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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

Trabalho para a disciplina: Seminário de Dissertação I

Ontologia da linguagem: a diferença como elemento da escrita

Catarina Machioni Spagnol

Sob a orientação da Prof.ª Dra. Maria de Lourdes Sirgado Ganho

Dezembro de 2017
Índice:

Objetivo do trabalho ......................................................................... página 03

Introdução ......................................................................................... página 03

Ser, linguagem e escrita ................................................................... página 09

Introdução ao phármakon ................................................................ página 13

O phármakon sob a perspetiva de Derrida ....................................... página 21

Conclusão.......................................................................................... página 29

Bibliografia ...................................................................................... página 32

2
1. Objetivo

O objetivo desse trabalho consiste em apresentar, em primeiro lugar, uma breve


reflexão sobre a relação do Ser com a escrita, ao considerar esta enquanto um
desdobramento natural da linguagem. Em segundo lugar, busca apresentar uma leitura
crítica sobre a obra «A farmácia de Platão», de Jacques Derrida, que versa
especificamente sobre o diálogo de Platão denominado como «Fedro ou da beleza» e
que se refere ao valor da escrita. Para isso, os esforços serão distribuídos entre as duas
obras: a de Platão e a de Derrida.

Palavras-chave: ontologia; escrita; linguagem; phármakon; diferença.

2. Introdução

Milhões de pessoas estão conectadas a internet simultaneamente. Diariamente,


uma multiplicidade de informações são produzidas, reproduzidas e difundidas num
tempo mínimo. Uma nova realidade virtual está sendo criada pelo homem com o apoio
da tecnologia, e esta realidade resulta num conjunto de informações e novas
possibilidades de conexões formadas principalmente a partir de palavras, criptografias,
dados e números armazenados em rede de um modo recente e instigante. Em um
discurso numa cerimônia na Universidade de Turim, após receber o título de Doutor
Honoris Causa, Umberto Eco afirmou que a internet ainda é um mundo selvagem e
perigoso, pois a falta de hierarquia e a imensa quantidade de informações circulante são
piores do que a própria falta de informação e que o excesso desta provoca amnésia.
Veremos mais adiante que Eco parece ser um fiel seguidor de Platão, em virtude dessa
afirmação.
Diante da nova perspetiva que se abre diante dessa multiplicidade de
informações, há a necessidade eminente de pensar o Ser na relação com a linguagem,
assim como a aplicação desta, no âmbito do virtual, que é dividido basicamente, entre
textos e imagem. Logo, há a necessidade de se pensar mais do que nunca na relação
entre o Ser e a linguagem escrita. Para essa análise reflexiva, a presente investigação
fará uma leitura crítica de obras específicas de dois autores: Platão e Jacques Derrida.
Jacques Derrida nasceu na Argélia no ano de 1930, numa família de Judeus. No
livro Derrida em 90 minutos, Paul Strathern afirma que o nosso autor aos dez anos foi

3
obrigado a mudar-se para a França, onde foi vítima de inúmeros preconceitos em razão
da sua religião e também em virtude da sua condição de estrangeiro. Nesse contexto de
estrangeirismo e solidão, Derrida já percorria o seu caminho de formação acadêmica e
teve contacto com o existencialismo de Jean Paul Sartre. Além deste, ele também foi
influenciado por Edmund Husserl e Martin Heidegger. O nosso autor é um filósofo pós-
estruturalista cujo crivo passa pela tradição do sistema de linguagem. Logo, o objeto de
estudo dele engloba, entre outros assuntos, a representação do mundo através da
linguagem, representação que ele ousou desconstruir para que fosse possível analisar e
rever as estruturas fundamentais do sistema de fundamentação de crenças e verdades
sobre o qual se construiu o mundo. Entretanto, desconstruir a linguagem é de igual
modo, desconstruir esse sistema de verdades elaboradas, na qual a filosofia está
certamente inserida. Desconstruir é contrapor novos pontos de vista sobre velhas
questões.
Por esta razão, Derrida afirma que a linguagem delimita a filosofia, «a partir da
oposição, ingenuamente recebida, entre a língua e a oralidade, tentar-se elaborar uma
teoria do discurso filosófico, seria difícil contornar a questão clássica: será o discurso
filosófico regulado - até que ponto e segundo que modalidades – por determinações de
língua? Em outros termos, se considerarmos a história da filosofia como um grande
discurso, uma poderosa cadeia discursiva, não mergulhará ela numa reserva de língua,
reserva sistemática de uma lexicologia, de uma gramática, de um conjunto de signos e
valores? Não estará ela limitada, a partir daí, pelos recursos e pela organização desta
reserva?» 1
O primeiro alvo da desconstrução de Derrida foi Husserl. Sobre isso, Paul Strathern
escreveu que Husserl via a geometria como uma forma perfeita de conhecimento e que
existia num domínio de verdade atemporal, o que era, sem dúvida, uma verdade ideal,
existente «lá fora», esperando o momento de ser descoberta. A partir da perspetiva de
Husserl, Derrida afirmou que no coração da filosofia havia uma aporia e por implicação,
toda a nossa possível noção de conhecimento possuía em si o atributo da inconsistência.
A questão central formulada por Derrida acerca das ideias de Husserl era: como
podemos saber que a geometria está «lá fora», esperando ser descoberta? Strathern
evidenciou que Heidegger havia formulado questões parecidas e, ao fazê-lo, revelara
um pressuposto oculto subjacente à estrutura completa do nosso conhecimento. E longe
de estar fundamentado na intuição individual, esse pressuposto era puramente
metafísico. O que significa que estava de certa forma, acima e além do nosso mundo

1
Derrida, Jacques. As margens da filosofia. P. 215.

4
físico. Não se baseava em experiência de espécie alguma. Heidegger mostrou que toda a
ideia da filosofia ocidental e o conhecimento científico subordinado a ela estavam
alicerçados na noção de que, de alguma forma, em algum lugar, a própria verdade
poderia ser validada em algum sentido absoluto. Haveria um domínio da verdade que
não era relativo. O ―algum lugar lá fora‖ onde a geometria existia faria parte desse
domínio, ―uma presença‖, onde a verdade absoluta existia. Isso também garantia toda a
verdade. Ali, a verdade era validada pela sua própria presença. Ela existia. (Caso
contrário, haveria uma ausência.) Essa presença era absoluta, garantindo a verdade
absoluta. A identidade dessa presença existente não pode ser outra senão uma forma de
ser que conhece todas as coisas e sabe a verdade sobre todas as coisas, incluindo a si
própria. Esse é o significado da sua verdade. Existe uma coincidência entre ser e
conhecer nessa presença que garante a verdade de todas as coisas. 2
Importa salientar que Strathern escreveu que mesmo que a civilização ocidental
possa ter-se desenvolvido usando uma noção autocontraditória de verdade absoluta, sem
essa contradição ela desaba, por isso a forma com que Derrida lida com isso e com a
«impossibilidade» da filosofia é vital para qualquer consolidação de sua estatura como
pensador. O que Derrida deseja era aplicar a desconstrução em ampla escala, e fez isso
por considerar que «toda escritura e todos os textos têm as suas próprias metas obscuras,
contêm as suas próprias pressuposições metafísicas. Isso é especialmente válido para a
linguagem propriamente dita. O escritor, na maioria das vezes, está desatento para esse
fato. A própria linguagem que utiliza, inevitavelmente, distorce o que ele pensa e
escreve.» 3
Compreender a pretensão de Jacques Derrida é de vital importância para o
desenvolvimento do nosso trabalho. Sendo assim, não podemos deixar de lado aquele
que foi o segundo alvo da desconstrução desse nosso segundo autor: o filósofo francês
Renè Descartes e a sua famosa sentença: Cogito ergo sum. Como muito bem explicou
Paul Strathern em Derrida em 90 minutos, a partir do intelecto, Descartes queria
encontrar a certeza definitiva e como solução, elaborou um processo de dúvida
sistemática. Qual foi o resultado do método de Descartes? Ele descobriu que tudo o que
lhe restava era a possibilidade de duvidar de toda a certeza. Nas palavras de Strathern,
«seus sentidos poderiam enganá-lo, até sua sensação de realidade, por vezes, seria
incapaz de distinguir entre o sonho e a vigília. Da mesma forma, um dissimulado
espírito malicioso poderia estar enganando-o sobre a certeza absoluta da matemática. (E

2
Strathern, Paul. Derrida em 90 minutos. P. 08/09.
3
Strathern, Paul. Derrida em 90 minutos. P. 11.

5
uns três séculos mais tarde, Derrida voltaria a mostrar como isso poderia de fato
ocorrer.) Mas, por fim, Descartes descobriu que havia uma coisa da qual não poderia
duvidar. Essa era a certeza definitiva: Cogito ergo sum (Penso, logo existo). Não
importava como ele estava sendo enganado pelo mundo, a única coisa de que não
poderia duvidar era de que estava pensando.» 4
Ora, Derrida, o nosso filósofo questionador, discordou veementemente da
conclusão de Descartes e afirmou categoricamente que a certeza do Cogito ergo sum
somente evidenciou o quanto Descartes foi refém da linguagem. Novamente nas
palavras de Strathern, foi simplesmente a gramática a única responsável por conduzir
Descartes ao desfecho do ―penso, logo existo‖. A experiência definitiva de certeza,
como Hume mais tarde mostraria, não continha nenhuma noção de identidade ou até
causalidade («logo existo»). Em última análise, Descartes tinha apenas consciência da
coexistência do pensar e do ser. Talvez esse pensar e ser fossem até idênticos. Como
mais tarde Heidegger afirmaria, a nossa apreensão fundamental é «estar-no-mundo» —
essa é a intuição da fenomenologia, além do alcance da razão e da ciência. 5
Diante dessa sequência de ideias que apresentamos nessa parte introdutória do
nosso trabalho, chegamos ao momento fulcral de adentrar no ponto central da
desconstrução de Derrida, ao que concerne a fundamentação filosófica. Ele afirma que
6
«a consciência, a nossa intuição do mundo, está além da lógica.» A consciência e o
«espelho da linguagem» são as ferramentas que temos disponíveis para conhecer o
mundo e a nós mesmos, logo, estão na estrutura do conhecimento humano.7 Desse
modo, qualquer processo para além da razão não seria um coadjuvante na obtenção do
conhecimento, mas atuaria como mais um elemento dentro do processo aporético sobre
o qual esse conhecimento se constrói. Logo, tudo aquilo que a linguagem não diz cria
uma real possibilidade para a produção de novas verdades, a partir dos novos conceitos
aplicados e que permitam chegar a um novo significado.
Segundo Paul Strathern, o argumento central de Derrida aqui diz respeito, sim, a
como usamos o nosso conhecimento, seja ele intuitivo ou supostamente lógico. Como
expressamos a nós mesmos e o nosso conhecimento? Na linguagem. Mas também isso
não é absoluto, preciso ou lógico. Todas as palavras, todas as expressões e até o modo
como as colocamos na sentença geram ambiguidades nebulosas. A linguagem elude
clareza e precisão. Qualquer palavra possui o seu próprio significado, ou significados,

