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As origens do Estado Providência em Portugal : as novas fronteiras entre público e

privado
Miriam Halpern Pereira ( CEHCP/ISCTE )
Neste final de século, o Estado-Providência tem sido questionado em quase todos os
países europeus. Com ritmo variável, principiou-se a reforma do sistema de segurança social,
processo que tem sido acompanhado da privatização dos serviços cobertos, em maior ou menor
grau. A movimentação contra as restrições da política social nos últimos anos poderia sugerir que
este tipo de direitos sociais nasceu como um componente importante do movimento operário nos
diferentes países europeus ou pelo menos naqueles onde o Welfare State começou a ser construído
primeiro.
A realidade histórica é um tanto mais complexa. Por vezes, aconteceu exactamente o
contrário, a criação do Estado Providência teve de enfrentar resistências provenientes tanto do
meio patronal como do meio operário, entre outros motivos por existirem sistemas alternativos. O
Estado-Providência não surgiu em território virgem, nem surgiu em bloco com a configuração
actual. Na origem correspondeu a um movimento integrador de iniciativas anteriores e a sua
actual forma de direitos sociais resultou de um processo lento que, como aponta Costa-Esping-
Andersen conduziu a uma desmercantilização (“de-commodification”) de diferentes áreas, da saúde
à educação, que implica uma forte inserção institucional da intervenção estatal. Nem a assistência,
nem a segurança social inicial tinham esta dimensão. 1
O modelo de Estado-Providência principiou por ter uma dimensão social limitada,
destinava-se às classes trabalhadores. O caminho para a universalização foi longo e mesmo no caso

fundador, a Alemanha, mediaram cerca de quarenta anos entre a legislação bismarckiana e a


República de Weimar, quando se concretiza o alargamento do restrito âmbito inicial. O
desfasamento dos outros países europeus é desde logo considerável, empreendem-se os primeiros
passos entre 1911 e 1920, pouco antes da passagem à segunda fase na Alemanha. É nesta época que

1 . Esping,Andersen Costa The three worlds of welfare capitalism 1990, pp21-22. Para uma análise comparada
da relação entre os ciclos da segurança social e os seus três componentes Estado, mercado e acção voluntária ver
também Paci, M. “Long waves in welfare systems” in Maier,Charles S.et al., Changing boundaries of the
political: essays on the evolving balance between the State and the society, public and private in Europe,1987.
2

se situa a criação dos seguros obrigatórios na Península, no mesmo ano - 1919 - em Portugal e na
Espanha. É a sua origem ainda mal conhecida no caso português, , que nos ocupará aqui.
Nas raízes ideológicas europeias encontra-se um projecto de sociedade apresentado
como via alternativa ao liberalismo e ao socialismo. Assim o conceberam os seus criadores desde o
final do século dezanove. Envolveu uma visão de conjunto da sociedade, que integrava uma
vontade de maior equilíbrio no acesso à educação e à formação profissional - em Portugal
significou também o combate ao analfabetismo - e igualmente no acesso à cultura - associada na
época à criação de bibliotecas e à divulgação mediante a imprensa e a realização de conferências.
Não se limitava à disponibilização de serviços hoje associados à segurança social, ainda que essa
vertente fosse fundamental.
Este projecto teve em Portugal claramente duas faces com objectivos similares, como
se procurará demonstrar: uma de âmbito privado, o movimento mutualista de carácter voluntário e
o paternalismo patronal, outra de âmbito público, o seguro obrigatório articulado à intervenção
tutelar do Estado. A introdução do seguro obrigatório representou uma ruptura entre as fronteiras
do privado e do público, cuja aceitação pelos parceiros sociais envolvidos foi difícil e lenta.
Implicou a mudança de atitudes do Estado e da sociedade em relação à previdência, e essa
mudança estará no centro da evolução que nos interessará compreender aqui.
Foi no decurso das primeiras três décadas do século XX, o período da história do
sistema de previdência em Portugal escolhido para este trabalho, que essa transformação de
mentalidades principiou. Antes de 1910, a intervenção social do Estado tinha um alcance muito
limitado. Até mesmo os acidentes de trabalho na indústria eram apenas regulados pelo Código

Civil. De 1919 em diante, começou a ser implementado um sistema completo de segurança social.
Num espaço de tempo relativamente curto, Portugal, que nesta área não tinha anteriormente
acompanhado os outros países europeus, colocou-se no plano legislativo, ao lado da Alemanha, dos
países nórdicos, da Inglaterra e da Espanha, deixando ligeiramente para trás a França. Esta
evolução não foi fácil e teve de enfrentar interesses instalados de natureza diversa.
3

Antes de a analisar convêm explicitar o conceito de Estado Providência aqui


utilizado.2 Saliente-se em primeiro lugar que o Estado Providência não se confunde nem com a
assistência social tradicional nem com o Estado higienista, com os quais coexiste e são ambos
importantes em Portugal. Seguindo o critério sócio-institucional, proposto por Richard Titmuss,
considerou-se que as fronteiras entre assistência social pública e o Estado Providência diferem
quanto ao seu objectivo - residual ou institucional - e quanto ao universo que cada um deles cobre.
A assistência pública é orientada para socorrer os desprovidos de meios próprios, tem um caracter
supletivo, de colmatar carências onde as instituições tradicionais, nomeadamente a família, se
mostram insuficientes, enquanto o Estado Providência segue uma lógica completamente diferente.
Embora o Estado-Providência inicialmente apenas abrangesse as classes trabalhadoras, não tinha
como mira o problema da pobreza residual, mas uma sociedade mais equilibrada do ponto de
vista social, em que se atendesse a situações de privação de trabalho dos assalariados, por motivos
definitivos ou temporários, e se viabilizasse o acesso a diferentes serviços, com destaque para o
socorro na doença e a assistência médica. Deixando de parte os diferentes tipos de Estado-
Providência, convêm ver de perto o que distingue o Estado higienista do Estado Providência. 3
O Estado higienista, como Pierre Rosanvallon observou, representou uma viragem
básica nas relações entre a sociedade e o Estado. A concepção de higiene pública viera alterar a
noção das esferas pública e privada. Do ponto de vista do médico, preocupado com a higiene
pública, todos os aspectos da vida humana e das suas condições adquirem interesse público. As

2Para uma análise da história da utilização das expressões "previdência social e segurança social em Portugal , ver
Silva Leal Temas da segurança social, União das Mutualidades,1998 pp.89-99
3 Da imensa bibliografia sobre cada país refira-se uma sucinta selecção dos livros de síntese consultada. Sobre a
Inglaterra: Thane, Pat, "Government and society in England and Wales. 1750/1914", e Harris, José, "Society and
State in Twentieth century Britain", in Thompson, F. M. L., Cambridge Social History of Britain, 1990, vol. 3.
Sobre a França : Hatzfeld, Henri, Du paupérisme à la sécurité sociale 1850-1940, 1989, Ewald , François L’Etat-
Providence,1986. Sobre Espanha: Los seguros sociales en la España, Ministério do Trabalho, 1988, 3 vols, por
três autores diferentes, Montero,F. Los origens de la prévision social, Bustillo, Josefina Cuesta Hacia los seguros
sociales obligatorios, 1988, Saramiego M. La unificácion de los seguros a debate. La segunda República ;
Esteban de Vega et al., Pobreza, Beneficiência y política social, Ayer, 25, 1997. Sobre a Alemanha Abelshauer,
Werner “The first post-liberal nation: stages in the development of modern corporativism in Germany” in
European History Quarterly 1984, 14.
Katz, Michael The mixed economy of social welfare,Public/private relations in England , Germany and the
United States, 1870 to the 1930, 1996: reune um conjunto de estudos inovadores
Acerca do paternalismo: Schweitzer, Sylvie et al., Logiques d'entreprises et politiques sociales, Rhône-Alpes,
1993; Melling, Joseph “Welfare capitalism and the origins of welfare States: British industry, workplace welfare
and social reform 1870-1914” in Social History,1992, 17-3.
4

descobertas de Pasteur provocaram uma profunda revolução neste campo. Desde então, a
prevenção da doença tornou-se uma questão primordial e que implicava a recomposição do tecido
social: os problemas de higiene tornaram-se problemas sociais. A saúde pública tornou-se uma
questão central para os poderes político e militar. Os médicos passam a ocupar o primeiro plano da
política social e a legislação passa a ter como objectivo "curar" os corpos sociais. Os higienistas
vêm a integrar os governos e foram instituídos ministérios da saúde 4
Este tipo de intervenção do Estado, que também em Portugal se fora efectuando ao
longo do século XIX e mais acentuadamente no seu final, situava-se na esfera social, mas a sua
natureza era completamente diferente do Estado-Providência. Neste, os deveres da sociedade em
relação a cada um dos indivíduos e as formas de solidariedade adoptadas são ditadas por
considerações de justiça e pela intenção de implementar uma redistribuição da riqueza. Trata-se
de um projecto de reforma da sociedade mediante a protecção do indivíduo, enquanto o objectivo
do Estado higienista é a protecção da sociedade como um todo. É essencial distinguir entre estas
duas formas de intervenção social do Estado que tiveram um desenvolvimento paralelo. De facto,
algumas das leis sociais geralmente associadas à protecção dos trabalhadores, tais como a
regulamentação do trabalho fabril das mulheres e crianças, surgiu da intenção de combater a
degenerescência da “raça nacional” - uma preocupação que era central para o projecto dos
higienistas. Não obedeceram à intenção de estabelecer direitos sociais para as mulheres
assalariadas, bem pelo contrário viabilizaram a eventual descriminação no mercado de trabalho.
A concepção ideológica liberal da sociedade não previa as situações geradas ao longo do
século XIX pela pobreza da classe trabalhadora e pelas consequências das crises cíclicas. A

capacidade de trabalho de um indivíduo não constituía garantia de que conseguiria ganhar um


salário, nem o salário era condição suficiente de um nível de vida digno. A ideia de que os
seguros sociais podiam ajudar a encontrar uma solução não fora nem óbvia, nem aceite com
facilidade pelos potenciais parceiros sociais. Enquanto o seguro de mercadorias e objectos era uma

