Estudos Autobiográficos
Organizadoras:
Claudia Musa Fay
Isa Mendes
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.behance.net/CaroleKummecke
Arte de Capa: Ivan Cruz
http://www.abecbrasil.org.br
Série Historicus - 16
Trajetórias de vida e estudos autobiográficos: experiências com História Oral [recurso eletrônico] / Claudia Musa Fay; Isa
Mendes (Orgs) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2019.
197 p.
ISBN - 978-85-5696-698-8
CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
Agradecimento
1 ................................................................................................................................. 11
Apresentação
Claudia Musa Fay; Isa Mendes
2 ................................................................................................................................ 17
A hanseníase em Manaus através da História Oral: Vivências e Experiências
Adriana Brito Barata Cabral
3 ................................................................................................................................33
Entre becos e vielas: entrevista com o Escritor Sacolinha
André Natã Mello Botton
4................................................................................................................................ 55
“Eu gostaria de ser visto em nossa terra chamada Afrika”: Carta e Autobiografia de
Omar ibn Said (1770-1864)
Caio F. Flores-Coelho
5 ................................................................................................................................ 71
A voz de uma peregrina no Caminho de Santiago de Compostela
Flavia de Brito Panazzolo
6............................................................................................................................... 83
O Revelar de uma Vida: O Respeito ao Outro como Cerne da História Oral
Isa Mendes
7 ............................................................................................................................... 99
Um cochicho sobre Joseph Lutzenberger: o machismo dos imigrantes alemães do
Rio Grande do Sul por vozes femininas
João Hecker Luz
8 ............................................................................................................................. 127
“Rafael Milheira’s Vision: A New Understanding of Patos Lagoon” In Pelotas with
Dr. Milheira
John Gabriel O’Donnell
9.............................................................................................................................. 141
Carregando gênero na mala: Entrevista com a Historiadora Ana Maria Colling
Sobre seu Percurso Intelectual nos Estudos de Gênero
Paula T. de Azevedo
10 ............................................................................................................................ 153
Do avião aos céus: Ensaio Sobre a Trajetória de Vida de Daniel Pedro do Prado, que
largou a bem-sucedida carreira de mecânico aviador para se tornar Reverendo Batista
Reginâmio Bonifácio de Lima
11 ............................................................................................................................. 177
Trajetória Social e Política de Lúcia Regina Brito Pereira: “Uma Mulher nem tão
Comum Assim”
Vanessa Rodrigues da Silva
10
Introdução
Um bom texto para ficar pronto é editado inúmeras vezes e embora sua ‘tea-
tralidade’ transpareça espontaneidade, não é esse o objetivo final. É mister
ter a aprovação do depoente, para que se possa continuar a análise das en-
Reginâmio Bonifácio de Lima | 159
Para Bosi (2003, p. 23), o que rege, em última instância, essa ativi-
dade mnêmica “é a função social exercida aqui e agora pelo sujeito que
lembra”. As declarações de um sujeito sobre algum acontecimento do
qual fez parte ou testemunhou devem ser pensadas, a partir do registro e
160 | Trajetórias de Vida e Estudos Autobiográficos
peças separadas, e num arranjo tão disforme e diverso que cada peça, a
todo instante, faz seu próprio jogo”.
Uma questão se apresenta de forma relevante: “O que se pode saber
de um homem?” Jean-Paul Sartre se debruçou sobre essa questão. Para o
filósofo, é necessário buscar um “método adequado”, que ultrapasse a
tarefa de “totalizar” as informações e os dados disponíveis, já que, “nada
prova, a princípio, que essa totalização seja possível e que a verdade de
uma pessoa não seja plural” (SARTRE, 2013, p. 7). Essa questão é rele-
vante, por muitas vezes, os estudos biográficos e de trajetórias de vida
apresentarem um caráter “ilusório” e “fictício”, muitas vezes, formando
os “ídolos individuais” (SIMAND, 1960) denunciados pela ciência socioló-
gica (BOURDIEU, 2006).
O debate teórico sobre o uso e os abusos da história oral, sua vali-
dade, os excessos e a própria historicização desde a Escola de Chicago em
1920, perpassando pelas redescobertas das Escolas historiográficas fran-
cesa, alemã, inglesa, italiana e americana, desde o uso de relatos como
“método”, as “fronteiras do dizível”, à “presentificação do passado” já
foram estudadas e reelaboradas por autores como Pollack (1992), Le Goff
(1994), Bosi (1987), Thompson (2002), Ricoeur (2007), Bourdieu (1989;
2006), Arendt (2013) e tantos outros, não cabendo aqui retornar a esses
pressupostos.
Para além do dualismo da “ilusão biográfica” ou da “identidade nar-
rativa”, as reflexões, os percursos, as problematizações e os
desdobramentos projetam as incongruências e multiplicidades de con-
tradições da existência individual (DOSE, 2009).
A problemática da experiência do tempo tem sido recorrente nos es-
tudos das trajetórias de vidas, mesmo que se tente fugir das armadilhas
ilusórias das histórias de vida, a existência individual ainda será não
linear e seu contexto de multiplicidade perpassará por imbricações iden-
titárias e de vislumbres do próprio ser em relação aos contextos
preteritamente e presentificado. Essa “falta de acabamento” narrativo da
experiência vivida (RICOUER, 2014) não anula a experiência vivida, ape-
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nas deixa claro que muito de si como o nascimento e a morte, mais diz
respeito aos outros ou ao que os outros formulam a respeito do aconte-
cimento que necessariamente a ideia que se faça do assunto.