4
Ibidem. P. 11.
5
Strathern, Paul. Derrida em 90 minutos. P. 11.
6
Ibidem. P. 12.
7
Ibidem. P. 12.

6
mas também traz consigo um número maior ou menor de conotações obscuras. Existem
jogos de palavras, semelhanças que ecoam, referências sugestivas, interpretações
diversas, raízes divergentes, duplos sentidos — e assim por diante. A linguagem falada
pode aludir aos duplos sentidos na sua intenção. 14 Essa reflexão inicial sobre o modo
de pensar de Derrida é relevante porque, como afirma Strathern, é a partir dela que
compreenderemos que para ele todo conhecimento, seja ele intuitivo ou lógico, é
expresso através da linguagem e é em virtude dessa expressão que as ambiguidades são
geradas e o mesmo decorre com a escrita. Desse modo, o texto é contentor de
ambiguidade e a palavra, ao estabelecer contacto com o leitor e a sua interpretação, fica
sujeita a fluidez, criatividade e indecidibilidade, assim como passa a estar aberta a uma
multiplicidade de interpretações. Essa indecidibilidade é caracterizada pelo fato da fala
«dizer sempre mais do que queremos dizer.»8
Paradoxalmente, Platão, o nosso outro autor que dispensa longas apresentações,
é um filósofo tradicional, que inaugurou na filosofia ocidental a teoria do mundo das
ideias em contraposição ao mundo sensível, que é o mundo dos sentidos, considerado
como o local das sombras e do simulacro. O mundo inteligível — das ideias — seria
para Platão a verdadeira realidade, caracterizado por aquilo que é eterno, imutável e
divino. O Ser participa do mundo sensível, enquanto participa do devir, do que é
mutável, inserido na multiplicidade da vida. Contudo, ao Ser é possível vislumbrar o
mundo inteligível, acessar os ideais de Verdade, Beleza, Bem, Justiça, que seriam
absolutos, através da contemplação e da dialética, porque afinal, a alma é imortal e entre
as sucessivas experiências de vida participa do inteligível, logo, carrega consigo as
impressões das ideias supremas, denominadas de reminiscências. Portanto, temos de um
lado Platão e a sua ideia de verdade absoluta e do outro lado, Derrida e a sua perspetiva
de desconstrução da linguagem que tem como objetivo descentralizar a estrutura de um
texto para encontrar a contradição.
Em « A farmácia de Platão », Jacques Derrida passa atentamente a lupa sobre o
texto platônico na tentativa de resgatar pontas soltas sobre a obra platônica que
contribuiu para o fato da relegação da escrita para segundo plano no âmbito da
linguagem. O objetivo de Derrida é tentar recuperar o valor imanente da escrita. Entre
as duas perspetivas, a saber, a primeira que é a primazia da voz sobre a escrita ou a
segunda, que é a possibilidade de primazia da escrita sobre a voz, eis a pergunta que
podemos extrair a partir de Derrida e deslocar para um contexto de avanço tecnológico

8
Bernardo, Fernanda. O dom do texto — A leitura como escrita. P. 167.

7
onde caracteres, letras e palavras e são digitados com cada vez mais frequência: qual o
real valor da escrita?
Podemos ampliar a nossa reflexão, pois, a o questionamento feito acima, pode
desdobrar-se em outras questões, como, por exemplo, à qual categoria, afinal, pertence à
escrita e de que forma ela se relaciona com o Ser? Quais atributos podem ser conferidos
a ela? Segundo Platão, a escrita está num segundo plano, pois, o real valor da linguagem
estaria no verbo. Essa afirmação do valor da voz em detrimento do valor da fala,
decorreria segundo ele, principalmente em virtude da presença do indivíduo por trás do
discurso, assim como também através da inerente possibilidade de defesa de quem
profere o discurso diante de possíveis distorções e interpretações do ouvinte, numa
relação impossível de existir na relação entre a escrita - leitor.

Contudo, como nos mostra Derrida, o trágico enredo da vida de Sócrates narrado
através dos muitos diálogos Platônicos confirma que o discurso do Mestre não impediu
o governo da Grécia de acusá-lo de transgredir a moral e os bons costumes de toda uma
época. Diante da acusação, Sócrates foi obrigado a ingerir a cicuta como pena de morte.
No entanto, foram os textos escritos por Platão que atravessaram o tempo e permanecem
até os dias de hoje como ferramenta para manutenção, progresso e ressignificação do
conhecimento filosófico. Se Platão considerava que o phármakon — a escrita — pode
produzir efeitos nocivos, o feitiço virou-se contra o feiticeiro.

O discurso falado não escapou da má interpretação e, por outro lado, os textos


permaneceram e ainda permanecem traduzidos para muitas línguas e em virtude do
avanço tecnológico podem ser acessados hoje em qualquer lugar do planeta. O eco da
voz de Sócrates, através da escrita de Platão, está em cada palavra e pode ser repetido,
ainda que numa insistente imitação. Logo, sem sombra de dúvida é possível afirmar
que a escrita possui um efeito anacrônico e através de uma exploração minuciosa do
conceito de pharmákon, Jacques Derrida faz um esforço para afirmar o poder imanente
dela.

Em O caminho da linguagem, Heidegger afirmou que «o homem somente é


humano quando recebe a reivindicação da linguagem, reconhecendo-se assim para a
9
linguagem a fim de falar a linguagem.» Se não há Ser sem linguagem, tal como
afirmou Heidegger, a escrita — como um desdobramento dessa linguagem é igualmente
inerente ao Ser. Desse modo, a natureza é símbolo e uma cadeia de informações que o

9
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. P. 76.

8
homem, ao perceber-se capaz de exercer ciência, aprendeu a decodificar. Nesta
perspetiva do homem como um Ser recetor, mas igualmente emissor em contínua
relação com o mundo, capaz de processar informação e produzir um conjunto de
conhecimentos a partir delas, o símbolo passa a ser um coadjuvante da capacidade do
homem de co-criar o mundo de acordo com as suas necessidades, num ciclo eterno de
vida, morte e criação.

Com o que foi exposto até aqui podemos encerrar nossa introdução e avançar
para a primeira parte do nosso objetivo, que é apresentar uma breve reflexão sobre a
relação entre o Ser – escrita.

3. Ser, linguagem e escrita

« Na Grécia, os séculos VIII – VII a.C. testemunharam a germinação ou transplante


de instituições culturais cujo florescimento ulterior transmutaria revolucionariamente as
condições, fundamentos e pontos de referência da existência humana: a polis, o alfabeto
10
e a moeda.» Com a transcrição anterior iniciamos essa parte importante da nossa
reflexão. Jaa Torrano afirmou que antes do alfabeto, a sociedade arcaica conservava e
transmitia sua perspetiva de mundo e historicidade através do canto do poeta. Logo, a
imagem do poeta era de extremo valor para essa sociedade e o poder que ele possuía de
ultrapassar as fronteiras do espaço e do tempo a partir da voz — era concedido pela
Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas). Portanto, o canto (as
Musas) é nascido da Memória (num sentido psicológico, inclusive) e do mais alto
11
exercício do Poder (num sentido político, inclusive).» Ora, o poeta era o sujeito que
cultivava a Memória ao evocar a força da palavra, advinda de uma relação nome-e coisa
nomeada, «pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a presença da própria
coisa.» 12
Nesse ponto, consideramos de extrema importância resgatar o passado e fazer a
apresentação da Memória e das Musas, informação que será relevante em um momento
posterior deste trabalho. No contexto do arcaísmo, onde a linguagem preponderante é a
do mito, «o nome das Musas é o próprio Ser das Musas, porque as Musas se
pronunciam quando o nome delas se apresenta em seu Ser, porque quando as Musas se

10
Torrano, Jaa. Teogonia – A origem dos deuses. P. 13.
11
Ibdem. P. 15. Esse “mais alto exercício do poder” é uma referência a Zeus, expressão máxima do
poder divino que junto com Mnemosyne concebeu as nove Musas.
12
Torrano, Jaa. Teogonia – A origem dos deuses.. P. 16.

