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QUESTÕES SOBRE A

ÉTICA E A INOCÊNCIA
DO MÉTODO
Leila Marrach Basto de Albuquerque
Rodolfo Franco Puttini
(organizadores)

QUESTÕES SOBRE A
ÉTICA E A INOCÊNCIA
DO MÉTODO
Sumário

Prefácio.......................................................................................07
(Débora Diniz)

O corpo como construção social..................................................11


(José Carlos Rodrigues)

Da inocência do método ao método da inocência...............................37


(Stelio Marras)

Neutralidade como uma aspiração para a


ciência contemporânea?...............................................................55
(Hugh Lacey)

A Crítica do Ressentimento: Filosofia e Psicologia Social.


De Friedrich Nietzsche a Theodore Dalrymple...............................77
(Luiz Felipe Pondé)
Prefácio

Débora Diniz1

Este é um livro que desacredita nas fronteiras entre conheci-


mentos. É escrito por personagens tão diversos quanto devem ser
seus leitores — filósofos e antropólogos se misturam a tipos que
passam dias a acompanhar células ou imagens do corpo que des-
conhecemos como nossas. É um livro de ciências, mas também de
humanidades. O tema é simples, embora inquietante: a imaginação
sobre a pesquisa não é mais a mesma; há quem diga nas páginas
seguintes que princípios éticos do passado precisariam ser revistos.
A nova ordem de controle da vida, a biopolítica, exigiria também
novas formas de codificar suas questões. Não estou tão segura de
tamanha revisão da ética pelo novo governo da vida, mas sigo seus
autores na importância de inclinarmos a torre que abriga os pensa-
dores da ciência. A torre não é vertical e protegida, inclinou-se não
sei bem quando e as forças foram tantas que não me arriscaria a
listá-las. Nosso compromisso é agora sobreviver à tontura de quem
admira uma paisagem sem horizonte firme em um piso torto que
desorganiza estruturas.
Objetividade foi criação dos fazedores de ciência do passado,
mas ilusão dos seguidores no futuro. Imparcialidade também já foi
revista como criação sem corpo, mas nem ela deixou de ser inscrita
nos manuais como princípio e virtude dos fazedores de ciência. Não
posso exagerar; os seguidores do método científico como único e
verdadeiro ainda existem, e são muitos. Mas mesmo a torre deles
não é mais vertical — se não se inclinou, como a nossa, ao me-
1. Universidade de Brasília (UnB).
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

nos sofre permanentes tremores ou é incomodada pelos gritos dos


que vivem na vizinhança. Este é um livro escrito pelos vizinhos dos
fazedores de ciência que habitam e acreditam na torre vertical do
conhecimento — personagens que entendem a ciência como so-
berana, pois produzida por métodos que não aceitam adjetivos. Os
habitantes da torre inclinada não desacreditam na ciência, apenas
duvidam de sua soberania e seus cercados.
O que fazemos então como doutores em ciência sem a objetivi-
dade, imparcialidade ou neutralidade do método? Usamos a imagi-
nação para produzir conhecimento. Não abdicamos de métodos. Há
regras de linguagem e produção do conhecimento, a isso chamamos
de técnicas de pesquisa e critérios de validação de nossos resultados.
Eles são múltiplos e variados, pois tolo é quem acredita nos cercados
dos melhores métodos para todas as formas de imaginação. A varie-
dade de métodos é rica para inclinar ainda mais a torre e facilitou a
retirada do véu ingênuo que nos fazia acreditar na verdade pela ob-
jetividade, imparcialidade ou neutralidade. Com menos pompa, eu
ainda falaria em verdade no conhecimento como o uso da imagina-
ção combinado ao domínio das regras do jogo. Repito: imaginação
e regras do jogo, o que é diferente de iluminação e dogma.
As regras do jogo oferecem confiabilidade ao texto, mas não
garantem leitura. E o que importa para os escritores não é texto
produzido, mas palavra circulada, sentida na solidão de novo pen-
samento. Por isso, tão importante quanto confiança nos brinque-
dos para o jogo é a imaginação de quem pensa e escreve ciência. É
preciso ser confiável, mas também imaginativo. Essas verdades da
imaginação e do jogo serão sempre provisórias, algumas delas esque-
cidas tão logo pronunciadas, outras admiradas por longo tempo, ao
ponto de serem assumidas como dogma. Quanto mais profundas e
permanentes, mais merecedoras do título de verdade ganharão nos
cercados dos fazedores de ciência. Este livro nos provoca a inclinar
torres ou, quem sabe, a destruir alguns cercados; não importa que
já habitemos uma torre sem jeito e com pouco conforto, ou mesmo
fora de cercados, é preciso se deixar provocar. Os autores nos mos-
tram como cultura, epistemologia e moral importam para olharmos
a matéria dos fazedores de ciência — a vida e o corpo, e seus regimes
de vigilância.

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Questões sobre a ética e a inocência do método

A alegoria da torre foi pensada por Virginia Woolf no início


do século vinte para explorar as transformações da ficção em lín-
gua inglesa (WOOLF, 2014). A torre inclinada seria aquela em que
habitavam os escritores depois da primeira guerra mundial, um ter-
ritório ainda confortável para o pensamento, mas cujas certezas ha-
viam sido provocadas pela mudança da paisagem assistida da cadeira
do escritor diante da janela de sua torre. É das torres que olhamos
para a vida humana: é desse território que se move a imaginação e as
regras do jogo dos fazedores de ciência. Não temos a liberdade dos
poetas, personagens singulares que prescindem da torre e das regras,
os poucos que vivem a pura imaginação. Somos fazedores de ciên-
cia, produtores de conhecimento sobre a vida humana. Os autores
deste livro são vozes de torres inclinadas que buscam animar nossa
coragem para imaginar.

Referência Bibliográfica

WOOLF, Virginia. A Torre Inclinada. In: ______. O Valor do Riso e Outros En-
saios. Tradução e Organização: Leonardo Froés. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p.
427-463.

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O corpo como construção social

José Carlos Rodrigues

O mundo começou sem o homem e provavelmente desapa-


recerá sem ele. Resultado de processos naturais, o homem é uma
das manifestações do mundo. Faz parte, portanto, da natureza.
Mas o homem não pode apreender o mundo tal qual este é em
sua objetividade: a percepção humana está limitada à sua humani-
dade, restringe-se às dimensões e ao alcance do olhar, do paladar,
tato, olfato humanos... A percepção que o homem tem do mundo
é irremediavelmente parcial: indissoluvelmente antropocêntrica,
como é bovinocêntrica a apreensão do mundo por parte desses
animais.
Cada ser percebe o mundo com as lentes que lhe são próprias.
Está submetido aos limites e à acuidade delas: a ouvir dentro de
certa frequência, a enxergar com certa luminosidade, a detectar
apenas alguns cheiros, a não receber estímulos tácteis inferiores ou
superiores a determinados limiares. Não estão aí o cão e seu olfato,
o gato e sua visão no escuro, o morcego e sua audição, a nos ensi-
narem que cada espécie vive em um universo que lhe é peculiar?
A cultura constitui a lente específica por intermédio da qual o
homem enxerga o mundo. Por ela, os sentidos humanos adquirem
uma coloração especial e o mundo uma fisionomia humana. Atra-
vés dela o universo deixa de ser algo dependente apenas de progra-
mações orgânicas e os sentidos de se definirem pelas estruturações
biológicas dos organismos individuais. Pela cultura o mundo passa
a depender em larga medida das convenções sociais, variáveis de
sociedade para sociedade, de grupo para grupo, de tempo para
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tempo - o que vale também para os sentidos, por instrumento dos


quais em cada lugar e em cada tempo os homens se relacionam
com o mundo.
Segundo as convenções, em cada sociedade são diferentes as ên-
fases e os direcionamentos dos órgãos dos sentidos. Não se pode
negar que as culturas se aproveitem dos sentidos para codificar o
mundo; não obstante, toda sociedade codifica também estes senti-
dos, pois experiências sensoriais são mensagens que devem ser de-
codificadas de alguma forma. Em cada sociedade, pesos diferentes
são atribuídos aos diferentes sentidos: não são os cegos e os surdos
capazes de superar parcialmente suas deficiências, aperfeiçoando o
domínio sobre outros códigos sensoriais, a ponto muitas vezes de
serem capazes de “ver” o valor de uma nota de dinheiro pela simples
manipulação da mesma, ou de “ouvir” um interlocutor por leitura
labial?
Cada cultura pode enfatizar ou sobrecarregar um ou alguns sen-
tidos. Nós, por exemplo, suspeitamos dos sentidos que não a visão
ou o tato. Precisamos ver para crer, ou, como São Tomé, tocar as cha-
gas de Cristo para acreditar. Precisamos escrever as coisas, para delas
não esquecermos e para firmarmos compromissos seguros. Criamos
diferentes sistemas para nos ajudar a ver o que ouvimos. Chamamos
as pessoas de maior arrojo ou sensibilidade de “visionárias” ou “vi-
dentes”. Não por acaso, em muitas das nossas igrejas a onipotência
e a onisciência de Deus é representada por um olho.
Dizemos que os “olhos são o espelho da alma”, que os sábios
são “iluminados”, que um conhecimento superficial é “à primei-
ra vista”. Uma pessoa estimada é “bem vista”; as coisas honestas,
“transparentes” e compreender é “ver claramente”. Temos “ponto de
vista” e “visão de mundo”. Costumamos dar ou receber uma “luz”
para solucionar um problema. Em nossas revistas em quadrinhos,
uma ideia “brilhante” é uma lâmpada que acende. E poderíamos
falar sem fim dos “alucinados”, do “iluminismo”, da “idade das tre-
vas”, ou dos beijos roubados no “escurinho do cinema”, como diz
a música...
Não confiamos tanto no olfato: nossa atitude diante das sen-
sações olfativas, dos conhecimentos que nos chegam por esta via,
é de desconfiança, de suspeita, de insegurança, como expressamos

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Questões sobre a ética e a inocência do método

em nosso vocabulário (“isto não me cheira bem”, “sinto cheiro de


confusão”...). Os cheiros nunca são algo em si, com identidade
própria: são qualidades de outras coisas (“cheiro de rosa”, “odor
de putrefação”, “flagrância de amor”) ou das consequências que
produzem (“enjoativo”, “estimulante”, “agressivo”, “insinuante”...).
Não diferimos, quanto a este sentido, dos adamaneses, cujo calen-
dário se baseia numa sucessão de perfumes que as flores, as árvores
e os animais exalam durante os diversos períodos do ano? Ou dos
esquimós, que, apoiados na direção e no cheiro do vento, são ca-
pazes de viajar quilômetros e quilômetros por territórios para nós
visualmente indiferenciados?
Se os próprios sentidos por meio dos quais os homens tomam
ciência do mundo são condicionados e variáveis culturalmente, que
dizer do mundo e dos objetos que o povoam? Nesta direção, so-
mos levados a compreender que isto a que as pessoas normalmente
chamam de “mundo real” é construído a partir dos códigos da so-
ciedade. E construído de modo em grande parte inconsciente: o
cérebro, respondendo a um “programa” que lhe é introduzido pela
socialização, seleciona e processa as informações que lhe são forne-
cidas pelos órgãos dos sentidos, estes mesmos submetidos a uma
gramática culturalmente estabelecida.
Apesar de a consciência individual ter a impressão de estar
lidando com um mundo intrinsecamente ordenado - isto é, de que
os diferentes cérebros humanos reagiriam de maneira semelhante
aos mesmos estímulos - prevalece no atual estágio do desenvol-
vimento científico a concepção de que “mesmos estímulos” são
mais propriamente “dados” e “informações” que devem ser “li-
dos”, “processados” e “interpretados” segundo códigos diferentes.
Por este caminho, em vez de uma ordenação absoluta existente “lá
fora”, no mundo, os homens estariam mergulhados em uma lógica
especial, não necessariamente coincidente com o que existe “lá
fora”: esta lógica cultural institui novos elementos, imprevisíveis,
inconhecíveis e mesmo impossíveis de existir em outro universo
que não o cultural.
Fruto do mundo, o próprio do homem é inventar miríades
de mundos. Materializado em um corpo, o homem não tem um
corpo único ao qual esteja para sempre confinado. Este corpo é

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muito mais do que algo intrinsecamente ordenado, com existência


objetiva “lá fora” no mundo: faz parte do universo convencional,
como qualquer objeto vivido ou concebido por humanos.
Mas, com estas palavras pretendo muito mais do que simples-
mente afirmar que as concepções sobre o corpo variem segundo as
culturas, que cada uma tenha suas “imagens” ou “representações”
sobre o corpo humano. De modo muito afirmativo é preciso que te-
nhamos claríssimo que de acordo com os contextos culturais variam
não somente as representações sociais do corpo, as concepções, mas o
próprio corpo como coisa material. Isto é, diferem a resistência físi-
ca, os gostos, as doenças, os automatismos corporais, as atenções, os
reflexos, o desenvolvimento deste ou daquele subsistema muscular,
a acuidade dos órgãos de sentido e assim por diante.
Exatamente por essa diferença material - não por acaso ou por
falta de informação - os atropelamentos de estrangeiros são particu-
larmente numerosos em cidades como Londres e Tóquio, em que os
carros trafegam, como se sabe, pela “contramão”. Os praticantes de
candomblé que “viram no santo”, que entram em transe, não ape-
nas possuem crenças específicas sobre suas relações com os orixás,
não somente as “representam”, mas as experimentam e vivenciam
de maneira intensamente corporal. Portanto, muitas vezes não se
trata apenas de “representação” social, de “concepções”, de “visões
de mundo”, de ideias mais ou menos intangíveis, voláteis e imate-
riais. As representações do corpo não se limitam a ser apenas acon-
tecimentos intelectuais. É sempre necessário saber como ecoam e
reverberam na carne: com frequência são violentamente viscerais e
não-raro se traduzem em entusiasmos, em medos, em prazeres, em
ardores, em rancores, em sensibilidades...
*
Cada cultura “modela” ou “fabrica” à sua maneira um corpo
humano. Toda sociedade se preocupa em imprimir no corpo, fisica-
mente, determinadas transformações, mediante as quais o cultural
se inscreve e se grava sobre o biológico. Arranhando, rasgando, per-
furando, queimando a pele, apõem-se nos corpos cicatrizes-signos,
que são formas artísticas ou indicadores rituais de posição social:
mutilações do pavilhão auricular, corte ou distensão do lóbulo,
perfuração do septo, dos lábios, das faces, decepamento das falanges,

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Questões sobre a ética e a inocência do método

amputação das unhas, alongamento do pescoço, incrustações,


apontamento dos dentes, extração dos mesmos, deformação cefáli-
ca, atrofiamento dos membros, musculação, obesidade ou magreza
obrigatória, bronzeamento ou clareamento da pele, barbeamentos,
cortes de cabelo, penteados, pinturas, tatuagens... Em suma, um
sem-fim de práticas que se explicam por razões sempre sociais, de
ordem ritual ou estética.
Em seu clássico ensaio sobre as “Técnicas corporais”, Marcel
Mauss observou como variavam as técnicas de nadar entre as ge-
rações de franceses e como essas eram distintas das dos polinésios.
Registrou as dificuldades que os ingleses apresentavam para cavar
com as pás dos franceses, pois essas lhes exigiam um giro inabitual
da mão. Deteve-se nos diversos estilos de marcha militar de acordo
com os vários exércitos europeus e apontou como eram diversifica-
das as maneiras de cada um fazer a meia-volta. Destacou como o
olhar fixo para alguém podia ser expressão de descortesia na vida
corrente, mas era gesto cortês e obrigatório na vida militar.
Mauss apreciou os incontáveis modos de correr, de andar e de
permanecer em pé, que não eram absolutamente os mesmos segun-
do as culturas. Realçou como era possível diferenciar uma criança
inglesa de uma francesa pela simples posição dos cotovelos e das
mãos enquanto comiam. Também não era o mesmo o controle cor-
poral a que meninos e meninas deveriam se habituar. Evocou as
diferentes maneiras de dormir (com ou sem travesseiro, em camas,
em bancos, em redes, em esteiras, em pé, a cavalo), os modos de
descansar (em pé, sobre uma só perna, sentado, acocorado, etc.), as
técnicas de parto (em pé, deitada sobre as costas, de cócoras, de qua-
tro, na água, por exemplo). O grande antropólogo registrou como
divergem os diversos jeitos de carregar as crianças, os desmames, as
ginásticas, os modos de respirar... Poderíamos ir adiante e constatar
como divergem também as utilizações práticas dos produtos e com-
ponentes do corpo, como da a saliva para colar selos, como defini-
dor da direção do vento ou para verificar vazamento de ar; a do uso
dos dedos dos pés como auxiliares na tecelagem, a das orelhas para
segurar pequenos objetos...
Enfim, não há sociedade que não fira semioticamente o corpo
de seus membros, cada uma se especializando na geração de deter-

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minados corpos: na produção daqueles corpos que servirão como


insígnias da identidade grupal, nas quais a substância biológica
trabalhará como matéria sociológica. Por exemplo, a um brasilei-
ro vivendo na Europa, é quase sempre possível reconhecer, de lon-
ge e com margens mínimas de erros, outro brasileiro, homem ou
mulher: pela coloração da pele, pela maneira lenta e cambaleante
do andar, pelo estilo de vestir-se, pela postura corporal, sobretudo
da coluna, pelo relaxamento ao sentar-se, pelo direcionamento dos
olhares especialmente quando trocados por pessoas de sexos dife-
rentes, pela incontinência gestual de mãos tagarelas, pela liberalida-
de desinibida de tocar coisas e pessoas, pelos cabelos quase sempre
cuidadosamente recém-lavados, particularmente entre os homens.
Reunidos, esses signos corporais raramente conduzem a engano.
Outro exemplo: quando estamos no exterior, não raramente
passamos por dificuldades simplesmente por vivermos em ambien-
tes sociais nos quais somos estrangeiros também pelas convenções
corporais. Os cheiros das pessoas não são os que mais apreciamos,
os cumprimentos sempre mais, ou menos, formais que os a que
estamos acostumados, os olhares entre homens e mulheres não se
trocam de modo que nos soe familiar, os gestos, as expressões cor-
porais e faciais parecem sensivelmente outros...
Assim, é possível que um brasileiro se envolva em dificuldades
até aprender a decifrar dois simples gestos e um hábito linguístico
dos parisienses. O hábito linguístico é a repetição sistemática da ex-
pressão “bien sûr”, que pode ser traduzida por “claro” ou “evidente”.
Os gestos são, por um lado, um repetido balançar de ombros que
entre nós no Brasil significa “estou pouco ligando” ou “estou me
lixando”; por outro, uma forte expiração pela boca após terem cer-
rado os lábios, gesto parecido com o que entre nós significa “minha
paciência acabou” ou “você está me enchendo o saco”. Pela frequ-
ência, tais gestos e expressões podem reforçar em um brasileiro, a
cada instante, alguns estereótipos que nutrimos sobre os franceses:
que eles são “estúpidos”, “grosseiros”, “mal educados”, “coloniza-
dores que nos olham com desdém”. Será necessário algum tempo
para descobrir que “bien sûr” rigorosamente nada significa. Tem na
maioria das vezes apenas função fática na conversação. Sacudir os
ombros geralmente representa apenas um inocente “não sei”. E o

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Questões sobre a ética e a inocência do método

ar ostensivamente liberado dos pulmões remete singelamente a um


ingênuo e neutro “estou pensando”. Frequentemente estes três ele-
mentos acontecem quando se solicitam informações: em absoluto
não há a vontade de dizer que o interlocutor seja um imbecil a só
dizer obviedades, ou um chato, inoportuno, digno de desprezo.
Na Inglaterra, um brasileiro pode sentir algum mal-estar ao es-
tender a mão para cumprimentar conhecidos sempre que os encon-
trar. Há uma grande chance de receber troca mãos molengas, tími-
das, indecisas. Acontece que entre eles o cumprimento manual tem
lugar basicamente quando as pessoas são apresentadas. Mudando
de países, Alemanha, França, Itália, Inglaterra, nunca se sabe exata-
mente o número padronizado de beijos que as pessoas de sexos di-
ferentes se devem dar nas faces, nem por qual das bochechas exata-
mente começar. Há sempre o risco de pecar: beijar alguém quando
este não é o padrão e produzir espanto; deixar alguém com o rosto
no ar à espera de um beijo; beijar mais vezes que o receitado e pro-
duzir embaraço; beijar menos de modo a passar por distante, frio.
Tanto quanto possível, um brasileiro tenderá a ser mais ou menos
fiel ao padrão de sua cultura: evitará beijos masculinos e começará
sempre pelas bochechas direitas. Do mesmo modo, é possível que
um europeu estranhe e se assuste com nossos simpáticos tapinhas na
barriga. Talvez sinta uma espécie de curto-circuito, pois seus reflexos
talvez não estejam preparados para este gesto que pode soar como
verdadeira “invasão” do seu território corporal. Ser-lhe-á necessária
uma espécie de socialização do corpo, porque os hábitos corporais
são aprendidos e transmitidos pela convivência.
É pela educação formal ou informal que se incutem nos
indivíduos os princípios que explícita ou disfarçadamente são
comuns aos membros de uma sociedade - princípios que muito
poucos têm coragem de negar ou de desafiar abertamente. Estes
princípios vão desde coisas muito complexas, como aprender a
desempenhar o papel de homem ou de mulher, a coisas apenas
aparentemente muito simples, como cuspir, gargarejar, engolir
comprimidos ou beber cafezinho sem queimar a boca... Por meio da
educação se faz de cada criança um membro da sociedade, sobretudo
levando-a a abrir mão de sua autonomia corporal e incutindo em
seu físico e intelecto as marcas próprias da comunidade. Garante-se