4 Rosanvallon, Pierre, "État et société", in Burguière, André, Histoire de la France/L'État et les pouvoirs, Seuil,
1989, L'État en France, Seuil, 1990.
Salais, R. et al., Aux sources du chômage. 1880-1914, 1994. Titmuss, Richard, The Gift Relationship: from
human blood to social policy, 1973. Esping,Andersen Costa The three worlds of welfare capitalism 1990
.
5

operação corrente e muito antiga, os seguros pessoais foram considerados durante muito tempo
como imorais e encorajadores da irresponsabilidade pelo patronato e pela elite política. Inseridos
no contexto empresarial, seriam contudo criados diferentes formas privadas de compensação para
os acidentes do ciclo vital e diferentes instituições desde creches, escolas e serviços médicos,
integrados na prática paternalista. A inclusão deste tipo de prestações de serviços nos direitos
sociais dos assalariados foi o resultado de uma evolução relativamente recente. De início, a classe
trabalhadora ofereceu resistência à sua institucionalização estatizada, apegada a antigas
tradições de solidariedade de classe.
O mutualismo
Desde longa data que existiam formas de entreajuda que permitiam aos artesãos e
operários minorar os acidentes inerentes ao ciclo vital. Em Portugal as corporações foram
abolidas em 1834, contudo as irmandades e confrarias sobreviveram-lhes. Ao seu lado, foram-se
instalando associações, que com a designação específica de socorros mútuos ou apenas de classe
desempenhavam funções de solidariedade. Seguiram com frequência os contornos dos ofícios,
mas desde os anos trinta algumas nasceram com configuração social indiferenciada. Este
movimento acentuou-se desde meados do século XIX, intensificando-se na viragem do século.
Receosas da concorrência, as irmandades hostilizaram- nas, o que não evitou a redução do seu
campo de intervenção. 5
Com caracter voluntário e privado, este vasto movimento tinha objectivos amplos,
similares aos do futuro Estado Providência: mediante um sistema de socorros mútuos visava criar
condições de acesso à educação e à saúde e assegurar recursos futuros em caso de necessidade,

por doença, invalidez, velhice e desemprego. A prática dos seguros sociais principiou no seio das
associações mutualistas, que substituíram progressivamente nas funções de solidariedade as

5 Godolfim, Costa, A Associação 1876, reeditado 1974; Pereira , Miriam Halpern “Artesãos, operários e o
liberalismo”, nomeadamente 1.3 e 3.2. in Das Revoluções Liberais ao Estado Novo , para a função das confrarias
e a criação da Sociedade de Artistas Lisbonenses, de socorros mútuos sem diferenciação de ofícios; José Pacheco
Pereira, “ O movimento operário no Porto : as associações mutualistas (1850-1870)”, in Análise Social, 65, nota
que no Porto o número de sócios das associações mutualistas sem diferenciação de ofícios é maior que o das
associações de âmbito oficinal. Sobre a reacção das irmandades diante do aparecimento das associações de socorros
mútuos, ver Rui M. Brás, Formas institucionais e sistemas de valores na classe dos sapateiros, dissertação do
Mestrado de História do ISCTE, Os sapateiros de Lisboa e o liberalismo (1850-1926), dissertação do mestrado de
História, ISCTE, e Ler História.
6

antigas corporações e irmandades de ofício. Constituiu uma experiência pioneira, em todos estes
domínios e também no que se refere a situações específicas das mulheres, ligadas ao descanso pré e
pós -parto. Este papel notável do mutualismo só recentemente começou a ser compreendido: a
crítica e a mudança da sociedade propostas pelo movimento operário apresentavam-se como
objecto mais interessante que este movimento de inter-ajuda, mais conciliador no plano das
relações sociais. Assim a experiência mutualista permaneceu longo tempo na penumbra,
marginalizado pela historiografia. No caso português, constituiu um repositório de experiências no
qual assentou o primeiro projecto de Estado Providência, tal como aconteceu na Grã-Bretanha e na
França.6
A rede mutualista tivera um considerável incremento nos trinta anos que antecederam
a 1ªRepública. O seu número passara de 295 em 1883 a 392 em 1889 e em apenas seis anos o
número de sócios aumentara em 47%. Em 1909 as associações ultrapassavam as seis centenas
(628) e o número de sócios aumentara em vinte anos 174%, crescimento que continuou embora a
ritmo mais moderado na década seguinte até 1921, quando existiam quase setecentas associações e
a massa associativa aumentara 62%, o que representou o ponto mais alto deste movimento. A
diminuição do número de associações entre 1921 e 1931 não significou proporcional redução de
filiados, que foi apenas de 4%, e deveu-se principalmente a extinções ligadas a fusões, que se
tornaram aconselháveis por razões financeiras. Dissoluções e fusões foram naturalmente uma
constante do movimento associativo: entre 1852 e 1915 foram constituídas 977, desaparecendo 323
por fusão ou não; entre 1891 e 1915 pode distrinçar-se entre as dissoluções (64) e as fusões em
número ligeiramente menor (53). É interessante comparar a dimensão do movimento mutualista

6 Para o período anterior ao Estado-Providência : em Inglaterra, interessante artigo sobre o papel dos sindicatos e
das friendly societies de Humphrey Southall; em França, de Didier Renard, ambos in Genèses, 18 Janvier, 1995.
Sobre o mutualismo em França ver o estudo de Michel Dreyfus mencionado na nota 19. Se na Alemanha o período
bismarkiano se caracteriza por uma dominante estatal, pelo contrário a República de Weimar vai montar um
sistema de articulação entre a máquina administrativa central e as associações privadas as mais diversas, ver o
interessante estudo de Christoff Sachse “Public and private in German Social Welfare from the 1890 to th 1920’s”
in Katz, Michael , ob. cit., nota 2. Para o Brasil, onde o mutualismo na empresa foi nalguns casos fomentado pelo
patronato, em condições por vezes contestada pelos beneficiários, ver Tania R.de Luca. O sonho do futuro
assegurado, 1990 . Para Espanha, Santiago de Castillo “Les sociétés de secours mutuelles” in Dreyfus, M.
Mutualités de tous les pays, 1995
7

com as associações de classe: em 1921 os filiados nestas últimas igualavam apenas 16% dos
mutualistas. 7

Fonte: Costa Godolfim -1889, Domingos Cruz- 1891 a 1931, Inquérito de 1915
para esse ano.

Embora a maioria das mutualidades tivessem finalidades múltiplas, dominava o


socorro em caso de doença em 572 do total das 654 existentes em 1915, em contraste com o
apoio aos deficientes -na época designada por inabilidade - dominante apenas numa dezena, as

7 As associações de classe tinham, em 1921, 96.328 filiados contra 615.000 filiados nas associações de socorros
mútuos Para as associações de classe, Boletim da Previd. Soc. , Jan-Out. 1921, n.11, p.102 Dados sobre as
associações de socorros mútuos in: Costa Godolfim, Les institutions de prévoyance,1883 e A Previdência,1889,
para os dados referentes a estes anos. Godolfim considera inexactos e cheios de erros os dados dos primeiros
anuários estatísticos ( vide p.122 ). Para os anos seguintes preferimos por isso, os dados referentes a 1909 e 1915
publicados no Boletim de Previd. Social, n.6 Maio- Dezembro, resultantes do inquérito às associações efectuado
pelo ministério do Trabalho, e os dados completados até 1931 com base nos anuários e em documentação mutualista
pelo membro do conselho da Federação Domingos da Cruz, in A mutualidade em Portugal, Coimbra 1934,
separata de O Instituto , pp. 34-35. Estas fontes incluem dados sobre a população mutualista para o período aqui
estudado que não se encontram em Vasco Rosendo, O mutualismo, 1996, livro pioneiro e com muita informação
particularmente completa de 1927 em diante. No que se refere ao período aqui abordado, surpreende o número de
associações indicado para 1905 e 1910 muito mais elevado que que nas fontes mencionadas. Para Lisboa no final
do século utilizámos o estudo-inquérito de Santa-Rita, Guilherme O socorro mútuo em Lisboa, 1901, p.73. Para o
Porto, o estudo de A. Magalhães Basto “Origens e tradições do mutualismo português”, Boletim Cultural , v.I,
fasciI, 1938, incide principalmente sobre as confrarias, tem pouco elementos sobre a evolução do mutualismo. Para
1924, também Boletim da Previdência Social, 1928,19, p.9. Infelizmente não estão tratados dados sobre a
composição social das associações de sc. mut. , aspecto que seria interessante conhecer.
Para se ter uma idéia da importância do mutualismo noutros países europeus, aqui ficam alguns dados: em 1898,
Grã-Bretanha- 11,5 milhões de filiados; França, vésperas da Grande Guerra - 3,5 milhões; Itália 1895 um milhão, in
Dreyfus, ob.cit.
8

pensões de sobrevivência numa dúzia e o socorro para funeral também só preferenciado em 34


associações.
A dimensão média das associações era considerável, e em geral situava-se muito
acima do mínimo estabelecido na legislação. As associações agregavam em 1883 em média 320
sócios, e se excluirmos os districtos de Lisboa e Porto andavam a volta de 208 em média, muito
acima da vintena e meia que a primeira lei sobre as associações de socorros mútuos viria a
estabelecer em 1891 como limiar mínimo. A sua dimensão média deve ter aumentado muito pois
na lei de 1896 o limiar mínimo subiu para 500 sócios nas duas principais cidades, quatrocentos
nos concelhos de primeira ordem , duzentos e cinquenta nos concelhos de terceira ordem.8 Apenas
em Vila Real, Bragança, Viseu e Coimbra a média se situava abaixo do limiar mínimo em 1915.
INSERIR MAPA II SOCIOS POR ASSOCIAÇÃO
A evolução da cobertura geográfica do movimento mutualista foi muito desigual.
Presente em todos os districtos, era um movimento de acentuada natureza urbana e muito
concentrado: nos districtos de Lisboa e Porto concentrava-se 81% da população mutualista
em1883, situação que não sofreria alteração significativa nas quatro décadas seguintes, em 1924
continuavam a residir nestas cidades 78% dos mutualistas. Na cidade de Lisboa cerca de um terço
da população estava inserida em associações mutualistas no final do século XIX, em 1931 subira a
44%, sendo ainda mais elevada na cidade do Porto, onde representava 57% da população. Em
contraste com esta elevada ponderação mutualista nas duas principais cidades, em 1915 havia 180
concelhos com 2.351.000 habitantes sem nenhuma associação. Eram os distritos com população
dispersa ou com maior incidência da emigração (Vila Real, Bragança, Guarda,Viseu e Castelo

Branco) aqueles que evidenciavam menor cobertura mutualista.