Paul Ricouer (2014), ao estudar Hanna Arendt (2013), apresenta
subsídios para a interpretação da autoria problematizada. A ênfase não
está no vínculo entre o agir e a pluralidade da vida pública, e, sim, no
sentido de enfatizar a imbricação existente entre ação e discurso ao res-
ponder a pergunta feita pela autora sobre “Quem és?”. Arendt atribui o
conhecimento da natalidade do ser ao autor, mesmo que ele não tenha
ainda consciência de si. Aceitando a memória externa a si sobre seu nas-
cimento como “evidência da natalidade do sujeito”, para a autora a
revelação sobre o agente “desacompanhada do discurso, perderia não
somente o seu caráter revelador, como, e pelo mesmo motivo, o seu su-
jeito”. Assim, Ricouer alinha os pontos argumentativos de Arendt sobre
“o quem da ação”, a identidade do sujeito ao qual determinado agir se
vincula. Para ele, é pela narrativa que se encontraria uma solução para
esse dilema. As narrativas, lembrança, tempo, memória, contexto e ou-
tros fatores externos ao ser implicam tanto no sujeito quanto na ação.
Esse Roberto ganhou a possibilidade de vir para o Rio Grande do Sul. A Arco-
Íris comprou a Cruzeiro e instalou uma agência aqui, em Caxias do Sul. Ca-
xias do Sul a mais ou menos 130 Km daqui de Porto Alegre. [...] O pai amava
Roberto. Os outros filhos eram secundários e o Roberto era primeiro. Isso
não é recalque, estou contando uma verdade, uma realidade. Então ele veio
para Caxias do Sul. Ele já estava aqui uns 2 a 3 anos em Caxias. Aí, ele me
convidou: “Vem para cá” (DANIEL PRADO).
Ao longo das entrevistas, fica claro o amor que Daniel sente pelo pai
e a tensão que era saber da predileção deste pelo filho mais velho. Duran-
te as entrevistas, narrativas e depoimentos prestados, em todas as cinco
ocasiões em que Daniel falou da relação do pai com o irmão e de sua
relação com o irmão, ele lacrimejou os olhos. Daniel seguiu os passos do
irmão Roberto, também se tornou mecânico de aviões. Roberto atuava na
iniciativa privada, como mecânico-chefe no Rio Grande do Sul, enquanto
Daniel seguia carreira, ainda adolescente, durante a Segunda Guerra
Mundial, como aprendiz de mecânico na Força Aérea Brasileira, confor-
me ele relata:
Voltei pro Parque – foi quando meu irmão me convidou. Me insistiu levar
pra Caxias do Sul (DANIEL PRADO).
Figura 2: Cartão de Identidade de Daniel Jacob Prado. Profissão: Aprendiz de Mecânico – 1947
Daniel, após a briga com o irmão, vai tentar a vida em Porto Alegre.
Ao falar de sua mudança de estilo de vida, Daniel contou que saiu uma
noite, em um sábado, para ir ao cabaré, no ano de 1953. Ao retornar, no
entardecer de domingo, passou pela rua Bahia, perto do Colégio Batista.
Ao chegar em frente ao Colégio, viu muitos jovens e ouviu hinos sendo
cantados. Afirmou, chorando, que “Deus tocou em mim e eu entrei”.
Disse que assistiu ao culto e que quando o pastor fez o apelo, foi até a
frente e se reconciliou com Deus. Em suas palavras, “Adultério, fumo,
Reginâmio Bonifácio de Lima | 169
rancor, bebida, tudo saiu na hora, na hora. Nada mais ficou em mim,
Nada. Não tenho como explicar isso”.
Daniel começou a frequentar a Igreja Batista Central de Porto Ale-
gre. Também na Igreja Batista conheceu Sônia Prado, com quem se
casou em 1955. No ano seguinte, Mary, a única filha do casal nasceu e
Daniel conseguiu trabalho como chefe de seção de montagem de aviões
de pequeno porte, na Evaer, da empresa Varig.
Eu já era chefe lá na Varig. Eu com Bíblia na mão, com oração e fé, na minha
vocação, que eu não sabia qual que era ainda, mas que, como Evangelista, es-
tava preparando para evangelizar. Deus me chama na Varig. senti
claramente a vocação, o chamado, na Varig, de 57 para 1958, por aí. (DANIEL
PRADO).
Quando eu olho pra trás e penso no que é ser pastor?! Ah, é uma benção pa-
ra mim. A pergunta me move muito. Quer olhar a outra capa [da bíblia da
Consagração a Pastor]? Veja a outra capa! Acho que tem mais atrás.
Ser Pastor é ter absoluta convicção, certeza profunda, irremovível, não só da
Graça de Deus, do favor de Deus, da presença de Deus, e, o sustento de Deus
na minha vida. Porque a esposa que Deus me deu participa comigo em tudo,
é sine qua non.
Sou feliz. Sou abençoado. Sou contente. E tenho várias experiências de vida
que são marcantes, por exemplo, quando senti que Deus me chamava.
(DANIEL PRADO).
Considerações Finais
Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê
Editorial; 2003.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz - Editora da Universidade de
São Paulo, 1987.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes.
Usos e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 183-191.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral e narrativa: tempo, memória e identi-
dades. História Oral, Rio de Janeiro, n. 6, p. 9-25, 2003.
DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
MONTAIGNE. Os ensaios: uma seleção. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
PRADO, Daniel Pedro do. Do avião aos céus: narrativas transcriadas. Entrevista conce-
dida a Reginâmio Bonifácio de Lima. Laboratório de história oral da PUCRS. Abril-
maio de 2019.
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2014.
SARTRE, Jean-Paul. Prefácio. In: SARTRE, Jean-Paul. O idiota da família: Gustave Flau-
bert de 1821 a 1857. Tradução de Julia da Rosa Simões. Porto Alegre: L&PM
Editores, 2013. p. 7. v. 1.