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A sacralização da natureza e a

‘naturalização’ do sagrado: aportes


teóricos para a compreensão dos
entrecruzamentos entre saúde,
ecologia e espiritualidade
Isabel Cristina Moura Carvalho1
Carlos Alberto Steil2

1 Introdução
Não é difícil constatar a crescente aceitação de uma idéia holística de saúde, rela-
cionada ao exercício físico, mental e espiritual entre grupos e indivíduos ecologicamente
orientados. O anseio por esse ideal de saúde tem se tornado constitutivo de várias práticas
ecológicas, tais como caminhadas, montanhismo, trilhas, turismo ecológico, assim como
de práticas religiosas de peregrinações, vivências, meditação, rituais xamânicos. Na mesma
direção, também se torna freqüente para um conjunto de práticas de espiritualidade a
evocação de uma ascese ecológica, no sentido da internalização de sentimentos e procedi-
mentos ecológicos que passam a ser vistos, nesse contexto, como mediação religiosa na busca
do sagrado. Desta forma, hábitos ecológicos de cuidado responsável para com o ambiente e
a natureza passam a fazer parte de sistemas de crenças religiosas que visam situar o sujeito
no mundo, na sociedade e na natureza, e ao mesmo tempo de uma experiência do sagrado,
no sentido de que a reconexão com a natureza passa a fazer parte de um sistema de crenças
ecológicas. A convergência entre estes dois universos de práticas parece indicar horizontes

Doutora em educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, Canos,
1

RS, Brasil.
Antropologia, Programa de Pós-Graduação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre - RS,
2

Brasil.
Autor para correspondência: Isabel Cristina Moura Carvalho, Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, Av. ­Farroupilha,
8.001, Prédio 14, sala 217, Bairro São José, CEP 92425-900, Canoas - RS, Brasil, E-mail: icmcarvalho@uol.com.br
Recebido: 26/11/2007. Aceito: 17/5/2008.

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imaginativos comuns entre ecologia e espiritualidade, o que vamos chamar de práticas de


cultivo de si, como caminho para a saúde e o bem estar físico, mental e espiritual.
A idéia de cultivo será tomada aqui em duas acepções que procuraremos considerar
de forma articulada: uma que remete ao sujeito (self) e a outra ao ambiente. Quando refe-
rida ao sujeito (self), o cultivo de si incorpora um conjunto de práticas auto-educativas que
vamos identificar como uma forma de ascese no mundo, que visa o aperfeiçoamento pessoal
por meio do cuidado do corpo e da alma1. Assim, enquanto o cuidado do corpo supõe um
aprendizado sobre alimentação saudável, exercício físico, uso de medicinas alternativas, o
cuidado da alma compreende igualmente um domínio de saberes relativos a novas formas
de espiritualidades, terapias alternativas, meditação, dentre outras.
O cultivo do ambiente, por sua vez, refere-se fundamentalmente à preocupação
ecológica com a sustentabilidade da natureza, a educação ambiental e a sobrevivência do
planeta. Podem ser elencadas, neste campo de práticas, o consumo ecológico, a reciclagem,
a arquitetura agro-ecológica, dentre outras. Embora o cultivo de si e do ambiente nem
sempre apareçam interligados, a probabilidade desse nexo é bastante recorrente, apontando
processos complementares tanto de sacralização da natureza quanto de “naturalização” do
sagrado.
O solo que sustenta estas práticas de cultivo de si poderia ser relacionado a certo
“espírito do tempo”, em consonância com tendências e transformações observadas no
próprio conceito de religião na contemporaneidade, que apontam para um deslocamento
da transcendência para a imanência (CAMPBELL, 1997). Assim, o Deus das religiões da
transcendência, colocado fora do mundo, vai pouco a pouco dando lugar a um Deus no
mundo, que aparece sob a forma de energias e vivências de tipo psíquico-místico, caracteri-
zando o que tem sido denominado como religiões do self.

2 O si mesmo (self) como lugar da experiência “autêntica”


As religiões do self vão produzir um deslocamento do “estatuto de certificação da
verdade” das mediações institucionais clássicas do campo religioso – igrejas, doutrinas e
dogmas – para a experiência vivida pelo indivíduo como a instância última capaz de atestar
a autenticidade do sagrado. Esse deslocamento do lugar de certificação da autenticidade
do institucional para o indivíduo, que se apresenta como um traço do mundo contempo-
râneo pós-autêntico, traduz-se no campo religioso na prevalência da experiência pessoal do
sagrado sobre as formas objetivas e doutrinas das religiões institucionalizadas2. Por outro
lado, se há uma impressão de perda da autenticidade das formas rituais institucionalizadas
das religiões tradicionais, há também um desejo reiterado de as reencontrar, não mais numa
instância externa ao indivíduo, mas no seu próprio interior.
Nota dos autores: os trechos em português destacados de obras em inglês como nesta
nota e em outras passagens ao longo deste artigo são traduções nossas.
Ainda que desde uma perspectiva analítica possamos questionar a autenticidade
da experiência religiosa certificada pelos indivíduos, a sua permanência e a sua eloqüência
convidam-nos a estar atentos aos pontos de coincidência e conexão entre a busca de auten-
ticidade no âmbito da espiritualidade e da ecologia. Em ambas, a autenticidade surge como

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a pedra de toque na formação de subjetividades que parecem reafirmar a irredutibilidade


da experiência em relação aos processos de objetivação pela linguagem ou de institucionali-
zação pelo social. Desde uma perspectiva fenomenológica, podemos pensar que a condição
humana guarda sempre algo da ordem de uma resistência à sua completa objetivação, na
medida em que abriga uma dimensão imediata (pré-objetiva) em seu encontro primeiro
com o mundo, o que garante a inesgotabilidade do humano em face à produção de sentidos
culturais no plano simbólico.
Essa busca de autenticidade encontra na natureza e no self individual os lugares
de referência para a constituição de sujeitos religiosos por natureza – parafraseando uma
expressão cunhada por Soares –, que conectam de forma inovadora a preocupação com
o planeta com a descoberta cada vez mais íntima de si (SOARES, 1994). As práticas de
grupos e indivíduos que se situam na fronteira porosa das vivências ecológicas que incor-
poram a dimensão religiosa, e vice-versa, poderiam ser vistos nesta perspectiva. Para aqueles
que, quer ecológica, quer religiosamente orientados, fazem do ideal de uma relação imediata
com a natureza o caminho para a integração pessoal (religare) com uma totalidade, essa
experiência remete à realização de um bem estar físico, mental e espiritual que torna indis-
sociável a saúde do planeta e do indivíduo. Estes sujeitos podem ser identificados nos grupos
religiosos movidos por um espírito da Nova Era que buscam o sagrado e a si mesmos em
lugares, espaços rituais e peregrinações onde a natureza tem um papel protagonista, bem
como em grupos ecológicos voltados para práticas de convívio harmonioso com a natureza
e de formação de sujeitos ecológicos pela educação ambiental que incorporam, em alguma
medida, a idéia da natureza investida de forças e energias restauradoras do corpo, da alma e
de virtudes éticas para a convivência social.