INSERIR MAPA I HABITANTES ASSOCIADOS
Fora dos dois principais districtos, a evolução foi muito lenta. Apenas em 1930 a
população mutualista representaria à escala nacional, o nível existente desde 1883 no districto de
Lisboa ( no Porto era em 1883 de 6,6%). A população mutualista representava em 1930 apenas

8 Leis de 28 de Fevereiro de 1891 e de 2 de Outubro de 1896.


9

8,6% da população nacional, mas isso era de qualquer forma bem mais que em 1883, quando a
média nacional era só de 2,1%.
A pujança do movimento mutualista revelou-se nos sucessivos congressos nacionais
realizados em 1865, 1882, 1911 e 1916, além dos dois congressos regionais em 1904 (Porto) e
1906 (Lisboa). Desta actividade nasceram Ligas regionais e a Federação nacional. Os poderes
públicos respeitaram este movimento e corresponderam a algumas das propostas, como a de
modificações do enquadramento legal em 1891 e 1896. Portugal foi um dos três primeiros países
europeus a dispôr de uma legislação sobre as bases do mutualismo( antes da França e da
Inglaterra).9
A situação das mulheres no contexto mutualista não destoava dos entraves à sua
autonomia na legislação sobre a família. O casamento colocava-as na dependência dos maridos , de
cuja autorização careciam para se inscrever nas associações. Esta limitação desaparece no último
projecto-lei sobre as associações elaborado durante a 1.a República em 1919, e assim permanece
na lei de 1932. A protecção da maternidade principiara entretanto a ser ensaiada pela proibição
legal do trabalho no período pré e pós-parto, que desacompanhada de subsídio conduzia à miséria
ou ao trabalho ilegal. As maternidades constituíram nesta época casas de refúgio para as mães
desprotegidas que ali podiam descansar durante o mês anterior ao parto e no seguinte, dispondo de
apoio médico e de puericultura. As mutualidades maternas atribuíam um subsídio às mulheres
grávidas durante período equivalente, subsídio que aparentemente não era contemplado nas
restantes associações. O projecto-lei sobre o trabalho feminino apresentado pelo ministro do
Trabalho José Domingues dos Santos em 1921 previa um subsídio às parturientes durante as seis

semanas anteriores ao parto, mas não chegou a entrar em vigor. O governo de Sinel de Cordes,
traduzindo clara separação entre preocupações higienistas e direitos sociais, alarga o descanso pré e
pós-parto - respectivamente 2 meses com trabalho moderado, ou mesmo suspenso sob indicação

9 Legislação sobre as bases das assoc. soc mut. : 1883- Alemanha, 1886- Itália, 1896 -Grã Bretanha, 1898- França,
1901-Luxemburgo, 1908- Espanha, 1911- Suiça
10

médica, e 4 meses - mas continua a não atribuir qualquer subsídio (decreto-lei 29 Outubro de
1927). 10
A 1ª República de início viu com bons olhos o movimento mutualista. Entre os
dirigentes mutualistas contavam-se desde início numerosos republicanos, entre eles um dos mais
prestigiados e activos na expansão da rede mutualista, Costa Godolfim. Com o advento do novo
regime, as relações entre o Estado e o mutualismo institucionalizaram-se. A criação do novo
Ministério do Trabalho e Previdência Social veio ao encontro da proposta de uma repartição
responsável pelo trabalho e a previdência social apresentada no Congresso mutualista de 1911.11
Estevão de Vasconcelos conseguiu obter a autorização do governo para a constituição da
Federação Nacional das Associações de Socorros Mútuos, organização que não se encontrava
prevista na lei em vigor .12 Para dirigir a secção mutualista do ministério foi nomeado Francisco
Grilo, economista que escrevera um livro em defesa do mutualismo e era colaborador regular do
boletim da Federação, com a qual tinha excelente relação. As relações internacionais do movimento
mutualista, a que Costa Godolfim dera grande relevo, participando nos congressos internacionais
do mutualismo, institucionalizaram-se no âmbito do Ministério do Trabalho em secção própria.

A permeabilidade entre o mutualismo e a corrente republicana e socialista traduziu-


se também pela presença de figuras de primeiro plano no lugar de presidentes honorários dos

10 Projecto-lei sobre as associações de socorros mutúos de 17 de Janeiro de 1919, in D. G. 22 de Janeiro.


Congresso da Mutualidade de 1911, Secções : Da mutualidade maternal e infantil; Acidentes de trabalho,
mulheres e menores: na sua intervenção Estevão de Vasconcelos critica o absurdo da proibição de trabalho sem
subsídio. Boletim da Previd. Social,1916, n.1, pp.95-6, critica-se a eliminação do subsídio às parturientes em
algumas associações. Diário do Governo, II série , 29 de Janeiro de 1921, projecto-lei mencionado no texto. No
mesmo sentido se orientava o projecto -lei sobre as associações mutualistas, também não aprovado, Boletim da
Federação, Junho-Dezembro 1922, pp.4-5
11 As associações de socorros mútuos estão ligadas à 1.a secção da 1.ª repartição, designada de Associações de
classe e mutualistas, da direcção geral da Previdência Social do Ministério do Trabalho. O chefe da 1ª secção era
Francisco Grilo, o chefe da repartição era J. Andrade Saraiva. A 2.a secção era responsável pelas relações
internacionais, nomeadamente com a Fédération Internationale e o Bureau Internationale Permanent de la
Mutualité e pelo Boletim da Previdência Social (decreto de 21 de Abril de 1916).
12 Criação da Federação, decidida no Congresso da Mutualidade de 1911, aprovada por inciativa de Estevão de
Vasconcelos, (ver relato no Boletim da Federação, estatutos da Federação aprovados pelo mº do Fomento em
alvará de 9 de Dezembro de 1911). Instala-se no antigo Recolhimento de N. Sra. do Amparo, rua Direita, Mouraria,
que fora atribuído à Comissão do Congresso regional em 1907, a qual o transfere para a Federação a 2 de Março de
1913, ( in Boletim da Federação, agosto- setembro 1918, pp.4-5)
11

congressos e das organizações mutualistas. 13. Entre os deputados contavam-se mutualistas muito
activos, como Manuel José da Silva, do Conselho Central da Federação, e Estevão de
Vasconcelos, que foi deputado antes de ser ministro do Fomento.
O mutualismo embora muito cioso da sua autonomia começou entretanto a requerer a
intervenção do Estado, embora num contexto liberal. Reconhecem-se os limites da adesão
voluntária à previsão dos acidentes inerentes às várias fases do ciclo de vida e critica-se a ausência
de contribuição do patronato, nomeadamente nos acidentes de trabalho. Neste domínio e no caso
das pensões de velhice e invalidez vai-se instalando a ideia da necessidade de intervenção do
Estado. E, também na abertura de caixas escolares de previdência para educar as gerações futuras.
No caso das pensões de velhice e invalidez, mais do que em qualquer outro ramo dos
seguros, as associações esbarraram em obstáculos de natureza estatística e contabilística, que com
frequência as conduziam à ruína. A relação entre as quotizações e as despesas com inabilitados
permanentes e reformados era difícil de calcular devido à insuficiência das estatísticas da
mortalidade e morbilidade. Por isso, se promoveu na lei de1896 a separação dos socorros para a
inabilidade permanente e a reforma em associações distintas, proibindo-se a sua coexistência nas
novas associações, daí em diante apenas tolerada nas já existentes. Em todas deveriam fixar-se
tabelas diferenciadas para os diferentes socorros e quotizações respectivas, sendo admitido uma
graduação segundo a situação individual.
Costa Godolfim, figura central no movimento mutualista português ia mais longe e
reconhecia, desde 1889, a imperiosa necessidade de intervenção do Estado no caso das pensões,.
Escreveu então : " O único meio é o estabelecimento pelo Estado de uma caixa geral de reforma

para todos os cidadãos, compelindo-os por quaisquer meios para que todos sejam previdentes"14

13 Congresso de 1911: presidentes honorários Teófilo Braga, Brito Camacho, ministro do Fomento, Bernardino
Machado, ministro dos Negócios Estrangeiros, vice- presidente honorário o director geral do comércio e indústria.
O Presidente da Sociedade de Geografia , onde se fizeram os congressos, também era membro honorário. Em 1916
o congresso abriu com a presença do Presidente da República e do ministro do Trabalho e da Previdência. Em 1915
pertencem ao Conselho Central da Federação das Associações de Socorros Mútuos como membros titulares Afonso
Costa e Barbosa de Magalhães.

