis nesta época. É claro que nem todo mundo
gosta de mim e de Otien. Estamos devendo para metade da vila e não
conseguimos puxar uma rede cheia desde o ano passado. Mas matar uma
criança por uma dívida? Que Agelle leve minha alma se isso não for um
absurdo.

Rathla ficou em silêncio, esperando algo mais. Seu olhar correu pela
vila, não mais escondida pela neblina. Dali dava para enxergar a fonte e a
trilha que levava para um dos penhascos. Realmente, havia bem poucas casas
e a grande maioria estava trancada e semiabandonada. Estão todos no mar,
tentando sobreviver.

— Ouvi que a família do primeiro menino decidiu sair de Narba. Não


posso julgá-los, minha vontade é fazer o mesmo agora. Mas, e meu marido?

— Conhecia o filho deles?

— Só de vista. Foram alvo dos boatos quando chegaram. Ninguém aqui


gosta de gente nova, pelo menos não as que decidem ficar em Narba.

— E onde eles moravam?

Finalmente, Tyla encarou a mercenária. Suas mãos pararam de trabalhar


e apontaram para o outro lado da vila, em direção à trilha que subia um dos
penhascos.

— Tem uma velha casa entre o penhasco e a cabana de Madin.

Rathla sabia que não conseguiria muita coisa ali. No fim das contas,
Tyla era só mais uma pobre coitada que tivera a família desmembrada.

— Obrigada, Tyla — disse a guerreira, se aproximando da mulher.


Pegou uma de suas mãos, colocou algo e a fechou. — Para ajudar com as
crianças. Não devemos depositar nossa fé no mar. Ele é traiçoeiro e não
demora a rasgar nossas redes. Ainda assim, somos nós, mulheres, que
remendamos o que o mar destrói. — Rathla mostrou a rede no colo da
mulher. — Devemos permanecer assim, unidas como uma rede.

A guerreira se afastou e desceu os dois degraus do alpendre.

— Por que acha que elas deixaram isso acontecer com meu menino? —
perguntou a mulher em lágrimas, fazendo com que Rathla se virasse. — Eu
costumava rezar para elas. Achava que as deusas protegeriam meu menino,
mas, no fim, o abandonaram. Deixaram-no nas mãos de um raskiano.

— Não acho que seja culpa delas, Tyla. A falta de intervenção divina
não tira a responsabilidade de quem matou seu filho. E, quem matou seu
filho, veio do mar. Mais um motivo para não crer nele.
5

O dia pareceu começar apenas quando Rathla deixou a casa de Tyla. O


que antes parecia um lugar abandonado, agora, mostrava sinais de vida. As
casas habitadas tinham as janelas abertas e lençóis pendurados. Na doca seca,
agora, havia dois homens trabalhando na madeira de um bote. Fumaça saia de
algumas chaminés e crianças corriam pela fonte.

Em meio a tudo aquilo, contrastava o manto escarlate de Rathla.

A mercenária atravessou o caminho em direção à trilha indicada por


Tyla. Cinco meninos se equilibravam na beira da fonte, rindo e empurrando
uns aos outros. Um deles, mais magro do que os outros, tinha as roupas
manchadas. Um cachorro escuro o cercava, como se tentasse se juntar à
brincadeira.

Rathla se lembrou do que Anahid lhe contara mais cedo.

— Ei, garoto — chamou, atraindo a atenção dos cinco. Os risos foram


cortados no mesmo instante.

— Eu?

— Sim, você — disse ela, acenando com a mão para que um deles se
aproximasse.

O garoto deu três passos acanhados à frente, e o cachorro o


acompanhou.

— Lefter, não é?

Ele assentiu.

— O que acha de ganhar uma moeda? — perguntou ela em voz baixa.


Parte do receio do garoto foi substituído pela curiosidade. Os outros
garotos observavam, com a barra de suas bermudas pingando água e
formando pequenas poças aos seus pés.

Lefter deu de ombros, ainda sem falar nada.

— Sabe onde é a casa da família que se mudou?

Mais um sinal positivo.

A mão da mercenária surgiu de dentro de seu manto, mostrando uma


moeda de bronze para o garoto.

— É sua, se me levar até lá.

Ambos atravessaram a vila e subiram boa parte da trilha em silêncio.


Mesmo que Rathla tivesse perguntas para o garoto, não queria assustá-lo
antes que pudesse descobrir alguma coisa; algumas crianças eram mais fáceis
de conquistar que outras, e Lefter seria um desafio.

Entretanto, mesmo que não falasse muito, os olhos de Lefter diziam


muito sobre o garoto. Não passavam um instante sem que corressem em
direção à espada de Rathla.

— Gosta de espadas, então?

Ele assentiu. Fazer com que falasse era uma tarefa árdua. Geralmente,
uma moeda era capaz de fazer qualquer garoto nas ruas lhe contar o que ela
quisesse.

Rathla puxou a espada de sua bainha, fazendo a lâmina deslizar pelo


couro e refletindo a luz do sol. A atenção do garoto se fixou na arma.

Mais semelhante a um montante, a espada tinha o punho envolto em


couro tingido, uma lâmina com mais de um palmo de largura com dois vãos
em seu comprimento e uma guarda trabalhada em um metal avermelhado.

— Tenan disse que você usa magia, é verdade? — disse o garoto,


enfim.
— Ah, então você fala, não é? — Ela sorriu. — Tenan é seu amigo?

O garoto assentiu, com a face corada de vergonha. Mesmo assim, não


desviou os olhos da espada.

— Sim, eu ainda uso magia — continuou a guerreira.

— Acha que ela vai voltar um dia?

— Eu não sei, Lefter. Mas espero que sim.

Ambos chegaram em uma bifurcação no caminho e o garoto virou para


a esquerda, indo em direção ao morro.

— Muita gente foi embora da vila quando a magia acabou. Tenan


também me contou.

— O que mais esse Tenan disse?

— Que todo mundo partiu para a torre de Agelle, procurar o que restou
da magia. Ele disse que seu irmão mora lá e que ainda não é difícil de
conseguir armas mágicas, espadas que queimam e martelos que derrubariam
esse penhasco.

Rathla riu, tanto pela animação na voz do menino quanto da imagem


descrita por ele.

— Mas, você não acha que, se os objetos mágicos fossem tão fáceis de
conseguir assim, teríamos mais deles por aí?

— Bem...

Rathla parou a caminhada e o garoto a olhou, acanhado. A guerreira se


abaixou, usando sua espada como apoio.

— Acho que Tenan exagerou um pouco.

— Sabe, essa espada aqui tem me ajudado há um bom tempo. Desde


que está comigo, nunca consegui derrubar penhasco nenhum.
O olhar do garoto se fixou na espada, um pouco desapontado. A
guerreira o encarou. Então, bateu com o indicador na espada, trazendo a
atenção de Lefter de volta.

— Ela nem sempre foi minha, vê esses três símbolos gravados nela?

O garoto levantou o olhar. Três símbolos, compostos de alguns riscos e


curvas, estavam entalhados na base da lâmina.

— Eles indicam as antigas guerreiras que a usaram antes de mim. Todas


as três mataram centenas de inimigos com essa espada. — Rathla se levantou,
guardando a espada em sua bainha e os dois voltaram a caminhar. — Agora,
você já tem algo que Tenan não sabe para contar a ele.

***

Não parecia haver nada de especial na casa abandonada. Duas vidraças


quebradas e a falta de uma das tábuas da porta deixavam claro o rasto de
qualquer jovem que tivesse passado por ali.

Lá dentro, o chão era formado por um fino tapete de areia e sujeira. A


luz do sol entrava parcamente pelos vãos nas tábuas e pela porta que a
guerreira arrancara.

Lefter permanecia do lado de fora, apenas observando.

— Achou alguma coisa aí? — perguntou ele, evitando se aproximar da


porta.

— Ainda não.

— É...

— Algo errado?
Mesmo afastada, Rathla conseguia sentir o desconforto diante da casa.

— Nada. É só que Tenan disse que não é legal vir aqui.

— Ah, é?

— Sabe... pelo que aconteceu.

Rathla arrastou um caixote de madeira, fazendo uma porção de insetos


correrem assustados. Nada ali também.

— Acho que eu vou indo, não quero ficar aqui.

A guerreira apareceu no vão da porta, olhando o garoto. O desconforto


era palpável.

— Certeza? — perguntou ela, entregando a moeda para Lefter.

— É... Sabe... ainda preciso ajudar meu pai, também preciso buscar
Kerne na fonte... Tenho muita coisa pra fazer... — O garoto já se afastava,
andando de costas enquanto falava.

— Tudo bem, obrigada pela ajuda.

O menino assentiu com a cabeça e disparou pela trilha, correndo.

A guerreira observou-o sumir e então voltou para sua busca. Nos três
cômodos da casa, construídos com tábuas mais finas que seria normal, mal
havia rastros de que houveram moradores ali. Três caixotes de madeira —
provavelmente uma bagagem inviável para uma mudança às pressas — e um
pequeno saco de cinzas era tudo que a família deixara.

Fora os excrementos de ratos, areia e rastros de insetos, as caixas


estavam vazias. O saco de cinzas, provavelmente do fogo noturno que a
família acendia, foi virado no chão. Junto aos pedaços de madeira, Rathla
encontrou uma pequena estatueta de barro, que cabia em uma de suas mãos.
A face apagada pelo tempo e as cores descascadas não a impediram de
identificar a imagem: Van Ercelle. A deusa de cabelos loiros e manto
escarlate.
Mais do que o fato de aquela família ter se desiludido com sua fé depois
de perder um filho, aquilo revelava outra coisa: antes de se mudarem para
Narba, eles provavelmente viveram próximo à ilha de Tiáfron. Deste lado do
continente, as pessoas rezavam à Van Agelle.

Ercelle era apenas a irmã distante da deusa. Uma irmã que, aos olhos
dos extremistas de Agelle, não caía na simpatia de todos.
6
— Garoto! Venha cá.

Vahan acenou para que o menino se aproximasse. Jib, o filho do


ferreiro, andou pesadamente até o hospedeiro. O cabelo cor de ferrugem
estava molhado de suor e a camiseta, grudada no corpo.

— Seu pai não está trabalhando, não?

— Ele está consertando o fole, disse que vai aproveitar para consertar
tudo de uma vez.

Vahan desceu os dois degraus da hospedaria e se apoiou na coluna de


madeira da entrada. Desamarrou o avental sujo e o enrolou.

— Corra até o deque para mim, sim?

— Agora?

— É claro! Veja se o velho Bajes já voltou com algum peixe. Não tenho
muita coisa para dar de comer à sectária e seria bom agradá-la.

O garoto assentiu com a cabeça e saiu em disparado até as docas. Vahan


o viu se afastar, enquanto pensava nos outros dois garotos que desaparecera.
Narba está mudando, pensou.

***

O poente descia sobre o oceano, refletindo em tons de laranja no mar.


As sombras das crianças na praça se estendiam pelo chão, compridas como
serpentes.

Anahid estava encostada ao lado da porta da hospedaria, observando a


cena. Há duas semanas, naquela mesma hora, quase todas as crianças
estariam na rua brincando, enquanto seus pais preparavam o jantar. Agora,
apenas três ou quatro ainda corriam pela praia. Mesmo de longe, Anahid
reconheceu Lefter com seu cachorro e Jib, um menino corpulento que parecia
só fazer duas coisas: ajudar seu pai nos foles da forja e comer.