3 Em direção a uma fenomenologia do self: diálogos entre a filosofia, a


­antropologia e a psicologia
As linhas de convergência das questões abordadas neste artigo situam-se no hori-
zonte de três áreas do conhecimento: a filosofia, a antropologia e a psicologia. A partir dos
aportes teóricos dessas áreas, buscamos refletir sobre as relações entre corpo, mente, subjeti-
vidade (self) e sociedade, tema que possui uma longa tradição nessas áreas do conhecimento,
onde destacamos autores como: Marcel Mauss (1985), Lévi-Strauss (1974), Bateson (1972)
e Tim Ingold (2000), na antropologia; Norbert Elias (1994), na sociologia; Merleau-Ponty
(2007; 1971), na filosofia, e Sigmund Freud (1974), na psicanálise 3.
Na conjugação desses campos de saberes, destacamos a contribuição de cinco
conceitos que nos guiam na compreensão dos entrelaçamentos teóricos que descrevemos
acima. O primeiro é a noção de carne, anunciada e discutida por Merleau-Ponty, em O visível
e invisível, que destaca a continuidade entre o corpo do mundo e o corpo humano (MERLE-
AU-PONTY, 2007). O segundo é o conceito de corporeidade (embodiment), que tem sido
trabalhado por Thomas Csordas como um paradigma de compreensão dos sujeitos humanos
na cultura (CSORDAS, 1990). O terceiro é o conceito de paisagem, o qual será tomado aqui
desde a perspectiva da antropologia ecológica proposta por Tim Ingold, onde a paisagem é
pensada como o horizonte de convergência dos corpos e organismos humanos e não-humanos

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com o ambiente que os engloba, apontando para a corporeidade da paisagem (embodiment


landascape) (INGOLD, 2000). O quarto e o quinto conceito são, respectivamente, a noção de
comportamento ambiental, de Alfred Hallowell (1955), e de ecologia da mente, de Gregory
Bateson (1972; 1980). Ambos estão na interface entre antropologia e psicologia, numa abor-
dagem que remete a autores que se situam na área da antropologia psicológica4.
Esses conceitos foram seminais para o desenvolvimento de uma nova abordagem na
psicologia e na antropologia, que passou a operar com o pressuposto de uma fronteira indistinta
entre sujeito e ambiente. Assim, os autores aqui selecionados são fundamentais para o desen-
volvimento de nossa argumentação na medida em que buscam desconstruir as dualidades
interno-externo e sujeito-ambiente, recusando a fronteira orgânica da mente em relação ao
ambiente que a confinava ao cérebro do individuo. Para eles, portanto, a mente não está nem
aprisionada no cérebro, nem existe como realidade autônoma na externalidade do mundo,
mas se constitui no engajamento ativo do indivíduo no ambiente ou na paisagem.

4 A “carne” do mundo
A abordagem fenomenológica apresenta-se como um caminho que buscaremos
trilhar na direção do aprofundamento das conexões entre self e ambiente. Esse caminho,
por sua vez, encontra na contribuição de Merleau-Ponty o ponto de partida e as balizas que
o orientam. Desde o seu trabalho clássico A Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty
(1971) preocupa-se em se afastar de uma visão cognitivista dos processos perceptivos e
afirmar uma compreensão articuladora do estar no mundo enquanto um habitar, mediado
pela corporeidade. Ao tratar dos processos perceptivos, ele leva em conta as dimensões
física do ambiente e biológica do corpo sem, no entanto, aceitar as explicações reducionistas
da percepção como um processo orgânico ou mental. Essas dimensões não são negadas, mas
situadas dentro de um círculo virtuoso, no qual sujeito e objeto constituem-se mutuamente
numa prática ao mesmo tempo criativa e estruturada. Ou seja, desde essa perspectiva, o
sujeito, ao mesmo tempo em que age em direção ao mundo e aos objetos, também é cons-
tituído pelo mundo e pelos objetos em direção aos quais ele se move. Para Merleau-Ponty,
o mundo sustenta o corpo do sujeito e se move com ele, demarcando o seu campo da
exploração perceptual e experiencial. Como condição corporal do sujeito, o mundo é expe-
rienciado como constitutivo do sujeito-corpo que o habita e não mais apenas como um
referente externo e objetivo aos sujeitos que nele se movem.
Abram (1996), num instigante artigo sobre Merleau-Ponty e a questão ambiental,
argumenta em favor da contribuição da fenomenologia, particularmente no último trabalho
de Merleau-Ponty, O visível e o invisível, como fundamento para uma filosofia da natureza
que aponta para a possibilidade de superação dos impasses da ecologia herdeira da tradição
biológica mecanicista na compreensão da relação sujeito humano e ambiente:
Nossa civilizada desconfiança dos sentidos e do corpo engendra um desco-
lamento metafísico do mundo sensível – isso alimenta a ilusão de que nós
mesmos não fazemos parte do mundo que estudamos, do qual podemos nos
manter à parte, como espectadores, e assim determinar seu funcionamento
desde fora. Uma renovada atenção para a experiência corporal, no entanto,

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permite-nos reconhecer e afirmar nosso envolvimento inevitável naquilo que