14 A Previdência, p. 157. Existiam algumas instituições nesta área: Caixa nacional de aposentações para os
funcionários civis, criada em 15 de Julho de 1885. Caixa de reforma e pensões da Companhia Real dos Caminhos
de Ferro Portugueses, e pelo menos duas associações que se dedicam unicamente a este sector. ( ob cit, p.159 e
segs.).
12

Não sem ironia, contrapõe o regozijo das famílias à critica de alguns ao carácter "menos liberal"
desta medida.
As recomendações do Congresso de 1911 revelam a existência no seio do mutualismo
da dupla preocupação de conciliar liberdade e intervenção do Estado, ao apelar para que o governo
promulgasse uma lei sobre os acidentes de trabalho, criasse um fundo para garantir pensões de
invalidez e velhice, procedesse à construcção de casas para operários e garantisse a participação
financeira do Estado no auxílio às viúvas e orfãos. Várias comunicações tinham orientação ainda
mais dirigista. Surpreende aliás a aprovação por unanimidade da tese de Cassiano Neves,
secretário geral da Assistência aos Tuberculosos, que preconiza a extensão da mutualidade livre
com o apoio do patronato e do Estado como fase preparatória da futura previdência obrigatória. A
idéia da necessidade da intervenção do Estado começa assim a instalar-se ou em áreas mais
difíceis de gerir de um ponto de vista financeiro, como as pensões e acidentes de trabalho, ou até
num âmbito genérico como meta futura e distante.15
Na mesma orientação se inseria Francisco Grilo, que, no livro publicado no ano
seguinte, sustentava a necessidade imperiosa da mutualidade obrigatória, prioritariamente para
prover à invalidez e velhice dos trabalhadores agrícolas. .16 Atribuía neste domínio centralidade
ao papel das associações de trabalhadores agrícolas existentes, em número particularmente elevado
no Alentejo, cuja situação social constituía o ponto de partida das suas preocupações sociais.
Embora fosse admirador da lei de Lloyd George de 1911, cujo modelo propõe, que abrangia a
doença e o desemprego, num primeiro tempo apenas defenderia o seguro obrigatório para a
invalidez e velhice para o conjunto de assalariados rurais e urbanos. Ao mutualismo livre

15 Congresso da Mutualidade de 1911, in Boletim do Trabalho Industrial, 45, número inteiramente dedicado a
este acontecimento. Comunicações de J. Eusébio dos Santos preconizando a criação pelo Estado de um fundo para
a inabilidade e velhice, de Augusto Castro Azevedo solicitando a criação de caixas de aposentação para operários.
Estevão de Vasconcelos na sua tese defende o projecto que apresentara no Parlamento, criticando a situação
existente : ausência de contribuição do patronato, apenas as associações contribuíam. Em 1916 insiste-se na
criação de uma caixa nacional para a reforma e surge a idéia de criação pelo Estado de Caixas Escolares de
Previdência Sobre o congresso de 1916, Boletim da Previdência social, n.1 e Boletim da Federação Nacional
das Associações de Socorros Mútuos.
16 Mutualidade rural e crédito agrícola, Lisboa 1912. Francisco Grilo era formado pela Escola Central de
Agricultura.
13

continuaria a competir a cobertura dos outros riscos. Propõe à Federação mutualista a


implementação do debate a este respeito no seu próximo congresso, o que viria a ter lugar.
No Congresso realizado cinco anos mais tarde, em 1916, o seguro social geral
obrigatório viria efectivamente a ser defendido pelo deputado Manuel José da Silva e a sua tese
foi publicada no boletim da Federação. 17Lembraria então que já defendera posição idêntica
durante o debate parlamentar acerca da lei dos acidentes do trabalho. Ficara isolado no decurso
desse debate, mas não fora o único, como veremos.
Os diferentes governos foram preferindo o apoio ao movimento mutualista, a quem
reconheciam os serviços prestados à comunidade, nomeadamente no domínio médico, a assumir
qualquer responsabilidade directa. As associações por sua vez iam procurando defender-se diante
dos encargos financeiros crescentes, que a inflacção tornava cada dia mais pesados. Uma das
iniciativas mais interessantes para diminuir a ponderação da despesa em medicamentos foi a
criação de ligas para a criação de farmácias mutualistas, que produziam os seus próprios produtos -
existiram no Porto e em Coimbra - e a tentativa de centralização de serviços médicos. A dispersão
em múltiplas associações e a excessiva concorrência, debilitante do ponto de vista financeiro, vinha
sendo criticada por Costa Godolfim e Santa Rita, acrescia que, por vezes, a administração onerosa e
pouco escrupulosa agravava a situação. Contudo, a situação financeira das associações era
considerada equilibrada em 1915, no início da 1.ª guerra. 18
Nos anos seguintes a situação alterar-se-ia. A situação sanitária de 1918 dramatizou-
se devido à epidemia da gripe pneumónica, que fêz subir a taxa da mortalidade para 42º/ºº e
tornou a acção mutualista indispensável, justamente num momento em que a sua continuidade

17 Ao mesmo tempo ,havia quem defendesse o alargamento da intervenção mutualista nos seguros de acidentes de
trabalho e na construcção de casas para operários.Proposta de lei assinada por Constâncio Oliveira, Domingos
Cruz, Jaime Cortesão, António da Costa Júnior, publicada in Boletim da Federação das Associações de Socorros
Mútuos, Março, 1917.
18 Desde 1906 que existiam no Porto 4 farmácias da Liga das associações de socorros mútuos, este tipo de
iniciativa também surgiu em Coimbra. Ver várias teses sobre este tópico da autoria de Costa Godolfim e Manuel
José da Silva entre outros, no congresso de 1911. Anuncia-se a criação de um Instituto Mutualista para centralizar
diversos serviços médicos, na sede da Federação, ver Boletim da Federação, n1, 1915. Costa Godolfim
preconizara a criação de um posto médico por área e Santa Rita a centralização num mesmo edifício das associações
de cada bairro, com o agrupamento por bairro do serviço médico, farmácia e pensões de inabilidade. Sobre a
situação financeira das associações, “Inquérito sobre as associações de socorros mútuos” , dirigido por J.M. de
Andrade Saraiva no âmbito dos serviços de mutualidade do Ministério do Trabalho, publicado em 1918, Boletim
da Previdência Social,n.º6, Maio-Setembro.
14

parecia difícil.19 Neste contexto, o Estado português que raramente auxiliou as associações - em
contraste com o que se passava nalguns outros países - atribuiu pela primeira vez o subsídio
considerável de 50.000$00 às associações de socorros na doença..20 Para fazer face à inflação
galopante do pós-guerra as associações pediram autorização para sucessivos e vultuosos aumentos
das quotas: 100% em 1920, 100% em 1922, 300% em 1923. A inflacção ameaçava a
sobrevivência do movimento associativo, nomeadamente os serviços médicos: o custo dos
medicamentos e dos serviços do corpo médico tornavam-se incomportáveis.21
Os limites financeiros das iniciativas mutualistas e a irregularidade da expansão do
movimento mutualista, muito denso no meio urbano, escasso no meio rural, deixava grandes
manchas do território nacional sem cobertura. É neste contexto que se situa o projecto dos seguros
obrigatórios.
O debate entre liberdade de inscrição individual versus obrigação relativamente ao seguro
social, que começara por opôr, nos diferentes países da Europa, desde os anos 80 do século XIX, o
movimento mutualista e os defensores do modelo alemão, estatal, acabara por se instalar no seio do
próprio mutualismo, como vimos. No início do século, em 1911-12, o sistema inglês veio
introduzir uma fórmula nova de compromisso a integração do mutualismo nos seguros
obrigatórios. Contudo, o debate prolongou-se no seio das organizações mutualistas internacionais,
reflectindo-se nos seus congressos até à década de 30.
. No decurso da 1ª guerra tivera já lugar uma inflexão significativa, a situação bélica
viera propiciar uma maior intervenção do Estado em todos os domínios. A dimensão adquirida
pelo número de estropiados temporários e definitivos prolongou a intervenção do Estado no

domínio social durante os anos seguintes. O Estado teve que assumir uma responsabilidade no

19 Miranda , Sacuntala “A base demográfica “, in Oliveira Marques Portugal -Da monarquia para a República,
p.20.
20 O governo de Sidónio Pais em 1918, ao fazê-lo, exigiu prova prévia de redução de despesas com a administração
e fusão ou federação de serviços. Decreto 4.803, 10 de setembro de 1918. Grande elogio a Sidónio Pais, no
Boletim da Federação, ver notícia necrológica, Dez. 1918, p.50.
21 Em 1919 os médicos mutualistas chegam a ameaçar fazer greve, conta anos depois Domingos da Cruz, então
membro do conselho da Federação. Tentara aliviar a situação financeira pela criação de uma liga de serviços
clínicos, sem êxito; in A mutualidade em Portugal,1934 p. 36-37
O próprio boletim da Federação definha: de mensal passa a bimensal em 1918, volta a mensal em 1919, mas
torna-se semestral de 1921 em diante; o último boletim tem quatro páginas , em lugar das 16-20 páginas habituais.
15

apoio aos feridos, mutilados e às suas famílias, e ainda em relação às viúvas e órfãos, que haviam
atingido números sem precedentes. A conjuntura social e política - a revolução russa de 1917 e a
intensa movimentação social do final da guerra - incidiu igualmente nesta evolução. Um exemplo
da viragem que então teve lugar no meio sindical, foi a mudança de atitude da CGT em França:
ainda em 1910 se opusera às leis sobre as reformas operárias e camponesas, no pós-guerra já
defenderia o sistema de seguros sociais no seu congresso de 1919. 22
Os seguros obrigatórios
A criação dos seguros sociais obrigatórios em Portugal integrou-se na vaga europeia favorável
à imposição da obrigatoriedade do seguro social. Teve lugar em 1919, no mesmo ano que em
Espanha. O primeiro ano de paz foi um tempo de forte agitação política e social em toda a Europa.
Portugal não constituiu excepção. Foi neste contexto que foi promulgado o primeiro sistema de
seguros sociais obrigatórios no nosso país. Passou em parte desapercebido no pacote de leis sociais
que o acompanhou. No mesmo dia, 10 de Maio, o governo de Domingos Pereira , em vésperas de
eleições, enviou para publicação 340 decretos que obrigaram à edição de trinta suplementos do
Diário do Governo, distribuídos em Maio e Junho, mas todos datados de 10 de Maio. As leis sobre
os seguros sociais foram inicialmente um tanto ofuscadas pela lei das 8 horas, também contida
neste pacote, que desencadeou um intenso debate e um forte movimento grevista, devido à
resistência do patronato à aplicação do novo horário.
Estava-se em vésperas de eleições, mas as leis da segurança social não se deveram a
fins meramente eleitoralistas. Sem dúvida que a conjuntura política de Maio de 1919 - e também
os seus antecedentes, a participação popular contra a revolta monárquica- contribuiu para a

promulgação destas medidas. Contudo não se está nem diante de um projecto improvisado, nem
de medidas sem sequência nos anos seguintes. Bem pelo contrário. Uma vez adoptado, o
princípio da obrigatoriedade resistiria às sucessivas mudanças de governo e à própria derrocada do
regime liberal, quando as bases do sistema viriam ser reformuladas.

