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CANSAÇO:

Esperança em Cristo para exauridos do nosso tempo


Cácio Silva*

“Estou cansado” é uma das queixas mais ouvidas em nossos dias. Pastores se cansam frente aos
desafios dos centros urbanos, à cobrança denominacional e às expectativas das ovelhas.
Missionários se cansam frente aos estresses da interculturalidade, à supervisão das agências, às
demandas de sociedades carentes ou à rejeição de sociedades abastadas.

Este, porém, não é um privilégio de religiosos. Empresários se cansam frente à ferocidade da


concorrência, empregados e profissionais autônomos se cansam frente à competitividade do
mercado de trabalho, donas de casa se cansam frente ao enfadonho trabalho do lar, universitários,
professores e pesquisadores se cansam frente às exaustivas cobranças do sistema acadêmico. Em
todos os segmentos da vida ouvimos frequentemente de cansaço e, curiosamente, parece que
quem menos se queixa são os trabalhadores braçais que mais pegam no pesado. Quanto menos se
exige do corpo e mais se exige da mente, maior é o estado de cansaço.

Cansaço excessivo e adoecimentos

Em seu livro “Sociedade do Cansaço”, Byung-Chul Han observa que o século 21 foi inaugurado
com a ameaça das doenças neuronais e disfunções psicoemocionais, em particular a depressão e o
esgotamento. Estas são causadas não por bactérias ou vírus, não por um agente externo, estranho,
negativo, mas por agentes internos, conhecidos, positivos.

Para Han, grande parte dos adoecimentos dessa época tem origem no cansaço excessivo. Por
excessivo, entenda-se cansaço crônico e cansaço acumulado, resultantes do excesso de
desempenho e de consumo. Nossa sociedade circula numa roda viva de produção ininterrupta e
de consumo constante. Consumo não apenas de produtos materiais, mas também de mídia,
informação, entretenimento, estímulos. Essa roda viva da produção excessiva e do consumo
excessivo, nos leva ao cansaço excessivo, esse desarma nossos escudos e abre as portas para
diferentes disfunções psicoemocionais.

Consumo e diminuição do sono

Jonathan Crary, em seu livro “O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono” alerta sobre o “regime
econômico 24/7”, 24 horas por dia e 7 dias por semana produzindo e consumindo. Para ele, a
grande batalha mercadológica da atualidade é contra o sono, por este ser a última barreira para o
consumo ininterrupto. O único momento do dia quando paramos de consumir alguma coisa é
quando dormimos. Não por acaso, dormimos cada vez menos e cansamos cada vez mais. O
resultado é uma “sociedade do cansaço”.

Um convite instigante

Como pastores e missionários, fazemos parte desta sociedade e somos influenciados por ela. Mas
eis aqui uma boa notícia: Você não precisa viver cansado, pois, para os exauridos dos nossos dias,
Jesus tem um instigante convite:

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Pastor presbiteriano e missionário entre indígenas da Amazônia, pela APMT e WEC Internacional.
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“28 Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. 29 Tomai sobre vós o meu
jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. 30
Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve” (Mt 11.28-30).

Os ouvintes originais estavam cansados pelo excesso de exigências cerimoniais, impostas por
líderes legalistas. Mas seu convite se aplica perfeitamente aos cansados pelos excessos da nossa
época.

Nesse texto, “cansados” tem a ver com o bater no peito, indicando um cansaço não apenas físico,
mas emocional. Venham a mim todos que estão aflitos, angustiados, abatidos, enfadados. E
“sobrecarregados” tem a ver com carga excessiva de navio, excesso de bagagem. Venham a mim
todos que estão com excesso de carga, levando nos ombros mais do que dá conta de carregar. “E
eu vos aliviarei”, tirarei o excesso de bagagem e darei uma pausa para se reanimar, recompor as
forças. Descanse a alma, pois o Senhor tem alívio para você.

“Tomai sobre vós o meu jugo”, evoca a figura das juntas de bois que precederam os tratores
motorizados no arar terras. O “jugo” era uma peça de madeira que atrelava dois bois pelo pescoço,
para trabalharem em conjunto, num só ritmo, num só esforço e numa só direção. Se atrelem a
mim, sujeitem-se ao meu senhorio e dividam a carga comigo. Recobre o ânimo, pois o Senhor quer
dividir a carga com você.