observamos, nossa imersão corporal nas profundezas de um corpo que respira
e que é muito maior do que o nosso próprio corpo (ABRAM, 1996, p. 85).
Esta comunhão entre o corpo humano e o corpo do mundo, que engloba e transcende
o do indivíduo, é denominada, em O visível e o invisível, com o termo carne e se apresenta
como o elo comum entre as duas ordens do humano sensiente e do mundo sensível. Na
expressão de Merleau-Ponty,
Dizemos assim que o nosso corpo, como uma folha de papel, é um ser de
duas faces, de um lado, coisa entre coisas e, de outro, aquilo que as vê e as
toca; dizemos, porque é evidente, que nele reúne estas duas propriedades,
e sua dupla pertença à ordem do “objeto”e à ordem do ‘sujeito’ nos revela
entre as duas ordens relações muito inesperadas”(MERLEAU-PONTY,
2007, p. 133).
Merleau-Ponty radicaliza o que já apontava com a noção de corpo, no sentido agora
de uma transcendência do sujeito no mundo do qual o corpo humano é uma expressão. Ao
invés da posição cartesiana de um sujeito que pensa e, portanto, existe, ou, ainda, que pensa
o mundo com uma mente à parte do mundo, na perspectiva fenomenológica, o mundo
pensa no sujeito que existe na relação de continuidade e distinção como uma das expres-
sões da carne do mundo, cuja diferença está na forma de exercer a reflexividade5. Como
afirma Merleau-Ponty, “se o corpo é um único corpo em suas duas fases, incorpora todo
o sensível e graças ao mesmo movimento, incorpora-se a si mesmo num ‘sensível em si’”
(­MERLEAU-PONTY, 2007, p. 134).
É importante observar que o conceito de carne em Merleau-Ponty contribui signifi-
cativamente para a superação da posição antropocêntrica que transforma todo não-humano
em mero objeto. Diferentemente da crítica da ecologia profunda que, ao se posicionar a
favor do biocentrismo contra o antropocentrismo, apenas muda de pólo, sem alterar a
relação de submissão entre humanos e não-humanos, Merleau-Ponty chama a atenção para
o entrelaçamento denso e extensivo entre estes pólos como uma mesma carne, ao mesmo
tempo em que reconhece que o processo de autoconsciência em cada um deles não é idên-
tico. Assim, a carne que pensa no ser humano não pensa do mesmo modo nos outros seres
sensientes. Sua posição evita tanto a fusão ou dissolução da singularidade humana no bios
do mundo quanto a arrogância humana que se posiciona fora do mundo. Pode-se concluir,
portanto, que o conceito de carne de Merleau-Ponty ao mesmo tempo em que estabelece
uma continuidade entre o corpo humano e a carne do mundo também mantém a alteridade
entre esses pólos como constitutiva da experiência que se revela tanto através da via ecoló-
gica do encontro do sujeito humano com a natureza quanto na própria intimidade do sujeito
humano na vivência do sagrado (CSORDAS, 2004).

5 A corporeidade (embodiment) como paradigma


No esforço de tradução da fenomenologia para o campo da antropologia, vamos
buscar na noção de corporeidade (embodiment), desenvolvida por Thomas Csordas, a prin-

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cipal referência para introduzir a questão da cultura na relação entre o corpo humano e a
carne do mundo. Na perspectiva desse autor, mais do que um conceito, a corporeidade é
uma proposta paradigmática que visa colapsar dicotomias tais como indivíduo/sociedade,
mente/corpo, prática/estrutura, natureza/cultura, sem negar a tensão e a alteridade entre
estes pólos da experiência dos seres no mundo.
A corporeidade, na acepção de Csordas, funda-se especialmente na análise da
percepção de Merleau-Ponty e na teoria da prática social formulada por Pierre Bourdieu.
Seu projeto teórico, como ele mesmo afirma, “começa com um exame crítico dessas duas
teorias da corporeidade: Maurice Merleau-Ponty (1962), que elabora a corporeidade na
problemática da percepção, e Pierre Bourdieu (1977), que situa a corporeidade num discurso
antropológico da prática” (CSORDAS, 2002, p. 58). Assim, enquanto a teoria da percepção
de Merleau-Ponty será a principal referência para a superação da dualidade sujeito-objeto,
a teoria da ação de Bourdieu vai permitir-lhe questionar a dualidade estrutura-prática. Na
leitura de Csordas desses autores,
(...) ambos tentam não mediar, mas colapsar as dualidades, e a corporeidade
é o princípio metodológico invocado por ambos. O colapso das dualidades
na corporeidade exige que o corpo enquanto figura metodológica seja ele
mesmo não-dualista, isto é, não distinto de – ou em interação com – um
princípio antagônico da mente. Assim, para Merleau-Ponty o corpo é um
“contexto em relação ao mundo”, e a consciência é o corpo se projetando
no mundo; para Bourdieu, o corpo socialmente informado é o “princípio
gerador e unificador de todas as práticas”, e a consciência é uma forma
de cálculo estratégico fundido com um sistema de potencialidades obje-
tivas. Eu devo elaborar brevemente estas visões como estão sintetizadas
no conceito de pré-objetivo de Merleau-Ponty e no conceito de habitus de
Bourdieu (CSORDAS, 2002, p. 60).
Na esteira, portanto, da fenomenologia existencial de Merleau-Ponty (1962),
Csordas argumenta a favor da experiência corporal como ponto de partida para a análise
cultural, a qual encontra no nível pré-objetivo a base existencial para as elaborações lingü-
ísticas e interpretativas da experiência dos seres humanos no mundo. Segundo Csordas, no
entanto, o pré-objetivo não significa um momento anterior à cultura, mas à maneira como
os sujeitos engajam-se espontaneamente no mundo e na vida cotidiana6. Assim, como o
próprio Merleau-Ponty argumenta, os objetos culturais, não menos do que objetos natu-
rais como pedras ou árvores, são os produtos finais de um processo de abstração de uma
consciência perceptiva na qual o corpo humano sensiente é uma abertura para um campo
indeterminado, irrestrito e inesgotável: o mundo (CSORDAS, 2002).
Central ao seu propósito é compreender que o corpo da pessoa não é de forma
alguma um objeto, mas sempre o sujeito da percepção. A pessoa não percebe o próprio
corpo; a pessoa é seu corpo e percebe com ele tanto no sentido de ser uma ferramenta
perfeitamente familiar (MAUSS, 1950) como no sentido de ser self e corpo, perfeitamente
coexistentes. Assim, perceber um corpo como um objeto é ter desenvolvido um processo de
abstração a partir da experiência perceptiva. De certa maneira, cabe aos sujeitos sensientes
atravessar os seus sentidos em direção ao mundo, ao invés de perceber o mundo através dos

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sentidos; os sentidos estão no caminho entre o sujeito e o mundo. O corpo surge então como
“o solo existencial da cultura” (CSORDAS, 2002, p. 4), onde se articulam sujeito e objeto,
conhecimento e autoconhecimento, subjetividade e alteridade. A corporeidade é a síntese
desta encarnação da cultura que constitui os seres humanos historicamente situados e o
lócus privilegiado de articulação da dualidade sujeito e objeto e seus sucedâneos, tal como
propõe a noção de círculo hermenêutico. Desde essa perspectiva, segundo Csordas:
O corpo não é apenas biológico, mas igualmente religioso, lingüístico,
histórico, cognitivo, emocional e artístico [e eu acrescentaria, ecológico].
Por outro lado, se a linguagem pode ser apresentada daqui para diante
como uma expressão da corporeidade (embodiment) e não como função
representativa do Cogito Cartesiano, torna-se claro que já não se trata de
definir cultura apenas em termos de símbolos, esquemas, regras, costumes,
textos ou comunicação, mas igualmente em termos de sentido, movimento,
inter-subjetividade, especialidade, hábito, desejo, evocação e intuição. A
convergência destas duas realizações levam-me à conceitualização do self
baseado na corporeidade (embodiment). O argumento é que, pelo colapso
da distinção entre corpo e mente, sujeito e objeto, a linguagem se torna
compreensível tal como um processo do self quando ela é vista não como
uma representação, mas como instituição de um modo de ser no mundo
(CSORDAS, 2002, p .4).