22 Ver sobre esta evolução das idéias o interessante estudo de Dreyfus, Michel, “Mutualité et organisations
internationales (1889-1939)” in Vingtième siècle, 48, Oct-Dec. 1995
16

A obrigatoriedade do seguro social era uma questão em debate no seio da


sociedade portuguesa há mais de uma década, era anterior à própria República, debate que
se situou a dois níveis, no seio do movimento mutualista, como já se viu, e também no meio
académico, entre uma minoria de juristas, como o observou Pierre Guibentif. 23
A argumentação a favor da obrigatoriedade não desprezava o papel
desempenhado pelo movimento associativo mutualista, nem a protecção patronal.
Considerava esta última avulsa e difícil de ultrapassar a limitada cobertura mutualista da
população rural devido ao fraco poder económico e ao baixo nível de instrucção. A
concepção de seguro obrigatório começara a encontrar aceitação, não só no seio do
mutualismo como também noutros sectores da sociedade.
Lobo d'Ávila, professor de Direito na Universidade de Lisboa, fêz parte da
minoria de autores que escreveram sobre esta questão nos primeiros anos do século XX. .24
O solidarismo apresentava-se-lhe como a alternativa válida ao liberalismo e ao socialismo.
Apoiando-se em Léon Bourgeois, considerava que a experiência acumulada tanto na prática
mutualista como na política patronal evidenciava os limites do voluntarismo, designando o
Estado-Previdência - expressão que surge provavelmente pela primeira vez em Portugal neste
texto - como a solução adequada. O Estado tutelar devia suprir as insuficiências da iniciativa
privada. Aos liberais em matéria social respondia do seguinte modo:
«O seguro obrigatório, cuja essência os economistas liberais rejeitam tão
fortemente, não significa premiar a imprevidência pois esta é uma consequência lamentável
da pobreza que esta obrigação pretende corrigir, nem é uma violação da liberdade individual

23 Pierre Guibentif com base nas fontes citadas no livro de Francisco Grilo propôs, a título de hipótese dois
alicerces do projecto de 1919, o movimento mutualista e um grupo de juristas académicos , “Avatars et
dépassement du corporatisme. Le développement de la sécurité au Portugal “ in Colloque sur l’histoire de la
sécurité sociale , Montpellier, 1985, p214
24 Ulrich, Ruy, Legislação operária, capit. VI, em especial p. 282, onde critica a posição de Oliveira Simões em
1904, no Congresso Nacional de Tuberculose de Coimbra, que preferia uma lei sobre a responsabilidade dos patrões
a pensões para os desastres de trabalho. Lima, J. Lobo de Ávila, Socorros mútuos e seguros sociais, 1909, mais
especialmente pp. 320-29, capit. XIX .
17

(.....) é através da associação e das leis de solidariedade que o proletariado encontra a sua
verdadeira liberdade.» 25
A questão da obrigatoriedade veio a transitar do meio académico para o plano
político, pela primeira vez, a propósito dos acidentes de trabalho. A idéia deste seguro social
não se integrava então no projecto de uma intervenção ampla do Estado, não implicava a
criação de um Estado-Providência. Tal como em vários países, foi na área restrita dos
acidentes de trabalho que a utilização do seguro obrigatório foi inicialmente proposto,
primeiro por iniciativa de um pequeno grupo de deputados monárquicos, progressistas
dissidentes, em 1906, a que se veio juntar mais tarde proposta similar do deputado Estêvão
de Vasconcelos, deputado da minoria republicana.26 Médico mutualista, muito activo,
apresentaria a sua proposta também no decorrer do Congresso mutualista de 1911, onde ficou
aprovada.
O caso dos acidentes de trabalho constitui um excelente exemplo da difícil
alteração das fronteiras entre privado e público. Durante a maior parte do século XIX, foram
considerados como caindo sob a alçada do Código Civil por se situarem no âmbito dum
espaço privado - a empresa. Com o desenvolvimento de novas tecnologias, as decisões sobre
a responsabilidade dos acidentes tornaram-se mais complexas, dando lugar a processos
intermináveis sobre o responsável pelo acidente, patrão ou operário. O seguro de acidente
de trabalho colocava a questão em base diferentes, garantindo a indemnização ao
trabalhador. Ora, o seguro pessoal mesmo sob esta forma restrita foi uma batalha difícil.
Estevão de Vasconcelos só conseguiu a aprovação da lei a segunda vez que a apresentou,

quando já era ministro do Fomento da recém-criada República Portuguesa. O longo debate


que teve lugar em ambas as Câmaras antes da aprovação da lei permite compreender
claramente o tipo de objecções e as hesitações que dividiram a elite política e os grupos
sociais nele envolvidos.

25 ob. cit. , p. 329


26 Carvalho, David de, "Leis do Trabalho ", in Dicionário de Portugal e História da República ; projecto-lei de
Estevão de Vasconcelos apresentada a 9 de Maio de 1908, debatida a 16 de Março de 1909. A 5 de Junho de
1910, o ministro das Obras públicas apresenta um projecto sobre o mesmo tema, que não chega ser discutido.
18

A maioria dos deputados sentia-se ligada pelas promessas feitas sobre esta
questão pela propaganda republicana durante a luta contra a monarquia.27 Apoiaram assim
os princípios norteadores da lei. A necessidade de melhorar a condição da classe
trabalhadora ocupou um lugar importante nos discursos. As cartas de apoio das associações
de classe e de socorros mútuos, que chegavam diariamente ao Parlamento vindas de todo o
país, influenciaram os resultados dos trabalhos.28 No entanto, o acordo apenas se verificou
no âmbito dos princípios gerais.
No debate manifestaram-se duas linhas de argumentação diferentes. O
alargamento do universo coberto pela lei, de forma a beneficiar os trabalhadores agrícolas, os
empregados do comércio e os marítimos, seria proposta por um número considerável de
deputados e apoiada pelo menos por uma associação de marítimos. Diferente argumentação
foi adoptada por aqueles que, discordando da lei, não achavam conveniente exprimi-lo de
forma clara. Como é frequente nessa situação, solicitaram o adiamento da promulgação da
lei, utilizando como principal argumento a inexistência de orçamento. Ora, apesar de não
existirem estatísticas dos acidentes que pudessem servir de base à elaboração de um
orçamento, a Comissão das Finanças era favorável à lei. Não podiam existir estatísticas
rigorosas dos acidentes de trabalho antes de ser aprovada uma lei sobre o assunto, nem isso
era relevante, pois os encargos do Estado seriam sempre reduzidos devido ao limitado papel
do Estado na indústria, apontaria Estevão de Vasconcelos, ministro do Fomento. As
contribuições proviriam do patronato e da classe trabalhadora.
No calor deste debate a identificação social serviria de reforço da argumentação,

alguns deputados invocariam as suas origens de classe. A qualidade de antigo operário seria
recordada por Ladeira que apoiava a lei apesar das suas limitações, por ser passível de

27 Estevão de Vasconcelos refere decisões aprovadas anteriormente em vários congressos republicanos no seu
discurso no Senado.
28 Localizei a recepção de representações de apoio da parte de 58 associações de socorros mútuos, uma da
Federação, outra da classe marítima de Sesimbra pedindo para ser contemplada. A Comissão Mista dos Operários
e mestres do Porto enviou um pedido de discussão do projecto por eles apresentado ( Diário da Câmara ). O
sector da construção civil representa contra pois acham que ficam prejudicados em relação ao seu regulamento de
1895..
19

aplicação imediata. Interessante é a argumentação do industrial Francisco Cruz, que embora


concordando com a lei, defendia a necessidade de distinguir bons e maus trabalhadores na
ponderação das indemnizações. Fêz questão em distanciar-se da visão dicotómica,
subentendida em muitos discursos, que contrapunha o operário bom trabalhando como um
escravo para o mau patrão. De maldade e culpa não estavam isentos os trabalhadores, diria,
utilizando uma linguagem moralizante típica do patronato desta época. Representava de
qualquer modo uma posição conciliadora, pouco frequente no meio industrial.
O patronato industrial levou a cabo uma vigorosa luta contra esta lei. A Associação
Industrial de Lisboa esforçou-se junto de Estêvão de Vasconcelos para obter o adiamento
da proposta. A concepção dos acidentes de trabalho como assunto reservado de forma
exclusiva à gestão empresarial, e portanto de natureza privada, é patente na petição da
Associação Industrial do Porto, cujo objectivo , explicava-se, era «evitar uma lei que seria
ruinosa e humilhante para eles». Esta ideia de humilhação mostra que se encarava esta lei
como uma interferência inaceitável numa área da exclusiva competência privada. .29
Um tipo de crítica completamente diferente, muito radical para o tempo, apareceu
logo nas primeiras quatro sessões, que foram dominadas por um orador, Fernão Botto-
Machado, impulsionador do Centro de Estudos Socialistas. Veio à tribuna defender um
sistema geral de seguros e apresentou uma proposta de lei que, em nome da revolução social
e de uma república que proporcionasse a todos oportunidades iguais, abrangia, além dos
acidentes de trabalho, também a doença, a velhice e o desemprego.30 Discordava vivamente
da implementação isolada do seguro social limitado aos acidentes de trabalho - parte da sua

argumentação era que esta situação teria o inconveniente de constituir o único meio
disponível para os trabalhadores adquirirem o direito a uma pensão.
As bases de financiamento do seu projecto também divergiam da proposta
governamental: o Estado teria responsabilidade financeira directa, ao lado do patronato e