E acrescenta, “aprendei de mim”, usando uma palavra que indica aprendizado não pela teoria, mas
pela prática, pelo observar uma ação e desenvolver um hábito. Me observem e aprendam a andar
e viver no meu ritmo, no meu compasso, na minha direção. Ele não promete nos deixar sem
cargas. Sua proposta, é que aprendamos carregar nossa bagagem sem nos quebrar. Olhe para
Jesus, pois Ele tem o ritmo ideal para você.

Uma afirmação intrigante

“Porque sou manso e humilde de coração”. Mas o que, afinal, cansaço e sobrecarga pode ter a ver com
mansidão e humildade?! Na verdade, tem tudo a ver. “Manso” é o contrário de agitado,
turbulento, ansioso. E “humilde” é o contrário de orgulhoso, vaidoso. No fundo do fundo, nosso
cansaço excessivo não vem de fora, mas de dentro. Vem do coração. Não vem das pressões da
vida, mas da forma como lidamos com essas pressões. Não vem dos estímulos excessivos, mas da
nossa rendição conformada a eles.

Um coração agitado, ansioso, tenta controlar o que não consegue nem precisa controlar. Coloca a
esposa na missão impossível de transformar o marido; coloca o marido na tentativa ingrata de
subjugar a esposa; leva os pais à ânsia exaustiva de controlar o destino dos filhos; faz o pastor
entrar no jogo perdido de dominar a liderança local, de tentar suprir cada necessidade de cada
ovelha e se desgastar com política eclesiástica; leva o missionário à tentativa fadada ao fracasso de
atender cada demanda social que grita ao seu redor, de se culpar pela falta de resultados e até de
fazer a vez do Espírito Santo no processo de conversão dos perdidos e de amadurecimento dos
novos na fé. O coração agitado vive a frenética tentativa de controlar a vida. No fundo, não seria a
ânsia edênica de se divinizar, se tornando o soberano do seu microuniverso?

Já o coração orgulhoso, nos leva a fazer mais do que deveríamos. Nos lança na arena da
produtividade, nos coloca no trilho do desempenho e no enredo da competividade. Nos

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comparamos com nossos pares, sejam pastores, missionários ou profissionais, e oscilamos entre a
vaidade (“sou melhor”) e a baixo autoestima (“sou pior”). Entramos no jogo da competição com os
críticos para provar que podemos ou no jogo da afirmação frente aos elogios para mantermos o
que acham que somos. E o pior do coração orgulhoso é que ele é cego para seu próprio orgulho.
Ele não se sente orgulhoso.

Outras vezes o orgulho é extremamente sutil, se manifestando com atividades que são claramente
louváveis, só que excessivas. Ativismo. Às vezes com um louvável senso de responsabilidade, só
que além da medida. Autocobrança. Invertemos prioridades e colocamos o fazer antes do ser, o
ministério antes da família, a obra de Deus antes do Deus da obra. Às vezes, colocamos o
entretenimento antes do descanso e nos afogamos com atividades muito comuns, só que não
normais. Não é normal, por exemplo, viver hiperconectado, em busca de hiperinformação. O uso
excessivo da tecnologia nos leva a saber mais do que precisamos saber e a estar “presentes” onde
não precisamos estar. Não seria a mesma ânsia edênica de divinização, buscando a onisciência e
onipresença que só cabe ao Eterno? Só com um coração manso e humilde “achareis descanso para a
vossa alma”.

Enfrentando as verdadeiras causas do cansaço

E Jesus conclui afirmando que “o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve”. Depois de repetidamente
finalizar o ano com um cansaço acumulado, cheguei à conclusão pessoal que cansaço acumulado
não é normal. Pode ser comum, mas não normal. Se o fardo de Jesus é leve e vivemos cansados,
creio haver três possibilidades: idade avançada, com fragilização natural do corpo; alguma
enfermidade, que demanda tratamento; ou fardos excessivos que não foram colocados sobre nós
por Cristo.

Nos casos de idade e enfermidade, alguns quadros têm o que fazer e é preciso fazer o que pode ser
feito. Outros não tem, algumas enfermidades podem apenas ser controladas, e nesses casos resta
se adequar aos limites. Se é este o seu caso, saiba que o bom pastor tem graça sob medida para
você, te habilitando pelo Espírito a viver contente mesmo na debilidade e no sofrimento.

Já os fardos, muitas vezes são autoimpostos. Jesus não pediu que eu fizesse, mas eu é que desejo
fazer. Pode ser ativismo ministerial ou entretenimento midiático, excesso de informação, interação
virtual, que, ao invés de produzir descanso, estimula a mente ainda mais. Outros fardos são
colocados sobre mim por terceiros, mas com minha concordância, às vezes por temer mais a
homens do que a Deus e por isso não saber dizer não. A boa notícia é que não precisamos carregar
nenhum fardo além do de Cristo. Podemos lançar de sobre nós todo o excesso de bagagem,
ficando apenas com o fardo leve.

