Michelet
2
I
3
1.
diálogo entre Sócrates e Polo. Diz Sócrates: «Sustento, Polo, que os oradores
e os tiranos são quem menos pode nas cidades (...) visto que, por assim dizer,
não fazem nada do que querem, embora façam aquilo que lhes parece o
melhor.» (466 e).3 E tira, daqui, a primeira consequência: o tirano não é digno
1
Platão, Górgias, tradução do grego de Manuel de Oliveira Pulquério, col. Clássicos gregos e
latinos, Edições 70, Lisboa, 1992.
2
Esta feliz expressão deve-se a Sylvie Leliepvre-Botton in Premières leçons sur Gorgias de
Platon, col. Major Bac, PUF, Paris, 1996.
3
Num diálogo anterior entre Qerefonte e Polo (448 c), diz este: «é a experiência que orienta a
vida do homem segundo as regras da arte», arte essa que é «a mais bela de todas». E, um
pouco mais adiante, Sócrates utiliza pela primeira vez no diálogo o conceito de retórica: «Do
que acabo de ouvir a Polo deduzo que ele se tem dedicado mais à chamada retórica do que à
dialéctica.» (448 e). Entretanto, no diálogo entre Sócrates e Górgias, este define a retórica
como «a arte dos discursos» (450 c) e caracteriza o seu objecto como constituindo «o maior de
todos os bens, proporcionando a quem a possui ao mesmo tempo liberdade para si próprio e
domínio sobre os outros na cidade.» (452 d). Só que a definição de Górgias é apanhada na
ratoeira da moral (459 d – 462 a), levando a que Sócrates, na sua definição de retórica, a
encare sob «o nome geral de adulação» (463 b), «parte de um todo [o qual, ainda conforme
463 b, engloba a cozinha, a retórica, a toilette e a sofística] que não pertence ao número das
coisas belas» (463 a), «género de ocupação que nada tem de científico e que exige um espírito
intuitivo e empreendedor» (463 b), para acrescentar na altura em que inicia o diálogo com Polo:
4
de inveja, «[p]orque não se deve invejar quem não é digno de inveja, do
mesmo modo que não se inveja quem é desgraçado. Tais pessoas merecem,
isso sim, a nossa compaixão.» (469 a).4 Pouco depois, tira a segunda
injustiça era pior que sofrê-la.» (473 a). Entretanto, Sócrates (474 d – 480 a),
maior de todos é praticar a injustiça sem ser castigado.» (479 d). Ou seja: se
E, de facto, Cálicles não desilude o auditório, defendendo a sua tese com três
argumentos de peso (481 c – 488 c). Primeiro argumento: não será que a
«considero [a adulação] uma coisa vergonhosa, (...) porque visa o agradável sem a
preocupação do melhor. E sustento que ela não é uma arte, mas uma actividade empírica,
porque não tem na sua base um princípio racional (...).» (465 a).
4
Veja-se como esta asserção é a oposta de Baudelaire. Ainda que se vá regressar a esta
questão mais adiante, basta para tal lembrarmo-nos, a título de exemplo, de Le vin des
chiffonniers, in Les Fleurs du Mal ou de La fausse monnaie in Petits Poëmes en prose. V.
Charles Baudelaire, Oeuvres complètes, col. L’ Intégrale, Seuil, Paris, 1970, pp. 107-109 e pp.
168-169.
5
ingenuidade moral se torna sempre cúmplice dos maus? Segundo argumento:
individual, da physis. Senão, leia-se: «E é assim que tu, Sócrates, dizendo que
vulgaridades de tribuna, os teus princípios, que não são belos por natureza,
cometer ou sofrer injustiça, quando Polo falava do que é mais feio no domínio
defesa, nem para si, nem para os que lhe são caros. Quanto às leis, estou
convencido de que são feitas pelos fracos e pela grande massa, que agem
6
que a injustiça não é mais do que querer estar acima dos outros. Como não
têm valor, sentem-se felizes, creio eu, por colocar todos ao seu nível.» (483 b).
por Sócrates do (não-) poder do tirano: «É por isso que a lei considera injusto e
injustiça. Mas a própria natureza, em minha opinião, demonstra que é justo que
o melhor esteja acima do pior e o mais forte acima do mais fraco [sublinhado
nosso].» (483 d). Terceiro argumento: Cálicles mostra a ineficácia social das
abstracções filosóficas, que até podem levar Sócrates a ser acusado injusta e
acusação.
«(...) os mais poderosos de que falo não são os sapateiros nem os cozinheiros,
mas aqueles que têm a ciência dos negócios públicos e da boa administração
Cálicles à questão que Sócrates levanta, em 491 c, sobre «quem são aqueles a
compete o governo das cidades e a justiça manda que eles tenham mais do
7
que os outros, os governantes mais do que os governados». Nesta definição
das naturezas superiores feita por Cálicles, fácil é constatar que o homem
superior não só se reconhece pela sua inteligência como também pela sua
coragem, pela sua ambição, pela tenacidade posta nos projectos a realizar; e
virtude e a felicidade.» (492 c). Mais precisamente: a virtude consiste, «se uma
pessoa quer ser como deve, <em> dar largas às suas paixões, deixando-as
(492 e), mesmo que o desprazer atice o desejo, conforme se pode constatar
Mas, será legítimo identificar o prazer e o bem? Em 495 a, Cálicles insiste que
prazer e bem são uma e a mesma coisa e que não há prazeres maus.
Sócrates, por seu lado, sublinha que não se pode dizer que o estado das
pessoas felizes seja igual ao das pessoas infelizes, como não se pode estar ao
mesmo tempo são e doente (495 e – 496 b): há no desejo a dupla face do
prazer e da dor. A isto responde Cálicles que considera o prazer uma função
da dor: «Afirmei que <a fome> era penosa, mas que é agradável comer quando
se tem fome.» (496 c). Ora, como o próprio Cálicles reconhece que felicidade e
8
insistir, usando para tal um outro argumento, o do cobarde e do corajoso (497 e
esse tem que julgar todas as vítimas como sendo más (498 d, e). Eis a
desejos de prazer. Uma nova escala de valores que não tem sequer em conta
sabedoria, enfim, da educação dos cidadãos segundo estes valores. Bem pode
pode Sócrates desvalorizar a vida porque o que conta, afinal, como o mostra o
mito do além-túmulo (523 a – 527 e), é saber-se estar entre os mortos e estes
realmente, justo. Bem pode Sócrates enunciar tudo isto que não fica a pairar
senão esta fala de um homem só, terrível e avassaladoramente só: «(...) se há,
9
de facto, dois aspectos a considerar nesta questão, teremos uma eloquência
política que não é mais do que uma adulação e uma vergonha, e outra que é
Mas tu nunca viste uma retórica deste segundo tipo. Se, no entanto, me podes
indicar um orador deste género, porque não me dizes já quem é?» (503 b).
Perante o silêncio de Cálicles, Sócrates insiste mais adiante (513 c): «Só uma
pessoa que te torne inteiramente igual a eles [povo de Atenas] fará de ti, como
rebanho, a moral dos mais fracos, que tem como evidente contraponto a moral
dos mais fortes defendida por Cálicles? Daí a pergunta insidiosa que Sócrates
lhe dirige (515 a): «Haverá alguém que, sendo mau, injusto, intemperante e
deslumbrada de Sócrates: «Creio ser dos poucos Atenienses, para não dizer o
único, que cultivam a verdadeira arte política e a põem em prática nos dias de
hoje.» (521 d). Dir-se-á: Sócrates rende-se à lisonja. Nada mais enganador.
10
recusa da natureza ambivalente do prazer quer, sobretudo, na sua atitude
ele, o ser isolado, entra com uma fisionomia de desprezo e arrogância, como
Aqui chegados, talvez seja pertinente colocar uma questão simples mas
pelo contrário, se é desagradável mas útil, faz questão de a dizer e cantar, quer
5
Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia ou Mundo Grego e Pessimismo, tradução de
Teresa R. Cadete, col. Obras escolhidas, vol. 1, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1997, §13, p.
97. Esta obra será citada doravante como NT.
6
NT, §13, pp. 97-98.
7
NT, pp. 179-211.
11
da tragédia grega com as características da adulação (502 c). Esta referência
dialéctico, agora tem de existir uma ligação necessária e visível entre virtude e
Górgias de Platão.
8
NT, p. 99. Também no final do § 12, pp. 94-95, se pode ler: «Eurípedes empenhou-se em
mostrar ao mundo, como fez também Platão, o oposto ao poeta «sem intelecto»; o seu
princípio estético «tudo tem de ser consciente para ser belo» é (...) a sentença paralela ao
socrático «tudo tem de ser consciente para ser bom». (...) Se isto causou a ruína da tragédia
mais antiga, então o socratismo estético é o princípio assassino: mas na medida em que a luta
era dirigida contra o elemento dionisíaco da arte mais antiga, reconhecemos em Sócrates o
adversário de Dioniso (...)».
9
NT, p. 102.
10
Friedrich Nietzsche, Para a Genealogia da Moral. Um Escrito Polémico, tradução de José M.
Justo, col. Obras escolhidas, vol. 6, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2000. Esta obra será
12
omnipresentes em O Nascimento da Tragédia; todavia, só em Para a
como acontece, aliás, sempre que se enuncia o desejo. Senão leia-se o final do
qual o lógico foi expulso? Talvez a arte seja mesmo um correlativo necessário
homem nobre e dotado> [a]o ver aqui, para seu pavor, como nesses limites a
lógica descreve círculos em torno de si mesma e morde por fim a própria cauda
11
NT, § 14, p. 104.
12
NT, § 15, p. 110.
13
Deleuze, em Nietzsche et la philosophie, escreve: «Como Nietzsche nos parece próximo de
Cálicles, e Cálicles completado imediatamente por Nietzsche» (p. 66). E, sublinhando a frase
emblemática de A vontade de poder, «[t]emos sempre que defender os fortes dos fracos» (p.
65), escreve mais adiante: «Note-se o que se passa entre o sofista e o dialéctico: de que lado
está a boa fé, mas também o rigor do raciocínio. Cálicles é agressivo, mas não é de
ressentimentos. Prefere renunciar a falar; é claro que da primeira vez Sócrates não
compreende, e da segunda fala de outra coisa. Como explicar a Sócrates que o «desejo» não é
a associação de um prazer e de uma dor, dor de o experimentar, prazer de o satisfazer? Que o
prazer e a dor são apenas reacções, propriedades das forças reactivas, resultados de
adaptação ou de inadaptação? E como fazer-lhe entender que os fracos não compõem uma
força mais forte? Por um lado, Sócrates não compreendeu, por outro não ouviu: animado em
demasia pelo ressentimento dialéctico e pelo espírito de vingança. Ele, tão exigente com o
outro, tão picuinhas quando alguém lhe responde...» (p. 67). Cf. Gilles Deleuze, Nietzsche et la
13
em que o ressentimento se torna, ele próprio, criativo e começa a produzir
próprio ao próprio, a moral dos escravos, desde o primeiro momento diz «não»,
de mostrar que esta «inversão do olhar definidor dos valores»15 – este olhar
desdenhoso, de cima para baixo, supondo que falseia a imagem daquele que é
14
GM, primeiro ensaio, § 10, p. 35.
15
Id., ibid., p. 35.
16
Id., ibid., p. 36.
14
Encontramos neste último período uma curva que pode abranger figuras tão
Bizet, segundo ele símbolo da tragédia dos tempos modernos. Contudo, aquilo
17
Rubens marca, indiscutivelmente, a composição das mulheres de Courbet, um dos
expoentes do realismo. Ora, acontece que Courbet – distanciando-se aparentemente (mas só
aparentemente) de Baudelaire quanto à operatividade epistemológica dos conceitos de
natureza e natural –, ao subverter os códigos da pintura de género histórico do romantismo, vai
centrar a sua pintura numa circulação constante de obra para obra, em que uma é o feminino e
a outra a sua resposta no masculino ou vice-versa. Pintor narcísico por excelência, não será
que podemos encontrar em Courbet – desde a série dos auto-retratos até à fase final da sua
obra pictórica – uma reconstrução da realidade, com pressupostos programáticos diferentes de
Baudelaire, é certo, mas, mesmo assim, uma reconstrução da realidade a partir do olhar-artista
(o lugar do espectador) do eu-pintor? E não será que em Nietzsche, perante os ziguezagues
estratégicos do seu sistema estético, não encontramos uma necessidade táctica (mas não só;
fundamentalmente filosófica ou, se quisermos, epistemologicamente operativa) do eu-filósofo
voltar a construir a desarticulação produzida não só pelo processo de ‘travestimento’ do
dionisíaco pelo apolíneo mas, também, pela noção de vontade de poder? Se Courbet
desconstrói a realidade ao desconstruir a pintura de género histórico do romantismo,
explorando doutra maneira – diversa, por exemplo, de Millet – o conceito de alegoria (do olhar-
artista do eu-pintor: o lugar do espectador) que percorre a sua estética realista; se Baudelaire
desconstrói a realidade, petrificando-a no fim de um longo processo que começa por uma
vaporização – eventual alegoria erótica espiritualizada, como no petrarquismo, ou eventual
alegoria de um tempo finissecular, tanto vale de momento; Nietzsche, num ajuste de contas
com o judaismo, o cristianismo e o socratismo, defende a moral do mais forte – correndo,
incluso, o risco de um anti-humanismo moral que o seu programa estético vai transformar em
«humano, demasiado humano». Para a obra pictórica de Courbet, cf. José Fernando
Guimarães, O lugar do espectador em Courbet, Sofia, Revista da Faculdade de Letras,
Filosofia, Universidade do Porto, II série, volume XV-XVI, Porto, 1998-99, pp. 533-559.
15
que o conduziu nessa mudança foi uma questão táctica, imposta pela gestão
Mas, apesar de tudo, não será que aquela última transcrição de Para a
conceito de génio?
«bem nascidos» sentiam que eram «os felizes» [repare-se que é o próprio
[repare-se, uma vez mais, no papel diluente das aspas] no plano dos
16
numa palavra, passividade».18 Nietzsche continua, entretanto, a sua descrição
forças que Nietzsche fala): sim e não, interior e exterior, activo e reactivo; os
como em Hegel, para a negação da negação. Há, isso sim, campos de forças.
E, sendo o prazer uma função da dor, como defendia Cálicles, temos delineado
Nietzsche e a arte:
18
22
É Jaspers quem sublinha o carácter contraditório da obra de Nietzsche; e,
pelo menos no que diz respeito à teoria da arte, tal situação é visível. Na senda
é o mundo que se impõe ao sujeito mas, pelo contrário, é o sujeito que cria o
mundo. Essa criação é, todavia, uma pulsão dionisíaca, uma interacção das
22
Karl Jaspers, Nietzsche, col. Tel, Gallimard, Paris, 1986, p. 18.
23
Jean-Marie Schaeffer, L’art de l’âge moderne. L’esthétique et la philosophie de l’art du XVIII.e
siècle à nos jours, col. nrf essais, Gallimard, Paris, 1996, p. 264; assinale-se que vamos seguir
de perto a argumentação de Schaeffer, cap. IV, II. Fiction de la vérité et vérité de la fiction, pp.
262-296.
19
vai até A Gaia Ciência (1882); a reinterpretação da arte na perspectiva da
enquanto que para os românticos a arte moderna era o oposto da arte clássica,
dialogada). Por isso, a arte de Wagner é uma arte total - síntese do ouvido e da
20
de O Nascimento da Tragédia: os dois princípios fundamentais da arte grega, o
dionisíaco e o apolíneo, nas lutas que travam entre si, nos vectores de força
uma consolação (Tröstung) que nos permite continuar a viver; c) uma definição
que o ser opera como Uno (Urgrund); por outras palavras: é na embriaguez
dionisíaca que o homem é, de facto, ele próprio, a sua primeira criação, a sua
Como tal, a passagem do plano cósmico ao artístico faz-se pela vida afectiva
25
NT, § 1, p. 28.