29 Associação do Porto, sessão de 23 de Novembro de 1911 e referência em Estevão de Vasconcelos, Discurso no


Senado, 25 de Novembro de 1912, publicado em separata.
30 Botto-Machado, F., No Parlamento. Discursos e projectos, Lisboa, 1929. Contém os discursos e a proposta de
lei que foi apresentada a 31 de Julho no Parlamento.
20

dos trabalhadores, enquanto na proposta governamental esta responsabilidade apenas


competia aos patrões. Os limites sociológicos do universo abrangido pela lei, que excluía os
trabalhadores agrícolas e os marítimos, foram igualmente criticados por Botto-Machado,
exclusão salientada também por outros deputados. Mas foi o único a questionar a exclusão
do trabalho doméstico, sublinhando que este facto implicava a exclusão da maioria das
mulheres trabalhadoras. Deixaram Botto-Machado falar praticamente sozinho durante
sessões sucessivas. Foi apenas acompanhado pelo deputado Manuel José da Silva, militante
mutualista, como já foi referido atrás. O impacto parece ter sido nulo e Botto-Machado não
tornou a intervir neste debate.
Após aprovação no Parlamento, em fins de Janeiro de 1912, a proposta de leis
sobre os acidentes de trabalho seguiu para o Senado, onde demorou mais um ano até tomar a
sua forma definitiva. Entre a apresentação do projecto e a publicação da lei mediaram dois
anos. 31 O texto final divergia da proposta original em alguns pontos, nomeadamente o
alargamento dos seguros aos trabalhadores agrícolas e aos marítimos. Apenas eram
contemplados os acidentes de trabalho provocados por máquinas, com excepção do trabalho
pesado em minas, transportes e em indústrias utilizadoras de matérias-primas perigosas.
Esta restricção ao trabalho mecânico não foi objecto de qualquer critica no Parlamento e
mesmo fora do Congresso apenas dois professores universitários, F. Emídio da Silva e Bento
Carqueja teceram leves reparos, em referência ao mundo rural. Apenas encontrámos um
único e tardio protesto do meio rural, em 1919, mas tratava-se de um mal-entendido, pois o
trabalho rural era contemplado na nova lei acabada de publicar. 32

31 Proposta de lei apresentada à Câmara dos Deputados por Estevão de Vasconcelos a 22 de Junho de 1911;
Primeiros pareceres da Comissão de Legislação Operária e da Comissão das Finanças da C. Deputados de 14 de
Agosto desse ano; debates na generalidade a 22, 23, 24, 28 e 30 de Novembro; aprovação na generalidade a 5, 7, 8,
11 e 12 de Dezembro de 1911; debate na especialidade de 2 a 23 de Janeiro de 1912; enviado para o Senado a 24 de
Janeiro. Proposta do Senado n.º 82-A, de 27 de Fevereiro de 1912; Parecer da Comissão de Legislação Operária n.º
176, de 3 de Maio de 1913; Lei n.º 83, publicada a 24 de Julho de 1913. A.H.P., Secção III, Caixa 5, Dossier 35 e
Diário das Sessões da Câmara dos Deputados e idem do Senado. Souto, A. de Azevedo, Acidentes de
Trabalho - Colecção da Legislação, Lisboa, 1914.
32 Silva, F. Emídio da, Acidentes do Trabalho, 1913; Carqueja, Bento, O Povo Português, Porto, 1916, p. 361.
Associação de classe dos trabalhadores rurais de Lisboa, resposta ao ISSOPS, Campo Grande, 6 de fevereiro de
1920, Arquivo Mº do Emprego, Cx. 31, pasta 46.
21

Seis anos após este longo debate sobre uma proposta de lei importante mas
limitada, foi promulgada em 1919 uma nova lei sobre os acidentes de trabalho, agora
abrangendo todos os tipos de trabalho, tanto o manual como o intelectual. Inseria-se num
corpo jurídico que criava um sistema completo de seguros sociais relativos à doença, à
velhice, à invalidez e sobrevivência, além dos acidentes de trabalho. Apenas ficava excluído
o desemprego, ou “chômage”, como se dizia na época. Em vez disso, foi reformada uma
instituição já existente, as Bolsas de Trabalho. 33
O conjunto de leis sobre seguros sociais resultara do trabalho, efectuado em
menos de quarenta dias, por dois funcionários do Ministério do Trabalho, destacados para o
efeito, ainda no final do governo do José Relvas, pelo então ministro do Trabalho, Augusto
Dias da Silva, membro do Partido Socialista.34 Eram dois homens muito ligados ao
movimento mutualista e que o conheciam portanto bem. João Ricardo da Silva, fora
membro do Conselho Central da Federação das Associações de Socorros Mútuos e médico
mutualista na região de Montemor-o-Novo, antes de ser director da Previdência Social. José
Francisco Grilo, mutualista partidário da obrigatoriedade como já vimos, passara a chefe da
repartição de companhias e sociedades de seguros no Ministério do Trabalho, onde fora
primeiro chefe da repartição da mutualidade . 35

33 Lei sobre acidentes de trabalho, decreto n.º 5637; Leis separadas sobre seguros obrigatórios: na doença,
invalidez, velhice e sobrevivência; criação do Instituto de Seguros Obrigatórios e Bolsas sociais de Trabalho ;
Diário do Governo, 10 de Maio de 1919; 8.º Suplemento, distribuído a 17 de Maio, e rectificações publicadas no
14º Suplemento.
34 A participação em governos “burgueses” foi objecto de debate no seio do partido socialista, onde existia uma
corrente contrária a este tipo de acção. Ver a este respeito, César Nogueira Notas para a história do socialismo,
vol. II, pp. 40-67.
35 Sobre a génese das leis: portaria de 5 de Maio de 1919; indicação de Jorge Vasconcelos Nunes, sucessor de
Dias da Silva, Diário de Notícias, 25 de Maio de 1919, e O Combate, de 10 de Maio, coluna "Dia a Dia". Foram
nomeadas cinco comissões por Augusto Dias da Silva, socialista, ministro do Trabalho, por portaria de 27 de
Março de 1919; os documentos de trabalho desta comissão não foram localizados. As comissões foram incumbidas
de colaborar na organização de leis, partindo das bases definidas pelo ministro, sobre os seguintes assuntos: duração
de trabalho, salário mínimo, desastres no trabalho, doenças, invalidez, velhice , bolsas de trabalho e desemprego.
Admitia-se desde logo a obrigatoriedade dos seguros sociais na portaria de 27 de Março que criou as comissões.
Sobre estas comissões, Silva Leal, Temas de segurança social, p.105 . Neste livro retoma parcialmente o que
escrevera acerca das origens históricas da segurança social portuguesa in A Organização da Previdência, Lições
1966/7, Instituto de Estudos Sociais.
Sobre João Luis Ricardo da Silva, ver notícia necrológica, Boletim da Federação de Assoc. Soc.Mut., Abril-
Maio 1921, pp.35-36 e também Silva Leal. Francisco Grilo, ver nota 16 e p. 15 ( a rever no livro), também o seu
artigo em defesa da lei de 1919, Boletim da Federação ...., Junho de 1919.
22

O novo sistema de seguros sociais propunha-se incluir nos beneficiários o


universo dos assalariados com rendimento inferior a 900$00, ou seja operários e
empregados com menores recursos..36 No caso do seguro na doença e de impossibilidade
temporária de trabalho, ao lado dos sócios efectivos, que pagavam a quota mensal reduzida
de $30 a $50 , criava-se a peculiar categoria de sócios natos, constituída por aqueles que
tinham rendimentos superiores a 900$00, contribuintes com quota mais elevada, de $50 a
3$00, sem direitos a qualquer benefício, a não ser que os rendimentos se alterassem.
Este sistema tinha como modelo as associações de socorros mútuos às quais era
oferecida a opção de se tornarem obrigatórias. Nos concelhos em que não funcionassem
anteriormente associações livres, seriam constituídas mutualidades obrigatórias, e apenas
funcionaria uma única. Admitia-se situação diferente nas cidades de Lisboa e do Porto, onde
existiam inúmeras associações, mas também aqui se procederia à fusão das associações, de
forma a funcionarem apenas seis mutualidades obrigatórias por bairro.
As contribuições variavam de acordo com o tipo de seguro: apenas os
trabalhadores contribuíam para a doença e para o seguro de sobrevivência; tanto os patrões
como os trabalhadores tinham de contribuir para as pensões de velhice e de invalidez. Era
respeitada a diversidade de pensões e o sistema apenas excluía os funcionários públicos, as
forças armadas e os trabalhadores que beneficiavam de esquemas privados de previdência,
organizados pelo patronato. O Estado era responsável pela administração geral do sistema
através do Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e Previdência Geral, que integrava as
repartições de previdência já existentes. Previra-se para o Instituto uma fonte de receitas

autónoma, proveniente da cobrança de 2% do total dos prémios das companhias de


seguros.37 Propunha-se evitar desta forma, um aumento das despesas do Estado, justificação

36 No Diário de Governo consta o tecto de 700$00, trata-se de erro corrigido para 900$00 em todas as edições
separadas destas leis de seguros, sendo também o montante referido no artigo publicado por F. Grilo no Boletim da
Federação de Junho de 1919, e também no seu estudo sobre a legislação social em 1930 no Boletim da Previd.
Social, referido adiante.
37 Sobre os 2% dos prémios de seguro, lei criando o Instituto e proposta de lei publicada no Diário do Governo, n.º
120, de 25 de Maio de 1920.
23

apresentada com muita ênfase para a escolha deste tipo de sistema, e que pode bem ter
constituído forma de tornear eventuais resistências a nível político.
Este recém-criado Estado-Providência tinha objectivos de longo alcance,
expressos na introdução a cada uma das leis promulgadas. Em linhas gerais, anunciava-se o
advento de nova era de cooperação entre trabalho e capital, em que a justiça social seria
implementada. Elogiava-se e invocava-se como fonte de inspiração as medidas de Lloyd
George e as recentes orientações da Sociedade das Nações. O objectivo político era
explicitamente assumido por Augusto Dias da Silva, para quem a concessão de benefícios
aos operários era indispensável para evitar perturbações, como explicou em entrevista ao
Diário de Notícias, três dias antes de se demitir. .38 Não chegou a ser ele a assinar os
diplomas, demitiu-se a 4 de Maio por discordar da responsabilização pelos actos terroristas
ocorridos em Lisboa, atribuída pelo governo ao movimento operário. Os operários fariam em
vão uma manifestação, em que participaram cerca de 3000 pessoas, para tentar obter a sua
recondução.39
As atitudes em relação às leis de seguros sociais publicadas conjuntamente a 17
de maio de 1919 foram diferenciadas. De um modo geral a grande imprensa noticiou com
destaque o novo sistema. A imprensa operária de diferentes sectores políticos, desde os
anarquistas aos socialistas, elogiou o pacote legislativo, lamentando apenas o nível
extremamente baixo das indemnizações. Mas de alguns veio a acusação de falta de coragem
do governo, impedindo esta reforma de ter os resultados esperados: para César Nogueira a