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por este caminho certo número de estados mentais e físicos, sem a


partilha dos quais a vida comunitária seria impossível. Esta tarefa
da educação sobre os corpos é então absolutamente fundamental:
primeiro, porque o corpo humano é por excelência uma expressão
simbólica da própria sociedade, de cada sociedade; depois, porque
qualquer sociedade se faz, fazendo os corpos daqueles em que ela se
materializa.
O projeto educativo, no seu fundamental, consiste em forjar
sobre os organismos mais ou menos amorfos dos recém-nascidos,
os corpos específicos de que uma sociedade necessita para viver.
Um estudo detido do processo de socialização de nossas crianças
revelaria neste sentido que as maiores violências e atenções de que
são objeto se ligam à introjeção nelas dos hábitos corporais e das
regras de higiene: tapas na mão que foi posta em lugar indevido,
pimenta ou esparadrapo nos dedos para impedir de os chupar, ridí-
culo à criança que evacua nas calças, repreensões quanto às posturas
corporais, quanto à exibição de certas partes do corpo, aos horários
de alimentação e aos cuidados com a saúde...
Outro exemplo disso é a pressão exercida sobre as crianças de
muitas sociedades para que prefiram ser destras. Em contraste com
a verdadeira apoteose de que é objeto a mão direita, há sociedades
em que as crianças são repreendidas e punidas por permitirem ati-
vidade à mão esquerda, ou a têm amarrada para aprenderem a dela
não se servir senão para tocar as coisas impuras. Há povos em que
os canhotos são encarados como feiticeiros ou demônios e grupos
em que as refeições podem ser feitas apenas com a destra. Em algu-
mas populações a esquerda nunca deve ser lavada ou ter as unhas
aparadas, de forma que a crença na imensa diferença entre as duas
mãos - que se quer incutir nos pequenos - às vezes chega mesmo a
produzir uma diferença física inquestionável.
Por causa deste projeto inculcador, nas sociedades hierarquiza-
das suscita-se desde sempre a vergonha dos próprios corpos naque-
les que não se enquadram nos modelos socialmente aprovados, ou
que não se encaixem nos padrões que as classes favorecidas exibem.
Compreende-se bem isso, pois, pela própria diversidade de estilos
de vida que as diferentes classes são levadas a observar, os não privi-
legiados não podem se reconhecer nos paradigmas idealizados. Tal

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Questões sobre a ética e a inocência do método

vergonha não é apenas mais uma expressão da assimetria de classes


ou da exclusão social: está gravada como o mais íntimo, o mais exis-
tencial e o mais importante signo de desigualdade. Desigualdade
gravada no corpo. Neste corpo que jamais poderá ser desvinculado
da pessoa a que pertence.
*
Um caminho possível para compreender o corpo e as práticas
corporais é considerá-los como pertencendo ao universo dos símbo-
los e da comunicação. Partes do corpo, posturas, gestos, contatos,
interação corporal, remetem a conteúdos implícitos, são significa-
dos de elaboração secundária, com propósitos não necessariamente
corporais. Vomitar pode não ser simples perturbação do aparelho
digestivo, mas expressão da relação entre o cultural e o biológico,
entre o controlado e o incontrolado nos organismos humanos, entre
o que é aceitável e o que deve obrigatoriamente ser recusado. Suar
pode não ser o simples resultado do trabalho de certas glândulas,
mas a representação material da relação entre trabalho e repouso,
mérito e demérito, privilégio e exploração. Lavar pode ser muito
mais que prática instrumental de limpeza, cuidado e preservação da
saúde: pode também ser mecanismo simbólico inconsciente para
separar domínios e estabelecer relações. A circuncisão pode se ex-
plicar de outra maneira que por razões higiênicas, aversão ao cheiro
de esmegma, necessidade de combater inflamações prepuciais, de-
senvolvimento da resistência da mucosa da glande, pois tais razões
normalmente são racionalizações destinadas a justificar uma prática
que é muitíssimo anterior aos argumentos.
Por que consideramos na nossa cultura que cuspir no rosto de
uma pessoa seja a maior ofensa que a ela se possa endereçar? Pelos
valores absolutos, biológicos, do rosto e da saliva? Ou pelo que esta
conjunção rosto-cuspe pode significar simbolicamente, uma vez que
o rosto constitui o principal signo de identidade social e que cuspir
nele corresponderia a torná-lo baixo como o chão, desprezível como
as coisas de que se tem nojo? Por que é que temos nojo de todas
as secreções corporais, exceção feita à lágrima? Porque são impuras
em si, portadoras de microrganismos patogênicos? Ou porque sim-
bolizam uma natureza rebelde ao controle social, que nos revelam
nossa natureza animal profunda? Não eram tais secreções detestadas

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muito antes de Pasteur ter descoberto os tais microrganismos causa-


dores de doenças? Por que as mulheres não detestam com a mesma
veemência o catarro que escorre do nariz de seu filhinho e o que se
desprende do narizinho do filho de sua empregada? Por que motivos
se evitam menos as coisas “poluídas” ou “poluígenas” quando o con-
tato com elas se dá na intimidade individual ou sexual?
“Símbolo” é a palavra-chave que ajudaria a responder todas es-
sas questões. O corpo, os gestos, as práticas corporais devem ser
interpretados e decifrados, mais ou menos como se decifram os sím-
bolos dos sonhos, dos mitos e dos rituais, pois desde cedo aprende-
mos a absorvê-los de modo tão inconsciente como aquele pelo qual
absorvemos as regras do idioma que falamos. Uma reflexão especial
seria necessária, se desejássemos tornar consciente a gramática do
discurso corporal, pois não a divisamos automaticamente - mais ou
menos como o olho não consegue espontaneamente enxergar-se a si
mesmo. Em consequência, temo-la como garantida e estabelecida.
Não é por esta razão, aliás, que recorremos a gestos quando
não sabemos a língua de nosso interlocutor, supondo que formem
uma linguagem geral? Mas estes gestos nada têm de universal. Os
conteúdos denotativos da gestualidade não coincidem absoluta-
mente de cultura para cultura. Enquanto os ocidentais afirmam
com um aceno vertical da cabeça, os turcos a sacodem, os abissí-
nios a atiram para trás levantando simultaneamente as sobrance-
lhas, os Dayak levantam os supercílios e os neozelandeses elevam a
cabeça e o queixo. As maneiras de chamar alguém, cumprimentar,
indicar objetos, despedir, expressar desconfiança ou amizade, ex-
primir aborrecimento ou raiva, variam de tempo para tempo, de
sociedade para sociedade. Os Maori, como expressão de amizade,
dobram o indicador e colocam a saliência da segunda junta na
ponta do nariz; a mãe chinesa empurra para a frente e para trás
a cabeça do filho, para com isto dizer-lhe que está zangada; para
algumas sociedades africanas, é amaldiçoar um objeto o apontá-lo
com o dedo. Piscar para alguém pode ser paquera, cumplicidade
ou amizade, assim como significados algo semelhantes aos nossos
beijos podem ser expressos em outra culturas pelo atrito dos nari-
zes, toque do nariz nas faces, afagos nos cabelos, beliscadelas nos
mamilos...

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Questões sobre a ética e a inocência do método

O mais importante, contudo, não são estes conteúdos denota-


tivos, quase sempre mais ou menos conscientizados quando pessoas
de culturas diferentes se encontram, ou quando as regras de con-
duta corporal sofrem alguma transgressão. O mais importante são
os conteúdos conotativos e inconscientes, que sutilmente contêm
princípios estruturadores da visão de mundo de uma sociedade e
das atitudes dos homens diante de seus corpos e dos alheios. Por
exemplo, não podemos ver uma sutil discriminação dos canhotos
quando observamos que, para realçar o mutismo da mão esquerda,
abridores de latas, cadernos com espiral, relógios de pulso, carteiras
escolares, maçanetas de portas, tesouras, saca-rolhas, instrumentos
musicais, acessórios de computador e até colheres entortadas feitas
para uso de bebês, parecem ter sido concebidos e produzidos apenas
para os destros?
Ao pouparmos de nosso nojo a lágrima, não estamos oferecen-
do uma espécie de privilégio a uma das únicas secreções do corpo
humano que dependem das convenções sociais para emergir? Não
são as culturas que determinam quais são as razões particulares que
devem levar os seres humanos a vertê-la? Ao lavar as mãos quando
entramos em casa, saímos do banheiro, vamos para a mesa, não
estaremos inconscientemente praticando ritos sutis, que expressam
passagens entre domínios diferentes da experiência social - respecti-
vamente, da rua para a casa, do íntimo para o público, do cultural
para o natural?
Ao escovar os dentes, tomar banho, pentear os cabelos, cortar
as unhas, não estaremos sem explícita consciência dizendo para nós
mesmos que somos homens, que diferimos dos bichos, que não
somos “porcos”? Quando lançamos para a natureza, chamando de
“porcos”, aqueles que não se conformam às nossas regras de higiene
corporal, ou de “galinhas” e “veados” certas preferências sexuais, não
é algo sobre o nosso conceito de “humanidade”, nossas premissas
sobre as relações entre sexualidade e natureza, o que estamos incons-
cientemente exprimindo?
Sem o saber, não legitimamos em nosso próprio corpo o sistema
de propriedade privada e industrial, quando em um posto de gaso-
lina falamos dos meus para-brisas, dos meus pneus, dos meus vidros?
Quando, distraídos, dizemos “obrigado” à máquina que acabou de

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

nos servir café automaticamente, tratando-a como se fosse uma pes-


soa (o que é o primeiro passo para tratar pessoas como se fossem
máquinas), não é este sistema que estamos consagrando inconscien-
temente? Não fazemos o mesmo, quando repetimos com McLuhan
que “os meios de comunicação são extensões do Homem”?
Ao pé da letra, não nos integramos visceralmente ao sistema in-
dustrial, quando recebemos em nossos corpos órgãos de plástico,
coração, dentes, rins, pernas artificiais? No limite, é possível susten-
tar a ideia de que a até mesmo a vida biológica e individual seja um
valor. Isto é, a cogitação de que cada sociedade ofereça a seus mem-
bros as razões pelas quais vale a pena viver ou deixar de viver. Nisso
tudo existe uma linguagem quase tão rica e inconsciente como a
dos sonhos. E tão coletiva como qualquer outra. Uma linguagem
que nos fascina pela delícia intelectual de a decifrar e compreender.
*
Alguns conhecimentos relativos à possibilidade de compreender
esta linguagem dos corpos estão estabelecidos de modo tão crista-
lino, que podem inclusive ser enunciados de maneira inequívoca
e categórica. Em primeiro lugar, o corpo humano é muito menos
biológico do que normalmente se pensa. Em segundo lugar, o cor-
po humano é muito menos individual do que costuma postular o
pensamento influenciado pela visão de mundo de nossa cultura, sob
todo o peso do individualismo que a caracteriza.
Sabemos hoje claramente que o procedimento tradicional de
retirar um corpo de seu ambiente de coexistência, interná-lo em
um laboratório, submetê-lo a dissecações e vivissecções, dista muito
de ser satisfatório para o entendimento de animais, de plantas e até
de micro-organismos. Este procedimento acredita surpreender, no
íntimo de sua interioridade, aquilo que faz de um corpo algo vívido
- como se a vida fosse propriedade privada do organismo individu-
al. Com muitíssimo menor razão podemos continuar a admiti-lo
como procedimento que pretenda conhecer o corpo humano.
Sabemos hoje, com toda tranquilidade, em terceiro lugar, que o
corpo humano é socialmente construído - como tentamos ilustrar
nas páginas precedentes. Nessa direção, poderíamos meditar, por
exemplo, sobre o significado antropológico de alguns meninos sel-
vagens que haviam sobrevivido convivendo com animais até serem

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Questões sobre a ética e a inocência do método

reencontrados, beberem água por lambidas e farejarem os alimentos.


Além disso, talvez imitando seus companheiros, não apresentavam
postura ereta nem se locomoviam sobre os quatro membros. Isto
quer dizer que algo tão fundamental e característico, algo tão “na-
tural” ao homem, algo tão presente nos manuais de antropologia
física, como a posição ereta e o andar bípede, não resulta apenas de
uma natureza humana biologicamente dada, mas também de uma
construção social. É obra da presença de outrem e - sobretudo, tal-
vez - de seu estímulo.
Quarto ponto: sendo em grande medida uma construção so-
cial, o corpo humano apresenta as características dos fenômenos
culturais. Principalmente, ele é relativo: varia entre as sociedades e,
dentro de cada uma delas, segundo os grupos, segundo os indivídu-
os, segundo os contextos e de acordo com os vários momentos das
biografias. Também é histórico: transforma-se segundo os diferentes
tempos de indivíduos, grupos e sociedades.
Quinto ponto: as sociedades constroem os corpos. Mas, como
sabemos principalmente depois da publicação de Vigiar e Punir, de
Michel Foucault (1975), a recíproca é verdadeira - pois uma socieda-
de faz sua vida, fazendo os corpos em que existe. Mais radicalmente,
talvez fosse mesmo possível afirmar que os corpos de seus membros
constituem a única materialidade efetiva de qualquer sociedade. Ela
só existiria nos corpos em que adquire vida: em músculos, em fibras,
em tendões, em nervos, em neurônios, em sensibilidades, em resis-
tências, em habilidades, em desejos, em temores.
*
Sendo o corpo em grande medida uma instituição social, pode-
mos dele dizer que possui história. Não uma história geral, envol-
vendo todos os corpos de todos os tempos e de todas as sociedades.
Mas uma história específica, de um corpo de uma sociedade parti-
cular. Uma história definida, que é solidária às transformações no
tempo de outras instituições desta mesma sociedade. Simples com-
preender: nossos corpos de hoje não são os de ontem.
Qualquer dentre nós, que se lembre de um passado mais ou
menos recente, poderá reconhecê-lo sem dificuldade. Há quarenta
ou cinquenta anos, sentavam-se as mulheres como muitas vezes o
fazem hoje, abrindo as pernas, mostrando as coxas? Deixavam-se

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

tocar corporalmente com menor dificuldade, distribuindo beijos a


homens apenas recentemente conhecidos? Falavam de modo mais
“livre, leve e solto” sobre relações sexuais, menstruação? Exibiam
os corpos com desembaraço? Sobre concepção de relações entre os
sexos, há apenas poucas décadas, era possível ouvir de uma mulher a
expressão comi fulano? Até tempos bem recentes os homens (ativos)
“comiam”; as mulheres (passivas) “eram comidas”.
Percebemos facilmente esta história corporal evocando os anti-
gos namoros. Quanto esforço para “segurar” ou “pegar” nas mãos
da amada! Quanto sofrimento até o primeiro beijo! Sexo, que es-
cândalo! Para cada condição ritual dos casais, uma gestualidade em
público: namoro mais ou menos sério, mãos dadas, dedos entrela-
çados; noivado, braços masculinos por cima dos ombros femininos;
casamento, passeios pelas praças, braços dados. Na dança, o rosto
colado dos namorados, braços caídos, dedos entrelaçados. Casais
“mais ousados” se atreviam a manter as mãos entrelaçadas, ergui-
das, apertadas à altura dos ombros, junto ao tórax. Dançar abraça-
do, com todos os braços e pleno contato das superfícies corporais,
assinala nessa história um momento de maiúscula libertação e de
desafio ao estabelecido: “conquista” de cuja importância as formas
posteriores de dança (corpos separados) vieram a fazer pouco caso.
Os que viveram há meio século no Brasil terão recordação da
dança como uma batalha singular e como lembrança de um mo-
mento esdrúxulo: os homens se esforçando para trazerem as mu-
lheres para perto de seus corpos; estas, tentando manter um afasta-
mento “decente”. Batalha física: mãos esquerdas femininas forçando
para trás o ombro do parceiro, de modo a controlar o contato das
caixas torácicas; nádegas femininas prosaicamente projetadas para
trás, pretendendo evitar intimidades maiores entre os territórios pél-
vicos. Batalha patética: missão equívoca que os comandos da mora-
lidade destinavam ao exército feminino, de impedir que o símbolo
se referisse de modo exageradamente ostensivo à coisa simbolizada.
Surda batalha, que hoje soa ridícula: dramatização involuntária e
grotesca das contradições de uma mentalidade corporal em estado
crítico e prestes a se transformar.
Hoje costumamos dizer que houve “liberação” do corpo, que
conseguimos em grande medida libertá-lo, embora restem “con-

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Questões sobre a ética e a inocência do método

quistas” a realizar. Talvez, no plano biográfico-individual, os movi-


mentos de transformação das concepções de corpo tenham se apro-
ximado do que entendemos por “liberdade”, de nosso conceito de
liberdade. Mas, no plano histórico abrangente, que conceito é este?
Sob a sensação de liberdade e gozo corporais, não estaríamos nos
deixando enredar nas teias da submissão, dando aos poderes a opor-
tunidade de realizar em nós a sua suprema consagração? Nessa “libe-
ração”, não poderíamos ver a mais insidiosa manifestação do poder,
que é fazer aceitar como desejável e agradável o que em realidade é
obrigatório? Se as respostas a estas questões forem positivas, então é
plausível que estejamos vivendo em relação à “liberação” corporal,
algo como uma mistificação. Neste caso, com que finalidades e com
que sentido?
*
Seria possível discutir a questão em múltiplos planos. Encontra-
ríamos seguramente contradições entre eles e seríamos obrigados a
admitir que este problema não comporta solução absoluta ou mono-
lítica. Não obstante, movidos apenas pela intenção de colocar efer-
vescência na polêmica, poderíamos desenvolver reflexão que partisse
de algumas concepções corporais vigorantes na Idade Média e que
procurasse compreender suas transformações em função de eventual
paralelismo com as grandes modificações da ordem sociopolítica.
Que nos espera no ponto de partida? Nos espíritos medievais,
uma rede cerrada de correspondências entre a anatomia e a fisiolo-
gia humanas, entre as diferentes idades da vida e o tempo cósmico,
remetia a um sistema mais abrangente de correspondência entre o
micro e o macrocosmo, entre a individualidade, a sociedade e o
universo. Em escala reduzida, o corpo continha a comunidade, os
desígnios divinos, a ordem cósmica. Todo um conjunto de interde-
pendências e interinfluências podia ser constatado entre signos do
zodíaco, fases da vida, estações do ano, qualidades sensíveis, tem-
peraturas, cores, humores, condições humanas... Com tudo isso o
corpo formava uma unidade. Não a de hoje, por exclusão e distan-
ciamento, governada por uma lógica própria. Mas a unidade de um
amálgama, por fusão e interpenetração.
Lembremos: esta é uma época em que morrer ainda é intensa-
mente “dormir”; o tempo em que o “creio na ressurreição da carne”

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

ainda tem a seu favor toda a força e o fervor da fé. Nesse corpo me-
dieval, o espírito e a matéria não se separam. Ainda não se os pensa
como fadados respectivamente à eternidade e à degradação. Impli-
cam-se simbolicamente por uma lógica de metáforas e de metoní-
mias, para nós, hoje, difícil de compreender: tudo o que se fizesse
à matéria era ao espírito que pelo mesmo gesto se fazia e vice-versa
- um pouco como rasgar o verso de uma folha é destruir também o
seu anverso.
Por esta lógica, atribuía-se sentido à tortura e à dor: a punição
sobre o físico era também sobre a alma, podendo inclusive poupar
sofrimentos ulteriores ainda mais rigorosos. Por esta lógica, com-
preendia-se a ida de cadáveres aos tribunais, se crimes fossem des-
cobertos depois da morte de seus autores; também se explicava a
superposição de várias penas de morte sobre uma mesma pessoa:
a união corpo-alma e a responsabilidade social não cessavam com
o falecimento. Aí está também a razão pela qual os filhos de uma
viúva muitas vezes fossem atribuídos ao finado marido.
Por esta coordenação de ideias e sentimentos se recusava a cre-
mação e se a considerava prática de bárbaros pagãos, digna apenas
de criminosos graves, de hereges sacrílegos. Pelas premissas dessa ló-
gica, repudiava-se veementemente a dissecação, a abertura (ou pro-
fanação) do corpo humano com a finalidade de observação. Nesse
tempo, o olhar científico, presidido pela oposição sujeito/objeto de
observação, não havia ainda conquistado legitimidade social. Nada
a estranhar, pois, no fato de que os primeiros a serem dissecados
tivessem sido exatamente indivíduos condenados, aqueles a quem
a infâmia já houvesse desprovido do respeito. Mesmo assim, as
dissecações tinham lugar apenas algumas vezes por ano, em datas
predeterminadas, mediante autorização papal específica, fazendo-
se preceder e suceder de vários dias de sortilégios, destinados a
exorcizar tais gravíssimos cometimentos.
Cada corpo individual também não se separava muito nitida-
mente dos demais. Na morte, as sepulturas eram coletivas, convi-
vendo os corpos em covas entreabertas até que estivessem cheias. Os
cemitérios situavam-se nas imediações (dentro e ao lado) das igrejas.
Estas, como sabemos, eram o centro da vida comunitária medieval.
Consequência: o cemitério era também o locus central da vida co-

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Questões sobre a ética e a inocência do método

tidiana, lugar onde as proclamações públicas eram feitas, onde se


comprava e vendia, onde as pessoas se encontravam para as festivi-
dades, onde se construía o forno comunal de pão. Vivos e mortos
aí conviviam pacificamente. As reclamações e temores quanto a esta
proximidade - cheiros “insuportáveis”, “perigos” à saúde, “riscos”
de envenenamento - são muito posteriores ao período medieval, já
refletindo uma cosmovisão em crise e a emergência de novas con-
cepções sobre corpo, vida, morte, individualidade...
Na vida, os corpos medievais também não se separavam de
modo nítido. A casa típica de um camponês era de um único cô-
modo, no qual as diferentes funções cotidianas se superpunham: aí
se cozinhava, aí se dormia, aí se praticavam relações sexuais, aí se
trabalhava, aí se fazia a higiene corporal... No castelo também não
se dividia funcionalmente o espaço, como fazemos em nossos apar-
tamentos modernos: um cômodo para dormir, outro para a higiene
corporal, um para preparar os alimentos, outro para receber visitas,
um para ingerir os alimentos, outro para excretá-los... Não. Nele
habitava um grupo mais ou menos extenso de parentes e agregados,
dividindo os cômodos mais ou menos como se utilizavam as casas
de um único: cada um era multifuncional.
A ideia de privacidade ainda não se consagrara e o individu-
alismo burguês ainda não preponderava. O surgimento da cama
envolvida em cortinas ilustra bem, como documento revelador,
este tempo, esta mentalidade e sua transformação: ela surgia para
proteger a intimidade do casal, certamente de outros habitantes do
mesmo cômodo; mas o fazia de modo precário e tímido, ao mos-
trar que “intimidade” neste contexto define-se principalmente pelo
controle das informações óticas, desprezando os ruídos, os odores e
tudo mais.
Estes eram tempos em que o corpo não era algo privado, pelo
menos no sentido que hoje emprestamos a este termo. Foi preciso
esperar o ano de 1652, para que Philippe Ariès, o grande historiador
dessas questões, pudesse encontrar um primeiro testemunho expres-
sando taxativamente o desejo de que o “meu corpo e o de minha
esposa sejam transportados à minha igreja: aí eles serão colocados
no jazigo da minha capela que eu aí mandei construir... aí serão
rezadas missas todos os dias, em minha memória e em memória de