Os três chutavam água uns nos outros, correndo e se atracando em


algum conflito às vezes. Em momentos assim, onde havia tarefas a fazer e
não muita liberdade para brincar na praia, Anahid se sentia mais velha do que
realmente era. Não havia saído da infância, mas dentro de si pensava haver
uma alma velha.

Vahan apareceu na porta, tirando a garota de seus devaneios. O homem


tinha uma expressão incomum, como de alguém que sabia que se
arrependeria de suas próximas palavras.

— Garota, temos um problema.

— Aconteceu algo?

— Não exatamente — disse ele, atravessando as portas duplas. —


Como de costume, amanhã eu iria receber nosso carregamento em Altelo.
Normalmente eu te daria o dia de folga, mas não esperava que teríamos uma
cliente.

— Já se passou um mês? Parece que foi ontem que trouxe os últimos


barris.

— O tempo voa, criança — disse o homem, com sua risada chiada que
quase se transformou em uma tosse.

— Posso cuidar dela. Fecho a hospedaria e abro logo cedo. Ela nem vai
notar que não está aqui.

— Não quero que seja obrigada a sair da cama mais cedo...

— Mas, eu quero — cortou Anahid, diminuindo seu tom ao perceber


sua grosseria. — Já viu que consigo fechar a Baleia no fim do dia. Abri-la
não será um problema.

— Ótimo. — Vahan deu um sorriso amarelo, ainda inseguro. — Devo


voltar no fim do dia.

— Não se preocupe, cuido bem dela — disse a garota, dando dois


tapinhas no batente da porta.
7

O quarto não era muito maior que uma despensa, ficava no segundo
andar e parecia ter sido reformado havia pouco tempo. Uma velha cama com
o colchão de palha estava em um canto, e um lampião era toda a iluminação
do cômodo. Ao menos tem uma boa vista, pensou Rathla, olhando pela janela.
Podia ver a praia dali e uma das pedrarias que faziam a divisão do vilarejo.
Mesmo não sendo tão tarde, eram poucas as casas que ainda tinham algum
sinal de vida.

A guerreira começou a se desequipar, pousando a larga espada ao lado


da cama. Fez todo o processo de soltar seu manto, vestes e a armadura que
ficava entre os dois de forma mecânica e automática. Agradeceu mentalmente
à sua deusa por não ter que passar mais uma noite ao relento.

As ombreiras e o peitoral eram as partes mais pesadas de sua armadura.


Eram de um metal fino, para não limitar seus movimentos, e possuíam uma
fina textura ondulada, que aumentava sua resistência. Despi-las parecia livrar
a mulher do peso de ser uma das últimas de sua ordem. Quase se sentia como
alguém normal.

Antes da queda de Van Ercelle, ser uma das guerreiras de manto


vermelho era uma honra para poucas. Algo almejado por qualquer garota da
ilha de Tiáfron. Mas os tempos haviam mudado.

Quando a torre entrou em colapso, o núcleo mágico que irradiava de seu


topo explodiu em uma onda de luz e morte. Toda a vida fora dizimada no raio
mais próximo à torre. Na costa da ilha, aqueles que não morreram haviam
sido infectados com a energia, desenvolvendo mutações e doenças. Das
quinhentas guerreiras de sua ordem, apenas sete não estavam na ilha. Rathla
era uma delas.

Assim, não era fácil de se manter sem a torre. As sectárias dependiam


da energia mágica armazenada em suas armas. Sem a torre como uma fonte
constante, as guerreiras estavam condenadas a consumirem a energia dos
objetos mágicos espalhados pelo mundo.

As batidas na porta tiraram a guerreira de seus pensamentos. Estivera


tão distraída que mal ouvira os passos no corredor. Era Anahid.

A garota lhe estendeu uma bandeja com pão e uma sopa quente.

— Vahan mandou lhe trazer o jantar.

— Obrigada — disse Rathla, pegando a bandeja.

— Pode deixar no corredor quando terminar, eu pego depois.

A guerreira assentiu. Anahid a encarava, observando-a sem armadura.


Parecia querer lhe dizer alguma coisa, mas depois de um instante se virou e
desceu as escadas.

Rathla entrou para o quarto e deixou a bandeja no criado-mudo. Dobrou


o manto e descalçou as botas. Então, Rathla tirou as luvas de couro,
revelando os braços marcados pela doença, e o peso que havia saído com sua
armadura retornava aos seus ombros. Havia passado o curto momento em que
se sentia uma pessoa comum.

Suas mãos e três quartos dos seus antebraços estavam negros como
carvão. A pele havia criado uma espécie de casca, como o magma
solidificado que escorre sobre os lados de um vulcão. Suas veias haviam
adquirido uma cor alaranjada semelhante à energia mágica que emanava de
sua espada.

Embora ainda não sentisse as dores comuns aos que contraíam a


vulcanização, Rathla sabia que era apenas uma questão de tempo. Tinha
consciência de que, mesmo usando com mais cuidado a energia mágica que
ainda lhe restara, logo o envenenamento de suas células se espalharia por seu
corpo.

Aquele era o preço de ser uma Sectária de Ercelle.


***

Levou umas duas horas de sono para que Rathla cedesse ao que lhe
incomodava e levantasse da cama. A hospedaria estava tomada em uma
escuridão e apenas a luz do luar criava um tapete luminoso no chão do
quarto. O incômodo que a guerreira sentia era como uma vibração em seus
ouvidos. Sabia que não era exatamente um som, mas agia como se fosse.

Era a vibração da energia mágica de alguma coisa.

Entretanto, aquela que ouvira, ressoava de um modo diferente. Se fosse


comparar com sons, seria como ouvir um acorde soando com uma de suas
notas erradas. Alguma coisa não se encaixava bem nele.

Puxou a espada que repousava ao seu lado e se levantou. Os pés


descalços corriam o chão com a leveza de um felino.

Atravessou o corredor da hospedaria, seguindo a vibração que se


intensificava. Além do seu quarto, havia ainda mais seis ou sete portas no
segundo andar. Checou cada uma delas, colocando o ouvido nas portas para
tentar perceber melhor o sentimento de incômodo. A vibração estava mais
forte na penúltima porta.

Rathla sabia que era a única hóspede ali. Assim, apenas o quarto de
Vahan estaria ocupado. A guerreira não precisou pensar duas vezes para
deduzir que era o mesmo em que a vibração era mais forte.

Empurrou a maçaneta e não se impressionou ao encontrar a porta


aberta.

A lâmina de sua espada criou um risco de luz ao refletir o luar que


entrava pela janela. A mercenária se aproximou da cama, esperando encontrar
o grande homem, desmaiado como uma morsa.

A cama estava vazia.

Rathla se endireitou, liberando energia para seus sentidos por apenas


alguns segundos, e girou o corpo, varrendo o quarto com os olhos. A
escuridão se dissipou com a luz do luar que fora intensificada pela magia da
guerreira. Não havia ninguém ali.

Saindo da posição de ataque e cessando a energia, Rathla esperou que a


visão se adaptasse à escuridão novamente.

Acendeu o pavio da lanterna que estava em cima do criado-mudo de


Vahan e começou a vasculhar o quarto. Olhou sob a cama de madeira e os
dois móveis. Vasculhou as duas prateleiras em uma das paredes e atrás da
porta. Porém, foi quando se aproximou da janela que sentiu o foco de energia
com mais intensidade. Estava ali em algum lugar.

Tateou sobre o batente da janela e se abaixou para verificar sob o beiral.


Ao se agachar, a vibração se tornou mais forte. O chão, concluiu.

Bateu com os nós dos dedos em cada tábua próximo à janela. Uma delas
fez um barulho oco, diferente das outras. A guerreira arrastou o criado-mudo,
e, enfiando a ponta da espada no vão entre as tábuas, conseguiu levantar a
que se encontrava solta.

Do vão, tirou uma pequena caixa de madeira que cabia na palma de suas
duas mãos.

Pelas marcas e opacidade do verniz, Rathla pôde perceber a idade


avançada da caixa mesmo à luz fraca da lanterna. O tampo de cima da caixa
se abria em dois, revelando uma série de diferentes tipos de anzóis e
pequenos instrumentos de pesca. No fundo da caixa, uma pequena faca usada
para abrir peixes com iniciais gravadas em seu cabo.

Nada daquilo era a fonte da energia mágica.

Perdido no canto do estojo de pescas, havia duas conchas, furadas e


transpassadas com um cordão de couro. Em cada uma delas havia talhado um
símbolo que Rathla reconheceu: marcas raskianas.

Delas vinham a energia mágica.


8

Anahid girou a chave na porta e entrou na hospedaria. O véu de névoa


que a seguiu se dissipou assim que ela fechou a porta às suas costas. Tremeu
de frio e esfregou os braços para se esquentar. As manhãs pareciam cada vez
mais nebulosas.

Deu dois passos à frente até que viu Rathla sentada em uma das mesas;
o ar inquisitivo e sério a deixava mais velha. A placidez habitual em sua face
havia sumido. Um pouco do tremor de Anahid se transformou em medo.

— Onde está Vahan?

Anahid gaguejou, sem entender o que acontecia.

— Já viu isto antes? — perguntou Rathla, estendendo o estojo de pesca


para a garota.

— Não — respondeu finalmente, recuperando a compostura.

— E onde está Vahan?

— Ele foi até Altelo. — Anahid foi até a lareira, começando a acendê-
la. — Ele foi buscar o carregamento de cerveja do mês.

— Tem certeza?

— Como assim? Por que não teria?

— Porque não se pode confiar em tudo que um homem como ele diz.

— Um homem como ele?

Rathla ignorou a pergunta. Mostrou de novo o estojo para a garota.

— Tem certeza absoluta que nunca viu isso na vida? — A guerreira


sequer deixou a garota responder. Abriu a caixinha e puxou o cordão com as
duas conchas. — Já viu ele usando isso?

— Não. Já disse que nunca vi isso.

Sem paciência, Anahid se ocupou em acender o fogo. Falhou com a


pederneira algumas vezes até que finalmente as chamas começaram a crescer
na lenha.

— Quando ele normalmente volta?

— No fim do dia.

— Ótimo.

Um minuto de silêncio pesado caiu entre as duas. A garota se ocupou


em descer os bancos de cima das mesas e a abrir as janelas da hospedaria.
Depois de um momento, enquanto transitava pelo salão, ela viu a expressão
da mercenária mudar. Após um longo suspiro de insatisfação, Rathla voltou a
falar.

— Não queria te assustar... — começou uma desculpa torta, como se


não soubesse como fazer aquilo. — Eu só... Tome cuidado com Vahan, tudo
bem? Ele não é quem você pensa.

— Como assim? Ele é apenas um homem normal.

— Desde quando entramos na ordem de Van Ercelle, aprendemos uma


lição: são dos homens que veem os piores males.

***

Rathla seguiu o caminho até a bifurcação que havia passado quando o


garoto lhe guiara até a casa do primeiro morto. A frustração de não ter
encontrado nada de relevante na casa abandonada no dia anterior era um
sentimento esperado, o que não diminuía a inquietação que causava na
guerreira.