26
NT, § 1, pp. 27-28.
27
Jean-Marie Schaeffer, op. cit., p. 271 [a tradução é nossa].
22
Vêm, depois, as artes puramente apolíneas: a poesia épica e as artes
plásticas.
desta vida».29 Se assim é, então a arte deve revelar uma verdade de ordem
neste sentido que a arte suprema não é a música pura, mas a tragédia (...),
28
Id., ibid., p. 273.
29
NT, p. 22.
30
Jean-Marie Schaeffer, op. cit., pp. 274-275 [a tradução é nossa].
23
não apolíneo. Esta ideia é retomada por Nietzsche, ainda que doutra maneira,
simplesmente, devemos procurar tal prazer não nos fenómenos mas por detrás
dos fenómenos. Devemos reconhecer como tudo o que nasce tem de estar
pronto para um doloroso declínio, somos obrigados a olhar para dentro dos
31
NT, § 16, p. 117. A meio do § 16 Nietzsche coloca esta questão: «(...) qual o efeito estético
que surge quando esses poderes artísticos em si separados, o apolíneo e o dionisíaco,
principiam a actuar lado a lado? (...) [Q]ual a relação da música com a imagem e o conceito?»
(p. 113). Segue-se uma longa citação de Mundo como Vontade e Representação de
Schopenhauer e Nietzsche acrescenta: «São dois os efeitos que a arte dionisíaca exerce sobre
a capacidade artística apolínea: a música incita à intuição simbólica da universalidade
dionisíaca, a música realça então a imagem simbólica na sua significação suprema. Destes
factos (...) concluo a capacidade da música para dar à luz o mito, isto é, o exemplo mais
significativo, e precisamente o mito trágico: esse mito que fala por símbolos acerca do
conhecimento dionisíaco.» (p. 117).
32
NT, § 17, p. 118.
24
animado da individuação. Se pudéssemos imaginar um devir humano em
poder viver necessitaria de uma magnífica ilusão que cobrisse com um véu de
seu nome resumimos todas aquelas inúmeras ilusões da bela aparência, que
momento próximo».33
outro lado, a arte apolínea onde há «uma magnífica ilusão» capaz de cobrir
cada instante digna de ser vivida», capaz de incitar a viver. Este tornar
35
NT, § 15, p. 110.
25
que o apolíneo é a representação, mas ilusória, o lugar que seria aquele onde
outra coisa senão uma tentativa para resolver este problema e encontrar este
lugar contraditório».36
de alcançar o que subsiste nas «figuras em mutação» 39 mas, pelo contrário, ser
religiosa tem que ser substituída por uma antropologia e uma psicologia
36
Jean-Marie Schaeffer, op. cit., p. 277 [a tradução é nossa].
37
Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado Humano. Um livro para espíritos livres, tradução de
Paulo Osório de Castro, col. Obras escolhidas, vol. 2, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 1997.
Esta obra será citada doravante como HDM.
38
HDM, 29, p. 51. Na tradução portuguesa em vez de «representação» está «noção».
39
NT, § 17, p. 118.
26
inteligência mas na necessidade.40 Como tal, o conceito de verdade vai contra
Com esta genealogia da arte, a sua função cognitiva desloca-se para uma
função afectiva – para as pulsões vitais. Ora, se tudo o que é pulsional tem em
nosso olhar falso sobre o mundo dos fenómenos, cabe à arte abrir caminho
para que o homem aceite, mais facilmente, a fatalidade do falso na vida. Mas,
fenómenos, assim também deve ser o olhar artístico. Daí, justamente, ser a
como pega nos sentimentos e estados de alma que a religião – que está a
40
HDM, 131, p. 134: «A fome não prova que haja um alimento para saciá-la, mas deseja o
alimento».
41
HDM, 34, p. 56.
42
Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, tradução de Maria Helena Rodrigues de Carvalho, Maria
Leopoldina de Almeida, Maria Encarnação Casquinho, col. Obras escolhidas, vol. 3, Relógio
D’Água Editores, Lisboa, 1998, 107, p. 118. Esta obra será citada doravante como GC. V. ainda
GC, 299, p. 208. V. também HDM, 148, p. 155.
43
HDM, 222, pp. 203-204.
44
HDM, 159, p. 162.
27
perder terreno para a arte - deixou semeados.45 Fácil é constatar que, a partir
(...) Talvez nunca antes a arte tenha sido apreendida tão profunda e
Nietzsche e em Hegel. Para Hegel, excepção feita à arte clássica (grega), quer
infinitas através de formas finitas; este fracasso implica a morte da arte, o fim
especulativa morre.
noções gerais já não têm peso ontológico, o que vai interessar a Nietzsche são
45
HDM, 150, pp. 156-157.
46
HDM, 220, p. 198.
47
HDM, 219, pp. 196-197.
48
HDH, 223, p. 204 (trad. revista). V. também 234, pp. 215-216, onde, com ecos de Platão e
Hegel, Nietzsche diz que num Estado perfeito a arte podia desaparecer.
49
V. Michel Haar, L’oeuvre d’art. Essai sur l’ontologie des oeuvres, col. Optiques philosophie,
Hatier, Paris, 1994, pp. 35-43.
28
análise que faz da criação artística, Nietzsche critica o culto do génio e a ideia
arte».55
partir deste texto do livro quinto de A Gaia Ciência, intitulado «Nós, os sem
temor»: «Vê-se que também a ciência se apoia numa crença, não existe
deve-se não só responder de antemão afirmativamente, mas até num tal grau
constataria que a ciência nem sempre é esse exercício – até porque não pode
se, portanto, para o segundo caso; e, ao inclinar-se para aí, para a vontade de
enquanto que a tendência para as ilusões úteis tem um carácter natural. Ora,
erro, está a afirmar, ao mesmo tempo, que a vida tem mais valor que a
se, pelo contrário, não será a realidade uma construção ficcional. Se assim for,
função vital. Por isso, escreve Nietzsche: «[o] critério de verdade reside no
considerada como nociva, como «errónea», mesmo se ela faz parte das
57
Apud Jean-Marie Schaeffer, op. cit., p. 291 [a tradução é nossa].
58
Jean-Marie Schaeffer, op. cit., p. 291 [a tradução é nossa].
31
II
32
Baudelaire ou o espelho da melancolia
(...)//
De mon désespoir!
Baudelaire, La Musique
Baudelaire, Le voyage
33
Olhemos para um quadro de Courbet, Portrait de Baudelaire (1847?, Musée
Fabre, Montpellier).
Aí, num fundo onde o verde tem fugazes colorações de amarelo, que tanto
atenção do espectador é o arco que Courbet cria entre uma pluma, quase
34
imaculadamente branca, pousada num tinteiro, um livro aberto, de que se vê
direita está ilidida pelo livro). Além disso, o quadro está executado em contra-
para cima.
absorvimento e narcisismo.59
Se estes processos compositivos são usuais na obra de Courbet, será que eles
59
Cf. José Fernando Guimarães, O lugar do espectador em Courbet, Sofia, Revista da
Faculdade de Letras, Filosofia, Universidade do Porto, II série, volume XV-XVI, Porto, 1998-99,
pp. 533-559.
35
da operatividade de conceitos como actividade, passividade, absorvimento,
narcisismo que a pintura de Courbet circula entre si, que uma obra reenvia para
outra num permanente jogo de espelhos, haverá por acaso, também na obra
operativos, uma circulação dos textos entre si, uma sua interna implicação
recíproca?
Numa daquelas imagens fulgurantes que atravessam a sua obra, Benjamin diz
que Baudelaire «descreve os olhos que perderam o poder de olhar». 60 Ora, não
será essa impossibilidade de ver, esse não-ver, essa petrificação61 que nos
inocência da pureza, se é que alguma vez a teve? Ou, então, será que o saber
acrescentar noutro lugar: «J’ai pétri de la boue et j’en ai fait de l’or.»; 64 «Glorifier
60
Walter Benjamin, Charles Baudelaire. Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme, Petite
Bibliothèque Payot, Paris, 1994, p. 201.
61
Cf. Jean-Pierre Richard, Poésie et profondeur, col. Points, Seuil, Paris, 1976, em particular o
estudo Profondeur de Baudelaire, pp. 91-162.
62
Cf. Walter Benjamin, id.. Cf. de Walter Benjamin também os seguintes trabalhos: Écrits
français, Bibliothèque des Idées, Gallimard, Paris, 1997; The Arcades project, translated by
Howard Eiland and Kevin McLaughlin, prepared on the basis of the german volume edited by
Rolf Tiedemann, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts,
and London, England, 1999.
63
Charles Baudelaire, Oeuvres complètes, col. l’Intégrale, Seuil, Paris, 1970, p. 8. Referir-nos-
emos doravante a esta edição como OC.
64
Baudelaire, OC, apêndice a Les Fleurs du Mal, VI. Bribes, p. 129.
36
le culte des images (ma grande, mon unique, ma primitive passion)». 65 Daí,
militaire; 9. Le dandy; 10. La femme; 11. Éloge du maquillage; 12. Les femmes
et les filles; 13. Les voitures. E basta ler os títulos destas secções para se ter a
uma clivagem epistemológica entre estética e crítica de arte. Diderot nos vários
efeitos, mais do que uma atitude crítica havia, isso sim, uma atitude ficcional
(Diderot preenchia um qualquer vazio deixado pela obra de arte ou, como
escreve Starobinski, «Diderot preind appui sur les tableaux des Salons pour
écrire d’autres tableaux (...)»68) e uma atitude moral. Baudelaire, não: belo,
65
Baudelaire, OC, Mon coeur mis a nu, p. 638.
66
Baudelaire, OC, p. 546 e sq.
67
Diderot, Oeuvres, tome IV, col. Bouquins, Robert Laffont, Paris, 1966. Cf. também Jean
Starobinski, Diderot dans l’espace des peintres suivi de Le sacrifice en rêve, Textes RMN,
Paris, 1991.
68
Jean Starobinski, op. cit., p. 60.
37
moda e felicidade, dandysmo, a mulher ou o elogio da maquilhagem operaram,
já não interessa ler a obra de arte no contexto ficcional e moral, até porque ela
Por isso mesmo, aliás, Le peintre de la vie moderne gira em torno do críptico,
como pode alguém ser amante da multidão e do incognito? Como pode alguém
(«O génio é genius, o outro em si mesmo (...), a presença interior, (...) o sinal
homem e a natureza, ainda que num outro modo de ser?; 75 ou, então, pairando
crítica romântica privilegiava; a partir de meados do século XIX, a obra literária traduz a
espessura da linguagem e à crítica só interessa a «álgebra da linguagem». E se, em 1865,
Mallarmé e Verlaine inauguram, com diferentes textos interpretativos e em diferentes
publicações, o mito de Baudelaire, estavam dados os passos para ser desenvolvido por
Mallarmé o conceito axial de Livro.
72
Id., ibid., p. 45.
73
Cf. José Fernando Guimarães, Nietzsche ou o regresso de Cálicles, comunicação
apresentada ao congresso internacional «Pensar Nietzsche, hoje», Porto, 2000.
74
V. Hans Robert Jauss, Las transformaciones de lo moderno. Estudios sobre las etapas de la
modernidad estética, col. La balsa de la Medusa, Visor, Madrid, 1995, pp. 25-61 e pp. 105-134.
A moralidade, para Kant, é assunto da arte e não da natureza; resolve assim, dialecticamente,
a rousseauniana contradição entre a espécie animal (a obra de Deus equivale ao bem) e a
espécie moral (a obra do homem equivale à liberdade e ao mal).
75
Preparada por Sade, para quem o crime está de acordo com o espírito da natureza; por De
Maistre, para quem o pecado original implica uma natureza feia e má; por Chateaubriand, para
quem o belo e a moral são uma «natureza corrigida», o que implica a reflexão sentimental:
sentir o ideal de beleza na negação do presente; por Hegel, que exclui o belo natural, só
admitindo a beleza artística, «nascida do espírito e por ele reconhecida», o que implica o fim do
princípio clássico de imitação da natureza; por Baudelaire, para quem o conceito de artificial é
nuclear – escreve, aliás, Baudelaire numa carta a Fernand Desnoyers [OC, p. 102]: «Sempre
pensei que a natureza que floresce e se renova encerra em si algo de impúdico e de nojento» –
pelo que o poeta moderno não pode nem deve produzir a sua obra segundo a natureza nem
como a natureza; preparada por todos estes nomes, a modernidade pós-romântica expulsa a
natureza da estética, operando uma despotencialização da natureza cósmica e um
descentramento do sujeito humano. É, aliás, o fim da natureza cósmica (da natura naturata) e
do conceito teleológico de natureza (da natura naturans) que abre o caminho à teoria da
evolução das espécies de Darwin. Daí a recusa, por parte de Baudelaire, da natureza de
Rousseau, do sujeito lírico autoconsciente e do simbolismo platonizante de um romantismo
acabado, ao qual opõe a estética de uma concepção sobrenatural da poesia moderna. Por
outro lado, a descoberta da nova poesia da indústria, que substitui a velha poesia da natureza,
39
sobre os salões dos independentes e sobre as exposições universais, as
sons de algo que se desmorona para, acto contínuo, dar origem a algo de novo
abrindo as vias de um debate futuro sobre a industrialização da arte e, ao mesmo tempo, sobre
a estetização da produção industrial, é visível em Baudelaire. Por isso, Baudelaire procede à
desmontagem do belo natural e à retirada do sublime; opera o regresso de uma natureza já
não imitada mas desenhada – e preludia, assim, a estética do século XX. Ora, Jauss – cf.
supra nota 16 – tira as consequências desta «visão de uma despotencialização poética da
natureza orgânica» (p. 119): «renúncia à idealidade da natureza na sua última configuração
estética: a etapa da transformação do belo em sublime»; «recusa da antítese rousseauniana de
natureza e civilização, da convicção de que o homem é bom por natureza e só se torna mau
pela socialização»; «renúncia à correspondência sentimental e romântica do sujeito e da
natureza, da experiência sensível e da supra-sensível».
76
V. Baudelaire, OC, secção 3. L’artiste, homme du monde, homme des foules et enfant, pp.
550-553.
40
quadros muito interessantes, ainda que de segunda ordem»,77 para parar
ainda não foi por si valorado, é-lhe indiferente. Mas, note-se, esse gostar
isso mesmo, tal como acontece com uns quantos que lêem Bossuet ou Racine
«Je connais mon musée». Um conhecimento que não é crítico mas, pelo
77
Baudelaire, OC, p. 547. Todas as palavras, expressões ou frases entre aspas e sem
indicação de nota de rodapé que se encontrem ao longo deste estudo, remetem para a secção
1. Le beau, la mode et le bonheur, OC, pp. 547-550 [a tradução é nossa].
41
económica. Um conhecimento que é criteriosamente da ordem do desejo, dos
para quem ele era o presente, souberam extrair mas, também, como passado,
pelo seu valor histórico. Acontece o mesmo com o presente. O prazer que
ele está revestido mas, também, para a sua qualidade essencial de presente».