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minha mulher”. Foi preciso esperar a época deste testador, para que
as sepulturas individuais começassem a se multiplicar. E aguardar os
séculos XVIII e XIX, para que a paisagem familiar de nossos cemi-
térios se banalizasse e se transformasse em direito individual: incon-
táveis sepulturas, para incontáveis mortos, cada um proprietário de
seu corpo e de sua morada.
Na vida, as coisas não eram diferentes. Ligados aos feudos, os
corpos não podiam ir e vir, bandeira fundamental do conceito de
“liberdade” desde os primeiros comerciantes burgueses. “Meus fi-
lhos” ou “minha mulher” não eram os lugares por excelência da
afetividade - posição que ocupariam mais tarde, como consequência
da ruptura capitalista dos laços que teciam a comunidade: minha
família e minha mulher são hoje os farrapos que restaram de um
mundo em que os contatos primários, as relações afetivas e face a
face davam a tônica. Não é à toa, pois, que as canções de hoje, os
filmes, as novelas da televisão, de tão grande apelo emocional, não
falam a nós de outra coisa: ruiu a comunidade, fragmentou-se a
família, o casamento está desmoronando... Sobra, por enquanto,
como lugar privilegiado do afeto, esta entidade de definição sexual
cada vez mais difícil: uma dupla de indivíduos - o casal.
O casal medieval era definido. Mas não se formava a partir das
mesmas premissas que o moderno. Não imperava o amor, este sen-
timento íntimo e particular, brotado daquilo que é o mais “pro-
fundo”, “essencial”, “autêntico” e “genuíno” de um indivíduo. Não
tinha lugar esta emoção suscitada apenas por um determinado e
especial outro indivíduo, minha cara-metade, minha alma-gêmea,
este que foi feito, sabe-se lá por que mágico artífice, sob medida
apenas para mim. Pelo menos não era o amor o que fundava e ci-
mentava um casal. Se afeição existisse entre marido e mulher, tanto
melhor. Mas deveria em geral ser consequência, não causa, da vida
em comum.
Romeu e Julieta, como Viveiros de Castro e Bezaquem de Araú-
jo(1977) demonstraram, ilustram a emergência do sentimento mo-
derno de “amor” (profundo, íntimo, individual, especial, possessivo,
às vezes louco). Por isso, Romeu e Julieta são marginais, desviantes
em relação a seu tempo. Discrepam e contradizem a normatividade
social, querem sobrepor seus sentimentos individuais aos desígnios

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Questões sobre a ética e a inocência do método

coletivos. Heróis fundadores de uma nova sentimentalidade, triun-


fam no amor - mas fracassam na vida: autodestroem-se pelo suicídio.
O corpo material não era visto do mesmo modo que nos habi-
tuamos a concebê-lo hoje em dia. Não se esperava dos médicos, por
exemplo, que adiassem a morte de uma pessoa, que prolongassem
artificialmente a vida: pareceria isso às mentalidades medievais uma
blasfêmia, uma ofensa à vontade divina, um contrassenso a adiar
os prazeres do paraíso. Apenas por volta dos séculos XVII e XVIII
é que começarão a se desenvolver de maneira mais intensa os inte-
resses dos indivíduos pelos meios de “se sentir bem”, de “conservar
a saúde”, de “prolongar a vida”, de perceber os sintomas e sinais das
doenças.
Tais interesses são já os de uma nova classe. Desejos de pessoas
que se recusam a deixar esta vida. Caprichos de homens que querem
ir até o fim de suas forças. Sonhos de pessoas que pretendem morrer
“em atividade”. Uma classe de pessoas que mais tarde pretenderão
ser sempre jovens, imortais e, se possível, conquistar a eternidade
aqui mesmo, neste mundo mesmo. Para este fim, elas se dispõem a
pagar médicos, clínicas e mais tarde institutos de rejuvenescimento.
Tudo isso porque viver passou a ser um meio de capitalizar e acu-
mular.
Emancipando-se da submissão ao poder feudal, os burgueses
vão tomando posse de seus próprios corpos. Posteriormente farão
o mesmo com os corpos alheios, modelo que irá se reproduzir por
volta do século XVIII, tendo por protagonistas artesãos que farão
florescer multidões de pequenas empresas individuais-familiares,
nas quais o mais fundamental dos meios de produção será o corpo.
Este artesão é seu próprio patrão, seu próprio senhor e explorador.
Ele se possui, porque detém seu corpo como meio de produção. É
claro que hoje, quando consideramos globalmente as pressões do
sistema sociopolítico, reconhecemos facilmente que este autopos-
suir-se não passou de ilusão. Pouco importa: esta ilusão produziu
uma sensação de autonomia e sobre ela se edificou o individualis-
mo burguês, com todos os seus correlativos no que diz respeito às
concepções corporais.
Este foi um primeiro episódio, historicamente fundamental:
a conquista do corpo e sua transformação em propriedade indi-

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

vidual e privada de burgueses e poderosos. Um corpo-produtor,


corpo-instrumento, de que os burgueses são os primeiros sujei-
tos. Corpo a ser treinado, disciplinado, alimentado, fortificado,
conhecido. Corpo que deve rentabilizar, frutificar. É também o
corpo a que os dominados deverão ser subjugados: corpo-ferra-
menta, corpo-alienado, corpo que se troca por um salário. Corpo-
mercadoria.
Eis o que veio a dizer sobre este corpo em 1925 certo Dr. Ha-
cket, em seu livro Health Maintenance in Industry:

A saúde dos trabalhadores deve ser mantida e melhorada enquanto


meio de produção... Frangos, cavalos de corrida, macacos de circo
são alimentados, alojados, treinados e mantidos no mais alto nível de
força física para assegurar um rendimento máximo em suas funções
respectivas. O mesmo princípio se aplica aos seres humanos. Um au-
mento da produção só pode ser esperado dos trabalhadores se se atri-
buir uma grande atenção a seu ambiente físico e às suas necessidades.

Nesse contexto, “melhoria” das condições de trabalho, alimen-


tação “decente”, “redução” da jornada de trabalho, vacinação obri-
gatória, previdência social, “incremento” das condições de saúde
e habitação, “democratização” da educação terão sido, realmen-
te e apenas conquistas dos trabalhadores? Ou tratar-se-ia aqui de
algo muito mais complexo, em que a “libertação” em relação aos
estágios anteriores do sistema corresponderia, ao menos sob certo
prisma, a embeber-se de mais e mais sistema, recebendo como de-
sejável aquilo que afinal de contas é compulsório? Na melhor das
hipóteses é nebulosa a fronteira entre a conquista, pelos trabalha-
dores, do direito a uma corporeidade sã e a sujeição à obrigatorie-
dade de zelar pelo bom estado de funcionamento do instrumental
da fábrica.
*
Nesta história do corpo moderno, há também um segundo ato.
Nele se tematiza a trajetória do corpo-meio-de-produção, despre-
zado enquanto tal por sua incapacidade de atender integralmente
às ambições do sistema. Na economia capitalista, a regra é lucrar,
lucrar, acumular, acumular. Não se visa a produzir coisas, mas
30
Questões sobre a ética e a inocência do método

mercadorias. O corpo se esgota relativamente cedo como ferra-


menta adequada à expansão máxima da economia: o sistema se
torna industrial, o que significa fundamentalmente substituição
do transpirar de músculos pelo trabalho de máquinas.
Insatisfatório aos olhos do sistema produtivo, o corpo poderá,
ser “liberado” e substituído por trabalho morto. Quer dizer, por
máquinas capazes de mais adequadamente se ajustarem aos ideais
de progresso do sistema, além de serem, é claro, mais docilmente
controláveis. Neste segundo episódio, quanta diferença no que diz
respeito à “liberação” relativa ao corpo-ferramenta, obrigado a se
consumir nas fábricas, submetido a jornadas de até vinte horas! Eis
agora um corpo liberado de produzir.
De novo, e não por coincidência, os pioneiros desta “conquista”
serão os poderosos e seus seguidores, os burgueses e seus prepostos
diretos. Serão eles os primeiros a reduzirem suas jornadas de trabalho
e libertarem seus corpos do vaivém rítmico das máquinas e da mono-
tonia das linhas de montagem. No entanto, é a todos que se promete
o sonho desta libertação: faz parte das utopias contemporâneas, à
direita e à esquerda, o belo dia em que todos estarão liberados das
fadigas do trabalho, em que tudo será feito pelos botões das máqui-
nas e até mesmo por máquinas que acionarão botões e produzirão
máquinas.
Este sonho é absolutamente necessário, se se quiser compreender
a “liberação” corporal. Sabemos muito bem hoje que é uma ingenui-
dade acreditar que a alienação do trabalhador se reduza a uma sim-
ples questão de relações patrão-empregado e que deva desaparecer es-
pontaneamente com a abolição das relações de classe e da exploração
do homem pelo homem. As coisas não são tão simples, infelizmente.
É verdade que o operário não tem direito algum sobre o produto
de seu trabalho. É verdade que os artefatos que fabrica não têm
referência alguma a ele, constituem um mundo que lhe é estranho
e mesmo hostil, agredindo-o muitas vezes como a um inimigo. É
verdade que o homem que trabalha neste sistema, sendo explorado,
aliena-se em e por seu trabalho. Ainda por cima o resultado de seu
labor lhe é mostrado, ao final, não como resultante de seu esforço de
produção, de sua labuta corporal e/ou intelectual, mas como decor-
rência mítica da “tecnologia” e do “progresso”.

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

Tudo isso é verdade. Não obstante, muito além disso, não pode-
mos esquecer que as usinas, fábricas, oficinas e escritórios modernos
são projetados tecnicamente e organizados para que em seu espaço
qualquer invenção criativa, qualquer gesto deslocado, qualquer ma-
nifestação espontânea de vida não programada seja impossível. Não
podemos subestimar que os corpos neles inseridos são devorados
por encadeamentos medidos segundo o ritmo das máquinas e das
agendas, ritmos que determinam a priori e exteriormente todos os
gestos. Ritmos que transformam progressivamente os trabalhadores
em complementos das engrenagens.
Insatisfatório para o sistema produtivo e insatisfeito com seu
lugar no mesmo, o corpo deverá progressivamente sair das fábri-
cas. Neste segundo ato, não é mais o corpo-ferramenta que ocupará
o proscênio. Nesta civilização de abundância industrial, de lazer e
consumo, o corpo terá, doravante, nova tarefa: a de ser o suporte
material e ideológico da produção. Não mais se queimando como
carvão nos fornos das usinas, mas digerindo mercadorias, destruin-
do-as e aniquilando em escala industrial, para que novas levas pro-
dutivas tenham lugar.
Aí está o novo corpo, agora ponto fundamental de articulação
da produção com o consumo, agora ponto crucial da re-produção do
sistema. Aí está o novo corpo, agora plenamente “livre”, estetizado,
vestido, curtido, ginasticado, medicalizado, indo e vindo. Cada par-
te deste novo corpo - das unhas (esmaltes, lixas, alicates...) aos fios
de cabelo (xampus, rinses, secadores...), do estômago (alimentos,
digestivos, restaurantes...) aos órgãos sexuais (talcos, cremes, deso-
dorantes, preservativos...) - cada ínfima parte se transformou em
consumidor especializado.
Surge daí um corpo aparentemente liberado do dever. Um cor-
po destinado às férias e às horas livres, voltado para o lazer, o prazer
e o gozo. Um corpo belo e liso, sem calos nem cicatrizes. Corpo
sem signos de trabalho, corpo sorriso, corpo publicitário. “Livre”
do constrangimento de ser alugado como meio de produção, “li-
berado” da submissão ao ritmo exterior das correias e alavancas.
Finalmente o corpo da sociedade industrialmente avançada: inteira-
mente “meu”. O corpo de quem sabe o que quer, de quem pode ir e
vir, de quem consegue gozar, de quem é dono do próprio nariz, de

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Questões sobre a ética e a inocência do método

quem está na sua, de quem é aberto e sem preconceito. O corpo que


pertence a quem tem sucesso, toma decisões inteligentes, aprecia o
sabor de aventura e os raros prazeres.
Enfim, o meu corpo - sem que o possessivo contenha pleonasmo.
Finalmente, todos com seus corpos: eis a utopia maior. Cada um com
a sua originalidade, genuinidade, especialidade; cada um com sua in-
dividualidade, com seus próprios limites, seu território à parte que
deve ser preservado. O direito de cada um começa onde termina o do
outro: é por isso que, nas línguas das sociedades industrialmente de-
senvolvidas, devemos pedir desculpas ao interlocutor desconhecido,
quando lhe dirigimos a palavra, quando tocamos involuntariamente
em seu corpo ou em algo seu. É preciso não misturar e confundir as
identidades individuais: no final do processo, não mais todos com seus
corpos e suas sepulturas, mas com seus xampus, seus vestimentos, seus
apartamentos, seus grilos, seus direitos, seus para-brisas, seus pneus, seus
inconscientes, seus amores, seus tempos, seus, seus, seus...
Enfim, o corpo meu, individual. Mas também o corpo banal,
medíocre, corriqueiro, comum. O corpo “original”, da sociedade
em que a originalidade, procurada por todos, banalizou-se. O corpo
“extraordinário”, do mundo em que a excepcionalidade, buscada por
cada um, se transformou em regra geral. O corpo “individual”, de
um contexto em que a coisa mais comum e coletiva é exatamente o
individualismo.
Ironia: no momento em que narcisisticamente contemplo e cul-
tuo minha individualidade “própria”, no momento em que a pro-
movo, investindo nela e transformando-me em empresário de mim
mesmo, descubro que esta é a maneira de ser o mais medianamente
parecido com todo mundo. Este é o corpo-consumidor, de uma so-
ciedade em que a liberdade se define pela possibilidade de optar, de
escolher segundo preferências individuais. Mas é também o corpo de
uma sociedade em que não é possível não optar. Corpo de um mun-
do em que as tendências sexuais, por exemplo, podem se manifestar
“livremente”; mas também em que é obrigatório que se manifestem.
Corpo de um tempo em que finalmente o orgasmo pode ser “atingi-
do” ou “conseguido”; mas também de um tempo em que é vergonho-
so e culposo não o “atingir” ou “conseguir”. Corpo de um sistema em
que se cultuam as individualidades, de um sistema que se pulveriza

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

em miríades de indivíduos, cada um com seu corpo, cada um “na


sua” - mas em que todos são paradoxalmente impotentes enquanto
indivíduos.
Este é o corpo do qual se pensa que em breve estará liberado de
morrer. O corpo que, segundo os devaneios, não perderei jamais.
Afinal, ele não é como que formado de peças substituíveis, passíveis
de regeneração estética, cirúrgica ou genética? Tal corpo só morrerá
por acaso: se eu esquecer de fazer ginástica, check-up rotineiro, die-
tas... Mas, mesmo nesta hipótese, restará ainda a possibilidade de
congelá-lo e o conservar, até que a ciência venha a dispor dos meios
de livrá-lo da disfunção de que teria quase morrido.
Criogenizado, conquistarei até a eternidade o gozo do meu cor-
po, aqui mesmo, continuando a consumir os prazeres desta vida. E
consumindo desbragadamente, porque o suposto realmente atuante
é o de que nada é esgotável: nem a vida individual, nem a natureza
que se explora com a voracidade da indústria. Suprema manifesta-
ção da audácia humana, o congelamento por criogenização expri-
me com rara nitidez até onde pode ir a ideologia individualista de
nossa sociedade: os laços afetivos concretos não importarão mais,
os amigos, os companheiros, ficarão para trás ou deverão ser des-
cartavelmente substituídos. Só a vida corporal individual interessa.
Perguntas sobre se a vida após o degelo valerá a pena, sobre onde
estarão os amigos de antes, a mulher, os filhos, absolutamente não
se formulam. Como também não se questiona sobre se haverá lugar
no planeta para as gerações futuras.
No plano histórico, a criogenização e mais recentemente os
delírios de clonagem humana delineiam o que é imperceptível no
nível biográfico-individual. Embora de modo tendencial e ainda
indicativo, neles se esboça um futuro já sutilmente contido no pre-
sente do corpo “liberado”: o tempo paralisado, a história apagada,
a permanência exaltada, o poder divinizado - tudo isto sob as vestes
do “prazer” e do “desejo”. Poder pleno, apoteótico, para o qual mais
progresso será totalmente desnecessário.

34
Questões sobre a ética e a inocência do método

Referências Bibliográficas

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gem do Estado”. In Arte e sociedade. O. Velho (org.). Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

35
Da inocência do método ao método da
inocência

Stelio Marras2

A natureza tem mil vozes, e nós somente começamos a escutá-la


Isabelle Stengers e Ilya Prigogine

A nova aliança: a metamorfose da ciência

Se assumo que toda reflexão é interessada e endereçada, a que


esboço neste artigo tem origem no mote do seminário “Aventu-
ras antropológicas no campo da saúde: questões sobre a ética e a
inocência do método”3. Pois é em face desse mote que nomeio o
presente artigo – embora título ou chamado mais provocativo do
que imediatamente conceitual. Se, ao que me parece, o campo
da saúde, pleno de fenômenos emergentes, figura como parti-
cularmente propício para propor a provocativa substituição da

2. Professor e pesquisador de antropologia do Instituto de Estudos Brasileiros da


USP (IEB/USP) e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da USP (CES-
TA/USP).
3. Sou muito grato aos professores da UNESP Leila Marrach Basto de Albuquer-
que (Departamento de Educação Física do Instituto de Biociências de Rio Claro,
SP) e Rodolfo Franco Puttini (Departamento de Saúde Pública da Faculdade de
Medicina de Botucatu, SP) pelo convite para participar do referido seminário, pro-
movido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Motricidade da UNESP
de Rio Claro, e que teve como consequência a emergência de reflexões que estão
na origem deste artigo.
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

inocência do método pelo método da inocência4, hoje sabemos


que a suposta instabilidade ontológica dos agentes-em-relação
não é realidade exclusiva desse campo – senão bem ao contrário,
ela é constitutiva de toda atividade científica, cujo encantamen-
to deriva precisamente daí. Meu argumento aqui pretende indi-
car a proposta de substituirmos as certezas inocentes do méto-
do científico clássico (embora certezas estas nunca sem efeitos, e
muitas vezes nocivos) pelas incertezas das ciências em seus desdo-
bramentos contemporâneos (cujos efeitos queremos visar), estas
que podem emergir se por exemplo nos inspiramos na figura não
menos provocativa do idiota, este “personagem conceitual” que
a filósofa belga Isabelle Stengers recupera de Gilles Deleuze, que
por sua vez a emprestou de Dostoievski. Sirvo-me aqui da apro-
priação de Stengers, segundo a qual o idiota guarda a potência
de nos fazer pensar porque sua recusa sistemática em aderir ao
que quer que seja posiciona-o nos interstícios do saber. Pois é
precisamente nesses interstícios que um infinito de possibili-
dades de composição do mundo pode vir à tona e assim arejar
nossos saberes e nossas práticas. Para Stengers, “o idiota requer
que não nos precipitemos, que não nos sintamos autorizados a
nos imaginar detentores da significação daquilo que sabemos.”
(STENGERS, 2007: 47 – tradução minha).
Apenas recorro a essa figura radical do idiota para abrir caminho
a interrogações que antecedam aquelas normalmente disparadas a
partir de campos estabelecidos do saber. Ou dizer: experimentar
mais interrogações antes de se aplicar em afirmações. A intenção
é tentar aproximar a postura do idiota à do inocente – ao inocen-
te tal como aqui vou forjando. Como idiota ou inocente, trata-se
de buscar extrair daí um ensinamento de grau zero, por assim di-
4. Situo o campo da saúde como estrategicamente análogo ao lugar privilegiado da
biologia como ciência que pode instruir outras ciências naturais (mais duras, para
ainda nos referirmos a essa divisão) no que se refere ao reconhecimento de comple-
xidades que não se deixam capturar tão facilmente pelos reducionismos científicos
da modernidade, pelas purificações críticas prematuramente formadas (LATOUR,
1991), estas que separam, antes da experiência, o que seria o natural e o social, o
genético e o ambiental, o dado e o construído. Remeto a Ernst MAYR (2005) esse
destaque da biologia, bem como sua promessa filosófica, entre as ciências naturais.
38
Questões sobre a ética e a inocência do método