Olhou para a trilha que descia para a vila, se sentindo meio perdida.
Olhou para o lado oposto, para o caminho que seguia entre as moitas encosta
acima. Conseguia ver o telhado de uma cabana ao fundo. Decidiu subir,
lembrando-se do que duas noites atrás Anahid relatara.

De frente à cabana, Rathla não teve dúvidas de que aquela era a casa de
Madin. Ao lado do lugar havia uma parte coberta com telhas de barro, onde
ferramentas de marcenaria estavam organizadas sobre um chão forrado de
serragem.

A lanterna ao lado da porta ainda queimava, mesmo sendo dia. Ou você


saiu durante a noite e ainda não voltou, ou sequer saiu de casa pela manhã,
pensou Rathla.

Bateu três vezes na porta, atentando os ouvidos para alguma resposta.


Nada. Depois de quase um minuto, bateu novamente.

Tocou a espada e liberou sua energia, aguçando sua audição. Ouviu a


brisa arrastando as folhas de capim e a serragem como se fossem trovões e
tempestade, mas sua atenção estava focada em outra coisa. Conseguiu ouvir a
respiração ofegante de um animal dentro da barraca e os ruídos de alguém
andando lentamente.

— Vamos, Madin, eu sei que está aí! — Bateu outras três vezes na
porta. — Não quer mesmo que eu derrube esta cabana, não é?

Ouviu uma reclamação entredente e os passos andaram até a porta.

— Quem é você e o que quer?

— Abra a porta e descubra. — Ela empurrou a maçaneta, testando. —


Vamos, está com medo?

— Insolente, diga logo. — O carpinteiro tinha a voz rouca e parecia se


esforçar demais para falar, como se não houvesse mantido uma conversa há
um bom tempo.

— Quero saber sobre as crianças da vila. Tenho certeza que ouviu falar.
— Rathla bateu mais três vezes na porta. — Aposto que já ouviu por aí que
gente como eu não tem muita paciência. Quer descobrir se é verdade
também?

Depois de uma reclamação sussurrada, o homem abriu um vão na porta.


Rathla aproveitou o movimento para tentar abri-la totalmente, porém, havia
uma corrente de segurança.

O homem se afastou, assustado. Disse meia dúzia de palavrões e depois


apareceu com metade do rosto na abertura. Pela parte que conseguia ver, a
guerreira se deparou com um rosto acabado, pele ressecada e olheiras
profundas. Pode não estar de cama, como todos dizem, mas esse homem não
está normal, considerou.

— Não sei nada sobre criança nenhuma. Por mim, toda essa corja de
Narba pode afundar no mar.

— Não foi o que ouvi dizer — provocou a guerreira.

— Já mandei avisar que estou doente, sequer saio daqui. Você não tem
nada para me acusar.

— Não? Que tal perguntarmos para o garoto o que você anda fazendo
de madrugada?

Madin gaguejou um punhado de começos de frase, sem saber qual delas


terminar.

— Ele está aí que eu sei. — Ela o cortou. — Lefter, apareça!

— Não é nada disso, eu não...

— Vamos, garoto, está tudo bem! Eu ouvi você aí dentro.

O carpinteiro se virou, olhando o garoto que aparecia no campo de visão


de Rathla. Tinha a expressão assustada e segurava Kerne no colo, com o
cachorro quase escorregando por seus braços.

— Está tudo bem, Lefter? Ele te machucou? Fez algo com você?

O garoto negou com a cabeça, colocando o cachorro no chão.

— Já disse que não tenho nada a ver com isso, sectária. O garoto só está
me ajudando. Eu disse que estava doente.

Ela encarou-o com um olhar duro, o olhar de alguém que poderia cortar
qualquer um até obter a verdade. Madin estremeceu.

— É verdade, Lefter? Você está aqui para ajudar o velho? — perguntou,


sem desviar os olhos do homem. — Pode dizer a verdade, garoto. Se ele
encostar um dedo em você...

— É verdade, ele está doente mesmo — se apressou em dizer o garoto,


assustado.

Ela parou por um instante, avaliando a situação. Soltou o cabo da


espada, diminuindo qualquer vibração mágica que a arma pudesse emitir —
qualquer interferência dificultaria sua percepção de outros objetos mágicos
no local. Se focou e tentou localizar qualquer coisa. Era confuso. Com
certeza não havia nenhum traço significativo de magia, mas aquele lugar
também não estava limpo. Talvez algo antigo, algum objeto de antes da
queda, ponderou.

— E então? Vai ficar parada na minha porta? — Madin questionou,


depois do minuto de silêncio da guerreira.

Ela o ignorou.

— Qualquer coisa, sabe me encontrar, não é? — perguntou para Lefter.

O menino assentiu com a cabeça. Rathla não estava satisfeita, mas


também não poderia ficar ali. Encarou mais uma vez a metade do rosto que
conseguia ver do carpinteiro e depois saiu, remoendo-se em pensamentos.
***

Consegue sentir?, disse a voz em sua cabeça. Consegue sentir a energia


crescendo e ficando mais forte?

— Eu... eu acho que sim — disse ele, ainda inseguro.

Escondido nas sombras, apenas um frasco pequeno de vidro emitia uma


luz tênue; uma luz esmeralda, hipnotizante. Os fachos de luz que escorriam
por entre os dedos de sua mão refletiam nas poças de água do lugar, criando
uma espécie de espelho líquido. As paredes de pedra barravam o vento e
intensificavam a escuridão.

Significa que está dando certo! Significa que logo teremos poder
suficiente para nos encontrarmos, ficarmos livres enfim, murmurou a voz na
mente dele, tentando motivá-lo... influenciá-lo.

— Tem certeza? Não está me parecendo certo. Eu ouvi os boatos...

Não pode acreditar nessas pessoas, o que elas fizeram por você?
Quantas delas riram de você?, a voz se intensificou, cortando sua fala. Elas
merecem isso.

— Tem uma guerreira na cidade, ela me dá medo. Não quero ter que
encontrá-la de novo.

Não precisa ter medo, ela não fará nada com você. Ela NÃO PODE
fazer nada com você até que tenha certeza.

— É uma sectária...

Por isso mesmo. Ela nunca quebraria o juramento que fez. Vai ficar
tudo bem. Você não acredita em mim?

— Acredito... Mas...

Sem “mas”. O Próximo vai ser mais fácil.


9

De um dos quartos do segundo andar, Anahid viu Lefter sentado na


fonte. Não precisava correr com o trabalho, visto que Vahan estava fora. Dez
minutos depois, a garota passava pela porta com um prato de comida.

Quando sentou ao lado de Lefter, o garoto pareceu ficar tenso. Anahid


ficou quieta por um momento, esperando que o menino voltasse a ficar
confortável. Não era a primeira vez que fazia aquilo.

Kerne, por outro lado, tinha a animação de um cachorro com menos de


um ano. Rodeava a garota, balançando o rabo e esperando um pedaço de
comida. Anahid jogou um pedaço de pão, e o animal o pegou no ar.

— Sabe, tem bastante aqui — disse ela, sem olhar para Lefter. — Acho
que Kerne não vai dar conta de comer tudo.

Lefter se aproximou um pouco, olhando-a.

— Quer um pouco? — Ela ofereceu a comida junto de um sorriso.

Lefter assentiu com a cabeça, pegando o pão que Anahid lhe oferecia.
Enquanto ele comia, a menina o observou. Parecia mais magro do que o
normal, e talvez um pouco pálido.

— Os últimos dias não foram muito bons para nós, não é? — Sua mão
instintivamente foi ao rosto, tocando o machucado que sua mãe lhe causara.

Lefter não disse nada. Anahid não se incomodava; entendia o silêncio


dele.

— Prometo que tudo vai melhorar, para nós dois.


***

— Garoto, você já sabe como funciona — disse Madin, mostrando uma


moeda para Lefter. — Tire a tarde para marcar as árvores. Quando voltar, te
pago a outra parte.

Lefter assentiu.

Madin lhe ofereceu um giz, o garoto pegou e saiu disparado trilha


abaixo, com Kerne correndo ao seu lado.

***

— Aqui? — perguntou o garoto, apontando para o topo do barranco, em


direção ao mar. — É mentira.

— Se disse que vi, é porque é verdade. Vi a guerreira escondendo algo


importante por esses lados.

— Você está mentindo.

— Só vai descobrir se a gente procurar, idiota — disse o outro.

Isso! Ele está quase lá. Vai ser fácil, você já sabe como é, disse a voz
dentro de sua cabeça.

Jib seguiu na direção indicada enquanto procurava entre os arbustos


algum sinal de terra remexida. O garoto havia aproveitado que o pai estava
consertando suas ferramentas e por isso gastara o dia brincando. Sua
curiosidade, no entanto, o havia afastado dos outros garotos.

— Ele é maior que os outros, não vou conseguir fazer — sussurrou o


outro, respondendo a voz em sua cabeça.
É claro que vai! Eu estou aqui para te ajudar. Vou te dar força e
coragem, como fazíamos antes.

— O que disse? — perguntou Jib, andando para o lado, sem levantar os


olhos.

— Nada. Achou algo?

— Não. Eu sabia que estava mentindo.

— Eu vi, era um saquinho de couro. Aposto que era dinheiro. — Ele


apontou para o lado contrário do garoto. — Não é aquilo?

Jib se virou contra o outro e estreitou os olhos na direção apontada.


Depois disso, sentiu a pressão em seu pescoço, e seus instintos o fizeram lutar
pela vida.

As mãos do outro se contraíram mais, sufocando o menino. A energia


mágica corria por seus braços, dando-lhe forças. Entretanto, não parava em
seu usuário. Ela atravessava seus dedos, envenenando Jib.

No momento, que pareceu durar uma eternidade, o agressor pôde ver as


mil dúvidas desesperadas nos olhos do garoto que morria.

Um estalo soou mais alto do que o gorgolejar sufocante do garoto, e sua


cabeça pendeu de lado; seu pescoço havia quebrado.

Depois que o corpo havia caído no chão, o agressor gastou um instante


para recuperar o fôlego. Sentia uma sensação boa se espalhar pelo peito, uma
coragem que dissipava todo medo que sentia.

Então, se abaixou e empurrou o corpo, deixando-o cair do penhasco.


Por um momento, viu o corpo entre as pedras e pensou que poderia ter ficado
preso. Aquilo seria um problema. Em seguida, uma onda mais forte o
empurrou e o corpo se mexeu. Não demorou para que afundasse e fosse
engolido pelas marés.
***

Quando a tarde já se encaminhava para o fim, o velho Bajes coçou a


longa barba e, andando até a popa, chamou seu ajudante.

— Puxe a rede, garoto. Já chega por hoje.

O garoto, magro e alto, não era tão jovem assim. Mas para Bajes
qualquer um que não fosse tão corpulento e barbado como ele, era um garoto.
Ambos, diferente dos outros pescadores de Narba, não passavam mais de um
dia no mar. Bajes dizia que estava velho demais para isso e preferia dormir
em sua cama. Assim, mesmo não sendo tão lucrativo quanto a tradicional
vida no mar, ele mantinha o hábito de navegar apenas durante o dia.

— Nada de produtivo de novo, não é?