38 Entrevista de A. Dias da Silva, no Diário de Notícias,1 de Maio de 1919. Nesta entrevista classificaria as
associações de socorros na doença de inúteis por a administração absorver verba muito maior que o auxílio prestado
ao sócios. É claramente uma afirmação excessiva. Numerosos artigos de apoio no jornal socialista O Combate,6 ,
7 de Maio e números seguintes, notícia de um jantar de homenagem; notícia elogiosa in A República socialista
27 de Agosto de 1919
39 O Século, 3 de Junho, 1919: noticia a manifestação dos operários em que se solicita a participação de
socialistas no governo, e um socialista na pasta o Trabalho, de preferência Dias da Silva. Entregam mensagem de
apoio aos deputados socialistas, esperando que sigam exemplo de daquele ministro.
24

nacionalização das companhias de seguros teria proporcionado a base adequada a melhores


condições de financiamento. .40
Proveio do meio mutualista, que se sentiu lesado na sua autonomia, reacção
mais persistente ao novo enquadramento jurídico. Na realidade, as associações ou se
tornavam obrigatórias ou ficavam marginalizadas no sistema de seguros sociais e, em
qualquer caso, o seu património era integrado no Instituto de Seguros. Tentaram obter uma
alteração de vários pontos da lei do seguro médico, com resultados insignificantes.
Aceitavam a obrigatoriedade de inscrição dos cidadãos para o seguro médico, desde que se
efectuasse no quadro das associações livres. .41 Mas isso dificilmente podia ser aceite:
como as associações livres não aceitavam a inscrição de indivíduos com mais de 45 anos, as
mutualidades obrigatórias tornar-se-iam o repositório das camadas etárias com maior
morbilidade e mortalidade.42 Criou-se assim um impasse. Embora tivessem projectado
reunir-se em congresso em 1922 para analisar a situação, acabaram por não o fazer,
possivelmente devido à complicada evolução financeira e política. Só viriam a reunir-se em
congresso em 1934, em vésperas de serem confrontadas com a concorrência das caixas
sindicais de previdência de modelo corporativo, privilegiadas de um ponto de vista político-
ideológico, mas sem exclusivo.43
A atitude do patronato, ou pelo menos a reacção das organizações profissionais, foi
bastante reticente. A União da Agricultura, Comércio e Indústria procurou em vão protelar a
promulgação das leis. Solicitada a colaborar no regulamento do seguro na doença, a

40 Críticas de César Nogueira transcritas num artigo de J. Fernandes Alves in A Voz do Operário, de 6 de Julho de
1919, outro artigo do mesmo autor a 8 de Junho, A Batalha, jornal anarquista, artigo a apoiar de 28 de Maio. Ver
posição dos jornais socialistas na nota 38.
41 Representação propondo alteração da lei, assinada pela Federação Nacional e pelas Federações Regionais Norte
e Sul, por diversas associações e pelo Conselho Superior de Previdência , in Bol. Federação Assoc. Soc. Mut., 1
Junho de 1919, e de novo em Dezembro do mesmo ano, no mesmo boletim. Comentário violento à lei e entrevista
com o ministro in boletim citado , n.1, Junho 1919. Outros comentários em boletins de Março e Julho-Agosto de
1921 e em Junho-Dezembro de 1922.
42 É o que se explica no parecer do Conselho de Superior de Previdência de Agosto de 1920, em que se recusa a
proposta da Federação, por maioria de votos, com votos contra dos dois representantes da Federação, in Boletim da
Federação, Setembro-Novembro de 1920.
43 Leal, Ant. Silva, ob cit., p.104 . A lei n.º 1884 de 16 de Março de 1935, reconhecia as associações de socorros
mútuos como instituição de previdência . Ver parte final deste estudo.
25

Associação Industrial Portuguesa não se mostrou disponível, pedindo a alteração da lei.44.


Atitude muito diversa havia sido expressa no jornal da Associação Industrial do Porto, no ano
anterior onde se alvitrava a protecção social como resposta ao “perigo social”, denotando
mudança substancial em relação à opinião expressa três antes. 45
A crítica mais viva proveio do corpo médico: a Associação Médica Lusitana solicita a
suspensão das três leis de seguros sociais e a sua reformulação com base em duas ordens de
razões. Questiona-se a qualidade do serviço oferecido aos proletários, serviço considerado
indispensável - louvando-se a intenção das três leis - e associando-se à critica do movimento
operário ao baixo nível dos subsídios. Mas é também a situação dos médicos que os
preocupa: no caso dos médicos municipais as novas funções são vistas como uma
sobrecarga, que vem por outro lado privar os outros de grande parte da sua clientela
enquanto clínicos particulares. É sob este último prisma exclusivamente, ou seja o interesse
da classe médica, que a Associação dos Médicos Portugueses considera cerceado o livre
exercício da profissão e põe em causa o seguro social na doença, solicitando a sua restricção
aos indigentes e a existência de tabelas de honorários definidas pelas associações médicas
tudo em nome da liberdade de escolha do médico..46
Contrariamente ao que tem sido afirmado, e apesar de todas as resistências
apontadas iniciou-se rapidamente a organização destes seguros, com destaque para o seguro
na doença considerado prioritário. O Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios, presidido
pelo ministro do Trabalho, foi instalado a 24 de Maio de 1919. Uma das primeiras
preocupações foi a criação de comissões organizadoras de mutualidades obrigatórias nos

concelhos onde não existiam associações de socorros mútuos e que principiou logo no

44 Século, 14 de Maio de 1919; Resposta da AIP de 17 de Junho de 1920 ao ISSOPG, o qual solicitara que
explicitasse a alteração desejada para se poder contar com a sua colaboração, in Arquivo do Emprego, fundo
ISSOPS Cx.31, pasta 46
45 José Vitorino Ribeiro “ O perigo social” in O Trabalho Nacional, Novembro 1918, 47,pp.175-6 em contraste
com a atitude expressa em relação às leis de 1915 sobre horário de trabalho e trabalho das mulheres e menores, in
Relatórios da Direcção da AIP de 1915, e Trabalho Nacional Janeiro1916 in Ribeiro, M.P. A Associação
Industrial Portuense, dissert. mestrado FLP, pp.79-81,102-3
46 Representação da Associação Médica Lusitana de 11 de Maio de 1920, idem da Associação dos Médicos
Portugueses, 9 de Fevereiro de 1920, in Arq.º ME Emprego, ISSOPS, Cx. 42, pasta 122
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decorrer desse verão. Pelo menos nalguns casos, como o de Évora, em que a associação
local não optou pela passagem a obrigatória, também se constituiu uma comissão para o
efeito. No final do ano seguinte, existiam 235 comissões organizadoras de mutualidades de
seguro obrigatório na doença. Estavam constituídas 17, das quais apenas sete eram antigas
mutualidades livres, todas sediadas fora das cidades de Lisboa e Porto. Vieram a constituir-se
43 nos dois anos seguintes, mas poucas chegaram a instalar-se. As quatro que funcionavam
em 1927, eram todas antigas associações de socorros mútuos. 47 Era evidente a resistência
passiva do movimento mutualista e também a dificuldade em alargar o seu âmbito através da
obrigatoriedade, pois apenas funcionaram mutualidades convertidas.48 Escrevendo nos anos
30, Domingos da Cruz sustentaria que teria havido grande resistência do meio operário a
aceitar as cadernetas impressas aos milhares pelo Instituto, relacionando-a com a “época de
sindicalismo intransigente que nenhumas relações queria com o Estado.”49 Na imprensa
consultada para o período subsequente à publicação das leis não se encontrou confirmação
desta atitude, não sendo de excluir que se tenha manifestado mais tarde.
A verdade é que há um motivo forte para este fracasso tão redundante: a
inflacção galopante do pós-guerra desactualizara o escalão que limitava a inscrição,
esvaziando o universo dos beneficiários assim delimitado, de forma que já no ano seguinte se
propunha a substituição do salário-limite máximo do universo dos beneficiários de 900$00
para 1000$00.50 Foi a inflação que impediu igualmente de pôr em prática o seguro de

47 Sobre a instalação do Instituto, Diário de Notícias, 21 e 25 de Maio 1919. Arq.º Mº Emprego, núcleo do
ISSOPS : Proposta de constituição das comissões apresentada por F. Grilo ao conselho de administração do
ISSOPS, 14 de Agosto de 1919, relatório e pedido de esclarecimento enviado pela comissão de Évora, sem data de
origem, respondido a 1 de Setembro do mesmo ano, Cx. 34, Mutualidades obrigatórias, pasta sem número e
Cx.42,pasta 127. Ofício do ISSOPS, à Associação Industrial, 19 de Junho 1920 já citado, relatório da direcção do
Seguro na doença, 31 de Dezembro de 1920, Cx. 42,pasta 120. Mapa da mutualidades obrigatórias , 6 de Dezembro
de 1927, Cx. 34, pasta sem número.
48 De notar que o seguro na doença esbarrava na própria organização do serviço de saúde , fora dos grandes
centros, e na falta de médicos e pessoal auxiliar. No ofício enviado por Tito Benevenuto Sousa Larcher, presidente
da comissão organizadora da mutualidade na doença no concelho de Leiria, aponta-se como solução a utilização
do número elevadíssimo de curandeiros como enfermeiros. ( 5 de Fevereiro de 1920, in Arq.º M.º do Emprego ,
ISSOP, Cx. 34 )
49 Domingos da Cruz, A mutualidade em Portugal, Coimbra 1934, separata de O Instituto , pp. 34-35. Eram
referidas 600.000 cadernetas em impressão para os seguros de invalidez, velhice e sobrevivência no relatório do
primeiro ano de gerência do ISSO, n.9, 1920.
50 Relatório da direcção do seguro na doença, Dezembro de 1920, p.4
27

invalidez e velhice. Nos anos seguintes, os salários sofreram aumentos de 1000 a 1500%,
tornando impossível qualquer ajustamento. Só em 1925-6 é que a estabilidade cambial
permitiu um acerto e nessa altura o limite máximo do universo dos beneficiários foi fixado
em 6.000$. Na nova lei publicada a 11 de Abril de 1928 subia já para 9.000$, em lugar dos
900$ de 1919 !
Apenas no domínio dos desastres de trabalho se conseguira implementar a
legislação de 1919, com excelentes resultados segundo Francisco Grilo. Paradoxalmente, no
que se refere aos outros seguros o movimento mutualista voluntário tinha sido o único a
funcionar durante estes anos, como reconheceria o criador e organizador do seguro
obrigatório. O movimento mutualista aumentou até muito entre 1919 e 1921, como vimos
(Quadro ). O papel do mutualismo seria reconhecido e Grilo anunciava a sua implementação
em 1926. Mas na lei por ele elaborada em 1928 as associações estavam ausentes e os
serviços do Instituto assumiam função muito ampla. As mutualidades obrigatórias apenas
figuravam no caso do seguro de doença, limitadas aos casos onde a previdência não se tinha
organizado voluntariamente..51 Mas estas leis não tiveram sequência alguma. Pouco depois,
a 29 de Abril, Salazar tomou posse do Ministério das Finanças, do qual o Instituto Nacional
de Seguros Obrigatórios e Previdência , como se designava desde 1928, passara a depender
desde 1925, quando o Ministério do Trabalho fora suprimido. Logo no começo de Maio foi
suspensa a aplicação destes diplomas, por serem considerados demasiados estatizantes e
desagradarem às companhias de seguros.