zer. Isto é, saber aprender antes de ensinar. Ou que essa figura nos
ensine a aprender continuamente. Ensejo, enfim, para lançar uma
pequena contribuição à difícil, mas cada vez mais urgente, tarefa de
desestabilizar as fronteiras que a modernidade ergueu e que foram
produtivas até bem pouco tempo. Refiro-me à “Grande Divisão”5
(LATOUR, 1991) de forças – naturais, de um lado, e sociais, de
outro – que deu origem à separação do conhecimento entre ciências
naturais e ciências sociais6. Refiro-me, em especial, ao modo como
Bruno Latour, antropólogo da ciência e dos modernos, propõe ca-
racterizar a modernidade.
Resumidamente, a modernidade que LATOUR (1991) nos
apresenta diz respeito a um arranjo paradoxal de duas práticas: essa
da separação oficial entre forças naturais e forças sociais, e outra,
oficiosa, que mistura os mais heterogêneos agentes em composições
experimentais de toda sorte de agências e forças, de modo a que
um fato seja aí produzido, mas desde que essa produção venha a se
purificar como revelação natural ou construção social. O paradoxal
é que essa produção participativa (isto é, produção a partir da troca
de propriedades e credibilidades entre coisas e pessoas), ela não pode
aparecer como tal: uma entidade surgida em laboratório não pode
aparecer como produção humana, e sim como descoberta ou revela-
ção que as ciências teriam o condão de trazer à luz. Elas trazem à luz,
mas é como se7 este seu feito de trazer os fatos à luz, quando então
bem sucedido, não pudesse ser concebido como fabricação. O tabu
modernista remete assim à prática de proibir a concepção de formas
5. Ou rompimento da Velha Aliança animista que PRIGOGINE e STENGERS
(1984) tematizam.
6. Momento decisivo desse acordo de cavalheiros, que teve na controvérsia do sécu-
lo XVII entre Robert Boyle e Thomas Hobbes um emblema, pode ser acompanha-
do no luminoso livro de SHAPIN & SCHAFFER (1985). Note-se que essa obra
foi fundamental para a argumentação de LATOUR (1991)
7. Cf LATOUR (1991) sobre a produtividade da “Constituição Moderna”, cujo
arranjo se serve decisivamente do expediente do “como se”, de modo a que o pa-
radoxo moderno (esse que afirma que o real é feito, mas é “como se” não o fosse,
assim garantindo a um só tempo a experimentação híbrida e sua purificação em
forças sociais ou naturais pré-estabelecidas) não se paralise em contradição (ou não
se paralisava quando tínhamos mais confiança em nossa modernidade).
39
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

mistas como condição para que essas formas ganhem realidade ofi-
ciosa no curso das experimentações científicas – tais as que ocorrem
nos laboratórios de ciências naturais. Conforme entende LATOUR
(1991), esse arranjo moderno permitiu a proliferação científica de
híbridos em termos de formas puras (sociais ou naturais). Ainda
como modernos (que misturam o que quer seja sob a garantia de
que essas misturas se purificarão em forças da Natureza ou da Socie-
dade), nós pensamos ou concebemos esses híbridos aí produzidos
como intermediários de fatos ou artefatos.
A primeira vez que ouvi essa palavra, “artefato”, foi no interior
de um laboratório de genética durante o meu doutorado (MAR-
RAS: 2009). A pesquisadora lamentava que sua experiência tinha
sido “artefatada”, isto é, tinha malogrado em erro. De fato, esse jar-
gão de laboratório está previsto no dicionário (HOUAISS: 2002):
em sua semântica geral, artefato é “uma conclusão enganosa deri-
vada de ensaio científico ou de medição, e causada por problemas
na aparelhagem empregada ou por ineficácia do método eleito.” Na
rubrica da antropologia e da arqueologia, ainda conforme o dicio-
nário, artefato refere-se à “forma individual de cultura material ou
produto deliberado da mão-de-obra humana”. E na rubrica da cito-
logia, artefato aparece como “qualquer alteração na estrutura ou no
estado das células, causada por manipulações de laboratório; artifí-
cio”. Todas essas acepções guardam como semelhança a manipulação
humana. Em ciências naturais, aí onde o humano deve ser purificado
do não-humano, artefato é sinônimo de erro, de engano. Assim, se a
experiência alcança sucesso, candidata-se a fato; se não o alcança, tal
se deve a erros de manipulação técnica humana: é artefato. Ou seja,
quando o experimento tem sucesso, o humano desaparece; quando
não, aí então o humano aparece, mas negativamente, como aquele
que se enganou na manipulação, se desviou do caminho reto rumo
ao fato, à descoberta, à revelação da natureza exterior. É esse, portan-
to, o “raro sucesso que constitui a definição dos objetos científicos”,
escreve Isabelle Stengers, “a possibilidade de associar a eles aquilo de
que temos experiência” 8. Ou seja, a percepção da natureza não pode
8. A citação provém da resenha de ROQUE (2008: pp. 107-8) a propósito do
livro de STENGERS (2002) sobre o filósofo Alfred N. Whitehead: Penser avec
Whitehead: une libre et sauvage création de concepts. Filósofo dos processos e das
40
Questões sobre a ética e a inocência do método

aparecer como dependente da mediação humana, tampouco como


representação simbólica ou cultural – e assim deve ser como condi-
ção para que o conceito mesmo de natureza aí se afirme. Trata-se de
esforço para livrar o conceito de sua ambiguidade constitutiva, esta
de ela ser e não ser dependente do desiderato humano.
Faço aqui essa pequena digressão para insistir sobre a produ-
tividade desse par fato puro/artefato poluído para os modernos9, tal
como Latour bem parece compreender. Ora, é justamente porque
os modernos, visando a produção em escala, estávamos proibidos
de trazer a multiplicidade das formas e forças dos híbridos para a
representação política (ou melhor: representação cosmopolítica10),
que nós então não podíamos tomá-los senão como “intermediários”
(LATOUR: 1991): ou se purificariam em fatos ou se poluiriam em
artefatos – ou verdade ou erro. Tais garantias (misturar para purificar
e vice-versa) liberaram uma energia inédita e permitiram acelerar a
produção e proliferação desses híbridos sem maiores consequências:
não haveria criação científica de qualquer monstro indomável que
viesse nos ameaçar porque esses monstros logo seriam reduzidos a
forças puramente naturais ou sociais – nunca uma e outra, nunca
mediadores que alcançassem autonomia e devir próprios, e que es-
capariam do quadro constitucional que lhes dá origem. No caso da
produção de objetos técnicos e naturais, algo seria tanto mais dado
ou fato quanto mais se subtraísse dele o investimento humano. Toda
adição humana apenas seria aí considerada positivamente se a poste-
riori, e somente assim, ela mesma fosse tomada como tendo percor-
rido um caminho unilinear e unívoco dado por leis naturais à espera
do desvelamento. Nada das essências naturais seriam creditadas aos
esforços humanos.
mediações, Whitehead é autor caro ao pensamento contemporâneo, sobretudo na
recuperação tanto de Stengers quanto de Latour.
9. Produtividade que hoje em dia encontra-se próxima da exaustão – o que nos
abre a chance, enfim, de celebrarmos uma nova era ética na produção do conheci-
mento a um só tempo não-naturalista e não-antropocêntrico.
10. Sobre o conceito de cosmopolítica que não se deixa capturar em teoria, ver o
mencionado artigo de STENGERS (2007), bem como os volumes de sua obra Cos-
mopolitiques (STENGERS: 1997). Sobre a proposta mais pragmática da representa-
ção cosmopolítica dos “quase-sujeitos”, “quase-objetos”, cf LATOUR (1999).
41
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

Contudo, toda essa maquinaria modernista tem mais e mais


encontrado seus limites. E não somente, se fosse pouco, por força da
crítica de saberes não-modernos, que, como os objetos de produção
científica contemporânea, também se insurgem fortemente contra
a ética do conhecimento monolítico que historicamente (e ainda
hoje) produziu efeitos os mais predatórios – aí incluindo, é claro,
isto que conhecemos como produtivismo e consumismo. Menos ainda
pelas críticas externas às ciências, tal como tradicionalmente feitas a
partir de uma visada não menos purificante das sociologias e filoso-
fias também modernistas (isto é, partidárias da Grande Divisão) que
se debruçam sobre as ciências. Mas sim e sobretudo pelos próprios
desdobramentos das ciências naturais, cuja produção desenfreada,
antes garantida pela purificação das duas únicas forças previamente
conhecidas e prematuramente unificadas, concorreu para os impas-
ses com que vem se deparando – é a ressaca dos sucessos obtidos até
então. Assim é que – para apenas insistir sobre os exemplos de LA-
TOUR (1991) – hoje não mais sabemos bem purificar fenômenos
como os dos transgênicos ou do aquecimento global. Não sabemos
bem classificá-los como de origem humana ou não-humana, natural
ou social. São fenômenos que explicitam (ou não permitem mais
esconder) as agências imprevistas que aí emergem.
Agora a presença cada vez mais populosa de tais híbridos11 já
nos proíbe de concebê-los como intermediários inofensivos, mudos,
submissos e desde sempre domesticados, ou como agentes de ação
e reação previsíveis, previamente deduzidos e calculados segundo a
modalidade oficial moderna de conhecimento que põe sujeito e ob-
jeto, humanos e não-humanos, como infensos um ao outro, como
incapazes de se afetarem mutuamente12. Agora o objeto de conheci-
11. Ao longo de sua obra posterior a Jamais fomos modernos (1991), Latour passou a
substituir o termo “híbrido” (noção imprecisa, porque nunca houve ente que já na
origem não fosse híbrido) por “matters of concern”, tal em oposição a “matters of
fact”, de modo a pôr atenção sobre o caráter controverso, nada liso, das entidades
– em especial, as que emergem da produção tecnocientífica.
12. Cf, p ex, LATOUR (2001) sobre a ontologização mutuamente constitutiva
entre Pasteur, microorganismos e fermentação láctea. Trata-se de fenômeno que
Latour denomina de “faz-fazer”, e que podemos aproximar à noção de “encanta-
mento”, nos termos de PRIGOGINE & STENGERS (1984).
42
Questões sobre a ética e a inocência do método

mento reclama uma “dignidade ontológica” (LATOUR: 1991) que,


digamos assim, exige situar-se na confluência modalizadora com o
sujeito que mobiliza esse objeto e é mobilizado por ele – um e ou-
tro sob provação. A hecceidade do objeto, como simetricamente
a do sujeito, já não mais se deixa capturar sem que aí se considere
a relação de devir transformador, relação de ontogênese comparti-
lhada, que os explique. É insistindo na purificação oficial moderna
entre sujeito e objeto, e recusando a relação de conhecimento cria-
tiva que emerge entre quem pesquisa e o que se pesquisa, que então
nos surpreendemos dia a dia com a série de frankensteins (ontolo-
gias quiméricas e de inadvertido perfil) despertando por todo lado
e vindo agora nos ameaçar. Como compreender tais emergências?
As soluções relativistas de tipo pós-moderno não resultam como
soluções porque se paralisam estupefatas, céticas e irônicas na acu-
sação de que toda produção (natural ou social, se ainda nos restrin-
gimos a enunciar a pureza das forças) não passa de mero artifício,
mera ficção que nada diz sobre o real. Eis porque esse pensamento
identificado como pós-moderno, que se rejubila em decretar o fim
da objetividade, só faz restaurar e generalizar a Guerra das Ciên-
cias (STENGERS: 1997; LATOUR: 2002), esta que opõe como
incomensuráveis o sujeito ao objeto, as ciências naturais às ciências
sociais, e que, surdamente ou não, ainda se bate na disputa pelo
princípio, natural ou social, que põe e define o real. Pensamento, en-
fim, que apenas petrifica o “dilema desastroso” expresso na imagem
das “duas culturas”: a humanística e a científica.13
Mas, ora, se jamais fomos modernos, então jamais houve au-
tonomia, humana ou não-humana, que se explicasse sem a sua he-
teronomia. Jamais uma ontologia veio à luz desconectada de sua
ontogênese participativa – mas participação, vale insistir, que a mo-
dernidade precisou relegar às sombras para que pudesse alcançar a
escala de produção que alcançou – para que enfim pudesse fundar
e manter, a um só tempo, o seu humanismo e o seu naturalismo.
Daí que um desafio central do pensamento e da prática contempo-
râneos, e que se recuse descansar no conforto das mútuas acusações
aguerridas do naturalismo e do relativismo, seja o de conceber a
13. Sobre esse “dilema desastroso” que conduz às “duas culturas”, cf PRIGOGINE
e STENGERS (1984).
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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

autonomia de seres e entes a partir (e não à revelia) da conexão


com a sua gênese heteronômica14. Desafio de trazer luz às sombras
como condição para flagrarmos os agentes em seus agenciamentos,
enfim permeáveis uns aos outros, reconhecê-los então como “mô-
nadas abertas”15. Desafio de ligar em continuidade a realidade da
fabricação imanente à realidade tornada transcendente do fato. Em
atenção à “restrição leibniziana”, tão a meu ver em conformidade
com uma ética antropológica, restrição que legitima a aventura do
conhecimento porque se ergue pelo ideal de não “subverter os senti-
mentos estabelecidos”16, a tarefa que pende diante de nós e reclama
direção é a de manter ao mesmo tempo a verdade da autonomia e a
verdade da heteronomia, sem que uma se afirme contrariando a ou-
tra. Tal se alinha ao chamado anti-relativista de Deleuze, aqui recu-
perado em VIVEIROS de CASTRO (2002b: 129): “não se trata de
afirmar a relatividade do verdadeiro, mas sim a verdade do relativo”,
que é a verdade do relacional, verdade das emergências, daquilo que
surge da relação mas que não podia ser previsto nos termos relacio-
nados, não antes das relações aí mesmo experimentadas.
Creio que já aqui temos o mínimo suficiente para compreender
que a natureza, por via das ciências, já não se deixa mais apresentar
como cristalina e exterior, muda e passiva, fria e neutra, autômata e
estúpida, desde sempre purificada e descendo do céu transcenden-
tal idealista para organizar o mundo sub-lunar do inferno social e
confuso dos humanos17. A natureza, cujo conceito nunca foi preciso
14. Conexão que STENGERS (1997) denomina de “ecologia das práticas”. Isto é,
exigência, doravante incontornável, essa de estudar as práticas científicas a partir de
seus lugares de origem, de suas condições imanentes.
15. Sobre as “mônadas abertas”, tal em contraste às mônadas fechadas, embora já
anti-cartesianas, de Leibniz, cf TARDE (2007).
16. Ao que bem parece, Stengers guia a sua produção filosófica observando essa
restrição leibniziana – exigência que, ela adianta (2002: 25), também é a de A.
Whitehead. Mas a restrição é estratégia diplomática e não relativista. Trata-se de
“não ferir os sentimentos estabelecidos a fim de poder tentar abri-los [ou seja, não
encerrá-los em contornos cognitivistas auto-referentes e intransitivos, como leva a
ocorrer com a solução relativista simples] àquilo que sua identidade estabelecida os
obriga a recusar, combater, desconhecer.” (Idem: 26)
17. Sobre esse papel pacificador da natureza absolutista junto aos ocidentais ao lon-
44
Questões sobre a ética e a inocência do método

ou isento de ambiguidades (para a insatisfação do pensamento cien-


tífico clássico, mas para a esperança das ciências contemporâneas
da complexidade), recusa-se doravante a ser tomada no singular,
recusa-se a dobrar-se sobre si própria em um sistema fechado, au-
to-referente ou como domínio apartado da composição coletiva do
cosmos que jamais se afirmou infenso ao humano – este que, por
sua vez e simetricamente, também jamais se estabeleceu por si pró-
prio. É como, aliás, podemos depreender do pensamento de Latour:
humanos e não-humanos não passam de resultados provisórios, suas
ontologias devendo ser ritualizadas e estabilizadas, misturadas e se-
paradas a todo tempo.
Mas outro modo de enunciar os problemas contemporâneos aí
relativos diz respeito ao que bem poderíamos denominar de rebe-
lião ontológica dos seres ou entes no mundo, isto é, um fenômeno
bem contemporâneo esse das ontologias (humanas e não-humanas)
que têm se mostrado avessas às fronteiras epistêmicas disciplinares,
tais as que derivam do par mononatualismo/multiculturalismo que
constitui a modernidade. Cada vez mais, as ontologias se insurgem
não como duais (sejam elas naturais, sejam sociais ou híbridos de
ambas), mas sim como ontologicamente múltiplas, reclamando
portanto também múltiplos modos de existência – o que exige re-
formas radicais em nossas epistemologias se quisermos representar
e compreender mais fielmente essa multiplicidade. Vale frisar que
essa multiplicidade não ocorre a despeito das ciências, mas como
resultante dos esforços científicos18. Essa compreensão latouriana
encontra clara ressonância com de STENGERS e PRIGOGINE
(1984), em cujos autores apreendemos que o desenvolvimento das
ciências rumo à abordagem de sistemas complexos (termodinâmica
de processos irreversíveis, estruturas dissipativas criadoras, sistemas
caóticos na origem da ordem, instabilidade de partículas elementa-
go dos séculos (embora pacificação que nunca se deu sem realimentar as guerras de
conhecimento que sempre estiveram em suas origens e finalidades), cf SAHLINS
(2008) e LATOUR (1999).
18. Lembremos aqui o filósofo e sociólogo Gabriel Tarde (2007 [1895]), que tem sido
fortemente recuperado por autores como Eduardo Viveiros de Castro e Bruno Latour. É
de Tarde e sua neomonadologia o entendimento que toma as ciências não como redutoras
do real (premissa geral do materialismo científico), mas sim como multiplicadoras do real.
45
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

res etc.) levou a estranharmos os pressupostos das ciências clássicas,


marcados pelo tempo abstrato reversível, pelo determinismo de leis
universais dadas de uma vez por todas, pela evolução preditiva e
pelo isolamento de elementos em um sistema fechado auto-estável.
O ponto é que aí onde esperávamos finalmente o desvendamen-
to último de uma natureza já unificada (como a natureza dessa ou
daquela doença, para referirmos ao campo da saúde), o que apare-
ce não é a verdade ontológica de seres ou entidades sob contornos
enfim definidos e delimitados, mas a pluralidade de verdades, de
estados ontológicos que variam conforme o agenciamento que ex-
perimentam. Agora fica claro que a natureza responde conforme a
interrogação que se dirige a ela – isto que faz multiplicar a natureza
e reinserir o humano na descrição mesma a que se aventura. Sen-
do assim, aquela mansão unificada e unificadora da natureza perde
sentido e operacionalidade junto às ciências. Então já não falaremos
mais em natureza, mas sim em naturezas. É o multinaturalismo a
que se referem VIVEIROS de CASTRO (2002a) e, à inspiração
deste, LATOUR (1999). E como já não estaremos aí regressando
à perniciosa concepção relativista, bem como pós-moderna, de que
a natureza é derivação puramente arbitrária da cultura, função de
projeções subjetivas cognitivamente encerradas nos mais variados
agrupamentos humanos no tempo e no espaço, então poderemos
nos abrir às consequências da concepção multinaturalista rumo à
afirmação de uma “nova objetividade” (PRIGOGINE e STEN-
GERS; 1984: 174). Não mais aquela clássica que “identifica des-
crição objetiva do sistema ‘tal como ele é em si mesmo’ e descrição
completa.” (Idem: 174). Não mais a natureza que, como queriam
Newton ou Voltaire, fosse “conforme com ela própria” (Idem:
197). É como se passa hoje, por exemplo, com a mecânica quânti-
ca, cujo desenvolvimento rumo a uma maior objetividade implica
negar aqueles demônios oniscientes das ciências clássicas, como os
da mecânica newtoniana. Ou seja, não é mais operatório valer-se
do postulado de uma visão geral e desencarnada que seria capaz de
prever a evolução de um sistema em todas as suas coordenadas e
seus momentos simultaneamente. Agora a “interação de medida é
necessária” (Idem: 174). Conforme esse ou aquele instrumento ou
anteparo utilizado numa pesquisa experimental, a resposta do ob-
46
Questões sobre a ética e a inocência do método

jeto pesquisado irá variar. E, contudo, todas essas respostas, se bem


amarradas, se bem compostas, se bem depuradas (não em natureza
ou sociedade tomadas a priori, mas depuradas pelas provações cien-
tíficas, por essas ritualizações a que se devem submeter), todas elas
então se candidatam à objetividade. Noutras palavras, trata-se de
distanciar a noção de objetividade à realidade última (ou primeira)
das coisas, realidade supostamente essencial das ontologias. Trata-se,
enfim, de reconhecer, com Latour, que as ontologias sempre expe-
rimentam “geometria variável” (LATOUR: 1991), que as essências
não se explicam sem os acontecimentos em que se enredam. Essên-
cias são resultados metaestáveis, e não propriedades a priori. Tais
propriedades mostram-se elas mesmas emergentes.
Para exemplificar a multiplicidade tão científica e objetiva da
natureza em fenômenos da saúde, da doença e do corpo, tomemos
o caso das anemias (e não da anemia no singular), tal como mostra
MOL (1999: 74-89). O diagnóstico dessa doença se afirma confor-
me a performance médica e os instrumentos técnicos utilizados. Ela
então pode aparecer na clínica por via de “sintomas visíveis”:

Num consultório, um doente relata tonturas e muito cansaço ao mé-


dico. O médico quer ainda saber sobre quando e como esses sintomas
se manifestam. Então ele se aproxima do doente, examina uma das
pálpebras, talvez a outra também, para conferir a cor. Estarão brancas,
vermelhas? Muito, pouco? Que aspecto geral tem a pele? O discurso
do doente, as questões do médico e as observações feitas no exterior,
tudo se relaciona com a anemia. Como é que a encenam? A resposta é:
como um conjunto de sintomas visíveis.

A anemia pode ainda ser diagnosticada em laboratório:

Aqui a anemia equivale a um baixo nível de hemoglobina no sangue


da pessoa. Porque aqui o sangue é tirado das veias e enviado para
máquinas que respondem com números para cada amostra de sangue
que recebem. (Atenção, esta é apenas uma das técnicas laboratoriais
utilizadas para medir os níveis de hemoglobina. Há outras que não
mencionarei aqui). O número aí gerado é então comparado com um
padrão: um nível normal de hemoglobina. Eis aí, então, um modo
47
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)
laboratorial de performar a anemia. Mas há várias versões. Porque há
diferentes modos de definir o padrão para um nível normal de hemo-
globina. O mais comum é o método estatístico. Este método depende
da reunião de dados vindos de uma população, sendo a norma fixada
em, digamos, dois desvios padrões em relação à média da população.
É diagnosticada como tendo anemia as pessoas cujos testes de sangue
revelam um nível de hemoglobina inferior a essa norma.