9
13
apresentam em seu Ser, o Ser-Nome delas se pronuncia.» Ora, as Musas (a palavra
cantada) evocam a presença de tudo aquilo que sem elas é simplesmente ausência, logo,
elas executam esse movimento do não-Ser para o Ser. Nessas circunstâncias, o nome é o
nume, o nome é a presença do Ser. Com efeito, tudo o mais que era nomeado, o era
através da evocação da força das Musas, a elas é concedido o poder de nomear e ao
nomear, desocultar o que estava encoberto. As Musas revelam o mundo através do
nome que evoca a força do Nume de cada coisa. Para tanto, as Musas são filhas de
14
Memória, «que gerou as Musas também como esquecimento» . Assim sendo, o mito
Hesíodico diz que as Musas envolvem o ouvinte no simulacro, na névoa daquilo que é
ausência. O âmbito da Memória abarca a presença e a ausência. E as Musas, enquanto
filhas de Memória, são as intermediárias desse processo de desvelamento. As Musas são
o Canto e o Canto é a personificação da Presença em si. Logo, não existiria Canto sem
Memória. Não existiriam Nomes sem Musas. Abaixo, a transcrição de um trecho do
poema de Hesíodo sobre as Musas.

Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,


Sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
15
E sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações.

Colocados perante essa introdução necessária, importa referir que Jaa Torrano
afirma que há todo um consenso sobre o facto de a arte da escrita ter feito das palavras
suas prisioneiras, mantendo-as sob vigilância constante e despojou-as do poder
encarnatório e imagético conferidos anteriormente a elas. Segundo esse autor, a
escritura tornou as palavras num instrumento «seco, fixo e preciso». 16 JaaTorrano é um
dos mais significativos tradutores de textos Gregos para a língua portuguesa em
atividade na atualidade e em um de seus livros, ele fez um estudo sobre a Teogonia de
Hesíodo. Apesar do estudo de Jaa Torrano não ser de cunho filosófico, mas sim
linguístico, o que nos interessa sobre o trabalho dele é obter a perspetiva do valor
conferido a palavra cantada na sociedade arcaica, um poder denominado como
ontopoético, de evocar através da Memória e do Canto a presença contida em tudo,
desde a matriz original do mundo até os seres, deuses e a vida dos homens. Nesse

13
Ibidem. P. 21.
14
Ibidem. P. 27.
15
Ibidem. P. 130.
16
Ibdem. P. 17.

10
sentido, a palavra cantada evocava a luz da Presença. Logo, o arcaico evocava a arkhé,
o Ser da palavra e esse é exatamente o ponto de relevância para nossa investigação.
Para complementar essa sequência de ideias, Claude Levi Strauss entende que a
linguagem em si apareceu muito cedo no desenvolvimento da humanidade. «E mesmo
que se considere a necessidade de dispor de documentos escritos para realizar um
estudo científico, temos de reconhecer que a escrita data de muito tempo e que fornece
séries suficientemente longas para possibilitar uma análise matemática. As séries
disponíveis em linguística indo-europeia, semítica e sinotibetana são da ordem de
quatro ou cinco mil anos.» 17 Neste sentido, ao considerar todo o tempo de existência da
linguagem, Claude Levi Strauss afirma que ela pode explicar a sua própria origem e
prever sua própria evolução. Contudo, ele afirma que mesmo com a possibilidade de
prever a evolução, nenhuma gramática do mundo conseguiria conter toda a força de
uma língua. Nenhuma prisão seria capaz de conter a força da consciência humana.
Nesta ordem de ideias complementares que apresentamos, compete-nos retornar
para o momento em que Jaa Torrano escreve que o Ser está na linguagem porque a
linguagem está no Ser, a partir do momento que «a linguagem é uma estrutura que
encerra para o homem não só todos os eventos e todas as relações possíveis entre eles,
18
mas ainda a própria consciência que o homem tem de si e do mundo.» A alma do
mundo (conceito apresentado no Timeu), tal como diria Platão, está em todos os
sistemas simbólicos e efetivamente, é possível deduzir que a natureza é um símbolo
carregado de informação que o homem aprendeu a ler.
Entre tantos outros filósofos, Jacques Derrida foi influenciado intensamente pela
obra de Martin Heidegger, já citado anteriormente. Certamente Jaa Torrano extraiu suas
inferências sobre a linguagem do pensamento de Heidegger (pois, assim ele cita-o ao
longo do seu livro) que afirmava que «guarda-se a conceção de que, à diferença da
planta e do animal, o homem é o ser vivo dotado de linguagem.» 19 Contudo, Heidegger
acreditava que a linguagem nos confia o seu modo de Ser, simplesmente porque razão é
linguagem - logos, uma força em constante movimento. A linguagem fala e ela apodera-
se do homem. «No nomear, as coisas nomeadas são evocadas em seu fazer-se coisa.
Fazendo-se coisa, as coisas des-dobram o mundo, mundo em que as coisas perduram,
sendo a cada vez a sua duração. Fazendo-se coisa, as coisas dão suporte a um mundo.»
20
Heidegger defende uma ontologia da linguagem.

17
Strauss, Claude Levi. Antropologia estrutural. P. 54.
18
Torrano, Jaa. Teogonia – a origem dos deuses. P. 32.
19
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. P. 07
20
Ibdem. P. 16 – 17.

11
Nessa ordem de ideias apresentadas, é pertinente trazer para o contexto do
desenvolvimento da reflexão inicial sobre Ser, linguagem e escrita, de um dos nossos
autores. Em «As margens da filosofia», Jacques Derrida aborda a categorização do Ser
efetuada por Aristóteles que segundo ele, é possível desvincular com as categorias da
língua e as categorias do pensamento. Nota-se a necessidade que Aristóteles tinha de
classificar as coisas e Derrida faz isso para propor que o processo Aristotélico de
categorizar era, em essência, uma tentativa de reconduzir a análise até o lugar de
origem. Ao categorizar, ele pretendia aprisionar na definição, a essência. A qual
conclusão ele chegou? A de que essa origem (matriz) que Aristóteles procurava seria o
Ser. « As categorias de Aristóteles são simultaneamente de língua e de pensamento: de
língua, enquanto são determinadas como resposta à questão de saber como o ser se diz
(legetai); mas também como se diz o ser, como é dito o que é, enquanto é, tal como é:
questão de pensamento, o pensamento, a palavra «pensamento» que Benveniste utiliza
como se a sua significação e a sua história fossem evidentes, não tendo em todo o caso
nunca pretendido dizer algo fora da sua relação com o ser, com a verdade do ser tal
como é e enquanto é (dito).»21
Do exposto até aqui, fica evidente essa relação entre Ser-Linguagem, ou melhor,
de que o Ser está na linguagem porque a linguagem está no Ser. Contudo, o objeto desse
estudo não é a linguagem em si, mas a escrita — o phármakon —, um desdobramento
da linguagem que supostamente aprisionaria a liberdade da consciência do Ser e
limitaria a representação do devir. Para que seja possível prosseguir nessa investigação,
a nossa referência será novamente Heidegger, filósofo que influenciou o nosso Derrida.

«De um lado, os sons da voz são símbolos das disposições da


alma, de outro, as marcas escritas o são dos sons da voz. E assim
como as letras não são as mesmas para todos, do mesmo modo
também os sons. São idênticas em todas as disposições da alma,
das quais os sons são os primeiros signos, como já são também
as mesmas coisas, das quais aquelas são semelhanças. Essas
sentenças de Aristóteles configuram a passagem clássica que
nos permite vislumbrar a estrutura da linguagem como
vocalização sonora: as letras são signos dos sons da voz, os sons

21
Derrida, Jacques. As margens da filosofia. P. 221 – 222.

12
da voz são signos das disposições da alma e essas, signos das
coisas.» 22

Logo, do mesmo modo que há uma relação entre o Ser-Linguagem, é possível


inferir que há uma relação entre o Ser-Escrita — o Ser que escreve para imprimir no
mundo o seu pensamento ou as suas disposições de alma, como diria Aristóteles. De um
jeito ou de outro, a palavra se faz escutar, porque, como aponta Heidegger, as palavras
são — de todos os modos que podem ser — uma extensão do próprio homem. O mundo
quer se relacionar com o homem e o homem quer se relacionar com o mundo, há,
portanto, uma dinâmica entre eles em contínua operação. Como as palavras são elas
podem ser captadas pelos sentidos, assim como tudo que está no mundo. Contudo, ao
mesmo tempo em que as palavras são, elas também não são e sobre essa ambiguidade
contida no texto, veremos mais adiante. Por hora, basta-nos introduzir que o Ser e o
não-Ser estão contidos na palavra, assim como as Musas descortinam ou encobrem,
revelam ou escondem, conforme a vontade de Mnemosýne (Memória). Colocado sob
essa perspetiva, Heidegger afirma que a palavra se dá ao Ser, a palavra concede a
presença do Nume. Com esses apontamentos essenciais, encerramos essa etapa da nossa
investigação e partiremos agora para o nosso segundo objetivo, que é apresentar uma
leitura crítica da obra de Platão e de Derrida.

4. Introdução ao phármakon

Sócrates — Para onde vais a esta hora, meu caro Fedro, e de


onde vens?

Fédro — Venho de casa de Lísias, o filho de Céfalo, caro


Sócrates, e vou dar um passeio até lá fora das muralhas. 23

O encontro casual entre Sócrates e Fedro marca o início do « Fedro ou da


beleza », obra que é primordial para o presente trabalho que, como já foi mencionado,
possui como um dos objetivos fazer uma análise comparativa entre a perspetiva de
Jacques Derrida e Platão sobre a temática do valor da Escrita, enquanto signos da voz,
que é inerente ao Ser. Para cumprir com o objetivo proposto, é preciso analisar a obra
de cada um deles separadamente. Começaremos com Platão. Contudo, essa introdução

22
Heidegger, Martin. A caminho da languagem. P. 80.
23
Platão. Fedro ou da beleza. P. 06.

13
ao phármakon deverá ser breve, em vista da necessidade de somente apontar os
elementos relevantes do diálogo Platônico para então, em um momento posterior,
analisá-los adequadamente, ao mesmo tempo em que eles serão contrapostos com a
perspetiva de Derrida.