Está aqui bem patente uma das ideias nucleares que atravessa toda a obra de
«L’idée que l’homme se fait du beau s’imprime dans tout son ajustement,
chiffonne ou raidit son habit, arrondie ou aligne son geste, et même pénètre
subtilement, à la longue, les traits de son visage. L’homme fini par ressembler à
42
(o único, aliás, que ele passou a escrito) que Butor analisa, 78 o belo insinua-se
e cola-se à roupa, sobe pelos gestos e pode vir a mudar o rosto, fazendo com
que o homem pareça «o que queria ser». Como se o belo fosse uma serpente
– quem sabe se aquela que tentou Eva. Mas, também, como se o belo fosse a
outra face de Deus - aquela que, indizível, nos habita. Belo e moda, símbolos
que tem diante de si e que vão da Revolução até ao Consulado, diz que as
tempo dos seus pais, há uma frase que ressoa aqui com visíveis acentos de
costumes sous lesquels nos pères se trouvaient tout aussi enchanteurs que
nous-mêmes dans nos pauvres vêtements (lesquels ont aussi leur grâce, il est
vrai, mais d’une nature plutôt morale et spirituelle), et s’ils sont portés et animés
par des comédiennes et des comédiens intelligents, nous nous étonnerons d’en
tempo com a do tempo dos seus pais – daí, justamente, o título desta secção
lermos com mais atenção, as coisas mudam de figura – e o que até há pouco
44
provocam com utilidade a meditação», Baudelaire constata que Stendhal «se
aproximou da verdade, mais do que muitos outros, dizendo que o Belo não é
Por outro lado, o que é o belo para Baudelaire? Eis a sua «teoria racional e
moral e a paixão». Ainda que a impressão que o belo produz seja uma só, este
Assim, o texto atrás citado, que trata da distinção entre as roupas do tempo dos
seus pais e as roupas do seu tempo, e que fala, também, das mulheres e da
erótica que lhes está subjacente, tem a ver com a moda. Estamos, pois, no
80
Repare-se nos jogos sonoros de uma e outra frase: a primeira apela à abertura, a segunda
ao fechamento.
45
conduzidos pelo rigor perfeitamente cartesiano de Baudelaire. Pura ilusão, no
entanto.
O texto que deixamos para trás, em suspenso - e que fala de «um drama que
um destes dias, quem sabe, há-de aparecer num teatro qualquer, e onde
tão encantadores como nós próprios nas nossas pobres roupas 82 (as quais têm
também a sua graça, é verdade, mas duma natureza mais moral e espiritual), e
pertence, ele parece apontar não só para a temática da moda como, também,
luz?
81
No original: «costumes».
82
No original: «vêtements».
46
Pode ser uma maneira de demonstrar a evolução da moda, em que «o imortal
apetite do belo encontrou sempre a sua satisfação». Há, contudo, uma outra
Les fleurs du mal, dois poemas sem título e que pertencem à secção Tableaux
parisiens, «Je n’ai pas oublié, voisine de la ville»86 e «La servante au grand
que votou o seu pai; por outro lado, apesar da sexualidade espiritualizada que
dedica à mãe, Caroline – mulher linda, verdadeira dandy, e que ficou viúva
quando Baudelaire era ainda menino, vindo a casar pouco depois com o chefe
por Baudelaire, tal como a criada, Mariette, ou num outro registo a amante,
Jeanne Duval.88 Talvez não seja preciso de momento, ao contrário do que faz –
83
Baudelaire, OC, secção 3. L’artiste, homme du monde, homme des foules et enfant, p. 550 [a
tradução é nossa].
84
Baudelaire, OC, secção 3., p. 550 [a tradução é nossa].
85
Yves Bonnefoy, Baudelaire: la tentation de l’oubli, col. Conférences del Duca, Bibliothèque
Nationale de France, Paris, 2000.
86
Baudelaire, OC, p. 104.
87
Baudelaire, OC, p. 104.
88
Seguindo as pistas que Bonnefoy abre – cf. supra nota 85 –, podemos, contudo, tentar ir
mais longe. Se é a partir da imagem de Caroline (prenúncio, para Bonnefoy, do conceito de
«Idéal» em Les fleurs du mal) que Baudelaire foi construindo a sua poética num jogo cifrado,
esse jogo joga-se em torno do fantasma da mãe – num primeiro momento é a volatização de
uma ausência e num segundo momento é a petrificação dessa mesma ausência. Mais: se
Caroline é a dandy por excelência para o poeta, é também daí que deriva o desprezo de
Baudelaire pelo natural, o seu gosto pelo artificial, caso, por exemplo, das «biches», das
lésbicas enquanto símbolo da infertilidade do natural, as quais compara aos poetas que ainda
não publicaram. Não se esqueça, como lembra Butor – cf. supra nota 78 –, que Les fleurs du
mal tiveram, por esta ordem, os seguintes títulos provisórios: Lesbiennes e Limbes. Cf. também
47
e bem - Bonnefoy, convocar outros poemas de Les fleurs du mal, para se sentir
o peso dos remorsos. Não estarão arrependimento e compaixão sob esta frase:
«(...) onde assistiremos à ressurreição dos trajos sob os quais os nossos pais
confirma estoutra afirmação: as «nossas pobres roupas (...) têm também a sua
graça (...), mas duma natureza mais moral e espiritual».89 Por isso mesmo é
d’auréole, um dos Petits poëmes en prose.91 Quem enuncia esta fala? Que a
enuncia com malícia, com desdém, com fanfarronice, até, percebemo-lo nós.
Mas quem a enuncia? Perte d’auréole é um diálogo. Pelo menos, tem as suas
regras internas. Terá mesmo? Onde o travessão que devia abrir para a
primeira fala? Foi lapso, uma falha tipográfica? É uma questão de estilo? Ou é
um monólogo? Repare-se, aliás, que todo o texto está entre aspas. Qual é o
um ritual e um valor de culto que lhe conferem autenticidade e, por outro, implica uma grande
narrativa cosmológica fundadora, ou seja, a aura, sucede que com a reprodutibilidade, com a
imagem da arte há mais um valor de exposição do que um valor de culto. Daí ir Benjamin falar
de uma primeira e de uma segunda técnicas; a primeira técnica implica o sacrifício humano, o
dominar a natureza, os “valores eternos”, a eternidade; em contrapartida, a segunda técnica é
como um avião pilotado à distância: o homem distancia-se da natureza. Por isso, a pintura
equivale ao papel desempenhado pelo mago; já o cinema equivale ao papel desempenhado
pelo cirurgião. Diz Benjamin: com o público desaparece a aura da obra de arte. E sublinha a
oposição entre recolhimento e distracção, entre imagem piedosa e imagem publicitária. Ora, é
justamente com o cinema, segundo Benjamin, que desaparece a diferença entre trabalho
manual e intelectual. Cf. Walter Benjamin, L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproduction
mécanisée [1936] in Écrits français, Bibliothèque des Idées, Gallimard, Paris, 1997, pp. 115-
192. Cf. a análise que Hans Robert Jauss faz de Perte d’auréole – cf. supra nota 74.
91
Para que não haja falsas pistas, confrontemos datas. Perte d’auréole foi recusado pela
Revue nationale em 1865, sendo publicado postumamente. A primeira edição de Les fleurs du
mal surge em Junho de 1857; a segunda edição é de Fevereiro de 1861. Quer «Je n’ai pas
oublié, voisine de la ville», quer «La servente au grand coeur dont vous étiez jalouse»
aparecem na primeira edição de Les fleurs du mal. Le peintre de la vie moderne foi publicado,
conforme já indicamos, a 26 e 28 de Novembro e a 3 de Dezembro de 1863 em le Figaro.
Donde, os dois poemas são publicados – e talvez escritos - antes de Le peintre de la vie
moderne e de Perte d’auréole, respectivamente.
49
um monólogo que ocorreu. É, de facto, um processo usual noutros Petits
poëmes en prose. Tal como é um processo usual nos Petits poëmes en prose o
primeiro diálogo ou fala não ser aberto por um travessão. Restam, todavia,
« - Mon cher, vous connaissez ma terreur des chevaux et des voitures. Tout à
dans la boue, à travers ce chaos mouvant où la mort arrive au galop de tous les
moins désagréable de perdre mes insignes que de me faire romper les os. Et
puis, me suis-je dit, à quelque chose malheur est bon. Je puis maintenant me
les simples mortels. Et me voici, tout semblable à vous, comme vous voyez!».
como você vê!». Mas, parecido porque simples mortal. Porque, note-se, não
teve a «coragem» de apanhar a aura que tinha caído. Donde, quem produz o
Acontece, todavia, que essa situação de simples mortal sem coragem é uma
50
precipitadamente, saltitando na lama, talvez para a evitar. Por causa disto, e
caos em movimento», eis que «um movimento brusco» precipita a aura «para a
constata que era bem melhor perder as insígnias do que partir os ossos, que
que vive com a constante ameaça da morte, mas, também, o lado interior,
da moral aparece aqui, subitamente iluminada pelo homem nobre – que, tendo
multidão.
« - Vous devriez au moins faire afficher cette auréole, ou la faire réclamer par le
« - Ma foi! non. Je me trouve bien ici. Vous seul, vous m’avez reconnu.
D’ailleurs la dignité m’ennuie. Ensuite je pense avec joie que quelque mauvais
51
poëte la ramassera e s’en coiffera impudemment. Faire un heureux, quelle
É o final de Perte d’auréole. Que tinha começado com uma fala carregada de
resposta: «Estou bem aqui». Mas, com esta resposta – onde ecoa, ainda, a
judaico-cristianismo.
Acontece, por outro lado, que a última fala dá a conhecer que o seu locutor é
poeta. A aura pertence, pois, a um poeta. E, caso algum «mau poeta» apanhe
essa aura, que perversa felicidade para o locutor: «Fazer alguém feliz, que
prazer! e sobretudo alguém feliz que me há-de fazer rir!». Há aqui, nesta frase,
dos sentidos, sexual mesmo; por outro lado, «Fazer alguém feliz, que prazer! e
52
L’artiste a 1 de Novembro de 1864, ou seja, anterior a Perte d’auréole.92 Tudo
gira, aí, em torno do acto de dar «la pièce fausse». Também há, aí, duas
paroles: “Oui, vous avez raison; il n’est pas de plaisir plus doux que de
prazer mais doce do que surpreender um homem dando-lhe mais do que ele
penso com alegria que um qualquer mau poeta a há-de apanhar [à aura] e
prosa o satanismo de «Fazer alguém feliz, que prazer! e sobretudo alguém feliz
desculpado por ser mau, mas há algum mérito em saber-se que o somos; e o
mais irreparável dos vícios é fazer o mal por estupidez 93». Por outras palavras:
92
Baudelaire, OC, pp. 168-9. Cf. Jacques Derrida, Donner le temps. 1. La fausse monnaie, col.
La philosophie en effet, Galilée, Paris, 1991, em particular 3. La fausse monnaie, I. Poétique du
tabac (Baudelaire, peintre de la vie moderne), p. 95 sq, e 4. La fausse monnaie, II. Don et
contre-don, l’excuse et le pardon (Baudelaire et l’histoire de la dédicace), p. 139 sq. Cf. também
Jacques Derrida, Donner la mort in L’éthique du don. Jacques Derrida et la pensée du don,
colloque de Royaumont, Métailié-Transition, Paris, 1992, em particular p. 102 sq, onde Derrida
analisa o ensaio de Baudelaire intitulado L’école païenne.
93
No original: «bêtise».
53
apesar de ser ocasionada por falta de coragem, a sua acção será
preto no branco, repetindo a palavra você, como quem fala consigo mesmo ao
totalmente parecido consigo, como você vê!». E este «você vê» está do outro
lado do espelho, como escreve Baudelaire em Les foules: «O poeta goza deste
incomparável privilégio, que é à sua maneira poder ser ele próprio e outro.
Como essas almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando quer,
poeta, que é Baudelaire, surge, então, aos nossos olhos como alguém
paixão da viagem».99 Depois de olhar, olhos nos olhos, «un soleil noir», esse
vencer e de tirar prazer delas; mas esta dá o desejo de morrer lentamente sob
o seu olhar».100
Quem é esta mulher que torna «talvez infeliz o homem, mas feliz o artista que o
desejo dilacera»?101 Quem é esta mulher que, tal Salomé, é capaz de convocar
95
Baudelaire, OC, Les fleurs du mal, Le soleil, p. 95. Este poema pertence à secção Tableaux
parisiens.
96
Spleen et Idéal é uma das secções de Les fleurs du mal.
97
Baudelaire, OC, Petits poëmes en prose, Le confiteor de l’artiste, p. 149 [a tradução é nossa].
98
No original: «jouir». A conotação sexual é, uma vez mais, evidente.
99
Baudelaire, OC, Petits poëmes en prose, Les foules, p. 155 [a tradução é nossa].
100
Baudelaire, OC, Petits poëmes en prose, Le désir de peindre, p. 175 [a tradução é nossa].
101
Id., ibid.
55
possuir o corpo desejado, aquele sexo preciso? Quem é esta mulher que, tal
como aparece fulgurante numa série de poemas de Les fleurs du mal. Caroline,
melancolia.
Então «um drama que um destes dias, quem sabe, há-de aparecer num teatro
pais estavam tão encantadores como nós próprios nas nossas pobres roupas
(as quais têm também a sua graça, é verdade, mas duma natureza mais moral
«havemos de nos espantar por ter rido tão estouvadamente» ao olhar para a
imagem dos pais. Note-se bem: dos pais, no plural, de Caroline e de Joseph-
François. Este já tinha morrido, é certo. Mas, Caroline em 1863 estava viva. O
indica o passado] tão encantadores como nós próprios nas nossas pobres
roupas». E o que surge do texto é o nosso espanto: falta uma forma verbal.
Voltando a ler atentamente o texto, constatamos que é um nós que há-de vir a
pais, trazer a imagem deles à sua presença. Quer a imagem do pai, entretanto
que a sua imagem – que é «duma natureza mais moral e espiritual». Uma
Por isso mesmo, Le peintre de la vie moderne, muito mais do que um ensaio
Baudelaire – e ele sabe-o muitíssimo bem, tem sobre isso uma nítida intuição -
103
Cf. supra nota 75.
57
é um protagonista axial. Daí, pois, em Baudelaire, este constante jogo de
para outro. Daí, ainda, esse supremo espelho da sua melancolia, Caroline,
58
III
Il y a quelques jours, tu étais une divinité, ce qui est si commode, ce qui est si beau, si
59
1.
homem moderno: «Le beau est fait d’un élément éternel, invariable, dont la
60
quantité est excessivement difficile à déterminer, et d’un élément relatif,
circonstanciel, qui sera, si l’on veut, tour à tour ou tout ensemble, l’époque, la
para ser resgatado pelo passado, como escreve em Les Fleurs du Mal:
presente é poeirento, lunar, estéril. Basta ler o poema Le Cygne de Les Fleurs
plus vite, hélas! que le coeur d’un mortel»; acrescentando: «Paris change! mais
Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie, / Et mes chers souvenirs sont
plus lourds que des rocs.».106 Acontece também que esse presente, em que
cosmopolita.
104
Charles Baudelaire, Oeuvres Complètes, col. l’Intégrale, Seuil, Paris, 1970, p. 550. Referir-
nos-emos doravante a esta edição como OC.
105
Un fantome, II. Le parfum, OC, p. 64.
106
Baudelaire, OC, p. 97.
61
Mas porquê dolorosamente cosmopolita? Será que essa dor – nas palavras de
resposta é, em toda a sua extensão, afirmativa. É-o, por um lado, por causa da
paixão pela sua mãe – uma paixão dolorosa, como qualquer paixão, mas,
É-o, depois, por causa das várias amantes – tanto faz se reais (Sara, a
(madame Sabatier, por exemplo). É-o, ainda, por causa dos artistas seus
à sua obra, nem sempre terá retribuído tal dedicação). 108 É-o, por outro lado,
por causa de Poe – nele Baudelaire revê a sua biografia, pelo menos a axial (a
da(s) amante(s), dolorosa teia capaz da mais feroz melancolia); tal como a
107
Cf. Yves Bonnefoy, Baudelaire: la tentation de l’oubli, col. Conférences del Duca,
Bibliothèque nationale de France, Paris, 2000. Cf. José Fernando Guimarães, Baudelaire ou o
espelho da melancolia, in Sofia, Revista da Faculdade de Letras, Universidade do Porto, série
de Filosofia, II série, vol. XVII, Porto, 2000, pp. 165-183.