O garoto ainda puxava a rede, em um esforço maior do que o de


costume.

— Garoto?

— Pegamos algo, senhor.

Bajes foi até o rapaz, ajudando-o a puxar a rede. O barco sofreu uma
pequena inclinação pelo peso dos dois homens e logo se estabilizou.

Na rede, puxada para dentro do barco, algo escuro e coberto de algas


permanecia imóvel, em contraste com os poucos peixes que se debatiam ao
redor.

O garoto virou o volume, puxando as algas entre os buracos da rede, e


encarou o rosto morto de uma criança. A pele molhada revelava um tom
azulado.

Bajes o encarou e depois voltou os olhos para Narba, não muito distante
no horizonte,
— Mais essa, agora.
10

— Não acho que é ele — disse Rathla, comendo o prato de peixe e


vegetais que Anahid havia trazido da cozinha.

A garota andava pela hospedaria, levando o balde d’água com o pano


que usava para limpar as mesas, balcões e prateleiras de bebidas do local. Às
vezes, parava na mesa da guerreira e trocava uma dúzia de frases.

— Mas, e o que eu vi de madrugada? Ainda não faz sentido Madin estar


vagando por aí enquanto diz para todos que está de cama.

— Eu teria sentido alguma coisa se ele fosse um raskiano.

— Como assim, sentido?

— Não é segredo para ninguém que qualquer objeto que tenha alguma
energia mágica emite uma espécie de vibração.

— Mas se é assim, todo mundo conseguiria achar os itens mágicos que


resta.

— Disse que não é segredo, não disse que era fácil. Exige um
treinamento e concentração que leva um bom tempo para se aprender a sentir
essa vibração. Muitos acham que é um som e tentam ouvir a magia. Só
porque descrevemos com um som, não quer dizer que o é de fato.

Anahid parou de limpar as garrafas na prateleira atrás do balcão e se


virou para Rathla, pensando em suas palavras. Era encantador pensar além do
senso comum daquela vila.

— Mas... até mesmo aqui em Narba pode ter algo mágico?

— Com certeza deve haver uma dezena deles. Antes da queda, as duas
torres emanavam magia pelo continente e as ilhas ao redor. Armazenar a
energia delas em objetos era um trabalho relativamente comum nas cidades e
vilas um pouco maiores que Narba. — A guerreira separou a espinha do
peixe em seu prato e se forçou a comer mais um pedaço. Odiava peixe. —
Amaul era uma vila famosa por isso.

— Colocar magia nas coisas?

— É. — Mais um relutante pedaço de peixe. — Kell foi um ferreiro de


lá que estudou em Van Ercelle. Foi um especialista na área.

No pouco tempo que passara com a menina, Rathla se via criando uma
espécie de afeição. De algum modo, a garota lembrava ela mesma em seus
treze ou quatorze anos. Não fisicamente, é claro. Mas na curiosidade.

— E por que alguém iria energizar algo que não fosse uma arma?

— A energia mágica é muito mais do que poder de combate. Um objeto


energizado dura muito mais tempo para se deteriorar do que normalmente.
Principalmente os metais.

Anahid levou o balde de água até os fundos da hospedaria e gastou uns


bons minutos para voltar. Rathla terminou sua comida e agradeceu à deusa
por mais uma refeição quente. Mesmo que fosse peixe.

— Tem certeza que não é ele? — perguntou Anahid, aparecendo na


porta da cozinha e recolhendo a louça de Rathla. — Ninguém mais me vem à
cabeça.

— Certeza é algo forte demais. Mesmo que suspeito, Madin não é um


raskiano. Mas não se preocupe, ficarei de olho nele.

Anahid olhou a guerreira, preocupada. Lembrou-se da falta de meninos


brincando na praia, do barulho dos cachorros da vila presos nas casas de seus
donos. O povo de Narba se retraía para um convívio de medo e cautela.

— Falta muito? — Rathla se levantou, olhando o exterior da hospedaria


pelas vidraças.

— Acho que não — disse Anahid, acompanhando o olhar da


mercenária. — Vahan deve chegar a qualquer momento.

— Ótimo. Faça o que combinamos e fique lá em cima.

— Ele fez alguma coisa?

— É o que vamos descobrir.

***

Vahan atravessou a porta dupla rolando um barril de cerveja para os


fundos da hospedaria. Havia descarregado os outros três na entrada com a
ajuda de uma carroça, e agora os trazia para dentro.

Depois do último, parou na porta da cozinha e levantou os braços,


alongando as costas. Não tinha mais tanta disposição como tivera na
juventude.

Seu olhar caiu sobre a pequena caixa de madeira em cima do balcão.


Em todas as três vezes que passara pelo salão, tinha certeza de que ela não
estava ali.

— É seu, não é? — soou a voz firme da mercenária enquanto ela


aparecia das escadas.

— Como...?

— Me impressiona eu não ter achado antes, na verdade. Foi difícil


dormir com isso soando feito um sino.

— Não é o que você está pensando.

Os olhos de Vahan caíram na espada empunhada pela guerreira. A


mulher parecia crescer a cada passo que dava em sua direção.
— Não?

A costumeira expressão descontraída do hospedeiro sumira de sua face.


Vahan instintivamente começou a dar passos para trás, cozinha adentro.

— Acho que vai ficar bem feliz em me explicar, então.

— Não é meu. Isso faz tempo. Não tenho nada a ver com as crianças. —
A mão do hospedeiro segurou o coto do outro braço.

Rathla abriu a tampa do estojo de pesca, revelando os colares.

— Então, os colares raskianos não são seus?

A ponta da espada parou na garganta de Vahan. O homem deu mais um


passo atrás e encostou na parede. De um lado o fogão, do outro, a porta dos
fundos. Os dois cachorros do hospedeiro latiam atrás da porta, ansiosos por
serem soltos.

— São. São meus, mas não tive nada a ver com as crianças. Eu era
pescador, isso era normal antes da queda.

— Nunca foi normal.

— Olha... tente entender. Eu e minha mulher éramos jovens. Não posso


dizer que me orgulho disso.

— Continue. — A espada se afastou um pouco do pescoço de Vahan.

— Narian já era fiel à Vä Rask quando a conheci. A família dela era


toda formada de pescadores, de uma vila mais ao sul. Mas ela era diferente,
não mexia com magia. — O hospedeiro estava com os braços levantados,
tentando apaziguar o temperamento inquisitivo da mercenária. — Eu só me
converti para me casar com ela. Eu navegava no mesmo barco dos tios dela,
não tive escolha.

— E por que ainda estão carregados? Por que ainda tem eles?

O homem ficou em silêncio. Segurou a tosse por um momento, mas não


aguentou. Depois que parou de tossir, voltou a falar.

— Foi a única coisa que trouxemos daquela antiga vida. Foi o pai dela
quem me tomou a mão. Na noite em que fugimos, eu quase morri. Não fosse
pela magia dos colares, meu corpo não teria se curado a tempo.

Rathla abaixou a espada, finalmente. Porém, não saiu do estado de


alerta.

— E por que ainda estão carregados?

— Eu não sei.

— Você os usou de novo?

— Estão guardados desde que Narian morreu. Prometi a ela que nunca
usaria.

Ainda na cozinha, a mercenária pegou uma das colheres que estava ao


lado do fogão. Tinha um cabo de metal; não era nada muito puro, mas
serviria. Encostou o talher nos colares e puxou a energia, fazendo com que se
transferissem para o metal da colher. Depois, com mais esforço do que seria
exigido normalmente, a mercenária o quebrou.

Rathla encarou-o por um momento, ponderando sobre o que fazer. Não


parecia que o homem estava mentindo. Mas é o que os homens fazem,
pensou.

Então, enquanto encarava o hospedeiro que se encolhia na sua frente, o


sino do porto soou, o que só poderia significar algo naqueles últimos dias:
mais um garoto morto.
11

A mercenária atravessou as ruas de Narba correndo, em direção ao


porto. Anahid a seguia em uma velocidade mais lenta, e outras pessoas se
juntavam em uma pequena aglomeração no porto.

De longe, Rathla viu os mesmos dois homens que encontrara quando


chegara na vila. O mais esguio deles puxava a rede para fora do barco,
enquanto o outro tocava o sino.

— Achei que gostaria de ver isto, senhora — disse o velho, vendo


Rathla se aproximar.

Deitado sobre as tábuas encharcadas do deque, estava um dos meninos


que vira no dia anterior. O corpo robusto fazia com que a pele azulada se
destacasse. Rathla ainda conseguia sentir a energia raskiana emanando do
cadáver, se dissipando aos poucos. O pescoço estava mais escuro que o resto
do corpo do garoto, mostrando sinais de enforcamento. Uma quantidade
considerável de feridas e hematomas preenchiam as partes visíveis dos
membros dele.

Esse veio do mar, é diferente dos outros, pensou. Quem está fazendo
isso está com medo.

— É Jib! — disse Anahid, ao lado da guerreira. — Por Agelle, como...

— Vá, garota. Não sobrou muita coisa para ver aqui.

Anahid, ainda em choque, permaneceu encarando o cadáver por mais


um instante. Cada garoto que morria parecia ser mais próximo dela do que o
anterior. A imagem de Lefter veio à sua mente, fazendo uma lágrima
despontar de seu olho.

— Anahid! — chamou a mercenária.


A garota saiu da multidão e correu para a hospedaria.

Rathla se abaixou, virando os braços do cadáver. As marcas não


condiziam com as descrições das outras duas vítimas. Desconsiderando os
efeitos da água salgada e os danos que o mar possa ter causado no corpo, não
parecia que Jib tinha morrido há muito tempo.

Talvez há umas três ou quatro horas?, chutou a guerreira.

Mesmo que todas as incertezas e questionamentos apenas crescessem


em sua mente, algo pareceu mais certo: provavelmente não fora Vahan.

Rathla se levantou e encarou o pescador corpulento.

— Avise os pais do garoto.

Então, voltou para a hospedaria.

***

— Mais um garoto? — perguntou Vahan, de trás do balcão.

Rathla assentiu com a cabeça, como se o homem pudesse vê-la. Deixou-


se cair em uma das cadeiras do salão, sentindo-se perdida. Asha já teria
resolvido tudo isso, pensou, se lembrando de uma companheira de sua ordem.
A antiga amiga, provavelmente enterrada sob a torre, tinha uma inteligência
invejável que fazia falta no momento.

— Me perdoe por duvidar de você.

— Não precisamos falar disso — disse Vahan, virando-se. O homem


tinha a expressão amigável de sempre, como se nada houvesse acontecido. —
Era seu trabalho. Precisava fazer o que é certo.

— Minha noção de certo, cada vez mais, parece ter caído junto com a
torre...
12

Rathla subiu as escadas da hospedaria em direção ao quarto. Sentia-se


fraca e tola por ter pensado que Vahan poderia estar por trás dos crimes.
Precisava descansar. Mas um pensamento de preocupação cruzou sua mente,
lembrando-a de que não poderia ficar em Narba por muito mais tempo pela
escassez da energia de sua espada. Mesmo que racionasse a magia, ela não
duraria para sempre.

Quando começou a desabotoar o uniforme, teve a impressão de que ele


ficava mais pesado a cada dia. Ou então, é você quem está ficando fraca,
pensou. Fraca e velha para uma sectária.