Paralelamente ao esforço de Merleau-Ponty em colapsar a dualidade sujeito-objeto


na teoria da percepção, o propósito de Bourdieu é colapsar a dualidade signo-significação
no conceito de habitus7, articulando na análise do fato social a ação como opus operatum e
como modus operandi da vida social. Assim, Bourdieu define habitus como um “sistema de
disposições duráveis, princípio inconsciente e coletivamente inculcado para a geração e a
estruturação de práticas e representações” (1977, p. 72). Essa definição é destacada por
Csordas na teoria de Bourdieu porque, ao focalizar o conteúdo psicologicamente interna-
lizado do ambiente comportamental (HALLOWELL, 1974), o habitus aparece como “o
princípio gerador e unificador de todas as práticas, o sistema das inseparáveis estruturas
cognitiva e avaliativa que organizam a visão do mundo de acordo com as estruturas obje-
tivas de um determinado estado do mundo social” (BOURDIEU, 1977, p. 124). Enquanto
princípio gerador e unificador das práticas, o habitus é definido por Bourdieu como
(...) o corpo socialmente informado, com seus gostos e desgostos, suas
compulsões e repulsões, com, numa palavra, todos os seus sentidos, isto é,
não apenas os tradicionais cinco sentidos — que nunca escapam da ação
estruturante dos determinismos sociais — mas também o senso de necessi-
dade e o senso de dever, o senso de direção e o senso de realidade, o senso
de equilíbrio e o senso de beleza, o senso comum e o senso do sagrado,
o senso tático e o senso de responsabilidade, o senso para os negócios e
o senso de propriedade, o senso de humor e o senso do absurdo, o senso
moral e o senso prático, e assim por diante. (1977, p. 124)

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Na seqüência de sua exposição sobre a contribuição de Bourdieu para a elaboração


do paradigma da corporeidade, Csordas destaca que o lócus do habitus é a conjunção entre
as condições objetivas da vida e a totalidade das aspirações e das práticas compatíveis
com tais condições. “Condições objetivas não causam práticas, tampouco práticas deter-
minam condições objetivas” (CSORDAS, 2002, p. 63). É, por sua vez, “o habitus, enquanto
mediação universalizante, que torna a prática de um agente individual, sem razão explícita
ou propósito significativo, ‘sensata’ e ‘razoável’ apesar de tudo” (BOURDIEU, 1977, p. 79).
Assim, com o conceito de habitus, Bourdieu oferece uma análise da prática social enquanto
necessidade transformada em virtude, de forma que as práticas obscuras aos olhos de seus
próprios produtores ganham um ordenamento que as torna objetivamente ajustadas a outras
práticas e às estruturas, cujo princípio de produção é ele mesmo um produto.
Enfim, o esforço de Csordas para articular as contribuições metodológicas, aparen-
temente contraditórias da fenomenologia e do estruturalismo dialético, foram fundamentais
para a constituição do que ele chama de um paradigma da corporeidade. A singularidade
de sua proposta teórica está em colapsar as dualidades na corporeidade por meio de uma
concepção de “corpo não-dualista, isto é, não distinto de – ou em interação com – um prin-
cípio antagônico da mente” (CSORDAS, 2002, p. 65). Nosso esforço, por sua vez, será o de
estender essa noção de corpo para a paisagem, seguindo o mesmo movimento de Merleau-
Ponty em direção ao corpo do mundo, numa rearticulação com o conceito de habitus de
Bourdieu, na direção de um contexto em que os comportamentos e valores ecológicos vêm
impondo-se como uma condição objetiva para os indivíduos e grupos sociais nesse início do
segundo milênio da era cristã.

6 A paisagem como corpo do mundo


No esforço para articular ecologia, religião e saúde, encontramos no conceito de
paisagem, como ele vem sendo elaborado na literatura antropológica, um ponto de conexão
com as contribuições de Merleau-Ponty e de Csordas que apontamos acima. Assim, as
questões aqui abordadas não dizem respeito apenas a um conhecimento que fala sobre a
paisagem como um objeto, mas desde a paisagem, enquanto condição de ser no mundo,
onde se entrelaçam a cultura, a natureza e o sujeito (LANE, 2002; HIRSCH, 2003; LOW,
2006). Neste sentido, podemos afirmar que a paisagem num paradigma ecológico ocupa um
lugar semelhante ao do corpo no paradigma da corporeidade. Ao aproximar esses dois para-
digmas, a antropologia da paisagem tem referido-se, com freqüência, a noções de espaços
incorporados (embodied spaces) (LOW; LAWRENCE-ZÚÑIGA, 2006) ou paisagens incor-
poradas (embodied landscapes) (INGOLD, 2000). Ou seja, tomando como foco a perspectiva
ecológica, acreditamos que se torna possível desdobrar a condição da corporeidade para
o ambiente. Isto é, deslocar o olhar da preocupação do corpo, visto como condição de
existência do individuo no mundo, para a paisagem, como corpo do mundo, continente
planetário que envolve humanos e não-humanos.
Ao realizar esse deslocamento, a paisagem pode ser tomada, analogamente ao corpo,
como condição ou solo existencial8. Dessa forma, poderíamos dizer que, se o corpo é a forma
pela qual o indivíduo existe como um ser-no-mundo, a paisagem é a forma pela qual os

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seres-no-mundo apresentam-se ao indivíduo, incluindo-o. Essa mudança no olhar acaba