Este diálogo Platônico dá-se através de dois personagens e desenvolve-se de um


jeito peculiar: Sócrates encontra Fedro que acabou de sair da casa de Lísias (que era um
importante escritor Grego), onde ouviu um discurso sobre o amor. Fedro diz para
Sócrates: «Convém esclarecer que Lísias escrevera uma dessas declarações que se
24
fazem aos jovens belos, mas a declaração não parecia a carta de um amante. »
Sócrates empolgado com a possibilidade de ouvir o que foi dito durante o discurso, pede
para que Fedro recite-o, mas este se julga incapaz desta difícil missão e recua: « Que te
parece, excelente Sócrates, achas que eu, um simples profano, poderia repetir
dignamente, de cor, à altura do seu autor, o que Lísias, o mais hábil dos escritores
contemporâneos, escreveu em tanto tempo e com tanta paciência? » 25 Sócrates insiste,
oferece apoio para ajudá-lo a rememorar os temas centrais, ao mesmo tempo, acusa
Fedro de melindre. Configura-se a partir dessa pequena discussão entre eles, os
primeiros indícios daquilo que será alvo da crítica de Sócrates ao longo do diálogo.

Fédro — Está bem, seja, farei como disse. Na verdade, caro


Sócrates, a questão é que não consegui decorar o discurso
palavra por palavra. Por isso, procurarei expor com exactidão
tudo o que Lísias escreveu sobre a diferença do homem que ama
e do homem sem amor, focando cada um dos pontos,
sumariamente, mas por ordem, a começar pelo primeiro.

Sócrates — Está bem, mas antes mostra-me, meu amigo, o que


escondes com a mão esquerda por debaixo do manto... Quase
juro que é o discurso! [...] 26

Em posse do manuscrito escrito por Lísias, Fedro seduz Sócrates e o convence a


sair dos limites da cidade e a acompanhar-lhe até a margem do rio Illisso para,
embaixo da sombra de uma árvore, ouvir a leitura do discurso. Como já foi mencionado,
o detalhe da saída dos limites da cidade é incomum para Sócrates, logo, é simbólico
para o entendimento geral da obra. Sair dos limites da cidade representa «abertura

24
Ibdem. P. 07.
25
Ibidem. P. 07.
26
Ibidem. P. 08.

14
simbólica a outros espaços e outras formas de afinidade e identificação»27, inclusive
política. Ou seja, sair dos limites da cidade é circular pela margem da Pólis, que é,
sobretudo, símbolo da ordem do mundo, o que implica que para abordar a escrita é
necessário ir além do que é comum. Entretanto, por hora, basta saber que o fato de
Sócrates sair do espaço urbano, significa que ele transgrediu um padrão, seduzido pela
curiosidade do conhecimento. « Tentando-me com um discurso, que conseguiste
possuir um manuscrito, antes de mim, se me acenares com ele, conseguirás que eu me
calcurrei toda a Ática, e mais ainda vá até onde resolveres arrastar-me!». 28

A saber, de modo geral, a obra «Fedro» abrange duas temáticas principais: o


Amor-Beleza e a Escrita – Verdade - Conhecimento. No entanto, esta investigação se
concentrará nesta segunda temática.

É a possibilidade do conhecimento que de facto, seduz Sócrates a acompanhar


Fedro. Já nas margens do rio, o conceito do phármakon é introduzido na obra, ainda que
de modo sutil: «Se eu fosse um incrédulo como os Doutores, não seria um homem
extravagante, além disso, afirmaria que ela tinha sido arremessada dos rochedos
29
próximos por um vento boreal, enquanto brincava com Farmacéia.» Dizer que
brincava com farmacéia é o mesmo que equipara-la a um jogo, uma brincadeira.

Os elementos que constituem a esfera da escrita – verdade – conhecimento


contida no «Fedro» são apresentados o tempo todo, contudo, aleatoriamente e
sutilmente, através de frases soltas, conforme o diálogo entre os personagens avança.
Desse modo, é preciso estar atento para capturá-las e juntá-las, para que em momento
posterior elas possam ser de grande utilidade na tentativa de compreensão total da obra.
Esses detalhes soltos, quando citados, serão aqui apresentados em negrito. Apresentá-lo-
emos conforme a sequência do próprio diálogo.

Com estes apontamentos, instigados pela captura dessas pontas soltas, deteremo-
nos no momento em que Sócrates menciona o imperativo Délfico: « [...] ainda não
consegui, até agora, conforme recomenda a inscrição délfica, conhecer-me a mim
mesmo; por isso, vejo quanto seria ridículo, eu, que não tenho o conhecimento de mim
mesmo, me dedicasse a estudar coisas que me são estranhas. » 30

Outro trecho importante aparece-nos conforme avançamos pela obra: «Não lhe
27
Azevedo, Maria Tereza Sciappa de. O Fedro Platônico: um olhar fora da muralha. P. 73.
28
Platão. Fedro ou da beleza.P. 19
29
Platão. Fedro ou da beleza. P. 15
30
Ibidem. P. 10.

15
encanta o ar puro que se respira aqui, não é ele desejável e prodigiosamente
agradável? Cristalina melodia do verão, que se faz eco ao canto das cigarras!» 31

Nessa etapa do diálogo, eles chegam à margem do rio e posicionados


confortavelmente, Fedro inicia a leitura do discurso de Lísias para Sócrates que houve
silenciosamente. Ao acabar, Fedro questiona Sócrates sobre a opinião dele acerca do
que ouviu ao que ele lhe responde: «[...] achas necessário que ambos elogiemos o
32
discurso, aquilo que o autor disse e não disse?» Nota-se que neste sentido, Platão
refere-se ao Ser e não-Ser, ao disse por Ser e ao não disse por não-Ser. Ademais, o que
o autor não disse também é aquilo que ele ficou impossibilitado de dizer, caso fosse
interrogado.

Durante o diálogo Platônico, Sócrates utiliza a narrativa mítica como uma


ferramenta para elucidar as suas explicações: o canto das cigarras, as Musas, Eros (para
falar sobre a temática do amor), Thoth, entre outros. Desses mitos, três são de extrema
importância para a nossa investigação: as Musas, o Deus Egípcio Thoth e o mito das
Cigarras, que de igual modo, envolve as Musas. No capítulo sobre o Ser, a Linguagem e
a Escrita já reportamos a importância das Musas para a sociedade Arcaica. Em
determinado momento do diálogo, antes de falar, Sócrates diz: «Invoco-vos, Musas de
33
canto cristalino [...].» Sabemos que ao invocar as Musas, o filósofo recorre a
Memória34 para que esta lhe conceda através da voz (poder conferido pelas Musas) o
conhecimento da verdade. As Musas são as filhas de Zeus e Mnemosýne — expressão
da Memória — e elas manifestam-se no canto (voz) e na dança, como se a presença
delas fosse a garantia da função de Verdade que estaria sendo revelada por esse canto.
Logo, ao invocar a presença das Musas, Platão invoca o ideal da verdade do
conhecimento conferido por elas, que pode romper os bloqueios do tempo e do
espaço.35 Mais do que isso, ao invocar as Musas ele reforça a importância da Memória
para o conhecimento e corrobora para a verdade da palavra falada propagada pela
tradição arcaica. É significativo observar que ele invoca as Musas antes de falar, mesmo
depois de ouvir um diálogo previamente escrito. Diante do texto, ele invoca a Memória
e é a palavra proferida que dá voz à memória.

31
Ibidem. P. 11.
32
Ibidem. P. 17.
33
Ibidem. P. 20.
34
Pois, já informamos em momento anterior dessa investigação que as Musas são, de certo modo,
porta vozes da Memória.
35
Platão vive num contexto cultural onde a linguagem mítica ainda é presente enquanto tradição,
sendo que é a partir dele que a linguagem do Logos desenvolve-se com mais intensidade.

16
As Musas são novamente mencionadas em um momento posterior do diálogo:
«Há ainda uma terceira espécie de loucura, aquela que é inspirada pelas Musas: quando
ela fecunda uma alma delicada e imaculada, esta recebe a inspiração e é lançada em
transportes, que se exprimem em odes e em outras formas de poesia, celebrando a glória
36
dos Antigos, e assim contribuindo para a educação da posteridade.» Ora, fica
nítido que Platão considera que afinal, ser possuído pelo verdadeiro conhecimento
conferido pelas Musas faz de alguém especial, não sendo uma experiência corriqueira
ou ordinária. Vimos que esse poder, ao menos na sociedade arcaica, era conferido ao
poeta. Contribuir para a educação da posteridade é, de certo modo, atravessar as
fronteiras do tempo.

Paradoxalmente, em outro momento do diálogo, ao falar sobre o ideal do


conhecimento e da verdade em consonância com a evolução da alma, ele ressalta a
figura do filósofo como a expressão máxima do saber, e mostra a hierarquia desse
desenvolvimento na evolução das almas. Nessa hierarquia, ele insere o «poeta ou
qualquer outro criador de imitações» num grau rebaixado, superior somente ao artesão
ou camponês e ao sofista. Esse trecho demonstra o quanto Platão desconsidera a
atividade do escritor (logógrafo – fabricante de discursos), que é um criador de
imitações e do exposto, fica evidente o valor que ele confere à escrita, que é a imitação
da fala, a imitação da imitação, a repetição do pensamento. Ademais, ele acrescenta que
há vaidade exacerbada em quem escreve discursos para a posteridade.

Nesta ordem de ideias, ao longo do desenvolvimento do diálogo, Platão adentra


na ideia de reminiscência, um conceito importante para o contexto da nossa
investigação. No entender do nosso autor, todas as almas humanas contemplam a
Verdade, quando na sucessão (semelhante à metempsicose) entre as vidas retornam ao
mundo das ideias. Contudo, apesar dessa contemplação da verdade universal, ao
regressar para o mundo das formas, a capacidade de recordar-se desta Verdade varia
para cada um. Assim, a reminiscência é vista como um dom, reservado somente a
poucas almas, de recordar a verdade contemplada no mundo das ideias. Desse modo, a
reminiscência é a virtude da alma de, ao contemplar algo do mundo sensível,
semelhante ao mundo das ideias; reconhecê-lo como uma representação do Ideal. Esta
formulação decorre da mneme (memória) como essa capacidade de fazer a equivalência
das imagens do mundo sensível com as imagens do mundo das ideias. Ademais,
convém lembrar que memorizar é «ter no espírito» e no entender de Platão é através da

36
Ibidem. P. 30.

17
dialética que a alma chega a esse estado de reminiscência. Percebe-se a importância que
a Memória possui no entendimento de Platão.