Rathla pousou o manto sobre a cama e tirou as luvas. Passou um


momento em pé, olhando para seu rosto parcialmente refletido na janela.
Diferentemente de muitas outras de sua ordem, não havia adquirido muitas
cicatrizes pelo corpo.

Alguns diriam que era por ser uma formidável guerreira, outros, que era
apenas a falta de experiência. Para ela, só tivera um pouco de sorte nos
últimos anos. Fosse nas batalhas, ou em não estar no lugar errado na hora
errada. Mas, principalmente, de não estar em Tiáfron quando a torre caiu.

O som da porta se abrindo chamou sua atenção. Mas antes que pudesse
falar alguma coisa, Anahid entrou de costas no quarto, puxando um balde e
um esfregão. Levou um segundo para notar que a guerreira estava ali,
estacando no mesmo instante. Sua face corou, e ela agitou as mãos em
desculpas.

— Eu não... Eu só ia... Achei que ainda estivesse lá embaixo, e pensei


em limpar tudo antes de você... — A garota parou de gaguejar quando viu os
braços de Rathla.

A mercenária percebeu o olhar de Anahid e escondeu os braços atrás do


corpo.
— Me desculpe, mesmo. — A garota empurrou o balde para o corredor,
abaixando a cabeça. — Vou te deixar sozinha. Não vai acontecer de novo.

— Anahid.

— Sim? — disse ela, ainda encarando o chão.

— Não tem problema. — Rathla foi até a porta, tentando não parecer
intimidadora.

— Você está bem? — A garota indicou os braços da guerreira com os


olhos.

— Vamos, entre aqui.

A garota deixou o esfregão e o balde no corredor. O olhar baixo de


Anahid mostrava muito mais do que a tensão que ela sentia; era como um
vira-lata, encolhendo-se para evitar uma agressão qualquer. Ela se sentou na
beirada da cama e, mesmo sabendo que a mercenária não seria capaz de
machucá-la, sentiu medo.

Rathla notou a apreensão da menina, e isso a fez sentir dó. Quanto


trauma uma mãe pode causar?, se perguntou, fechando a porta atrás dela.

***

— É o custo do bem, sabe? Ter o corpo consumido até a morte é o que


pagamos por usar o poder de Van Ercelle. A magia consome o corpo cada
vez que a usamos. Entretanto, pelo uso contínuo e regrado, os efeitos são
menores nas pessoas de minha ordem.

— Mas... não tem um jeito de fazer isso sem... — Anahid gastou um


instante, tentando achar uma palavra adequada.

— Sem morrer no processo?


— É.

— Na minha idade, meu corpo já se acostumou com a magia. Passei a


depender dela para viver. Nesse ponto, a falta de magia é o que causa isso —
disse, indicando os braços. — Não há magia sem custo, Anahid. Só Vä Rask
promete vida eterna aos seus fiéis. Mas, no fim, por mais bem-cuidado e
alimentado que seja, um escravo ainda não é dono de sua própria vida. E ser
um escravo da fé é ainda pior, pois sua servidão continua depois da morte.

Anahid continuava a encarar os braços doentes da guerreira. A cor e a


textura lhe faziam pensar em pedaços de carvão em brasas; sem a chama para
lhe dar vida, mas, ainda assim, ardendo por dentro. Para a garota, ainda
parecia um absurdo sacrificar o próprio corpo.

— Mas por que Van Ercelle permitiria isso?

— É diferente, garota. Eu não fui obrigada a servir Van Ercelle. A


escolha foi minha. Eu sabia das consequências quando aceitei o fardo e havia
mais magia antes. Não fazíamos ideia de que ela poderia acabar. As sectárias
geralmente morriam em batalha antes que a vulcanização começasse.

— Havia muitas batalhas?

— Havia guerras, esquadrões de sectárias eliminando os males do


mundo. Protegendo o restante das pessoas em nome das deusas.

Rathla fechou as mãos, apertando a pele negra e endurecida; era como


apertar um punhado de areia.

— Por isso, começaram a nos chamar de sectárias. Era algo pejorativo,


antes de existirem as torres. Chamavam os fiéis de Ercelle e Agelle assim por
serem irreverentes quanto sua fé.

Rathla voltou-se para a garota, tentando espantar as lembranças do


passado. A garota a olhava com atenção. Os grandes olhos brilhantes
pareciam tentar imaginar as falas da guerreira.

— Quando começaram a estudar a magia e não podiam provar que ela


existia, os fiéis eram taxados de loucos por não desistirem das deusas.

— Mas eles provaram que a magia existe. Isso não devia ter parado?

— Não é tão fácil assim. Nem todos os adultos crescem de verdade,


sabe? A grande maioria, lá no fundo, ainda se comporta como criança. Só
aprendem a disfarçar isso.

— Como assim?

— Bem, imagine como todos aqueles que riam dos seguidores de


Ercelle e Agelle ficaram quando descobriram que estavam errados?
Admitiram e se desculparam? — Rathla riu, tentando quebrar a tensão
estampada no rosto da menina.

— É claro que não — disse Anahid, enfim sorrindo.

— Pois é. Levou anos para que a magia parasse de ser taxada como algo
profano. E só depois das torres é que se tornaram algo tão cotidiano.

— Mas agora acabou. Não tem mais a torre.

— Por enquanto, Anahid. A magia em si não acabou, ainda existe muita


magia por aí, em armas e objetos. As duas torres apenas distribuíam a magia.

A garota se levantou da cama, parecendo um pouco mais tranquila.


Ainda era estranho olhar para os braços de Rathla, mas agora ela entendia
seus motivos. Pelo menos parte deles.

— Pode ser que não haja outra torre. Mas, um dia, a magia irá retornar.

— Como pode ter certeza? — perguntou Anahid, atravessando a porta


para o corredor.

— Van Ercelle não abandonaria seus filhos assim.


13

Sob o luar, a porta da hospedaria foi trancada. Do lado de fora, Rathla e


Anahid se encararam por um momento. Na penumbra, a garota pensou no
quanto a guerreira se parecia com uma assombração. O manto balançando
levemente com a brisa e o escarlate destacando-se no escuro. Um fantasma
feito de sangue, pensou.

— Tem certeza que não quer que eu te acompanhe? — perguntou


Rathla, quebrando o momento de fascinação da garota.

— Tenho. Vou ficar bem, moro logo ali.

Ter a companhia de Rathla só tornaria a volta para casa mais rápida. Era
o contrário do que Anahid queria.

— Certo — disse Rathla, descendo os degraus do alpendre. — Mais ou


menos nesse horário que viu Madin, não foi?

— Sim. Vai segui-lo?

— Preciso descobrir uma coisa. — Rathla iniciou a caminhada com os


passos silenciosos. — Tome cuidado no caminho.

— Pode deixar.

Anahid a observou andar por mais um instante antes de partir. Um


fantasma feito de sangue, veio em sua mente mais uma vez.

***

Rathla esperou quase meia hora até que houvesse uma movimentação
na cabana. Madin saiu e trancou a porta. Usava um capuz e trazia um
machado em uma das mãos. A vibração confusa ainda estava no lugar, e
parecia vir do homem. Era estranho.

A mercenária esperou que ele descesse a trilha para analisar a cabana.


Não havia vibrações mágicas ali.

Desceu a trilha atrás dele, seguindo-o de longe e com os sentidos


aguçados. Ele não levava lanterna alguma e tentava ser o mais discreto
possível. Ao chegar no fim da descida, ele virou para a trilha que levava até a
mata.

A mata era aberta e as árvores nela eram altas e não muito longas. Havia
uma grande quantidade de eucaliptos espalhados dentre outras espécies de
plantas. O cheiro róscido pairava no ar frio. Ambos andaram quase um
quilometro até que o homem parasse e começasse a examinar as árvores.

Ao achar o que procurava, Madin começou a golpear o tronco com seu


machado.

Rathla esperou por um momento, até ter certeza de que o carpinteiro


não terminaria de derrubar a árvore tão cedo. Então, rodou o lugar,
examinando o que haveria de especial na mata.

Não faz sentido trocar o dia pela noite, pensava. Andar até tão longe
para buscar madeira. Por que dizer a todos que estava doente, se o homem
continuava a trabalhar?

Então, depois mais meio quilometro, ao se deparar com uma pedreira,


Rathla achou a resposta.

Da rocha, rica em metais, emanava a mesma vibração mágica que


sentira em Madin — fraca, difusa e inconstante. No mesmo momento, tudo se
encaixou em sua mente. Ela sentia a mesma vibração nos animais mutantes
que eliminava para proteger os vilarejos. A estranheza do fato durou apenas
um instante, pois no fim era lógico: a energia mágica irradiada da torre, que
havia causado as mutações, era melhor armazenada em objetos metálicos —
como sua espada, por exemplo. Narba estava relativamente mais perto de
Tiáfron do que o resto do continente. Assim, um corpo metálico tão grande
quanto uma pedreira poderia ser uma imensa bateria mágica.

A pedreira, por sua vez, se tornara um pequeno foco de radiação. Uma


pessoa que passasse mais de um ano trabalhando nas redondezas, muito
provavelmente teria seu organismo afetado pela magia, mesmo que em baixa
quantidade.

Madin, assim como os sobreviventes na ilha de Tiáfron, estava sofrendo


com as mutações, o que fazia com que o sol se tornasse fatal para ele.

Rathla contornou uma parte da pedreira, chegando num ponto em que


estivesse totalmente fora do campo de visão do carpinteiro, mesmo estando
longe. Abaixou-se e tirou a espada de suas costas.

Pode ser uma maldição para você, mas para mim é uma bênção,
pensou, tocando com a espada na superfície das pedras.

A superfície emitiu um leve brilho alaranjado onde se tocava com a


pedra, e Rathla sentiu a energia mágica invadindo sua arma até que a pedreira
deixasse de ser algo nocivo para o ambiente. Com aquilo, mesmo sendo uma
energia mais fraca, garantiria sua sobrevivência por pelo menos dois meses.

***

Anahid abriu a porta de sua casa com o cuidado de sempre. Chegava a


ser irônico o modo como podia discernir a presença de sua mãe até mesmo no
escuro. O cheiro de álcool e suor vindo da mulher infestava o ar, fazendo os
olhos da menina marejarem. Mas não era só o cheiro que trazia as lágrimas; o
medo também.

— Cada dia chega mais tarde, não é, menina inútil? — A voz arrastada
trazia consigo o desprezo.

Anahid não respondeu. Sabia que só pioraria as coisas. Então, cerrou


os dentes, travando o maxilar. Como previu, o primeiro tapa não demorou.
Veio torto e mal dado, acertando apenas a ponta dos dedos na face da garota.

Mesmo que não houvesse sido certeiro, fora apenas o tapa inicial. A
mulher tentaria de novo. Ela sempre tentava

***

Levantando-se do chão, Anahid saiu da posição encolhida que estivera


para tentar se proteger dos golpes da mãe. Lutava para segurar os soluços,
mas era uma tarefa quase impossível. O choro silencioso era entrecortado
pela respiração, mas, fora isso, apenas existia o som ritmado do gotejar da
garrafa de vinho tombada sobre a mesa.