Ouça bem: A não ser por uma enfermidade incurável, você não precisa viver cansado. Você pode
e deve aprender com Cristo a viver leve. Se você tem vivido um cansaço crônico, pare, busque
discernimento em Deus, busque ajuda, enfrente esse quadro, entenda as causas reais, mude seu
padrão de pensamento, mude sua dinâmica de vida. Naturalmente, contando para isso com a
graça de Deus e com o Espírito Santo.

O ritmo de Jesus

Jesus também cansava, e cansava ao ponto de dormir profundamente num barquinho


desconfortável em meio a uma bravia tempestade. Logo, cansar é normal. O que não é normal é

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viver cansado. Desde que as indústrias Ford popularizaram o conceito de férias, o padrão comum
se tornou trabalho/cansaço/trabalho/cansaço/trabalho... FÉRIAS!!! Mas o padrão de Jesus é
trabalho/cansaço/DESCANSO/trabalho/cansaço/DESCANSO... O normal, é cansar durante o
dia e se recompor com o sono da noite. Se desgastar durante a semana, mas se revigorar no
sabático semanal.

O ministério de Jesus era mais intenso do que qualquer ministério urbano ou transcultural de hoje.
Intenso ao ponto de às vezes ele não ter tempo para comer. Mas Jesus tinha como hábito o
movimento das multidões para o deserto, do deserto para as multidões; das multidões para as
montanhas, das montanhas para as multidões. Perdemos esse movimento e ficamos
constantemente nas multidões. Às vezes nas multidões reais e o tempo todo nas multidões
virtuais. Não tem humano que aguente, pois até o Eterno que não cansa, descansa. Nós
precisamos de pausas. Mais que isso, precisamos de humildade para reconhecer que somos
humanos, não divinos.

Descansar por dentro

A solução para o cansaço excessivo não é apenas diminuir o trabalho e aumentar o lazer, não é
apenas sair de férias ou fazer uso de medicamentos. Olho para meu próprio histórico e vejo
quantas repetidas vezes, após um ano exaustivo, chegando ao fim com cansaço acumulado, saí de
férias e voltei mais cansado do que antes. O cansaço excessivo começa na alma e não no corpo. O
coração manso descansa por dentro, pois crendo no real controle de Deus sobre todas as coisas,
não tenta controlar o incontrolável. O coração humilde descansa por dentro, pois não procura
fazer nada além do que o Senhor espera que se faça.

Campo não quebra missionários. Igreja não quebra pastores. Ministério não quebra obreiros, pois
ministério é privilégio de Deus. O que nos quebra, é a forma como lidamos com as lutas da vida e,
em particular, os excessos. Às vezes fazemos tudo que o Senhor deseja de nós, mas vamos além e
queremos fazer mais, fazer o que nós próprios desejamos. E às vezes não fazemos o que Deus
deseja, mas apenas o que nós mesmos desejamos. Isso sim nos quebra.

Allen Frances, considerado o “papa da psiquiatria” norte-americana, em seu livro “Voltando ao


Normal”, denuncia o excesso de diagnósticos psiquiátricos e a medicalização da vida. Ao lhe
pedirem um conselho para essa geração cansada, ele respondeu sem titubear: “É preciso mudar os
hábitos de sono! Vocês sofrem com uma grave falta de sono, e isso provoca ansiedade e
irritabilidade.” Em outras palavras, “vocês precisam dormir”. Curiosamente, no seu livro
“Humildade”, C. J. Mahaney dedicou todo um capítulo sobre o sono como um ato de humildade.
O único momento do dia quando nos rendemos por completo, nos entregamos sem reservas,
abrimos mão do controle da vida e nos vulnerabilizamos. O sono é o lembrete diário de que somos
humanos. É um convite para um coração manso e humilde.

Sono diário com qualidade e quantidade; sabático semanal, envolvendo tempo de adoração e
reflexão; pausas periódicas, para fugir da multidão. Dicas simples para não sucumbir nesse frenesi
da vida pós-moderna. Porém, o que precisamos mesmo é cultivar o descanso do coração, o
descanso da alma, o descansar por dentro. Que o Senhor, que nos conhece e nos ama, nos ajude
em nossas fraquezas.

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