E há ainda o método patofisiológico:

Implica encontrar, também em relação a cada indivíduo, a linha que


demarca um nível de hemoglobina suficiente para transportar apro-
priadamente o oxigênio pelo corpo, e o nível anormal, que é, por con-
traste, muito baixo para engendrar esse transporte.19

Diz Mol que “há, assim, ao menos três performances da anemia:


clínica, estatística e patofisiológica”. Sob a inocência do já antigo
modo científico de conceber a natureza, perguntaremos: sim, mas
qual delas identifica-se ao diagnóstico real? No limite, esse debate
(que, aliás, no caso das anemias, nem ocorre como controvérsia en-
tre os médicos, conforme lembra a própria Mol) não irá frutificar
(isto é, multiplicar e enriquecer-se) se a intenção for a de finalmente
alcançar a realidade única ou última da anemia. “A realidade da
anemia assume várias formas”, conclui Mol. Trata-se, pois, de uma
“multiplicidade ontológica”. Escolher um ou outro método de diag-
nóstico, ou mesmo sobrepor os diferentes resultados, pode ser uma
opção, mas toda boa opção será aquela que, antes da escolha, justa-
mente desdobre as opções – multiplique-se. Eis aí o caráter político
ineliminável – mas de uma política que é ontológica20, que é cos-
mopolítica (STENGERS, LATOUR), que necessariamente enlaça,
como no caso das versões da anemia, os mais heterogêneos agentes:
19. Os trechos citados referem-se às páginas 77-78. Todos os demais trechos de
Mol citados neste artigo são de minha tradução
20. “Política ontológica é um termo compósito. (...) Se ‘ontologia’ é associada com
‘política’, então isso sugere que as condições de possibilidade não estão dadas, e que
a realidade não precede as práticas mundanas com as quais interagimos, mas que é
antes amoldada na relação com essas práticas”. (MOL: 1999: 74-5).
48
Questões sobre a ética e a inocência do método

sintomas, nível de hemoglobina, caráter das pálpebras, utilização


desse ou daquele procedimento de medição, desse ou daquele ins-
trumento de detecção, referência a médias populacionais, recursos e
preferências médicas do momento etc. É assim que uma ontologia,
tal a da doença, emerge. Mas nada que a população mais precavida
já não pratique largamente, como quando se diz que é preciso uma
segunda ou terceira consulta a médicos para que se decida sobre o
caráter e a gravidade da doença em causa, bem com a terapêutica
que encaminhar. Como seja, o ponto que aqui sublinho, seguindo
Mol, é que não necessariamente esse ou aquele diagnóstico médico
será o certo ou o errado. A ideia da multiplicidade ontológica –
tais as “versões da anemia” – parece claramente avessa a conclusões
definitivas baseadas em certo ou errado, em verdade ou falsidade.
Uma vez que passamos a reconhecer que a natureza não mais se
deixa unificar, quanto menos prematuramente, então a verdade das
ontologias, antes ancorada naquela unificação dada, agora também
pode se mostrar múltipla, mas não por isso menos objetiva. Trata-se
então, ainda à inspiração de STENGERS (1997: 37), de não “se
limitar a ‘dizer a verdade’ sem fazer existir outras maneiras de dizer”.
Poder-se-ia logo ressalvar que a anemia conforma um caso es-
pecial, particular caso de imprecisão, no universo dos fenômenos
médico-científicos. Mas é a própria Annemarie Mol quem adianta
que “não há nada de específico na anemia que a torne o melhor
exemplo de identidade múltipla em relação a qualquer outro objeto:
“A vantagem é simplesmente a de eu ter tido tempo para estudá-la.
(MOL, idem: 88).
Suas descobertas sobre a multiplicidade da anemia, notemos,
são correlatas às que nós, não-especialistas diante da realidade de
alguma doença de que venhamos a padecer, também acabamos por
descobrir quando nos lançamos atrás de diagnósticos que melhor
se sobreponham aos sintomas acusados e encaminhem terapêuticas
mais adequadas para o caso. Uma vez a campo, atrás de diagnósti-
cos, iremos nos deparar com múltiplas ontologias da doença quan-
to mais diversificados forem os agentes que, sob nossa exploração,
pusermos em relação: aqui este homeopata, ali aquele alopata; aqui
a experiência com determinados instrumentos, ali com outros me-
didores; aqui iremos considerar tais marcadores biológicos, ali serão

49
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

outros marcadores a interrogar; aqui convém a consideração por


média, ali talvez seja melhor atentar com mais acuidade para os
sintomas visíveis. E será assim indefinidamente até que uma defi-
nição, mesmo provisória, daí surja por emergência e ofereça ordem
à desordem que o fenômeno da doença provoca, de modo a que
uma terapêutica, senão várias combinadas, estabilize(m) aquilo que
a saúde apresenta como negativamente instável.
Pelo até aqui exposto, deve estar claro que aquela imagem da
neutralidade científica, que informava o método standard da ciên-
cia, encontra-se cada vez mais obsoleta e premida a abrir-se para o
reconhecimento de uma multiplicidade que a ciência nunca deixou
ela mesma de praticar e provocar. Deve então estar clara a inocência
do postulado que previa um conhecimento completo da natureza,
tal como previa a ciência clássica em sua face oficial purificadora.
Mas se pudermos ou tivermos a coragem de assumirmos maiores
consequências dos fenômenos científicos contemporâneos, e então
darmos adeus à presunção clássica do sujeito onisciente (expresso
por exemplo no demônio de Laplace, de Maxwell ou no deus de
Eisntein), essa porta apenas deve se fechar para que tenhamos enfim
a oportunidade de abrir outras – e a partir das próprias ciências, mas
desde que reencantadas, isto é, desde que reintegradas ao fluxo de
devires que elas põem em relação e são, de sua parte, também postas
pelas relações na criação experimental da realidade.
Se é verdade que “esses seres oniscientes abundam ainda hoje
nos textos científicos”, escrevem PRIGOGINE e STENGERS
(1984: 40), “não há nisso arcaísmo”:

mas simples ingenuidade ou “filosofia espontânea de sábio”. O conte-


údo teórico da ciência clássica contribuiu muito bem para estabilizar
o mito de um saber onisciente.

Estamos hoje apenas tateando os limiares desse saber onisciente


rumo a nos livrar da neutralidade científica, cuja promessa mos-
tra-se agora extenuada porque o mundo, antes simples objeto de
manipulação e intervenção, já não se dobra mais à indiferença que
aquela inocência do método concebia e engendrava. Em lugar dos
recuos do sujeito que conhece, e que determinavam de um só gol-
50
Questões sobre a ética e a inocência do método

pe tanto o mundo frio e exterior, calculável e preditivo, submisso


e imutável, autômato e estúpido, quanto a “solidão do homem
num mundo que lhe é estranho” (PRIGOGINE e STENGERS:
1984: 6), agora, ou ainda, podemos nos agarrar à chance de estra-
nhar aquele estranheza. Podemos sim, e já há sinais claros disso, nos
livrar da inocência do método, aí mesmo nos livrando de suas trans-
cendências absolutistas, de sua aplicabilidade prêt-à-porter, de tudo
isso que submete a experiência científica a entendimentos que não
hesitam, que precedem as experiências e as enclausuram no desde-
já-pré-conhecido-mas-ainda-não-revelado. Trata-se da tarefa de abrir
a imaginação às surpresas emergentes, ao desconhecido-infinito, ao
desconhecido-impensado, à multiplicidade dos possíveis. Abertu-
ra a horizontes não determinados, à objetividade que, como numa
relação entre médico e paciente, seja aquela que se conquista ao
tempo em que se é conquistada, e não aquela que só sabe, e muitas
vez sem o saber, submeter. Que não se entenda aqui, importante
insistir, tratar-se de um desafio lançado pelas ciências humanas, mas
lançado pelas próprias ciências naturais – lançado pelos humanos e
não-humanos, todos sob constante processo de diferenciação, que
sempre aí se engajam e aí mesmo têm origem. Tanto esforço de
repovoamento da imaginação parece exigir que inventemos uma
inocência para se dirigir ao mundo, um método da inocência que
apure a nossa escuta, que não aborte o novo enquadrando-o de an-
temão. É a inocência de experimentarmos continuamente a hesita-
ção que fará com que a natureza, muito mais diversa e imprevisível
do que se supunha, muito mais perigosa e promissora, possa enfim
começar a nos sussurrar suas mil vozes, possa se re-encantar, assim
re-encantando as próprias ciências e a existência dos seres que um
conhecimento, arejado por uma nova inocência e uma nova curio-
sidade, dará origem.

51
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

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53
Neutralidade como uma aspiração para a
ciência contemporânea?21

Hugh Lacey22

Introdução

“Nunca poderei chegar a ser neutro.”23. Nenhuma pessoa in-


dividual poderá. Cada pessoa age e pensa na luz de uma perspec-
tiva no mundo, que reflete um contexto sócio-histórico, cultura,
experiência da vida, antecipações de possibilidades futuras, crenças
ontológicas e cósmicas e valores específicos. O que está conhecido,
e quais são potencialmente itens de conhecimento, dependem das
perspectivas do mundo sustentadas por várias pessoas. Não existe
ação, pensamento ou conhecimento sem perspectiva. O projeto de
Descartes para descobrir (ou gerar) uma fundamentação racional
do conhecimento, válido e obrigatório para todos, sem perspectiva
e sem incorporar valores específicos, é e permanecerá sendo ape-
nas um sonho; porém, um sonho recorrente para os participantes
da tradição da ciência moderna. Talvez este sonho cartesiano tenha
surgido da profunda inconsciência compartilhada da modernidade;
e certamente tal sonho estava ligado à ideia moderna que o fortale-
cimento do bem estar humano depende do aumento das capacida-
21. Conferência, II Seminário de Ciências Humanas e Sociais no Campo da Saúde:
Questões Sobre a Ética e a Inocência do Método, UNESP, Rio Claro, 2 de Outu-
bro de 2102.
22. Swarthmore College, EUA e Associação Filosófica ‘Scientiae Studia’, USP.
23. Parte do poema do Mario Benedetti, “Sou um caso perdido”, reproduzida na
apresentação do programa do II Seminário de Ciências Humanas e Sociais no cam-
po da saúde.
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

des humanas para exercer controle sobre objetos naturais. Ou ainda


tenha sido uma alegoria que funciona para mascarar que esta funda-
mentação, supostamente racional e neutra, realmente é a perspec-
tiva de pessoas representantes de interesses sociais dominantes. Seja
como for, o sonho cartesiano tende a tornar-se ligado estreitamente
com a realidade; exerceu, e continua a exercer, uma influência po-
derosa sobre a consciência moderna, e nutri uma noção ilusória da
neutralidade da ciência.
Contudo, a ciência é uma atividade coletiva (social) e as suas
possibilidades não podem ser reduzidas às de indivíduos. ‘Ciên-
cia’ é uma abstração, que tende a obscurecer o fato de que ativida-
des científicas são práticas sócio-históricas conduzidas no ‘mundo
da vida’ (Husserl 1970) – i.e., o mundo (de coisas, eventos, pesso-
as – todos em interação) em que todos estamos situados e que, no
decurso da experiência humana, é encontrado, interagido com,
descrito (representado em linguagem), comunicado, e avaliado.
As práticas científicas são conduzidas por agentes humanos
localizados socialmente, cujas ações (caracteristicamente) podem
ser explicadas em termos das suas crenças, deliberações, fins, de-
sejos, valores, e outros estados intencionais - todos dos quais fi-
cam não-inteligíveis quando separados das suas posições sociais
e históricas e as instituições e ecossistemas que principalmente
constituem-se essas posições (Lacey 2009). Talvez neutralidade
surge – ou poderia ter surgido – de interações no mundo da vida
entre pesquisadores em atividades científicas que permitem ultra-
passar os limites das perspectivas individuais. Eu acho que sim.
O sonho cartesiano não aflige meu sono; e, assim, não preciso da
terapia pós-moderna – o abraço de relativismo – para tratar as
fontes inconscientes do sonho. Vou sugerir que a reflexão sobre
o lugar da ciência numa democracia indica a importância não só
de manter a aspiração para neutralidade (num sentido que vou
introduzir em §2), mas também de lutar para a sua maior re-
alização nas práticas científicas contemporâneas (Lacey 2008b,
2012b, 2012c, 2013).
Para entender as implicações do debate sobre neutralidade,
será necessário refletir em detalhe sobre a natureza da ciência e as
características da metodologia científica.

56
Questões sobre a ética e a inocência do método

§1. O que é a ciência?

A ciência tem muitas dimensões: práticas de investigação (ensi-


no e divulgação), corpos do conhecimento e entendimento, institui-
ções, organizações, fontes de financiamento, aplicações (inovações,
curas, tecnologias, novos instrumentos), etc. Por um lado, a ciência
predominantemente está localizada em instituições e dividida nas
disciplinas. As práticas, comumente denominadas ‘científicas’ são
institucionalizadas; um cientista no mundo de hoje é um profissio-
nal com qualificações certificadas por uma instituição legalmente
reconhecida, que cuida e promulga o ‘capital científico’ (Bourdieu
2004) acumulado ao longo da tradição cientifica moderna. Por ou-
tro lado, ciência, como atualmente institucionalizada, incorpora e
é o produto de práticas interpretadas na luz duma tradição que era
portador de certas ideais: imparcialidade e abrangência do conheci-
mento científico, neutralidade dos usos do conhecimento cientifico,
e autonomia das práticas e instituições científicas, ideais que servem
como pontos de referência para avaliar a qualidade e integridade das
atividades e das instituições cientificas (Lacey 2008a; 2010; Lacey
& Mariconda 2012).
Sempre havia tensão entre os dois lados; e as suas formas mu-
davam com os desdobramentos da tradição, e com as flutuações
do contexto social das instituições, e suas adaptações a elas. É co-
mum identificar a ciência com as suas formas institucionalizadas e
certificadas e as atividades e produtos da investigação conduzida por
cientistas qualificados dentro destas instituições reconhecidas. Mas,
sem o segundo lado, faltam os critérios para avaliar estas atividades
e produtos e (quando apropriado) para motivar mudanças, e para
defender a ciência de conflitos de interesses dentro das instituições,
e de ameaças a sua integridade, estima e autoridade.
Por que não identificamos a ciência com atividades de inves-
tigação no mundo da vida que, em princípio, visa a incorporação
mais profunda dos ideais (imparcialidade, abrangência, neutralida-
de, autonomia)? Então, tornar-se-ia possível que as atividades cien-
tíficas poderiam incluir atividades conduzidas fora das instituições
científicas por pessoas não certificadas. Esta possibilidade permitiria
a consideração das credenciais científicas de, p. ex., conhecimento
57
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

indígena e das atividades da sua produção (Lacey 2012c) e da par-


ticipação comunitária na busca (e aplicação) do conhecimento mé-
dico e agrário (Lechopier 2011), e também a crítica das instituições
científicas por causa da sua falha de incluir domínios importantes
do conhecimento científico (ver §5). Porém, embora os porta-vozes
das instituições científicas frequentemente fazem apelo a estes três
ideais (neste artigo discuto apenas a neutralidade!), a ciência con-
duzida nestas instituições hoje não é neutra, e a sua trajetória atual
não representa a aspiração para acordo à neutralidade (ver §4) – e,
obviamente, não faria sentido identificar a ciência com atividades
de investigação que aspiram para acordo à neutralidade, se a ciência
nunca chega a uma aproximação da neutralidade.
Apesar disso, a neutralidade ainda poderia funcionar como um
ideal, na condição de que as instituições científicas re-orientem e
re-institucionalizem para incluir várias abordagens atualmente ex-
cluídas, e assim para permitir a ciência a desempenhar o seu próprio
papel no fortalecimento da democracia (ver §5).

§2. O que é a neutralidade?

A neutralidade não deve ser confundida com a imparcialidade. A


imparcialidade é o suposto ideal: Aceite-se uma teoria como portador
de conhecimento e entendimento de um domínio de fenômenos se
e somente se satisfaz bem certos critérios (os valores cognitivos), à luz
de dados empíricos disponíveis, obtidos pela observação de fenôme-
nos do domínio – onde os valores cognitivos não têm nenhuns com-
promissos com quaisquer valores éticos/sociais particulares.24 Juízos
de valor social/ético, e esperanças para aplicação prática, são com-
pletamente irrelevante para a aceitação duma teoria (de um domínio
especificado de fenômenos) de acordo à imparcialidade. É verdadeiro
que a imparcialidade não sempre representa um fato da aceitação das
teorias – às vezes, valores éticos/sociais funcionam ao lado dos valo-
24. Neste artigo, uso formulações abreviadas e incompletas da ‘imparcialidade’ e
da ‘neutralidade’. Para formulações mais completas destas ideais, ver Lacey (2008a;
2010). Sobre os valores cognitivos, ver Lacey (2008a, cap. 1; 2010, cap. 11); sobre
outros sentidos de ‘aceitação duma teoria’, Lacey (2011a); e sobre autonomia, que
não discuto neste artigo, Lacey & Mariconda (2012); Oliveira (2011).
58
Questões sobre a ética e a inocência do método

res cognitivos, e alguns autores mantêm que nunca poderá chegar


em realizar imparcialidade (Lacey 2011a). Contudo, endosso – junto
com a maioria da tradição científica – que reivindicações do conheci-
mento científico devem ser sujeito a avaliação e crítica na luz do ideal
da imparcialidade. Mas, a confirmação de um item do conhecimento
científico implica nada sobre o seu significado, valor ou utilidade so-
cial quando aplicado. A imparcialidade é um ideal ao momento da
avaliação cognitiva do conhecimento e entendimento científico.
A neutralidade pertence ao momento da aplicação do conheci-
mento científico, o momento quando o significado ético/social dos
usos das aplicações está avaliado. Valores éticos/sociais penetram pro-
fundamente por todo esse momento. Uma aplicação sempre é intro-
duzida para servir interesses especiais, e a legitimidade da sua imple-
mentação envolve assuntos implicados em juízos de valor ético/social
sobre, p. ex., os possíveis riscos e abordagens alternativos.25 Mesmo
assim, a tradição científica moderna, afirmava o ideal da neutralidade:

Quando aplicado, em princípio, conhecimento científico, e as teorias


aceitas de acordo à imparcialidade, não serve interesses particulares à
despesa de serviço aos outros valores (p.ex., os valores do capital e o
mercado à despesa dos da sustentabilidade e justiça social); serve todas
as perspectivas de valores mais ou menos equitativamente, e faz parte do
patrimônio compartilhada da humanidade.

Semelhante à imparcialidade, a neutralidade supostamente fun-


ciona como um ideal. Porém, quer as aplicações do conhecimento
científico disponível estejam de acordo à neutralidade, quer não, é
uma questão de fato, aberta a investigação empírica.26 Afirmei, em §1,
25. Discuto, em Lacey (2008b; 2011a; 2012b), as vários papeis dos juízos de valor
nas deliberações sobre os riscos – inclusive das implicações do fato que, frequen-
temente, precisamos agir informado por reivindicações sobre riscos que (na hora
de fazer uma decisão duma aplicação) não estão aceitas de acordo à imparcialidade
e assim, o fato que alguns valores éticos/sociais desempenham papeis ao lado dos
valores cognitivos em nossas endossamentos sobre os riscos.
26. Algumas vezes, ‘neutralidade’ é usada num outro sentido, que denomino ‘neu-
tralidade cognitiva’ (Lacey & Mariconda 2012), viz., que os resultados científicos
não têm nenhuns juízos de valor dentro das suas implicações lógicas, e portanto
59
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

que a neutralidade não está bem manifestada nas instituições cientí-


ficas contemporâneas; e fornecerei a evidencia em §4, onde também
argumentarei que isto é principalmente por causa da predominância
de uma concepção limitada da metodologia cientifica, reforçada pela
intervenção dos interesses comerciais nas práticas científicas, ou (às
vezes) interferência política ou outras forças fora do controle dos cien-
tistas e das suas organizações. Seja como for, para funcionar como um
ideal, a neutralidade deve ser capaz duma aproximação razoável na
prática. Hoje em dia, fica quase ortodoxo na retórica de muitos cír-
culos pós-modernos e grupos da esquerda a reivindicar que a ciência
nunca poderá chegar a ser neutral. Às vezes, esta reivindicação leva a
atitudes contra a ciência, e à exploração de outras formas de conheci-
mento [‘outros conhecimentos’ (p. ex. Santos e Meneses 2010)] – em
ecologia, agricultura, medicina, organização social, relações entre se-
res humanas e natureza, vida espiritual – que não recebem boas-vin-
das nas instituições científicas certificadas. Eu endosso esta exploração
de outras formas de conhecimento (Lacey 2012c) – mas não por-
que rejeito neutralidade como um ideal para as práticas e instituições
científicas. “Neutralidade”, na minha formulação sumária acima, é
ambígua. Significa:

N1, que cada item individual do conhecimento cientifico serve a todas


as perspectivas de valores equitativamente?

Ou:

N2, que cada perspectiva de valores é servida por alguns itens do conhe-
cimento científico – globalmente de maneira equitativa?

que eles não fornecem apoio para quaisquer perspectivas de valores, em vez de ou-
tras, em virtude das suas implicações lógicas. Os resultados obtidas sob as SDs (§3.1),
por causa das restrições impostos das categorias utilizadas nas teorias confirmadas
sob estas estratégias, certamente são de acordo à neutralidade cognitiva. Este é a
noção ilusória da neutralidade da ciência, mencionada na Introdução acima; é uma
tese lógica (não um ideal), que tem nada a ver com a reivindicação fatual/empírica
da neutralidade que estou discutindo neste artigo. Para outras reflexões sobre a
neutralidade, ver Oliveira (2008).
60
Questões sobre a ética e a inocência do método

De fato, a neutralidade – ou no sentido N1, ou no sentido N2


– não está bem aproximada na ciência contemporânea. Além dis-
so, não podemos re-orientar as práticas cientificas para aproximar a
neutralidade [N1]. Isso porque – embora alguns itens do conheci-
mento (p.ex., nas ciências da saúde) informam aplicações que estão
avaliadas positivamente quase universalmente – existem (e sempre
vão existir) muitos itens do conhecimento que, quando aplicado,
servem a interesses especiais: p.ex, o conhecimento que informa o
desenvolvimento dos transgênicos, que serve especialmente bem os
valores do progresso tecnológico e do capital e o mercado, à despe-
sa de outros valores como a justiça social e sustentabilidade (Lacey
2006a; 2008b). Nunca poderá chegar a aproximar a neutralidade
[N1]; portanto, ela não pode ser um ideal da ciência. Por outro lado,
argumentarei em §5, depende de decisões metodológicas feitas e
esforços sucessíveis para re-orientar as prioridades e a trajetória das
instituições científicas, poderá chegar a aproximar a neutralidade
[N2]. Portanto, a neutralidade [N2] poderia representar um ideal –
que denomino o ideal da inclusividade e equitatividade (Lacey 2013).