Mesmo de pé, a garota demorou a finalmente sair do lugar. Geralmente,


iria direto para sua cama, se encolher debaixo de sua coberta e tentar ignorar
os machucados latejando para que conseguisse dormir.

Mas não naquela noite.

Os pés descalços andaram sem medo pela casa; depois que o álcool
derrubava sua mãe, era impossível acordá-la.

Andou até o quarto de sua mãe com o ódio à flor da pele. Anahid nunca
teria coragem de levantar uma mão contra sua progenitora. Sabia que a
bebida a tornava uma mulher horrível, mas também tinha consciência de que
o álcool apenas era um intensificador do mal que já havia na mulher. Porém,
a dor física não era a única forma de se vingar.

O casebre estava em um silêncio mortuário, e isso intensificava tudo


que passava pela sua mente: palavras ditas por Rathla sobre objetos mágicos.

A garota entrou no quarto de sua mãe e fechou os olhos. Pequenos sons


se ressaltaram no silêncio. Pôde ouvir sua respiração entrecortada e o coração
ainda tentando se acalmar. Ela tremia, mas não tinha certeza se apenas sentia
isso ou se ouvia. Mais ao fundo, ouviu o mar. As ondas quebravam na praia e
vinham até ela em ecos. Depois de uma vida em Narba, o som das águas era
algo que se tornara inconsciente. Notar o mar era como reconhecer a voz de
um amigo há muito não visto.

Depois de um minuto, sentiu a vibração.

Era difícil de explicar, mas se algum dia fosse contar a alguém, Anahid
diria que se assemelhava ao que sentimos ao bater com uma barra metálica
em uma superfície sólida; a vibração depois do som. Aquilo ressoava em sua
mente e se intensificava à medida que a garota se aproximava da cômoda no
quarto.

Dentro da primeira gaveta, sob os dois vestidos de sua mãe, estava a


fonte da vibração: as duas alianças de casamento de seus pais. Os anéis
estavam presos em um cordão de ferro para que pudessem ser usados como
um colar. Anahid se lembrava de quando sua mãe ainda os usava, respeitando
a memória do marido. Agora, esse respeito havia se reduzido à relutância de
sua mãe em não penhorar os colares para pagar por bebida.

Anahid enrolou o cordão em seus dedos, sem fazer barulho, e guardou


os dois anéis no bolso de seu vestido; havia cobrado o preço das surras que
tinha levado.
14

A manhã parecia ter sido trazida com o vento que vinha do mar. A brisa
entrava pelas portas da hospedaria, oscilando o fogo da lareira e trazendo
areia para dentro do lugar. O céu estava calmo. Calmo até demais, pensou o
hospedeiro. Parecia a calmaria que anunciava uma tempestade.

Atrás do balcão, Vahan polia as garrafas de bebida, organizando-as e


limpando a poeira. De vez em quando, esticava o pescoço em direção à
cozinha e vigiava o guisado que fervia.

Anahid varria o chão de forma metódica. Os pensamentos perdidos em


algum lugar deixavam seu olhar distante. A garota pensava em tudo que
Rathla lhe dissera sobre as deusas. Às vezes, a garota se perguntava se
realmente acreditava nelas ou se era apenas a força do hábito que a fazia rezar
para Van Ercelle e Van Agelle. Tudo aquilo se enrolava em sua mente.

As botas pesadas de Rathla anunciavam sua chegada a cada degrau que


a guerreira descia. Estava mais uma vez com seu uniforme e, na face, uma
expressão de preocupação. Sabia que não conseguiria pregar os olhos tão
cedo. Além disso, o relógio corria contra seu estoque de energia.

— O jantar está quase saindo — disse Vahan, quando a guerreira


chegou no fim da escada. — Só precisa ferver mais um pouco.

Ela assentiu e sentou-se em uma das banquetas do balcão. O homem


andava de um lado para o outro com uma paciência que chegava a
impressionar. De vez em quando, ia até a cozinha e mexia o conteúdo da
panela. De onde estava, Rathla notou a porta dos fundos aberta. Dois
cachorros, enormes e peludos, estavam sentados na entrada, esperando
ganhar algum pedaço de comida. Estavam ansiosos, salivando e seguindo
Vahan com os olhos.

A visão trouxe à Rathla a lembrança de sua infância na fazenda de seus


pais, antes de pensar em entrar para a ordem de Van Ercelle. Lembrou-se de
brincar com animais da fazenda, dos cachorros que tinha. Era uma época
feliz.

A mulher levantou-se e andou até perto da cozinha. Viu as orelhas dos


animais se levantarem, em alerta.

— Vocês não gostam muito de soltar os cães por aqui, não é?

— Como é? — perguntou Vahan, virando-se para ela. — Ah, sim. Não


era para ser assim. Mas sabe como estão os dias de hoje...

O homem juntou a comida de algumas panelas meio vazias em duas


pequenas bacias. Indicou uma delas para Rathla com os olhos.

— Se importaria?

A guerreira entrou na cozinha e pegou a vasilha de sobras. Seguiu o


homem para o quintal nos fundos da hospedaria e viu que o lugar também
fora cercado, como nas outras casas da vila. Os dois animais balançavam os
rabos animados, esperando para atacar as sobras de comida.

— Acho que faz pouco mais de dois meses que os prendemos. Foi
depois que encontraram o terceiro cão morto. Então resolvemos mantê-los
trancados.

— Lobos?

— Pois é. Nunca os vi tão confiantes a ponto de chegarem tão perto da


vila. Então, os cachorros ficavam ariscos e corriam atrás deles. Os mais
valentes acabaram sendo mortos.

— Provavelmente eram os mesmos lobos que assombravam Altelo.

— Disso eu já não sei, mas pareciam ter saído de um pesadelo. Nunca


vi lobos tão grandes.

— Estavam assombrando os arredores de uma pequena hospedaria no


caminho para cá. Pelo jeito que os deixei lá, posso garantir que não
aparecerão mais por aqui.
— Ah, é? Bem... acho que precisamos lhe agradecer no fim das contas.
— Vahan deu tapas carinhosos no cão que comia ao seu lado. O animal
abanou o rabo, sem levantar a cabeça da comida. — Já estavam ficando
ansiosos aqui dentro.

— Foi uma boa prendê-los. Sei que, se fosse em alguma das vilas do
norte, eles provavelmente teriam sacrificado os animais.

— Nos preocupamos com eles aqui. Não fosse por eles, a maioria não
conseguiria sair para o mar e deixar as casas vazias. Já perdi a conta de
quantas vezes escutei marinheiros reclamando de casas infestadas de ratos
quando chegaram do mar. — O homem se pôs de pé, grunhindo ao fazer o
movimento. — No fim, é bom que tenha acabado com os lobos. Já estava
esperando o dia que o cachorro daquele moleque apareceria trucidado na vila.

— Qual moleque?

— Lefter. Aquele que fica jogado pela cidade. Foi o único que não
prendeu o cachorro. Mas para falar a verdade, não me impressiona muito.
Desde que o pai morreu, nem sei como ele tem sobrevivido.

Rathla levantou o olhar, encarando Vahan.

— Aquele menino não tem pai?

— Não. Faz quase um ano que o mar levou o homem.

Uma lembrança começou a ressoar na mente da guerreia, criando um


incômodo que apenas crescia em seu interior.

Lembrou-se de quando viu o menino, brincando com o cachorro na


areia da praia. Sua aparência descuidada e a pele pálida não eram apenas pela
estrutura corporal frágil; era um dos sinais.

Eu estava procurando somente nos homens adultos, pensou.

Lembrou-se também de que, realmente, não havia visto mais nenhum


animal solto. Finalmente recordou da fala do garoto quando se recusara a
entrar na casa da primeira criança morta. “Preciso ir ajudar meu pai”.
Algo se encaixava na mente da mercenária.

“A areia estava revirada do lado do corpo. Também lembro das pegadas


de um cachorro ou um gato. Não sei”, disse a voz de Anahid em sua
lembrança.

Maldição!, pensou Rathla, antes de sair correndo.


15

Os pés molhados de Lefter chapinharam nas pedras. Cada passo ecoou


na gruta como se fosse uma multidão batendo palmas. Ao seu lado, Kerne
pulava, ofegante. Os pelos molhados grudavam em seu corpo, deixando o
cachorro com uma aparência magricela. O garoto entrou cada vez mais
fundo, até que a luz do sol não pudesse mais tocá-lo. Até estar totalmente
sozinho e protegido.

O garoto ficou por um momento parado, prendendo a respiração e


prestando atenção. O cachorro se balançou, secando-se o máximo que
conseguia, e se deitou em um canto. Quando finalmente Lefter se deu por
satisfeito e concluiu que não fora seguido, voltou a se mover.

Tirou do bolso um pequeno frasco de vidro, comprido e que cabia na


palma de sua mão. Uma luz fraca e esmeralda era emitida do objeto,
refletindo na superfície do próprio vidro e da pedra dentro dele. Uma sombra
se aproximou dele, rodeando-o por trás, como um lobo faminto.

Conseguiu, garoto?, disse uma voz em sua mente. Era a voz de seu pai
— pelo menos uma parecida com a que o garoto se lembrava. Thabo tinha
morrido havia mais de um ano, deixando o único filho abandonado à própria
sorte pela vila.

— Está ficando mais fácil, pai — sussurrou o garoto. — Tem certeza de


que precisamos continuar? Eu...

Não quer que eu volte, filho? Achei que o mar havia me trazido de volta
por sentir minha falta..., disse a voz.

— É claro que eu quero, pai! — A luz esmeralda refletiu na lágrima que


desceu pelo rosto do garoto. — Não quero mais ficar sozinho... Não quero
mais ter medo.

Então você precisa continuar! Estamos chegando no final.


— Não sei se consigo... não se for daquele jeito de novo.

Kerne, vendo a pedra brilhante, começou a rosnar. Seus pelos eriçavam


com a energia que o objeto emanava. Era como se o animal pudesse sentir a
presença no objeto.

***

Rathla atravessou as ruas enlameadas da vila de Narba, correndo como


há muito não fazia. Sentia a energia mágica fluindo de sua espada para seu
corpo com um brilho alaranjado, e isso trazia uma pontada de prazer. Às
vezes, se esquecia de como o poder fazia com que seu corpo funcionasse tão
bem.

Ao passar pelas cabanas vazias dos moradores, a guerreira se


perguntava o motivo de não ter percebido antes. Mesmo que fosse tão óbvio
assim, era difícil crer que, afinal, era outra criança quem estava causando as
mortes.

Atravessou a passagem com a bifurcação que levava tanto à mata


quanto à casa do carpinteiro. Os ramos de capim chicoteavam suas pernas,
chiando como uma tempestade de insetos. Os ventos vindos do mar sopravam
forte, empurrando as nuvens para a costa. Não era um bom sinal.

A cabana tinha uma lanterna acesa do lado de fora, com sua chama
oscilando, amarelada.

Rathla socou a porta três vezes. Porém, não esperou que o homem a
abrisse. Forçando com os ombros, a guerreira arrebentou o trinco, dando de
cara com o homem que atravessava o cômodo em direção à entrada da casa.

— Onde está o garoto? — Rathla segurou o homem pelas roupas,


levantando-o no ar.

— Que garoto? Espere aí, eu já disse que não fiz nada. — O carpinteiro
tremia de medo.