produzindo uma ênfase no corpo ou na carne do mundo, que abarca de forma mais simétrica
humanos e não-humanos, relativizando, de alguma forma, os corpos dos indivíduos ou dos
humanos como o elemento articulador entre sujeito-objeto (LATOUR, 1994).
Mantendo-nos na trilha do paradigma da corporeidade em direção à epistemologia
ecológica, podemos pensar o conceito de paisagem como correlato à corporeidade, enquanto
campo de percepção definido pelo engajamento no mundo. Nesse sentido, Csordas chama
a atenção para a dialética entre o corpo, enquanto unidade material da existência, e a
corporeidade, enquanto condição projetada e objetificada reflexivamente da existência dos
sujeitos no mundo. E conclui que, ao mesmo tempo em que o corpo apresenta-se como
a condição material dos sujeitos no mundo, ele também é o lócus da revelação do ser do
mundo que, embora se expresse nos corpos individuais, não se esgota neles.
Acreditamos que seria possível reconhecer no âmbito do conceito de paisagem
uma dialética semelhante a que Csordas atribui ao corpo, onde se poderia distinguir uma
base material, a terra (land), e uma totalidade projetada e significada que transforma essa
unidade física e material em uma paisagem (scape). Estabelece-se aí a tensão entre a experi-
ência imediata e pré-objetiva no mundo (imediacy) e a sua objetificação na linguagem, num
jogo de alteridade entre sujeito e objeto que se realiza dentro e fora de nós. Essa dialética
implicada no conceito de paisagem como a forma de engajamento no mundo indica uma
radical assunção da simetria e do pertencimento dos seres humanos e não humanos à Terra,
bem como de uma conseqüente atividade (agency) do ambiente no desvelamento do mundo
em suas existências.
Essa acepção de paisagem permite, assim, enfatizar a dinâmica dos processos tempo-
rais e sociais que dão forma ao ambiente, ao mesmo tempo em que constituem e modificam
os lugares e os modos de habitar, permitindo distanciar-se de uma visão objetificadora que
tende a atribuir um sentido de externalidade ao sujeito humano em relação ao mundo. Nesse
sentido, relacionando o conceito de paisagem com o de corporeidade (carne do mundo),
vamos entender a paisagem como a expressão da corporeidade da natureza, de modo que a
relação do sujeito com o mundo – seus lugares, seus modos de ser, suas memórias e crenças
– são constitutivos do seu ambiente de vida. Essa dimensão relacional e simétrica entre os
humanos e os não-humanos no mundo converge com os intentos da antropologia feno-
menológica para colapsar as dualidades natureza-cultura, mente-corpo, sujeito-objeto,
interno-externo. Mas, agora, acrescentando um outro elemento de caráter ativo (agency)
na relação da paisagem com os seres que a habitam juntamente com os elementos naturais.
Como afirma Ingold, “assim como os corpos não são formas dadas anteriormente, indepen-
dentes dos seres que os constituem geneticamente, as formas da paisagem não são preparadas
anteriormente para as criaturas ocuparem” (INGOLD, 2000).
A paisagem aparece aqui como a unidade coerente do visível, o campo de percepção
de todos aqueles que a habitam e a constituem e por ela são constituídos. A totalidade
dentro da qual todos os seres sensíveis estão inseridos. Como afirma Abram, numa refe-
rência direta ao pensamento de Merleau-Ponty, “a paisagem não é a totalidade abstrata de
um universo inteligível, mas a unidade experienciada deste continente que nos abriga na
forma de um mundo local a que chamamos Terra” (ABRAM, p. 86)9.

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O esforço aqui empreendido vem sendo, portanto, o de pensar desde a condição


humana imersa no mundo para apreender esta imersão não apenas no nível do corpo indi-
vidual, mas também no da paisagem como corpo do mundo. Ou seja, a paisagem aparece
aqui como um fenômeno complexo que abarca ao mesmo tempo o visível e o invisível e
incorpora tanto o solo profundo que suporta nossos corpos quanto a atmosfera fluida na
qual respiramos. Esta mediação exercida pela paisagem entre nós e o universo é muitas vezes
esquecida pela humanidade da mesma forma que a mediação do corpo é esquecida pelos
indivíduos. Assim, enquanto no âmbito do indivíduo o apagamento da nossa condição de
seres no mundo realiza-se pela separação e autonomização da mente em relação ao corpo,
no âmbito ambiental este apagamento dá-se pelo descolamento e externalização da huma-
nidade em relação à paisagem.

7 Comportamento ambiental
O conceito de comportamento ambiental elaborado por Hallowell nos anos 1950
é de certa forma fundacional para a abordagem que estamos sugerindo10. Por meio desse
conceito, Hallowell chama a atenção para o entrelaçamento do sujeito com seu meio,
produzindo um ambiente que é desde sempre relacional. Nesse sentido, o ambiente não é
externo ao organismo, mas o continente que o envolve e que dá sentido às ações humanas
e não humanas.
O conceito de comportamento ambiental leva em conta as propriedades
e necessidades de adaptação do organismo na interação com o mundo
externo enquanto constituinte do campo comportamental real no qual
as atividades de um ser [humano ou não humano] se tornariam mais
inteligíveis (HALLOWELL, 1974, p. 87).
Ao demarcar a ação como unidade generativa da relação entre o sujeito e seu
meio, Hallowell aponta para a superação da dicotomia interno-externo e argumenta no
sentido de que “considerar a pele humana como a fronteira entre individuo e o mundo
é irrelevante para a psicologia” (HALLOWELL, 1974, p. 87). A partir dessa premissa,
propõe que “o organismo e seu meio sejam considerados juntos, como uma única criatura,
fazendo com que a interação ambiental torne-se a unidade mínima que convém à psico-
logia” (­HALLOWELL, 1974, p. 88). Ao usar a expressão “meio ambiente comportamental
culturalmente constituído”, ao invés de falar que habitamos um ambiente social ou cultural,
Hallowell contrapõe-se ao que ele chama de objetivismo cultural, onde a dimensão expe-
riencial dos sujeitos fica subsumida nas estruturas e instituições. Sua noção de cultura, ao
enfatizar a dimensão ativa do ambiente e a ação dos sujeitos, no seu engajamento no mundo,
antecipa de alguma forma, a noção de taskscape11 elaborada por Ingold como uma modali-
dade relacional que constitui sujeito e ambiente12.
A ênfase na ação e na experiência vivida dos indivíduos em seu meio ambiente
como aspectos centrais da cultura, destaca a aproximação entre o trabalho da natureza e o
da cultura, entre o processo evolutivo e o histórico. Nesse mesmo sentido, Csordas (2002)
chama a atenção para a aproximação do conceito de Hallowell com a fenomenologia merle-
aupontiana, para o qual a noção de tarefa (task) apresenta-se como central para a percepção

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A sacralização da natureza e a ‘naturalização’ do sagrado: aportes teóricos para
a compreensão dos entrecruzamentos entre saúde, ecologia e espiritualidade 299

como engajamento dos seres humanos e não humanos com o mundo. Como afirma Merleau-
Ponty, “eu estou na tarefa (task) mais do que confrontado com ela” (1962, p. 416). Portanto,
temos na articulação entre percepção e prática e entre self e comportamento ambiental
elaborada por Hallowell uma contribuição fundamental para a antropologia fenomenoló-
gica.
O conceito [comportamento ambiental] não apenas localiza o indivíduo
na cultura, relacionando comportamento e mundo objetivo, mas também
vincula processos perceptivos com restrições sociais e significados culturais.
Assim, o foco da formulação de Hallowell era “orientação” em relação a
self, objetos, tempo e espaço, motivação e normas. Neste sentido é que
o termo “prática” é relevante para a descrição da questão de Hallowell
(CSORDAS, 2002, p. 59).
A cultura, na perspectiva de Hallowell, é tomada como um recurso que provê as
orientações básicas para que um indivíduo possa agir no seu ambiente13. Sua compreensão,
no entanto, nada tem em comum com a tradição comportamental também chamada de
ambientalista no campo da psicologia. Bem diferente da psicologia comportamental ou
ambientalista, que toma a noção de ambiente como meio externo e confere aos estímulos
ambientais a determinação dos comportamentos, para Hallowell, a unidade mínima da
compreensão da experiência é a interação.