108
Cf. Bernard-Henri Lévy, Os últimos dias de Charles Baudelaire, trad. António Guerreiro,
Quetzal editores, Lisboa, 1989.
62
partir dos textos de Poe (sobre a sua vida e obra escreveu um longo ensaio,
para além de ter traduzido os seus contos), faz colagens, desidentifica-os para
deles se apropriar, para os voltar a marcar, agora com a sua assinatura.109 Que
feridas?
génio latente que habitava nestes tenebrosos esboços», «que, sem conselhos,
ambos de Les Fleurs du Mal.111 Ou seja, à tensão entre, por um lado, ennui,
semelhante ao poeta, mas também ser semelhante ao cisne que debica, sob a
forma de um «mito estranho e fatal», um chão sem água, um chão estéril. 112
qualquer imagem. E, sem que o leitor dê conta ou fingindo não o ver, nas
111
Baudelaire, OC, p. 43.
112
Baudelaire, OC, p. 97.
113
Baudelaire, OC, p. 551.
64
2.
sua incontornável melancolia, por entre essa multidão incógnita e que cultiva o
febril na sua paixão,115 nessa dobra do presente que também foi seu, surge
114
Baudelaire morreu a 31 de Agosto de 1867.
115
Basta, para chegarmos a este retrato, nada ficcional aliás, ler a correspondência de
Baudelaire. Charles Baudelaire, Correspondance, col. Folio classique, Gallimard, Paris, 2000.
Referir-nos-emos doravante a esta edição como CORR.
65
«um escrito polémico», seco, ajustando contas com um passado recente,
contas com o seu próprio autor. Esse «escrito polémico» tem por título Para a
moderne.
naquela recolha de aforismos que tem por título Humano, Demasiado Humano.
saber afinal qual a origem das nossas noções de bem e mal» constitui quase o
seu a priori,119 acrescenta: «Dêmos, pois, voz a esta nova exigência: falta-nos
uma crítica dos valores morais, há que começar a pôr em questão o próprio
conhecimento como até hoje nunca existiu, nem sequer chegou a ser desejado
116
Friedrich Nietzsche, Para a genealogia da moral, trad. José M. Justo, col. Obras escolhidas,
vol. 6, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2000. Referir-nos-emos doravante a esta edição como
GM.
117
GM, §2, p. 8.
118
GM, § 2, p. 8.
119
GM, § 3, p. 9.
66
por ninguém. Tomou-se sempre o valor desses «valores» como coisa dada,
que até certo ponto fizesse o presente viver à custa do futuro? Mais
confortavelmente, com menos perigos, mas ao mesmo tempo num estilo mais
e de esplendor do tipo homem, que sem ela teria sido possível? De tal modo
crescimento».
merecer atenção é este: «até hoje nem de longe se colocou a menor dúvida, a
consequência feroz, uma consequência que diz respeito ao homem «em geral»
esta questão, Nietzsche deixa no ar a dúvida se o bom não será «um sintoma
E sublinha sob a forma de pergunta: «algo que até certo ponto fizesse o
presente viver à custa do futuro?». Acrescentando mais uma vez sob a forma
essa que irá percorrer toda a Para a genealogia da moral. Mas, de novo na
obscurecer a razão. Mas, daí a ser um veneno... É que um veneno pode ser
pode ser fatal. Como acontece em Les Fleurs du Mal de Baudelaire. É evidente
68
que o que Nietzsche nos diz é tão-só isto: até agora o «bom», presente no topo
sob o signo do «bom», o homem revela-se cada vez mais «mesquinho», mais
procura – conserva-se. Sendo assim, tudo o que é novo é-lhe alheio. E nada
Mas é também aqui que Nietzsche deixa esboçadas, pelo menos por enquanto,
121
Cf. Gilles Deleuze, Nietzsche et la philosophie, col. Bibliothèque de philosophie
contemporaine, PUF, Paris, 1973.
69
3.
A lírica medieval evidencia, na maioria dos seus textos, uma relação amorosa e
amado (a). Ou, noutros casos, sublinha como esse amor é de difícil
70
concretização, é subterrâneo, tentacular, seja por razões familiares, seja por
cumprido por várias razões; d) esse estado de paixão implica uma confissão -
não só ao outro mas, também, aos outros, isto é, o que é do plano íntimo,
interior, passa para o plano social por intermédio do dizer poético; e) essa
passa, então, a ter um rosto – que é muito mais passível de ser figurado nos
que se trata, afinal), do que nos rostos e nos corpos femininos de um, também
destes dois universos. Mas que esse universo solar, quase pagão, remetia para
esse universo lunar, ferozmente intimista, remetia para uma ética protestante.
71
Dois universos ligados, apesar de tudo, pelo menos por um ponto em comum:
a matriz neo-platónica.
a bílis negra, como o fizeram os neo-platónicos, e dizer que tem a ver com
terríveis, impossíveis dores no ouvido. Ou, então, que subentende uma busca
esfera armilar, para citar alguns exemplos dessa parafernália cabalística. Seja
melancolia.122
72
tempo que resta ora enquanto apocalipse, ora enquanto tempo messiânico, o
paralelo ao tempo profano - só que essa paralela não lhe é exterior, é-lhe
conceito de tempo que resta – o tempo de uma flor, por exemplo, mesmo que
quantos anos mais tarde, que não, que não era assim, que Heidegger nem
123
Estudos sobre o conceito de tempo-resto: toda a obra de Heidegger é fundamental; Giorgio
Agamben, Le temps qui reste. Un commentaire de l'Épître aux Romains, col. Bibliothèque
Rivages, Payot & Rivages, Paris, 2000.
124
Heidegger, L'origine de l'oeuvre d'art, in Chemins qui ne mène nulle part, col. Classiques de
la philosophie, Gallimard, Paris, 1970, pp. 11-68. Meyer Schapiro, L'objet personnel, sujet de
nature morte. À propos d'une notation de Heidegger sur Van Gogh, in Style, artiste et société,
col. Tel, Gallimard, Paris, 1999, pp. 349-360. Para o estudo do diferendo entre Heidegger e
Schapiro, cf. Jacques Derrida, Restitutions de la vérité en pointure, in La vérité en peinture, col.
Champs, Flammarion, Paris, 1978, pp. 291-436.
73
a suspensão do gesto da paixão, a suspensão do gesto de desejo. É no
insuportável dor que o habita. Uma dor que mais não é do que um possível
Nietzsche.
4.
E van-s as frores
E van-s as frores
E van-s as frores
E van-s as frores
E van-s as frores
75
d'aqui ben con meus amores!
E van-s as frores
Compare-se, agora, esta belíssima cantiga de amigo com este não menos
Et le printemps et la verdure
L'insolence de la Nature.
77
Une blessure large et creuse,
Este poema, o primeiro dirigido a madame Sabatier, levava apensa esta carta
anónima: «La personne pour qui ces vers ont été faits, qu'ils lui plaisent ou
qu'ils lui déplaisent, quand même ils lui paraîtraient tout à fait ridicules, est bien
ont une pudeur qui ne veut pas être violée. L'absence de signature n'est-elle
pas un symptôme de cette invincible pudeur? Celui qui a fait ces vers, dans un
des états de rêverie où le jette souvent l'image de celle qui en est l'objet, l'a
bien vivement aimée, sans jamais le lui dire, et conservera toujours pour elle la
Sabatier surge camuflado pelo desejo dirigido à sua mãe, madame Aupick); a 8
místico e carnal; há, todavia, um excerto da carta que merece ser citado: «Ne
trouverez-vous pas naturel, simple, humain, que l'homme bien épris haïsse
127
Baudelaire, OC, p. 66.
128
Baudelaire, CORR, pp. 73-75.
78
finalmente, a 18 de Agosto de 1857 a carta assinada, assinada Charles
poemas que aí são dedicados a madame Sabatier («Tous les vers compris
«Flaubert avait pour lui l'impératrice», «[i]l me manque une femme». Agora que
Charles Baudelaire assina a carta, agora que «[v]oilà la première fois que je
vous écris avec ma vraie écriture», ele pode dizer que «les poètes sont des
idolâtres», que «la fidélité est un des signes du génie». Enfim, não se trata de
corpo que acaba de fazer estilhaçar. As flores malditas actuaram uma vez
dirigida a madame Sabatier. E, mais uma vez, apercebeu-se de que nada, mas
nada, havia de ferir o desejo do seu filho para consigo. Os dados estavam
129
Jacques Lacan, Le séminaire sur «La Lettre volée», in Écrits 1, col. Points, Seuil, Paris,
1970, pp. 19-75.
130
Para a correspondência com madame Sabatier, cf. Baudelaire, CORR, pp. 73-75, 80-82, 99-
101, 101-102, 104-106, 136-138.
79
lançados. E continuavam a rolar a seu favor. Apesar das flores malditas. 131 Ou
aquiescência: «Vous voyez qu'avec vous j'aime la médisance. S'il est vrai qu'on
Aupick, uma vez mais, sentiu-se rejuvenescida. E não foi por causa dos oito
diferente, sempre sob o signo do imperativo, mesmo quando o não parecia ser,
não queriam que assim parecesse. Com «la Présidente», contudo, com
madame Sabatier, a paixão durou o tempo do incognito, apesar dela ser uma
131
Baudelaire, CORR, pp. 131-134.
132
Baudelaire, CORR, pp. 203-204.
80
profonde humilité / je dédie / ces fleurs maladives / C. B.»). Já com Jeanne
sob o signo do imperativo, mesmo quando o não parecia ser, ou quando eles
que assim parecesse. Mas, com madame Sabatier não foi assim. Havia, aliás,
moi-même vous demander pardon d'avoir fait semblant de vous oublier». Mas,
como pode alguém fingir que esqueceu o outro? Isso é o mesmo que pensar
que o outro está morto. Isso é o mesmo que dizer que se matou o outro. Não
que se vaza (que se transmuta, para utilizar o conceito dos alquimistas, que
madame Aupick). Como no famoso sonho que constitui quase toda a carta de
(será mesmo um sonho?): «ils [les rêves] sont un langage quasi hiéroglyphique
dont je n'ai pas la clef».134 Aqui Baudelaire como que estabelece a ponte com o
133
Cf. supra nota 6.
134
Baudelaire, CORR, p. 121.
135
Baudelaire, OC, p. 46.
81
La Nature est un temple où de vivants piliers
1846: «Ce n'est pas seulement en rêve, et dans le léger délire qui précède le
une analogie et une réunion intime entre les couleurs, les sons et les parfums. Il
me semble que toutes ces choses ont été engendrées par un même rayon de
82
lumière, et qu'elles doivent se réunir dans un merveilleux concert. L'odeur des
soucis bruns et rouges produit surtout un effet magique sur ma personne. Elle
me fait tomber dans une profonde rêverie, et j'entends alors comme dans le
symboles / Qui l'observent avec des regards familiers», nada mais resta do que
o esboço, nada mais resta do que o regresso à infância, nada mais resta do
perfumes «[q]ui chantent les transports de l'esprit et des sens». Que o tema do
não será essa vaporização do eu poético (como numa primeira fase o tinha
136
Baudelaire, OC, p. 232.
137
Jean-Pierre Richard, Profondeur de Baudelaire, in Poésie et profondeur, col. Points, Seuil,
Paris, 1976, pp. 91-162.
83
Quando acabaram de ler A celle qui est trop gaie, os juízes condenaram as três
Há, contudo, uma nota escrita por Baudelaire sobre esta condenação
particular: «Les juges ont cru découvrir un sens à la fois sanguinaire et obscène
plaisanteries. Mais venin, signifiant spleen ou mélancolie, était une idée trop
simple pour des criminalistes. Que leur interprétation syphilitique leur reste sur
madame Sabatier ocorreu sob o signo do incognito, pelo menos até à carta-
suspensão do gesto do desejo. Releia-se o poema A celle qui est trop gaie. E
logo se constata que as três últimas estrofes (como decidiram os juízes, e não
desejo que se manifesta ao longo das outras seis estrofes. Tudo aí fica
remetem para o homem que «y passe à travers des forêts de symboles / Qui
l'observent avec des regards familiers», tal como o «novo», que contém o
138
Para o estudo do processo de Les Fleurs du Mal, cf. Baudelaire, OC, pp. 723-734.
139
Baudelaire, OC, nota 47, p. 66.
140
Cf. Julia Kristeva, Baudelaire, ou de l'infini, du parfum et du punk, in Histoires d'amour, col.
L'Infini, Denoël, Paris, 1983, pp. 297-317.
84
génio, a danação, o dandysmo, ou seja, o spleen, a melancolia. A ruptura com
pois, voz a esta nova exigência: falta-nos uma crítica dos valores morais, há
(a palavra é dos juízes) de A celle qui est trop gaie: «Et faire à ton flanc
étonné / Une blessure large et creuse». Rasgar a pele da amada como quem
frores / d'aqui ben con meus amores!». Aqui, é a lonjura, aquilo que o horizonte
esconde, que cria a suspensão do desejo. Por outras palavras: é o futuro. Não
86
IV
87
Na sua própria luz se lhe recolhe
Escreve Élie Faure: «Velasquez, après cinquante ans, ne peignait plus jamais
une chose définie. Il errait autour des objets avec l'air et le crépuscule, il
règne. C'est comme une onde aérienne qui glisse sur les surfaces, s'imprègne
de leurs émanations visibles pour les définir et les modeler, et emporter partout
ailleurs comme un parfum, comme un écho d'elles qu'elle disperse sur toute
était triste. Un roi dégénéré, des enfants malades, des idiots, des nains, des
infirmes, quelques pitres monstrueux vêtus en princes qui avait pour fonction de
rire d'eux-mêmes et d'en faire rire des êtres hors de la loi vivante, étreints par
peint en plein jour, même quand il peint dans une pièce close, même quand la
142
Élie Faure, Histoire de l'Art. L'Art Moderne, tome I, Le Livre de Poche, Paris, 1965, pp. 167-
168 e p. 173. Esta belíssima passagem do livro de Faure é lida pelo personagem
Pierrot/Ferdinand à sua filha pequena - não só como uma godardiana reflexão sobre o cinema
mas, também, como retrato da contemporaneidade - no filme Pierrot le Fou (1965) de Jean-Luc
Godard. Aliás, a propósito do filme Jeanne la Pucelle: Les Batailles, Les Prisons (França, 1994)
de Jacques Rivette, escreve Camille Nevers em L'avenir d'une illusion, Cahiers du Cinéma,
Février 1994, nº 476, p. 26: «Tout cinéaste - qu'il soit matérialiste ne change rien à l'affaire -,
cherchant à filmer l'histoire intime de sa vie, se livrant à l'introspection du moi, en vient à un
88
Se transposto para a obra de Gustave Courbet (1819-1877), que se reclama da
espectador, seja o do monarca que está fora do quadro, algures numa linha
que vai do olhar do pintor e atravessa o lado inferior esquerdo da tela, seja o
moment ou un autre à parler de Dieu. Toute version de Dieu est autobiographique, écrit Cioran.
N'est-ce pas, il y a bien un devenir saint, ou martyr, un souci d'exemplification chez au moins
trois cinéastes de la Nouvelle Vague, Godard, Rohmer et Rivette (ce qu'on aime chez Chabrol,
c'est qu'il est le seul à avoir opté pour l'enfer, les hommes, et chez Truffaut, devenu saint et
martyr malgré lui, qu'il se soit pensé en tant que fils d'une femme au lieu de fils d'un Dieu). Si
Godard est le métaphysicien du groupe [sublinhado nosso], Rohmer le moraliste, alors Rivette
en est l'historien (...)». Neste estudo ir-se-á tentar demonstrar, precisamente, como Courbet
apela na sua obra pictórica para estes três atributos na sua amplitude conceptual: metafísico,
moralista, historiador.