A curto prazo foi publicada nova lei e regulamento das associações de socorros
mútuos, ambos vieram dar forma jurídica a antigas aspirações pendentes do movimento
mutualista. Durante a 1ª República não fora aprovada nenhuma das propostas de lei

51 Entrevista de Francisco Grilo, Diário de Notícias, 22 de Outubro de 1926. Decretos n.15342-3, de 11 de Abril
de 1928 : para auxiliar a criação das mutualidades obrigatórias de doença, constítuia-se o Fundo Nacional de
Previdência que as subsidiaria durante os cinco anos iniciais ; “ Legislação social”, de Francisco Grilo, in Boletim
de Previd. Social, n.21, Junho-Dezembro, 1928; Exposição do conselho de administração acerca dos serviços do
ISSOPG , ob cit. mesmo ano, n.19. “Estudo sobre Previdência social, seguro na doença”, de Francisco Grilo, ob.
cit. , 1928-29, n.20: mas este projecto não coincide com a lei publicada.. Oficio dirigido ao secretário geral da
Sociedade das Nações Unidas por Francisco Grilo, 26 de Dezembro de 1928, Arq. M.º Emprego, ISSOP Cx46,
pasta MNE 229.
28

apresentadas, continuando em vigor a antiga lei de 1896, que não previa a constituição de
federações, (o que não impediu a sua formação, mas tornara-a dependente de decisões
políticas ad-hoc). Em vários outros aspectos a lei da monarquia estava desactualizada. O
decreto lei de 29 de Janeiro de 1931 e o regulamento de 27 fevereiro de 1932 resolveram
vários dos problemas jurídicos pendentes. Mas a liberdade ficaria coarctada com o decreto-lei
de 6 de Setembro de 1935 que instituía as comissões administrativas e permitia a suspensão
da assembleia geral se prejudicial ao funcionamento daquelas. As associações de socorros
mútuos viram a sua autonomia desaparecer. A liberdade política desaparecera, arrastando a
liberdade de associação.
A tradição mutualista criara raízes cujo respeito se quis contudo aparentar. As
associações de socorros mútuos foram integradas no novo sistema de previdência e
coexistiriam daí em diante dois tipos de seguro, o livre e o obrigatório. 52
A concepção do seguro social obrigatório que constituía alteração profunda nas
fronteiras entre as esferas pública e privada, não tornou a ser questionada claramente no
plano meramente teórico. Mas com a integração no modelo corporativo, e a criação das
caixas sindicais de previdência, volta de facto ao domínio do privado com a devolução à
iniciativa corporativa de patrões e assalariados. Consagrada na lei, a obrigatoriedade do
seguro social não seria implementada voluntariamente pelos parceiros sociais, ou seja pelo
patronato já que a iniciativa operária estava cerceada nesses anos. Viria a ser necessária a
intervenção governamental nos primeiros anos da década de quarenta para as caixas sindicais
de previdência adquirirem dimensão significativa. A intervenção do Estado revelara-se
indispensável neste domínio das relações de trabalho, tal como em outras. 53

52 Sobre o novo sistema de previdência, lei de 16 de março de 1935, sobre as comissões administrativas das
associações, decreto-lei de 6 de Setembro 1935, in Seguros sociais, Conselho Superior de Previdência 1948 . Sobre
a suspensão da lei de 1928 e o papel de Teotónio Pereira , ligado a uma companhia de seguros e o novo sistema ver:
Guibentif, P.: "Génese da Previdência Social. Elementos sobre as origens da segurança social e suas ligações com o
corporativismo", in Ler História, n.º 5, 1985, “Avatars et dépassement du corporatisme. Le développement de la
sécurité au Portugal “ in Colloque sur l’histoire de la sécurité sociale , Montpellier, 1985 e Leal, A. Silva,
Organização da Previdência, Lições do Instituto de Estudos Sociais, 1966/7
53 Como Fátima Patriarca demonstrou exaustivamente na fase inicial do Estado Novo, a intervenção governamental
exerceu-se noutros domínios das relações de trabalho , nomeadamente na fixação dos salários mínimos e no horário
de trabalho. Acerca da ideologia subjacente à legislação corporativa inicial e o pensamento de Teotónio Pereira
em matéria de previdência , ver Fátima Patriarca, A questão social no salazarismo, v. II, pp.454-5; sobre a atitude
de recusa do patronato em relação ao subsídio de desemprego criado em 1932, v.I , p. 173 e segs. Sobre a evolução
da política corporativa nesta matéria, Leal, A. Silva, Organização da Previdência , Lições do Instituto de Estudos
Sociais, 1966/67, p. 127 e Guibentif, “Avatars.... “ ob. cit., pp. 222-5. Silva Leal enunciou algumas dúvidas acerca
da coerência e a cronologia do modelo corporativo , ob cit , pp.114-5. Para este autor a fase mutualista dos
seguros sociais prolongou-se até 1935. Não considera uma ruptura a noção de obrigatoriedade, por não valorizar a
29

:-:-:-:
No caso português, ainda que a iniciativa final tenha sido do Estado, como em
outros países europeus, nas raízes da constituição do Estado-Providência esteve a vontade
de fusão das tradições antigas de inter-ajuda e solidariedade de ofício, prosseguidas pelo
mutualismo, e em menor grau a prática do paternalismo patronal. No âmbito do mutualismo
como do patronato tinham-se manifestado algumas vozes no sentido dessa evolução. Não me
parece que se possa dizer que a criação do sistema de segurança social, na sua origem tenha
sido tão só o resultado de uma decisão de cima para baixo, nascera de uma tentativa de
corresponder a aspirações pré-existentes. Nisso se assemelha tanto à legislação inglesa de
1911, como à política alemã na fase da República de Weimar e à posterior evolução
francesa. 54 No caso português foi mal sucedida. O Estado em 1919 interveio com o
objectivo de alargar obrigatoriamente essa tradição e de a fiscalizar, mas sem qualquer
investimento financeiro, e nisso diferia substancialmente do modelo inglês tripartido em que
se inspirara. A lenta e precária actualização financeira evidencia também fraca vontade
política. Foram estas as principais debilidades, a que se deve acrescentar a própria conjuntura
desfavorável.
Ao ser integrado no modelo “corporativo “ do novo Estado autoritário, o seguro
social obrigatório perdeu a sua articulação com a concepção democrática da evolução social
que estava na sua origem. Ficara coartada igualmente a sua integração no quadro dos direitos
sociais, cuja existência política cessara. Apenas após o restabelecimento da democracia em
1974 se processaria essa integração nos direitos sociais de todo um conjunto de aspirações
sociais de longa data.
O caso português apresenta assim na sua história, mais longa no plano
institucional do que no plano das realizações, a experiência dos três modelos de Estado-
Providência que Costa-Esping distingue em função da articulação entre Estado, mercado e
família..55 O sistema lançado em 1919-1920 insere-se no tipo de Estado-Providência liberal,
com segurança social modesta baseada na verificação de meios e destinada às classes
trabalhadoras com menores rendimentos. A sua utilização estava associada a um estigma
social e assim teria sucedido em Portugal, caso tivesse funcionado. O Estado nestas

alteração de fronteiras entre privado e público nela contida. Sobre o sistema da segurança social do Estado Novo
ver também a obra de Manuel Lucena, A evolução do sistema corporativo português, 1976,v.I, capit.V.
54 Ver nota 4
55 Ver Costa -Esping , ob. cit. , nomeadamente pp.26-28
30

condições estaria encorajando o mercado , quer pela atribuição de subsídio mínimo , quer por
subsidiar uma rede de seguros privados, o que efectivamente aconteceu no domínio dos
acidentes de trabalho, o único em que o sistema funcionou. O efeito de desmercantilização
teria sido sempre restrito e o âmbito de direitos sociais limitado.
Dos anos 30-40 em diante, à lógica anterior sobrepôs-se o tipo de Estado
corporativo e conservador em que predomina a vontade de preservação da diferenciação de
“status”. Os direitos variavam segundo a classe e o “status”. 56 A Igreja tem grande
influência o que está associado à preservação da família, encorajava-se a maternidade, ao
mesmo tempo que os serviços de apoio tinham pouco desenvolvimento. O Estado tem uma
função de subsidiariedade.
Após 1974, o sistema português aproximou-se do regime social-democrata,
instituindo o princípio do universalismo, passou a abranger também as classe médias, e a
desmercantilização conduziu à transformação do acesso aos diferentes serviços em direitos
sociais. É um sistema que visou promover a igualdade a um nível elevado, não se
restringindo às necessidades mínimas.

56 Acerca da deliberada ausência de uniformidade sócio- institucional na previdência do Estado Novo, ver Manuel
Lucena, ob. cit. v.I, pp.289-290.

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