Nesta ordem de ideias expostas de maneira subtil, o diálogo introduz a narrativa


mítica (inventada durante o diálogo) sobre as Cigarras. Há nessa narrativa outra
referência às Musas, o que pode ser constatado como bem significativo, devido à
recorrência da menção.

« Outrora, as cigarras eram homens, homens que viveram antes


do nascimento das musas. Quando estas vieram ao mundo, e
trouxeram a revelação do canto, alguns homens desse tempo
deixaram-se sugestionar de tal maneira por esse canto que,
assim embevecidos, se esqueciam de comer e de beber, tendo
morrido sem dar por isso! É justamente desses homens que
provém a espécie das cigarras, que recebeu das musas o
privilégio de, uma vez surgida, não ter qualquer necessidade de
se alimentar, podendo por isso, com o estômago vazio e o papo
seco, cantar sempre, desde que nasce até que morre, até o
momento de volta para junto das musas e dar conta dos homens
que, aqui na terra, rendem culto às Musas!» 37

De tudo o que retratamos até aqui, a formulação mais importante do diálogo para
a nossa investigação será o momento em que Sócrates narra o mito de Thoth, que é a
figura utilizada como recurso para explicar a origem da escrita. Toth é o deus
representado pela ave que chamam Íbis, e que é o inventor dos números e do cálculo, da
geometria e da astronomia, bem como do jogo das damas e dos dados e dos caracteres
gráficos. Segundo o mito, num encontro com Amon, Rei de Tebas do Egito, Thoth
mostrou as suas artes (e entre elas a escrita) porque acreditava que elas deveriam ser
compartilhadas com a população. Quando Thoth mostrou ao Rei a invenção da escrita,
foi imediatamente criticado pelo monarca. Vejamos a transcrição do diálogo.

— Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os


ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o
remédio para a memória.

— Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma

37
Ibidem. P. 44.

18
arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que advirão para os
outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas
dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir
a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que,
sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando
apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força
de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos de
si mesmos. Por isso, não investaste um remédio para
memória, mas para rememoração. Quanto a transmissão do
ensino, transmites aos teus alunos, não a sabedoria em si mesma,
mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber
uma grande soma de informações sem a sem a respectiva
informação! Hão de parecer homens de saber, embora não
passem de ignorantes em muitas matérias e tornar-se-ão, por
consequência, sábios imaginários, em vez de sábios
verdadeiros.38

Como escreveu Maria Teresa Schiaooa de Azevedo em O Fedro platónico: um


olhar fora da muralha, através de Thoth, que personifica todo o Egito, o país que
desenvolve a excelência na escrita, Sócrates tece a sua crítica. Segundo ela, a rigidez de
Sócrates para com a escrita será amenizada em Timeu, obra em que o filósofo, ao narrar
a Atlântida, mostra a escrita entre os Egípcios, como uma atividade exercida como
única forma possível de triunfar diante dos desastres mundanos e manter a memória.

Do exposto, pudemos perceber que Platão acreditava que a Escrita possuía um


efeito deletério e não continha a presença em si do que foi nomeado, como se ela não
fosse reveladora, mas uma mera repetição. Ao dizer que a escrita tornará os homens
mais esquecidos, e ao pressupor-se que o esquecimento é o oposto da revelação, ele
associa a escrita ao simulacro de «mentiras símeis aos fatos», conferidos pelas Musas.
Com a narrativa do mito de Thoth, Sócrates pretende mostrar que «se alguém expõe as
suas regras de arte por escrito e um outro vem depois, que aceita esse testemunho
escrito como sendo a expressão sólida de uma doutrina valiosa, esse alguém seria tolo,
não entendendo o aviso de Amon, e atribuiria maior valor às teorias escritas do que a
um simples tópico para rememoração do assunto tratado no escrito, não é assim?». Com
estas palavras, evidencia-se que a principal preocupação do filósofo acerca da escrita é a

38
Ibidem. P. 121.

19
de que, ao tornar-se um mero jogo de repetição, ela poderia anular a dialética, processo
que ele considera essencial para a obtenção do conhecimento.

Nesse caso, a repetição da escrita evocaria um silêncio infinito, as letras


grafadas, «limitam-se a repetir sempre a mesma coisa» 39, pois, o texto seria incapaz de
responder, mesmo se fosse interrogado, sendo que é justamente o ato de interrogar que
conduz o Ser ao Bem e a Verdade absolutos. Partindo do pressuposto de que a escrita
seria incapaz de responder à interrogação, ela ofereceria ainda como agravante o risco
de ser mal interpretada pelo leitor: « [...] uma vez escrito, um discurso chega a toda
parte, tanto aos que o entendem como aos que não podem compreendê-lo e, assim,
nunca se chega a saber a quem serve e a quem não serve.» 40. Segundo ele, tampouco há
utilidade para a escrita, se no texto não há uma presença que seja responsável por se
fazer compreender.

Estabelecer a diferença entre recordação e memória é fundamental para


compreender as afirmações de Platão ao longo do Fedro. Nesse sentido, Rogério
Gimenes de Campos argumenta que essa diferença sustenta-se em dois níveis do
discurso e de apreensão dos seres. Com efeito, a recordação estaria para a retórica,
assim como a memória está para a dialética.41

Diante disso, resta-nos adentrar na questão: qual seria o valor da escrita? De que
forma a escrita poderia de facto, ser útil e cumprir ao propósito de servir como objeto de
rememoração ou autossuficiência capaz de despertar o conhecimento em quem dela se
aproximar? Ora, Sócrates responde: « Os melhores de todos os discursos escritos são os
que têm por fim servir de memorando aos que conhecem tais discursos e somente nas
palavras cujo fito é a instrução, assim se gravando na alma, sobre o que é justo, belo e
42
bom, somente nessas encontramos uma perfeição digna de nossos esforços.» Como
afirma Rogério Gimenes de Campos, a condenação da escrita por Platão é aparente,
pois, não é a escrita em si o objeto da crítica platônica, mas sim sua aplicação e desde
que ela seja utilizada como um hypomnema, uma recordação útil a quem já absorveu
através da dialética uma posição intelectual. Mesmo assim, Platão reafirma a soberania
da oralidade sobre o texto. 43

39
Ibidem. P. 123.
40
Ibidem. P. 123.
41
Campos, Rogério Gimenes de. O Fedro de Platão à luz da tríade de Estesícoro. P. 34.
42
Ibidem. P. 127.
43
Campos, Rogério Gimenes de. O Fedro de Platão à luz da tríade de Estesícoro. P. 34-35.

20
Neste sentido, além dos malefícios da escrita ao que concerne à memória, ela
também apresenta-se ao menos para Platão, como um problema moral, principalmente
ao que concerne ao « sentido da oposição do bem e do mal, do bom e do mau, quanto no
sentido dos costumes, da moralidade pública e das conveniências sociais, do que se faz
44
e o que não se faz.» Sobre isso, falaremos em um momento mais oportuno. No
entender de Platão, o problema da escritura é o problema da dialética, na verdade, uma
preocupação contemporânea. Se Michel Foucault pudesse olhar profundamente nos
olhos de Sócrates ao vê-lo submerso nessa aflição diante do risco da escrita tornar-se
uma repetição sem sentido. Talvez ele lhe confortasse com as palavras: «O que é
próprio do saber não é nem ver nem demonstrar, mas interpretar»,45mas, obviamente
que Platão estava a par dessa compreensão, como mencionamos nos parágrafos
anteriores. Antigamente, pós-arcaicismo, desenvolver a polis era propagar a escritura.
Hoje, desenvolver o mundo é propagar a informação (outra faceta do phármakon)
através da tecnologia. A internet, que pode ser comparada a um grande logógrafo,
trouxe a expansão das redes sociais, um campo fértil para a disseminação de dados,
textos, escritos e imagens que são assimiladas.

Assim, encerramos a análise crítica sobre o texto de Platão e podemos a partir de


agora dar continuidade a segunda parte da nossa investigação e desenvolver o nosso
segundo objetivo, que é a análise crítica da obra de Jacques Derrida.