143
V. André Fermigier, Courbet, col. L'art en texte, Classique, Skira, Genève, 1994, p. 10 - citado
doravante como Fermigier [1994].
144
Cf. Pierre Courthion, Courbet (Tout l' oeuvre peint de), col. Les Classiques de l'Art,
Flammarion, Paris, 1996 – citado doravante como Courthion [1996]. Mostrando-se desiludido
com a pintura da Escola Francesa, olhando as telas de Delacroix e de Ingres para dizer que «il
n'y a qu'à partir comme une bombe à travers tous ses rayons» - e, de facto, irá subverter os
paradigmas de Delacroix e de Ingres - Courbet, como sempre, faz o seu auto-retrato, ainda que
curiosamente na terceira pessoa: «À force de travail opiniâtre, il retrouva les vraies moyens de
la peinture, perdus en Italie, en Espagne, en Hollande, en Belgique et en Allemagne.», in
Courthion [1996], Biographie de Courbet par lui-même, p. 8.
89
nosso diante dela). Ora, essa mudança consubstanciou-se na passagem de um
avassaladora, com todo o tipo de problemas banais, ainda que bem humanos,
demasiado humanos.
Por outro lado, o texto de Faure é fecundo quanto aos modos de encarar a
obra de Courbet. É-o porque Courbet erra entre um romantismo que entronca
mesmo do social, Courbet vai erigir em herói o povo anónimo; só que, note-se,
o social não deve ser encarado em Courbet como tendo uma qualquer
crianças, animais têm na tela uma escala maior do que o seu tamanho natural).
Diga-se, pois, que a obra pictórica de Courbet pode ser definida tendo presente
aí, uma constante e a época histórica que viveu foi atravessada por dolorosas
Courbet pode ser encarada como tendo várias stanza: 147 os auto-retratos dos
146
«Me voici, par le peuple de Paris, introduit dans les affaires politiques jusqu'au cou. Président
de la Fédération des artistes, membre de la Comune, délégué à la mairie, délégué à
l'Instruction publique: quatre fonctions les plus importantes de Paris. (...) Je me lève, je déjeune,
je siège et préside douze heures par jour. Paris est un vrai paradis; point de police, point de
sottise, point d'exaction d'aucune façon, point de dispute. Paris va tout seul, comme sur des
roulettes. Il faudrait pouvoir rester toujours comme cela. En un mot c'est un vrai ravissement
(...).», escreve a 30 de Abril de 1871 numa carta dirigida aos pais, in Courthion [1996], p. 12.
Demissionário ao fim de um mês, é acusado de ter participado no derrube da coluna da praça
de Vêndome, «le grand mirliton» como diz, símbolo do bonapartismo e do Império. Refém da
Comuna, é preso em 7 de Junho desse ano e condenado pelo Conselho de guerra a seis
meses de prisão e a quinhentos francos. Encarcerado na prisão parisiense de Sainte-Pélagie e
depois na clínica do médico Duval em Neuilly, é libertado em Março de 1872. Um ano mais
tarde o processo, mais por culpa da sociedade civil (sobretudo artistas e jornalistas) do que do
poder político, é reaberto e Courbet obrigado a pagar a reconstrução da coluna. Confiscados os
seus bens, parte para o exílio na Suíça. Só em 1919 hão-de os seus restos mortais voltar a
Ornans, sua terra natal. Para um maior detalhe biográfico, v. Fermigier [1994], pp. 109-115 e
Courthion [1996], pp. 67-70.
147
Ainda que não seja de todo incorrecto falar de fases ou etapas histórico-culturais na obra de
Courbet, etapas essas ligadas às suas viagens por museus ou países, parece-nos mais
adequado falar de pontos de partida e de chegada na sua obra, tornando-a assim passível de
ser interpretada enquanto rizoma – cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Rhizome. Introduction,
Minuit, Paris, 1976, onde se pode ler: «Le rhizome est une antigénéalogie. Le rhizome procède
91
anos quarenta; as telas pintadas entre o inverno de 1848-49 e a primavera de
1850; as telas de meados dos anos cinquenta; 148 até aos anos setenta, ainda
que com uma que outra excepção, as telas onde ecoa o pulsar da terra-mãe
(os animais, as flores, o céu, o mar, a verdura, a neve), 149 as telas de flores e
par variation, expansion, conquête, capture, piqûre.» (p. 32 e também p. 62); ou ainda: «L'arbre
articule et hiérarchise des calques, les calques sont comme les feuilles d'arbre. Tout autre est le
rhizome, carte et non pas calque. (...) Si la carte s'oppose au calque, c'est qu'elle est tout
entière tournée vers une expérimentation en prise sur le réel. La carte ne reproduit pas un
inconscient fermé sur lui-même, elle le construit. (...) C'est peut-être un des caractères les plus
importants du rhizome, d'être toujours à entrées multiples (...). Une carte est affaire de
performance, tandis que le calque renvoie toujours à une «compétence» prétendue.» (pp. 37-
38); e por fim: «L'arborescence est justement le pouvoir d'État. Au cours d'une longue histoire,
l'État a été le modèle du livre et de la pensée: le logos, le philosophe-roi, la transcendence de
l'Idée, l'intériorité du concept, la république des esprits, le tribunal de la raison, les
fonctionnaires de la pensée, l'homme législateur et sujet. Prétention de l'État à être l'image
intériorisée d'un ordre du monde, et à enraciner l'homme.» (pp. 70-71). Para compreender a
opção tomada, cf. Jacques Le Goff et al., A Nova História, Almedina, Coimbra, 1990. Aliás,
confrontemo-nos com esta afirmação de Courbet: «Avec cette tournure d'esprit, il est facile de
concevoir qu'il n'eut jamais de maître (...).», in Courthion [1996], Biographie de Courbet par lui-
même, p. 9.
148
Cf. Michael Fried, Le Réalisme de Courbet. Esthétique et origines de la peinture modernes,
II, trad. Michel Gautier, Gallimard, Paris, 1993 - citado doravante como Fried [1993].
149
Dando conta do Salão de 1861, escreve Thoré-Bürger: «Jugeant que l'époque était difficile et
que décidément les militaires et les princes sont ce qu'il y a de plus beau en peinture, il s'est
abstenu de risquer sa ménagerie de personnages hors la loi. C'est vrai qu'on n'a jamais cassé
tant de pierres à Paris mais il a compris que l'intérêt se portait sur ceux qui les font casser et
non point sur ceux qui les cassent. Il s'est donc rejeté sur les cerfs et les renards (...).», apud
Fermigier [1994], p. 66.
150
Cf. Fermigier [1994]. V. também Courthion [1996], pp. 71-133.
92
Que ligação existe – e de facto existe – entre estas obras? Que rede subtil as
faz comunicar?
É claro que estes vectores ora se expandem, construindo outras tantas redes
Desde os auto-retratos até aos quadros que têm por tema as trutas, aquelas
três linhas de força surgem quanto à representação: das mãos; das figuras,
151
Cf. Fried [1993]; ir-se-á, todavia, alargar a exploração deste par conceptual a toda a obra
pictórica de Courbet.
152
V. Fried [1993], pp. 21-23: «La tâche immédiate du peintre [para Diderot] était donc
d'éteindre ou de prévenir cette conscience en accaparant ou, pour employer le mot auquel va
ma prédilection, en absorvant ses dramatis personae dans leurs actions et leurs états d'esprit.»;
«[D]écrire la tâche du peintre - ce que fit bel et bien Diderot dans ses Essais sur la peinture
(1766) - comme une tâche consistant à affirmer la solitude de ses personnages par rapport au
spectateur.» (p. 21). Cf. também Michael Fried, La place du spéctateur. Esthétique et origines
de la peinture moderne, trad. Claire Brunet, Gallimard, Paris, 1990. Cf. ainda: Jean Starobinski,
Diderot dans l'espace des peintres suivi de Le Sacrifice en rêve, col. textes RMN, Réunion des
musées nationaux, Paris, 1991; Michel Butor, Diderot le fataliste et ses maîtres, in Michel Butor,
Répertoire littéraire, col. Tel, Gallimard, Paris, 1996 (pp. 173-240).
153
Cf. André Green, Narcissisme de Vie. Narcissisme de Mort, col. "Critique", Minuit, Paris,
1983 – doravante citado como Green [1983]. Cf. também Jacques Lacan, Écrits 1, col. Points,
Seuil, Paris, 1970 e Le Séminaire. Livre XX. Encore, col. Le Champ Freudien, Seuil, Paris,
1975. Cf. ainda Jean Baudrillard, De la Séduction, col. L'Espace Critique, Galilée, Paris, 1979 –
citado doravante como Baudrillard [1979].
93
onde à sonolência e ao apagamento de uma se impõe a vitalidade da outra,
94
L'Homme à la ceinture de cuir (1845-46?, Musée d’Orsay, Paris). No primeiro
lado, parte de uma espada, a parte do punho, mas também a parte da lâmina.
retrato (que, aliás, reenvia para outras obras e desenhos de Courbet, como o
à mão direita.
95
A partir destes indícios, várias questões podem ser equacionadas. Há que
sublinhar, desde logo, dois tipos de gradientes que dimanam dos quadros: um
fulgurante nos seus traços de uma melancolia extrema, da mão esquerda). 154
Encontramos, por fim, vários pares de oposição nestes dois trabalhos, caso de
154
O olhar, tal como as mãos, ambíguos no seu sexo, são uma questão central na obra
pictórica de Courbet. V. Baudrillard [1979], p. 145: «La séduction n'est jamais linéaire, elle ne
porte pas non plus de masque (celle-ci est la séduction vulgaire) - elle est oblique.»; e na p.
107: «Les yeux qui séduisent n'ont pas de sens, ils s'épuisent dans le regard. (...) La séduction
des yeux. (...) [C]harme discret d'un orgasme immobile, et silencieux.»; v. ainda pp. 107-109 –
na p. 108, por exemplo: «La beauté absorbée par le pur soin qu'elle a d'elle même est
immédiatement contagieuse parce qu'elle, à l'excès de soi, elle est retirée de soi, et que toute
chose retirée de soi plonge dans le secret et absorbe ce qui l'entoure.» ; e na p. 114: «Tel est
l'enchantement de la séduction aussi, qui met fin à toute économie de désir, à tout contrat
sexuel ou psychologique et y substitue un vertige de réponse - jamais un investissement: un
enjeu - jamais un contrat: un pacte - jamais individuel: duel - jamais psychologique: rituel -
jamais naturel: artificiel. La stratégie de personne: un destin».
155
O que fica dito vale globalmente para Le Sculpteur (1844), Portrait de l'auteur também
conhecido por Courbet au chien noir (1844), L'Homme à la pipe (1849?), Le Violoncelliste
(1847), Le Peintre à son chevalet (desenho, 1847). Quanto a Le Désespéré (1843?) ou Le Fou
de peur (1843?), analisá-los-emos mais adiante aquando dos quadros de flores e frutos.
96
Esta análise acabou, entretanto, por nos remeter para a representação das
figuras. Em
156
Une après-dînée à Ornans (1848-49, Palais dês Beaux Arts de Lille),
que, aqui, há um outro elemento para ponderar: a figura que está de costas,
mesa. Uma figura que não é olhada por ninguém, nem sequer pelo violinista,
156
Escreve Castagnary a propósito deste quadro: «L'oeuf du réalisme est sorti de ce nid». O
ninho era o interior de uma casa em Flagey e Ornans onde, à noite, Courbet e as suas irmãs
cantavam «chansons du pays, mal rimée, mais d'un sentiment exquis» e Buchon, amigo
dedicado que iremos reencontrar no Enterrement, retratava «une humble scène de la vie
journalière qu'il avait mise en vers avec effort, en se préoccupant surtout du détail exact...», em
suma, «cette chaude atmosphère de sentiments tendres, d'art naïf et de poésie populaire, où
Courbet passa sa jeunesse, a été beaucoup dans la direction imprimée à sa pensée.», apud
Fermigier [1994], pp. 24-25.
97
até porque os seus olhos nada mais são do que uma mancha negra, espécie
consegue, apesar de tudo, a atracção? Courbet, uma vez mais. Tal como em
(ca. 1854). Um Courbet capaz de dizer: «Je suis courbettiste, voilà tout; ma
peinture est la seule vraie; je suis le premier et l'unique artiste de ce siècle; les
157
Para a descrição que Théophile Silvestre faz de Courbet em 1856 - por exemplo: «Il n'a de
violent que l'amour-propre: l'âme de Narcisse s'est arrêtée en lui en sa dernière migration. Il se
98
camponês»158 ou um Courbet/«Narciso filósofo»?159 Ou, então: um
peint toujours dans ses tableaux avec volupté et pâme d'admiration pour son oeuvre.» - v.
Fermigier [1994], pp. 16-17. V. ainda Green [1983]: «Nul sujet plus que le narcissique ne
souffre autant de se voir cataloguer sous une rubrique générale, lui dont le souci est d'être non
seulement un, mais unique, sans plus d'ancêtre que de successeur.» (p. 17); e linhas atrás:
«[L]es narcissiques sont des sujets blessés (...). Quel objet leur reste-t-il à aimer, sinon eux-
mêmes?» (p. 17).
158
Cf. Courthion [1996].
159
V. Fermigier [1994], p. 51, a propósito do Atelier.
160
V. Fried [1993]: «[L]e peintre-spectateur devenant presque ses substituts féminins.» (p. 233).
Sobre as versões em torno do mito de Narciso, v. Green [1983], pp. 76-79. Também para a
versão de Pausanias, v. Baudrillard [1979], pp. 95-100, a p. 97 em particular; na p. 98 lê-se:
«Séduire, c'est mourrir comme réalité et se produire comme leurre. C'est se prendre à son
propre leurre et se mouvoir dans un monde enchanté. Telle est la puissance de la femme
séductrice, qui se prend à son propre désir, et s'enchante elle-même d'être leurre, où les autres
viendront se prendre à leur tour. Narcisse lui aussi se perd dans son image leurre: c'est ainsi
qu'il se détourne de sa propre vérité, et par son exemple, devient modèle d'amour et détourne
les autres de la leur».
99
161
La Fileuse endormie (1853, Musée Fabre, Montpellier). Segundo
conjunto:
161
É evidente na Fileuse o eco de Las Hilanderas (ca. 1657) de Velasquez.
100
Les Baigneuses (1853, Musée Fabre, Montpellier), Femmes dans les
blés (1855),
101
Les Demoiselles des bords de la Seine (1856-57, Musée du Petit Palais,
Paris),
102
Le Sommeil (1866, Musée du Petit Palais, Paris). Terceiro conjunto:
Le Hamac (1844),
103
La Bacchante (1844-45), Femme blonde endormie (1849),
104
Portrait de Jo (1866, MET, NY),
105
La Source (1868, MET, NY). Quarto conjunto:
106
La Femme aux bas blancs (ca. 1861),
162
V. Fried [1993], pp. 291-298: são estudadas nestas páginas as relações entre o realismo, a
fotografia e o cinema.
107
Há, desde logo, que sublinhar no primeiro núcleo uma série de sinais
tanto num quadro como no outro, pontos focais: o vestido, melhor, o/a
transborda das Cribleuses, levando a que a figura vista de costas tenda a sair
163
V. Karl Marx, Introduction générale à la critique de l'économie politique (1857), in Karl Marx,
Oeuvres. Économie, vol. I, col. Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, Paris, 1969, pp. 235-266.