Rathla arrastou o homem até a porta aberta, em direção ao sol. Ele


gritou, pedindo para que ela parasse. A luz atingiu sua pele, reagindo com a
doença e começando a queimar. As feridas se abriram, crescendo e iniciando
o sangramento. Rathla podia sentir o cheio de carne sendo torrada. O homem
gritava, se debatendo e tentando fugir.

— Na gruta! Ele deve estar na gruta! — gritou em desespero.

— Que gruta?

O carpinteiro tapava o rosto com as mãos, tentando evitar que a pele da


face reagisse com o sol.

— Por favor! Eu vou dizer tudo, prometo! Só me tire daqui.

Rathla puxou-o de volta para a sombra, dando-lhe um momento para se


recompor. O cheiro fétido das feridas ainda estava ali, lembrando-a do que
havia acontecido à sua ordem e todos os que viviam na antiga torre. Todos
eles, mortos pela mesma magia que antes os protegiam.

O homem aos seus pés ofegava e gemia, tentando lidar com a dor.

— Ele tem um esconderijo em uma pequena gruta. Seguindo o lado


direito da praia, vai achar um pequeno monte. É só perguntar pelo pico
esquecido, qualquer um vai te levar lá. Do lado da praia, tem uma pequena
fenda. O garoto passou a se esconder lá depois que o pai dele morreu.

Algo ali não fazia sentido.

— Ele não tem uma casa ou algo assim? Mãe?

— Não, só tinha o pai. Todo mundo sabe disso.

Rathla havia conversado com o garoto e não sentira nada mágico nele.
Se tivesse algo com energia raskiana, estaria nessa gruta.

Um garoto traumatizado pela perda do pai, com algo carregado de


magia raskiana distorcendo sua mente, não demoraria a consumir sua
sanidade.

Merda, pensou. Então saiu correndo mais uma vez, deixando o homem
doente abandonado à sua própria sorte, assim como fizera com as irmãs de
sua ordem.

Às vezes, Rathla se perguntava o motivo de ter sobrevivido. Quando


quebrava seu código de conduta daquele modo, machucando um inocente
para conseguir informações, merecia estar debaixo dos escombros daquela
torre mais do que qualquer outro.
16

A entrada da gruta parecia um portal para outro mundo. A luz do sol


atravessava as nuvens que se juntavam sobre o litoral e criava tiras luminosas
que refletiam no mar e nas pedras.

Rathla havia descido a trilha que levava à praia a passos largos e


obstinados. O pouco de energia contida em sua espada era o suficiente para
sobrepor o cansaço e fazer com que sua mente pensasse com mais clareza.
Por outro lado, a proximidade com o mar a intimidava.

Passara pelas pedras até a gruta, vigiando cada passo. A maré fazia com
que as ondas se estendessem por entre as pedras até se chocarem com a
lateral do penhasco. Às vezes, jurava que conseguia ver a água se esticando
em direção aos seus pés, tentando alcançá-la. Como se fossem os próprios
dedos de Vä Rask, pensou.

Atravessou o limiar da gruta, e as sombras começaram a se intensificar.


Aguçou os sentidos, e o som das ondas ficou mais forte em sua mente. Ainda
assim, nenhum sinal do garoto.

Com a energia mágica, pôde ver as coisas espalhadas pelo lugar. Em


sua maioria, se tratava de entulho trazido pelo mar. Porém, quanto mais
chegava ao fundo, o lugar parecia se tornar habitável.

Uma escada de madeira tombada formava uma espécie de ponte entre


duas rochas mais afastadas. Uma vela rasgada, estendida em uma das
paredes, tapava uma passagem de vento e um caixote sem um dos lados devia
servir de casa para o cachorro. Não era difícil imaginar um garoto morando
ali.

— Lefter? — chamou ela, escutando sua voz ecoar pela gruta.

Um estalo baixo veio de algum lugar, só ouvido pela audição sobre-


humana de Rathla.
— Eu sei que está aqui — tentou ela, mais uma vez. — Só quero
conversar com você.

A mercenária atravessou a ponte improvisada com passos cuidadosos,


sentindo a madeira encharcada querendo ceder.

— Vamos, não precisa ficar com medo.

— Não tenho medo — Lefter quebrou o silêncio, em algum lugar da


gruta escura.

Rathla virou-se para a direita, em direção ao caixote, de onde pensava


ter escutado a voz.

— Só quis dizer que está tudo bem. Vamos lá, pode aparecer agora.

— É mentira.

— Prometo que não.

— Você veio pelo Jib, não é?

Uma sombra cruzou a visão periférica da guerreira, e ela se virou. Não


podia ser o garoto; teria ouvido seus passos. Sua mão subiu para a espada.

— Só quero saber se eram amigos. — Se sentia péssima naquilo. Seu


trabalho era rastrear e matar, não interrogar crianças.

— Eu... eu não tenho amigos. — Havia rancor na voz do menino.

A sombra se aproximou de Rathla, silenciosa. A luz do exterior,


refletida na água, dançavam no teto da gruta. A mercenária viu o caixote se
mexendo, revelando onde estava Lefter.

— Nem mesmo Kerne? — perguntou Rathla, se aproximando.

O cachorro reagiu ao seu nome com um ganido.

A sectária ganhou alguns metros, saindo das pedras e finalmente


ganhando terra firme. Quase conseguia ver Lefter atrás do caixote. A lentidão
com que se aproximava era agonizante.

Com o canto do olho, Rathla notou que não via mais a sombra.

— É verdade, tenho Kerne — murmurou o garoto, vendo o brilho do


objeto em suas mãos crescer, ganhando um tom esmeralda.

O coração de Rathla disparou.

— Tenho Kerne... e meu pai.

Rathla reagiu à luz esmeralda e saltou em direção ao garoto, caindo do


outro lado do caixote. A sombra surgiu em seu campo de visão mais uma vez,
voando em sua direção. A guerreira viu o medo no rosto do garoto e o cristal
raskiano em suas mãos.

A guerreira hesitou por um momento; ainda não aceitara que alguém tão
novo quanto Lefter pudesse fazer tanto mal. Raskianos são velhos de pele
azul, não crianças assustadas, pensou.

No vacilo da guerreira, Lefter levantou aos tropeços e fugiu. Rathla


puxou a espada e usou a magia para se impulsionar, atrás do menino. A
guerreira saltou, percorrendo a distância que a separava de Lefter. No meio
do movimento, a sombra surgiu em seu campo de visão, estendendo um
braço translúcido para a guerreira.

A sombra puxou Rathla para baixo, cortando seu salto e deixando que
Lefter conseguisse escapar para fora da gruta. A guerreira caiu entre as
pedras, sentindo as dores do impacto.

A forma negra que a havia derrubado se aproximou e Rathla pensou


conseguir ver um rosto entre os reflexos negros. Puxando a espada, a
guerreira ativou a energia mágica, que acendeu em seu corpo como fogo.
Reagindo à magia, a sombra se afastou e voltou a sumir entre a escuridão.

Confusa, a mercenária desprendeu mais energia e saltou entre as pedras,


correndo para fora da caverna.
***

O garoto atravessou a praia, subindo em direção à trilha. Seu instinto


dizia para que corresse para a floresta, mas seu pai discordava.

Ela vai te achar na floresta. Vai te achar em qualquer lugar.

Kerne corria ofegante ao lado de Lefter, como se tudo aquilo fosse uma
espécie de brincadeira macabra.

— Você disse que eu não iria ter mais medo!

Deixe-me te proteger, filho. Vou fazer todo o medo ir embora.

Os pensamentos de Lefter pareciam pesados. O fôlego cansado fazia


com que sua voz ficasse fraca.

— Você disse que ainda faltava um. Como vai voltar sem terminarmos,
pai?

Venha me encontrar, pela trilha. Vamos terminar, só precisa confiar em


mim.
17

— Lefter, saia daí! — gritou Rathla, saindo da trilha que levava até a
pedreira.

O garoto parecia não ter ouvido, ou pelo menos a estava ignorando. O


garoto estava em pé na borda do barranco, encarando o mar fixamente. Ao
seu lado, Kerne latia sem parar para o dono. Os pelos do cão estavam
eriçados e as orelhas levantadas.

Rathla se aproximou devagar, tentando decifrar o comportamento do


menino. Tentando analisar o quão forte estaria a influência mágica sobre a
mente de Lefter. No fim, sabia que se o garoto já era capaz de matar outras
crianças, devia estar alucinando. Mesmo que o salvasse, sua mente poderia
ficar com sequelas para o resto de sua vida.

Mesmo sem se concentrar, Rathla podia sentir as emanações da energia


mágica do deus profundo; oposta à sua, fria e cortante.

O ponto focal eram as mãos do garoto.

— Lefter, ande. Venha para cá. — Rathla tentava imaginar como algo
mágico havia chegado nas mãos de Lefter. — O que quer que ele tenha
falado, é mentira!

Do mesmo modo que a energia das deusas consumia o corpo de seu


usuário, a magia raskiana danificava a mente de quem a acessasse. Delírios e
vozes não eram raros.

As mãos fechadas do garoto se retraíram mais, agarrando com força o


vidro que segurava.

— Meu pai nunca mentiria para mim — sussurrou ele, sobre o barulho
crescente das ondas do mar.
A maré subia e a água batia nas rochas abaixo dos dois, como o som de
uma plateia aplaudindo, esperando que o garoto mostrasse seu truque...
Esperando que ele pulasse.

Seus olhos estavam vermelhos e feridos, mostrando os primeiros sinais


da influência. Em sua mente, seu pai sussurrava, incentivando-o a continuar.
Não dê ouvidos a ela, filho. Ela não entende sua saudade, não entende seu
medo. Se a seguir, nunca voltarei para você.

O garoto encarou o frasco com a pedra em suas mãos. Parecia olhar


através dele, para algo distante.

— Lefter, venha cá. Eu posso te ajudar. Não o escute.

O cachorro ao lado do menino salivava de tanto latir; a brincadeira


havia acabado fazia tempo.

Se a seguir, vai ficar sozinho de novo.

— Quem quer que você esteja escutando, não é seu pai, garoto!

— É mentira — respondeu ele entredentes. — Você está mentido! Ele


nunca me deixaria sozinho assim.

— Preste atenção, Lefter. Eu vou te ajudar, de verdade.

Ela vai te deixar sozinho de novo, filho. Ela vai embora daqui e vai te
deixar de novo na gruta.

Rathla arriscou alguns passos, calculando quanto tempo levaria para


chegar até ele, caso pulasse. Era arriscado. Por um lado, sua velocidade
sobre-humana deixava tudo mais fácil. Porém, um passo em falso e o garoto
estaria no mar. E o mar estava fora de seus limites. Pular para o mar
significava abandonar Van Ercelle, seria saltar para a morte.

— Vamos, Lefter. É só dar um passo à frente. — Ela deu um passo


curto, tentando não o intimidar. — Sei que seu pai nunca o abandonaria. Ele
te amava, garoto.
Por um instante, Rathla achou que havia conquistado o menino. Estava
perto, poucos metros de agarrá-lo.

— É por isso que eu preciso ficar com ele.

Venha, filho.

Lefter deu um passo para trás, deixando o corpo livre no ar.