§3. O que caracteriza a metodologia científica?

Voltemo-nos para a questão: O que é a ciência?


O que é investigação científica; e o que caracteriza a metodo-
logia científica? Em muitos trabalhos (p. ex., Lacey 2008a; 2010),
argumentei que toda investigação científica requer a adoção de
uma estratégia de pesquisa que (a) restringe o tipo de teoria que
pode ser formulada, proposta e avaliada – as categorias admissíveis
nestas teorias, e as possibilidades que podem ser investigadas – e
(b) selecione os tipos de dados empíricos que devem ser procurados
e relatados. (Para mim, ‘estratégia’ é a noção fundamental da me-
todologia científica.) Então, proponho esta definição de ‘investi-
gação científica’:27

A investigação científica é investigação empírica sistemática, res-


ponsiva ao ideal de imparcialidade, empreendida mediante o uso de

27. Minha definição da investigação científica, e a definição tradicional abaixo


(§3.1), são bastante abreviada; para elaborações, ver Lacey (2010), cap. 11.
61
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)
quaisquer estratégias de pesquisa que sejam adequadas à obtenção de
conhecimento e entendimento dos objetos/fenômenos investigados.

Esta definição deixa aberta a possibilidade do pluralismo me-


todológico (ou pluralismo estratégico) (Lacey 2010; 2011a; 2012c;
2013), que tipos diferentes de estratégias possam ser requisitadas
para investigar tipos diferentes de fenômenos – p. ex., um tipo
para as estruturas dos genômas das plantas, e outro para as possibi-
lidades dos agroecossistemas sustentáveis; um para as estruturas de
moléculas e outro para estruturas socais; e um para o tratamento e
outro para a prevenção de doenças.

3.1 Estratégias descontextualizadoras [SDs]

Durante a tradição científica moderna, contudo, era uma ten-


dência definir a investigação científica numa maneira mais restri-
ta, vinculada a caracterização da metodologia científica pelo uso
de um tipo de estratégia, que agora denomino estratégias descon-
textualizadoras [SDs] (2012a; 2012c) [anteriormente ‘estratégias
materialistas’ (Lacey 2008a; 2010)]. Consequentemente, a pesqui-
sa científica moderna adota, quase exclusivamente, variedades das
SDs. Sob as SDs (sumariamente) os dados empíricos seleciona-
dos são quantitativos, obtidos por meio do uso de instrumentos
de medida, tipicamente em espaços experimentais; e as teorias,
consideradas para investigação e avaliação, são restringidas àquelas
que possam representar a estrutura subjacente dos fenômenos, os
processos e interações dos seus componentes, e as leis (tipicamente
de forma matemática) que os governam – em dissociação de qual-
quer lugar que eles tenham no mundo da vida, de qualquer lugar
que eles tenham em relação à organização social, vidas e experiên-
cias humanas, de qualquer vínculo à agência humana, qualidades
sensoriais e valor, e de quaisquer possibilidades que eles possam
ganhar por causa dos seus lugares em contextos sociais, humanas
e ecológicas particulares. Sob as SDs obtemos conhecimento dos
fenômenos descritos em abstração dos seus contextos. P. ex., sob as
SDs da biologia molecular e biotecnologia, as sementes transgê-
nicos são investigadas para as suas propriedades genômicas e mo-

62
Questões sobre a ética e a inocência do método

lecular-biológicas, mas não para as consequências que seguem do


fato que elas são objetos comerciais, sujeitas ao controle de direi-
tos de propriedade intelectual; e os dados relatados não incluem
quem possuem ou controlam as sementes, quais são os seus usos
sociais, e qual é o impacto do seu uso sobre a biodiversidade, sobre
pequenos fazendeiros, e sobre a segurança alimentar do mundo
(Lacey 2006a).
Em vez da minha definição da investigação científica acima
(§3), a definição mais restrita da tradição da ciência moderna (que
é a definição que predomina nas instituições científicas contempo-
râneas) pode ser posta assim:

A investigação científica é investigação empírica sistemática, respon-


siva ao ideal de imparcialidade, empreendida mediante o uso das
SDs.

Esta definição tradicional mantém a ideia de que a metodolo-


gia científica é, não só empírica, mas também descontextualizadora.
Ela é mais restrita do que a minha definição, que requer só que
a metodologia científica seja empírica, i.e., responsiva ao ideal da
imparcialidade, que requer que as reivindicações do conhecimento
e entendimento devem ser avaliadas na luz dos dados empíricos
disponíveis e os valores cognitivos. Até certo ponto, a definição
tradicional permite um pluralismo estratégico; há uma variedade
das SDs, adaptadas às características dos objetos sob investigação
– pense das diferenças entre as estratégias da mecânica newtonia-
na, química molecular, a mecânica quântica, e genética.

3.2 Estratégias sensíveis a contexto [SCs]

Porém, a minha definição permite um pluralismo mais am-


plo, porque (dessemelhante à definição tradicional) reconhece a
possibilidade que SDs pudessem ser inadequado para a investiga-
ção de alguns objetos, especificamente dos objetos cujas identidades
são intrinsecamente vinculadas aos seus contextos. Por exemplo, ação
humana e mudança social; e, especialmente pertinente para este
artigo, agroecossistemas sustentáveis e as consequências (riscos)

63
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

do uso dos transgênicos ocasionadas por mecanismos socioecono-


micos (Lacey, 2011b), as causas sociais de uma epidemia de gripe
suína, e medidas efetivas para proteger a saúde pública em bairros
pobres.
Investigação empírica destes fenômenos depende da ado-
ção de estratégias sensíveis a contexto [SCs], estratégias que não
pode ser reduzidas às SDs. As estratégias da agroecologia, p. ex.,
permitem investigação de agroecossistemas levando em conta
simultaneamente as dimensões de produtividade, sustentabili-
dade ecológica, preservação da biodiversidade, saúde social, e
fortalecimento da agência e cultura de gentes da localidade da
lavoura – frequentemente com a pretensão de descobrir uma
balança ótima em que todas as dimensões serão fortalecidas
juntamente (Lacey 2006a; 2010, parte 2, e referências nestes
textos).28
A minha definição da investigação científica (§3) é mais in-
clusiva do que a definição tradicional. Ela admite, bem como a
variedade das SDs, um pluralismo estratégico que inclui alguns
SCs, que (semelhante às SDs) possam ser fecundas, i.e., levam
(talvez ao longo prazo) à obtenção do conhecimento e do en-
tendimento (dos objetos/fenômenos investigados) que acordam
ao ideal da imparcialidade. Em contraste, de acordo à definição
tradicional (§3.1), a pesquisa conduzida sob as SCs não é con-
siderada pesquisa ‘científica’; mesmo as SCs demonstradas ser
fecundas (p. ex., as da agroecologia), desde que as SCs não se
reduzem às SDs, não possuem as próprias credenciais científi-
cas.
28. Frequentemente, ilustro o meu argumento com exemplos da agricultura. Meu
argumento não depende destes exemplos (que uso apenas por causa do fato que
tenho muito menos familiaridade com outras áreas de investigação). O argumento
poderia ser ilustrado igualmente bem utilizando exemplos vinculados a medicina
e saúde. Espero que alguns leitores acabam de desenvolver ele tomando em conta
que, em pesquisas vinculada a saúde, frequentemente o uso de SCs seja necessá-
rio, especialmente na psicologia, na medicina social e na saúde pública; e que,
comumente, investigação que almeja curas de doenças procede em dissociação das
suas causas sociais – mas a relevância social duma cura dependa da eliminação das
causas sociais da doença.
64
Questões sobre a ética e a inocência do método

3.3 A marginalização da SCs

Segui, na luz desta concepção tradicional da metodologia cien-


tífica, que as instituições científicas tendem a não reconhecer as
possíveis contribuições das SCs, a não valorizar muito a pesquisa
conduzida sob elas, e a não fornecer as condições para a sua adoção
regular e sistemática em pesquisa, inclusive para pesquisa sobre os
fenômenos (p. ex., os riscos das inovações tecnocientíficas) onde a
sua contribuição deve ser indispensável. As SCs são marginalizadas.
Há uma outra fonte também desta marginalização das SCs nas ins-
tituições científicas contemporâneas: a predominância nelas (e nas
instituições e grupos, comerciais e governamentais, que fornecem
recursos e financiamento para elas) da ideia que o principal papel
social da ciência hoje é para obter conhecimento que possa informar
a inovação tecnocientífica que contribui ao crescimento econômico
(Lacey 2008b; 2012a). Esta ideia significa a subordinação da ciência
aos interesses (p. ex., os das empresas do agronegócio ou farma-
cêuticas) que incorporam os valores do progresso tecnológico, e do
capital e o mercado (Lacey 2012a). Os interesses das empresas do
agronegócio, p. ex., estão servidas muito bem pela implementação
da agricultura baseada no uso dos transgênicos, mas não pela expan-
são da agroecologia; e aquelas das grandes empresas farmacêuticas
pelo desenvolvimento de novas medicinas para curar doenças, em
vez de práticas da saúde pública apontada à prevenção de doenças.
Onde a ciência torna-se subordinado aos interesses que incorporam
os valores mencionados, não há muito interesse em investigar fenô-
menos, intrinsecamente vinculado aos seus contextos, que reque-
rem as SCs para a sua investigação, e que fazem partes importantes
em práticas que têm nada a ver com a inovação tecnocientífica que
serve o crescimento econômico (ou, estejam opostas a certas ino-
vações) – p. ex., os agroecossistemas otimizadas, as causas sociais
de muitas doenças, e novos desenvolvimentos da ‘tecnologia social’
(Dagnino 2010).
Então, a marginalização das SCs nas instituições científicas
atuais têm duas causas, que operam em cooperação. (i) A priori-
dade para investigar os fenômenos intrinsecamente vinculados aos
seus contextos tende ser considerada baixíssima – este item é uma
65
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

reflexão dos valores que têm prioridade no contexto de aplicação do co-


nhecimento científico (e sustentados nas instituições que fornecem
financiamento para a pesquisa). (ii) A definição tradicional da inves-
tigação científica não reconhece as credenciais das SCs, e, portanto,
nas instituições científicas que incorporam essa definição, não se
levanta normalmente a ocasião para utilizar as SCs relevantes. A
operação conjunta das duas causas assegura que os fenômenos, que
não podem ser investigados adequadamente sem a adoção de SCs
apropriadas, geralmente não serão investigados adequadamente.

§4. As SDs e o ideal da inclusividade e equitatividade

Entretanto, o conhecimento dos fenômenos destes tipos (os


agroecossistemas otimizados, as causas sociais de muitas doenças,
e os novos desenvolvimentos da tecnologia social) seria altamente
relevante para interesses influenciados por valores, comumente sus-
tentados nos movimentos populares na América Latina, como os
da sustentabilidade e justiça social, que estão em conflito com os
valores do capital e do mercado. Segui que, onde a definição tradi-
cional da investigação científica predomina e as SDs estão adotadas
em pesquisa científica quase exclusivamente, o ideal da inclusividade
e equitatividade (o ideal da neutralidade [N2] – §2) nunca poderá se
aproximar. Isso porque o conhecimento científico disponível (como
em tudo, nem sempre em todas as instâncias particulares) serve os
interesses do capital e do mercado em detrimento dos interesses
da sustentabilidade e justiça social (Lacey 2008b; 2012a; 2012b).
Portanto, a concepção tradicional da metodologia ‘científica’, sendo
não somente empírica mas também descontextualizadora (tal que
a adoção das SDs fica essencial para a metodologia cientifica), não
fornece condições para a reconciliação com a aspiração em vista de
um acordo ao ideal da inclusividade e equitatividade. Além disso,
desde que esta definição prevalece nas contemporâneas instituições
científicas certificadas, a ciência empreendida nestas instituições
não pode ser reconciliada com esta aspiração.
Quando se reconhecer a possibilidade de fecundidade na pes-
quisa ‘científica’ empreendida sob SCs, tornamo-nos livre de pensar
na possibilidade da aproximação mais adequada do ideal da inclusi-

66
Questões sobre a ética e a inocência do método

vidade e equitatividade, e assim na reabilitação do ideal da neutrali-


dade [N2] (Lacey 2013). Acho que tal reabilitação é uma condição
necessária para a ciência servir os interesses democráticos equita-
tivamente – e quebrar com a ciência, praticada hoje em dia nas
instituições científicas certificadas, que servem especialmente bem
aos interesses do capital e o mercado (Lacey 2008b; 2012a; 2012b).
A persistência da definição tradicional, que não reconhece as cre-
denciais científicas próprias de algumas SCs, reforçada pela prio-
ridade dada a pesquisa em tecnociência, que serve ao crescimento
econômico (§3.2; Lacey 2012a), constitui um obstáculo poderoso
à reabilitação da neutralidade por meio da inclusão entre as práticas
admitidas nas instituições científicas aquelas que usam SCs.

4.1 As SDs e os valores do progresso tecnológico (VPT)

Se não ficar parte da natureza da metodologia científica a ado-


tar apenas SDs (como eu mantenho), e se os argumentos em favor
da definição tradicional em vez da minha definição não estiverem
convincentes, como se explica a adoção quase que exclusiva dos SDs
na ciência moderna e na tecnociência (Lacey, 2012a), e a margina-
lização das SCs?
Ao centro da minha resposta, que ofereci em muitos escritos
(Lacey 2008a; 2010) e apenas sumario aqui, é o papel (pertinente à
adoção de estratégias de pesquisa) atribuído aos valores do progresso
científico (VPT): valores sobre o controle dos objetos naturais, espe-
cialmente o valor de aumentar capacidades humanas para exercer
controle tecnológico que penetra em sempre mais domínios da vida
humana e social, e o valor de definir problemas humanos, sociais e
ecológicos em termos que permitirem soluções derivados da pesqui-
sa conduzida sob SDs – e a não-subordinação destes valores a outros
(Lacey 2010: cap. 1).29 Existem relações mutuamente reforçadoras
entre a adoção das SDs e a sustentação dos VPT. Em primeiro lu-
gar, o aumento da capacidade para controlar e, portanto, o fortale-
cimento da manifestação dos VPT, depende em grande medida do
conhecimento estabelecido sob SDs. Além disso, embora muito
29. Na tecnociência contemporânea, os VTP têm relações dialéticas com os valores
do capital e do mercado (Lacey 2012a).
67
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

conhecimento obtido sob as SDs não decorre agora em aplicação


tecnológica e parte desse conhecimento nunca assim decorrerá, em
geral uma investigação conduzida sob as SDs serve para descobrir
conhecimento que leva (frequentemente em maneiras inesperadas)
à inovação tecnológica. Em segundo lugar, o entendimento obtido
sob SDs geralmente depende da obtenção do controle experimen-
tal, e há continuidade entre o controle experimental e o controle
tecnológico. Também cada vez mais depende da disponibilidade de
instrumentos que sejam produtos de avanços tecnológicos ligados
a VPT – e, às vezes, os próprios objetos tecnológicos proporcionam
modelos ou mesmo se tornam objetos centrais para a investigação
teórica sob SDs. A existência dessas relações de reforço mútuo e a
sustentação ampla dos VPT, no mundo contemporâneo, são partes
primárias da explicação do privilégio dado às SDs.30
Mas, explicação não é a mesma coisa de justificação. A adoção
quase que exclusiva das SDs poderia ser racionalmente justificada
só se existissem boas razões para sustentar os VPT – em vez de, p. ex.,
subordinar o valor de inovação tecnológica ao serviço dos valores de
sustentabilidade e justiça social.31 Existem boas razões para sustentar
os VPT?

4.2 Os pressupostos dos VPT

Argumentei (Lacey, 2010) que a sustentação racional dos VPT,


pressupõe a aceitação (baseada em evidências convincentes) de vá-
rias reivindicações, em que se incluem: (1) a inovação tecnocientífi-
ca fornece benefícios que contribuem geralmente para o bem estar
dos seres humanos; (2) existem soluções tecnocientíficas para os
30. A fecundidade e versatilidade das SDs, e a expansão rápida do seu alcance
(sem limite em vista), também faz parte da explicação (Lacey 2009); e, especial-
mente mais cedo na tradição da ciência moderna, o compromisso com a metafísi-
ca materialista era importante (Lacey 2011c; Lacey & Mariconda 2012).
31. Acho que o exercício do controle dos objetos naturais é um valor universal
– o que não é universal é a relação dele com outros valores sociais; a não-subordi-
nação dos VPT a outros valores sociais (‘a dominação da natureza’) é uma novidade
da modernidade. Podemos valorizar o exercício do controle e o aumento da
nossa capacidade para controlar de maneira subordinada a outros valores, p. ex,
justiça social e sustentabilidade, como proposta no Princípio de Precaução (Lacey
2006b).
68
Questões sobre a ética e a inocência do método

problemas humanos, inclusive aqueles ocasionados pelas mesmas


inovações tecnocientíficas; e (3) hoje, não há nenhuma proposta
alternativa viável disponível para seguir o crescimento econômico
baseado na inovação tecnocientífica.
Estes pressupostos, (1)–(3), estão abertos a investigação em-
pírica, e possível rejeição (ou confirmação!) na luz dos resultados
obtidos em pesquisa empírica; mas, para aqueles que sustentam os
VPT, eles tendem de ser considerados óbvios – parte do auto-enten-
dimento compartilhado da nossa idade. Porém, a investigação em-
pírica deles precisa usar SCs, desde que eles fazem afirmações sobre
fenômenos que não possam ser separados dos seus contextos sociais
e históricos. Então, o privilégio (quase que exclusivo) dado às SDs
não poderia ser justificado racionalmente sem o uso de SCs; mas,
o fato de usar SCs para este fim significa que a exclusividade (para
todas as áreas de pesquisa) não poderia ser justificada. A completa
rejeição do uso das SCs não faz nenhum sentido – exceto como uma
posição dogmática (Lacey 2009) – e este confirma que de dar privi-
légio (quase que exclusivo) às SDs fica incompatível com a ideal da
inclusão e equitatividade.
Nada disso implica dizer que as SDs não são bem adaptadas para
a investigação de muitos domínios da investigação, e.g., para a in-
vestigação da estruturas, interações, processos e leis subjacentes aos
fenômenos observados, e muitos fenômenos que não têm relações
causais pertinentes com os seres humanos. (As SCs complementam,
não substituem, as SDs.) Geralmente, também, a pesquisa condu-
zida sob as SCs utiliza conhecimento obtido sob as SDs – na agroe-
cologia, p. ex., conhecimento dos componentes minerais, bactérias,
etc, dos solos; na saúde pública conhecimento dos micro-organis-
mos que causam infecções, etc. As SDs são indispensáveis para a
pesquisa conduzida hoje em dia, mesmo para a pesquisa conduzida
sob SCs. Neste sentido, as SDs devem ser consideradas centrais para
a investigação científica, mas isso não implica prioridade ao ponto
de exclusividade, e fica compatível com o ideal da inclusividade e
equitatividade.