108
Les Casseurs de pierre (1849 - foi destruído durante a II Guerra Mundial; resta
que saindo do quadro. Há, depois, a figura do velho em plena laboração (toda a
dos pés, das mãos), enquanto que o rapaz (veja-se igualmente a disposição do
corpo) está suspenso no seu trabalho (não se sabe bem se olha as pedras, se
evoca a figura sentada das Cribleuses, encostada aos sacos com grãos de
trigo, numa aura que remete para o mesmo estado de espírito; também o
imposé comme on a imposé aux hommes de 1830 le titre de romantique. Les titres en aucun
temps n'ont donné une juste idée des choses; s'il en était autremente, les oeuvres seraient
superflues.», apud Fermigier [1994], p. 29. No inverno de 1856-57 escreve Duranty em defesa
de Courbet e Champfleury: «Le réalisme est une protestation raisonnée de la sincérité et du
travail contre le charlatanisme et la paresse.», apud Fermigier [1994], p. 29. Courbet, esse,
tinha escrito: «Pour peindre un pays, il faut le connaître. Moi, je connais mon pays, je le peins.»,
apud Fermigier [1994], p. 14. E, afinal na mesma linha de coerência, no manifesto de 1855
escreve: «Être à même de traduire les moeurs, les idées, l'aspect de son époque, selon mon
appréciation: être non seulement un peintre, mais encore un homme; en un mot, faire de l'art
vivant, tel est mon but.», apud Fermigier [1994], p. 34. Para reafirmar em 1861: «[L]a peinture
est un art essentiellement concret et ne peut consister que dans la représentation des chose
réelles et existantes.», in Courthion [1996], p. 9. Hão-de querer situá-lo militantemente no
campo ideológico, o do socialismo – Proudhon não será o único – e a partir dessa matriz
interpretar a sua obra. Hão-de chamá-lo de traidor à causa – e à do realismo também. Apesar
de tudo, Courbet manter-se-á inexoravelmente fiel a este ideário – traduzir o real (de um ponto
de vista metafísico, moral e histórico), até porque ele era um utópico, não só no sentido
ideológico de Fourier mas, sobretudo, no sentido de comungar a terra-mãe até ao mais
profundo de si, não tanto como seu espelho antes seu inexorável logro. Daí, por um lado, o seu
narcisismo. Daí também, por outro lado, a abertura que esteticamente fez ao impressionismo:
Manet há-de ser seu devedor, ainda que por oposição, revolta mesmo, seja quanto à direcção
do olhar dos personagens, num verdadeiro repto ao espectador, seja quanto à luminosidade
das cores; outro tanto para Cézanne, neste caso de forma pacífica.
110
velho, «courbé sur le travail»,165 coloca em evidência, por analogia, a actividade
velho e pelo rapaz. Melhor: pelo vazio que a composição abre através deles, aí
rapazinho que olha para o escuro, para o lugar do não-ver nas Cribleuses.
Pode-se, por isso, dizer que Cribleuses são a pintura no feminino da pintura no
É evidente que há uns quantos trabalhos que deixam adivinhar uma opção
111
No segundo núcleo de obras, à suspensão das duas mulheres num evidente
limbo de desejo, 167 uma andando não se sabe bem para onde (em direcção à
trajecto poderá trazer, mas como que querendo e não querendo ficar sujeita ao
peso da nudez da primeira mulher, que é vista, uma vez mais, de costas
167
É no mínimo estranho que, perante as Baigneuses, Delacroix tenha escrito: «Il y a entre ses
deux figures un échange de pensées qu'on ne peut comprendre.», apud Fermigier [1994], p.
46.
168
V. Marcelin Pleynet, Courbet public et privé, in Marcelin Pleynet, Les Modernes et la
Tradition, col. L'Infini, Gallimard, Paris, 1990, pp. 37-62. Nas pp. 60-62 Pleynet, depois de
analisar Portrait de Pierre Joseph Proudhon en 1853 (1865), em particular a relação
pescoço/rosto, compara Sommeil com Madalena arrependida (ca.1593-4) de Caravaggio e
conclui: «Ce collier de perles brisé ne sert-il pas, pour Courbet, de lien entre celles que
Baudelaire nommait "les femmes damnées" (les "biches") et la sainte repentie? Et si cela était
n'aurions-nous pas un autre admirable exemple du mode singulier et radical d'intervention de
Courbet publiant, exposant e manifestant, dans le retour du refoulé de l'iconographie religieuse,
la réalité intime (privée) du fantasme qui l'habite? Courbet ne traite-t-il pas ainsi, dès 1866,
l'histoire et l'art, et l'avenir de la tradition, en vrai moderne?» (pp. 61-62). A pertinência das
interrogações merece resposta. Primeiro ponto: para Baudelaire, as «femmes damnées» eram
como os poetas que ainda não tinham publicado os seus poemas — cf. Claude Abastado,
Mythes et rituels de l'écriture, Complexe, Bruxelles, 1979; tratando-se, evidentemente, de
significar uma melancólica incompletude e/ou uma latente duplicidade, esta questão remete
para o tema da esterilidade e do artificial, fulcrais na obra de Baudelaire, e que ecoa em
Courbet, ainda que sem os pressupostos teóricos baudelaireanos (em Baudelaire a melancolia
fixa-se nos contornos conceptuais definidos por Aristóteles, pelos neo-platónicos e pela
patrística — e de que a pintura de Dürer é a este título exemplar; em Courbet é o narcisimo um
dos vectores fulcrais). Segundo ponto: a partir dos auto-retratos dos anos quarenta, a obra de
Courbet situou-se sempre na abertura à modernidade; aliás, a secreta circulação de uma obra
para a(s) outra(s) é disso manifesto sintoma. Terceiro ponto: não parece tratar-se do «regresso
do recalcado da iconografia religiosa», antes de uma outra questão que Lacan enuncia assim:
112
extremas estão de todo afastadas de Demoiselles onde, à
mais resta que não esteja incluído neste enunciado de Lacan: «Il n'y a pas La
femme, article défini pour désigner l'universel. (...) Il n'en reste moins que si elle
est exclue par la nature des choses, c'est justement de ceci que, d'être pas
«Cette jouissance qu'on éprouve et dont on ne sait rien, n'est-ce pas ce qui nous met sur la voie
de l'ex-sistence? Et pourquoi ne pas interpréter une face de l'Autre, la face de Dieu, comme
supportée par la jouissance féminine?», in Jacques Lacan, Le Séminaire. Livre XX. Encore, col.
Le Champ Freudien, Seuil, Paris, 1975, p. 71. Seja como for, Sommeil aparece-nos
irremediavelmente como a metáfora no feminino de Les Lutteurs (1853) que, na sua luta em
suspenso e aparentemente interminável, nessa eterna contracção dos músculos, extenuam as
mãos e cegam o olhar, edificando-se em ruidosas sombras de si mesmos, em contraste com as
duas mulheres adormecidas, as sussurantes. Seja como for, Sommeil e Lutteurs reenviam
também - como, de resto, toda a pintura de Courbet até meados dos anos cinquenta - para a
pintura do renascimento italiano, não só a de temática religiosa mas, fundamentalmente, a de
temática mitológica, capaz de expor a sensualidade dos corpos nus. Aliás, se há quadro que se
possa colocar ao lado de Madalena arrependida de Caravaggio, é um quadro homónimo (ca.
1565) de Ticiano ou, então, La Fileuse endormie e a mulher vestida de verde das Cribleuses do
próprio Courbet, em particular por causa da relação cabeça/colo. Quanto ao colar e ao vaso
situados no canto inferior esquerdo do quadro de Caravaggio, é evidente que foram
transpostos para Sommeil, só que num contexto significante diferente do pretendido por
Pleynet. O que só reforça a tese sustentada ao longo deste estudo, a saber: a obra pictórica de
Courbet enuncia uma revisitação de certos temas e pintores do renascimento italiano (veja-se
La Tempesta de Giorgione, Il sogno de Marcantonio Raimondi, Caino e Abele de Tintoretto), de
certos pintores do barroco (Velasquez, Rubens, Frans Hals e a escola de Haarlem,
Rembrandt), do neo-classicismo (onde se inicia uma reformulação do estatuto do herói e da
história, caso da pintura de género histórico) e do romantismo (caso do visionarismo
expressionista de Goya) para, a partir da construção da resposta dada, entre outros, ao
romantismo de Millet, operar uma mudança de paradigma com o realismo e, por fim, abrir as
portas ao pré-impressionismo de Manet (onde, por exemplo, a história já não tem a
exemplaridade romântica, sendo, antes, a actualidade do presente, a historicidade, o que hoje
chamaríamos fotojornalismo) e ao modernismo contido nas propostas estéticas de Cézanne.
Esclareça-se, por fim, uma questão importante: na história da pintura, ao contrário da história
da literatura (caso da poesia, em particular), neo-classicismo e romantismo situam-se no
mesmo paradigma epistemológico.
113
une juissance supplémentaire».169 Objectar-se-á: mas isso vale para todas as
grosse des deux filles paraît assez satisfaite et perdue dans une rêverie
nettement programée, celle qui est au premier plan donne une curieuse
est le contraire d'un hymne au plaisir, il dirait plutôt que la chair est triste
porque será que uma «parece bastante satisfeita» e a outra «dá uma curiosa
esteja no barco a remos (elipse cinematográfica que faz presente, ainda que
169
Jacques Lacan, op. cit., p. 68.
170
Fermigier [1994], p. 55.
114
171
O terceiro núcleo é o mais completo exemplo de absorvimento. Hamac e
manifesta perante a natureza – Hamac, tal como Source, mais perto das
171
Não se entende aqui, nem sequer noutro momento qualquer deste trabalho, o conceito de
absorvimento exclusivamente na dimensão diderotiana. Como tal, e para esclarecer posições,
nem quanto a esta problemática nem quanto a outras se segue argumentativamente a mesma
direcção de Fried (caso substantivo da temática do absorvimento do pintor-espectador; caso,
ainda, da temática das mãos e dos objectos nelas seguros ou simplesmente colocados em
espaços interiores ou exteriores enquanto metáfora do pincel e da paleta do pintor-espectador -
eixo da argumentação de Michael Fried a partir de Diderot - cf. Fried [1993]). Mas, voltando a
Diderot. Para Butor, a tese central é esta: escravo/criado em relação ao poder do príncipe,
Diderot joga(-se) na censura para cumprir a Enciclopédia, isto é, a filosofia, como acontece
com Séneca; daí os conflitos e/ou oposições entre mecenas/autor/leitor; daí, ainda, a relação
do poder político com a repressão sexual; daí, por fim, o conceito de lateralização - atente-se
em Enterrement e Atelier de Courbet, que analisaremos mais adiante - única forma de assumir
todos os pontos de vista em teatro, ou seja, uma visão enciclopédica - v. Baudrillard [1979], pp.
117-133, onde a visão enciclopédica se torna, sob o signo de «a esfinge da sedutora», no
«efeito prismático da sedução», «eclipse de uma presença». Por outro lado, para Starobinski
tudo gira em torno dos seguintes eixos: 1) Diderot anexa a crítica da arte à literatura, o que o
leva a um descrever sem descrever, a uma penetração ficcional do espectador no interior do
espaço pictórico, com a seguinte consequência: o efeito do real é coincidente com a
consciência da ilusão; 2) a metodologia crítica de Diderot - sendo a sua crítica estética e
política - subentende a variabilidade do eu; à pintura de género («natureza baixa e vulgar»,
segundo Diderot) opõe-se a pintura de história («natureza ideal», ainda segundo ele), o que
traz como consequência a importância da pintura moral de Greuze e o papel do sentimento
(«La peinture est l'art d'arriver à l'âme par l'entreprise des yeux.», Diderot, Salon de 1769); mas,
há uma outra consequência: a atracção sensual versus a representação do sagrado, a volúpia
versus o terror, o valor mimético versus a capacidade patética; 3) a coisa desvendada, o tema
da tela, é uma coisa mental e um objecto material, sujeita ao entusiasmo, à inspiração, ao
génio (os conceitos são sinónimos) que a desvendam; e, uma vez o véu levantado, o saber - o
prazer estético é uma modalidade do saber - coincide com o belo, o verdadeiro, o útil – daí a
pintura ser uma ficção persuasiva que implica conhecer fenómenos; daí, também, tender a
natureza a equivaler-se ao princípio da unificação ideal por causa da consciência que as soube
juntar, o que implica evitar o ornamental; 4) há, pois, um projecto moralizador da pintura, não
enquanto lição moral, antes como intensidade da emoção, numa moral de energia para além
115
trabalhos a natureza tanto se dá a ver na sua naturalidade como na sua
artificialidade. É óbvio que a rede está presa às árvores, que a bacante está
junto de um tronco de árvore, deitada num manto, que a água da fonte cai pela
ramo da árvore (uma vez mais o par passivo/activo, respectivamente). 172 Mas é
quadro, mas entre natural e artificial (se preferirmos, cultural) tão ao gosto de
172
Em Hamac a mulher prende algo com a mão direita enquanto que a mão esquerda está
abandonada; na Bacchante a mão direita ainda segura uma taça enquanto que a mão
esquerda está coberta pelo corpo; na Femme blonde a mão direita prende um lençol enquanto
que a mão esquerda está tapada pelo corpo. Repare-se, ainda, na posição dos pés. Excepção
feita a este último aspecto, estes três quadros reenviam, num jogo de espelhos, para Homme
blessé e Homme à ceinture.
173
Esta alusão a temas florais será característica do romantismo de Ingres (caso de A Banhista,
1808) e do pré-impressionismo de Manet (caso de Olympia, 1863). Num outro contexto, a obra
pictórica de Bonnard disso será também exemplo. Quanto às mulheres courbetianas, apesar de
Courbet não ser um pintor da fugacidade luminosa própria do impressionismo de Monet, elas
serão encontradas, noutro registo, é certo, em Renoir - o que só demonstra uma matriz comum:
Rubens.
116
temos aqui a tríade de vectores que enunciamos no início deste estudo: a
narcisismo. 174 Tríade de vectores, essa, que subjuga esse lindíssimo Portrait
de Jo, onde um outro elemento (artificial, cultural) surge: o espelho175 – até aqui
174
Em Green [1983], depois de ser analisado como Freud chegou ao conceito de «narcisismo
primário absoluto», pode-se ler: «Ce n'est pas au sens d'un vécu que le narcissisme est ici cité,
mais plutôt à celui d'un concept, ou peut-être comme partie d'un concept. Rien en tout cas qui
ressemble à une qualité positive de l'ordre du vécu. C'est le sommeil qui pourrait être pris
comme terme de cette comparaison, non le rêve. Le sommeil, qui exige que le sujet se
déplouille de ses avoirs [sublinhado nosso] (...). Et, si la comparaison est suggérée à Freud
d'un retour aux sources de la vie, le séjour au ventre maternel ne s'effectuera pas dans un
climat de victoire, ni d'épanouissement d'aucune sorte. Les conditions ici remplies, comme dans
la vie intra-utérine, sont "le repos, la chaleur et l'exclusion des stimuli" [Freud]. L'entré dans le
sommeil ne peut avoir lieu qu'au prix de l'abandon des liens, des biens, des possessions du
Moi, qui replie sur lui ses investissements.» (pp. 82-83). Além de ser evidente que o conceito de
absorvimento é um sintoma de narcisismo, é ainda de sublinhar a questão «de um regresso às
fontes de vida» e compará-la quer com o ambiente familiar acima descrito por Castagnary, quer
com o ideário político de Courbet. Ainda segundo Green [1983], p. 20: «En ce qui concerne le
narcissisme, l'objet, qu'il soit fantasmatique ou réel, entre en rapport conflictuel avec le Moi. La
sexualisation du Moi a pour effet de transformer le désir pour l'objet en désir pour le Moi. (...)