8 A mente ecológica
O conceito de mente ecológica de Bateson apresenta-se como uma outra referência
fundamental para o desenvolvimento de nossa argumentação. Ao afirmar que a mente
não está presa à caixa craniana, mas se projeta no meio ambiente, conectando as coisas
no mundo, inclusive os sujeitos humanos, Bateson não está propondo uma metáfora. Ao
postular uma mente que transcende o indivíduo, da qual a mente individual é apenas um
subsistema, Bateson desencadeia uma virada ecológica com conseqüências significativas
para a área da antropologia e da psicologia humana.
Da vasta e criativa contribuição de Bateson, para nosso argumento neste artigo inte-
ressa destacar os rebatimentos da ampliação da mente para a espiritualidade associada à
natureza ou à paisagem. Ainda que até o final de sua vida tivesse mantido-se agnóstico,
Bateson esteve próximo das tradições religiosas, especialmente do budismo e da Nova Era14.
Sua reflexão sobre a experiência religiosa, embora apresente traços existenciais que remetem
à linguagem mística, foi elaborada dentro dos marcos conceituais da ciência. Assim, ao
aproximar a sua concepção de mente (ecológica) da noção de Deus, ele afirma que: “[a
mente] é talvez o que algumas pessoas imaginam como Deus, mas isto é ainda imanente na
totalidade do sistema social interconectado no sistema planetário ecológico” (BATESON,
1972, p. 467). Ao refletir sobre a morte, a idéia da mente ecológica projeta-se para além da
existência individual dos sujeitos humanos:
E por último existe a morte. É incompreensível que numa sociedade
que separa a mente do corpo, nós também deveríamos tentar esquecer a

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300 Carvalho e Steil

morte ou construir mitologias acerca da sobrevivência da transcendência


da mente. Mas se a mente é imanente não apenas naqueles caminhos
de informação que estão localizados dentro do corpo, mas também nos
circuitos externos, então a morte ganha um sentido diferente. O nexo
individual dos circuitos que eu chamo “eu” não é mais tão precioso porque
este nexo é apenas parte de uma mente maior. As idéias que parecem ser
eu, podem se tornar imanentes também em você. Elas podem sobreviver,
se verdadeiras. (BATESON, 1972, p. 465)
Torna-se oportuno aqui evocar o quão diferente a compreensão da morte elaborada
por Bateson, desde uma perspectiva ecológica, difere daquela pensada por Freud nos limites
do mundo do sujeito psíquico. Assim, se para Freud a morte é o limite do sujeito, o trauma
estrutural insuperável, ou, ainda, como disse Lacan, o real que irrompe e desorganiza a
função simbólica, para Bateson, é uma forma pela qual o “eu” pode sobreviver e integrar-se
na imanência do mundo. Em suma, podemos dizer que Bateson expandiu o conceito de
mente na direção oposta àquela tomada pela psicanálise freudiana. Ou seja, enquanto Freud
expandiu o conceito de mente para dentro, voltando-se para um sistema de comunicação
interno – o automático, o habitual e a vasta cadeia de processos inconscientes — Bateson
projetou o conceito de mente para fora, em direção ao mundo e ao ambiente. Ainda que
ambos concordem com a restrição da esfera consciente do individuo, Bateson, ao encarar
esse limite, remete imediatamente ao que ele caracteriza como: “uma certa humildade,
temperada pela dignidade ou alegria de ser parte de algo muito maior. A parte – se você
quiser – de Deus” (BATESON, 1972, p. 267-468). Contudo, se o autor evoca Deus como
um nome possível para a mente ampliada, é certo que não se trata de Deus na acepção
cristã, a qual ele critica com certa ironia:
Se você coloca Deus do lado de fora de si e o estabelece vis-à-vis com a
criação e se você tem a idéia que você foi criado à sua imagem, você lógica
e naturalmente vai se ver como fora e contra as coisas que o rodeiam. E
como você reivindica toda a mente para si você vai ver o mundo ao seu
redor como algo sem mente e, deste modo, não digno de consideração
moral ou ética. O meio ambiente parecerá ser seu para explorar. Sua
unidade sobrevivente será você e seu grupo contra o meio ambiente de
outras unidades sociais, outras raças e os brutos e os vegetais. (BATESON,
1972, p. 468).
Essa concepção de mente expandida, relacionada por Bateson com a noção de Deus,
permite retomar a conexão entre sagrado, saúde e ecologia, enquanto foco de nossa argu-
mentação. Ou seja, a mente ecológica, na qual os sujeitos vivem a experiência do sagrado e
de bem estar em harmonia com a natureza, está dentro e fora do corpo individual. É, enfim,
nesta fronteira permeável entre o “eu” e o meio ambiente que se conectam os processos
culturais e religiosos com os processos biológicos e ambientais. Esse papel atribuído à
mente, na acepção de Bateson, pode ser aproximado daquele atribuído ao corpo-self, por
Klelinman e Csordas, no paradigma da corporeidade (KLEINMAN, 1997). Ou seja, o corpo
fenomenológico expandido na percepção é também um corpo-ponte, que torna possível o

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A sacralização da natureza e a ‘naturalização’ do sagrado: aportes teóricos para
a compreensão dos entrecruzamentos entre saúde, ecologia e espiritualidade 301

engajamento dos sujeitos no mundo, ao mesmo tempo em que remete à alteridade radical
da subjetividade humana.
Assim, na trilha de Bateson, que identifica na tensão entre a dimensão individual e
ecológica o lócus da constituição dos sujeitos humanos, e da antropologia fenomenológica,
que destaca o papel do corpo como ponte no engajamento dos sujeitos no mundo, queremos
chamar a atenção para a paisagem, enquanto corpo do mundo, como o continente da mente
e a ponte que mantém a alteridade radical da experiência dos seres que habitam o mundo
que os envolve como uma totalidade englobante. Ou seja, colapsam-se as dicotomias mente-
corpo, mente-meio ambiente, dentro-fora, sujeito-objeto sem se negar a alteridade.