Não havia tempo para pensar.

Rathla agiu pelo instinto, sentindo a energia correr pelo corpo e dando
forças às suas pernas. Se jogou na direção do garoto, estendendo um braço
para agarrá-lo e o outro para sua espada. O frasco de vidro com a pedra
soltou-se da mão de Lefter quando seu corpo se chocou com a guerreira.
Agora, Rathla caía para a morte, abraçada com o garoto, em direção ao mar,
que parecia esticar suas ondas para virem ao seu encontro, ansiosas.

No instante seguinte, Rathla golpeou com a espada o ar em direção ao


mar, um golpe certeiro totalmente contra as ondas, enquanto liberava toda a
energia mágica que restava. Através de seu corpo, sentiu uma explosão
saindo de sua espada e a impulsionando de volta para cima, lutando contra a
gravidade e forçando seu corpo em consequência. Sua espada se acendeu
como o sol, fazendo sua visão queimar e cegando-a momentaneamente.

A guerreira voou com o garoto em seus braços.

O empuxo causado pela liberação de toda a energia mágica esmagou


seu corpo, o movimento brusco, contrário à queda, deslocou seu ombro e
quebrou o braço com que a guerreira segurava a espada. A impulsão levou os
dois de volta para terra firme, em uma queda brusca no chão.

Quando finalmente pararam, Rathla se limitou a respirar e tentar se


manter consciente. Estava fraca e trêmula. Todas as dores a atingiram como
um soco. Não havia mais mágica, mais nada entre ela e a realidade das
feridas.

O garoto então levantou a cabeça, fitando-a. Havia confusão e lágrimas


em sua face. Mas, enfim, não havia mais a irritação e feridas nos olhos do
menino. Foi tudo que Rathla conseguiu ver antes de apagar, esgotada.

***

O sono febril passou depois de duas noites. A falta total da energia


mágica em seu organismo era algo que Rathla não sentia desde sua
juventude. Seu corpo se adaptara à energia, tornando a abstinência algo
nocivo para a guerreira.

Foram as piores noites que Rathla teve desde muito tempo.

Os pesadelos com a torre caída e os inimigos já mortos eram


incessantes. Às vezes, via-se perdida nos túneis abaixo de Van Ercelle,
fugindo de um ser que estava sempre prestes a alcançá-la. Outras vezes,
estava no mar, nas mãos de Vä Rask.

Na terceira noite, Rathla despertou. Levantou da cama de seu quarto


sentindo o ar faltando em seus pulmões. Escutou uma voz confusa e um
borrão surgiu em suas vistas. Alguém apoiou seu corpo para que ficasse
sentada e lhe deu água.

Era Vahan.

— Obrigada — disse finalmente, depois de recuperar os sentidos.

Estava sem armadura, apenas com as vestes normais. O braço esquerdo


enfaixado estava preso em seu tronco, para que não se movesse.

— Como está o menino?

— Tão ruim como você, mas está aqui.

Rathla sentiu o cheiro de um emplasto forte saindo de suas ataduras e


viu uma série de ervas no criado-mudo. O hospedeiro tinha o olhar cansado.
— Desculpe ter duvidado de você...

— Era seu trabalho — disse Vahan, levantando-se e recolhendo as


vasilhas de ervas de cima do móvel. — Tenho noção das más escolhas que
fiz no passado. Lidar com elas é uma consequência que preciso aguentar.

— Narian estaria orgulhosa de você.

Vahan sorriu e agradeceu, mas Rathla pôde ver a tristeza em seus olhos.
O homem caminhou até a porta, se virou e disse antes de sair:

— Tem alguém querendo te ver.

Entre a luz do corredor e da lanterna de seu quarto, a guerreira pôde ver


Anahid. A garota trazia algo nas mãos.

— Como você está? — perguntou a garota, entrando no quarto.

— Sobreviverei, se Ercelle quiser.

Havia marcas novas no rosto da menina.

— Eu encontrei — disse Anahid, estendendo as mãos para a guerreira.


— Fiz como disse, me concentrei e tentei ouvir.

— Como... — começou Rathla, vendo as duas alianças entrelaçadas no


cordão. Conseguia sentir a vibração mágica nas joias. Era algo bem fraco,
mas estava lá.

— Eram dos meus pais... Minha mãe não usa desde que meu pai
morreu. Espero que te ajude.

Rathla pousou as joias no colo, ainda impressionada. Buscou sua


espada, pousada no pé da cama e a tirou de sua bainha. A lâmina tinha uma
aparência mais opaca que o normal, talvez pela meia-luz ou pela falta de
magia. Com os movimentos limitados, a guerreira pousou os dois anéis sobre
a lâmina da arma e puxou a energia.

Anahid, sentada ao lado de Rathla, viu uma fraca luz laranja se


formando onde a espada e os anéis se encostavam. No instante seguinte, já
não havia nada.

Rathla liberou um pouco da energia em seu corpo, sentindo as dores se


aliviarem. Não vai durar mais que alguns dias, mas me manterá viva,
pensou.

— Como descobriu que era ele? — perguntou Anahid, depois do


momento de silêncio. — Como ele pôde...

— Não era ele de verdade. Quer dizer, não totalmente.

— Lefter é um raskiano?

— Não. Mas iria se tornar um.

Rathla colocou os pés para fora da cama, sentindo as dores serem


sobrepujadas pela sensação de melhora.

— De algum modo, ele estava com um objeto carregado com energia


raskiana. — Rathla levantou o braço livre para a garota, mostrando a doença.
— Imagine que a mesma coisa que está acontecendo com meu corpo estava
começando a acontecer na mente de Lefter.

Anahid ganhou uma expressão preocupada.

— Os delírios e a visão distorcida de mundo dele apenas intensificaram


o ódio que ele tinha. Não sei por que escolheu os meninos. Mas uma coisa é
certa: quanto mais ele matasse, mais ele alimentaria aquela coisa dentro dele.

— O que vai acontecer com ele agora?

— Se ninguém souber que foi ele, provavelmente nada. Ele não vai ter
uma vida normal, é claro, mas também não vai ferir ninguém. Ele só precisa
de alguém que cuide dele.

Por um instante, Anahid ficou ali, contemplando o futuro incerto.

— Pegue meu manto para mim, sim? — disse Rathla, enfim.


A garota puxou o grosso manto escarlate e trouxe para a sectária. Rathla
se atrapalhou com a mão livre até encontrar o bolso interno que procurava.
Tirou todas as moedas de lá. Deixou apenas uma, de prata, em seu colo, e
estendeu o restante para Anahid.

— Quando trouxe as alianças de seus pais, você me deu no mínimo


mais uma semana de vida. Nada mais justo que eu retribua.

A garota sentiu o peso do metal em suas mãos. Boa parte era um peso
psicológico. Nunca tivera tantas moedas de prata nas mãos.

— Com uma, você poderia comprar qualquer bote de Narba que


quisesse, com as outras pode começar uma vida no lugar que escolher... sem
sua mãe.

— Eu não posso...

— Você deve. — Rathla fechou as mãos de Anahid, as envolvendo. —


Laços de sangue não superam seu bem-estar. Viva sua vida, seja feliz e não
se esqueça de sua força.

***

Quando a lua já estava alta e a vila dormia, Rathla desceu as escadas da


hospedaria e caminhou até a praia. Era estranho estar sem armadura; a calça e
a camiseta pareciam finas demais, e o frio penetrava seu corpo.

Percorreu o caminho que fizera há dois dias, rumando à gruta onde


Lefter escondia suas coisas. Andou observando o chão, tentando escutar
qualquer vibração nas imediações. Mesmo não descobrindo nada mágico, o
clima ali era pesado.

A abertura da gruta parecia uma mancha negra sobre o barranco.


Também não sentia nada ali dentro.
Por um momento, se perguntou sobre a sombra que vira no interior da
gruta. Mesmo que estivesse concentrada em Lefter naquele momento, teria
sentido qualquer emanação mágica vindo dela. Entretanto, não houvera
nenhuma.

Antes, havia um procedimento para situações assim: observaria,


anotaria e relataria para a ordem. As sectárias residentes, que nunca deixavam
a torre, pesquisariam no acervo sobre ocorrências anteriores e tomariam as
providências.

Agora, Rathla rezava para que Ercelle protegesse as pessoas da vila e


partia para a próxima vila. Estava acima de seus conhecimentos.
EPÍLOGO

A neblina ainda tentava entrar pela porta da hospedaria quando Rathla a


abriu. Vahan e Anahid estavam no salão, terminando o chá que o hospedeiro
servira. Lefter ainda estava dormindo no andar de cima, se recuperando do
dano mental que recebera nos últimos dias. O hospedeiro tossiu mais uma
dezena de vezes até recuperar o fôlego.

— Tem certeza que não prefere esperar mais um dia ou dois? —


perguntou ele.

— Não tenho tanto tempo.

— Tome cuidado com o braço e tente não dormir ao relento.

— Pode deixar. Tenho certeza que não terá tanta neblina ao norte.

A sectária parou um momento nos degraus do alpendre e olhou Narba.


Estava tão abandonada quanto no dia que chegara.

Anahid a alcançou, parando ao seu lado.

— Vou fazer o que disse. Também vou levar Lefter comigo.

— Será bom tirá-lo de perto do mar. As coisas vão melhorar daqui para
frente, pelo menos para vocês.

Anahid sorriu. Rathla lhe devolveu o afeto.

— Encontro você de novo? — perguntou Anahid, vendo a mercenária


se afastar da hospedaria.

— Improvável, mas possível. Quem sabe o que Ercelle vai querer?


FIM
AGRADECIMENTOS

Se você, leitor, for como eu, provavelmente pulará esta parte. O livro já
acabou, eu já lhe contei minha história e espero que esteja aqui em uma
próxima vez. Porém, tenho que contar que não trabalhei sozinho para que
este livro estivesse em suas mãos.

Primeiramente, gostaria de dar os créditos à Nayara Nunes, que, como


sempre, é a pedra fundamental de qualquer projeto meu. É quase sobrenatural
o modo como suas falas e ideias funcionam como o fio de Ariadne para o
perdido Teseu que tenta avançar no labirinto do enredo que construí. Não
fosse os pontos de vista, a paciência e as noites de discussões sobre os poucos
dias de Rathla em Narba e como tudo se desenrola, esta história
provavelmente estaria no cemitério de livros sem um fim que é meu
notebook. Devo-lhe muito mais crédito do que mencionei, e ela sabe disso...

Agradeço aos meus pais e irmãos, que acompanham esta minha jornada
desde o começo, e me ensinaram um punhado de lições que dariam um livro
por si só. A confiança que têm em mim é algo inspirador.

Também agradeço a todos que participaram da produção deste livro e, é


claro, a você, leitor.
SOBRE O AUTOR

Erick Alves Pereira é ilustrador, escritor, graduando em Letras e


também Design Gráfico. Além deste livro, também publicou Os Irmãos
Baxter em: As Sombras do Passado (PenDragon, 2019), organizou e
participou de algumas antologias e, neste momento, deveria estar escrevendo
mais um livro.
A EDITORA

Com a intenção de projetar cada livro como uma peça gráfica completa,
a Sem Tinta tem seu foco na fantasia, ficção-científica e no horror. Caso
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