5. O pharmákon sob a perspectiva de Derrida

Em A farmácia de Platão Derrida descortina o texto escondido sobre o texto na obra


platónica que vimos no capítulo anterior. A origem do nome farmácia de Platão vem do
fato do livro inteiro girar ao redor do termo pharmákon, que em Grego significa
medicamento. A escrita é, portanto, pharmákon e como veremos, ela é para Derrida a
carta irregular do baralho.
Desse modo, nosso segundo autor compara a escrita a uma textura, composta por
uma teia de sobreposições como se fosse um organismo vivo num processo contínuo de
revelação de camadas ocultas. Para sustentar essa sua afirmação ele utiliza como
exemplo o próprio Fedro e o tempo que o mesmo aguardou silencioso para deixar de ser
considerado um diálogo mal elaborado. De facto, o Fedro a princípio, parece confuso,

44
Derrida, Jacques. A farmácia de Platão. P. 17.
45
Foucault, Michel. As palavras e as coisas. P. 57.

21
pois, começa de um jeito incomum, mistura temáticas, narra mitos inventados e parece
desordenado se comparado com outras obras Platónicas. Apesar dessa aparência, Jaques
Derrida considera que o Fedro surpreende porque costura com absoluta primazia os
elementos simbólicos contidos nas palavras, incluindo as originais narrativas míticas,
inventadas especialmente durante o desenvolvimento do diálogo. O objetivo de Derrida
em A farmácia de Platão é revisar o texto platónico de um modo que possa ser
observado tudo o que ficou de fora da leitura filosófica comum. Ele pretende atingir as
camadas ocultas, mas é importante saber que esse ocultamento sobreposto ao qual ele se
refere, não é uma leitura metafísica que tem a intenção de ir além do texto. Não, Derrida
pretende revelar o que se encontra escondido sob o próprio texto. O significado
imanente oculto tramado na própria dinâmica das palavras. São esses elementos que
Derrida desvela em Fedro que veremos a partir de agora.
Como mencionado no capítulo anterior, vimos que Platão evoca a farmacéia no
início do diálogo, de uma maneira sutil, como é possível perceber pelas seguintes
palavras do nosso autor Grego: «Se eu fosse um incrédulo como os Doutores, não seria
um homem extravagante, além disso, afirmaria que ela tinha sido arremessada dos
46
rochedos próximos por um vento boreal, enquanto brincava com Farmacéia.»
Derrida considera significativo o uso da palavra Farmacéia por Sócrates. Vejamos
como. Pharmákeia significa a administração do phármakon, a substância dúbia que
pode ser, ao mesmo tempo, transformada em veneno ou poção para cura. Ora, se o
phármakon é configurável para o bem (poção para cura) ou mal (veneno), significa que
a substância em si, possui o atributo da duplicidade e depende de um agente externo que
irá definir para qual lado da balança penderá a sua serventia. Nesse caso, a intenção de
quem manipula essa substância antecede em que ela irá transformar-se.
Além do mais, é dito que a Farmacéia também era uma nascente — «fonte e
santuário das ninfas» a qual era atribuída valores curativos. Derrida afirma que não é
uma coincidência ser na margem de uma nascente — no caso, o rio Illisso — que
Sócrates e Fedro confortam-se para dar continuidade ao desenvolvimento do diálogo.
Sócrates compara os escritos que o companheiro carrega consigo a uma droga
(phármakon) e na sequência ele transita pelo famoso e imperativo «conhece-te a ti
mesmo», inscrito sobre a porta do Oráculo de Delfos. Essas são as palavras do sábio
ateniense: «ainda não consegui, até agora, conforme recomenda a inscrição délfica,
conhecer a mim mesmo». Sócrates segue a instrução de uma inscrição oracular. É
importante acrescentar que o conhece-te a ti mesmo carrega uma conotação ontológica,

46
Platão. Fedro ou da beleza. P. 15.

22
logo, versa sobre o Ser. O que interessou Derrida e que também interessa-nos é o fato de
Sócrates mencionar essa inscrição, um texto inscrito na parede de um templo. Até aqui
extraímos a partir de Derrida a droga (phármakon) apresentada num contexto que
remete à cura (fonte, rio, água) diante de uma intervenção oracular.
Em virtude desse conjunto de informações, a formulação de Derrida sobre o
phármakon é a de que ele seria uma substância, com tudo o que esta palavra possa
conotar, no que diz respeito a sua matéria, as suas virtudes ocultas. O phármakon é de
uma profundidade críptica que recusa a sua ambivalência à análise, preparando, desde
então, o espaço da alquimia, caso não devamos seguir mais longe reconhecendo-a como
a própria anti-substância: o que resiste a todo filosofema, excedendo-o indefinidamente
como não-identidade, não-essência, não-substância, e fornecendo-lhe, por isso mesmo, a
inesgotável adversidade de seu fundo e de sua ausência de fundo. Ora, Derrida brinca
com o conceito de phármakon, como foi mostrado, por uma única razão: segundo ele, a
palavra (phármakon) é a produção da diferência. A palavra é diferência. Mas antes de
adentramos nesse que é um conceito central de Derrida e da nossa investigação,
vejamos como ele interpreta o diálogo fulcral entre Thoth e Amon.
Com efeito, é preciso ter clareza sobre o facto de que Derrida explora
continuamente e profundamente a simbologia impressa nas camadas do texto platónico,
como se a obra em si, fosse um palimpsesto prestes a mostrar as diferentes camadas aos
olhos mais atentos. Por isso, não passa despercebido para ele que Fedro seduz Sócrates
para conduzi-lo ao êxodo. O discurso escrito leva Sócrates para fora dos seus limites,
para fora de si mesmo. E o que faz a escrita, além de nos levar para fora de nós
mesmos? Nas palavras de Derrida: «Se pudesse estar meramente presente, desvelado,
desnudado, oferecido em pessoa na sua verdade, sem os desvios de um significante
estrangeiro, se, no limite, um lógos não diferido fosse possível, ele não seduziria.» 47
Como se sentiu incapaz de decorar todo o discurso de Lísias, Fedro carrega o
manuscrito embaixo do manto e essa capacidade (ou não) de rememorar é um ponto
importante, tanto na obra de Platão quanto nos apontamentos de Derrida, ainda mais
porque Sócrates se dispôs a ajudá-lo a «restituir o raciocínio, o argumento, e a intenção»
do discurso de Lísias. Mas Fedro usa o texto como um elemento de apoio à
rememoração, ponto central que é criticado pelo Rei Amon ao que concerne à invenção
de Thoth. E a partir dessa narrativa mítica, Sócrates descreve o texto como um saber
morto, o que obviamente implica na problematização da escrita. Sócrates utiliza um
mito Egípcio para problematizar o viés retórico da escrita. Para começar, é a figura real,

47
Derrida, Jacques. A farmácia de Platão. P. 15.

23
ou seja, ninguém menos do que o próprio Rei, que confere o valor à escrita. Sabemos
que o Rei é o símbolo máximo da expressão do poder. Quando Thoth apresenta a
escritura a Amon, o mesmo a deprecia, mas não só, ele também declara a sua
«inutilidade, a sua ameaça e o seu malefício», e Thoth está subordinado ao Rei, o que
implica na afirmação de que a escrita está subordinada ao logos. O Rei não é só a
expressão máxima do poder, mas é também a representação do logos, enquanto
«significante do raciocínio por trás do discurso, de argumento proposto, de propósito
diretor animando a conversa falada.»48 Com estes apontamentos, Derrida entende que a
inutilidade e o malefício da escritura decorrem em virtude da ausência do ente por trás
do discurso. Platão considera difícil a escritura sustentar-se por si só ao correr o mundo,
pois, para «ser conveniente, um discurso escrito deveria submeter-se como o próprio
discurso vivo às leis da vida.» 49
Convém considerar que Jacques Derrida descreve Thoth — homólogo ao Grego
Hermes — como o deus do significante, mensageiro de Hórus, o deus sol. Essa analogia
contribui bastante para essa investigação. Enquanto mensageiro «o que ele deve
enunciar ou informar em palavras, Hórus já o pensou.» Ora, parece-nos que a
mensagem não é, apenas representa o pensamento criador. Enquanto não-Ser, revela o
Ser enquanto um produto deste, através de um conjunto de relações e substituições.
Pode-se afirmar que Thoth é o substituto de Hórus, logo, ao substituí-lo, ele desloca a
Presença de Hórus para um espaço físico em que este não pode estar. Vimos
anteriormente que os Egípcios eram exímios na arte da escrita, logo, a escolha de
Sócrates na escolha do mito foi certeira e não poderia ser mais significativa. Nas
palavras de Derrida, «a escritura transforma-se num suplemento da fala. A escritura
substitui o canto do Ser, ou nas palavras de Derrida, deixa um jogo de rastros. Por
conseguinte, ao deixar rastros, a escrita fixa-se no mundo em modus anacrónico, por
isso que Elzahra Osman afirma em seu estudo sobre Derrida que ler um texto ao modo
do texto é ser fiel a sua tessitura ao rastro, que como a escritura, não pode ser definido
por uma categoria conceitual, mas é compreendido dentro dos limites da experiência do
traço que diz a presença, em seu caráter espacial e temporal, e traz subjacente em seu
dizer já o não-dito. A pergunta que parece fazer e desfazer a própria desconstrução é:
pode-se além da linguagem ler lá onde essa não mais está?» 50
Voltemos a nossa reflexão sobre como Derrida interpreta Thoth em Fedro.
Percebe-se que alguns atributos são conferidos a Thoth, assim como a Hermes:
48
Ibidem. P. 22.
49
Ibidem. P. 24.
50
Osman, Elzahra. O phrármakon de Jacques Derrida. P. 16.