69
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

§5. O ideal da inclusividade e equitatividade e trans-


formação das instituições científicas

Se a metodologia científica estiver restrita ao uso das SDs, então


a ciência nunca poderá chegar a ser neutra, inclusive no sentido
inclusivo e equitativo (neutralidade [N2]). Mas, investigação cien-
tífica fecunda pode ser conduzida sob algumas SCs, e é necessário
utilizá-las para investigar fenômenos cujas identidades são intrin-
secamente ligadas aos seus contextos. A motivação para investigar
alguns destes fenômenos (com certa prioridade) geralmente segue
da sustentação de valores específicos – na agroecologia, p. ex., os
valores da sustentabilidade e da justiça social (Lacey, 2006a); na
saúde pública, a saúde da população inteira, inclusive dos pobres;
na tecnologia social, a capacidade para todos (especialmente os ex-
cluídos) de controlar as condições das suas vidas (Dagnino 2010).
Assim, da mesma maneira que existem relações do reforço mútuo
entre a adoção (quase exclusivamente) das SDs e os VTP, também
existem relações semelhantes entre a adoção das SCs e a sustentação
de valores sociais específicos, tal que o conhecimento obtido sob um
tipo das SCs geralmente serviria especialmente bem para informar
práticas que incorporam os valores sociais vinculados a adoção dele;
p. ex. o conhecimento obtido sob as estratégias da agroecologia ser-
ve especialmente bem práticas que incorporam os valores da justiça
social e sustentabilidade.
O reconhecimento da fecundidade de algumas SCs abre a pos-
sibilidade que a ciência chegue a uma aproximação razoável da ideal
da inclusividade e equitatividade (neutralidade [N2]). A realização
desta possibilidade dependeria da incorporação, dentro da comu-
nidade científica como um todo, de investigações conduzidas sob
um alcance amplo das estratégias (com algumas SCs, bem como
SDs), que incluiria, para cada perspectiva de valores viável susten-
tada numa sociedade democrática, uma estratégia vinculada (por
relações do reforço mútuo) à sua sustentação. Então, seria possível
a geração de um ‘cardápio‘ dos itens do conhecimento científico,
que talvez não contenha muitos itens (p. ex., alguns avanços na me-
dicina) valorizados universalmente, mas que serviria para todas as
perspectivas de valores – porque, do cardápio, os interesses ligados
70
Questões sobre a ética e a inocência do método

a cada uma das perspectivas de valor poderiam escolher alguns itens


relevantes para informar os seus projetos. Além disso, a realização da
possibilidade requeria uma distribuição equitativa dos recursos (fi-
nanceiros e outros) disponíveis para pesquisa, para assegurar que tal
muito quanto possível das estratégias obteriam a oportunidade para
desenvolver e mostrar a sua potencial fecundidade – talvez uma dis-
tribuição feita de acordo às prioridades determinadas em delibera-
ções com ampla participação democrática.32 Esta possibilidade não
poderá ser realizada nas instituições científicas certificadas, se elas
manterem as suas formas contemporâneas. Portanto, a possibilida-
de de chegar a ser neutro [N2] (inclusivo e equitativo), dependeria
da transformação destas instituições na direção de incorporar mais
adequadamente o alcance amplo dos valores sustentados nas socie-
dades democráticas, e reduzir a preeminência dos VPT e os valores do
capital e o mercado (Lacey 2008b; 2012b).33
Tal transformação afetaria as prioridades de pesquisa. Hoje, com
a ênfase nas inovações que contribuem ao crescimento econômico,
soluções tecnocientíficas são procurados (com prioridade) para pro-
blemas ligados à agricultura e à saúde – e em outras áreas também.
Há um espaço importante para a investigação conduzida sob as SDs
que procura aplicações tecnológicas (Lacey, 2012a), especialmente
quando ela e a aplicação dos seus resultados são informadas pelo
Princípio de Precaução (Lacey, 2006b). Porém, podemos questionar
o tipo da prioridade atualmente dada à tecnociência, que deriva da
32. Enfrentamos aqui questões (com dimensões filosóficas, praticas, políticas, e
no mundo da vida) sobre como institucionalizar tais deliberações democráticas e
identificar as próprias participantes nelas, e o que seria o impacto delas para o ideal
da autonomia da ciência. Hoje, estas questões têm uma certa urgência. A noção da
‘ciência bem-ordenada’ de Kitcher (2001) fornece um ponto de partida útil – ver
também Bensaude-Vincent (2012); Guespin-Michel (2012); Oliveira (2011).
33. Muitos interesses poderosos estão contra tal transformação, e a ideia dela geral-
mente parece estranho aos cientistas formados nas instituições científicas contem-
porâneas, quem tendem aceitar a definição tradicional da investigação científica,
a qual (para eles) não é um assunto de controvérsia. Consequentemente, tal trans-
formação (se realmente ser possível) só poderia produzida no curso de uma longa
luta com muitos e variados atores e dimensões (discutidos ao fim de Lacey 2008b)
– boa argumentação filosófica certamente não será suficiente.
71
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

sustentação dos VPT (e os valores do capital e o mercado) e do endos-


samento dos seus pressupostos (§4.2) – e também dos pressupostos
mais específicas, p. ex., aqueles usados para ‘justificar’ a prioridade
dada à pesquisa sobre os transgênicos, baseada na reivindicação que
os transgênicos são necessários para produzir alimentação suficiente
para nutrir todo o mundo (Lacey, 2006a; 2008b; 2010, Parte 2;
2011b).
Em vez de engajar em pesquisa agrícola orientada por este pres-
suposto dos transgênicos, as abordagens científicas frente aos pro-
blemas ligados a agricultura/comida/nutrição devem ser orientadas
por questões como as seguintes (que requerem investigação que usa
SCs, bem como SDs, inclusive SCs que têm vínculos fortes a formas
de conhecimento tradicionais e indígenos):

Quais métodos agrícolas – ‘convencionais’, transgênicos, orgânicos,


agroecológicos, biodinâmicos, de subsistência, indígenas, etc. – e em
quais combinações e com quais variações, poderiam ser sustentáveis e
suficientemente produtivos, quando acompanhado por métodos viá-
veis de distribuição, a fim de satisfazer as necessidades da alimentação
e nutrição da população do mundo inteiro por o futuro imediato e
previsível? Existem alternativas (variadas e combinadas de modo apro-
priado) com capacidade produtiva pelo menos tão grande quanto a dos
métodos transgênicos? Existem alternativas que poderiam satisfazer as
necessidades da alimentação e nutrição em contextos em que métodos
transgênicos podem ter pouca aplicabilidade (p. ex., em regiões em-
pobrecidas)? Os próprios métodos transgênicos possuem realmente o
potencial para desempenhar uma função principal – compatível com a
sustentabilidade – na satisfação das necessidades mundiais de alimen-
tação e de nutrição? Qual evidência apoia as respostas propostas a essas
questões? (Lacey, 2006a; 2008b; 2010, Parte 2; 2011b).

Essas questões não pressupõem a existência de uma única alter-


nativa (para as questões agrícola, alimentar e da saúde), mas evocam
uma variedade de alternativas complementares localmente específicas
que são simultaneamente: (a) altamente produtivas de alimentos
nutritivos, ambientalmente sustentáveis e protetoras da biodiversi-
dade; (b) mais afinadas com – e fortalecedoras de – as comunidades
72
Questões sobre a ética e a inocência do método

rurais e a diversidade de suas aspirações em relação ao lugar e à


cultura; (c) capaz de desempenhar uma função integral na produ-
ção de alimentos necessários para alimentar a crescente população
mundial; (d) particularmente bastante conveniente para assegurar
que populações rurais em países “em desenvolvimento” serão bem
alimentados e nutridos.34

Conclusão

O ideal da inclusividade e equitatividade (da neutralidade


[N2]) representa a única interpretação defensável do ideal da neu-
tralidade – e da ideia de que a ciência faz parte do patrimônio
compartilhado da humanidade – que foi afirmada durante toda
tradição científica moderna. Contudo, a ciência não poderá che-
gar a ser neutra (neste sentido) sem a utilização de alguns SCs; e
a minha definição da investigação científica (§3) sublinha a pos-
sibilidade das credenciais científicas sólidas a adotar algumas SCs
para a investigação de certos fenômenos. Assim, torna-se possível
para reabilitar o ideal da neutralidade na condição de que reco-
nhecer o papel indispensável das SCs nas investigações relevantes
(p. ex., aquelas sobre os riscos das, e as alternativas às inovações
tecnocientíficas), e fornecer recursos adequados para desenvolver
as pesquisas sob as SCs apropriadas. Isso leva a questionar a pri-
mazia atualmente dada nas instituições científicas para a procura-
ção de inovações tecnocientíficas em perspectiva à contribuição
ao crescimento econômico no sistema socioeconômico mundial
prevalecente. Também, legitima cientificamente a orientação da
pesquisa agrícola (e de outras áreas) por meio das questões sobre o
espaço das (teorias, metodologias e práticas) alternativas – e, mais
geralmente, por meio desta questão:35

34. Estas são questões sobre o espaço das alternativas agrícolas. Acho que questões
sobre o espaço das alternativas devem preceder toda pesquisa que visa a inovação
tecnocientífica. Espero que os leitores identifiquem questões sobre o espaço das
alternativas nas ciências da saúde.
35. Respondo às vários aspectos desta questão em muitos dos meus escritos recen-
tes (ver Referências), e nas discussões do Forum Mundial de Ciência e Democracia.
73
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)
Como deve a pesquisa científica ser conduzida (e por quem), e as
tecnologias desenvolvidas e administradas, de modo a assegurar que
a natureza seja respeitada, que seus poderes regenerativos não sejam
mais solapados, e restaurados sempre que possível, e que o bem-estar
e os direitos de todos sejam fortalecidos em todo o mundo?

Essa questão reflete o meu interesse em obter conhecimento


cientifico que serviria para fortalecer os valores da justiça social
e da sustentabilidade. Ao mesmo tempo, no contexto atual da
ciência institucionalizada, subordinada aos valores do progresso
tecnológico e do capital e o mercado, a pesquisa motivada pela
minha questão contribui para a realização mais adequada do ideal
da inclusividade e equitatividade. O ideal da neutralidade [N2],
quando estiver em uma aspiração da ciência, é um aspiração da
comunidade científica como um todo, cuja aproximação depen-
deria da pesquisa, conduzida sob um pluralismo das estratégias,
onde (até certo ponto) a pesquisa conduzida sob cada estratégia
tem relações do reforço mútuo com perspectivas de valores parti-
culares. Pessoalmente, ‘nunca poderei chegar a ser neutro,’ e afir-
mo que pesquisa conduzida sob só um tipo de estratégia não pode-
rá ser neutra. A aspiração para acordar ao ideal da inclusividade e
equitatividade (neutralidade [N2]) requer (dentro de outras coisas)
que esse espaço se abra nas instituições científicas para pesquisas
conduzidas em resposta a minha questão.

74
Questões sobre a ética e a inocência do método

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76
A Crítica do Ressentimento:
Filosofia e Psicologia Social.
De Friedrich Nietzsche a Theodore Dalrymple

Luiz Felipe Pondé

A elevação dos direitos a benefícios tangíveis leva as pessoas, inevita-


velmente, a uma mentalidade vil que oscila entre ingratidão, na melhor
das hipóteses – pois por que razão elas deveriam ser gratas por receberem
algo que é um direito – e, na pior das hipóteses, ressentimento. O ressen-
timento, a única emoção humana que pode durar a vida inteira, provê
infinitas justificativas para suas más ações.

Theodore Dalrymple

Abertura

Este pequeno ensaio está dividido em duas partes. Na primei-


ra, busca-se iluminar a crítica que Nietzsche faz ao ressentimento,
revelando sua natureza ontológica e não apenas social ou histórica.
Sofremos com nosso lugar vazio de sentido num universo vazio.
Na segunda parte, vamos ao psiquiatra inglês Theodore Dal-
rymple para ver como ele critica o ressentimento num mundo que
superou, pelo menos no plano do discurso das classes mais eruditas,
o ressentimento na sua face cristã (um mundo que assimilou a crí-
tica nietzschiana à metafísica e ao cristianismo e a levou ao jardim
da infância).
Morto Deus, o ressentimento trocou de lugar, e assim como a
política tomou o lugar da graça na esperança de redenção do mundo
(a teologia perdeu para a ciência política o lugar de disciplina que
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

articula a salvação do mundo), o ressentimento migrou do adoe-


cimento do Eros (presente na crítica nietzschiana a vida ética em
detrimento da estética) para o adoecimento da vida social por culpa
de uma politica que se oferece como redentora do sofrimento. Se a
metafísica oferecia um outro mundo, as políticas do ressentimento
oferecem uma outra sociedade e um outro homem. O adoecimento
permanece e toda uma elite burocrática (composta de psicólogos,
cientistas sociais, assistentes sociais, pedagogos, políticos e técnicos
em políticas públicas) nasce a serviço dessa sociedade dos ressenti-
dos.

I. Friedrich Nietzsche e o ressentimento ontológico:


tragédia e niilismo.

A filosofia do martelo e o conto narrado por um idiota

Havia uma pequena estrela no céu e ao redor dela girava um


pequeno planeta. Neste habitava uma raça de insetos. Estes criaram
uma coisa chamada “conhecimento” que durou por 1 milhão de
anos. Os insetos davam um enorme valor a sua pequena criação.
Um dia a pequena estrela se apagou, o pequeno planeta morreu e
com ele a raça de insetos. E o universo continuou no seu enorme
silêncio e na sua enorme indiferença.
Interessante este modo de contar a história da nossa humanida-
de. Modo este nietzschiano, modo este da filosofia do martelo. Seu
objetivo, conhecido de toda fortuna crítica, é o estabelecimento da
verdade, no sentido extra-moral, para além de bem e mal, do nosso
estatuto cosmológico. Insignificante é nosso estatuto, não há o que
fazer. O sol não existe para nos aquecer nem para iluminar nosso
dias. Não há telos para nós. Como diria Macbeth na cena V do 5o
ato da peça shakespeariana que leva seu nome, “a vida é um ator
correndo de um lado pro outro do palco, um conto narrado por um
idiota, cheio de som e fúria, significando nada”. Esta afirmação do
nada de nosso significado cósmico, hoje, parece assunto de crianças
brincando no parque. Mas, na realidade, a consciência desse nada
de significado é tão antiga quanto a tragédia ática. O nome da ba-
nalização dessa consciência do nada é niilismo. O niilismo cristão

78
Questões sobre a ética e a inocência do método

da segunda metade do século XIX, para Nietzsche, era um modo


triste e covarde de enfrentar este nada de significado, este nada de
sentido. O niilismo era o reconhecimento melancólico do conto
narrado pelo idiota de Shakespeare. Tendo matado Deus, o europeu
de seu tempo mergulhava então numa tristeza profunda porque,
mesmo sem a fé, ele buscava desesperadamente um sentido para sua
correria no palco.

A metafísica e o platonismo pra pobre

Indo mais fundo, percebemos que o que está por detrás do


niilismo cristão e da perda da fé é o desespero de que a vida seja
apenas um mar de lágrimas. Num dado momento da história os
homens se entregaram à negação da vida como ela é, e começaram a
crer num mundo além deste. Hebreus, metafísicos gregos, cristãos,
monges, todos no Ocidente (o Oriente teve os seus traidores da vida
também) criaram, cada um a seu modo, uma explicação falsa para
a existência do sofrimento (modo estético, sensorial, da condição
cosmológica indesejável descrita acima). Do medo do sofrimento,
passamos ao adoecimento do Eros, negociando contra a vida (como
ela é) em nome de uma (outra) vida que não existe. Com este Eros
adoecido, demos a vitória a mentalidade de escravos a espera de um
mundo outro, perfeito. A versão chique de Platão, sua difícil meta-
física do mundo das ideias, foi seguida pela versão autoajuda, básica,
do evangelho cristão, o famoso platonismo pra pobres. A morte de
Deus, no pensamento do nosso filósofo do martelo, é exatamente a
crise de fé neste sistema de defesa de uma outra vida, esta perfeita.
Morre a fé, mas fica o desespero com a vida imperfeita, este deses-
pero é o niilismo cristão, ou, “passivo”, como alguns denominam o
niilismo melancólico presente na fala de Macbeth.

A descoberta do ressentimento.

Mas o que está por detrás desse niilismo passivo e desse plato-
nismo pra pobre? Um sentimento meloso e rancoroso contra o fato
de que o ser é indiferente a nós. Queríamos ser os filhos amados da
poeira cósmica, mas somos apenas mais poeira cósmica num mar de

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

poeira cósmica. O nome desse sentimento é ressentimento, aquele


tipo de ódio poderoso que para a vida em nome de um suposto
direito a que a vida fosse diferente do que ela é, uma exigência de
que as estrelas nos amem e conspirem a nosso favor. Na realidade, o
ressentimento em Nietzsche é ontológico. A metafísica, o cristianis-
mo e o niilismo passivo são apenas formas de lidar com esse ressen-
timento ontológico contra nosso estatuto cosmológico. O filósofo
do martelo vai investir contra este ressentimento na sua crítica à
metafísica, ao cristianismo, ao niilismo e ao amor aos ídolos que
anima nossa covardia.

So farewell hope...

A “esperança” de Nietzsche é que ao perdermos toda e qualquer


esperança, ao refazermos o caminho (ainda que pensado em outra
chave) do poeta inglês do século XVII John Milton em seu “Paradise
Lost”, So farewell hope, and with hope, farewell fear (Então, adeus a
esperança, e com a esperança, adeus ao medo), teremos a chance de
curar o ressentimento. Quem perder a esperança, perderá o medo,
e quem perder o medo, superará o ressentimento. A teologia judai-
co-cristã sabe que a esperança é uma virtude teologal, isto é, só se
pode ter esperança em Deus e jamais em qualquer outra coisa. Para
Nietzsche, morto Deus, permanece o desespero do ressentimento
porque permanece em nós o veneno da esperança numa outra vida.
Só os que perdem a esperança em outra vida aprendem a dançar.
A dança em Nietzsche como modo de viver é metáfora de sua defesa
da vida estética em detrimento da vida ética.
O adoecimento do Eros se manifesta numa busca impossível
por uma solução ética pra vida, na busca de normatividade e de
valores. Para Nietzsche, a ética é a prática dos ressentidos. Os fortes,
aqueles que não choram diante da ciência de Macbeth, tem uma
vida estética, gozam e dançam enquanto a vida escorre pelos dedos.
O romântico Nietzsche pensa a vida para além do ressentimento
como uma grande obra de arte., daí a ideia comum na fortuna crí-
tica de que para Nietzsche, o tal “Super Homem” nada mais é do
quem alguém que consegue ter uma vida autoral. A crítica nietzs-
chiana ao ressentimento deságua numa proposta romântica de vida

80
Questões sobre a ética e a inocência do método

estética, uma vida do heroísmo grego antigo. Não basta matar Deus,
há que matarmos a esperança de que haja alguma vida que não seja
a agonia infinita, repetitiva, e às vezes criativa, do eterno retorno do
mesmo. Eros só renasce no sangue de Agon (conflito). A paz é para
os fracos.

Da filosofia à psicologia social

O que vemos nessa passagem é um mudança do estatuto do


ressentimento: de ontológico manifesto numa angústia cosmológica
reprimida, ele passa a um lugar politico e social, e assim se faz de
novo quase invisível. Darlrymple, na sua obra ensaística, baseada na
experiência clínica em hospitais que atendem os pobres do Reino
Unido, nas cadeias e clínicas de recuperação para drogados, desvela
o modo como esse ressentimento continua a destruir vidas, sempre
negando sua natureza negadora da vida. O ressentimento teme a
imperfeição ontológica da vida como um todo. Se na crítica nietzs-
chiana identificamos o sonho da perfeição metafísica corroendo o
Eros, na crítica de Dalrymple, identificamos o ressentimento cor-
roendo o caráter pela via da esperança na da redenção política. De
novo, a negação da imperfeição da vida se move no subterrâneo,
agora, de uma sociedade que faz de nós retardados morais.

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II. Theodore Dalrymple e as políticas do ressentimento.

A era do ressentimento.

Dentro de alguns séculos, nossos descendentes não pensarão em


nossa época como a era do Ipad porque as tecnologias da informa-
ção que terão em mãos jogarão o Ipad na lata de lixo da pré-história.
Seremos sim lembrados como habitantes de uma era marcada pelo
ressentimento. Como chorões que exigem direitos das pedras, ge-
memos pelo mundo em busca de politicas que fundem a autoestima
como direito natural. Deixaremos nossa marca na história como
uma das eras mais covardes que já existiu. Viciados em conforto,
nossa imagem será a de um homem que culpa os astros, as famílias,
as escolas e as classes sociais pelas misérias que ele mesmo criou.

O iluminismo britânico

Não conhecemos bem o pensamento iluminista britânico por-


que somos colonizados na academia pelos franceses, e estes, pelo
alemães do século XIX. Para entendermos qual crítica o psiquiatra
inglês Dalrymple faz ao ressentimento num mundo pós morte de
Deus (o que os sociólogos chamam de “sociedade pós-cristã”) se faz
necessário esclarecermos alguns traços desse continente desconheci-
do, o iluminismo britânico.
Uma referência bibliográfica importante traduzida em língua
portuguesa para compreendermos o iluminismo britânico é a obra
Caminhos para a Modernidade, da historiadora americana Gertrud
Himmelfarb (editora “É Realizações”). Nesta obra, a autora descre-
ve o iluminismo britânico como sendo uma sociologia das virtudes.
Esta sociologia se caracteriza como um esforço conjunto de dife-
rentes autores entre os séculos XVIII e XIX para iluminar o modo
como a sociedade pode se tornar menos cruel e mais moral. Moral
aqui entendida na sua forma mais direta, a saber (tal como a des-
creve o filósofo americano Louis Pojman): moral é o modo como se
busca reduzir o impacto da precariedade da vida nas suas diversas
formas (dor, morte, injustiça, frustrações, violência) através de há-
bitos, costumes e normas escolhidas a fim de ampliar as condições
82
Questões sobre a ética e a inocência do método

para que os seres humanos realizem, na medida do possível, suas


potencialidades muitas vezes inviabilizadas pela precariedade estru-
tural da vida.
Apesar de diferenças entre esses autores (diferenças importantes,
mas que não ferem a hipótese central de nossa historiadora), al-
gumas questões convergem para um consenso mínimo, convergên-
cia esta que Himmelfarb chama de sociologia das virtudes. David
Hume, Adam Smith, Edmund Burke, Jeremy Bentham, John Stu-
art Mill, entre outros, compreendem a vida em sociedade como um
esforço para criar condições de possibilidade para uma vida moral
mais plena (ainda que jamais perfeita).
Himmilfarb caracteriza esta forma de iluminismo como não
sendo uma ideologia da razão perfeita (forma afeita aos franceses
e alemães), mas sim como uma reflexão mais ou menos sistemática
voltada para as ciências sociais. Mas essas ciências sociais são antes
de tudo uma ciência empírica da moral e marcada por uma recusa
da especulação vazia, em suas palavras, “a realidade não estimula
especulações”. A adesão ao projeto empirista inglês do século XVII
(Francis Bacon e John Locke) permanece evidente.
É neste movimento que Burke poderá chamar a declaração
de direitos humanos dos franceses de “metafísica do homem” e os
utilitaristas condenaram a ética kantiana como mera especulação
que não leva em conta os recursos da natureza humana, a saber,
nossa tendência inexorável a fugir da dor e buscar o bem estar. Hume
afirmará que “knowledge is feeling” e com isso identificará a razão
como contaminada na raiz por conteúdos das paixões (affections), e,
portanto, não levar em conta “os limites naturais da razão” é fazer
um conhecimento cego para com a vida profunda do intelecto, isto
é, sua natureza afetiva. Stuart Mill, por sua, defenderá a presença
de uma “moral affetction” como território necessário das escolhas
morais, e Adam Smith dirá que esta vida moral tem seu epicentro
nos “moral sentiments” que formam nosso caráter.
Buscando uma síntese, diríamos que a vida moral se dá num
território social concreto que afeta a alma (não em sentido religio-
so, claro). Esta “affection” limitará a razão na sua compreensão do
mundo, mas a convocará para entender o modo como podemos agir
sobre esta mesma “affection” (ou “moral sense”) no sentido de fazê-la

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

parceira de uma vida menos precária. No limite, a vida moral é uma


questão de caráter e não de razão ou ideias. O modo como este
caráter se organiza é o modo como se constrói ou se destrói hábitos
de comportamento no dia a dia. Portanto, a diferença dos franceses,
a vida prática para os iluministas britânicos é um problema moral e
não de ideologia política.
Há aí presente uma noção de “natureza humana” que apesar de
não ser um conceito ontológico (não fala de “essências”), permanece
sendo um conceito que exige atenção como uma experiência histó-
rica delimitando as possibilidades de qualquer engenharia social que
fuja da sociologia “científica” das virtudes. Não respeitando essa “
natureza humana”, levamos os homens a uma vida moral (affection)
degenerada. E é isto que as políticas do ressentimento farão ao negar
a existência de um modo concreto de produção de virtudes. Vere-
mos que assim como para Nietzsche, o problema do ressentimento
permanece sendo uma questão moral e relacionada à produção de
vícios e virtudes.