9 Alteridade radical na experiência do sagrado


Por fim, entendemos que é justamente esta alteridade estrutural que constitui o
núcleo fenomenológico da linguagem e da religião enquanto experiência de um “outro” –
pré-objetivo na linguagem. Poderia ser relacionado ao númeno15 na religião– que, segundo
Rappaport, estaria expressando a ruptura originária que se efetua no surgimento da humani-
dade pela invenção da linguagem (RAPPAPORT, 1979). Nesse sentido, a busca recorrente
do sagrado, especialmente na sua modalidade mística, poderia ser compreendida como a
tentativa de reconstituição da intimidade perdida pela interposição da linguagem entre
os sujeitos e o mundo. Ou seja, a experiência do sagrado estaria remetendo à união dos
aspectos discursivos e não discursivos da experiência humana.
Na esteira do pensamento de Rappaport, Thomas Csordas faz uma releitura dos
fenomenólogos da religião, Rudolf Otto, Mircea Eliade e Van der Leeuw, no esforço de
transpor o lócus da alteridade da transcendência posta fora do sujeito e do mundo para a
alteridade estrutural experimentada na intimidade do sujeito (CSORDAS, 2004). Ou seja,
o “majestoso outro” transmuta-se no “íntimo outro” de modo que a alteridade que estava
fora do sujeito passa a ser experimentada como uma experiência estrutural da diferença irre-
dutível entre as representações culturais e a realidade corporal em sua expressão individual
e ecológica de um “outro”, que escapa sempre das tentativas de seu aprisionamento pela teia
de sentidos produzida pela cultura. Como afirma Csordas, “o erro dos fenomenologistas foi
fazer uma distinção entre o objeto e o sujeito da religião quando, na verdade, o real objeto
da religião é a objetivação de si” (2004, p. 168). Ou seja, o objeto da religião não é o Outro,
mas a aporia existencial da própria alteridade. Decorre disto, segundo Csordas, que o “total-
mente outro” e o “intimamente outro” são dois lados da mesma moeda, de forma que não
precisamos escolher entre eles (2004, p. 169). Ou ainda, numa referência a Freud, ele afirma
que “o outro está fora somente na medida em que está escondido”, podendo voltar sempre
como o “retorno do oprimido”, na revanche da alteridade contra a identidade.
Nesse sentido, o apelo que as práticas religioso-ecológicas exercem sobre os indi-
víduos na contemporaneidade poderia ser pensado como a busca por um horizonte que
se abre para a experiência da alteridade irredutível, que as religiões institucionais aprisio-
naram nas suas representações teológicas e doutrinárias. Assim, a experiência do sagrado
corporificado na natureza, que evoca energias e forças que remetem para uma “outridade”
que não se esgota nas representações culturais e lingüísticas, encontra no habitus ecológico

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302 Carvalho e Steil

contemporâneo um importante ponto de ancoragem e de plausibilidade. Neste contexto de


intensa sensibilidade ecológica associada ao sagrado, podemos identificar a alteridade estru-
tural, referida por Csordas, corporificada na paisagem, como a referência englobante para
a dimensão da experiência humana que, irredutível à simbolização, aponta reiteradamente
para o além (ou aquém) do dizível sobre si e o mundo.

10 Uma nova ascese ecológico-religiosa como pedagogia da percepção?


Considerando a constituição de sujeitos cuja orientação no mundo pauta-se por
valores ecológicos, assim como a emergência de espiritualidades onde a experiência do
sagrado está associada ao cultivo de uma interioridade pessoal (self interior) e à aproximação
com a natureza, observamos um campo comum de aspirações e horizontes imaginativos em
torno de concepções de saúde, bem estar e cura, tanto em nível individual quanto plane-
tário. Motivados pela crença no aperfeiçoamento de si, tanto os sujeitos ecologicamente
orientados quanto os adeptos das espiritualidades do self, fazem uso de técnicas corporais
e mentais que incorporam a idéia de saúde e bem estar, relacionadas ao exercício físico
e à imersão na natureza, proporcionada por atividades ecológicas e religiosas, tais como
workshops, cursos, vivências, montanhismo, trilhas, peregrinações, turismo ecológico e
religioso. Parece que está configurando-se uma pedagogia da percepção, comum tanto às
praticas religiosas quanto às ecológicas, que enfatiza o ver e o sentir o mundo como parte
da formação de uma sensibilidade ecológica e espiritual, cujos contornos remetem a uma
composição singular das relações entre ecologia, religião e saúde. Nesse sentido, poderíamos
perguntar em que medida a articulação das idéias de harmonia consigo próprio e com o meio
ambiente – incluindo aí a dimensão do sagrado – seria uma nova modalidade de ascese do
tipo ecológico-religiosa.
Ao mesmo tempo, essas mesmas práticas permitem identificar uma dimensão peda-
gógica que se expressa no aprendizado de um modo de olhar e perceber a si e o ambiente,
constituindo o que poderíamos chamar de uma pedagogia da percepção ou uma pedagogia
das sensibilidades, empenhada na formação de sujeitos que encarnem as virtudes de um
bem viver ecológico e de um campo educativo e experiencial voltado para modos de relação
existencial com os lugares, vinculando os sujeitos humanos às paisagens.

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A sacralização da natureza e a ‘naturalização’ do sagrado: aportes teóricos para
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304 Carvalho e Steil

Notas
1
A expressão cultivo de si encontra certa analogia com os conceitos de cuidado de si, ou de tecnologias
de si, de Foucault (1985), na medida em que implica em um modo de regulação do self que expressa
certa ética e estética da existência. Contudo, mesmo tendo aí uma aproximação semântica, a noção de
cultivo de si não incorpora a estrutura das categorias foucaltianas que são constituídas como disposi-
tivos de poder modelados por uma moral sexual que inscrevem o sujeito numa ordem disciplinar.
2
Segundo Gable e Handler, o mundo pós-autêntico caracteriza-se por “uma imagem permanente da
ansiedade moderna de que o mundo que habitamos não é mais autêntico – que ele se tornou uma
imitação falsa (fake), plástica e kitsh (kitschy)” (GABLE, 2006).
3
Uma retomada da discussão sobre a relação natureza e cultura pode ser encontrada de uma forma
inovadora e crítica no livro de Tim Ingold, The perception of the environment, que guiará em grande
parte a nossa reflexão (INGOLD, 2000).
4
Acreditamos que essas contribuições antecipam e preparam o caminho para os desdobramentos mais
contemporâneos voltados às proposições de epistemologias ecológicas em trabalhos como de Gibson
(1977; 1979) onde se destaca a idéia de sustentação (affordance) do ambiente e Rappaport (1979) que,
na continuidade dos estudos de Bateson, elabora o conceito de cognized environment.
5
Segundo Abram, Merleau-Ponty nunca ultrapassou o limite que demarca a diferença entre o humano
e o não-humano. Embora a sua noção de self possa sugerir isso, ele nunca explicitou esta oposição
(ABRAM, 1996, p. 89).
6
Como o próprio Csordas esclarece, “ao começar assim com o pré-objetivo, não estamos postulando um
pré-cultural, mas um pré-abstrato. O conceito oferece à análise cultural o processo humano em aberto
de assumir e habitar o mundo cultural no qual nossa existência transcende mas permanece enraizada
nas situações de fato” (CSORDAS, 2002, p.61).
7
O conceito de habitus foi introduzido, segundo Csordas, por Mauss em seu ensaio seminal sobre as
técnicas do corpo, para se referir à soma total de usos culturalmente padronizados do corpo numa
sociedade (MAUSS, 1950). Para Mauss, foi um modo de organizar o que de outra maneira seria uma
miscelânea de comportamentos culturais padronizados, merecendo apenas um parágrafo de elabo-
ração. Ainda assim, Mauss antecipou como um paradigma da corporeidade pode mediar dualidades
fundamentais (mente-corpo, signo-significação, existência-ser) em sua declaração de que o corpo é
simultaneamente o objeto original sobre o qual o trabalho da cultura desenvolve-se, e a ferramenta
original com a qual aquele trabalho realiza-se (MAUSS, 1950, p. 372). É, de uma vez, um objeto da
técnica, um meio técnico e a origem subjetiva da técnica (CSORDAS, 2002, p. 62).
8
Propomos aqui um desdobramento do paradigma da corporeidade, proposto por Csordas no horizonte
da antropologia psicológica, para o horizonte da ecologia. E, para dar conta das implicações que acarreta
essa passagem, nossa hipótese é a de que o conceito de paisagem é mais adequado do que o do corpo, na
medida em que ele remete à totalidade do corpo do mundo, ou à carne, como nomeia Merleau-Ponty,
em O visível e o invisível.
9
Aqui Abram refere-se à tradição fenomenológica, principalmente desde Husserl, à noção de “Terra
como o arco original”, e à Heideggger e à sua visão da “Terra como elemento nunca revelado em
contraposição ao céu” (ABRAM, 1996, p. 87).
10
Csordas identifica uma aproximação entre a abordagem fenomenológica que embasa o paradigma da
corporeidade (embodiment) e a relevância da prática orientada para o mundo, presente no conceito de
comportamento ambiental de Hallowell.