24
inapreensão, mascaramento, conspiração, disfarce, mas o maior atributo do deus da
escrita e também da morte, é a impropriedade que permite a substituição. Thoth nunca
está presente. Thoth é o deus do phármakon — a escrita. A escritura substitui a
presença e coloca-se no limiar entre a vida e a morte, o limiar entre o Ser e o não-Ser.
Ainda que contenha outros significados, a tradução mais efetiva para a palavra
phármakon, segundo Derrida, é remédio. Sabemos que mesmo que manejado com boas
intenções, não há remédio inofensivo, por isso, todo phármakon expressa o atributo da
ambiguidade, além de ser também artificial, porque contraria o desenvolvimento da
vida, mesmo que essa vida seja o desenvolvimento da própria doença. De qualquer
forma, o phármakon é exterior ao organismo, assim como a escritura. Como observou
Derrida, é no exterior (fora das muralhas que circundam a cidade) que Sócrates foi
discutir com Fedro o valor da escrita.
Por conseguinte, a artificialidade do phármakon é prejudicial à Mnèmè
(memória). Com efeito, Amom afirma que mesmo sob o pretexto de suprir a memória, a
escritura faz esquecer ainda mais e reduz o saber, pois, ela não consolida a mnèmè,
somente a rememoração. De acordo com a definição, a função do phármakon é
remediar uma ocorrência incomum num organismo, mas, ao mesmo tempo, dependendo
da sua manipulação, ele pode gerar um mal, envenenar ou até mesmo super dosar. De
qualquer modo, o phármakon é sobretudo, exterior ao organismo, assim como a
escritura. Contudo, uma vez que a escrita é exterior, Derrida afirma que ela não deveria
nem sequer tocar na memória, que é interior. Nesse caso, o papel da escritura seria
proporcionar a possibilidade para o significante repetir-se sozinho, sem que a verdade
em parte alguma esteja lá em presença.
Derrida critica a posição Platónica sobre a primazia da oralidade sobre a escrita,
por associar a última a um phármakon. Segundo ele, a oralidade é um phármakon tão ou
até mais poderoso que a escrita, principalmente quando o sujeito que ouve a voz —
enquanto caracterizada por essa propriedade farmacológica — possui como
característica a inocência ou até mesmo, a ignorância. A voz, a presença contida na voz
ludibria mais do que o texto. A razão para que ele afirme essa igualdade em efeito
decorre da observação dos diálogos platónicos em que os próprios discípulos de
Sócrates dizem sentirem-se enfeitiçados pelas suas palavras. Partindo dessa observação,
Derrida sugere que Platão não escapou daquilo que ele mesmo recriminava. Sobre essa
predominância da oralidade sobre a escrita, Elzahra Osman no seu estudo sobre a

25
farmácia de Platão, de Derrida, escreveu que a sociedade ocidental se construiu pela
letra, talvez não a despeito do logos, mas devido a ele. 51
Platão defendia veemente que a dialética corresponderia ao antídoto capaz de
conter o efeito ambíguo do phármakon, tanto na sua manifestação oral quanto escrita.
Derrida complementa-o ao sugerir que a ambivalência do phármakon está justamente na
posição central que ele ocupa, sendo que está no meio entre dois opostos.
O phármakon, segundo Derrida, equivaleria à «diferência da diferença», aquilo
que nada é por si mesmo. Desse modo, ele propõe a possibilidade de uma dualidade
contida na própria linguagem. Nesse caso, a diferença da escrita decorre do fato dela
estar emoldurada pelo Ser (presença) e pelo não-Ser (ausência). Essa ausência é o que
Derrida denomina como diferencia e que atua como uma experiência crítica que se
desenvolve na intimidade do texto, onde a profundidade procurada é, portanto,
pertencente aquilo que não é legível. Falar da diferencia é deixar a escrita livre do jogo
do significante. Nessa perspetiva, a libertação só é possível a partir de um exame
minucioso do conteúdo do próprio texto. A diferencia seria o nada, o não-Ser, ou nas
palavras de Derrida, «o adiantamento que se concede a uma consciência, uma presença
52
a si no presente.» Por isso, a diferença atua como um espaço onde os elementos do
texto podem integrar-se uns aos outros, num processo anacrónico entre a intenção do
escritor e a intuição do leitor. Esses espaços — que marcam a diferença — são,
segundo Ramiro Delio Borges de Meneses, sempre preenchidos de modos diferentes e
de acordo com fatores contextuais. Por isso, ele afirma que a diferença acontece no
espaço e no tempo e é justamente essa a característica de todo o signo, que versa sobre a
ausência do emissor e do referente. 53
Ora, se essa duplicidade de Derrida é inspirada na diferência de Heidegger, por
isso, vejamos o que ele tem a nos oferecer como contributo à nossa investigação. Antes,
é importante estruturar com clareza o conceito de rastro, para que seja possível
corroborar para aquilo que de facto, Derrida compreende como a própria escrita em si.
Por isso, é fundamental entender que o rastro inscrito pela escrita perfaz-se na dinâmica
relacional e é esta que aponta para a diferença, e é essa relação que Derrida extraiu da
influência de Heidegger. Segundo este, «Mundo e coisa não subsistem um ao lado do
outro como coisas justapostas. Eles se interpenetram. Assim os dois dimensionam um
meio. Nesse meio, estão unidos. Assim unidos, são íntimos. O meio dos dois é a

51
Osman, Elzahra. O pharmákon de Jacques Derrida. P. 14.
52
Derrida, Jacques. As margens da filosofia. P. 188.
53
Meneses, Ramiro Delio Borges de. A Desconstrução em Jacques Derrida: o que é e o que não é. P.
187.

26
intimidade. «Entre» é o nome que nossa língua dá ao meio de dois. A língua latina diz
inter. lnter corresponde ao alemão unter. A intimidade de mundo e coisa não é mistura.
A intimidade prevalece somente onde o íntimo, mundo e coisa, puramente se distingue e
permanece distinto. No meio de dois, entre mundo e coisa, em seu inter, nesse unter,
prevalece o corte [Schied] que os separa e diferencia.» 54 Nesta ordem de ideias, supõe-
se que a diferencia é um suporte a atribuição de significado à representação, ao «fazer-
se coisa das coisas», 55 com efeito, ela não é nem distinção e nem relação.
É a partir do conceito da diferência que Derrida observa um detalhe importante,
que passou despercebido na compreensão filosófica dos textos platónicos. Ao
evidenciar a associação da cadeia textual, Derrida considera que nenhuma palavra foge
da sua origem e do conjunto das suas derivações. A palavra ausente, mas presente por
sinônimo e derivação, do diálogo Platónico é pharmakós, que significa feiticeiro,
mágico, envenenador; que seria sempre utilizado como o bode expiatório, uma figura
sempre relegada à expulsão da polis, com o objetivo único de purificação, sempre
destinados à morte. O que importa para essa investigação é o que Derrida descreve
como sendo a cerimônia do pharmakós, um ritual que «se passa, pois, no limite do
dentro e do fora que ela tem por função traçar e retraçar sem cessar.»56 Assim sendo, o
contributo dessa observação é afirmar que a escritura representa esse limiar, e que ela
ocupa um espaço na encruzilhada entre o Ser e o não-Ser.
Nas palavras de Derrida: «O logos escrito é apenas um meio, para aquele que já
sabe (tòn eidota), de rememorar-se (hupomnêsar) das coisas a respeito das quais há a
escritura (tàgegramnéna). A escritura só intervém, pois, no momento em que o sujeito
de um saber já dispõe de significados que a escritura então consigna.»57 Enquanto
Platão equiparava a escrita à retórica, «Derrida propõe que o uso retórico da linguagem
é que impossibilita a redução do objeto impossível, anulando toda e qualquer
possibilidade de diferença como concebida pela metafísica, ou seja, anulando também a
tradicional conceção de identidade. Daí a diferença ou différance em Derrida não poder
ser acusada de representar mais uma vez a concepção de alteridade em metafísica: não
existe diferenças, quando não existe identidade; apenas a radical constatação da
58
diferença como rastro.» Como escreveu Elzahra Osman, tudo o que Derrida quer é
que as fendas do texto sejam expostas.

54
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. P. 19
55
Ibdem. P. 19
56
Derrida, Jacques. A farmácia de Platão. P. 79
57
Ibdem. P. 84
58
Osman, Elzahra. O phármakon de Jacques Derrida. P. 12.

27
Diante de todos os atributos conferidos à escrita, Derrida complementa que o
antídoto dessa substância ambígua é a episteme e não necessariamente a dialética, como
sugeriu anteriormente Platão. Sobre o conceito de episteme, usaremos o contributo que
as palavras de Manuel Cândido Pimentel têm para oferecer-nos, ei-las a seguir: «a
episteme é o conjunto das tendências estéticas, intelectivas (ou teóricas) e afectivas
(coordenadas que caracterizam a atracção de uma época para se concentrar no nível das
configurações maioritárias). Esse conjunto estabelece-se no recontro de relações entre
diversas práticas discursivas, em cujas coincidências constantes se exprime uma
intuição central que possui uma força centrípeta de captação dos interesses dessa
59
época.» Derrida afirma que a dialéctica poderia ser um suplemento, mas não o
antídoto adequado ao efeito nocivo do phármakon. Isso porque ele considera que a
dialética é sempre o que nos perde porque é o que sempre conta com a nossa recusa.
Como com a nossa afirmação. A dialética não serve como antídoto ao rastro propagado
pela escrita, o phármakon, porque segundo Derrida, ela representa a solução do signo no
horizonte do não-signo, da presença para além do signo. Ou seja, a dialética procura
pelo que está fora do texto, enquanto ele afirma que tudo está contido no texto.
O antídoto é a episteme que procura o fundamento de tudo aquilo que possui
como objeto. No entender de Derrida, a diferença é a própria fonte da episteme,
enquanto que a escrita é um errante que vaga sem saber para onde ir, que reproduz um
contínuo eco, que reverbera um incessante rastro de símbolos e exatamente, e por isso,
ao não pertencer, por incorporar ao não-Ser, seu atributo é ser « essencialmente
democrática ». Ora, a escrita é tão democrática quanto à internet. Se a escrita pode
circular livremente pelo mundo, a efetividade do conteúdo que ela dissemina depende
exclusivamente do exercício da episteme de quem dela se aproxima. « A analogia: a
relação da escritura – simulacro com o que representa — a escritura verdadeira (a
verdadeira escritura porque é verdadeira, autêntica, respondendo por seu valor,
conforme sua essência, escritura da verdade na alma daquele que tem a episteme) —,
essa relação é análoga à relação das sementes fortes, férteis, engendrando produtos
necessários, duráveis e nutritivos (sementes frutíferas) com as sementes fracas, logo
esgotadas, supérfluas, dando nascimento a produtos efêmeros (sementes floríferas).»60
Desse modo, a escrita fala por si, ela subsiste, subverte-se e subverte de verdade o leitor.
Essa duplicidade imanente do texto é o que faz ele pertencer anacronicamente ao
mundo do não-Ser (do caos, dos mortos) e ao mundo do Ser, enquanto rastro substituto

59
Pimentel, Manuel Cândido. Elementos para uma fenomenologia do texto filosófico. P. 08.
60
Ibidem. P. 99-100.

28
desse Ser. Até o presente momento, essa investigação atingiu o seu segundo objetivo e
seguiremos agora para o nosso fim.