A vitória do iluminismo francês e as políticas do ressentimento.

A versão francesa de iluminismo venceu: todos esperamos da


política a redenção da vida, por isso será a política que acomodará
as mentiras do ressentimento e não mais a metafísica ou as religiões,
pelo menos no mundo pós-cristão, porque ela fez uso da critica a
metafísica mas não criticou sua própria raiz ressentida, a saber, a
ideia de que exista uma cura para a condição humana de precarie-
dade. A sociologia das virtudes poderiam iluminar melhor o fato
que os homens morrem de medo da condição humana e de como a
vida é precária no plano mais profundo da experiência psicológica e
histórica do que a política moderna e sua vaidade. Não é por outra
razão que Burke acusará o pai do racionalismo político francês,
Jean-Jacques Rousseau, de “o filósofo da vaidade”.
O racionalismo político francês se impôs, nas suas diversas for-
mas, inclusive no seu viés alemão (hegeliano-marxista), prometendo
a cura do mundo através da ação política programática. Este racio-
nalismo político tem origem no pensamento de Rousseau e sua in-
tuição de que a humanidade se corrompeu por desejar mais do que

84
Questões sobre a ética e a inocência do método

necessita. A cura, portanto, seria restituir o equilíbrio de desejo e


necessidade através de uma ação politica revolucionária que desse o
poder àqueles nos quais a corrupção fez menos estrago: os pobres, as
vítimas de uma civilização que não só negou a eles o perfeito estado
de natureza (onde o equilíbrio de desejo e necessidade habitava o
mundo assim como belas árvores), como também os possíveis frutos
de um (indesejado) avanço técnico-científico e cultural.
Hegel ou Marx nada mais fizeram do que colocar Rousseau “de
trás pra frente” ao dizer que a história nos levaria de volta ao estado
de equilíbrio ontológico presente no mito do estado de natureza
perfeito (o bom selvagem de Rousseau seria o ponto de chegada
e não de partida). Mas a questão essencial para Dalrymple é: por
que o marxismo e rousseaunismo (e Foucault, esse Nietzsche para
preservar o ressentimento travestido de liberdade) seriam a raiz das
politicas do ressentimento?
Sabemos, claro, que Rousseau e Marx são pais da mentalidade
melhorista da engenharia social e política: o racionalismo prático
político nos salvará, claro, via aqueles que levam esta engenharia a
cabo contra os que nela não creem. Mas há ai um detalhe essencial,
que já nas leituras básicas que fizermos de Marx e Rousseau, podere-
mos perceber: tanto o profeta alemão da redenção política quanto o
profeta francês da mesma, trabalham com a ideia de que os homens
são vítimas da ação política e social má de alguns poucos outros
homens e que esta ação é a responsável por todo o mal no mundo, e
não, por exemplo, o caráter moral de cada um, claro, sob as mesmas
influências que todos os homens sofrem e que podemos resumir
com o nome de “contexto”. Mas, sabemos que nem todos reagem da
mesma forma ao “contexto”. Por exemplo, irmãos vindos da mesma
família, mesma origem e mesma escola, enfim, de contextos iguais
são evidentemente diferentes, um podendo virar ladrão, outro pa-
dre, outro médico. Esta diferença de virtudes é negada pelos racio-
nalistas políticos em favor de uma ação programática (deles, claro),
afirmando-se a responsabilidade moral como sendo vazia e no lugar
dela identificam causas “sociais” que partem do princípio de que os
agentes morais são o que são por serem vítimas de uma estrutura
que os determinam. A engenharia social deverá mudar estas causas,
libertando os homens de seus algozes etiológicos. É justamente aqui

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

que se materializa a redenção política. E também justamente aqui


que nascerá a vitimização que destrói o caráter moral dos homens
aniquilando a saudável (ainda que sofrida) responsabilidade que se
deve ter pela própria vida.
As políticas do ressentimento nascem do encontro desta viti-
mização e do esvaziamento da responsabilidade moral dos agentes.
E por que? Porque ocultam o principio ontológico da condição
humana, segundo o qual, temos medo da vida (reconhecidos por
distintos autores, desde os trágicos, passando pela psicanálise, pelo
darwinismo, por Nietzsche e por tantos outros). Ao invés de criar
condições para que as virtudes de enfrentamento da condição hu-
mana se façam, as políticos do ressentimento alimentam a covardia,
destruindo justamente aqueles que supostamente querem ajudar: os
mais pobres.

As vítimas e o Estado de Bem Estar Social

As políticas do ressentimento podem ser resumidas nas políticas


segundo as quais o Estado deve ser responsável pelo sujeito.
No nordeste, região bastante marcada pelo uso da bolsa família,
já se apresentam sinais que no Reino Unido são conhecidos há mui-
to tempo e, evidentemente, em escala muito maior: pessoas recusam
trabalho (mesmo que ganhando mais) para poder continuar a rece-
ber o bolsa família. O caráter humano, em muitos casos se revela
repetitivo e monótono: o trabalho e a virtude “custam caro” no dia
a dia, melhor a preguiça. O problema é que a preguiça, como todo
vício, destrói o caráter.
Dalrymple, trabalhando com as classes pobres do Reino Unido
vê na sua clínica exemplos contínuos da vitimização como forma de
vida. O Estado de Bem Estar social britânico estimula nas pessoas
um discurso no qual ser vítima é forma de vida. Para além do nosso
tema específico neste pequeno ensaio, é sabido para qualquer um
que queira ver, que ser vítima hoje pode ser um bom negócio. No
Brasil, por exemplo, pagamos indenizações para famílias de guerri-
lheiros que foram pra luta armada porque quiseram e no entanto,
por razões ideológicas, o Estado brasileiro nos obriga a todos a pagar
a quem não devemos.

86
Questões sobre a ética e a inocência do método

A condição de vítima é definida pela incapacidade de alguém


em não ser responsável por si mesmo, e pela vantagem de assim sê-lo
porque receberá ganhos das políticas do ressentimento. O problema
é que o que alimenta este estado de espírito é o ressentimento pelo
fato de que a vida é “intratável”, dominada pela Fortuna, tal como
dizia Maquiavel.
Assumindo que somos todos vítimas, a educação britânica,
como nos diz o sociólogo Frank Furedi no seu magistral Therapy
Culture, de 2004 (descendente do historiador americano Chris-
topher Lasch e seus estudos acerca da cultura do narcisismo no ini-
cio dos anos 80), resolveu criar uma linha pedagógica especifica para
cultivar nos alunos a autoestima, gerando um exército de narcisistas
incapazes de somar 2 + 2 = 4 (exigir isso deles seria opressão!). Fa-
zendo dos alunos dependentes do “direito à autoestima”, os futuros
adultos facilmente escorregam para a falta de caráter (não assumem
as comuns e nem sempre divertidas obrigações adultas) justificando
seu comportamento no fato de não receberem as condições neces-
sárias para ter uma boa autoestima. O drama maior é que ao ser
reduzido a uma vitima dependente, aqueles que poderiam ter uma
vida melhor não a tem porque sua real autoestima é destruída pelo
fato de saberem, no fundo, que não tem caráter o suficiente pra
enfrentar a vida assim como suas irmãs, irmãos ou amigos. Sabe-se
que pessoas vindas de contextos iguais não necessariamente desen-
volvem comportamentos idênticos.

A nova astrologia

Darlymple, na abertura do seu Life at the Bottom cita uma pas-


sagem do Rei Lear, de Shakespeare (ato I cena 2) representativa de
sua tese acerca da vitimização como instrumento de negação do res-
sentimento no mundo poscristão.
Na citação, ladrões, mentirosos, golpistas, covardes de todos os
tipos culpam os astros por seus atos. A má fortuna (em si indiferente
a todos, e aqui estamos perto de Nietzsche) é considerada persegui-
ção cósmica. No mundo das políticas do ressentimento, tudo que
acontece é remetido ao “social” como sendo responsável pela vida.
O comportamento irresponsável, a fraqueza de caráter, a mentira,

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

tudo é causado pela sociedade que deve a este individuo uma vida
melhor (como se uma vida melhor fosse função dos astros ou dos
outros). O sistema é culpado, não eu. Meu “eu real” é bom e ho-
nesto, mas a sociedade “me faz fazer o que eu faço”, o sistema faz.
“A faca apareceu em minha mão”, não eu que a peguei (relatos de
homens que esfaquearam suas mulheres (pacientes de Darlymple)
mas se diziam inocentes porque não sabem como isso aconteceu.
Neste discurso, um “eu fenomênico”, mau, nada tem a ver com o
“real me” (real eu), bom e inocente. O “eu fenomênico” é o causado
pelo sistema.
O determinismo sociológico do ato moral (o marxismo é um
dos melhores casos “científicos” desta forma de determinismo com
sua “astrologia da luta de classes”) elimina a escolha moral do sujei-
to, tornando-o vítima do sistema ou da sua classe na luta de classes.
O ressentimento contra o fato óbvio de que a vida sempre foi, é e
será “unfair” se associa a uma desculpa ideal para não ter que assu-
mir sua responsabilidade na “derrota”. A nova astrologia se revela
aí: uma metafísica podre do social justifica a derrocada do caráter
do sujeito. Ao eliminar a escolha, elimina-se a possibilidade do sen-
timento de culpa (no varejo essa eliminação se manifesta em erros
históricos segundo os quais a culpa seria uma invenção da igreja
católica), e sem culpa não há possibilidade de desenvolvimento e
caráter. Saber-se incapaz de responsabilidade moral aumenta o res-
sentimento porque é um traço característico de pessoas sem caráter.

A burocracia do ressentimento e o mercado das políticas públicas


do ressentimento

Dalrymple suspeita que a contaminação do Estado britânico é


tal pelas políticas do ressentimento que seria impossível hoje des-
mantelar tal estado de coisas. Uma das marcas desta contaminação
é a burocracia e sua consequente “nomenclatura” do ressentimen-
to. Não só políticos de carreira se fazem em cima das políticas do
ressentimento, mas também profissionais técnicos ou mesmo teóri-
cos, como acadêmicos que de dentro da universidade reproduzem
o discurso da vitimização e de seu “comprometimento” com essas
vítimas sociais (apesar de que na vida institucional universitária atu-

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Questões sobre a ética e a inocência do método

am de modo a destruir adversários teóricos, ideológicos, manipulam


bancas e concursos ao bel prazer).
Uma legião de “helpers” ganha a vida. Compram carros, viajam
à países tropicais, têm amantes, compram TV e carros, graças ao
discurso que torna as pessoas cada vez mais dependentes das po-
liticas do ressentimento: psicólogos, pedagogos, assistentes sociais,
psiquiatras, professores, terapeutas de todo tipo dependem daqueles
que dependem deles. Sem o discurso da vítimas essa nomenclatura
não teria emprego. Pesquisadores pesquisam a fim de reproduzir o
discurso da vítima social e com isso aumentar o vazio da responsa-
bilidade moral, mas, o que mais importa, ampliar o mercado das
políticas do ressentimento, garantindo cursos de graduação e pós-
graduação, formando uma legião de especialistas que garantem a
“cientificidade” da vitimização e portanto da necessidade de políti-
cas do ressentimento.
As pessoas, “consumidoras” desses professionais públicos en-
tram num círculo de vida em que são cada vez mais legitimadas em
sua falta de caráter e com isso cada vez mais se tornam dependentes
dos professionais das politicas do ressentimento e com isso ampliam
as ofertas de emprego nesse mercado das políticas públicas do res-
sentimento. Um círculo infernal que aniquila aqueles mesmo que
deveriam supostamente “ajudar”.

Multiculturalismo e comida étnica

Interessante observar como nesse universo do ressentimen-


to articulado socio-politicamente o tema do multiculturalismo
surge como claro sintoma. Acostumado a lidar com imigrantes
de todos os tipos no Reino Unido, Dalrymple percebe claras
diferentes entre eles quanto a capacidade de por alguma ordem
na vida (coisa difícil e sofrida). Sem se preocupar com causas te-
ológicas, no caso das religiões, nem entrando no mérito de qual
“cultura” seria mais bem sucedida em cuidar de seus membros,
o psiquiatra desvela o movimento que, sem tocar neste espinho-
so assuntos das diferenças de valor entre hábitos culturais, nega
todo o problema afirmando que todas as culturas são lindas e
podem sim viver sempre bem.

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

A analogia crítica que ele usa costumeiramente para descrever


tal fuga é a da praça de alimentação étnica. Segundo Dalrymple, os
defensores de “toda cultura é linda e pode conviver bem” confunde
vida real com mistura de molhos de comidas étnicas. A superficia-
lidade aqui serve bem à ignorância antropológica, ou pior, a opção
ideológica toma o lugar da percepção antropológica. Casais de cul-
turas diferentes passam anos a aprender a conviver um com o outro,
assim como milhares de pessoas que partilham um espaço público
comum. As políticas do multiculturalismo são exemplos claros das
políticas do ressentimento porque elas negam a dificuldade inerente
ao ser humano de suportar o outro e de ter muitas vezes uma sen-
sação fortíssima de razão em não tolerar esse outro. Por exemplo,
aprender a gostar de comida japonesa seria o mesmo que aprender a
gostar de quem corta clítoris de meninas?
Nada disso é para defender o horror ao outro, mas sim para
“não defender nada”, apenas perceber a dificuldade do convívio com
outras culturas e assim ver o tamanho do abismo moral que encerra
a condição humana.
O multiculturalismo desenfreado é um insulto à inteligência.
O que você faria se sua filha resolvesse casar com um homem que
considera normal cortar clítoris de meninas? Acharia lindo a “diver-
sidade”?

Sexo

Outra área de atenção do psiquiatra Dalrymple é a vida sexual


heterossexual. A chamada revolução sexual esvaziou a vida sexual
dos chamados impedimentos morais institucionais tornando as mu-
lheres mais acessíveis ao sexo sem compromisso. Ao longo dos anos
de sua clínica, ele percebeu que o fato dos homens não precisarem
de compromisso para ter sexo com as mulheres acabou por aumen-
tar os casos de violência sexual nas classes mais baixas. Evidente que
hipóteses como esta se batem contra o fato de que agora as mulheres
têm mais canais para denúncia. Mas o que chama a atenção do clíni-
co é que tanto homens como mulheres remetem à condição de vio-
lência a facilidade de fazer sexo com muitos parceiros sem compro-
misso. O estímulo por parte das políticas do ressentimento ao sexo

90
Questões sobre a ética e a inocência do método

fácil, ainda que “safe”, é evidência de que os burocratas que ganham


a vida com o ressentimento defendem a ideia de que as dificuldades
atávicas da vida erótica podem ser selecionadas se acabarmos com
a família e o casamento, identificados como repressivos e geradores
de sintoma, quando, na verdade, a vida erótica é um dos maiores
palcos de manifestação das carências tanto de homens quanto mu-
lheres, não só pelo aspecto instintivo do sexo quanto pelas pressões
das demandas do cotidiano. Ao negar a dificuldade estrutural da
vida erótica, os burocratas do ressentimento abrem espaço para uma
ainda maior desarticulação do afeto, cuidado e sexo entre as classes
menos privilegiadas que não contam com as ferramentas cotidianas
que o dinheiro compra, e que são, basicamente, de efeito amplifica-
dor das experiências diferenciadas da vida, como consumo de luxo,
viagens, psicoterapias mais eficazes e menos ideológicas, além do
cuidado profissional com os filhos.
Enfim, identificam-se falsamente as inconsistências da vida afe-
tiva como a família e o casamento e com isso se abrem as portas para
o descuido total com os parceiros.

A recusa do juízo moral

Por fim, vale a pena também apontar a tendência contemporâ-


nea, estimulada por filósofos relativistas, a negar a validade do juízo
moral dizendo que as pessoas não devem buscar desenvolver julga-
mento acerca dos comportamentos. Partindo de uma justa crítica
de práticas moralistas, no sentido que usa o senso comum para esta
expressão, filósofos, cientistas sociais e psicólogos defendem a ideia
de que não existe nenhuma possibilidade de opinar acerca da moral.
Aquilo que é dificuldade inerente a condição moral adulta (incerte-
zas, inseguranças, inconsistências de comportamento com relação a
valores defendidos) se transforma em negação infantil dessa dificul-
dade inerente à vida moral adulta (semelhante ao caso do sexo, an-
teriormente citado). Tal proposta estimula a pura e simples superfi-
cialidade da vida moral travestida de tolerância total para com todo
tipo de atitude. O ressentimento recebe aqui a bênção das ciências
humanas cultivando uma inconsistência moral julgada chique e an-
tropologicamente justificada. São os mais inteligentes e atentos que

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Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

mais sofrem na medida em que são levados a negar aquilo que veem,
a saber, o fato de que, sim, existem valores que se contrapõem apesar
da dificuldade em justificá-los universalmente. A fraqueza moral é
erguida em justificativa da ausência de esforço moral.

Questão final

Como a psicologia social, ciência justificadora de todo esse


ressentimento travestido de direitos a mentira social, pode negar a
responsabilidade moral do sujeito e fazer dele uma suposta vítima
das circunstâncias sociais e históricas se pessoas claramente agem
de modo qualitativamente distinto mesmo quando submetidas às
mesmas circunstâncias?

Referências Bibliográficas

DALRYMPLE, T. Anything Goes, the death of honesty, London: Monday Books,


2011.

-----------------. Life at the Bottom, the worldview of the underclass. Chicago: Ivan R.
Dee, 2001.

-----------------. Our Culture, What’s Left of it, the mandarins and the masses. Chica-
go: Ivan R. Dee, 2005.

------------------. Romancing Opiates, pharmacological lies and the addiction bureau-


cracy. New York: Encounter Books, 2006.

FUREDI, F. Therapy Culture, cultivating vulnerability in an uncertain age. London:


Routledge, 2004.

HIMMELFARB, G. The Roads to Modernity, the British, French and American En-
lightments. New York: Alfred A. Knopf, 2004.

Nietzsche, F. Basic Writings Of Nieztsche. New York: The Modern Library, 2000.

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Sobre os autores

Debora Diniz é professora da Universidade de Brasília, antro-


póloga e documentarista. Escreve sobre direitos humanos e bioética.

Hugh Lacey é Pesquisador Colaborador no Projeto Temático da


FAPESP: "Gênese e significado da tecnociência: das relações entre ci-
ência, tecnologia e sociedade", no Instituto de Estudos Avançados da
USP, e Scheuer Family Professor of Philosophy Emeritus em Swarth-
more College, Pennsylvania (EUA). Realizou seu bacharelado (1961)
e mestrado (1963) na University of Melbourne (Austrália), e seu dou-
torado (1966) na Indiana University (EUA) em história e filosofia da
ciência. Foi professor em Swarthmore College durante 1972–2003,
e professor visitante em várias universidades da Austrália, dos EUA
e do Brasil. Nos últimos anos, a maior parte de suas publicações diz
respeito a diversos temas vinculados às interações entre as atividades
científicas e os valores, incluindo os livros: A Controvérsia sobre os
Transgênicos: Questões científicas e éticas (2006); Valores e Atividade
Científica 1 (2008); Valores e Atividade Científica 2 (2010).

Leila Marrach Basto de Albuquerque, socióloga, mestre em


Sociologia da Religião e doutora em Sociologia da Ciência, ambos
pela PUC de São Paulo, é professora do Departamento de Educação
Física e do Programa de Pós-Graduação em Motricidade Humana,
Instituto de Biociências, UNESP – Rio Claro.
Leila Marrach / Rodolfo Puttini (org.)

Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé possui graduação em


FIlosofia Pura pela Universidade de São Paulo (1990), mestrado em
História da Filosofia Contemporânea pela Universidade de São Paulo
(1993), DEA em Filosofia Contemporânea - Universite de Paris VIII
(1995), doutorado em Filosofia Moderna pela Universidade de São
Paulo (1997) e pós-doutorado (2000) em Epistemologia pela Uni-
versity of Tel Aviv. Atualmente é professor assistente da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, professor titular da Fundação
Armando Álvares Penteado e colunista exclusivo do Jornal Folha de
S. Paulo.

José Carlos Rodrigues é formado em Ciências Sociais e em Di-


reito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É mestre e doutor
em antropologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e pela Université Paris VII, respectivamente. Professor
associado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pro-
fessor titular de antropologia na Universidade Federal Fluminense. Foi
pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico. Publicou os livros Ensaios em antropologia do poder
(Ed. Terranova, 1992), Higiene e ilusão (Ed. Nau, 1995), O corpo na
história (Ed. Fiocruz, 1999), Antropologia e comunicação (Ed. Loyo-
la, 2003), Tabu do corpo (Ed. Fiocruz, 2006), Tabu da morte (Ed.
Fiocruz, 2006), Comunicação e significado (Ed. PUC-Rio/Mauad,
2007), com Erika Lazary, Big Brother no Brasil (Ed. CRV, 2011) e,
com Everardo Rocha, Corpo e consumo (Ed. PUC-Rio, 2012).

Rodolfo Franco Puttini, sociólogo, doutor em Saúde Coletiva


é professor do Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Me-
dicina de Botucatu (UNESP) e do Programa de Pós Graduação em
Ciências da Motricidadde, UNESP - Rio Claro.

Stelio Marras, mestre e doutor em Antropologia Social pela


FFLCH/USP é professor e pesquisador em antropologia do Instituto
de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP).
Em 2003, foi premiado com a Melhor Dissertação de Mestrado de
Ciências Sociais pelo Concurso Brasileiro Cnpq-Anpocs de Obras
Científicas e Teses Universitárias em Ciências Sociais.

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