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A sacralização da natureza e a ‘naturalização’ do sagrado: aportes teóricos para
a compreensão dos entrecruzamentos entre saúde, ecologia e espiritualidade 305

A substituição de land (terra) por task (ação, trabalho) no vocábulo (landscape-taskscape) é um recurso
11

que permite ao autor enfatizar a ação em contraposição a um olhar sobre a paisagem que a compreende
como um elemento externo aos indivíduos ou um palco onde se processaria o drama da cultura.
E se task é compreendida aqui como “uma ação prática, realizada por um agente habilitado (skilled) em
12

um meio ambiente como parte do que constitui suas ocupações cotidianas”, a taskscape é definida por
Ingold como “o conjunto de atividades entrelaçadas” (INGOLD, 2000, p. 195). Assim, o que somos
convidados a ver na paisagem é mais a ação de humanos e não-humanos entrelaçando-se e confor-
mando seus contornos e horizontes e menos a natureza passiva e intocada sobre a qual os humanos
inscreveriam a ação da cultura.
Para Hallowell, são cinco as orientações básicas: auto-orientação (self orientation), orientação objetal
13

(object orientation), orientação espaço-temporal (space-temporal orientation), orientação motivacional


(motivational-orientational) e orientação normativa (normative-orientation). Essas orientações estruturam
o campo psicológico no qual o sujeito é preparado para agir. Ainda que os comportamentos variem na
sua relação com o ambiente, há funções comuns que devem ser providas culturalmente para manter um
nível mínimo de ajuste psicodinâmico (HALLOWELL, 1974).
Bateson foi um membro ativo do centro de vivências Esalen, conhecido por sua orientação new age e
14

incorporação de religiões orientais. Como conta sua filha, quando Bateson adoeceu recolheu-se em
Esalen até o agravamento de sua enfermidade, quando teve que decidir se passaria os seus últimos dias
num centro budista ou num hospital. A escolha, adiada até o último momento, foi feita pela filha que
o levou a um hospital.
Númeno, como define Abbagnano (1998), é um termo introduzido por Kant para designar o objeto do
15

conhecimento intelectual (a coisa em si). Remete a uma realidade que não pode ser objeto da sensibi-
lidade (intuição sensível), mas apenas do conhecimento inteligível. O númeno opõe-se ao fenômeno
que está ao alcance da experiência sensível.

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Resumos/Abstracts 455

A sacralização da natureza e a ‘naturalização’ do


sagrado: aportes teóricos para a compreensão dos
entrecruzamentos entre saúde, ecologia e espiritualidade
Isabel Cristina Moura CARVALHO
Carlos Alberto STEIL
Resumo: O presente artigo discute as práticas de aperfeiçoamento de si e do cuidado com
o ambiente, voltadas para a saúde e o bem estar físico, mental e espiritual. O foco desta
discussão está dirigida para os pontos de interseção entre práticas ecológicas e religiosas, que
dão origem a processos de sacralização da natureza e de “naturalização” do sagrado. O campo
de interesse empírico são as práticas religiosas de grupos ecológicos e as práticas ecológicas de
grupos religiosos. Elegemos como referenciais metodológicos e teóricos as contribuições da
filosofia da percepção de Merleau-Ponty, da psicologia ecológica de Bateson, da antropologia
fenomenológica de Thomas Csordas e da epistemologia ecológica de Tim Ingold, na medida em
que estas perspectivas somam-se no intento de colapsar as dualidades mente e corpo, sujeito e
ambiente, natureza e cultura. Encontramos no conceito de paisagem, enquanto corpo do mundo,
um ponto de convergência destas diferentes abordagens. Assim, a hipótese que acionamos é a de
que a paisagem, enquanto corpo do mundo, pode ser tomada como o solo da cultura, no sentido
de que o sujeito humano, em sua condição corporal de ser no mundo, está não apenas implicado
na paisagem, mas essa é a condição de seu engajamento no mundo e na cultura.
Palavras-chave: Ecologia. Religião. Saúde. Fenomenologia. Subjetividade.

The “cultivating self”: health, ecology and spirituality


Abstract: This paper aims at identifying practices for self-perfectioning and environmental care linked
to physical as well as mental and spiritual health and well-being. It focuses on the points of intersection
between ecological and religious practices that engender processes for the “sacralization of nature” and the
“naturalization of the sacred”. Our field of empirical interest is the one of religious practices of ecological
groups and the ecological practices of religious groups. As theoretical and methodological references we
chose contributions from Merleau-Ponty’s philosophy of perception, Bateson’s ecological psychology,
Thomas Csordas’ phenomenological anthropology and Tim Ingold’s ecological epistemology, since these
perspectives join in the purpose to break up the dualities mind/body, subject/environment, nature/culture.
We encounter in the concept of landscape a point of convergence between these different approaches as
a body of the world. Thus the hypothesis which we support is that the landscape, as a body of the world,
may be taken as the soil of culture, in the sense that the human subject, in his or her corporeal condition
of being of this world is not only set in the landscape, but the landscape is the very condition of his or her
engagement in the world and in culture.
Keywords: Ecology. Religion. Health. Phenomenology. Self-perfectioning.

Ambiente & Sociedade ■ Campinas v. XI, n. 2 ■ p. 451-463 ■ jul.-dez. 2008

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