[L]e désir de l'Un avec effacement de la trace de désir de l'Autre.», ou seja, a própria
circularidade da obra, a sua errância entre masculino e feminino, num eterno desejo de
regresso ao eu. V. também Baudrillard [1979], p. 158: «[L]a femme est le rêve de l'homme -
d'ailleurs Dieu l'a tirée de l'homme pendant le sommeil.»; p. 161: «”[S]i j'était un dieu, je ferais
ce que fit Neptune pour une nymphe: je la transformerais en homme.” [Kierkegaard, Journal
d'Un Séducteur]. C'est dire que la femme n'existe pas. Seule existe la jeune fille, par son
sublime état, et l'homme, par sa puissance à la détruire».
175
«On dit justement des miroirs qu'ils sont spirituels: c'est que le reflet en lui-même est un trait
d'esprit. Le charme du miroir n'est pas de s'y reconnaître, ce qui est une coïncidence plutôt
désespérante, mais bien dans le trait mystérieux et ironique du redoublement. Or, la stratégie
du séducteur n'est rien d'autre que celle du miroir, c'est pourquoi il ne trompe au fond personne
- et c'est pourquoi il ne se trompe jamais, car le miroir est infaillible (...).», in Baudrillard [1979],
p. 140. Note-se que o tema do duplo é central no século XIX.
117
O último núcleo, constituído por Femme aux bas blancs e L'Origine, é a
explicitação do sexual. 176 Apenas? É do logro que se trata, uma vez mais. E
das grutas, o poço negro, 177 onde o plano matérico (o pintar com a espátula, na
Não se deverá, a partir da análise destes dois trabalhos, e até como sua
176
«[L]e porno met fin par le sexe à toute séduction, mais en même temps il met fin au sexe par
accumulation des signes du sexe. Parodie triomphale et agonie simulée: c'est là son
ambigüité.», in Baudrillard [1979], p. 55; p. 47: «Par l'effet de zoom anatomique, la dimension
du réel est abolie, la distance du regard laisse place à une représentation instantanée e
exacerbée: celle du sexe à l'état pur, dépouillée non seulement de toute séduction, mais de la
virtualité même de son image - sexe tellement proche qu'il se confond avec sa propre
représantation: fin de l'espace perspectif, qui est aussi celui de l'imaginaire e du phantasme - fin
de scène, fin d'illusion.»; e p. 46: «Peut-être d'ailleurs le porno n'est-il qu'une allégorie, c'est-à-
dire un forçage de signes, une entreprise baroque de sursignification touchant au «grotesque»
(littéralement: l'art «grotesque» des jardins rajoutait de la nature rocheuse [sublinhado nosso]
comme le porno rajoute le pittoresque des détails anatomiques).» — aliás, Fried [1993]
compara L'Origine com Dame verte (uma página de um caderno de croquis do princípio de
1840), o que remete Femme aux bas e L'Origine para algumas paisagens dos anos 1860-70,
as telas das grutas de água.
177
Título de uma série de Courbet.
118
será Un Enterrement à Ornans (1849-50, Musée d’Orsay, Paris) a metáfora do
da morte?
Ornans. E aquando do Salão de 1861 escreve numa carta a Francis Wey: «Le
do conceito - ou, se se preferir, é uma imensa vaga (tal como hão-de vir a ser
pintadas depois) 180 de gente. O céu cinzento azulado, abrindo-se num branco
dessem mais uns quantos passos nessa procissão de luto, sairiam do espaço
179
Apud Fermigier [1994], p. 65.
180
Referência a uma série de Courbet.
120
segura o caixão, a presença nítida do olhar do juiz da cruz e mais atrás, junto a
Max Buchon. Diante de nós está o coveiro, que parece seguir o conflito entre o
rapazinho e o homem, estão dois homens que destoam do conjunto pelas suas
olhar de Buchon. 182 O que abre teoricamente uma primeira brecha na pintura
cena no teatro, Courbet dá a ver tudo o que há para ser visto. Mais, leva a que
(algumas são mesmo maiores), tal como na pintura de história (num Delacroix,
182
É altura de completarmos uma ideia-chave já expressa neste texto. Em Las Meninas de
Velasquez o olhar do pintor dirige-se para fora do quadro, na direcção do retratado, o monarca,
a partir do canto inferior esquerdo. Por outro lado, o nosso olhar, o do espectador em sentido
geral, confronta-se com o terço final do centro do quadro - até por causa da perspectiva que aí
se cria. Ora, acontece que em Enterrement o olhar do pintor entra pelo quadro dentro
igualmente a partir do canto inferior esquerdo, enquanto o nosso, o do espectador em sentido
geral, se confronta com a cova também no terço final do centro do quadro.
121
terceira brecha operada por Enterrement. Narra-se, aqui, o quê?
Aparentemente nada mais do que um enterro com o seu ritual próprio, isto é,
183
num plano cultural. Um enterro que, como qualquer outro, convoca a
da terra-mãe, representa e institui. Tal como o sono. 184 E uma vez mais o olhar
por isso mesmo, num olhar narcísico por definição; seja o olhar do pintor(-
espectador), porque é ele quem nos narra a cena primitiva, porque é ele quem
nos abre para esse regresso, ao mesmo tempo que prepara os caminhos do
183
Diferente do plano cultural de O Enterro do Conde de Orgaz (ca. 1586) de El Greco, e de
que Enterrement parece ser uma resposta. Em Courbet a morte dirige-se para cova, para a
natureza. Em El Greco a morte dirige-se para o céu, para Deus. Em Courbet há o positivismo e
o materialismo da época; em El Greco há o espiritualismo da época, na linhagem do neo-
platonismo e da patrística. Para o estudo do neo-platonismo, da patrística e da filosofia
medieval, v. Giorgio Agamben, op. cit., em particular a teoria medieval do fantasma (pp. 112-
149; ver, ainda, estas problemáticas: o olho como espelho, a imaginação como espelho, o amor
e a visão), a doutrina da pneuma-fantasmalogia medieval ou ‘spiritus phantasticus’ (pp. 150-
170), o ‘amore eroico’ e o ’amor hereos’ (pp. 184-206; a problemática da tríade Eros-herói-
demónio aéreo). V. ainda, quanto ao positivismo e ao materialismo de Courbet, a noção de
historicidade presente em Youssef Ishaghpour, Courbet, le portrait de l’artiste dans son atelier,
L’Échoppe, Paris, 1998, p. 13 sq.; situando a pintura da natureza de Courbet entre uma
«pintura do ideal», protagonizada pelo romantismo, e um «ideal da pintura», protagonizado a
partir de Manet, o autor vinca a oposição entre pintura de história e historicidade; assim, os
legítimos representantes daquele género seriam Géricault e Goya, os outros pintores mais não
revelando do que da hagiografia; em contrapartida, com o aparecimento da fotografia, com a
destruição do conceito (político e estético) de ideal, estava o caminho aberto ao realismo de
Courbet e à sua dimensão política, onde se confunde a utopia da arte com a história real. Uma
última observação: crê-se que a multidão ondulante do lado direito de Enterrement é devedora
do primeiro plano de Processione in piazza San Marco de Gentile Bellini, um pintor do
renascimento veneziano; em Courbet a figuração serpenteia em torno da cova e em Bellini em
torno do pálio.
184
Confira-se a persistência do tema do sono nos vários quadros estudados desde a série dos
auto-retratos.
122
seu próprio regresso, tal Jo diante do espelho. Mas, se no espelho um qualquer
185
V. Green [1983], pp. 22-23: «Le narcissisme offre donc l'occasion d'une mimésis du désir par
la solution qui permet d'éviter que le décentrement oblige à investir l'objet détenteur des
conditions d'accession au centre. Le Moi a acquis une certaine indépendance en transférant le
désir de l'Autre sur le désir de l'Un. Cette mimésis peut même s'inverser, annuler les contraintes
du modèle du désir lorsque l'accomplissement unitaire du narcissisme fait défaut. Elle devient
mimésis du non-désir, désir du non-désir. Ici la recherche du centre est abandonée, par
supression de celui-ci. Le centre, comme objectif de plénitude, est devenu centre vide, absence
du centre. La recherche de la satisfaction se poursuit hors de toute satisfaction - comme si
celle-ci avait eu quand même lieu - comme si elle avait trouvé son bien dans l'abandon de toute
recherche de satisfaction.»; e acrescenta: «C'est ici que la mort prend sa figure d'Être absolu.
La vie devient équivalente à la mort, parce qu'elle est délivrance de tout désir».
123
Rut du printemps também conhecido por Combat de cerfs (1861, Musée
luminosidade, dois veados lutam, uma luta de morte, enquanto mais atrás,
única testemunha, um outro ergue num grito a cabeça para o alto. 186
186
Comparar com Le Cerf à l'eau (1862).
187
Há aqui uma pré-figuração do pontilhismo, como se há-de encontrar em Seurat, Signac,
Pissarro, ainda que as intenções ópticas dos pós-impressionistas sejam de todo alheias à obra
de Courbet (para os impressionistas, como já vimos, não há natureza, há, isso sim, cores na
luz). Neste caso a influência é nitidamente de Goya.
124
Como sempre toda a obra pictórica de Courbet circula num constante reenvio
sozinhos perante nós próprios, somos capazes das mais ferozes interrogações
em suspenso: as que vão de nós a nós mesmos, seu reflexo e eco sempre
presentes.
criando-se desta forma um novo olhar sobre o mundo (no centro do quadro); o
amor, caso dos jovens junto da janela e do casal burguês (no lado direito do
quadro). Por seu lado, para Courbet o lado esquerdo do quadro era «l'autre
exploités, les exploiteurs, les gents qui vivent de la mort».190 E para nós, seus
188
Para a hermenêutica de Georges Riat, um estudo de 1906, v. Courthion [1996], pp. 81-82.
189
«Les journaux sont les cimetières des idées», in estudo de 1906 de Georges Riat, apud
Courthion [1996], pp. 81-82.
190
Apud Fermigier [1994], p. 53 [sublinhado nosso].
125
espectadores de hoje, o que é L'Atelier? Retrato da época, apesar de ausentes
quer Riat. Centremo-nos, todavia, no quadro para, depois, partirmos daí. O que
vemos?
Uma pintura de cavalete que representa uma paisagem com uma queda de
água; Courbet que, sentado de perfil para nós (o ombro e a perna esquerdos
outro: Courbet virado para dentro, para a paisagem, a mulher para fora, para
nós) também vista de perfil, segura um lençol branco que a separa da cadeira
semi-nua. Mais sobre o lado esquerdo do quadro, uma mulher sentada no chão
aleita uma criança e um manequim nu está num cavalete. Ainda mais sobre o
126
possível encontrar no afrontamento – não é de comunhão nem de coalescência
que se trata – cidade (lado direito do quadro) / campo (lado esquerdo)? Uma
corpo feminino. Mas, de igual modo, o próprio corpo do pintor produz essa
separação, lençol segundo dessa nudez protegida – não tanto o próprio corpo
outra tela, passando meticulosamente pela mulher que aleita uma criança e
esquerdo)? 192 Sendo assim, qual o eixo central? Courbet - porque, atendendo
191
Cf. Courthion [1996].
192
Precisamente em 1847 Courbet viaja até à Holanda e escreve: «Un voyage comme celui-là
fait apprendre plus que trois ans de travail.», in Courthion [1996], p. 67. Acontece que olhando
para L'Atelier, aos castanhos sombrios do lado esquerdo, rasgados aqui e além por fulgurantes
cintilações douradas, de matriz rembrandtiana (veja-se A Ronda da Noite (1642), por exemplo),
contrapõe-se o claro-escuro de Velasquez presente no lado direito. Escreve, aliás, Fermigier a
127
à composição das figuras, o rapazinho saiu do lado esquerdo do quadro e a
mulher do lado direito - na sua aura de sempre: ser capaz de tudo representar
193
pela pintura, não havendo antes nem depois, apenas a suspensão do
Rembrandt, Velasquez.
vestido. Por fim, a mulher. Se, perante a inclinação da cabeça, parece olhar o
rapazinho, apesar de tudo, basta traçar-se uma diagonal, o seu olhar segue o
193
«Il ouvrit toutes les voies et changea la face des expositions en France. Refusé, mal placé,
tourné en ridicule, joué sur les théatres, amoindri par les journaux officiels, ayant contre lui toute
l'armée des peintres du remplissage utilitaire, il n'en est moins vraie que, sans lui, on aurait
perdu l'habitude de parler d'art en France depuis vingt ans. Et il est assez plaisant de penser
que c'est le seul homme qui marquera le passage de l'Empire dans les arts.», in Courthion
[1996], Biographie de Courbet par lui-même, p. 9; ou, ainda, a já citada afirmação de Courbet
de acordo com o que escreve Théophile Silvestre: «[J]e suis le premier et l'unique artiste de ce
siècle.», apud Fermigier [1994], p. 17.
128
mesmo eixo do olhar do pintor(-espectador), encontra-se no olhar do pintor(-
questão: tão perto da paisagem, não acabará por haver uma fusão entre o lado
esquerdo da cadeira que impede essa fusão do pintor com a tela, não será
resumo: não será a mulher semi-nua com o lençol que impede, de facto, a
pouco mais. Se ligarmos a mulher semi-nua com o lençol à mulher que aleita
natural quanto artificial) / natureza (que é tanto natural quanto artificial, isto é,
194
Apud Courthion [1996], p. 81.
129
uma representação do domínio do cultural). Sobrepondo os vectores,
obteríamos o par conceptual (modelo de, modo de) natureza / (modelo de,
modo de) narcisismo. Não é, afinal, este par conceptual que encontramos em
Pintor da força da terra, oculta-a e desoculta-a, tanto lhe dá o seu rosto e corpo
poder re-ver enquanto símbolo dessa força telúrica, enquanto imagem da terra-
mãe. 195
195
Perante isto, a interpretação de Riat – apud Courthion [1996] - não responde a várias
perguntas (por exemplo: porquê uma paisagem?); Fermigier [1994], quando escreve: «[A]utour
duquel [L'Atelier] flotte comme une image, une rumeur de grand ville nocturne. (...) [O]ù
surgissent des personnages que l'on pourrait rencontrer dans une rue de Balzac ou de Dickens
(...). Nous sommes déjà dans le monde de l'Opéra de Quat'sous, tout le tableau est d'ailleurs
composé comme une représentation théâtrale et fait penser au lever de rideau d'un drame à
multiples figurants. Le décor lui-même, avec la grande toile de fond, l'éclairage oblique et la
limitation de la profondeur, est bien celui de l’irréalité scénique.» (pp. 53-54), não é de todo
convincente, até porque a «irrealidade cénica» deriva muito mais da realidade física do grupo
central e das questões pictóricas por ele levantadas; por seu lado, Pleynet, depois de referir
que «dans l'ordre de la recherche et de l'invention des formes, Courbet opère avec la même
radicalité et quasi de la même façon que lorsqu’il traite de la détermination de ses sujets (...)»
(p. 57), acrescenta: «Si Courbet donne à l'origine des éléments biographiques qui commandent
son oeuvre la grandeur et la dimension d'une allégorie (comme en témoigne L'Atelier), c'est, ne
l'oublions pas, en renversant une convention esthético-idéologique et une convention sociale
tout à fait déterminantes en ce milieu du XIX.e siècle; à savoir la division hiérarchique des
formes d'être, de penser, de sentir, entre le noble et le plébéien, entre le haut et le bas.» (p. 57);
v. Marcelin Pleynet, op. cit., p. 58 sq.; v. ainda Fried [1993], em particular pp. 145-146, 165-182,
205-6, 210-11, 253-255.