6. Conclusão

Antes de prosseguirmos com a finalização dessa investigação, façamos uma


síntese sobre tudo o que tratamos até aqui para que possamos retomar a nossa linha de
pensamento desde o início.
No primeiro capítulo exploramos a relação entre Ser – Linguagem – Escrita. A
nossa investigação começou com o mito das Musas — filhas de Mnemosyne — e do
poder inerente a elas de desvelar a presença através das palavras, ao mesmo tempo,
exercem também o poder de conferir esquecimento, ocultamento e submersão no
simulacro. Depois passamos para uma breve reflexão sobre o pensamento de Heidegger
— influenciador de Derrida — sobre como a linguagem é um aparato de sustentação do
mundo e como ela proporciona abertura ao Ser do homem. Nesse contexto, a escrita,
enquanto um desdobramento da linguagem, também comporta-se como uma extensão
do Ser. Contudo, há diferentes perspetivas sobre o uso da escrita e os seus efeitos, e
entre elas, abordamos a visão platónica e de Derrida sobre ela.
Em Fedro ou da Beleza, Platão considera a escrita como um remédio não para a
memória, mas sim para a rememoração. Segundo ele, a escrita poderia somente
assumir-se como um jogo de repetição e anular completamente o processo da dialética.
Desse modo, a postura de Platão com relação à escrita é a de que ela seria uma
ferramenta útil somente aqueles que buscam a sabedoria, ou seja, aos homens que
estivessem numa posição de busca de conhecimento de um modo que o texto serviria de
memorando a um processo que começaria antes dele e que não se encerraria com ele.
Como vimos, Jacques Derrida possui uma postura completamente diferente. Para
começar, há nele uma visão favorável sobre a possibilidade de democracia contida no
texto, justamente em contraposição à ótica hierárquica de Platão sobre a escrita. Além
do mais, o texto é para Derrida uma textura composta por uma teia de sobreposições que
está sempre aberta e permite novas investigações diante de novos contextos. O elemento
que permite esse desfiar dos fios que compõem o texto é a diferença, conceito inspirado
em Heidegger. Para mostrar a postura de Derrida, fizemos uma investigação do olhar
dele sobre o texto platónico e foi essa ótica dele que nos permitiu olhar para o texto de
Platão com mais profundidade.

29
Ao Ser no mundo, a escrita transforma-se num rastro imanente e anacrónico, por
conseguinte, o texto morre, passa ao não-Ser (esquecimento). Essa ambivalência textual
— phármakon — que pertence ao Ser e ao não-Ser é externa ao Ser que interpreta, logo,
por estar fora da interioridade do intérprete representa perigo porque a própria
interpretação em si demanda o exercício da episteme, como afirmou Derrida, ao mesmo
tempo em que a escrita — quando reproduzida em excesso de informação circulante —
afeta a sanidade da mneme, elemento indispensável em todo o processo.
Derrida afirma em a «Margem da filosofia» que a representação sonora é o
limite do discurso, ao assumir um papel organizador que aproxima o sentido do Ser na
fala, no timbre, estilo, marca. O timbre, o estilo e a marca são a mesma divisão
obliterante do próprio. Tornam todo o acontecimento possível, necessário e
inencontrável. Por conseguinte, qualquer limite parece conter uma instância do Ser,
sendo o seu próprio, ou seja, aquilo que dessa instância se apropria. O texto é um
recetáculo do logos do Ser que escreve e a imanência contida nele relacionar-se-á com o
Ser que interpreta, logo, ele pode ser equiparado a um sujeito da criação.
Ora, o rastro deixado pela escritura, por si mesmo incapaz de engendrar qualquer
coisa que seja, só pode atuar como objeto de criação — em virtude do conteúdo que
carrega por apropriação, mesmo que por repetição — ao servir como substância
suplementar à presença de outro — o logos do ser que interpreta61. É desse modo que
verdades ou certezas seriam apenas elaborações humanas, repetições como
possibilidade de um «devir sensível». Desse modo, há na escrita uma ontologia
imanente e anacrónica, análoga ao poder expresso no canto do poeta no arcaísmo, que
era o de ultrapassar as barreiras do tempo e do espaço. Prosseguindo nessa linha, ao
revelar-se como a expressão de um logos, a escrita é presença, mesmo que por um
ínfimo instante. Depois de ser marca no mundo, a escrita passa para o não-Ser,
transforma-se em esquecimento, adentra no mundo dos mortos, volta para a névoa e só
poderá ser novamente revelada — ainda que como um elemento de substituição — ao
deparar-se com outro logos intérprete, que lhe confere um sentido dentro do contexto do
Ser que é. Nessa ordem de ideias apresentadas até o presente momento, infere-se que o
texto é um recetor-propagador de logos, de linguagem, de Ser e que ao contribuir com o
Ser-intérprete é ferramenta de cocriação do mundo. O texto seria um limite a ser
explorado, na qual pensando a proximidade, anuncia-se a distância. 62

61
Ser interprete é um termo extraído do artigo do prof. Dr. Manuel Cândido Pimentel
62
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. P. 82.

30
«Os fonemas mostram as disposições na alma. As disposições na alma mostram
as coisas que lhes concernem »63, dentro dos limites da representação do mundo no Ser.
Heidegger escreveu que «o mostrar configura e sustenta as escoras dessa construção. De
maneira variada, desvelando ou velando, o mostrar conduz algo para um aparecer,
deixando assim apreender o que aparece e permitindo que se discuta o que se apreende.
A referência entre o mostrar e o que nele se mostra, referência que nunca se estabelece
puramente por si mesma ou pela sua proveniência, transforma-se posteriormente na
relação entre um signo e o que nele se designa. A Grécia Clássica fez a experiência do
signo a partir do mostrar. É para mostrar que se cunha um signo. No período helenista
(com os estoicos), o signo surge através de uma estipulação, como instrumento para
designar alguma coisa, no qual outro elemento impõe e orienta a representação de um
objeto. Designar não é mostrar, no sentido de deixar aparecer. A transformação pela
qual o signo deixa de ser o que mostra para ser o que designa, repousa sobre a
transformação da essência da verdade. »64 Com estes apontamentos, pode-se pensar a
escrita enquanto um intervalo entre sujeitos, submetido ao tempo e ao espaço, logo,
acrescido de contexto, seja cultural, económico, moral, social e político. Em Platão, a
escrita depende de uma hierarquia de alma que fornece ao Ser uma condição de
contemplar e acessar a reminiscência. Em Derrida, a escrita é democrática.
Nas palavras de Manuel Cândido Pimentel, «essa historicidade de um texto
(escrita) tem a ver com a sua capacidade de atingir sujeitos diferenciados no e ao longo
do tempo. Acontece com o texto filosófico o mesmo que se passa com o texto literário e
a obra de arte plástica: a sua riqueza não se encontra apenas na específica ostentação de
mundo de que é capaz, mas está também (e esta será uma dimensão histórica
insofismável) na capacidade generativa de criação de sentido pelo diálogo que com ele
estabelece o leitor. Nenhum texto é, por isso, um mundo à parte sem relação com a
liberdade convivente daquele que dele se aproxima.» 65
Desse modo, a escritura não é só uma simples reprodução do pensamento, em
eco do interior do Ser, mas sim a contínua manutenção das ideias, dos pensamentos e da
representação do mundo. No entender de Claude Levi Strauss, é preciso haver uma
interface entre as ciências humanas e as ciências naturais para que o dualismo — onde a
escrita insere-se desde Platão — seja ultrapassado. A consciência do Ser está entre
qualquer dualidade que se possa imaginar. De igual modo, é a consciência do Ser que
está entre o texto e do que se extrai do texto.
63
Ibidem. P. 195.
64
Ibidem. P. 97.
65
Pimentel, Manuel Cândido. Elementos para uma fenomenologia literária do texto filosófico. P. 05

31
Bibliografia primária

 Platão. Fedro ou da beleza. Tradução de Pinharanda Gomes. Editora Guimarães.


2000.
 Derrida, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução de Rogério da Costa. Editora
Iluminuras.

Bibliografia secundária

 Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Tradução de Marcia Sá


Cavalcante Schuback. Editora Vozes. 2003.

 Pimentel, Manuel Cândido. Elementos para uma fenomenologia literária do


texto filosófico. Universidade Católica Portuguesa.
 Osman, Elzahra. O phármakon de Jacques Derrida. Revista Contextura, UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais).
 Strathern, Paul. Derrida em 90 minutos. Jorge Zahar Editor.
 Teixeira, Paulo Cesar Menezes. La palabra como phármakon em La formacíon
del hombre griego – De La palabra del soberano a soberania de La palavra.
Universidad de Salamanca.
 Sancho, Antonio Tudela. Retorica, política e ideologia desde La antiguedad
hasta nuestros dias – lenguaje, retórica y política em aporia. La escritura como
fármacon em El Fedro de Platão. Actas del II Congresso Internacional
Salamanca. Universidad de Murcia.
 Meneses, Ramiro Délio Borges de. A desconstrução em Jacques Derrida: o que
é e o que não é pela estratégia. Universitás Philosophica 60.
 Azevedo, Maria Tereza Schicippa de. O Fedro platônico: um olhar fora da
muralha. Annablume Clássica.
 Bernardo, Fernanda. O dom do texto – a leitura como escrita. O programa
gramatológico de Derrida. Universidade de Coimbra.
 Reis, Diego. Nos jardins secretos da escritura: Platão e (em) Derrida.
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
 Pinheiro, Marcus reis. O Fedro e a escrita. Rio de janeiro, Anais de Filosofia
Clássica (UFF), 2008, 18 pp.

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