130
O que é que, porém, sustenta ficcionalmente este par conceptual natureza /
seu olhar na cova). Ou seja: para além do olhar oblíquo do pintor e da mulher
Uno que se trata) pela dobra do seu olhar (a mulher semi-nua com lençol) e
de Courbet: L’Atelier, L’Incendie, Un Enterrement. Aliás, a leitura que faz de L’Atelier (pp. 44-48
e 50) é pertinente: está aí presente a tríade pai-mãe-filho, como acontece desde o
renascimento até à pintura de história, só que neste caso numa dimensão pagã; o que remete
para uma herança romântica. Sublinhe-se, ainda, que o courbetiano conceito de «alegoria real»
se situa entre o paradigma romântico (a problemática da natureza e do belo) e o paradigma
instaurado por Baudelaire.
132
em La Curée (1856-57) vê-se um veado morto escorregando, como que
133
afastamento, actividade); no primeiro plano estão dois cães quase gémeos; em
L'Hallali du cerf (1866-67, Musée d’Orsay, Paris). Enterrement é, por seu lado,
134
É com um último conjunto de telas que Courbet parte para a última fase da sua
135
Le Puits Noire, 1865?, Musée d’Orsay, Paris, Le Gour de Conches, 1864), as
flores e as trutas
136
(La Truite, 1873, Musée d’Orsay, Paris, Les Trois Truits de la Loue, 1873).
os barcos) é o sinal dominante. As flores, por seu lado, reenviam para obras
como
137
Le Désesperé (1843?) e
138
Le Fou de peur (1843?) – há por vezes, tal como nestes dois casos, uma
des tapes sur le ventre des arbres, jeter des pierres dans les trous de l'eau,
139
barboter à même le ruisseau, manger, dévorer la nature».197 Tal como perto da
morte há-de querer, desejo impossível de cumprir por causa da sua doença,
Bords de la mer à Palavas (1854, Musée Fabre, Montpellier). Para trás ficaria a
197
Apud Fermigier [1994], pp. 100-101 [sublinhado nosso].
140
realismo de 1855, onde se podia ler: «Gustave Courbet — Exposition — 40
de ficar para trás. Como para trás hão-de ficar as injustiças (e não só políticas)
de que este homem foi vítima. Resta a cova, como em Un enterrement, agora
141
V
o homem da multidão
142
É em The man of crowd que Edgar Poe explora o conceito de flâneur –
incansável tradutor.198 Aí, nessa short story (o conceito de short story e a sua
esgotado, o narrador constata que essa figura é nem mais nem menos do que
diamante.
limita-se, isso sim, a ver, a observar. Dir-se-á: no século XIX, com o positivismo
198
Edgar Poe, Nouvelles histoires extraordinaires, trad. Charles Baudelaire, Garnier, Paris,
1947, pp. 61-70. Referir-nos-emos doravante a esta obra como NHE.
143
de um diamante ou de um punhal. A indefinição do objecto – e com ela
multidão, mas apenas uma, ora punhal, ora diamante? Se a leitura for esta,
se interroga sobre a razão que leva o bem a estar no topo de uma escala de
atravessar todo o seu sistema, melhor toda a sua genealogia filosófica. Assim,
contradição) do seu valer, do seu valor. O que quer eventualmente dizer que o
face do mal que habita o bem. Se o homem da multidão é a face do mal que
144
habita o bem, ele, todavia, dimana uma luz, um branco resplandecente e sujo,
para fazer vingar a moral do homem nobre, que para fazer vingar Dionisos, que
para fazer vingar Zaratustra, que para fazer vingar o amor fati, o eterno retorno,
reaferições ao longo dos seus textos, é axial. Para ele é a reprodução, típica do
século XX (o cinema, por exemplo), que retira ao objecto artístico a sua aura, o
passado, abre para o futuro. Também Baudelaire tinha escrito que o presente é
145
Mais: é da sua releitura, que cada um cria a sua matriz filosófica e estética. Em
efémero (a beleza efémera) com o eterno (a beleza eterna) – nem que desse
que, para eles, essa redenção – incognito, mundo grego, angelus novus,
146
multidão é, nas palavras de Poe, «le type et le génie du crime profond». 199 «[O]
mal ? Um crime tão profundo como o anticristo? Um crime tão profundo que
traduza a grande felicidade de estar só? Um crime tão profundo que seja um
modo de redenção?
199
NHE, p. 70.
147
Epílogo
Dar a palavra
«Une dernière manière enfin pour la vérité de devenir, c'est le questionnement de la pensée
148
Heidegger, L'origine de l'oeuvre d'art
1.
Uma questão
149
Lá diz o ditado popular:200 «A cavalo dado não se olha ao dente». E este
mas que nos comporta, nos engloba a todos. Depois, há que perguntar quem é
o receptor deste enunciado. E, mais uma vez, talvez com alguma surpresa
não especificado, mas que nos comporta, nos engloba a todos. Ou seja, quer o
emissor quer o receptor são alguém, e esse alguém é, afinal, a terceira pessoa
Por outro lado, a mensagem diz o seguinte: «A cavalo dado não se olha ao
cavalo dado (...)». Trata-se, pois, de uma oferenda – uma oferenda estranha, é
certo, mas mesmo assim uma oferenda. E esta oferenda é tanto mais estranha
pressupõe que alguém, vindo não se sabe donde, dá a alguém, que está não
se sabe onde, um cavalo; ou, então, o contrário: que alguém, que está não se
sabe onde, dá a alguém, vindo não se sabe donde, um cavalo. O lugar onde
facto, proprietário de nada. Nem da terra nem de qualquer objecto, seja este
um cavalo, por exemplo. Por isso mesmo, essa terra de ninguém tem um
nome: é o próprio conceito de terra. E esse cavalo, prestes a ser dado, tem
inofensivo?
2.
151
É em L'origine de l'oeuvre d'art que Heidegger sistematiza as noções de terra e
Escreve Heidegger: «Un tableau, par exemple celui de Van Gogh qui
Pour les décrire, point n'est besoin de les avoir sous les yeux. Tout le monde en
201
Heidegger, L'origine de l'oeuvre d'art, in Chemins qui ne mènent nulle part, col. Classiques
de la philosophie, Gallimard, Paris, 1970. Referir-nos-emos doravante a esta obra como OOA.
202
OOA, p. 12.
152
faciliter la vision sensible. Il suffit pour cela d'une illustration. Nous choisissons
à cet effet un célèbre tableau de Van Gogh, qui a souvent peint de telles
L'origine de l'oeuvre d'art, até por causa dos três momentos que atravessam o
rigoureusement rien où ils puissent prendre place: rien qu'un espace vague.
pourrait au moins indiquer leur usage. Une paire de souliers de paysan, et rien
de plus. Et pourtant...».204
romântica alemã:
203
OOA, p. 24.
204
OOA, p. 25.
153
«Dans l'obscure intimité du creux de la chaussure est inscrite la fatigue des pas
s'étendant au loin sous la bise. Le cuir est marqué par la terre grasse et
qui se perd dans le soir. A travers ces chaussures passe l'appel silencieux de la
terre, son don tacite de grain mûrissant, son secret refus d'elle-même dans
même».205
Uma leitura atenta do primeiro momento do texto indica-nos que há algo que
implica a mais do que evidente suspensão da frase, desta frase: «Um par de
«caminho que não leva a lado algum»,207 ao questionar conceitos como uso,
205
OOA, p. 25.
206
OOA, p. 14.
207
Cf. supra nota 2. Preocupo-me, aliás, de momento, com uma abordagem à noção de
Holzwege num trabalho que venho a desenvolver – cf. José Fernando Guimarães, Em nome
154
utilidade, produto (sublinhe-se, outra vez, que o primeiro momento de L'origine
Van Gogh no texto de Heidegger que se intitula Holzwege, «caminho que não
estendendo-se ao longe sob o inverno. O couro está marcado pela terra fértil e
terra, o seu dom tácito de grão amadurecendo, a sua própria recusa secreta no
evidente luta entre metáforas - surge desta recusa: «[L]es trois manières de
pode agora perguntar a propósito do quadro de Van Gogh: «Qu'est-ce qui est à
l'oeuvre dans l'oeuvre?». Para responder: «La toile de Van Gogh est l'ouverture
de ce que le produit, la paire de souliers de paysan, est en vérité. Cet étant fait
3.
Redução e dádiva
211
A tradução é nossa; aliás, sempre que ao longo deste trabalho houver uma citação em
língua estrangeira, seguida de uma citação em português, essa tradução é nossa.
212
OOA, p. 22.
213
OOA, p. 27.
214
OOA, p. 27.
156
está-se a dizer, no plano gnoseológico, que as características do sujeito foram
que o ditado popular quer enunciar uma dádiva – a de um cavalo. Mas, essa
dádiva, também ela, implica uma redução fenomenológica: «(...) não se olha ao
réduction (se) réduit, plus elle étend la donation». E acrescenta: «(...) autant de
215
Para o Dicionário da língua portuguesa contemporânea da Academia das Ciências de
Lisboa, p. 746, o ditado popular «A cavalo dado não se olha ao dente» significa «não reclamar
de uma situação proporcionada ou não colocar defeito a uma coisa oferecida».
216
Jean-Luc Marion, Réduction et donation. Recherches sur Husserl, Heidegger et la
phénoménologie, col. Épiméthée, PUF, Paris, 1989, p. 303.
217
Jacques Derrida, Donner le temps. 1. La fausse monnaie, col. La philosophie en effet,
Galilée, Paris, 1991; Jacques Derrida, Donner la mort, in L'éthique du don. Jacques Derrida et
157
Assim, «le don, s'il y en a, s'il est possible, doit apparaître comme impossible.
pas pouvoir être dit; dès qu'on le dit, on le détruit. Autrement dit, la mesure de
segundo Derrida, vale para o dom, vale também para o perdão, para a
deve ser dito» e, além disso, «mal seja dito, é destruído», é que justamente «A
cavalo dado não se olha ao dente» - dado que esse olhar «ao dente» contém
4.
Dar a palavra
dom, uma dádiva, este é-o ainda mais, até por causa dos seus protagonistas.
Abraão sabia que ia dar a vida do seu filho a Deus, e ia dar-Lhe a vida dando-
lhe a morte. Era esse o desígnio divino - um desígnio terrível: «Abraham prit le
la pensée du don, colloque de Royaumont, Métailié-Transition, Paris, 1992, em particular pp.
56-79 e pp. 83-102.
218
Jacques Derrida, Une certaine possibilité impossible de dire l'événement, in Dire
l'événement, est-ce possible? Séminaire de Montréal pour Jacques Derrida, col. Esthétiques,
L'Harmattan, Paris, 2001, p. 93.
219
La Bible de Jérusalem, Fleurus / Cerf, 2001, Gn, 22, p. 62.
158
bois de l'holocauste et le chargea sur son fils Isaac, lui-même prit en mains le
feu et le coteau et ils s'en allèrent tous deux ensemble. Isaac s'adressa à son
père Abraham et dit: "Mon père!" Il lui répondit: "Me voici, mon fils!" Il reprit:
répondit: "C'est Dieu qui pourvoira à l'agneau pour l'holocauste, mon fils", et ils
s'en allèrent tous deux ensemble». Sublinhe-se uma vez mais: eis um desígnio
terrível, este. Tão terrível quanto esta dupla repetição: «(...) foram-se os dois
juntos» - juntos pelo desígnio terrível, um desígnio que tinha que ser cumprido
pergunta de Isaac, o filho: «Eis o fogo e a madeira, mas onde está o cordeiro
meu filho». Ou seja, Abraão não pode revelar o dom, a dádiva, até porque «o
acontecimento do dom não deve ser dito», e além disso, «mal seja dito, é
Kierkegaard: «Quand ils furent arrivés à l'endroit que Dieu lui avait indiqué,
Abraham y éleva l'autel et disposa le bois, puis il lia son fils Isaac et le mit sur
concretizar a dádiva. Já não há nem Isaac nem Abraão, nem filho nem pai -
159
começa a desarticular com esta voz, a do Anjo de Yavhé, dirigida a Abraão - só
maintenant que tu crains Dieu (...)». Todavia, o Anjo de Yavhé ainda precisa de
chamar, nomear, Abraão uma outra vez: «L'Ange de Yavhé appela une
seconde fois Abraham du ciel et dit: "Je jure par moi-même, parole de Yavhé:
parce que tu as fait cela, que tu ne m'as pas refusé ton fils, ton unique (...)» - e
da terra, também Deus – «Je jure par moi-même, parole de Yavhé (...) – tem
que dar a (Sua) palavra para que o gesto suspenso se desarticule. Tal como,
afinal, Abraão tinha dado a (sua) palavra a Deus sobre o sacrifício de Isaac, o
seu filho. Mas, note-se, do lado de Deus, dar a palavra é a «oclusão» (cita-se
«La vérité s'institue dans l'oeuvre. La vérité ne déploie son être que comme
naissant fait apparaître précisément ce qui n'est pas encore décidé et ce qui est
de la décision.
160
Cependant, qu'un monde s'ouvre, la terre advient à l'émergence. Elle se révèle
comme celle qui porte tout, comme celle qui s'abrite elle-même dans le statut
maintenir sa réserve et à tout confier à son statut. Le combat n'est pas un trait
qui ouvrirait entre les adverses un gouffre. Le combat est l'intimité d'une
Tal como na palavra dada por Abraão a Deus, uma palavra de amor e de dor
recíproca para aqueles que se confrontam nele». Isto é, ao dar a sua palavra a
Deus, Abraão mostra-Lhe a sua pertença, a sua fé: «Je sais maintenant que tu
crains Dieu (...)», «Eu sei agora que tu temes Deus (...)». E esse temor de que
– «Eu sei agora (...)» – provém de dar a palavra. Dar a palavra nunca é, em si,
ao dar a palavra, isso é possível; todavia, uma vez a palavra dada, resta a
precisamente o que não estava ainda decidido e o que ainda estava desprovido
220
OOA, p. 49.
161
de medida». E compare-se este enunciado profundamente nietzscheano -
do Génesis: «"Je jure par moi-même, parole de Yavhé: parce que tu as fait
cela, que tu ne m'as pas refusé ton fils, ton unique, je te comblerai de
que le sable qui est sur le bord de la mer, et ta postérité conquerra la porte de
ses ennemis. Par ta postérité se béniront toutes les nations de la terre, parce
que tu m'as obéi». Aqui, nas palavras do Anjo de Yavhé, «(...) palavra de
Yavhé (...)», descreve-se «(...) o que não estava ainda decidido e o que ainda
estava desprovido de medida (...)» - «[o] mundo que nasce (...)». Mas, por
revela-se como aquela que tudo suporta, como aquela que se abriga no
estatuto do seu próprio acto de guardar. O mundo exige a sua decisão e a sua
medida e faz chegar o sendo à abertura das suas vias. A terra, emergência e
confrontam nele». Caso da palavra dada por Abraão a Yavhé. Caso, depois, da
palavra dada por Yavhé, «palavra de Yavhé», a Abraão. Por isso mesmo é que
«[a] verdade institui-se na obra. A verdade não manifesta o seu ser senão no
justamente, a palavra dada por Abraão a Deus ser a verdade. Como a palavra
dada por Deus a Abraão ser a verdade. Eis «a intimidade duma pertença
162
dar o tempo, o tempo que resta, ao dar a morte. E não são disto mesmo, os
163
Nota bibliográfica
Publicam-se aqui, sem alterações, textos que já foram publicados por esta
164
vol. XIX, Porto, 2002; Poe antes de Baudelaire e Nietzsche: o homem da
165
Índice
166
I – Nietzsche ou o regresso de Cálicles
2. Nietzsche e a arte:
Nota bibliográfica
167
168